Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
I - Nós, vitorianos
II – A hipótese repressiva
III – Scientia sexualis
História crítica da modernidade.
I - Nós, vitorianos
“Diz-se que no início do século XVII ainda vigorava uma certa fraqueza. As práticas não
procuravam o segredo; as palavras eram ditas sem reticência excessiva e as coisas eram feitas
sem demasiado disfarce; tinha-se com o ilícito uma tolerante familiaridade”1. p
Existem, talvez, uma outra razão que torna para nós tão gratificante formular
em termos de repressão as relações do sexo e do poder: é o que se poderia
chamar o benefício do locutor. Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à
proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua
repressão possui como que um ar de transgressão deliberada. Quem emprega
essa linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance do poder;
desordena a lei; antecipa, por menos que seja, a liberdade futura 7.
“Há dezenas de anos que nós só falamos de sexo fazendo pose: consciência de desafiar a
ordem estabelecida, tom de voz que demonstra saber que se é subversivo, ardor em conjurar o
presente e aclamar um futuro para cujo apressamento se pensa contribuir”8.
A afirmação de uma sexualidade que nunca fora dominada com tanto rigor
como na época da hipócrita burguesia negocista e contabilizadora é
acompanhada pela ênfase de um discurso destinado a dizer a verdade sobre o
sexo, a modificar sua economia no real, a subverter a lei que o rege, a mudar
seu futuro. O enunciado da opressão e a forma da pregação referem-se
mutuamente; reforçam-se reciprocamente. Dizer que o sexo não é reprimido,
ou melhor, dizer que entre o sexo e o poder a relação não é de repressão,
corre o risco de ser apenas um paradoxo estéril 12.
“E tanto mais longo, sem dúvida, quanto o que é próprio do poder – e, ainda mais, de um
poder como esse que funciona em nossa sociedade - é ser repressivo e reprimir com particular
atenção as energias inúteis, a intensidade dos prazeres e as condutas irregulares”15.
“As dúvidas que gostaria de opor à hipótese repressiva têm por objetivo muito menos mostra
que essa hipótese é falso do que recoloca-la numa economia geral dos discursos sobre o sexo
no seio das sociedades modernas a partir do século XVII”16.
11
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 12.
12
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 12,
13.
13
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 13,
14.
14
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 14.
15
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 14.
16
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p.
Em suma, trata-se de determinar, em seu funcionamento e em suas razões de
ser, o regime de poder-saber-prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre
a sexualidade humana. Dai decorre também o fato de que o ponto importante
será saber sob que formas, através de que canais, fluindo através de que
discursos o poder consegue chegar às mais tênues e mais individuais das
condutas. Que caminhos lhe permitem atingir as formas raras ou quase
imperceptíveis do desejo, de que maneira o poder penetra e controla o prazer
cotidiano17.
II – A hipótese repressiva
“Desde a Idade Média, pelo menos, as sociedades ocidentais colocaram a confissão entre os
rituais mais importantes de que se espera a produção de verdade: a regulamentação do
sacramento da penitência pelo Concílio de Latrão, em 1215”18. P. 65
Mas tal foi a linguagem do poder e tal a representação que deu de si mesmo,
da qual é testemunha toda a teoria do direito público construída na Idade
Média ou reconstruída a partir do direito romano. O Direito não foi,
simplesmente, uma arma habilmente manipulada pelos monarcas; constituiu
para o sistema monárquico, o modo de manifestação e a forma de
aceitabilidade. Desde a Idade Média, nas sociedades ocidentais, o exercício
do poder sempre se formula no direito
O indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos outros
e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família, lealdade, proteção)
posteriormente, passou a ser autenticado pelo discurso da verdade que era
capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo. A confissão da verdade se
inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder 19. P.
66
... a confissão passou a ser, no Ocidente, uma das técnicas mais altamente
valorizadas para produzir a verdade. Desde então nos tornamos uma
sociedade singularmente confessada. A confissão difundiu amplamente seus
17
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p.
18
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 65.
19
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p.
efeitos: na justiça, na medicina, na pedagogia, nas relações familiares, nas
relações amorosas, na esfera mais cotidiana e nos ritos mais solenes 20. P. 66
“Amo o pecador, mas não o pecado”: reprima seu desejo e não cometais o pecado.
2- Método
Parece-me que se deve compreender o poder, primeiro, como a
multiplicidade de correlações de forças imanentes ao domínio onde se
exercem e constitutivas de sua organização; o jogo que, através de lutas e
afrontamentos incessantes, as transforma, reforça, inverte; os apoios que tais
correlações forças encontram umas nas outras, formando cadeias ou
sistemas, ou o contrário, as defasagens e contradições que as isolam entre si;
enfim, as estratégias em que se originam e cujo esboço geral ou cristalização
20
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p.
21
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 66,
67.
22
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p.
23
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 68.
institucional toma corpo nos aparelhos estatais, na formulação da lei, nas
hegemonias sociais24.
Onipresença do poder: não porque tenha o privilégio de agrupar tudo sob sua invencível
unidade, mas porque se produz a cada instante, em todos os pontos, ou melhor, em toda
relação entre um ponto e outro.
O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém
de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanente, de repetitivo,
de inerte, de autorreprodutor, é apenas efeito de conjunto, esboçado a partir
de todas essas mobilidades, encadeamento que se apoia em cada uma delas
e, em troca, procura fixa-las26.
“Sem dúvida, devemos ser nominalistas: o poder não é uma instituição nem uma estrutura,
não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: e o nome dado a uma situação
estratégica complexa numa sociedade determinada”27.
Ao levantar a questão
Seria, então, preciso inverter a fórmula e dizer que a política é a guerra
prolongada por outros meios? Talvez, se ainda quisermos manter alguma
distinção entre guerra e política devemos afirmar, antes, que essa
multiplicidade de correlações de forças pode ser codificada – em partes,
jamais totalmente -, seja na forma de “guerra”, seja na forma de “política”
seriam duas estratégias diferentes (mas prontas a se transformarem uma na
outra) para integrar esass correlações de forças desequilibradas,
heterogêneas, instáveis, tensas28.
24
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p.
100-101.
25
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 101.
26
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 101.
27
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 101.
28
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 101,
102.
“- que o poder não é algo que se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou deixe
escapar; o poder se exerce a partir de inúmeros pontos e em meio a relações desiguais e
móveis”29.
Que o poder vem de baixo; isto é, não há, no princípio das relações de poder,
e como matriz geral, uma oposição binária e global entre os dominadores e
os dominados, dualidade que repercuta de alto a baixo e sobre grupos cada
vez mais restritos até as profundezas do corpo social. Deve-se, ao contrário,
supor que as correlações de forças múltiplas que se formam e atuam nos
aparelhos de produção, nas famílias, nos grupos restritos e nas
instituições servem de suporte a amplo efeito de clivagem que
atravessam o conjunto do corpo social. Estes formam, então, uma linha de
força geral que atravessa os afrontamentos locais e os liga entre si;
evidentemente, em troca, procedem a redistribuições, alinhamentos,
homogeneizações, arranjos de série, convergências desses afrontamentos
locais. As grandes dominações são efeitos hegemônicos continuamente
sustentados pela intensidade de todos esses afrontamentos31.
Não busquemos a equipe que preside sua racionalidade; nem a casta que
governa, nem os grupos que controlam os aparelhos do Estado, nem aqueles
que tomam decisões econômicas mais importantes, geral o conjunto da rede
de poderes que funciona em uma sociedade (e a faz funcionar) 33.
29
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 102.
30
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 102.
31
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 102,
103.
32
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 103.
33
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 103.
implícito das grandes estratégias anônimas, quase mudas, que coordenam
táticas loquazes, cujos “inventores” ou responsáveis quase nunca são
hipócritas34.
34
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 1: vontade de saber. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2015, p. 103.