Você está na página 1de 239

0

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E


FILOSOFIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SOCIOLOGIA E DIREITO

TIAGO DE GARCIA NUNES

A Autogestão em Perspectiva Comparada -


Quatro Organizações de Trabalho Associado
na Resistência da Produção à Contestação do
Capital

NITERÓI
2016
1

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE


INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
E DIREITO

TIAGO DE GARCIA NUNES

A AUTOGESTÃO EM PERSPECTIVA COMPARADA -


QUATRO ORGANIZAÇÕES DE TRABALHO ASSOCIADO
NA RESISTÊNCIA DA PRODUÇÃO À CONTESTAÇÃO
DO CAPITAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do
título de doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

Orientador: Professor Doutor Joaquim Leonel de


Rezende Alvim

Niterói, 2016
2

N972 Nunes, Tiago de Garcia.


A autogestão em perspectiva comparada – quatro organizações de
trabalho associado na resistência da produção à contestação do capital /
Tiago de Garcia Nunes. – Niterói, 2016.
238 f.

Doutorado (Doutorado em Sociologia e Direito) – Programa de Pós-


graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, 2016.

1. Sociologia do trabalho. 2. Autogestão. 3. Movimento popular. 4.


Economia solidária. 5. Trabalho Associado. I. Universidade Federal
Fluminense. Faculdade de Direito, Instituição responsável. II. Título.

CDD 340.2
3

TIAGO DE GARCIA NUNES

A AUTOGESTÃO EM PERSPECTIVA COMPARADA - QUATRO


ORGANIZAÇÕES DE TRABALHO ASSOCIADO NA RESISTÊNCIA
DA PRODUÇÃO À CONTESTAÇÃO DO CAPITAL

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para a
obtenção do título de doutor em Ciências
Jurídicas e Sociais.

Aprovada em 07 de julho de 2016

BANCA EXAMINADORA:

..........................................................................................
Prof. Dr. Joaquim Leonel de Rezende Alvim (orientador)

..........................................................................................
Prof.ª Dr.ª Lia Tiriba

..........................................................................................
Prof. Dr. João Roberto Lopes Pinto

..........................................................................................
Prof. Dr. Maurício Mello Vieira Martins

..........................................................................................
Prof.ª Dr.ª Carla Appollinario de Castro

..........................................................................................
Prof. Dr. Antônio Carlos Martins da Cruz

Niterói, 2016
4

RESUMO

O objetivo da pesquisa foi o de comparar aspectos institucionais de quatro Organizações de


Trabalho Associado (OTAs) a fim de verificar em que medida o processo autogestionário
altera as suas relações de trabalho, e se está relacionado a outras perspectivas de luta política;
interpretando o impacto desta relação e os condicionantes institucionais daí resultantes no
processo de consciência dos trabalhadores para verificar os limites e as possibilidades da
autogestão como mediação para a sua emancipação. A experiência de alguns movimentos
populares ocasionou o surgimento de muitas iniciativas econômicas de tipo associativo – que
resultaram das próprias transformações ocorridas nas últimas décadas na sociedade latino-
americana. Foram constituindo-se OTAs num ritmo inédito. No entanto, o distanciamento
entre os movimentos populares e o trabalho associado ocasionou um afastamento das OTAs
do campo do enfrentamento político. A pesquisa foi realizada a partir de um recorte histórico-
sociológico com intuito comparativo, que articulando dimensões qualitativas e quantitativas à
investigação, combinou a análise documental, audiovisual e eletrônica às entrevistas
semiestruturadas que foram aplicadas a trabalhadores e trabalhadoras que integram as OTAs.
Um autogestômetro foi desenvolvido como instrumento de tabulação, análise e demonstração
dos dados. A abordagem orientou-se teoricamente pelo marxismo autogestionário. Os
resultados demonstraram que a incorporação das OTAs às lutas políticas mais amplas
(reivindicação e contestação) a partir da relação orgânica com movimentos e organizações
populares torna-se um indispensável caminho para a possibilidade de superação dos objetivos
unicamente corporativos, além de elevá-las à condição de sujeito político capaz de incidir na
correlação de forças com condições reais de disputa pela implantação de seu projeto político.
A retomada da relação do trabalho associado com outras forças populares, além de resgatar a
pretérita imbricação com o movimento popular pode ressignificar o seu papel de resistência
histórica na luta pela autogestão societal ampliada. Tal processo, se combinado com
qualificados índices de divisão do poder interno nas OTAs atua como importante mediação
para o surgimento de embriões de uma nova consciência.

Palavras-chave:
Organizações de Trabalho Associado; Economia Solidária; Autogestão; Movimentos
Populares; Processo de Consciência.
5

ABSTRACT

The aim of the research is to compare the institutional aspects of four Worker Self-
Management Initiatives (WSI) in order to verify to what extent the self-management process
changes the working relationships, and is related to other political struggle prospects. Then is
necessary to interpret the impact of this relationship and institutional conditions resulting in
the possibility of workers emancipation, examining the the limits and possibilities of self-
management as a means to empowerment, especially to the consciousness process. The
experience of some popular movements led to the emergence of many economic WSI, which
resulted from own transformations that have occurred in recent decades in Latin American
society. WSI were constituting an unprecedented pace. However, there was a gap between
popular movements and the Self-Management Initiatives, which led to a departure from the
WSI of the political confrontation field. The research was conducted from a historical-
sociological cut with comparative purposes. It was carried out through empirical field studies
in four WSI that linking qualitative and quantitative dimensions of research, and combined
documentary analysis; audiovisual and electronic to semi-structured interviews were applied
to workers who are part of the WSI. The research is theoretically guided by marxismo
autogestionário. The incorporation of broader political struggles (from reclaim to
contestation) through an organic relationship with popular movements and organizations
becomes an indispensable way to expand the economic and corporate agenda of WSIs,
allowing them to develop and test mediations beyond capital.

Keywords:
Worker Self-Management Initiatives; Solidarity Economy; Self-management; Popular
Movements; consciousness process.
6

RESUMEN

El objetivo de la investigación es comparar los aspectos institucionales de cuatro


Organizaciones de Trabajo Asociado (OTA) con el fin de verificar en qué medida el proceso
de autogestión, há cambiado la relación de trabajo, y se relaciona con otras perspectivas de la
lucha política. Em esse sentido fue necesario interpretar el impacto de esta relación y las
condiciones institucionales que resultan en la posibilidad de la emancipación de los
trabajadores, para comprobar los límites y posibilidades de la autogestión como forma de
empoderamiento, especialmente para el proceso de conciencia de los trabajadores. La
experiencia de algunos movimientos populares llevó a la aparición de muchas iniciativas
económicas de naturaleza asociativa - que resultó de las transformaciones propias que se han
producido en las últimas décadas en la sociedad latinoamericana. Las OTAs fueron
constituyendose en un ritmo sin precedentes, sin embargo, existe um aislamiento entre los
movimientos populares y el trabajo asociado, lo que llevó a un alejamiento de la OTAs del
campo de confrontación política. La investigación fue realizada a partir de un corte histórico-
sociológico con fines comparativos. Se llevó a cabo estudios empíricos de campo en cuatro
OTAs que vinculó dimensiones cualitativas y cuantitativas de investigación, que combinó
análisis documental, audiovisual y electrónico a las entrevistas semiestructuradas aplicadas a
los trabajadores que forman parte de las OTAs. La investigación se orientó teoricamente por
marxismo autogestionario. La incorporación de luchas políticas más amplias a la agenda de
las OTAs (de la defensa a la contestación) mediente la relación orgánica con movimientos y
organizaciones populares se convierte en un medio indispensable para garantizar la
superación de los objetivos económicos y sociales de las OTAs, experimentando así
mediaciones más allá del capital.

Palabras Clave:
Organizaciones de Trabajo Asociado; Economía solidaria; Autogestión; Movimientos
populares; Proceso de toma de conciencia.
7

LISTA DE ILUSTRAÇÕES
OTAs pesquisadas (Quadro 1) 20
Rosácea dos Empreendimentos Autogestionários (quadro geral) –
Empreendimento padrão (Figura 1) 23
Rosácea dos Empreendimentos Aa e Ae (Figura 2) 24
Autogestômetro institucional - Organizações de Trabalho Associado (OTAs)
(Figura 3) 26
Autogestômetro individual - trabalhadores das OTAs - (Organização de
Trabalho Associado 3, Trabalhador 1) (Figura 4) 27
Indicadores institucionais – numeração e descrição (Quadro 5) 36
Indicadores comportamentais – numeração e descrição (Quadro 6) 40
Complexo Flaskô (Figura 5) 53
Veja – o que acontece numa fábrica ocupada (Figura 6) 62
Autogestômetro institucional – OTA 1 – Fábrica Ocupada Flaskô (Figura 7) 65
Autogestômetro institucional – OTA 2 – CooperActiva - Okupa 171 (Figura 8) 75
Autogestômetro institucional – OTA 3 – Cooperativa Teia Ecológica (Figura
9) 93
O campo da Economia Solidária no Brasil (Figura 10) 109
Autogestômetro institucional – OTA 4 – Núcleo de Produção das Artesãs da
Associação Bem da Terra (Figura 11) 114
Processo dialético de totalização mediado pelos grupos (Sartre e considerações
de Iasi) (Figura 12) 138
Quadro comparativo por contraste dos indicadores comportamentais nas 4
OTAs (Quadro 7) 155
OTAs em perspectiva comparada (Figura 13) 167
Comparação OTA 1 – institucional x comportamental (trabalhadores) (Figura
14) 168
Comparação OTA 2 – institucional x comportamental (trabalhadores) (Figura
15) 169
Comparação OTA 3 – institucional x comportamental (trabalhadores) (Figura
16) 170
Comparação OTA 4 – institucional x comportamental (trabalhadores) (Figura
17) 171
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO I – PERCURSO METODOLÓGICO E PESQUISA DE


CAMPO 19
1.1 INSTRUMENTOS DESENVOLVIDOS PARA A PESQUISA DE CAMPO,
TABULAÇÃO, ANÁLISE E APRESENTAÇÃO DOS DADOS 21
1.2 DECIFRANDO O “AUTOGESTÔMETRO” – INSTRUMENTO DE
TABULAÇÃO, ANÁLISE E DEMONSTRAÇÃO DOS DADOS 23
1.2.1 Os indicadores institucionais e comportamentais 30
1.2.1.1 Indicadores institucionais – Organizações de Trabalho Associado 32
1.2.1.2 Indicadores comportamentais – trabalhadores 37

CAPÍTULO II – OCUPAR, RESISTIR, PRODUZIR EM QUATRO


ORGANIZAÇÕES DE TRABALHO ASSOCIADO - A ORDEM DOS
FATORES NÃO ALTERA O PRODUTO? – 1° SEGMENTO DA
PESQUISA DE CAMPO 41
2.1 OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR - A ORDEM DOS FATORES NÃO
ALTERA O PRODUTO? 41
2.1.1 Fábrica Flaskô – uma fábrica ocupada pelos trabalhadores 43
2.1.1.1 O Movimento das Fábricas Ocupadas 59
2.1.1.2 Autogestômetro da Flaskô 64
2.1.2 CooperActiva – Okupa 171 66
2.1.2.1 O Anarquismo das Okupas 72
2.1.2.2 Autogestômetro da CooperActiva – Okupa 171 75
2.1.3 Cooperativa Teia Ecológica – Restaurante agroecológico 76
2.1.3.1 A agroecologia de base popular 86
2.1.3.2 Autogestômetro da Teia Ecológica 92
2.1.4 Núcleo de produção das artesãs da Associação Bem da Terra 94
2.1.4.1 O Movimento da Economia Solidária 103
2.1.4.2 Autogestômetro do Núcleo de Produção das Artesãs da Associação Bem
da Terra 114

CAPÍTULO III – A AUTOGESTÃO EM PERSPECTIVA COMPARADA -


RUPTURAS E CONTINUIDADES NO TRABALHO ASSOCIADO - 2°
SEGMENTO DA PESQUISA DE CAMPO 115
3.1 RUPTURAS E CONTINUIDADES NAS ORGANIZAÇÕES DE
TRABALHO ASSOCIADO 115
3.2 O COMPORTAMENTO E A CONSCIÊNCIA EM ORGANIZAÇÕES DE
TRABALHO ASSOCIADO 116
3.2.1 A consciência como processo 117
3.2.2 A primeira forma de consciência – alienação subjetiva 119
3.2.3 As contradições da primeira forma de consciência 128
9

3.2.4 O processo dialético de totalização mediado pelos grupos 130


3.2.5 As contradições entre a segunda forma de consciência e a nova
consciência – nas quatro OTAs - classe em si e classe para si 144
3.2.6 Análise dos indicadores – o comportamento autonomista e a práxis
autogestionária ampliada – reivindicação e contestação nas 4 OTAs 154
3.2.6.1 Análise por blocos – autogestão interna, autogestão ampliada, aspectos
sociopolíticos gerais 157
3.2.6.2 Análise Global 163

CAPÍTULO IV – A AUTOGESTÃO COMO ESTRATÉGIA-MOVIMENTO


E IDEAL – TEORIA SOCIAL – PROCESSOS, EVENTOS E
EXPERIMENTAÇÕES 172
4.1 A AUTOGESTÃO COMO ESTRATÉGIA – MOVIMENTO E IDEAL –
TEORIA SOCIAL 174
4.2 O TRABALHO ASSOCIADO NA VIGÊNCIA DO CAPITAL 182
4.2.1 Autogestão interna – a questão do poder 185
4.3 AUTOGESTÃO SOCIETAL AMPLIADA E OS ATAQUES DUPLOS – A
DIALÉTICA DA RESISTÊNCIA DA PRODUÇÃO À CONTESTAÇÃO 190

CONSIDERAÇÕES FINAIS 200

REFERÊNCIAS 205

ANEXOS 211
ANEXO A Roteiro semiestruturado para entrevista dos informantes-chave e
coleta de dados referentes às organizações de trabalho associado 212
ANEXO B Roteiro estruturado de entrevista com questões diretivas e não
diretivas abertas aplicadas aos trabalhadores e trabalhadoras das
organizações de trabalho associado 214
ANEXO C Quadro 2 – Indicadores e variáveis institucionais para tabulação 216
ANEXO D Quadro 3 – Indicadores e variáveis comportamentais para tabulação 223
ANEXO E Autogestômetro comportamental T 1 e T2 – OTA1 229
ANEXO F Autogestômetro comportamental T 3 e T5 – OTA1 230
ANEXO G Autogestômetro comportamental T 5 e T6 – OTA1 231
ANEXO H Autogestômetro comportamental T 1 e T2 – OTA2 232
ANEXO I Autogestômetro comportamental T 3 e T4 – OTA2 233
ANEXO J Autogestômetro comportamental T 1 e T2 – OTA3 234
ANEXO K Autogestômetro comportamental T 3 e T4 – OTA2 235
ANEXO L Autogestômetro comportamental T 3 – OTA3 e T1 – OTA 4 236
ANEXO M Autogestômetro comportamental T 2 e T3 – OTA4 237
ANEXO N Autogestômetro comportamental T 4 e T5 – OTA4 238
10

INTRODUÇÃO

As Organizações de Trabalho Associado (OTAs) são modalidades específicas de


associativismo surgidas ao longo da história de lutas da classe trabalhadora. Emergiram como
cooperativas, mas com o passar dos tempos - e especialmente se pensadas de maneira atrelada
às grandes lutas autogestionárias -, aparecem sob outras configurações que buscam, dentre
outras coisas, alterar as relações de produção a partir do interior das unidades produtivas. 1

O aparecimento deste tipo de organização acontece sob condições sócio-históricas


muito específicas, que podem determinar o maior ou menor grau de incidência do fenômeno
assim como o nível de consolidação das experiências.

Na América Latina, o período neoliberal fez com que o trabalho associativo emergisse
com grande força em todo o continente, inserido no contexto das duras condições de
reprodução da vida, originado pelas especificidades do desenvolvimento capitalista
dependente2, e impulsionadas pela reconfiguração da divisão internacional do trabalho sob a
finança mundializada3.

Os grupos industriais, financeiros e comerciais multinacionais introduzem novas


formas de gestão e de controle do trabalho; os investimentos externos diretos são
potencialmente criadores de novas configurações tecnológicas e organizacionais que servem

1
Aqui e em todo o texto será empregada a terminologia Organização de Trabalho Associado (OTA) como
gênero em que estão compreendidas algumas espécies de cooperativas populares, empreendimentos econômicos
solidários, empresas recuperadas, fábricas ocupadas, coletivos informais e outras definições. De acordo com Dal
Ri e Vieitez o trabalho associado configura-se quando um coletivo detém posse ou a propriedade de uma unidade
econômica passando a controlar a sua gestão. Este possui algumas características que o diferencia das empresas
capitalistas, como: supressão do trabalho assalariado; retiradas (salários) iguais ou equitativas; substituições das
hierarquias burocráticas por coordenações; deliberações em Assembleias gerais; nova perspectiva educacional
para os trabalhadores, entre outras. Neste sentido, os autores empregam a expressão OTAs mais-democráticas
para designar empreendimentos com algumas características mais propensas ao engajamento em processos de
mudança social. O trabalho associado está ainda inserido num sistema de cooperação com o capital. Assim, este
surge quando essa mesma cooperação com o capital é empregada no intuito de forjar um sistema de cooperação
autônomo ou para si. (em: VIEITEZ, Candido Giraldez; DAL RI, Neusa Maria. Trabalho associado e mudança
social. In: DAL RI, Neusa Maria [org.]. Trabalho Associado, Economia Solidária e Mudança Social na América
Latina. Associação das Universidades Grupo Montevidéu. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Oficina
Universitária; Montevidéu : Editorial PROCOAS, 2010). Relevante apontar que a definição Organização de
Trabalho Associado também foi utilizada para designar as “entidades fundamentais do sistema de autogestão
iugoslavo”. QUEIROZ, Bertino Nóbrega de. A autogestão iugoslava. São Paulo: brasiliense, 1982, p. 40.
2
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1972 e
Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
3
A mundialização é resultado de dois movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas distintos. O
primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo
conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização, de privatização, de
desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o
início década de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagen. CHESNAIS, François. A mundialização
do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p.34.
11

ao regime de acumulação flexível, onde a flexibilização da produção e da circulação se


destaca. Tal reestruturação agride a duros golpes o polo frágil da relação capital-trabalho,
ocasionando galopantes processos de precarização onipresentes de norte a sul do globo:
trabalho temporário, informalidade, subcontratação, terceirização (inclusive da atividade fim
das empresas e do setor público), e a cooperativização (como artimanha para burlar direitos e
garantias conquistadas a altas penas pelo movimento operário e popular); são algumas das
faces sensíveis deste fenômeno.

As políticas neoliberais parecem ter esvaziado o sentido de resistência de várias


instituições e de movimentos populares ocasionando importante descenso das lutas de massa.

Para alguns analistas, o refluxo dos movimentos e o conformismo da classe


trabalhadora para com a nova ordem mundializada, verificada entre os anos 1980/1990, se
intensificaria. Contudo, o conformismo dos trabalhadores na América Latina começou a
dissipar-se e a partir dos anos 1990, uma série de movimentações populares começou a
ensejar o que Cláudio Nascimento define como Princípio de Poder Popular-Comunal4. O
Caracazo de 1989 na Venezuela; a Guerra da Água na Bolívia em 2000; os estudantes no
Chile (anos 2000 e dias atuais); o levante zapatista (a partir de 1994) no sul do México são
alguns dos exemplos mais conhecidos.

Na Bolívia houve um grande aumento do número das cooperativas de mineiros,


devido ao desemprego em massa e à falta de alternativas de renda provocados pelas políticas
neoliberais. Na Argentina formou-se o movimento das fábricas recuperadas. Na Venezuela, o
governo Chávez incentivou a formação de OTAs oferecendo treinamento e financiamento
para novas organizações e as fábricas capitalistas abandonadas foram estatizadas sob o
controle operário. No Brasil surgiu a Economia Solidária como denominação majoritária.

Assim, a experiência de alguns movimentos ocasionou o surgimento de muitas


iniciativas econômicas de tipo associativo – que resultaram das próprias transformações
ocorridas nas últimas décadas, tanto da economia quanto da sociedade latino-americana.
Foram constituindo-se OTAs num ritmo inédito. A precarização geral do mundo de trabalho e
a ausência de perspectiva de solução para esses problemas por parte dos trabalhadores é
sempre o melhor estímulo para a preservação e/ou a criação de postos de trabalho geridos
pelos próprios trabalhadores.

4
NASCIMENTO, Cláudio. Momentos e Ideias Decisivas para uma história da autogestão. Disponível em
<https://cirandas.net/recapes/biblioteca/cartilha-autogestao.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2013.
12

Se, por um lado, o massivo surgimento de empreendimentos associativos cria uma


expectativa em relação à possibilidade sobre o surgimento de sistemas integrados de produção
e circulação geridos pelos próprios trabalhadores; por outro, o aumento substancial de uma
nova classe trabalhadora que se reproduz na crescente precariedade do mundo do trabalho,
tende a converter-se num componente cada vez mais dinâmico dos processos de luta,
colocando na pauta dos movimentos imensos desafios organizativos. No Brasil, boa parte da
classe trabalhadora está na informalidade e a experiência tem mostrado que devido à
heterogeneidade das suas formas de sobrevivência, tende a se organizar mais nos territórios
que nos espaços de produção. Essa situação, além de revelar interessante potencial de luta,
aponta para a necessidade de que a produção associada esteja referenciada nos movimentos
populares e que estes estejam minimamente ancorados nas OTAs.

Este é o dilema central que enseja a presente pesquisa. A percepção a partir do local de
fala e da experiência profissional e militante do pesquisador é de que esta relação (OTAs x
Movimentos x OTAs) está cada vez mais enfraquecida. O movimento operário e sindical
distanciou-se da discussão sobre o Trabalho Associado. Com exceção de alguns movimentos
que tem seus integrantes ancorados num Sistema Cooperativista de Assentados (SCA), como
no caso dos movimentos da Via Campesina, a impressão é que o ingresso dos trabalhadores
na dinâmica da produção associativa raramente ocorre por intermédio dos sujeitos coletivos e
tende a ser cada vez mais avulsa ou serializada.

Neste quadro, por um lado, as OTAs tendem a afastar-se do campo da disputa política,
e, por outro, os movimentos populares desperdiçam importante oportunidade de organizar
trabalhadores que se encontram desvinculados de postos fixos de trabalho, portanto, longe do
foco de alcance do movimento sindical, em que pese todas as atuais dificuldades em alcançar
os trabalhadores assalariados convencionais.

Relevante destacar que na perspectiva de Marx e Engels e do materialismo histórico,


este último, aqui, adotado como referência teórica e metodológica, a produção é concebida
numa dimensão de totalidade dos processos de criação e recriação da realidade humano-social
mediados pelo trabalho, pelos quais o ser humano confere humanidade às coisas da natureza e
humaniza-se com as criações e representações que produz sobre o mundo. Engels e Marx
utilizaram os termos trabalho associado, produção coletiva, sociedades cooperativas e
associação cooperativa para definir uma célula no interior do modo de produção fundada na
negação do trabalho assalariado, na propriedade e gestão coletiva dos meios de produção e na
distribuição igualitária dos frutos do trabalho dentro do contexto da sociedade capitalista. Ao
13

se conferir desproporcional atenção ao tema das decisões mais ou menos democráticas


realizadas dentro dos muros das OTAs; acaba-se por ocultar outros elementos que permitem
avaliar as potencialidades da autogestão no trabalho associado enquanto horizonte de
transformação social.

Nestes termos, os clássicos debates entre o socialismo utópico x socialismo científico e


sobre a natureza degenerativa das cooperativas ganham novos contornos e elementos, como o
aspecto da consciência dos trabalhadores das OTAs e a crítica da alienação como
possibilidade de questionamento das (des)continuidades da perda do controle do produto do
trabalho numa sociedade regida pelo capital, mesmo em associações de trabalhadores, onde
aparentemente a questão da transferência da propriedade dos meios de produção já se
encontra realizada.

Assim, os problemas centrais de pesquisa desta tese são: (1) em que medida a
autogestão no Trabalho Associado pode ser considerada uma mediação propícia para o
desenvolvimento de práticas democratizantes, comprometidas com a emancipação dos
trabalhadores e com a socialização dos eventuais avanços obtidos no interior das unidades
produtivas? (2) Quais elementos ou tendências institucionais apresentam-se como mediações
propícias para a constituição de uma nova consciência e de uma práxis autogestionária
ampliada nos sujeitos inseridos nas Organizações de Trabalho Associado?

Para resolver os problemas de pesquisa foram estabelecidas três hipóteses de trabalho.

Hipótese Principal: Os processos autogestionários nas Organizações de Trabalho Associado


podem sob algumas circunstâncias engendrar mediações propícias para o desenvolvimento
de práticas democratizantes no âmbito interno das experiências comprometidas com a
emancipação dos trabalhadores e com a socialização dos avanços obtidos no interior das
unidades produtivas, tanto em termos econômicos como políticos.

A hipótese principal está articulada em duas sub-hipóteses, que nortearam o caminho e


a metodologia da pesquisa, assim definidas:

- Sub-hipótese (a): A incorporação das OTAs às lutas políticas mais amplas


(reivindicação e contestação) a partir da relação orgânica com movimentos e organizações
populares torna-se um indispensável caminho para promover a superação dos objetivos
econômico-corporativos das OTAs; além de elevá-las à condição de sujeito político capaz de
incidir na correlação de forças políticas com possibilidades reais de disputa pela
implantação de seu projeto político. A retomada da relação do trabalho associativo com
14

outras forças populares, além de resgatar a imbricação pretérita com o movimento operário
popular pode ressignificar o papel de resistência histórica do trabalho associativo na luta
pela autogestão societal ampliada, iniciando pelas unidades produtivas.

- Sub-hipótese (b): Na sociedade sob o domínio do Capital, enquanto seu


sociometabolismo alcança todas as esferas da vida, não é possível alcançar uma nova
consciência a não ser de forma embrionária. No entanto, compreender a consciência como
um processo, permite reconhecer que esta não é estática ou que se desenvolve de forma
linear; é formada a partir da relação dialética existente entre as representações ideais dos
indivíduos e as suas relações concretas. Assim, algumas OTAs apresentam componentes
institucionais que favorecem o despertar de uma nova consciência (consciência de classe ou
revolucionária), pois que sustentam suas experiências em bases favoráveis a outra forma de
perceber o mundo e de interagir neste.

No que diz respeito às análises sobre o trabalho associado, parece que o acúmulo e a
saturação teórica sobre o tema não foi acompanhado de renovações significativas em termos
de modelos interpretativos que entendam o fenômeno como totalidade, especialmente na
relação das partes (unidades produtivas) com o sociometabolismo do capital, compreendido
como totalidade social.

Percebe-se uma polarização entre as interpretações, que enaltecem que tudo mudou
como num passe de mágicas e as leituras que denunciam que nada mudou, como se estes
coletivos nem tivessem existido. Em que pesem algumas importantes exceções,
aparentemente tal rivalidade ainda pauta boa parte da discussão acadêmica e política sobre as
experiências e processos de trabalho associativo.

Henrique Novaes5, ao analisar a alienação e a desalienação em associações de


trabalhadores, sinaliza a existência de inúmeros problemas na análise destas experiências
pelos pesquisadores latino-americanos e aponta três tendências dominantes nas pesquisas
realizadas até o momento: (1) tudo mudou, (2) nada mudou e (3) visão microscópica da
realidade social. De um lado, alguns pesquisadores afirmam que tudo mudou depois do
arrendamento ou aquisição dos meios de produção pelos trabalhadores de fábricas
recuperadas e cooperativas de trabalhadores. No outro extremo, existe uma linha
argumentativa que afirma que nada mudou, pois as associações e cooperativas estão diante do
sistema produtor de mercadorias e a relação capital-trabalho se reproduz dentro de todas as

5
NOVAES, Henrique. T. (Org.). O retorno do caracol à sua concha: alienação e desalienação em associações
de trabalhadores. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
15

empresas, sejam elas de trabalhadores ou de patrões6. Para Novaes, as duas padecem de


equívoco analítico, dado que,

[...] os primeiros ignoram os entraves para a emancipação humana que a não


generalização da expropriação dos expropriadores representa. Além disso, também
subestimam a impossibilidade de redirecionar a produção para a satisfação das
necessidades humanas ao ocupar apenas algumas poucas fábricas, enquanto que o
segundo grupo de pesquisadores fecha os olhos para as possibilidades que as
Fábricas Recuperadas [...] têm de dissolver o caráter de mercadoria da força de
trabalho, definhando a alienação [...] aqueles que têm como proposta única e
exclusivamente a tomada do poder, não percebem que o capital não se extingue
subitamente, por decreto, com um golpe de força.7

Em relação à terceira tendência, embora composta por perspectivas que não caem na
falácia do enquanto não tomarmos o poder, nada mudará, e de mostrar as permanências e
mudanças nas fábricas recuperadas e cooperativas de trabalhadores, tende a adotar uma visão
microscópica da realidade social. 8

Novaes aponta a existência de uma ainda incipiente quarta via argumentativa. Esta via
- que apresenta consequências não só analíticas, mas para a ação política - é esboçada a partir
das trilhas deixadas por Marx, quando este faz a dialética da parte com o todo: das rupturas
com a antiga forma e a reprodução da antiga forma, para sinalizar as possibilidades de
ruptura social do movimento associativo reconhecendo-o como uma das forças
transformadoras da sociedade atual baseada em antagonismo de classes, mas sem, contudo
deixar de apontar a suas limitações para derrubar o sistema social do capital.

Uma primeira pista desta quarta via pode ser encontrada no documento intitulado
Instruções para os delegados do conselho geral provisório: as diferentes questões, quando
Marx remete as seguintes orientações para a Associação Internacional dos Trabalhadores:

É tarefa da Associação Internacional dos Trabalhadores combinar e generalizar os


movimentos espontâneos das classes operárias, mas não ditar ou impor qualquer
sistema doutrinário que seja. O congresso não deveria, portanto, proclamar qualquer
sistema especial de cooperação, mas limitar-se à enunciação de alguns princípios
gerais. (a) Reconhecemos o movimento cooperativo como uma das forças
transformadoras da sociedade presente baseada no antagonismo de classes. O seu
grande mérito é o de mostrar praticamente que o presente sistema, pauperizador e
despótico, de subordinação do trabalho ao capital pode ser superado pelo sistema
republicano e beneficente de associação de produtores livres e iguais. (b)
Restringindo, contudo, às formas anãs, em que escravos assalariados individuais o
podem elaborar pelos seus esforços privados, o sistema cooperativo nunca
transformará a sociedade capitalista. Para converter a produção social num sistema

6
NOVAES, Henrique T. (Org.). A alienação em cooperativas e associações de trabalhadores: uma introdução.
São Paulo: Expressão Popular, 2010.
7
NOVAES, op. cit. 2011.
8
NOVAES, op. cit. 2010.
16

amplo e harmonioso de trabalho livre e cooperativo são requeridas mudanças


sociais gerais, mudanças das condições gerais da sociedade, que nunca serão
realizadas a não ser pela transferência das forças organizadas da sociedade, a saber:
o poder do Estado de capitalistas e proprietários fundiários para os próprios
produtores. (c) Recomendamos aos operários que se metam na produção
cooperativa de preferência em armazéns cooperativos. Os últimos não tocam senão
na superfície do sistema econômico presente, a primeira ataca o seu alicerce. (d)
Recomendamos a todas as sociedades cooperativas que convertam uma parte de seu
rendimento total num fundo para propagar os seus princípios, tanto pelo exemplo
como pelo ensinamento, por outras palavras, tanto promovendo o estabelecimento
de novas fábricas cooperativas como ensinando e pregando. (e) Em ordem a evitar
que as sociedades cooperativas degenerem em vulgares companhias por ações
(societés par actions) da classe média, todos os operários empregados, acionistas ou
não, devem coparticipar igualmente. 9

Neste sentido, os horizontes de percepção construídos por Vieitez e Dal Ri10 e Gaiger11
e Novaes12, são interessantes exemplos de superação das limitações analíticas e políticas das
três tendências analíticas sobre o trabalho associado. Para Vieitez e Dal Ri há mudanças nas
fábricas recuperadas, principalmente na organização e nas relações de trabalho, bem como na
gestão. Contudo, os autores afirmam que as modificações realizadas até agora não dão conta
de transformar a essência das fábricas – produção de mercadorias, supremacia dos quadros
etc: assim a possibilidade de avanço estaria na articulação das fábricas recuperadas,
cooperativas e associações de trabalhadores com o movimento de luta mais geral dos
trabalhadores, e de uma visão e um programa de modificação da sociedade, e não apenas de
unidades produtivas. Para Gaiger, as formas de produção da Economia Solidária são atípicas,
porém podem conviver - sem abalar - o capitalismo; para que estas se convertam num novo
modo de produção que transcenda a alienação do trabalho, são necessárias mudanças
significativas. Entende-se que a leitura desses quatro autores permite superar as limitações
analíticas das três tendências apontadas, conectando o campo analítico ao elemento político
do trabalho associado à medida que as OTAs - quando concebidas como sujeitos políticos -,
prefiguram ou nos mostram alguns dos elementos do que seria uma forma superior de
produção, baseada no trabalho coletivo: com sentido social e com possibilidades de
emancipação humana e política. Evidentemente que as OTAs não conseguem se realizar em

9
MARX, KARL. “Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório: as diferentes questões”. In:
BARATA-MOURA, J.; CHITAS, E.; MELO, F.; PINA, A. (orgs.). Marx e Engels: Obras Escolhidas em Três
Tomos. Lisboa: Edições Avante, 1982. Disponível em <http://www.marxists.org/portugues/marx/1866/08/instru
coes.htm>. Acesso em: 29 jan. 2014.
10
VIEITEZ, C. e DAL RI, N. M. Trabalho associado. Rio de Janeiro: DP&A, 2001; DAL RI, Neusa Maria;
VIEITEZ, Cândido, Giraldez. Movimentos Sociais, Trabalho Associado e Educação: Reformas e Rupturas. In:
NOVAES, Henrique Tahan; BATISTA, Eraldo Leme. (orgs.) Trabalho, Educação e Reprodução Social – As
contradições do capital no século XXI. Bauru, SP: Canal 6, 2011.
11
GAIGER Luiz Inácio. A economia solidária diante do modo de produção capitalista, 2003. Caderno CRH,
Salvador, n. 39, p. 181-211, jul./dez. 2003
12
NOVAES, Henrique. T. (Org.). O retorno do caracol à sua concha: alienação e desalienação em associações
de trabalhadores. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
17

sua plenitude porque estão imersas no modo de produção capitalista; apresentam


descontinuidades na continuidade e continuidades na descontinuidade, conforme apontado
por Mészáros na caracterização dos avanços e retrocessos do cooperativismo e associativismo
no século XXI 13.

Neste sentido o objetivo central da tese é comparar os aspectos organizacionais de


quatro OTAs a fim de verificar “se” e “em” que medida o processo autogestionário altera as
transformações cotidianas das relações de trabalho, e se está relacionado a outras
perspectivas de luta política; interpretando o impacto desta relação e os condicionantes
institucionais daí resultantes no processo de consciência dos trabalhadores, verificando
assim os limites e as possibilidades da autogestão como mediação para a sua emancipação.

No primeiro capítulo é realizada uma descrição detalhada da metodologia e dos


instrumentos desenvolvidos para a pesquisa de campo, tabulação, análise e apresentação dos
dados. O autogestômetro e os demais instrumentos foram construídos com o objetivo de
apontar indicadores institucionais e comportamentais aptos a realizar a justaposição de duas
unidades dialeticamente relacionadas: a influência dos componentes da organicidade de cada
OTA no comportamento e na consciência dos trabalhadores.

O segundo capítulo - Ocupar, resistir, produzir em quatro organizações de trabalho


associado - a ordem dos fatores não altera o produto? - 1° segmento da pesquisa de campo -
trata de uma análise das quatro OTAs pesquisadas e dos seus movimentos-referência. Ao final
da análise de cada OTA e do movimento social-referência da OTA é apresentado o
autogestômetro institucional elaborado a partir dos seus componentes 14.

No terceiro capítulo - A autogestão em perspectiva comparada - rupturas e


continuidades no trabalho associado - 2° segmento da pesquisa de campo – o objetivo foi
avaliar as rupturas e continuidades do trabalho associado a partir da comparação entre as
distintas perspectivas autogestionárias identificadas nas quatro OTAs, tanto nas suas
dimensões institucionais como no que se relaciona à experimentação desta pelos/as
trabalhadores/as. Para tratar da questão foi utilizada a abordagem de Mauro Iasi15 sobre os

13
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011.
14
Note-se que por preferência metodológica a organização dos capítulos não seguiu o formato tradicional das
pesquisas científicas, quando satura-se o marco teórico nos capítulos iniciais para ao final discutirem-se os
resultados do trabalho de campo.
15
IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da Consciência de Classe: o PT entre a negação e o consentimento. São
Paulo: Expressão Popular, 2012; IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo:
Expressão Popular, 2007; IASI, Mauro Luis. Processo de Consciência. São Paulo: CPV, 1999.
18

processos de consciência e a metamorfose da consciência de classe, que o autor elabora a


partir de algumas categorias de Jean-Paul Sartre, Norbert Elias e Sigmund Freud.

O quarto capítulo tem o objetivo de situar a autogestão como estratégia-movimento e


ideal-teoria social, para verificar a essência histórica desta e avaliar as possibilidades do
Trabalho Associado na vigência do capital sob o prisma autogestionário, relacionando
aspectos atinentes à autogestão interna e ampliada.

O marco teórico da pesquisa é orientado pelo marxismo autogestionário, buscando


subsídios teórico-metodológicos em autores filiados ao materialismo histórico e que se
propuseram a pensar a imbricação entre a autogestão e o Trabalho Associado e, em certa
medida, a relação dialética de ambas com os movimentos populares. Dentre os autores a
serem utilizados, destacam-se as abordagens de István Mészáros - pensador húngaro que vem
se destacando na promoção da renovação do marxismo pós-stalinismo - e de Cláudio
Nascimento - pensador brasileiro autodidata, que a partir do marxismo autogestionário tem
realizado um minucioso exame das grandes lutas autônomas e autogestionárias da
historiografia da luta de classes.

Mészáros aponta que “a radical eliminação do capital pelos indivíduos


autoemancipados de sua presente dominação do metabolismo social é o exato conteúdo do
projeto socialista”16. Neste sentido o autor destaca que o programa marxiano de transferência
do controle do metabolismo social para os produtores associados não perdeu nada de sua
validade desde a época de sua formulação. Ao contrário, “surgiu de novo, mais forte que
nunca, na agenda histórica de nossos dias, visto que somente os produtores associados podem
elaborar, por si próprios, as modalidades práticas com as quais pode ser resolvida a dupla
crise, hoje onipresente, de autoridade e do desenvolvimento”.17
O argumento fundamental que orienta o enfoque da pesquisa é o controle global do
processo de trabalho pelos produtores associados, e não simplesmente a questão de como
subverter os direitos de propriedade estabelecidos.

16
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 538.
17
Ibid.
19

CAPÍTULO I – PERCURSO METODOLÓGICO E PESQUISA DE CAMPO

A pesquisa foi realizada a partir de um recorte histórico-sociológico com intuito


comparativo.

Combinando a análise documental, audiovisual e eletrônica das organizações a outras


fontes históricas escritas e às técnicas de pesquisa de campo, pretendeu-se somar a análise
sincrônica com a análise diacrônica, de modo a descrever e a interpretar os fenômenos
observados tanto de uma perspectiva sistemática e comparativa (pela descrição e interpretação
das uniformidades de coexistência assim como das discrepâncias entre as OTAs), quanto de
uma perspectiva histórico-sociológica (pela descrição e interpretação das uniformidades de
sequência, ou seja, da situação das organizações na sua relação a eventos e processos
passados).

A investigação foi estruturada em três fases distintas, articuladas entre si.

Na primeira fase, realizou-se o levantamento crítico da bibliografia produzida sobre a


autogestão do e no trabalho associado a fim de captar: (a) as várias concepções teórico-
analíticas sobre o termo autogestão sob diversos pontos de vista tanto críticos como idealistas,
percebendo-a como estratégia-movimento social e como ideal-teoria social – sua confluência
com a produção associada e a sua ancoragem histórica em relações econômico-sociais e
culturais nas quais os trabalhadores têm/tiveram a posse coletiva dos meios de produção; (b) a
existência de pesquisas que apresentassem indicadores e variáveis relativas tanto à autogestão
interna das OTAs como a uma perspectiva de autogestão societal ampliada. Nessa fase, foi
preparado o terreno teórico-analítico para problematizar a imbricação dialética entre a
autogestão no trabalho associado e as práticas dos movimentos populares que extravasam os
limites da unidade produtiva.

Na segunda fase, foi realizada pesquisa empírica de campo em quatro OTAs que,
articulando dimensões qualitativas e quantitativas à investigação, combinou a análise
documental, audiovisual e eletrônica às entrevistas semiestruturadas que foram aplicadas a
trabalhadores e trabalhadoras que integram as OTAs. Para tanto foram selecionadas quatro
organizações: (OTA 1) Fábrica Ocupada Flaskô; (OTA 2) CooperaActiva – Okupa 171;
(OTA 3) Cooperativa Teia Ecológica; (OTA 4) Núcleo de Produção das Artesãs da
Associação Bem da Terra (ver Quadro 1).
20

Quadro 1 – OTAs pesquisadas

OTA Identificação Ramo/atividade fim Forma de organização

1 Fábrica Ocupada Produção de tambores e embalagens Fábrica sob ocupação e controle


Flaskô plásticas. Ramo plástico, químico operário
2 CooperaActiva - Produção de alimentos, produtos de Coletivo informal vinculado ao
Okupa 171 limpeza, fertilizantes agroecológicos espaço da Okupa 171 – ocupação
contracultural anarquista
3 Cooperativa Teia Restaurante ovolactovegetariano Cooperativa de consumo, trabalho e
Ecológica produção
4 Núcleo de Produção Produção de Artesanato - peças em Grupo informal de produção
das artesãs da vestuário, decoração, acessórios de inserido na Associação de
Associação Bem da cozinha e higiene pessoal produtores Bem da Terra
Terra
Fonte: Elaborado pelo autor (2016).

A pesquisa de campo analisou de maneira comparativa a justaposição de duas


unidades dialeticamente relacionadas, a saber: (1) a organicidade de cada OTA obtida a partir
do levantamento das suas tendências institucionais e mediações mais ou menos propícias para
o desenvolvimento da consciência e prática autogestionária ampliada dos trabalhadores
associados – identidade da OTA, autogestão interna e autogestão societal ampliada; (2) o
comportamento autogestionário individual obtido a partir do levantamento da consciência e da
percepção dos trabalhadores medidos por indicadores divididos em três blocos estruturantes:
(a) autogestão interna (organicidade, cooperação, autonomia, participação, disciplina,
confiança e liberdade); (b) autogestão societal ampliada/organicidade socioprodutiva; (c)
aspectos sociopolíticos gerais.

A terceira e última fase da pesquisa foi dividida em dois momentos: (1) análise do
material empírico obtido a partir das duas fases do trabalho de campo realizado (etapa
institucional e etapa individual) em perspectiva comparada a luz de temas caros ao
materialismo dialético como a consciência dos trabalhadores e o trabalho alienado para
problematizar as particularidades da alienação e as possibilidades de (des)alienação em
associações de trabalhadores; (2) verificação da intensidade da relação entre o processo
autogestionário interno nas OTAs e a existência de uma perspectiva autogestionária ampliada
com elementos políticos e econômicos de socialização dos avanços obtidos no interior da
unidade produtiva, a partir da integração sociopolítica e da organicidade socioprodutiva com
outras OTAs e com movimentos populares que sustentam bandeiras mais amplas de
resistência e contestação do Capital.
21

Deste modo, espera-se oferecer subsídios empírico-metodológicos para averiguar a


retomada de uma autogestão societal ampliada baseada na totalidade da produção e
reprodução social da vida; que tenha o “controle sociometabólico” da produção e distribuição
pelos produtores livres e associados como horizonte, mediante a práxis de ataques duplos18
representada pela relação dialética entre a parte e todo da realidade social - da atividade
defensiva nas unidades produtivas à práxis ofensiva para além do capital. Em outras palavras:
a autogestão plena como possibilidade teórica e prática de “ocupar, resistir e produzir” 19.

Cabe-nos agora definir e explicitar os instrumentos elaborados para a pesquisa de


campo, referentes ao segundo estágio da investigação, explicitando e justificando as
ferramentas desenvolvidas para a tabulação, análise e apresentação dos dados empíricos
coletados.

1.1 INSTRUMENTOS DESENVOLVIDOS PARA A PESQUISA DE CAMPO,


TABULAÇÃO, ANÁLISE E APRESENTAÇÃO DOS DADOS 20

Conforme mencionado, a pesquisa de campo buscou analisar de forma comparativa a


justaposição de duas unidades dialeticamente relacionadas, ou seja: a influência da
organicidade de cada OTA no comportamento, consciência e prática individual de cada
trabalhador/a. Cabe, portanto, apresentar e justificar os recursos metodológicos empreendidos
para: (1) apurar as tendências institucionais e mediações mais ou menos propícias para o
desenvolvimento da consciência e prática autogestionária ampliada nas OTAs – identidade,
autogestão interna e autogestão societal ampliada da OTA; (2) mensurar a consciência, prática
e cultura autogestionária dos trabalhadores em relação à autogestão interna, à autogestão
ampliada e a aspectos sociopolíticos gerais.

18
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Campinas: Editora da
Unicamp/Boitempo, 2011.
19
“Ocupar, resistir, produzir”. Tema escolhido como palavra de ordem pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra no ano de 1989, após o 5º Encontro Nacional (MORISAWA, 2001, p.145). Tais palavras de
ordem ganharam repercussão internacional e passaram a ser utilizadas como bandeira de luta por diversos
movimentos sociais e coletivos de várias partes do mundo parceiros ou simpatizantes do MST.
20
Os instrumentos para a pesquisa de campo, tabulação, análise e apresentação dos dados coletados foram
construídos a partir de instrumentos, variáveis e indicadores de pesquisa integrantes das seguintes obras: (1) A
enquete operária – o questionário de 1880 de Karl Marx. Em: Crítica metodológica, investigação social e
enquete operária (THIOLLENT, 1981); (2) Empreendimentos autogestionários provenientes de massas falidas:
relatório final (TAUILE et al., 2005); (3) Autogestão em avaliação (ANTEAG, 2004); (4) A autogestão na
perspectiva da análise do discurso (WEBLER, 2010); (5) Organicidade socioprodutiva: metodologia construtiva
de uma autogestão de caráter societal (BENINI et al., 2015); (6) Agitação e propaganda no processo de
transformação social (COLETIVOS DE COMUNICAÇÃO, CULTURA E JUVENTUDE DA VIA
CAMPESINA, 2007).
22

No que se relaciona aos procedimentos de coleta de informações para subsídio da


pesquisa, foram utilizadas as seguintes técnicas: 20 entrevistas semiestruturadas com questões
diretivas e não diretivas aplicadas aos trabalhadores e trabalhadoras das OTAs e quatro
entrevistas semiestruturadas aplicadas aos informantes-chave das OTAs. Para levantar
informações mais amplas sobre a realidade institucional das OTAs foram utilizados ainda os
seguintes procedimentos metodológicos: observação participante/militante em diversas
situações deliberativas, formativas e recreativas das OTAs durante o período compreendido
entre 2012-2016; pesquisa bibliográfica das e sobre as OTAs; pesquisa documental nos
arquivos internos das OTAs; pesquisa fotográfica e audiovisual; pesquisa eletrônica em Blogs
e páginas nas redes sociais das organizações, assim como nos murais, vídeos, materiais
informativos, panfletos, programas de rádio etc.

Neste intuito foram desenvolvidos e aplicados os seguintes instrumentos de pesquisa:


a) um roteiro semi-estruturado para entrevista dos informantes-chave e coleta de dados
referentes às OTAs contendo 23 tópicos divididos em três grandes eixos (Anexo A); b) um
roteiro estruturado para entrevista dos trabalhadores das OTAs contendo 83 questões diretivas
e não diretivas (Anexo B).

No que toca aos procedimentos de tabulação, análise e demonstração dos dados,


foram desenvolvidos e aplicados os seguintes instrumentos:

a) um quadro com 32 indicadores e quatro níveis para a análise e tabulação dos dados
referentes às tendências institucionais e mediações mais ou menos propícias para o
desenvolvimento da consciência e prática autogestionária ampliada nas OTAs (Quadro
2 – indicadores e variáveis institucionais para tabulação – Anexo C);

b) um quadro com 32 indicadores e quatro níveis para a tabulação e análise dos dados
referentes à consciência, prática e cultura autogestionária dos trabalhadores em relação
à autogestão interna, à autogestão ampliada e a aspectos sociopolíticos gerais (Quadro
3 – indicadores e níveis comportamentais para tabulação – Anexo D);

c) um autogestômetro institucional para cada uma das quatro OTAS, estruturado a


partir dos indicadores do Quadro 2 (modelo autogestômetro institucional – Figura 3);

d) um autogestômetro individual para cada trabalhador/a entrevistado/a, estruturado a


partir dos indicadores do Quadro 3 (modelo autogestômetro individual – Figura 4).
23

1.2 DECIFRANDO O “AUTOGESTÔMETRO” – INSTRUMENTO DE TABULAÇÃO,


ANÁLISE E DEMONSTRAÇÃO DOS DADOS

O autogestômetro foi a ferramenta metodológica desenvolvida para traçar as diferentes


organicidades das OTAs e verificar, posteriormente, a influência das mediações e práticas
organizativas institucionais no comportamento, na prática e a consciência autogestionária
individual dos trabalhadores/as. A construção do instrumento foi inspirada nas rosáceas
desenvolvidas na obra Empreendimentos autogestionários provenientes de massas falidas:
relatório final: junho de 200421, em razão da criatividade e capacidade demonstrativa
apresentada pelos resultados da pesquisa, conforme demonstrado nas Figuras 1 e 2.

Figura 1 – Rosácea dos Empreendimentos Autogestionários (quadro geral) –


Empreendimento padrão
Fonte: TAUILE et al. (2005, p.104).

21
TAUILE, José Ricardo et al. Empreendimentos autogestionários provenientes de massas falidas: relatório
final: junho de 2004. Brasília: MTE, IPEA, ANPEC, SENAES, 2005.
24

Figura 2 - Rosácea dos Empreendimentos Aa e Ae


Fonte: Elaboração do autor baseado em TAUILE et al. (2005, p.105;109).

De acordo com os autores a rosácea objetivou desenvolver uma forma de


representação rápida e clara que permitiria a visualização num só plano de uma espécie de
diagnóstico das experiências de empreendimentos autogestionários pesquisadas, “como um
exercício para a utilização desse instrumental metodológico nas realidades práticas, e não
como um veredito definitivo sobre cada um dos empreendimentos autogestionários” 22.

Conforme demonstrado nas Figuras 5 e 6 as rosáceas diagnosticaram e compararam a


situação dos empreendimentos, destacando 6 variáveis estruturantes: (a) mercado, (b)
tecnologia, (c) gestão, (d) forma de propriedade, (e) participação institucional, (f) crédito. De
acordo com os autores, a fixação das variáveis foi importante para entender “como se
efetivam social e economicamente essas experiências e para localizar os principais nós
críticos que dificultam ou obstruem o seu desenvolvimento no momento atual” 23.

Para comparar as diversas experiências, os autores dispuseram os dados coletados


numa tipologia representada por um continuum, encontrando-se nos extremos as fronteiras
das situações desejadas e das indesejadas, ou seja: (a) socialmente inaceitável; (b) fronteira
entre socialmente indesejável e o aceitável; (c) socialmente necessário; (d) padrão idealizado
(veja-se Figura 1).

Tal formato gráfico, além de ser uma estratégia de análise, tabulação e demonstração
clara dos resultados da pesquisa, é também instrumento pedagógico e de fácil assimilação por
parte dos sujeitos mais implicados pela investigação: os trabalhadores e trabalhadoras das
22
TAUILE et al., op. cit., p.102.
23
Ibid. p.74.
25

OTAs. Como os próprios autores destacam, é mais uma forma de exposição baseada no
sentimento transformado em expressão, do que propriamente um diagnóstico matemático dos
empreendimentos representados pelos seus níveis e comentários formais.

É imperativo à academia refletir sobre suas escolhas metodológicas e seus caprichos


científicos, para que os resultados das pesquisas (especialmente aquelas que se dirigem à
classe trabalhadora e que se reivindicam como militantes) possam contribuir decisivamente na
transformação da realidade social dos sujeitos históricos concretos e reais. A opção dos
autores é um importante modelo de metodologia que dialoga com a classe trabalhadora e um
sofisticado exemplo a ser seguido pela comunidade acadêmica. Cada técnica de pesquisa e
entrevista é uma teoria em atos, isto é, contém pressupostos teóricos relativos à estrutura do
objeto investigado. Nas palavras de Michel Thiollent: “a crítica da neutralidade metodológica
deve ultrapassar a clássica concepção de neutralidade axiológica desenvolvida por Max
Weber”24.

A metodologia desta pesquisa de doutorado parte da proposta de análise já referida,


mas trilha um caminho e um enfoque epistemológico distinto, pois, enquanto o objetivo
central da pesquisa de Tauile foi “o de visualizar os pontos de deficiência ou dificuldades de
cada experiência, que poderiam ser foco de investimento e fomento por meio de ações ou
políticas públicas específicas” 25, apontando para o poder público “o papel que este pode
desempenhar no fortalecimento e no desenvolvimento dos empreendimentos
26
autogestionários” ; o objetivo desta tese foi o de apurar as tendências institucionais e
mediações mais ou menos propícias para o desenvolvimento da consciência e prática
autogestionária ampliada nas OTAs a partir do levantamento de elementos referentes à
consciência, prática e cultura autogestionária dos trabalhadores; impondo-se uma necessidade
de realizar duas etapas de investigação: uma etapa institucional e outra individual.

Por sorte, foi possível aproveitar alguns elementos do roteiro de pesquisa dos autores,
sendo necessário aprofundar outros indicadores para a proposta fosse desenhada. Importante
frisar que os autores destacaram alguns elementos institucionais centrais para o diagnóstico
das OTAs como o acesso ao crédito e à tecnologia, que em razão da delimitação imposta pelo
recorte metodológico, infelizmente não puderam ser capturados na etapa institucional do
trabalho de campo.

24
THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1981.
p.8.
25
TAUILE et al., op. cit., p.102.
26
Ibid. p.74.
26

A partir do estudo das Rosáceas foi possível construir 2 instrumentos gráficos para
possibilitar a análise, a tabulação e a demonstração dos dados obtidos pelo trabalho de campo,
instrumentos definidos como autogestômetros. Considerando o objetivo comparativo da
pesquisa foi necessário o desenvolvimento de duas ferramentas, a saber: (1) autogestômetro
institucional - para tabular as informações referentes a cada uma das quatro OTAs;
(2)autogestômetro dos trabalhadores - focado na situação individual dos trabalhadores e
trabalhadoras das OTA entrevistados. Abaixo demonstra-se o autogestômetro institucional das
OTAs (Figura 3) e o autogestômetro individual dos trabalhadores (Figura 4).

Figura 3 - Autogestômetro institucional - Organizações de Trabalho Associado (OTAs)


Fonte: Elaboração do autor (2016).
27

Figura 4 - Autogestômetro individual - trabalhadores das OTAs - (Organização de


Trabalho Associado 3, Trabalhador 1)
Fonte: Elaboração do autor (2016).

O autogestômetro institucional (Figura 3) foi elaborado com o objetivo de organizar


graficamente os elementos da pesquisa de campo a partir da definição de 32 indicadores
institucionais 27 divididos em três grandes blocos estruturantes, a saber: (1) identidade da
OTA; (2) autogestão interna: organicidade, cooperação, autonomia e participação;
(3)autogestão societal ampliada: elementos de socialização autogestionária e tendências para a
integração socioprodutiva ampliada. Para cada indicador foram fixados quatro níveis para
quantificar maiores e menores tendências institucionais com mediações propícias para o
desenvolvimento da consciência e prática autogestionária representadas por barras coloridas,
definidas a partir do centro em direção às extremidades do círculo da seguinte forma:
(1)socialmente inaceitável (cor lavanda); (2) aceitável (cor amarela); (3) socialmente
necessário (cor vermelha); (4) padrão idealizado (cor roxa). Os indicadores e níveis foram
classificados com base no Quadro 1 (quadro institucional – Anexo C) a partir das informações
obtidas pela aplicação do roteiro semiestruturado para entrevistas dos informantes-chave e
coleta de dados referentes às Organizações de Trabalho Associado (Anexo - A).

O autogestômetro dos trabalhadores (Figura 4) foi elaborado com o objetivo de


organizar graficamente os elementos da pesquisa de campo a partir da definição de 32
indicadores relacionados à consciência, cultura e prática autogestionária divididos em três

27
Veja-se o quadro com os indicadores institucionais no Quadro 5.
28

grandes blocos estruturantes, a saber: (1) autogestão interna: organicidade, cooperação,


autonomia, participação, disciplina, confiança e liberdade; (2) autogestão ampliada
(organicidade socioprodutiva, intercooperação político-econômica, participação externa,
mobilização política); (3) aspectos sociopolíticos gerais. Para cada indicador foram fixados 4
níveis comportamentais, para quantificar maiores e menores níveis de consciência, cultura e
prática autogestionária representadas por barras coloridas, definidas a partir do centro em
direção às extremidades do círculo da seguinte forma: (1) muita fraca (cor lavanda); (2) fraca
(cor amarela); (3) moderada (cor vermelha); (4) forte (cor roxa). Os indicadores e níveis
foram classificados com base no Quadro 2 (quadro individual – Anexo D) a partir das
informações obtidas pela aplicação do roteiro estruturado para entrevista dos trabalhadores
das OTAs, contendo 83 questões diretivas e não diretivas (Anexo - B).

A construção dos instrumentos de coleta e de análise/tabulação dos dados também


recebeu forte influxo dos instrumentos apresentados na obra Autogestão em Avaliação28
produzida a partir dos resultados da pesquisa Iniciativas autogestionárias no Rio Grande do
Sul realizada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas em parceria com a
Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária
em 2001. O estudo procurou identificar e qualificar “eventuais mudanças de comportamento
do trabalhador a partir da constituição de empreendimentos autogestionários” 29. A equipe
daquela pesquisa fixou quatro indicadores com algumas variáveis que impactam o
comportamento dos trabalhadores em favor da cooperação e participação no âmbito
institucional: (1) começo do empreendimento, (2) regime de propriedade, (3) divisão dos
papéis dentro do empreendimento, (4) meios e canais de participação e informação; e quatro
indicadores com algumas variáveis para qualificar a mudança de comportamento dos
trabalhadores: (1) cooperação, (2) empenho, (3) liberdade, (4) participação. Foram ouvidos
367 trabalhadores de 13 empreendimentos representativos do universo de 420
empreendimentos acompanhados pelo escritório regional da ANTEAG no Rio Grande do
Sul30. A riqueza da amostra, da metodologia e das duas principais conclusões dessa pesquisa
despertou a nossa atenção. Primeira conclusão: a debilidade técnica e financeira dos
empreendimentos representa limitações a serem superadas, “mas tais limitações não devem
obscurecer a importância, senão o caráter determinante do elemento político” 31. Os autores

28
ANTEAG – Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária;
IBASE. Autogestão em avaliação. São Paulo: Edições ANTEAG, 2004.
29
Ibid., p.25.
30
Ibid., p.27-28.
31
ANTEAG/IBASE, op. cit. 2004, p.95-96.
29

afirmam que a “construção de um ambiente cooperativo e participativo apresenta-se como


principal condição de sustentabilidade dos empreendimentos autogestionários” 32 e que os
benefícios gerados pelo trabalho associado nas experiências estudadas vão, de fato, além da
mera reprodução material. Segunda conclusão: “o ambiente dos empreendimentos estudados
se mostra, de maneira geral, muito permeado pela disposição dos trabalhadores de colaborar e
participar voluntariamente”33. Acrescentam os autores: se é certo que a participação na
definição das regras que balizam as decisões, bem como a transparência das informações é
condição ideal a ser perseguida, qual seriam as condições políticas para que haja uma
participação mais efetiva, já que a participação não se ensina na escola? Tais referências são
feitas na última página dessa obra como sugestão para próximas pesquisas, pois devido à
amplitude da amostra pesquisada presume-se que não tenha sido viável triangular o
comportamento dos trabalhadores à organicidade dos empreendimentos, verificando a
influência deste naquele, da forma como foi proposto por esta tese.

Os roteiros de entrevista, indicadores e níveis de tabulação e análise de dados (Anexos


A, B, C e D) foram positivamente influenciados pela metodologia da ANTEAG/IBASE. No
entanto, esta pesquisa trilha um caminho e um enfoque metodológico distinto, pois, acredita-
se que a metodologia construída pelos autores não aponta em que medida os elementos
institucionais incidem no comportamento individual a partir de um instrumental preparado
para tal finalidade (limitação reconhecida pelos próprios autores), apurando tendências
institucionais e mediações mais ou menos propícias para o desenvolvimento da consciência e
prática autogestionária nas OTAs. Para cumprir tal objetivo, além de aprofundar elementos
internos de democratização da gestão da unidade produtiva, foi necessário expandir o foco
analítico tanto no âmbito institucional como na esfera individual e inserir elementos que
averiguassem em que medida existe ou pode existir um reencontro entre o momento do
conhecimento coletivo propiciado pelas experiências de auto-organização no interior da
unidade produtiva e o momento da elaboração dos objetivos políticos emancipatórios
evidenciando um sujeito coletivo e político, ou seja, que preza pela socialização da autogestão
com características de natureza ampliada que fundem trabalho, política, cultura, princípios e
costumes. Dentre os principais novos elementos de análise destaca-se: tendências para a
integração socioprodutiva ampliada e de socialização autogestionária; meios e canais
formais/informais de informação e formação continuada; canais e estratégias de mobilização

32
ANTEAG/ IBASE, op. cit. 2004, p.96.
33
Ibid.
30

política interna e externa; instrumentos de AGITPROP (agitação e propaganda) como a


música, o teatro, as artes plásticas, a fotografia, as místicas, as celebrações das datas
importantes das OTAs; a relação política e econômica com outros agentes, OTAs e
movimentos sociais e populares; existência de atividades de integração sociopolítica com as
famílias dos trabalhadores e a comunidade na qual a OTA está inserida, além de
relacionamento com outras instituições como associação de moradores, coletivos artístico-
culturais, escolas/universidades; a existência de canais de escoamento da produção
alternativos ao mercado capitalista e de sistemas compartilhados de logística, crédito,
investimento e consumo direito; relações orgânicas da OTA com outras OTAs, movimentos
sociais e populares, partidos políticos e sindicatos, entidades de apoio, redes e com o próprio
Estado. Conforme será detalhado e explicado a seguir.

1.2.1 Os indicadores institucionais e comportamentais

Os indicadores institucionais e comportamentais foram construídos no intuito de


denunciar e interrogar os aspectos objetivos e subjetivos da relação de exploração, alienação e
opressão da classe trabalhadora dentro do sistema do Capital. Uma prática comum na
literatura sobre o associativismo/cooperativismo é a de tomar, sem maiores reflexões, a
solidariedade e a autogestão como elementos já alicerçados e capilarizados entre os
trabalhadores dos coletivos, negligenciando que também existem alienações nas propostas
que almejam justamente a emancipação dos trabalhadores. Em sentido similar, os
comportamentos são tomados como solidários e participativos sem identificar as
intencionalidades dos trabalhadores e as suas oscilações. Sem compreender os elementos
subjetivos e objetivos da alienação fica impossível avaliar as possibilidades de (des)alienação
dos trabalhadores pela sua inserção em experiências de trabalho associado ou ainda tencionar
em que medida a autogestão pode ou não ser (mais) um instrumento de mediação e de auto-
organização da classe trabalhadora assumida pelas massas enquanto fato de poder. Já foi dito
que boa parte das pesquisas sobre a autogestão tende a super dimensionar o comportamento
isolado dos trabalhadores ou os avanços e limites puramente financeiros dos coletivos,
negligenciando análises que demonstrem e questionem a maneira pela qual a relação entre os
dois planos (objetivo e subjetivo) ocorre ou pode ocorrer dentro das organizações e entre estas
e o todo social. Ao refletir sobre a enquete operária de Marx (questionário de 1880), Bruno
Trentin alerta que o movimento de classe redescobriu (não graças a uma iluminação súbita,
mas por uma experiência dolorosa de conhecimento no calor do conflito de classe) “a „não-
31

neutralidade‟ da ciência; do mesmo modo, a luta de classe redescobriu que a organização do


trabalho não é somente um fato objetivo”34.

Não há classe pura que exprima de modo inequívoco sua vocação histórica. Para
Trentin,

[...] a classe operária está em formação continuada; trata-se de um dado „em


construção‟ em sua estrutura interna, em seus aspectos subjetivos, as tradições
culturais diferentes e contraditórias que aí se desenvolvem, nas ideologias
impregnadas de contaminações recíprocas agindo em seu interior. Não existe, a
priori, uma cultura operária que seja necessário „redescobrir‟; creio, igualmente, que
não há esta espécie de cultura popular embalsamada, inteiramente autônoma, que
nos viria de tempos longínquos para responder aos problemas de hoje. Nosso
objetivo consciente de produzir os instrumentos de cultura alternativa coincide, pois,
com esta convicção de que não se trata de desempenhar o papel de arqueólogos da
consciência de classe, votados a redescobrir uma „entidade‟ autônoma35.

Da mesma forma, optou-se pela pesquisa histórica sobre a Autogestão no sentido de


entendê-la como uma corrente de ideias, políticas e culturais que pesaram e ainda pesam sobre
o movimento operário e popular. Por tal razão recusa-se, uma concepção de consciência de
classe que supõe de modo metafísico e idealizado que a classe trabalhadora é ou não é
consciente, ao contrário, pretende-se conhecer na consciência o que está em formação, em
devir, mudando seus conteúdos e suas qualidades, jamais acabadas.

Importante destacar a influência exercida pela estrutura e pelos pressupostos


epistemológicos e políticos da Enquete Operária36 sobre nossos roteiros de entrevista e
indicadores. O questionário de 1880 inaugura uma importante discussão sobre a prática do
movimento socialista e do papel das enquetes como modo de investigação e trabalho político
junto ao movimento operário e à classe trabalhadora. Segundo Thiollent, a problemática da
enquete entra em contradição com a concepção convencional da pesquisa de opinião:

[...] a explícita imposição de problemática não pode ser avaliada negativamente tal
como no caso do questionário comum. Pois, na enquete operária, trata-se de
produzir certos esclarecimentos para incitar os respondentes a superarem as
respostas estereotipadas e desenvolverem suas faculdades de observação crítica. Isto
supõe uma redefinição dos objetivos metodológicos e dos efeitos da explicação.37

34
TRENTIN, 1981, p.260.
35
Ibid., p.261.
36
A enquete operária trata-se de um questionário elaborado em 1880 por Karl Marx, composto por 100
perguntas dirigidas aos operários franceses do campo e da cidade, pois “apenas eles podem descrever, com todo
o conhecimento de causa, os males que suportam, e de que só eles, e não os salvadores providenciais, podem
energicamente remediar as misérias sociais que sofrem” (1984, p.249). Com a ironia que lhe era peculiar, Marx
definiu que objetivo da enquete era o de animar o governo republicano francês a seguir o exemplo do governo
monárquico inglês.
37
THIOLLENT, op. cit., p.10.
32

No âmbito da pesquisa cada entrevista foi aplicada em blocos, não obedecendo à


mesma ordem definida pelos roteiros, pois uma mesma sequência não é capaz de provocar as
mesmas reações em diferentes sujeitos. Ao término de cada entrevista surgiram dúvidas e
profícuos debates sobre os temas provocados, em especial em relação ao bloco aspectos
sociopolíticos gerais do roteiro individual (Anexo B). Quando solicitados a prestar
esclarecimento sobre temas desconhecidos aos entrevistados, procurou-se responder de uma
maneira bem simples e clara sobre os contornos da temática; adotou-se uma perspectiva
coerente com os interesses da classe trabalhadora, sempre preferindo a dialética e o respeito
ao ponto de vista e o posicionamento do trabalhador. O empenho no trabalho de tradução na
formulação das perguntas ofereceu aos trabalhadores entrevistados a possibilidade e a
necessidade de raciocinar para que fosse captada uma informação relevante sobre um tema
importante, buscando sempre evitar a usual e arrogante reação moral do entrevistador
decorrente da desinformação do entrevistado.

A partir de agora, serão examinados os indicadores institucionais e comportamentais.

1.2.1.1 Indicadores institucionais – Organizações de Trabalho Associado

Os indicadores institucionais que circundam a realidade das Organizações de Trabalho


Associado pesquisadas foram divididos em três grandes blocos estruturantes: (1) identidade
da OTA; (2) autogestão interna: organicidade, cooperação, autonomia e participação; (3)
autogestão societal ampliada: elementos de socialização autogestionária e tendências para a
integração socioprodutiva ampliada.

No primeiro bloco – (1) identidade da OTA – procurou-se levantar elementos


relacionados aos aspectos constitutivos das organizações. Assim, foi verificado: (a) o maior
ou menor envolvimento dos trabalhadores no surgimento da OTA; (b) o isolamento ou
integração orgânica da sua disposição territorial; (c) a configuração institucional/formato
jurídico definido pela obtenção da propriedade e/ou da posse segura dos meios de produção e
a existência ou não de debate sobre escolha do regime jurídico quando o pretendido ainda não
se efetivou; (d) a forma de ingresso e associação e os critérios técnicos e políticos definidos
para tal e a incidência de terceirização na unidade produtiva; (e) a participação e relação
institucional da OTA nos movimentos populares e dos movimentos na OTA assim como a
ancoragem institucional da experiência em instituições ou organizações informais que
veiculem ações estratégicas de intervenção coletiva e/ou de solidariedade de classe e
33

organicidade e autonomia em relação a parceiros, apoiadores e agentes externos; (f) a


existência de um programa político, das demandas imediatas ou visão de sociedade nos meios
informativos ou nas narrativas dos trabalhadores. Note-se que apesar de os itens “a”, “b” e “c”
estarem alocados no bloco “identidade”, estes possuem total relação com o bloco
(3)autogestão societal ampliada. Foram aqui alocados por parecerem atributos centrais para
definir a identidade da OTA. Utilizou-se a Identidade numa acepção sociológica simplificada
no sentido de apontar características e diferenciar uma OTA de outra.

No segundo bloco – (2) autogestão interna – procurou-se levantar elementos


relacionados aos mecanismos de gestão das OTAs. Foram pesquisadas: a estrutura de
produção e sua integração com canais internos de participação direta e representação –
existências de diferentes setores, seções, coordenações, conselhos, frequência de assembleias,
formas de eleição dos representantes, tempo de mandato, periodicidade das reuniões e
percentual de participação, encontros preparatórios, estruturas vinculadas a agentes externos e
a parceiros; a divisão do trabalho dentro das organizações - retirada, papéis e funções, cotas
de participação, vínculo dos trabalhadores com a OTA, hierarquias, jornada de trabalho,
índice de absenteísmo, acidentes de trabalho, conflitos internos; instrumentos e canais de
informação e formação continuada voltadas para o processo produtivo e para a autogestão
interna. Foram desenvolvidos os seguintes indicadores: (a) canais de participação e
deliberação; (b) canais para que os trabalhadores troquem informações; (c) existência de
eleição de representantes, rotatividade de cargos e revogação de mandato; (d) divisão e forma
de definição de funções e papéis na OTA; (e) existência de diferença de retirada ou
remuneração entre os trabalhadores e o grau de maturidade e discussão sobre o tema; (f) nível
de colaboração e cooperação entre diferentes setores; (g) carga horária e intensidade da
jornada de trabalho em comparação com o trabalho heterogestionário formal; (i) intensidade
da participação (em sentido qualitativo e quantitativo) dos trabalhadores nos canais de
participação e deliberação existentes; (j) oferta de atividades internas de formação técnica
e/ou gestão associada.

No terceiro bloco - (3) autogestão societal ampliada – o objetivo foi capturar


elementos de socialização autogestionária para avaliar maiores e menores tendências para a
integração socioprodutiva ampliada e a capacidade de mobilização política das OTAs. Nesta
etapa, talvez a mais relevante da pesquisa, foi desenvolvido um instrumental metodológico
apto a verificar em que medida as organizações estudadas estão comprometidas com a
socialização dos avanços obtidos no interior da unidade produtiva a partir da incorporação de
34

estratégias ampliadas de luta política, de superação do trabalho alienado e de controle


sociometabólico da produção, da circulação e do consumo, potencializando um
associativismo combativo e comprometido com interesses da classe trabalhadora. Para tanto, e
livre de qualquer pretensão de neutralidade científica, construímos nossos indicadores a partir
de uma concepção de autogestão baseada na totalidade da produção e reprodução social da
vida que tenha o “controle sociometabólico” da produção e distribuição pelos produtores
livres e associados como horizonte, mediante a práxis de ataques duplos38, dinamicamente
representada pela relação dialética entre a parte e todo da realidade social - da atividade
defensiva nas unidades produtivas à práxis ofensiva para além do capital. Neste bloco o
trabalho de campo procurou captar: (1) as estruturas/canais de informação e formação
continuada, divulgação externa, mobilização política e AGITPROP 39 (agitação e propaganda)
e (2) relação e integração orgânica práticas de outros atores sociais e econômicos. Foram
definidos os seguintes indicadores: (a) existência da expressão autogestão ou expressão
análoga nos canais de comunicação; (b) memória política da OTA e registro detalhado do seu
histórico; (c) demonstração de solidariedade a outras experiências de trabalho associado e a
movimentos populares; (d) existência de atividades de formação e mobilização política assim
como a existência de setor específico para tal finalidade; (e) existência de espaço próprio ou
adaptado para leitura e aprendizagem dos trabalhadores, familiares e vizinhos assim como de
produção de conhecimento próprio (panfleto, jornal, mural, livro, zines, quadrinhos); (f)
práticas artístico-culturais como artes plásticas (grafitagem, muralismo, painelismo, faixas,
cartazes, fotografia, estêncil), teatro (teatro jornal, teatro fórum, teatro invisível, teatro
procissão, teatro de rua, apresentações livres de rua, mostras) ou música e poesia (corais,
saraus, festivais, apresentações em rádio e televisão); (g) produção própria ou terceirizada e
utilização de indumentária e vestimenta pelos trabalhadores e pela comunidade (bonés,
camisetas, bandeiras, broches); (h) utilização de meios de comunicação de massa (programa

38
MÉSZÁROS, op. cit. 2011.
39
De acordo com Garcia a expressão agitação e propaganda foi criada pelos revolucionários russos, para
designar as diversas formas de fazer agitação de massas e ao mesmo tempo divulgar os projetos políticos da
revolução. GARCIA, Silvana. Teatro da militância. São Paulo: Perspectiva/Edusp,1990. De acordo com o
coletivo de comunicação, cultura e juventude da Via Campesina: “a agitação e propaganda é um conjunto de
métodos e formas que podem ser utilizados como tática de agitação, denúncia e fomento à indignação das classes
populares e politização de massas em processos de transformação social. COLETIVO DE COMUNICAÇÃO,
CULTURA E JUVENTUDE DA VIA CAMPESINA. Agitação e propaganda no processo de transformação
social, 2007. Para Estevam, Costa e Bôas a agitação e propaganda podem ser entendidas como processos
históricos de engajamento da classe trabalhadora que desempenharam um papel decisivo não só para a elevação
da consciência de classe mas também para a construção de uma vigorosa cultura política. ESTEVAM, Douglas;
COSTA, Iná Camargo; BÔAS, Rafael Villas (orgs.). Agitprop: Cultura Política. São Paulo: Expressão Popular,
2015. AGITPROP é o termo que sintetiza a expressão agitação e propaganda. O termo foi disseminado por
diversos países, bem como as experiências dos grupos, brigadas ou coletivos de agitadores e propagandistas.
35

ou participação em programas de rádio, televisão e/ou internet, cinema, jornal, blog e páginas
nas redes sociais); (i) existência de relações políticas orgânicas da OTA com outras OTAs,
movimentos sociais, entidades de apoio, redes, outros coletivos e/ou com o Estado;
(j)existência de relações econômicas da OTA com outras OTAs, movimentos sociais, redes,
entidades de apoio e/ou Estado; (k) existência de registro detalhado do programa político ou
das demandas do movimento social referência da OTA com demonstração explícita de
transversalidade de pautas da OTA com outras pautas ou lutas sociais do movimento
referência ou de outros movimentos; (l) existência de canais de escoamento da produção por
fora do mercado capitalista/formal por intermédio de mediações partindo do intercâmbio
meramente mercantil em direção a uma renda de natureza sistêmica incorporando a produção,
a circulação, o crédito e o consumo assim como a integração da produção com sistemas de
compra direta governamental, com feiras agroecológicas/solidárias, cooperativas de consumo,
Grupos de Consumo Responsável, sistemas CSA (Comunidade que Sustenta a Agricultura),
Sistema Orgânico do Trabalho etc.; (m) existência de registro de variados aspectos para o
desenvolvimento e o sucesso da OTA com preocupação relacionada a aspectos financeiros, de
gestão, participação, cooperação interna e externa, autogestão ampliada, acesso à crédito e
intercooperação econômica e política com outros empreendimentos; (n) existência de
compartilhamento de espaços, recursos produtivos, economias de rede, serviços, crédito
solidário/intercooperativo, bens e objetos com outras OTAs ou redes de OTAs;
(o)desenvolvimento permanente de atividades de integração sociopolítica com as famílias dos
trabalhadores e a comunidade na qual a OTA está inserida, além de relacionamento com
outras instituições como associação de moradores, coletivos artístico-culturais, cursos EJA
(educação para jovens e adultos), escolas, universidades etc. Segue o Quadro 5 com os
indicadores institucionais e a numeração correspondente:
36

Quadro 5 - Indicadores institucionais – numeração e descrição


N° DESCRIÇÃO
1 Envolvimento dos trabalhadores na criação – momento inaugural da OTA
Identidade da

2 Organização e disposição territorial da unidade produtiva


3 Posse e/ou propriedade dos meios de produção - regime jurídico
OTA

4 Possibilidade e forma de adesão de novos associados


Participação institucional da OTA em movimentos populares ou organizações sociais e
5
participação destes na OTA
6 Programa político, demandas ou visão de sociedade razoavelmente definidos
7 Heterogestão, co-gestão, administração participativa ou autogestão financeira
8 Existência de canais de participação e deliberação
9 Existência de canais para que os trabalhadores troquem informações
Autogestão interna

10 Eleição de representantes, rotatividade de cargos e revogação de mandato


11 Divisão e forma de definição de funções e papéis
12 Diferença de retirada ou remuneração entre os trabalhadores
13 Existência de colaboração e cooperação entre diferentes setores
14 Carga horária e intensidade da jornada de trabalho
15 Existência de canais de informação e comunicação interna
Participação (em sentido qualitativo e quantitativo) dos trabalhadores nos canais de
16
participação e deliberação
17 Oferta de atividades internas de formação técnica e/ou gestão associada
18 Existência da expressão autogestão ou expressão análoga nos canais de comunicação
19 Memória política da OTA e registro detalhado do seu histórico
Solidariedade a outras experiências de trabalho associado, a movimentos populares e a outras
20
organizações sociais
Autogestão societal ampliada e organicidade socioprodutiva

Existência de atividades de formação e mobilização política e existência de setor específico


21
para tal finalidade
Existência de espaço para leitura e aprendizagem dos trabalhadores, familiares e vizinhos
22
assim como de produção de conhecimento próprio
23 Práticas artístico-culturais como artes plásticas, teatro, música e poesia
24 Produção e utilização de indumentária e vestimenta pelos trabalhadores e pela comunidade
Utilização de meios de comunicação de massa (programa ou participação em programas de
25
rádio, televisão e/ou internet, cinema, jornal, blog e páginas nas redes sociais)
Existência de relações políticas orgânicas da OTA com outras OTAs, movimentos sociais e
26 populares, partidos políticos, sindicatos, entidades de apoio, redes, outros coletivos e/ou com
o Estado
Existência de relações econômicas da OTA com outras OTAs, movimentos sociais e
27 populares, partidos políticos, sindicatos, entidades de apoio, redes, outros coletivos e/ou com
o Estado
Transversalidade do programa político ou das demandas do movimento social referência da
28
OTA com outras pautas ou lutas sociais do movimento referência ou de outros movimentos
29 Existência de canais de escoamento da produção por fora do mercado capitalista/formal
30 Existência de registro de variados aspectos para o desenvolvimento e o sucesso da OTA
Integração socioprodutiva - compartilhamento de espaços, recursos produtivos, economias de
31 rede, serviços, crédito solidário/intercooperativo, bens e objetos, investimento, consumo
solidário, com outras OTAs ou redes de OTAs
Existência de atividades de integração sociopolítica com as famílias dos trabalhadores e a
comunidade na qual a OTA está inserida, além de relacionamento com outras instituições
32
como associação de moradores, coletivos artístico-culturais, cursos EJA (educação para
jovens e adultos), escolas, universidades etc.
Fonte: Elaborado pelo autor (2016).

Para cada indicador institucional foram fixados quatro níveis para quantificar maiores
e menores tendências institucionais com mediações propícias para o desenvolvimento da
consciência e prática autogestionária, distribuídas nos seguintes níveis: nível (1) socialmente
37

inaceitável; nível (2) aceitável; nível (3) socialmente necessário; nível (4) padrão idealizado
(veja-se Quadro 2 – indicadores e variáveis institucionais para tabulação – Anexo C).

1.2.1.2 Indicadores comportamentais – trabalhadores

Os indicadores comportamentais foram elaborados com o intuito de captar aspectos


relativos à consciência e cultura autogestionária individual de cada trabalhador a partir da sua
práxis e reflexão sobre a prática coletiva na sua organização para posteriormente intentar
aferir em que medida os diferentes indicadores institucionais influenciam (e se influenciam) o
comportamento, a cultura e a prática autogestionária dos trabalhadores.

Importante frisar que não fomos rigorosos em relação à ordem das perguntas
estabelecidas no roteiro (Anexo A). As entrevistas, que tiveram duração aproximada de 50
minutos, foram conduzidas a partir de blocos inter-relacionados que permitiram um diálogo
fraterno e aberto com os trabalhadores. Assim, os elementos que interessavam foram surgindo
espontaneamente sem a necessidade de uma provocação forçada típica da técnica do
questionário. Tal opção permitiu triangular e falsear as informações fornecidas desvelando
contradições nas falas dos entrevistados, evitando o que Thiollent define como fenomenologia
ingênua, “muito frequente entre aqueles que pretendem aplicar entrevistas não-diretivas ou
„métodos antropológicos‟ para descrever o universo das pessoas investigadas através do que
elas dizem. Contra a ilusão empiricista é preciso reafirmar que a problemática sempre
existe”40. Assim, a observação participante de diversas atividades das OTAs, combinada com
a análise documental, audiovisual e eletrônica das organizações permitiu avaliar a
consistência das práticas, opiniões e comportamentos expressados pelos trabalhadores durante
as entrevistas.

Se existem diferentes maneiras de cooperar, participar e protagonizar torna-se


imprescindível entender com qual intencionalidade os trabalhadores experimentam os
eventuais avanços obtidos no interior das unidades produtivas. Os indicadores
comportamentais foram divididos em 3 (três) grandes blocos estruturantes: (1) autogestão
interna: organicidade, cooperação, autonomia, participação, disciplina, confiança e liberdade;
(2) autogestão societal ampliada: solidariedade de classe, participação e mobilização política,
relação com movimentos e outros atores sociais; (3) aspectos sociopolíticos gerais.
No primeiro bloco (1) - autogestão interna – o trabalho de campo procurou captar dos
trabalhadores: (a) a compreensão do que possa ser a autogestão (ou expressões análogas como

40
THIOLLENT, op. cit. p.51.
38

a auto-organização ou o controle operário); (b) a percepção sobre a divergência de opiniões e


conflitos de ideias no interior da organização; (c) a percepção sobre a cooperação entre os
trabalhadores; (d) o grau de participação nas principais decisões; (e) o conhecimento dos
canais de participação existentes; (f) a participação nas atividades internas e externas de
formação técnica; (g) os motivos pelos quais os trabalhadores optaram por trabalhar numa
OTA; (h) a percepção sobre a divisão do trabalho e tarefas; (i) a opinião sobre a
retirada/remuneração dos trabalhadores; (j) o ponto de vista sobre a carga horária e a
intensidade do trabalho na OTA; k) a avaliação sobre o que é preciso aprimorar na OTA.

No bloco (2) - autogestão societal ampliada – o objetivo foi avaliar a participação dos
trabalhadores em atividades políticas internas e externas que extravasem os muros da unidade
produtiva assim como a sua percepção sobre as relações políticas e econômicas estabelecidas
pela OTA com outras OTAs e atores sociais. Com isso, intenta-se decifrar em que medida a
solidariedade com a classe trabalhadora está presente no imaginário dos trabalhadores e qual a
sua percepção sobre uma eventual confluência dos objetivos corporativos da OTA com
bandeiras de lutas mais amplas e a socialização dos eventuais avanços obtidos no interior da
sua organização. Os indicadores do bloco 2 versam sobre: (a) histórico da OTA,
especialmente a memória pessoal sobre o momento de sua criação assim como as principais
mobilizações políticas, períodos de crise e vitórias ocorridas; (b) interesse por atividades
internas e externas de formação política e a efetiva participação nestas; (c) realização de
vivências em outras experiências de trabalho associado e constatação sobre as dificuldades
que estas também atravessam; (d) nível de compreensão sobre a existência de relações com
outros atores e como estas são feitas com eventual existência de setor específico para a tarefa;
(e) capacidade de identificar aliados, parceiros e adversários da OTA; (f) grau de clareza
sobre o que vem a ser os movimentos ou organizações sociais e a frequência de participação
nas suas atividades; (g) apropriação em relação ao movimento social ao qual a OTA faz parte;
(h) participação em organização ou movimento popular referência da OTA ou parceiro e a
condição e intensidade em que a participação ocorre; (i) opinião em relação a existência de
relações políticas locais, regionais, nacionais e internacionais assim como a importância de
contribuir nas lutas de trabalhadores e movimentos sociais contra a exploração onde quer que
ocorram; (j) a lucidez a respeito da existência de relações econômicas em nível micro e macro
econômico e a influência destas no funcionamento da OTA; (k) reflexão sobre perspectivas
ampliadas de autogestão tanto na esfera política como econômica - compartilhamento de
espaços, recursos produtivos, economias de rede, serviços, crédito solidário, bens e objetos
39

com outras OTAs, organizações e movimentos populares, entidades de apoio ou redes de


OTAs e o Estado; (l) preocupação com a integração sociopolítica da OTA com as famílias dos
trabalhadores e a comunidade na qual a OTA está inserida e com organizações e movimentos
populares, associação de moradores, partidos políticos, sindicatos, coletivos artístico-
culturais, cursos EJA, escolas/universidades etc.

No bloco (3) – aspectos sociopolíticos gerais – o propósito foi o de avaliar a


consciência dos trabalhadores a partir da sua compreensão e posicionamento em relação a
temas relevantes à classe trabalhadora e com grande repercussão nos meios de comunicação.
Num primeiro momento os trabalhadores foram questionados se sabiam o que significava
cada um dos temas e em caso de resposta afirmativa, foram estimulados a manifestar a sua
opinião. Como mencionado anteriormente, procurou-se responder de uma maneira bem
simples e clara quando a temática era desconhecida pelo trabalhador. Foi adotada uma
perspectiva coerente e honesta, preferindo o diálogo e o respeito aos posicionamentos dos
trabalhadores entrevistados. As respostas não foram tabuladas a partir da pré-definição de
uma resposta correta ou “mais correta” sobre cada assunto, mas a partir da reação
demonstrativa de entendimento e capacidade reflexiva sobre cada tema, conforme se observa
no Quadro 3 – indicadores e variáveis comportamentais para tabulação (Anexo D). Foram
desenvolvidos indicadores sobre os seguintes temas: (a) reforma agrária; (b) redução da
maioridade penal; (c) cotas raciais e sociais de acesso ao ensino superior e outras instituições
públicas; (d) união homoafetiva ou casamento gay; (e) capacidade das mulheres para
exerceram cargo de direção, coordenação ou chefia; (f) o modo de produção capitalista como
modo de organização social; (g) preconceito de raça, gênero, classe no Brasil; (h) legitimidade
dos partidos políticos e compreensão sobre a participação política; (i) grau de confiança nos
meios de comunicação hegemônicos de massa; (j) opinião sobre os movimentos sociais
populares e a participação nestes ou em alguma organização social, partido político, entidade
assistencial e capacidade de relacionar a atividade da OTA com as suas pautas e bandeiras de
luta; (k) percurso ou histórico militante. O Quadro 6 exibe os indicadores comportamentais,
contendo descrição e numeração conforme o autogestômetro comportamental individual
(Figura 4).
40

Quadro 6 - Indicadores comportamentais – numeração e descrição

N° DESCRIÇÃO
1 Entendimento sobre a autogestão dentro da OTA
2 Considerações sobre a existência de diferentes opiniões entre os colegas e a percepção sobre a sua
importância
3 Entendimento sobre a cooperação e a colaboração
Autogestão interna

4 Liberdade e estímulo para participar nas decisões da OTA


5 Conhecimento dos canais de participação e deliberação
6 Recebimento de informações sobre os acontecimentos internos da OTA
7 Protagonismo do trabalhador entrevistado na OTA
8 Participação, interesse e colaboração nas atividades internas de formação técnica
9 Motivações pessoais para trabalhar numa OTA
10 Disciplina e liberdade para a execução das tarefas e ciência sobre divisão do trabalho na OTA
11 Convicções a respeito das consequências positivas e negativas do trabalho associado
12 Conhecimento sobre o método de definição da carga horária de trabalho e as suas consequências
13 Discernimento sobre a existência de diferença de retirada/remuneração dos trabalhadores
14 Apreciação sobre os aspectos necessários para o aprimoramento da OTA
15 Existência de compreensão sobre perspectivas ampliadas de autogestão
Autogestão societal ampliada

16 Domínio a respeito do histórico da OTA


17 Vivência e conhecimento de outras experiências de trabalho associado e suas dificuldades
18 Participação, interesse e colaboração em atividades internas e externas de formação política e
mobilização
19 Compreensão sobre as relações políticas com outros atores sociais e como estas são feitas com
eventual existência de setor responsável pela tarefa. Capacidade de identificar aliados, parceiros e
adversários da OTA
20 Ciência das relações econômicas de sua OTA com outras OTAs, movimentos sociais, entidades de
apoio, coletivos, partidos políticos, sindicatos e o Estado
21 Participação em organização política ou movimento popular referência da OTA ou parceiro e a
condição e intensidade em que a participação ocorre; existência de solidariedade com as lutas dos
trabalhadores em outras esferas
22 Opinião sobre os movimentos sociais e populares e capacidade de relacionar a atividade da OTA
com as suas pautas e bandeiras de luta da classe trabalhadora
Existência de socialização ou percurso militante
Aspectos políticos gerais

23
24 Posição em relação à Reforma Agrária
25 Avaliação sobre a proposta de redução da maioridade penal para fins de condenação
26 Avaliação sobre as cotas raciais e sociais de acesso ao ensino superior e outras instituições
públicas
27 Ponto de vista sobre a união homoafetiva ou sobre o casamento gay
28 Opinião sobre a capacidade das mulheres para exerceram cargo de direção, coordenação ou chefia
29 Reflexão sobre o modo de produção capitalista como modo de organização social
30 Apreciação sobre a existência de preconceito de raça, gênero e/ou classe social no Brasil.
31 Legitimidade dos partidos políticos e perspectiva sobre participação política
32 Nível de confiança nos meios de comunicação hegemônicos de massa
Fonte: Elaborado pelo autor (2016).

Para os 32 indicadores comportamentais também foram fixados quatro níveis para


quantificar maiores e menores níveis de consciência, cultura e prática autogestionária: (1)
muita fraca; (2) fraca; (3) moderada; (4) forte.
41

CAPÍTULO II - OCUPAR, RESISTIR, PRODUZIR EM QUATRO ORGANIZAÇÕES


DE TRABALHO ASSOCIADO - A ORDEM DOS FATORES NÃO ALTERA O
PRODUTO? - 1° SEGMENTO DA PESQUISA DE CAMPO

Enquanto as empresas não forem geridas pelos trabalhadores e não por patrões (de
direita) nem por tecnocratas (de esquerda), enquanto a sociedade não for
administrada pelos trabalhadores e não por políticos profissionais (de direita ou de
esquerda), o capitalismo continuará a existir e, no máximo, mudará de forma, sem
alterar o facto básico da exploração. Mas gerir as empresas e a sociedade é algo
que se aprende de uma única maneira: gerindo as próprias lutas. Só assim os
trabalhadores podem começar a emancipar-se de todo o tipo de especialistas e de
burocratas. E com este objectivo não há experiências simples demais. Por modesta
que seja uma experiência, os participantes vão-se habituando a dirigir a sua
actividade e vão aprendendo na prática aquilo que opõe essa solidariedade e esse
colectivismo ao Estado capitalista. É esta a única maneira sólida como os
trabalhadores podem, no plano prático, reforçar progressivamente a sua
capacidade de organizar as empresas e a sociedade e, no plano ideológico, forjar
uma consciência de classe.
(João Bernardo)

2.1 OCUPAR, RESISTIR E PRODUZIR - A ORDEM DOS FATORES NÃO ALTERA O


PRODUTO?

Este capítulo – primeiro segmento da pesquisa de campo - foi construído a partir da


articulação de distintos instrumentos e estratégias metodológicas de coleta de informações,
dentre as quais se destaca: observação participante/militante em diversas situações
deliberativas, formativas e recreativas das Organizações de Trabalho Associado durante o
período compreendido entre 2012-2016; pesquisa bibliográfica das e sobre as organizações;
pesquisa documental nos arquivos internos; pesquisa fotográfica e audiovisual nos espaços de
trabalho e convivência assim como nos arquivos digitais das OTAs; pesquisa eletrônica em
Blogs e páginas nas redes sociais das organizações, assim como nos murais, vídeos, materiais
informativos, panfletos, programas de rádio etc.; entrevistas semi-estruturadas aplicadas a um
ou dois informantes-chave das OTAs. Em relação as 20 entrevistas semi-estruturadas com
questões diretivas e não diretivas aplicadas aos trabalhadores e trabalhadoras; apesar destas
terem sido preparadas com o objetivo de municiar a análise em relação ao comportamento dos
trabalhadores, foram fundamentais para por à prova a consistência das informações
transmitidas pelos informantes-chaves, refutando eventuais idealizações sobre a situação
concreta das organizações. Antes de enfrentar a análise dos indicadores das organizações, faz-
se necessário descrever e analisar o histórico das OTAs focando nas três variáveis que
estruturaram os instrumentos de análise e tabulação, a saber: (1) identidade da OTA, (2)
42

autogestão interna, (3) autogestão societal ampliada - elementos de socialização


autogestionária e tendências para a integração socioprodutiva ampliada. No entanto, optou-se
por não dividir as abordagens sobre as realidades das OTAs a partir de seções estanques -
identidade, autogestão interna e autogestão ampliada - pois, separar tais componentes em
blocos ocasionaria supressão de elementos geneticamente conectados das organizações
pesquisadas. O título do capítulo surge em razão das diferentes versões da insígnia ocupar,
resistir, produzir41 cunhada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e
apropriada internacionalmente por diversos movimentos e coletivos. O lema aparece também
em ordem invertida ocupar, produzir, resistir, como no caso da Flaskô ou ainda na versão
alterada - ocupar, destruir, construir - no caso da CooperActiva da Okupa 171. Mais que
mero jogo de palavras, o peso que é dado a cada componente revela a identidade da OTA e a
importância de elementos políticos e econômicos que permeiam as organizações desde o seu
momento inaugural (de maior ou menor mobilização e resistência) até o modelo de gestão
praticado. A experimentação do ocupar e do resistir alimenta um devir coletivo; e deste
momento em diante, mesmo com derrotas pontuais, cada luta passa a ser legítima, viável e
possível.

A barraca no portão da fábrica, a polícia, as faixas, os cartazes, entre outros itens,


simbolizam a luta travada pelos trabalhadores. Assim, o nível inicial de conflitos e o
seu desenvolvimento subsequente são uma marca que se inscreve no corpo dos
trabalhadores, que está intimamente vinculada aos processos de participação e
integração próprios de cada experiência. [...] Os trabalhadores forjam um novo fator
de poder que se constitui num espaço social específico, a fábrica. Quando a luta se
trava por períodos prolongados e não há acesso ao interior da unidade produtiva, os
ocupantes montam barracos precários. Do contrário, se inserem numa nova
perspectiva de fábrica, que é transformada em seu novo lar.42

De outra sorte, a intensidade do produzir sugere a centralidade da categoria trabalho,


que apesar das crises, continua sendo uma das principais vias de configuração da identidade e
construção de laços sociais duradouros da classe trabalhadora. Assim, tem plena validade a
afirmação de Castel43, para quem o trabalho é o canal de integração social por excelência.
Neste sentido, o trabalho autogestionário pode se afirmar como princípio educativo nos
processos do despertar de consciência dos trabalhadores, assinalando para a relevância das

41
Tema escolhido como palavra de ordem pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no ano de
1989, durante o seu 5º Encontro Nacional MORISSAWA, Mitsue. A história da Luta pela Terra e o MST. São
Paulo: Expressão Popular, 2001, p.145.
42
FAJN, Gabriel (coord.) Fábricas y empresas recuperadas: protesta social, autogestión y rupturas en la
subjetividad. Buenos Aires: Centro Cultural de la Cooperación/Ediciones Del Instituto Movilizador de Fondos
Cooperativos, 2003. p.127-128 (tradução livre do autor).
43
CASTEL, Robert. As transformações da questão social. In: BELFIORE-WANDERLEY, Mariangela et al.
Desigualdade e a questão social. São Paulo: Educ, 2004.
43

práticas formativas cotidianas impulsionadas pela pedagogia do movimento, da luta e da


resistência. Ao final de cada seção é apresentado o diagrama com o autogestômetro
institucional da OTA.

Necessário destacar que em boa parte dos aportes teóricos das seções deste capítulo
tanto na análise descritiva e discursiva das OTAs quanto nas reflexões sobre os movimentos-
referência das OTAs - o Movimento das Fábricas Ocupadas; o Anarquismo das Okupas; a
Agroecologia de base popular; e a Economia Solidária – privilegiou-se fontes de
conhecimentos produzidos pelas próprias OTAs e pelos próprios movimentos-referência
(quando foi possível ter acesso a estes materiais). Tal opção justifica-se no sentido de destacar
a relevância e a consistência do conhecimento (também científico) produzido pelas
organizações populares, que embora insipiente, demonstra a franca indissociabilidade entre a
teoria e a ação.

2.1.1 Fábrica Flaskô – uma fábrica ocupada pelos trabalhadores 44

Sem o patrão e a partir do controle operário, da democracia operária, foi reduzida


a jornada de trabalho para 30 horas semanais, sem redução nos salários. Sem o
patrão, os operários e as operárias em conjunto com famílias da região
organizaram a ocupação do terreno da fábrica e construíram a Vila Operária e
Popular com moradia para mais de 560 famílias. Sem o patrão, os operários e as
operárias reativaram um galpão abandonado e iniciaram o projeto „Fábrica de
Cultura e Esporte‟, com teatro, cinema, judô, futebol, balé e dança além de cursos e
atividades de formação.
Trabalhador da Flaskô

A Flaskô é uma indústria de produção de tambores e embalagens plásticas do ramo


plástico e químico. Em 12 de junho de 2016 completaram-se 13 anos de ocupação e controle
operário na fábrica. Diante da crise financeira e da decisão dos patrões de encerrar as
atividades produtivas, os operários e as operárias levantaram a cabeça e organizaram-se para
manter a fábrica funcionando na luta em defesa dos empregos, ocupando-a e tomando seu
controle. A planta da fábrica está localizada na cidade de Sumaré, no estado de São Paulo/SP.
Foi fundada no final dos anos 1970 e pertencia ao grupo econômico Corporation Holding do
Brasil (CHB).

44
Além dos instrumentos de pesquisa já mencionados, as informações referentes à Flaskô foram obtidas
mediante a observação participante/militante em quatro visitas realizadas à Fábrica: duas visitas guiadas; uma
estadia de cinco dias para a participação num acampamento ocorrido nas dependências da fábrica; e uma estadia
de quatro dias para conclusão do trabalho de campo em alojamento gentilmente cedido pela Flaskô.
44

A CHB (Corporation Holding do Brasil), dona das marcas Flaskô, Cipla, Interfibra,
Profiplast e Brakofix, pertencia ao Grupo Hansen Indústria S.A. Faturou milhões de
dólares até meados de 89, quando houve a partilha dos bens familiares entre os
filhos de sócio fundador ainda em vida. A filha Eliseth Hansen e seu marido Luis
Batchauer herdaram a CHB e „míseros‟ 200 milhões de dólares. Os irmãos Carlos
Alberto Hansen e João Hansen Neto ficaram com o restante da S.A. Durante a
década de 90, o que se via era uma grande contradição. Enquanto a Tigre S.A.,
empresa de Carlos Alberto Hansen, consolidava-se como uma das maiores marcas
multinacionais de tubos e conexões, Eliseth e Batschauer ganhavam fama, não pela
qualidade e fortalecimento de suas empresas, mas por não cumprirem as obrigações
trabalhistas, atrasando salários e não recolhendo o fundo de garantia dos
funcionários. Em 1994 a Cipla entra em concordata e os irmãos Luis e Anselmo
Batschauer, sócios, são presos pela primeira vez por não pagarem seus impostos.
Inúmeros são os processos contra os três sócios por dívidas federais, contribuições
sociais e previdenciárias. Entre os executadores judiciais estão: a Procuradoria da
Fazenda Nacional, o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social) e a Caixa
Econômica Federal. Os três sócios somam um total de 65 processos no Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo [...] 85 processos no poder Judiciário de Santa
Catarina da Comarca de Joinville.45

Antes do controle operário a fábrica chegou a ter 600 trabalhadores, atualmente conta
com aproximadamente 50. A CHB era proprietária de 47 fábricas em todo o território
nacional, até que a morte do seu fundador interrompeu um grande ciclo de crescimento e
gerou a partilha dos seus bens, como demonstra o relato acima (situação muito comum na
historiografia das mega corporações). Em razão da partilha, os herdeiros assumiram a CHB
sem as plantas do grupo Hansen, necessárias para a modernização tecnológica da produção.
Enquanto as demais empresas do grupo cresciam, iniciou-se a agonia financeira do grupo
CHB. Todas as demais Flaskôs foram fechadas no curso deste processo. Sem embargo, “os
operários da Flaskô não assistiram passivamente e foram realizadas greves em 1994 e 1997
contra as jornadas de até 12 horas, baixos salários e descumprimento dos acordos
trabalhistas”.46

Em 2003, os trabalhadores estavam há três meses sem receber o salário e ficaram


sabendo da experiência de ocupação da Cipla e Interfibra em Joinville/SC. Foi marcada uma
reunião na sede do sindicato da categoria e os operários decidiram participar da Marcha à
Brasília, organizada pelos trabalhadores da CIPLA. No retorno a caravana passou pela Flaskô
em Sumaré e uma assembleia esperava os informes – “foi deliberado que a única saída seria
ocupar, produzir, resistir! E ainda lutar pela estatização sob controle operário”. 47

45
DELMONTES, Camila; CLAUDINO, Luciano. Flaskô: fábrica ocupada. Sumaré: CEMOP, 2009, p.32-33.
46
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. Una breve história de la lucha de los obreros de Flaskô en
Brasil: estatización para La defensa de los empleos delante del gobierno de Lula. 2010, p.10.
47
Ibid.
45

No dia 12 de junho de 2003 a Flaskô foi ocupada pelos trabalhadores, com apoio dos
operários da Cipla e da Interfibra. No dia 16 de junho, a edição número 1 do recém criado
boletim informativo A voz do trabalhador publicava a decisão: “Operários ocupam a fábrica e
tocam a produção na Flaskô. Assembleia do dia 12/06 decide ocupar a fábrica elegendo uma
comissão de sete trabalhadores para dirigir a fábrica. A assembleia contou com a presença de
3 ônibus de trabalhadores da Cipla/Interfibra”. 48

Distintamente do caso da Cipla, a ocupação da Flaskô não teve greve, nem piquete,
nem tropa de choque avançando no piquete. Diferentemente do que pode aparentar com a
ocupação, os trabalhadores não vão morar dentro da fábrica.

Ocupar significa assumir a fábrica. E não é igual há duzentos anos, quando os


trabalhadores tinham o tear e o controle sobre o que era produzido. Agora tem nota
fiscal, tem compra, tem venda e conta bancária. Um monte de complicações
burocráticas que não são fáceis. Mas o caminho aparentemente lógico, nem sempre é
o melhor. Porque não montar uma cooperativa, uma associação entre os que
sobraram? Mas o que prefere um trabalhador: trabalhar com ou sem o FGTS? A
atual gestão vai buscar inspiração nos modelos de organização do trabalho existentes
na Rússia Socialista, em meados de 1917. Neste sentido, os trabalhadores assumem
toda a administração da fábrica. Isso significa controle sobre a produção, a
conservação e a entrada de matéria-prima. Os funcionários passam a ter acesso à
contabilidade da fábrica, aos almoxarifados e depósitos e as ferramentas de trabalho.
A decisão dos trabalhadores é soberana e deverá ser acatada pelos donos da
empresa.49

Seria ingênuo pensar que toda esta idealizada concepção de gestão operária ocorresse
tranquilamente, sem ataques dos antigos proprietários e do próprio capital. Assim, estruturas
ágeis e consistentes precisaram ser criadas para dar conta de toda a concepção do controle
operário e por óbvio, da resistência aos ataques do sistema.

A existência do Conselho de Fábrica, nesse contexto, será fundamental para


defender e lutar pelos direitos dos trabalhadores. A partir de agora é necessário criar
um setor de mobilização dentro da fábrica. Sem ele será difícil resistir às constantes
perseguições. O setor de mobilização, por meio de delegações, entrará em contato
com diversos movimentos sociais e parlamentares, firmando acordos de cooperação
mútua. Os trabalhadores deverão discutir em Assembleia para determinar quais
pessoas poderão se responsabilizar por determinadas funções. Correr atrás disso ou
daquilo. 50

A partir dos registros encontrados no CEMOP (Centro de Memória Operária e


Popular, localizado no interior do complexo Flaskô) é possível notar que são variadas as

48
OPERÁRIOS OCUPAM FÁBRICA E TOCAM PRODUÇÃO EM SUMARÉ. A voz do Trabalhador.
Boletim n. 1., Rio de Janeiro, jul. 2003.
49
DELMONTES, Camila; CLAUDINO, Luciano. Flaskô: fábrica ocupada. Sumaré: CEMOP, 2009, p.38.
50
Ibid. p.39.
46

influências históricas que inspiraram a ocupação e o modelo de gestão da fábrica. Em


entrevista, um trabalhador destaca nominalmente às principais referências:

Da Argentina, temos referência na IMPA (Indústria Metalúrgica e Plástica


Argentina), na ZANON (Indústria Cerâmica), no Hotel BAUEN (Buenos Aires Una
Empresa Nacional). As experiências dos mineiros na Bolívia são bastante fortes pra
gente. Estudamos também as experiências dos conselhos operários na Itália, na
Iugoslávia. Estudamos decisões básicas em relação às fábricas na Comuna de Paris e
na Revolução Russa. O que costumamos dizer é que não é algo que surge do nada,
ao mesmo tempo em que não é só teórico. O que é incrível é que essa bandeira de
luta da estatização sob controle dos trabalhadores é o corpo teórico, é a forma
teórica, mas é uma expressão real, concreta. Quer dizer, em termos práticos hoje: vai
virar uma cooperativa, vai ter recuperação judicial? O que está colocado hoje são
opções para nós trabalhadores, efetivamente os trabalhadores têm a opção: eu tenho
crédito, a empresa é que me deve e eu vou assumir uma fábrica com dívidas? Ah
não! Não vai ficar tudo limpinho. Temos as opções do empreendedorismo, do
individualismo, mas em termos concretos muitos não querem tomar decisões nestes
caminhos e questionam isso. Os trabalhadores querem seguir trabalhando,
entendendo que coletivamente, a gente segue trabalhando na Flaskô, conseguimos
produzir melhor que o patrão e pensando no caráter social da fábrica.51

Ainda no debate sobre a identidade da fábrica e sobre as experiências históricas que a


influenciou, a entrevista naturalmente se desloca à questão do formato jurídico e à posse dos
meios de produção, o que acaba inevitavelmente convergindo com as possibilidades de
perspectivas ampliadas da gestão da produção:

Em termos práticos: a fábrica ocupada inicia seus trabalhos com 64 trabalhadores e


chega a ter 118 (quase o dobro); o faturamento sai de R$ 60.000/mês com
trabalhadores recebendo R$ 50,00 por semana, para R$ 100.000,00/mês, e os
trabalhadores passam a receber seu salário em dia, ou seja: os trabalhadores podem
produzir. Aí entra o problema de a burguesia olhar o nosso processo de consciência
de classe. Já que pudemos fazer isso com uma empresa quebrada imagina qual seria
o grau de produtividade em outras fábricas? Com tecnologia e trabalhadores
qualificados. Aqui falamos abertamente que somos trabalhadores menos
qualificados formalmente, faixa etária média de 50 anos, baixa escolaridade formal e
com dificuldades de reinserção no mercado de trabalho formal. Basicamente, quem
ficou não tinha outra opção. Os melhores trabalhadores (como nós mesmos
definimos) já haviam saído no momento final da fábrica. Por isso que nós
defendemos: recuperação judicial não é o caminho, falência não é o caminho, a
cooperativa não é o caminho. Tem que ter um leque de opções, já que taticamente,
na Argentina, a IMPA e a ZANON foram durante anos Cooperativas, no formato
jurídico, mas na perspectiva de luta sempre buscaram a nacionalização. Hoje nós
estamos com o debate da tática transitória, quer dizer, e se hoje nós nos
transformássemos formalmente numa cooperativa? Achamos que seremos
engolidos; e se tivéssemos feito há 10 anos? Pensamos que seria a perspectiva de
luta consolidada pelo governo, da Economia Solidária, pela SENAES, pela linha do
professor Paul Singer etc. Mas temos esse debate, atualmente. Se a decisão fosse
tomada hoje, nós não escolheríamos ser uma cooperativa. No futuro não sabemos! 52

51
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em novembro de 2013.
52
Ibid.
47

Neste contexto, percebeu-se que a Flaskô tem duas linhas centrais que articuladas
orientam suas perspectivas táticas de luta: (a) a declaração de interesse social para fins de
desapropriação e (b) a posterior estatização sob controle dos trabalhadores.

A primeira linha de ação (a) a declaração de interesse social para fins de


desapropriação é uma medida legal que o governo pode tomar com base no artigo 5°, inciso
XXIV da Constituição Federal e na lei 4.132/1962, que define “a desapropriação por interesse
social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu
uso ao bem estar social, na forma do art. 147 da Constituição Federal”. De acordo com o setor
jurídico da Flaskô, o processo poderia ser implementado em três passos: o primeiro passo
seria a declaração de interesse social por meio de lei ou decreto do executivo; o segundo
passo seria a desapropriação da fábrica e a consequente emissão na posse e transferência da
propriedade mediante indenização dos proprietários; o terceiro passo seria a nova organização
da empresa pelo Estado, mediante a criação de uma empresa pública sob controle dos
trabalhadores, ou, de forma mais simples, a realização de uma concessão de uso ou um
comodato em favor de uma associação de trabalhadores ou uma cooperativa. 53

A segunda linha central de ação – (b) estatização sob controle operário – é justificada
politicamente por dois argumentos centrais. (1) Primeiro argumento – a recusa da
propriedade em favor da posse. A estatização é uma bandeira que resgataria a perspectiva
histórica de luta da classe trabalhadora, desde a revolução industrial até as discussões do
socialismo científico como forma da expropriação dos meios de produção em contraposição
às experiências do socialismo utópico de uma linha mais geral, das cooperativas. A
emblemática luta dos trabalhadores mineiros pela estatização das minas na Bolívia em
contraposição aos trabalhadores que defendem o cooperativismo também alimentam o debate.
Assim, os trabalhadores não desejam tornarem-se proprietários dos meios de produção, não
querem se transformar em patrões de si mesmos. Esta posição está muito presente nas
narrativas dos trabalhadores da Flaskô: “nós queremos seguir trabalhando, com o direito que a
classe trabalhadora historicamente conquistou, mesmo que limitados na CLT”54. Num sentido
mais realista também são discutidas as contradições e os riscos de exigir-se uma estatização
no contexto do Estado burguês. Assim comenta outro trabalhador: “mas e aí, vamos esperar a

53
CEMOP. Campanha pela declaração de interesse social da Flaskô para fins de desapropriação. 2012. São
diversos os materiais produzidos pelo CEMOP sobre a discussão completa acerca da estatização e da declaração
de interesse social. Procurou-se registrar apenas os elementos centrais.
54
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em outubro de 2015.
48

situação revolucionária chegar para ocupar?”55,56; (b) Segundo argumento - o controle


operário57. O controle operário não aparece como um simples detalhe:

Defendemos que esta propriedade seja propriedade, enquanto patrimônio do Estado


e que os trabalhadores possam se autogerir neste sentido, que os trabalhadores
possam permanecer sob controle dos trabalhadores sem criar uma hierarquia
verticalizada, e é isso, por exemplo, que na Venezuela está mais preocupante,
porque são fábricas que estão sendo nacionalizadas sob controle dos trabalhadores,
mas esse “sob controle dos trabalhadores” tem criado atritos no movimento de
fábricas ocupadas na Venezuela, porque tem criado uma burocracia dentro do
Estado e nas contradições do processo venezuelano. Então essa é a parte teórica, e a
parte prática é que os trabalhadores podem se auto-organizar sem criar uma
burocracia, mas a gente entende que a perspectiva do Estado é uma perspectiva de
transição socialista, por entender que é necessário uma planificação econômica, e
pensar uma organização da produção industrial, por isso que dialogamos com outras
propostas. Não somos contra as cooperativas de geração de renda e com todos os
problemas de consciência. Temos um grande debate com as cooperativas agrícolas
do MST. Temos clareza que não adiantam soluções do tipo: várias fábricas e
cooperativas pequenas autogeridas e independentes, assim não vai! É necessária uma
discussão mais estratégica. E nesse sentido a gente dialoga muito mais com uma
perspectiva da Petrobras 100% estatal. Concretamente, a FLASKÔ produz tambores
que a Petrobras compra. Por que não pode estar relacionado a produção de uma
Flaskô com a Petrobras, com uma perspectiva muito mais geral e estratégica?58

55
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em outubro de 2015.
56
Talvez neste ponto resida o debate mais polêmico sobre o papel e a importância da autogestão nas concepções
teórico-analíticas de autores filiados ao materialismo dialético. Para alguns autores a autogestão aparece como
sinônimo de forma ideal de organização dos trabalhadores em situação pós-revolucionária, pós-capitalista ou
ainda pós-Estado, com ou sem a tomada do poder político. Para outro grupo de teóricos, a autogestão é
concebida como forma social possível dentro do próprio capitalismo, entendendo que os trabalhadores podem
conquistar autonomia política e econômica, sem a necessidade de conquista do poder político e econômico e que
este é o caminho para a sociedade dos produtores livremente associados. O paradoxo da autogestão é assinalado
por Daniel Mothé, na obra Autogestão gota a gota. O autor problematizou o principal nó do socialismo
autogestionário: como articular a autogestão como ideologia com as experiências práticas? A autogestão é algo
que pode existir apenas com a Revolução (dilúvio), ou, pode existir também com experiências (gota a gota)?
Como conciliar a audácia do projeto autogestionário com a limitação das tentativas de gestão das unidades
produtivas? O imaginário com a realidade concreta? Buscando dar respostas a estas questões, Mothé formulou a
ideia da ”autogestão gota a gota”, dentro de uma visão ampla de experimentação, baseada na ideia de Rosa
Luxemburgo de que é funcionando coletivamente que as massas aprendem a se autogerir; não há outro meio de
lhes inculcar a consciência”. Mothé defende a participação dos trabalhadores em experiências de funcionamento
coletivo nas empresas de autogestão, mesmo que limitadas. MOTHÉ, Daniel. L‟Autogestion goutte a goutte.
Éditions Du Centurion. Paris, 1980 apud NASCIMENTO, Cláudio. Socialismo Autogestionário. Disponível em
<www.contag.org.br/imagens/f763socialismoClaudioNascimento.pdf> Acesso em 25/05/2013.
57
É importante que se diga que o Controle Operário ou Poder Operário aparece ao longo das experiências de
trabalhadores em fábricas de distintas formas: como instrumento preparatório para a tomada do poder do Estado;
como processo de construção das bases do poder comunal mais ampliado ou ainda como uma forma de
democratização do próprio capitalismo no interior das fábricas. Algo parece claro: quanto mais distante da
perspectiva de superação do capital for a análise, mais frustrado o horizonte do controle operário como
instrumento de transformação social. De acordo com Vasconcelos, o horizonte do Controle Operário na Flaskô é
baseado na concepção de controle como Poder Operário, ou seja, o exercício do controle por parte dos
trabalhadores em face de alguém numa situação de conflito a partir da configuração de três requisitos para a sua
caracterização: “(1) conflito entre capital e trabalho [...] (2) instabilidade institucional, o que leva a uma situação
transitória; [...] (3) o exercício do poder decorrente do conflito em face de algo ou alguém, que se traduz na
possibilidade de vetar eventuais investidas dos proprietários ou gestores ou na não assunção de responsabilidades
pelos atos de gestão”. VASCONCELOS, Felipe Gomes da Silva. A experiência do controle operário na fábrica
Flaskô: perspectivas do controle operário na sociedade contemporânea. In: CEMOP. Dossiê 10 anos do
movimento de fábricas ocupadas. N.4, out.2012, p.46-47.
58
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em novembro de 2013.
49

Os trabalhadores relatam a existência de um estudo específico feito sob demanda do


movimento de fábricas ocupadas e encaminhado ao BNDES (Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social) pelo Presidente da República da época – Luis Inácio
Lula da Silva. O estudo foi feito e foi encontrado um caminho jurídico possível: o da
compensação tributária. No entanto, de acordo com os trabalhadores, o presidente disse: “não
abrirei tal precedente, a correlação de forças não permite. Se fizer isso com a Flaskô, amanhã
teremos um monte de fábricas fazendo isso. Não está no cardápio e não foi pra isso que eu fui
eleito”.59

Considerando as barreiras político-jurídicas, uma nova tática jurídica começou a ser


estudada a partir de 2015: a adjudicação por interesse social da propriedade da Flaskô em
favor da União, com a formalização de um Grupo de Trabalho interministerial com o Governo
Federal, acenando para a possibilidade de construção de um complexo público de autogestão
interligado ao complexo cultural existente na Flaskô.60

O histórico de luta e mobilização dos trabalhadores da Flaskô desde a ocupação até os


dias atuais é marcado por diversos momentos relevantes que sem dúvida contribuíram
diretamente na formação da subjetividade individual e coletiva dos operários. Exaurir todos os
momentos seria impossível e desviaria o foco da investigação. Assim, destacam-se oito
momentos, de uma interessante cronologia publicada pelo CEMOP no fanzine61 Flaskô – uma
fábrica ocupada pelos trabalhadores62, conforme segue:

- 31 de outubro de 2002: Assembleia Geral na Cipla – Após meses de mobilização e


sem salários, trabalhadores da Cipla e Interfibra em Joinville/SC ocupam as fábricas;
- 12 de julho de 2003: chega a hora da Flaskô ser ocupada - após a primeira caravana
à Brasília, trabalhadores da Cipla e Interfibra ajudam os trabalhadores da Flaskô a
ocuparem a fábrica, que pertence ao mesmo grupo econômico e passava pelas
mesmas dificuldades;

59
Conversa informal com trabalhadores do chão de fábrica ocorrida durante o acampamento revolucionário em
janeiro de 2015.
60
Para uma discussão pormenorizada da Adjudicação leia-se O que é adjudicação e o que querem os
trabalhadores da Flaskô? Sumaré: CEMOP, 2015.
61
Fanzine é uma abreviação de fanatic magazine, mais propriamente da aglutinação da última sílaba da palavra
magazine (revista em inglês) com a sílaba inicial de fanatic (fanático em inglês). Em linhas gerais “os fanzines
visam socializar e divulgar informações que, num primeiro momento, são principalmente de bandas musicais [...]
apesar de feitos por punks, vão progressivamente tentando atingir um público cada vez mais amplo [...] são
publicações feitas em Xerox, de pequenas tiragens, vendidos em lojas [...] muitos vendidos em shows”
(OLIVEIRA, Antônio Carlos de. Os fanzines contam uma história sobre punks. Rio de Janeiro: Achiamé, 2006,
p. 15) Trata-se de uma publicação despretensiosa, eventualmente sofisticada no aspecto gráfico, dependendo do
poder econômico do editor. Surge no contexto da contracultura do maio de 1968, mas a prática vai sendo
apropriada por distintas tribos e movimentos. Atualmente os fanzines ou simplesmente zines englobam todo o
tipo de temas, como poesia, música, feminismo, anarquismo, agroecologia, vegetarianismo, cinema etc.
62
FLASKÔ. Uma fábrica ocupada pelos trabalhadores. Fanzine. 2012, p.5.
50

- 12 de fevereiro de 2005: Vila Operária luta por regularização na prefeitura de


Sumaré – o terreno que cerca a Flaskô é ocupado dando origem à Vila Operária.
Agora a luta da Flaskô não é apenas por trabalho, mas também por moradia;
- 31 de maio de 2007: Intervenção federal na Cipla e Interfibra causa comoção
mundial – meses antes o presidente da FIESP (Federação das Indústrias do Estado
de São Paulo), Paulo Skaf declarava a respeito do acordo firmado entre Cipla,
Interfibra e o governo venezuelano para obtenção de matéria-prima: “para a FIESP,
esse tipo de cooperação caracteriza ingerência em assuntos internos brasileiros”; 63
- final de 2007: a Flaskô fica mais de 40 dias sem energia elétrica – o interventor
negocia com a CPFL (Companhia Paulista de Força e Luz) por debaixo dos panos.
Uma máquina importante da planta da Flaskô quebra em virtude do corte;
- dezembro de 2009: inicia-se o projeto Fábrica de Esportes e Cultura – a peça de
rua Brava Companhia da Vila Operária marca o início das atividades da Fábrica de
Esportes e Cultura;
- 2010: inicia-se a campanha pela declaração de interesse social da Flaskô – este
seria um primeiro passo para a estatização da fábrica;
- início de 2011: projeto de lei apresentado no Senado Federal – na oitava caravana à
Brasília é apresentado em audiência pública no Senado projeto de lei que visa à
desapropriação de toda a fábrica que for abandonada pelo patrão e ocupada pelos
trabalhadores;
- 8 de dezembro de 2011: ato unificado na Avenida Paulista – Flaskô, MST, MTST
e comunidade do Pinheirinho unificam-se para fechar a Avenida Paulista. A pauta é
desapropriação já – por terra, trabalho e moradia.64

Em termos jurídicos, a fábrica ainda está registrada sob o Cadastro Nacional da


Pessoa Jurídica da massa falida com a denominação Flaskô Indústria, Comércio e Serviços
em Plásticos Ltda. Devido também a este entrave jurídico-político, nestes 13 anos a gestão
operária da Flaskô sofreu diversos ataques do capital. Ocorreram mais de 250 leilões de
máquinas fundamentais para a produção e a atual penhora sobre o faturamento mensal soma
mais de 300 deste, sendo que a qualquer momento uma execução judicial da penhora tem o
poder de bloquear o valor diretamente da conta da Flaskô.

Em termos físicos, a fábrica mantém a estrutura industrial e opera com quatro setores
principais: Produção, Expedição, Recursos Humanos e Setor Administrativo. Além destes
existem outros setores específicos: Zeladoria, Portaria, Setor Financeiro, Setor Jurídico,
Mobilização, Planejamento, Controle de Produção, Controle de Qualidade e Comercial. Em
razão do conflito judicial com o síndico da massa falida (e que dificulta a obtenção de crédito
e investimento), a fábrica não opera na sua escala produtiva máxima.

Em relação à gestão da fábrica, todas as decisões dos setores, inclusive a dos líderes
(coordenadores de setor) que tem maior responsabilidade, estão submetidas às decisões
coletivas que são realizadas na Assembleia Geral, e a qualquer momento podem ser
convocadas assembleias extraordinárias de turno. As assembleias ordinárias ocorrem
mensalmente, normalmente na última sexta-feira do mês, quando são feitas a prestação de

63
FLASKÔ, op. cit., 2012, p.5.
64
Ibid. p.6.
51

contas e as discussões políticas mais amplas. O órgão máximo de gestão é o Conselho de


Fábrica. O Conselho é eleito anualmente e composto por 13 pessoas, um de cada turno e um
de cada setor com mandato revogável a qualquer momento. A reunião ocorre na sala do setor
de mobilização, normalmente todas as terças-feiras, com duração aproximada de três horas.
Todas as definições são relatadas em ata e vão automaticamente pro mural da produção.
Qualquer decisão do Conselho pode ser revogada por uma reunião posterior deste. No
Conselho todo o trabalhador tem direito a voz, somente os conselheiros têm direito a voto. As
assembleias gerais mensais ordinárias e as extraordinárias têm poder de revogar toda e
qualquer decisão do Conselho, o que já ocorreu, conforme os registros do setor de
mobilização.

Em razão do litígio jurídico com a massa falida os operários ainda têm vínculo
celetista com carteira de trabalho assinada pela antiga empresa. A contratação de
trabalhadores ocorre abertamente, mediante entrevista no setor de recursos humanos. A gestão
operária garante todos os direitos trabalhistas em dia, com exceção do FGTS que tem sido
renegociado por diversas vezes em virtude das intermináveis dificuldades financeiras
enfrentadas. A Flaskô não opera com isonomia salarial, no entanto, houve um considerável
avanço e uma sensível redução na diferença salarial em comparação à gestão patronal da
fábrica, e atualmente é de até três vezes entre o maior e o menor salário 65. O assunto é muito
debatido e de acordo com os trabalhadores, as diferenças são organizadas de acordo com as
responsabilidades, que tem mais responsabilidade, é mais exigido e recebe uma maior
remuneração66. A jornada de trabalho foi reduzida de 44 para 30 horas semanais e foi
estabelecida a igualdade entre salários de mulheres e homens.

65
Um importante estudo realizado por Henriques et al sobre as empresas recuperadas no Brasil apontou que 49
empresas (96% entre aquelas que responderam à entrevista) relataram ter retiradas diferenciadas entre os
trabalhadores. A principal justificativa dada pelos entrevistados para a desigualdade de remuneração é a
diferenciação por função. Eles dizem que por haver diferentes níveis de responsabilidade, ou níveis de
qualificação, ou simplesmente por que o trabalho é distinto nas diferentes funções, a empresa estabelece
categorias baseadas nas funções para remuneração de seus trabalhadores. Outros fatores apresentados são:
produtividade, principalmente no caso das atividades rurais (e em uma de vestuário); a forma de vínculo,
diferenciando cooperados e contratados, ou outras possíveis diferenças nas formas de vínculo; o tempo de
empresa; os valores de mercado ou os valores de piso e teto salarial estabelecidos pelos sindicatos; e a
manutenção das referências de pisos da antiga empresa. É interessante observar que 60% das empresas que
mantêm seus sistemas de retiradas sem alteração desde o início afirmam que as discussões sobre o assunto
acontecem com frequência. Este é um dos pontos em que os casos brasileiros de Empresas Recuperadas por
Trabalhadores mais diferem dos casos argentinos. A média da diferença entre o valor mínimo e o máximo no
Brasil é de 4,76 (máximo/mínimo). HENRIQUES, Flávio Chedid et al. As empresas recuperadas por
trabalhadores no Brasil: resultados de um levantamento nacional. Mercado de trabalho, IPEA, n. 55, agosto
2013.
66
Conversa informal com trabalhadores em horário de troca de turno.
52

Em entrevista, um trabalhador sintetiza as principais vitórias obtidas no interior da


unidade produtiva:

Sem o patrão e a partir do controle operário, da democracia operária, foi reduzida a


jornada de trabalho para 30 horas semanais, sem redução nos salários. Sem o patrão,
os operários e as operárias em conjunto com famílias da região organizaram a
ocupação do terreno da fábrica e construíram a Vila Operária e Popular com moradia
para mais de 560 famílias. Sem o patrão, os operários e as operárias reativaram um
galpão abandonado e iniciaram o projeto “Fábrica de Cultura e Esporte”, com teatro,
cinema, judô, futebol, balé e dança. Além de cursos e atividades de formação. Desde
o início os operários defenderam a estatização da fábrica sob controle dos
trabalhadores diante das dívidas dos patrões com o Estado.67

Outra trabalhadora destaca a perspectiva de luta ampliada e da solidariedade de classe


dos trabalhadores da Flaskô:

Desde o início, operárias e operários somaram-se à luta do conjunto da classe


trabalhadora, defendendo a reforma agrária junto aos trabalhadores do campo, a luta
pelas moradias com os operários na cidade, os direitos e a luta contra os patrões em
dezenas de fábricas. Defendemos também os serviços públicos como a saúde e a
educação junto ao povo e aos trabalhadores do setor público.68

Neste sentido, interessante observar a disposição do complexo Flaskô e a destinação


dos espaços às ações voltadas à comunidade (Figura 5).

67
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em outubro de 2013.
68
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em outubro de 2015.
53

Figura 5 - Complexo Flaskô


Fonte: Jornal Atenção (2014)69

A Flaskô demonstra, em diversas das suas práticas, uma constante e concreta


solidariedade e preocupação com a formação humana da comunidade em que está inserida.
Dentre as várias atividades, destacam-se quatro componentes estruturantes: a Vila Operária e
Popular, a Fábrica de Cultura e Esporte, o festival anual Fábrica de Culturas e Esportes e o
Programa de Reciclagem/Cooperativa Planeta Terra. Cada componente é merecedor de
mínimos comentários.

Vila Operária e Popular. A Vila Operária é o bairro construído no terreno onde está
localizada a Fábrica Flaskô. “A luta dos trabalhadores de Flaskô também é uma luta por mais
de 540 moradias construídas no terreno pertencente à fábrica”70. O terreno foi ocupado para
fins de moradia em fevereiro de 2005 por sem-tetos da região e pelos próprios trabalhadores
da fábrica. Atualmente, é um bairro consolidado com aproximadamente 540 habitações e mais
de 2500 pessoas que aguarda regularização fundiária, e para qual a “adjudicação é também

69
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. Jornal Atenção. Edição 20, Encarte especial, dez., 2014,
p.7.
70
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em outubro de 2015.
54

uma medida eficaz, de acordo com o assessor jurídico da Flaskô”71. “Uma rede de
distribuição de água potável e uma rede pública de energia elétrica são as principais vitórias
[...] a falta de iluminação pública, a insegurança [...] a inexistência de uma rede de esgoto [...]
são questões prementes”. 72

Fábrica de Cultura e Esporte. A Fábrica de Cultura está constituída no interior de um


dos antigos barracões que se encontravam abandonados na gestão patronal (veja-se figura 5).
O barracão foi transformado em área para a prática de esporte e cultura. “A comunidade tem
desenvolvido diversos usos sociais com o mesmo [...] centenas de crianças e adolescentes
desenvolvem suas atividades recreativas e educacionais e mais algumas milhares de pessoas
já participaram ao longo da década de atividades culturais oferecidas a comunidade” 73. Desde
2007 a Fábrica de Cultura e Esportes já ofereceu a comunidade fabril, à Vila Operária e
demais bairros de Sumaré as seguintes atividades culturais 74:

- 41 peças de teatro (das quais 20 ao longo dos anos e 21 distribuídas nos cinco
festivais anuais realizados desde dezembro de 2010);
- 20 shows musicais (dos quais nove ao longo dos anos e 11 em festivais);
- 35 oficinas (das quais 15 ao longo dos anos e 10 em festivais).

Além destas atividades, atualmente “há atividades semanais como aulas de EJA
(Educação de Jovens e Adultos), cirandas com crianças, exibição de filmes no Cine Flaskô,
atividades esportivas na pista de Skate, assembleias e mutirões mensais para a organização do
espaço, apresentações musicais, visitas à linha de produção da fábrica e atividades culturais
diversas” 75.

Festival da Fábrica de Cultura Flaskô. Em agosto de 2010, ocorreu o primeiro festival


em decorrência da criação da Fábrica de Esportes e Cultura. A iniciativa, que ocorre
anualmente durante o mês de agosto, objetiva potencializar a luta dos trabalhadores da fábrica
e promover atividades culturais e esportivas à comunidade do seu entorno.

Entendemos a arte como instrumento de reflexão e crítica da organização produtiva


na sociedade atual, uma arte que contribua para a formação de sujeitos que se
reconheçam como tais diante da história, capazes de compreender o passado, de
criar suas próprias memórias, de se articular socialmente, de mudar o rumo das
coisas. É através da arte que podemos manifestar nossas ideias e ideais. Através da

71
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em novembro de 2013.
72
CAMARGO, Vinícius. Vila Operária e Popular – um terreno e uma fábrica ocupadas: 10 anos de luta.
Cemop: Sumaré, 2015, p.17.
73
CEMOP, op. cit., 2015, p.6.
74
Ibid.
75
Entrevista realizada em outubro de 2015 com trabalhador do setor de mobilização da Fábrica.
55

convivência, de conversas casuais, de compartilharmos os espaços é que podemos


construir mudanças76.

A organização do evento estima que participem anualmente do Festival um público


aproximado de 1000 pessoas. Os seis festivais organizados contaram com a presença da
população das cidades de Campinas, Hortolândia, Sumaré, Americana, Limeira, São Paulo,
Rio de Janeiro; de diversos grupos artísticos, bandas musicais, apoiadores e simpatizantes de
outros lugares do Brasil e, inclusive, de outros países.

Programa de Reciclagem/Cooperativa Planeta Terra. De acordo com os


trabalhadores, a Cooperativa Planeta Terra é uma proposta que surgiu de uma vontade antiga
e que hoje conta com a parceria do Movimento Nacional de Catadores de Materiais
Recicláveis (MNCR). “É uma luta por uma comunidade mais sadia e ambientalmente
protegida que tem uma perspectiva real e concreta com o projeto que é desenvolvido de coleta
seletiva dentro da fábrica”.77 O Projeto da coleta seletiva é realizado a partir de cooperativas
de catadores organizadas nacionalmente no MNCR, por trabalhadores da comunidade e pelos
próprios trabalhadores da Flaskô. O projeto está em fase de implementação, mas já conta com
15 trabalhadores cooperativados que trabalham no espaço do barracão número 2 do complexo
da Flaskô (Figura 5).

Este é também um projeto de emprego, renda e produção com a fábrica em


funcionamento produzindo mais de 35 mil unidades de bombonas produzidas com
mais de 250 toneladas de plástico reciclado. Além de serem doze anos gerando
empregos e por isso propiciando direitos, podemos falar também de uma
comunidade mais protegida porque tem um entorno sadio e não um cemitério de
postos de trabalho. Um cemitério do futuro, pois este é o que significado de uma
fábrica fechada e abandonada. Por isso pensamos que é importante todos saberem
por que lutamos, pelo que lutamos e porque podemos ser vitoriosos. 78

Uma cooperativada do Planeta Terra, diz em entrevista que a “Flaskô foi a única
entidade que nos apoiou, não podemos contar com a Prefeitura, com políticos ou com os
órgãos públicos [...] e ainda querem nos tirar daqui [...] acho que não querem uma cooperativa
popular dentro de uma fábrica ocupada, deve ser por isso!”. 79

As atividades e parcerias descritas atestam uma forte relação da Flaskô com diversos
atores e movimentos populares, com destaque para: o MST (Movimento dos trabalhadores
Rurais Sem Terra); movimentos de moradia e por trabalho como o MTST (Movimento dos
76
O Festival. Disponível em: <http://www.festivalflasko.org.br> Acesso em: 22. Out.2014.
77
CEMOP, op. cit., 2015, p.6.
78
Ibid. p.7.
79
Conversa informal desenvolvida com trabalhadora da Cooperativa Planeta Terra em outubro de 2015, durante
trabalho de campo na Flaskô.
56

Trabalhadores Sem-Teto) e o MTD (Movimentos dos Trabalhadores por Direitos). O


principal fio condutor da relação é a Educação Popular aprofundadas nas dependências da
fábrica. Também existe uma relação constante com movimentos mais fluidos como
movimentos e coletivos de cultura e comunicação; rádios comunitárias e rádios livres;
coletivos de comunicadores populares; comitês contra a criminalização dos movimentos
sociais; comitês pela defesa do transporte público e em defesa da saúde pública; projetos de
extensão das instituições universitárias próximas a Sumaré. Existe uma relação favorável com
o Sindicato da categoria – ramo químico – de acordo com os trabalhadores.

No que toca à relação com os outros movimentos, nos reivindicamos como fábrica
ocupada, mas somos sindicalizados como trabalhadores do ramo químico e
batalhamos por um sindicato de luta. Isso faz com que tenhamos na prática, um
enfrentamento com a atual direção do sindicato, no momento da ocupação foi
importantíssimo o sindicato dos químicos em relação à Flaskô, tanto que os 2
primeiros conselhos de fábrica tinham uma cadeira do sindicato (defendíamos que
tinha que ter)80.

Alguns trabalhadores da Flaskô são integrantes orgânicos da Esquerda Marxista81 e


articulam uma interessante relação do chão da fábrica com atividades de formação política e
mobilização, com ênfase especial na organização de diversas atividades da juventude marxista
nas dependências da fábrica como acampamentos e cursos de formação.

O corpulento espaço da Fábrica Cultural e do complexo Flaskô possibilitam a


realização de diversas atividades político-culturais protagonizadas por todos estes parceiros
mencionados. A realização das diversas atividades mantém um clima de efervescência
política nas dependências da fábrica. Os trabalhadores costumam transitar pelas atividades
dos movimentos parceiros e visitas guiadas ao chão de fábrica são ofertadas com regularidade
aos visitantes.

O setor de mobilização da fábrica tem a tarefa de articular todas estas atividades,

[...] foi criado concomitante com sua ocupação [...] devido à necessidade de divulgar
e expandir a notícia a respeito da fábrica diante dos sindicatos, movimentos sociais,
universidades e demais apoiadores, além da população que habitava o entorno das
fábricas [...] com o passar dos anos e das necessidades, o setor de mobilização teve

80
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em novembro de 2013.
81
Seção brasileira da CMI (Corrente Marxista Internacional) de tradição trotskista, que participou da fundação
do Partido dos Trabalhadores no Brasil, mas que atualmente desvinculou-se deste e tornou-se tendência do
PSOL (Partido Socialismo e Liberdade).
57

que assumir novas tarefas, com o fim de expandir a experiência das Fábricas
Ocupadas. 82

Apesar de ter autonomia, as tarefas do setor de mobilização estão submetidas ao


conselho de fábrica e às Assembleias Gerais. Neste sentido, sua tarefa

[...] ganha uma conexão inseparável com a comunicação, pois para garantir a
eficiência das ações propostas é necessário disseminar as informações do que
acontece e do que é discutido dentro da fábrica, para isso, não basta uma divulgação
rasa dos acontecimentos, a comunicação deve assumir importância quantitativa e
qualitativa. 83

O setor cumpre diversas funções tanto no âmbito interno da fábrica como externo. A
comunicação/mobilização interna ocorre por meio da comunicação verbal, de um canal de
rádio interno chamado Rádio Luta, do mural e do boletim semanal chão de fábrica que é
entregue na mão de cada trabalhador e que contém informações da fábrica, da produção, dos
recursos humanos além de notícias políticas, informações sobre algum ato que a fábrica
participou, notas sobre atividades de movimentos sociais parceiros etc.

A mobilização externa compreende a mobilização institucional com políticos,


deputados, vereadores, governos e juízes; a relação com outros movimentos e sindicatos, com
cooperativas, coletivos livres e com empreendimentos e redes de Economia Solidária. Foram
mapeadas algumas ferramentas utilizadas para a concretização da mobilização/comunicação
externa: perfis nas redes sociais; site político na internet <fabricasocupadas.org.br>; site
institucional/comercial da Flaskô <flasko.com.br>; um programa de rádio operário popular -
com duração de três horas e comandado por um trabalhador da Flaskô na Rádio Muda da
UNICAMP; o jornal Atenção! - financiado coletivamente pelos sindicatos e movimentos
populares como o MST e o MTD – com publicação mensal e distribuição gratuita com
alcance na vila operária e vizinhança; além de toda a produção de cartilhas, livros e fanzines.
Todo o material produzido pelo setor de mobilização é organizado por meio do CEMOP
(Centro de Memória Operária e Popular), que pela sua dimensão mereceria um capítulo à
parte. O CEMOP foi criado com o objetivo de organizar toda a memória histórica, as
publicações, notícias, trabalhos, teses e pesquisas sobre a Flaskô e de outras fábricas na
mesma situação. No acervo do CEMOP estima-se que hoje existam cerca de 7000
documentos relativos aos 13 anos de luta na Flaskô assim como do Movimento das Fábricas

82
DIAS, Rafael Gironi. Mobilização e Comunicação na Fábrica Ocupada Flaskô. In: CEMOP. Dossiê 10 anos
do Movimento de Fábricas Ocupadas. n. 4, out. 2012. p. 37
83
Entrevista realizada em outubro de 2015 com trabalhador do setor de mobilização da Fábrica.
58

Ocupadas. O site do CEMOP <memoriaoperaria.org.br> mantém a memória arquivada, sob o


formato de diversas mídias audiovisuais e de textos.

Percebe-se que o CEMOP cumpre importante papel no processo de formação política


dos trabalhadores. Mas também abre uma perspectiva de produção de conhecimento
protagonizada pela própria classe trabalhadora:

[...] em termos de produção de conhecimento, começamos depois de conhecer os


centros de memória na Argentina e percebemos que era fundamental também termos
isso aqui. Seja para ter enquanto arquivo, enquanto experiência histórica registrada
seja para nos obrigarmos a dar valor pra isso, e o conjunto dos trabalhadores
entenderem a importância disso; também não é fácil, sem idealizar. Isso virou uma
experiência interessante, como formação e produção de conhecimento. E nos
esforçamos para que isso seja o mais coletivo possível. 84

Um trabalhador do setor de mobilização descreve às principais atividades de formação


e a relação destas com a produção de um conhecimento operário e popular:

Incentivamos todos à leitura, de forma coletiva, às atividades de formação, assistir


os vídeos. Nas assembleias sempre temos atividade de formação, de conjuntura,
minimamente. Temos atividades de formação, para nós trabalhadores, de formação e
debate. Menos do que gostaríamos, devido às questões objetivas que acabam não
permitindo. Com momentos mais intensos. Tivemos o Cine Flaskô, com debate
sobre filmes. Mensalmente fazemos uma atividade de teatro, e tentamos trazer todos
os trabalhadores, familiares, bairro, região e a comunidade como um todo nestes
diferentes espaços de formação. Cursos de educação popular, o 13 de maio, debates.
Foi simbólico fazer um debate sobre Direito com dois juízes e com 150 estudantes
de Direito aqui. Uma série de atividades que eu acho que entra um pouco nessa linha
do militante que produz conhecimento. Entendendo o espaço da academia como um
espaço a serviço das lutas sociais. 85

Quando questionados sobre as principais vantagens de se trabalhar numa fábrica


ocupada, alguns trabalhadores mencionaram o aumento de tempo livre para a sua vida, para
cursos, para a família e para o lazer. Assim, torna-se imprescindível oferecer opções de
atividades qualificadas aos trabalhadores. São ofertadas diversas atividades recreativas como
a prática de Reiki, capoeira e ginástica laboral; além de acompanhamento nutricional dos
trabalhadores86. No sentido da educação formal, a Flaskô oferece um curso EJA (Educação
para Jovens e Adultos) coordenado por estudantes da UNICAMP (Universidade Estadual de
Campinas) por intermédio de um programa formal de extensão. Mediante parceria com o
SENAI (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial) alguns trabalhadores tiveram a

84
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em outubro de 2015.
85
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em novembro de 2013.
86
Em 2014 uma pesquisa com os trabalhadores detectou que sua alimentação era muito pobre em nutrientes.
Desde então cada trabalhador passou a receber uma fruta por dia.
59

possibilidade de concluir o seu Ensino Médio. Cursos de português, de redução e espanhol já


foram oferecidos no passado.

As narrativas dos trabalhadores demonstram sua satisfação com a possibilidade de


retomar os estudos e sobre o papel determinante da experimentação autogestionária nas suas
vidas. “A Flaskô me permitiu entender o conjunto da produção, entender o conjunto da
fábrica, sobre a dificuldade de tomar decisões, participar do conselho de fábrica, ouvir na
assembleia e entender, é uma formação coletiva incrível”.87 Outro trabalhador que é operador
de máquina, comentou com orgulho que pôde cursar mais de um curso superior. Um antigo
operário contratado na época da gestão patronal comenta: “tinha dificuldade de enviar um e-
mail, só despachava a produção pra carregar e hoje sou responsável pelo contato direito com
todos os nossos clientes”.88 Outro trabalhador se emociona ao falar da Flaskô:

Eu tenho uma admiração muito grande pela Flaskô, meu primeiro registro na
carteira foi aqui em 1991. Trabalhei no tempo dos patrões com 650 funcionários,
uma potencia tremenda. Hoje a gente ta aqui com 10% em máquinas e funcionários,
uma diferença muito grande, mas estamos tocando aí há 12 anos. Estamos
sobrevivendo, tem muita gente que já se aposentou aqui, tem outros que tão perto de
se aposentar [...] todo mundo ganha bem aqui, pode ver que todo mundo tem seu
carrinho, sua casinha [...] tem uns que reclamam. Eu não tenho “nada”, mas tudo que
eu tenho eu consegui aqui na Flaskô [...] trabalho com liberdade, participação nas
decisões, com igualdade de direitos só que às vezes recebe com atraso, o momento
econômico da empresa ta difícil!

Contudo, percebe-se que o entusiasmo com o crescimento pessoal não é capaz de


sonegar a preocupação com a delicada situação da fábrica e as contradições de se construir um
projeto autogestionário dentro de um sistema de mercado. Todos os trabalhadores
entrevistados revelaram a mesma inquietação.

A partir dos registros, relatos e conformação dos espaços físicos e atividades


realizadas percebeu-se uma aguçada imbricação das atividades da Flaskô com as atividades
do movimento-referência da Fábrica – o movimento das fábricas ocupadas. Neste sentido
serão problematizadas as bases deste movimento popular.

2.1.1.1 O Movimento das Fábricas Ocupadas

- Há, há, há! Se arrematar não vai levar!


(Grito de ordem dos trabalhadores da Flaskô em frente ao
(Fórum durante os leilões das máquinas da Fábrica).
Ninguém nunca apareceu pra arrematar!
(Fernando, operário).

87
Conversa informal ocorrida no chão de fábrica em outubro de 2015.
88
Idem.
60

A Flaskô se reivindica como parte do Movimento das Fábricas Ocupadas (MFO). Mas
seria possível um movimento de uma só fábrica?

Sim. Eu sou um que defendo que temos que nos apresentar como movimento de
fábricas ocupadas. Porque é uma pauta, é uma perspectiva de luta e não por termos
quantitativos. Hoje somos só uma fábrica, pode ser que amanhã sejam outras. E
como é um processo, achamos que é mais amplo. Até para resgatar a noção de
movimento, desde a CIPLA e tudo mais [...] o movimento tem um auge e depois
uma crise, uma queda na perspectiva do movimento. O “golpe” foi muito bem dado.
Essa avaliação é geral. Reconhecemos que há uma dificuldade, que não é uma crise
política, o MFO teve um ascenso e hoje tem uma fragilidade, que se expressa pela
resistência na FLASKÔ. Mas nos sentimos parte desse movimento mais amplo
MFO. E nos reivindicamos como movimento internacional das fábricas ocupadas,
pelos encontros internacionais. Teve um festival de comemoração dos 10 anos aqui,
com representação internacional, nós reafirmamos isso, tem uma carta em
português, inglês, espanhol, árabe. Havia um iraquiano exilado. Esse documento
está no blog, é a carta dos 10 anos. 89

De acordo com Santinho e Verago90, o MFO começa a se articular entre 2002 e 2003 e
se desenvolve num sentido crescente com novos casos até 2007, chegando a se constituir
como um movimento em âmbito nacional. “Além dos casos mais conhecidos como a Cipla e a
Flaskô, neste período dos primeiros 5 anos, diversas outras fábricas foram ocupadas em
diferentes estados brasileiros e se articularam junto ao movimento”. Cada caso teve
desdobramentos particulares, mas em geral, processos com menor duração da ocupação e
menor repercussão. Se atualmente a Flaskô é a única fábrica que representa o movimento, é
porque acontecimentos marcantes inviabilizaram a continuidade das demais experiências:

[...] neste ano de 2012 completam-se 10 anos desde que as primeiras fábricas, a
Cipla e a Interfibra foram ocupadas, em 31 de outubro de 2002. Estas fábricas que
representam não só a origem, mas a espinha dorsal do movimento – contando juntas
com 1000 operários -, foram, justamente por isto, pela organização, determinação,
exemplo de ampliação de direitos e importante parceria com o governo venezuelano,
o alvo do ataque sofrido pelo movimento em 2007, com a intervenção federal
motivada pelas demandas do empresariado tanto do setor industrial de plásticos,
como de seus representantes nacionais, acolhidos prontamente pelo governo
federal.91

Os autores coletam duas publicações que ilustram o repúdio da patronal que antecede
a intervenção: (1) a ingerência do governo venezuelano em negócios brasileiros precisa ser
repudiada com veemência 92; (2) Socialismo chavista chega ao país93, de autoria do presidente

89
Entrevista realizada com trabalhador da Flaskô em novembro de 2013.
90
SANTINHO, Pedro Alem; VERAGO, Josiane Lombardi. O movimento em retrospectiva e os casos de
ocupações menos conhecidos. In: CEMOP. Dossiê 10 anos do movimento de fábricas ocupadas. n. 4, out. 2012,
p. 8.
91
Ibid.
92
Informativo da Associação Brasileira de Indústria do Plástico. n.1, ano 1, maio de 2007.
93
Jornal o Estadão em 18 jan. 2007. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,socialismo-
chavista-chega-ao-pais,20070118p19097>. Acesso em: 20 nov. 2015.
61

da FIESP, Paulo Skaf. Destaca-se ainda uma terceira publicação que demarca sobremaneira o
incômodo ocasionado pelo MFO. Trata-se de uma reportagem publicada pela revista Veja
titulada: Ocupar e arruinar – radicais do PT criam o MST das fábricas e usam dinheiro das
empresas ocupadas em proveito próprio 94. A reportagem apresenta uma série de acusações
contra o Conselho de Fábrica da Cipla, chamando a atenção da sociedade brasileira sobre uma
“possível e mirabolante estratégia de comunistas lunáticos para revolucionar o país”. Em um
dos trechos a matéria destaca o que supostamente acontece em uma fábrica ocupada (Figura
6):

Os principais cargos executivos são ocupados por militantes do movimento de


Fábricas Ocupadas, ligado ao PT; aulas sobre a Revolução Russa são compulsórias e
os funcionários precisam ler os livros indicados; quem não comparece nas
assembleias ou faz oposição é demitido; funcionários são dispensados do trabalho
para discutir panfletos e CDs de políticos aliados; o dinheiro ganho pela empresa é
utilizado para campanhas políticas e para dar boa vida aos dirigentes partidários ou
aliados, como o MST; empregados são intimados a ir a greves de outros sindicatos.
Para comprovar o comparecimento, precisam assinar lista de presença ou entregar
um papel com o próprio nome; não há nenhuma preocupação com a rentabilidade da
fábrica; são produzidos cassetetes dentro da fábrica para enfrentar a polícia. Há
treinamento de artes marciais. 95

94
Revista Veja. São Paulo, edição 2023, 29 ago. 2007. p. 86-88.
95
DELMONTES; CLAUDINO, op. cit., 2009, p.81.
62

Figura 6 - Veja – o que acontece numa fábrica ocupada


Fonte: Delmontes; Claudino (2009, p.81).

A matéria não mente em alguns pontos, especialmente no que se relaciona aos


membros do conselho de fábrica serem filiados do PT; quanto a ligação do MFO com outros
movimentos sociais; e quanto ao objetivo de estatização das fábricas. Mas o sensacionalismo
anti-republicano notório e peculiar da citada revista torna a matéria esdrúxula e
constrangedora. O mais estranho é que tais constatações aparecem como acusações, como se o
problema fosse existir política neste processo. Tal ataque é muito compreensível
considerando o contexto da publicação e as fontes de financiamento e propósitos da revista.
Na época o MST das fábricas ou Movimento das Fábricas Ocupadas alcançava espaço em
vários estados como Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina; e uma
articulação internacional com movimentos semelhantes na Venezuela, Argentina, Uruguai,
Paraguai, Bolívia e Peru.

A novidade deste movimento em relação a outros processos de ocupação/recuperação


de fábricas no Brasil é a perspectiva do controle operário e da luta pela estatização para salvar
empregos e direitos,
63

[...] não se colocaram em nenhum momento a possibilidade de negociar as


demissões e indenizações – como é muito comum nestes casos -, o seja, adotar o
caminho dos processos judiciais. Tampouco optaram pela via da recuperação através
da conformação de cooperativas. Desta maneira os trabalhadores destas fábricas
apresentam-se como defensores da bandeira “Fábrica quebrada deve ser ocupada. E
fábrica ocupada deve ser estatizada” e assim iniciaram um movimento político que
em pouco tempo ganha um caráter nacional pela estatização das fábricas. 96

Pela perspectiva do movimento, o MFO aprofunda o debate sobre os caminhos


políticos e jurídicos para as empresas assumidas pelos trabalhadores

[...] rompendo com o discurso e o projeto único da „Economia Solidária‟ para


empresas recuperadas, que emana do governo federal e do sindicalismo majoritário
já desde antes do governo Lula [...] um projeto e discurso que entendemos como
integrado ao projeto „neoliberal‟ e sua perspectiva ideológica de
„autorresponsabilização‟ dos trabalhadores pela solução das „questões sociais‟ [...]
ideologia esta, adornada de idealismo e de ilusão com a „autonomia‟, ou melhor,
com a „autonomia possível‟, e com a qual, parte importante da esquerda ainda se
identifica, mesmo que tentando ressignificá-la para ideais socialistas, mas se
esquecendo do berço liberal donde tal ideologia nasce e cresce. E no caso de
empresas falidas, esta perspectiva leva os trabalhadores a assumirem por conta
própria e risco, a propriedade e a manutenção dos meios de produção no
capitalismo, desrresponsabilizando assim, tanto o patronato quanto o próprio Estado.
97

Apesar das duras críticas apresentadas pelo MFO ao modelo de recuperação de


fábricas implementado pela SENAES, percebe-se uma nova intencionalidade das lideranças
da Fábrica no sentido de aproximação da Flaskô e do MFO às empresas recuperadas que
aderiram ao modelo governamental, especialmente às que fazem um balanço crítico das
experimentações autogestionários sob tutela do cooperativismo.

Apesar de todas as dificuldades do MFO nestes 13 anos, Alexandre Madl destaca as


principais conquistas do movimento:

(a) avanço no processo de consciência de classe, com a realização de greves e,


depois, greves de ocupação, e ainda, em seguida, retomar a produção sem um patrão.
Essa perspectiva de luta, buscando a emancipação da classe em contraposição ao
empreendedorismo individual é de grande importância [...]; (b) aos trabalhadores
que vivenciaram uma situação mais duradoura de controle operário [...] aprendemos
a adotar uma nova concepção de relações de trabalho, sob a lógica do bem-estar
coletivo em detrimento da lógica convencional do capital, de buscar maiores lucros
e produtividade explorando cada vez mais a força de trabalho [...] realizou-se um
novo ritmo diferenciado [...] com a organização da produção submetida às decisões
das assembleias e do Conselho de Fábrica [...]; (c) E, mais, mesmo quando se adotou
a maior das conquistas, que foi a redução da jornada de trabalho sem redução de
salários, aumentou-se o faturamento e a produção [...] só podemos implementar tais
medidas porque não há apropriação privada da riqueza [...] se foi possível realizar tal
medida em fábricas sucateadas e quebradas [...] o que dizer da necessária redução da
jornada de trabalho, sem redução de salários, nas empresas com alta tecnologia e

96
SANTINHO; VERAGO, op. cit., 2012, p. 9.
97
Ibid.
64

com altas taxas de produtividade [...] somente será possível com uma generalização
das ocupações de fábricas [...]; (d) o aprendizado coletivo sobre a produção,
diminuindo a alienação do trabalho, diminuindo a subsunção real, conhecendo o
conjunto da produção [...] aprofunda-se discussões sobre conjuntura política e
econômica [...]e sobre temáticas centrais para a classe trabalhadora, para além da
realidade de cada fábrica; (e) para a comunidade, podemos salientar que onde o
MFO esteve [...] conseguimos estimular a aliança dos trabalhadores com a
comunidade, expressa em associações de bairro, o dono da lanchonete em frente à
empresa, outros movimentos sociais e setores da região, que, de uma forma ou de
outra, reafirmavam a „sacanagem dos patrões em querer fechar a fábrica e demitir os
98
trabalhadores‟.

Imagine se a moda pega? 99

2.1.1.2 Autogestômetro da Flaskô

A seguir segue o autogestômetro institucional relativo à Fábrica Ocupada Flaskô.100

98
MANDL, Alexandre. Uma década do movimento das Fábricas Ocupadas: histórico, balanços e perspectivas.
In: CEMOP. Dossiê 10 anos do movimento de fábricas ocupadas, n.4, out. 2012. p. 26.
99
Trecho da sentença judicial que nomeou um interventor judicial para que fosse paga a dívida previdenciária da
Cipla junto ao INSS posteriormente prontamente cumprida pela Polícia Federal. “Quinto, e talvez o mais
importante reflexo negativo do custo social da atitude da executada: a acolher-se o argumento de que tudo pode
ser feito para a manutenção de mil postos de trabalho, estar-se-á legitimando o desrespeito odioso das leis e
jogando por terra o Estado Democrático de Direito. Imagine se a moda pega?“ Autos do processo n.
98.01.06050-6/SC. 1ª Vara da Fazenda Pública de Joinville/SC
100
Veja-se os indicadores institucionais no Quadro 5, Capítulo 1.
65

Figura 7 – Autogestômetro institucional – OTA 1 – Fábrica Ocupada Flaskô


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
66

2.1.2 CooperActiva – Okupa 171 101

Não sei se estamos bem ou mal em relação à autogestão.


Só sei que hoje caminhamos juntos e melhor que ontem,
e amanhã andaremos bem melhor que hoje.
Morador da Okupa 171
A CooperActiva – Okupa 171 é uma cooperativa informal que está localizada no
interior da ocupação libertária Okupa 171, na região central da cidade de Pelotas (rua XV de
Novembro, 171). A Okupa 171 existe há seis anos e pode ser caracterizada como um “espaço
de vivência autogestionária que se constitui como referência de práticas libertárias de
educação e cultura”102.

As “Okupas” com K são a versão brasileira dos “squat”, ação de ocupação de


espaços imobiliários como casas, prédios que estão ociosos e sem uso para
transformá-los em espaços de vivência e cultura libertária autogestionária. Essa
prática nasce nos anos 60 na Europa, inicialmente como ação de resposta à falta de
moradia, realizada através da ocupação de casas, apartamentos e prédios
desocupados ou abandonados em razão da especulação imobiliária. Dessas primeiras
reações contra a especulação imobiliária de grandes áreas urbanas, nasceria um
movimento de reconhecimento internacional que posteriormente se multiplicaria por
diversos países como Squat (Europa) ou Okupa (América Latina). Da década de
1980 em diante, essa forma de ação direta urbana irá vincular-se à cultura punk e ao
anarquismo103.

Quem responde pela Okupa 171 é o Coletivo Tranca Rua, “constituído no final de
2007, com o propósito de promover ocupações e intervenções no espaço urbano, a partir da
reunião de forças de ativistas anarquistas que se agregando sob este nome, divulgam as ideias
e buscam promover a prática libertária”. 104

A casa 171 foi ocupada pela necessidade do Coletivo Tranca Rua de “ter um lugar
para habitar, pensar e praticar o anarquismo. Este lugar não poderia ser outro que não uma
okupação por pensarmos que todas as propriedades devem servir àqueles que as são próprias:
as pessoas [...] e por não querermos colaborar com o mercado imobiliário” 105.

No passado a ocupa 171 já foi conhecida por outros nomes, como espaço
contracultural caverna (porque não havia energia elétrica) e Casa Encantada. Sua ocupação

101
Além dos instrumentos de pesquisa já mencionados, as informações referentes à Okupa 171 foram obtidas
mediante a observação participante/militante em várias visitas realizadas à casa na ocasião de pizzadas, eventos
musicais, feiras do livro e algumas oficinas entre os anos de 2014-2016.
102
Entrevista realizada com morador da Okupa 171 em dezembro de 2015.
103
MARQUES, Paulo L. A.; RODRIGUES, Edson. 100 anos de cultura-educação libertária em pelotas: do
Grupo Iconoclasta à Casa Okupa 171. 2015. Disponível em: <http://libertariosufpel.blogspot.com.br/2015/11/
educacao-anarquista-em-pelotas.html >. Acesso em: 20 nov. 2015.
104
Entrevista realizada com morador da okupa 171 em janeiro de 2016.
105
Página do Coletivo Tranca Rua. Disponível em <https://coletivotrancarua.noblogs.org/about/>. Acesso em:
25 nov. 2015.
67

ocorreu pela primeira vez em 2005, data que demarca o início das atividades do coletivo. Esta
primeira ocupação foi relâmpago - os estudantes ocuparam no dia 4 de abril e foram
desalojados pela polícia militar no dia seguinte. O registro da propriedade da casa está em
nome do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade Federal de Pelotas, que o
recebeu como doação de um simpatizante na década de 1980. Na época o DCE estava quase
perdendo a casa por falta de destinação e colocou um estudante pra cuidar da residência e que
posteriormente ajuizou uma ação de usucapião para ficar com a propriedade da casa. Em meio
a todo este embaraço, várias ocupações foram realizadas pelo Coletivo Tranca Rua, umas
duraram mais outras menos tempo. Em algumas houve saída pacífica, noutras despejo forçada
pelas forças policiais. Num destes despejos forçados e violentos, e após uma ocupação de três
meses surgiu a denominação Tranca Rua106.

Essa okupa foi muito interessante para nós porque nos deu experiência para lidar
com as questões que envolvem uma ocupação urbana. No período que se seguiu ao
desalojo da Tranca Rua, outras pessoas somaram ao coletivo, que se transformou em
um coletivo de intervenção e ação direta nas ruas [...] mas o negócio de não ter um
espaço físico para morar, compartilhar e vivenciar a anarquia nos mantinha um tanto
engessados. Foi aí que decidimos ocupar a 171 pela terceira vez. Mas aí fizemos
diferente… fomos conversar com o pessoal do DCE, mas eles não estavam nem um
pouco interessados em usar a casa, nem em deixar alguém usar. Depois de muita
lenga-lenga, nós perguntamos se eles chamariam a polícia se nós reocupássemos a
casa. Como a resposta foi negativa (afinal, ficaria muito feio pra eles, que não
usavam a casa pra nada, chamar a polícia para bater em quem queria fazer algo com
o espaço) nós entramos e aqui estamos. A okupa completou dois anos no final de
2011. Ah! Alguns chamam de 171 por causa do número de endereço da casa, que é
171. 107

Com o passar dos anos, o espaço físico da Okupa 171 passou por diversas
modificações e transformações no que diz respeito às reformas e adequações no prédio, além
da caracterização própria que tomou em função do modo de vida dos ocupantes e pela
permacultura e bioconstrução cotidianamente vivida e desenvolvida por ali. Chama a atenção
a decoração e a organização dos espaços da casa: as paredes gritam com centenas de cartazes,
grafites e pichações sobre as diversas atividades do coletivo e de movimentos sociais de todo
o mundo. Considerando que a estrutura física da casa é bastante antiga e foi pouco conservada
pelos moradores anteriores, a necessidade de manutenção constante e imediata do espaço
também impulsiona uma dinâmica muito favorável à auto-organização no que se relaciona às
empreitadas cotidianas necessárias, como a reforma de um telhado após uma grande e intensa

106
Histórico construído com base nos depoimentos de dois informantes-chave moradores da casa.
107
Página do Coletivo Tranca Rua. Disponível em: <https://coletivotrancarua.noblogs.org/about/>. Acesso em:
25 nov. 2015.
68

chuva ou a construção de um quarto para um morador provisório 108. Essa constante


necessidade acaba refletindo numa autogestão interna de destacada intensidade.

Muita coisa melhorou desde que ocupamos a casa, tanto em estrutura física, quanto
nas dinâmicas e relações dentro do espaço. Quando a ocupamos, era uma casa
caindo aos pedaços, passamos quase um ano sem energia elétrica e com poucos
recursos para a reforma da casa. Nessa época dormíamos em barracas dentro da
casa. Quando chovia, não tinha como fazer nenhuma atividade (e aqui em Pelotas
chove muito). O pátio era cheio de entulho e poucas pessoas colaboravam pra
melhorar o espaço. Mas tocávamos as atividades na medida do possível. Com o
tempo, fomos ficando conhecidos fora de Pelotas e mais pessoas que passavam pela
cidade apareciam por aqui. Essas pessoas quase sempre contribuíam para elevar o
nosso ânimo (claro que de vez em quando apareciam alguns que só atrasavam o
andamento das coisas) e aos poucos tudo foi tomando forma. Hoje a nossa situação
já é bem diferente, podemos conversar sem se preocupar que o telhado caia nas
nossas cabeças.109

O público que frequenta a Okupa é bem variado. Além de caracterizar-se como um


espaço contracultural autogerido, a casa também funciona permanentemente como
hospedagem solidária a estudantes e viajantes anarquistas (ou simpatizantes) que de alguma
forma contatam os moradores fixos diretamente ou por intermédio de seus coletivos ou ainda
que tenham conhecido alguém da casa em visitas a outras okupas pelo mundo. Este apelo ao
nomadismo, que parece ser muito comum em todas as ocupações anarquistas, possibilita a
ampliação dos horizontes políticos e culturais (ou contraculturais) dos moradores pelo
contato com outras visões de mundo, além de provocar o aperfeiçoamento da auto-
organizarão da casa pelo desenvolvimento de procedimentos (mesmo que informais ou
latentes) de inserção dos moradores temporários na dinâmica de trabalho da casa. Neste
sentido comenta um morador:

[...] no passado fomos mais flexíveis com quem ficava aqui, às vezes nem sabíamos
quantos estavam dormindo, atualmente somos mais seletivos e mandamos embora
quem não comunga minimamente dos nossos princípios libertários. Não somos
muito rígidos quanto a leituras do anarquismo, mas não aceitamos um cara machista
ou homofóbico aqui dentro. Isso já ocorreu e mandamos ele embora.”110

A produção da CooperaActiva 171 é responsável pela receita que permite, por meio de
uma organização horizontal e estruturada em setores informais, prover o sustentabilidade das
108
No período de conclusão do trabalho de campo desta pesquisa, o corte de água realizado pelo SANEP
(Serviço Autônomo de Saneamento de Pelotas) em função de uma dívida anterior da casa impulsionava uma
série de dinâmicas organizativas da casa, desde a organização de uma escala para obtenção de água das
residências de simpatizantes da 171, como a bioconstrução de chuveiros e encanamentos adaptáveis à nova
situação.
109
Página do Coletivo Tranca Rua. Op. cit.
110
Entrevista realizada com morador da Okupa 171 em janeiro de 2016.
69

atividades da casa no tempo. Por se tratar de uma ocupação cultural de estudantes, que antes
de tudo precisam resolver seu problema de moradia e de renda, as atividades da CooperActiva
se articulam de forma tão orgânica às atividades da Okupa que se torna difícil distingui-las. À
CooperActiva estão associados sete moradores fixos da casa que desempenham suas funções
de maneira alternada e de acordo com suas capacidades e habilidades artísticas. Foi possível
identificar algumas funções estruturantes da casa, como: organização do fundo coletivo,
organização do calendário de atividades, representação da cooperativa em outros espaços e
feiras livres, o reciclar nas feiras111, comunicação interna e externa, tratamento da
compostagem e manutenção geral da casa.

Não há diferença de retirada financeira entre os ocupantes da casa,

[...] a cooperativa tem um caixa. Como tem muita coisa pra fazer, temos que arrumar
telhado [...] a parte da frente mesmo ta muito comprometida [...] tem o problema
com o SANEP também. Nós temos um caixa, não botamos no banco, até temos
falado sobre isso [...] estraga um cano do fogão da produção [...] também pra fazer
um evento. Na hora que surge a demanda agente conversa informalmente e delibera
sobre a importância de destinar o recurso do caixa para aquela atividade. A não ser
que seja uma coisa urgente, temos autonomia pra utilizar o recurso e depois
justificar pro grupo112.

Por constituir-se num coletivo pequeno, a comunicação interna funciona basicamente


pela oralidade, por meio de um mural localizado no centro da ocupação, que está sempre
repleto de avisos e convites e por um perfil nas redes sociais. Os moradores da casa
apresentam o Subversão, programa anarquista semanal com conteúdo musical e informativo
veiculado na RádioCom 104.5 FM113, que também cumpre importante papel na comunicação
interna e de articulação externa. A CooperActiva também edita um jornal, o Povo Livre, que é
um informativo “aperiódico que editamos desde 2005, mas que tomou corpo somente em
2008, quando começamos a imprimir em intervalos menores de tempo. Hoje o Povo Livre já
vai para a 15° edição, com artigos, notícias e coisas do gênero, que circundam o anarquismo”.
114

Dentre as principais atividades econômicas da CooperActiva destacam-se: realização


de pizzadas, feijoadas veganas e buteco 171 – organizados periodicamente para o público
simpatizante da casa no intuito de divulgar a culinária vegana e a produção da CooperActiva,

111
O reciclar na feira é a tarefa de realizar rondas nas feiras livres da cidade e coletar doações de alimentos
como hortaliças, frutas, legumes e tudo mais que seria descartado por razões estéticas, mas que ainda é saudável
e apresenta condições de consumo.
112
Entrevista realizada com morador da Okupa 171 em janeiro de 2016.
113
A RádioCom 104.5 FM é uma rádio comunitária local mantida e financiada por sindicatos e movimentos
sociais da cidade que cumpre destacado papel na articulação de setores da esquerda da cidade e da região.
114
Página do Coletivo Tranca Rua. Op.cit.
70

promover artistas locais e fortalecer os vínculos com a comunidade; processamento de


alimentos e produção de artigos de limpeza e fertilizantes agroecológicos de compostagem -
a partir de distintas técnicas da permacultura que são desenvolvidas no teto verde da casa, são
cultivadas hortaliças, ervas e chás para a subsistência dos moradores e para a preparação de
artigos de higiene e limpeza visando a venda em feiras livres de rua e nos mecanismos de
comercialização da Associação Bem da Terra115; estúdio musical da Okupa – a manutenção
do estúdio permite a locação e a cessão da estrutura da casa para o ensaio de bandas musicais
amadoras; serigrafia, fotografia e gráfica artesanal - na casa funciona uma serigrafia/gráfica
artesanal que opera impressão e emulsão artesanal de cartazes, fanzines e livretos assim como
um laboratório de fotografia onde se produz fotos e câmeras do tipo pinhole, de manufatura
artesanal.

Das atividades político-culturais e de formação da casa destacam-se: oficinas abertas


ao público ofertadas no interior da casa ou em outros espaços como escolas públicas e praças
a respeito dos mais variados assuntos como: serigrafia artesanal, alongamento corporal,
discotecagem, artes circenses, desenho, grafite, dança, confecção de absorventes íntimos,
compostagem, permacultura, cines debates libertários. Merecem destaque ainda a biblioteca
José Saul, que possui diversificado acervo de conteúdo anarquista e libertário, o Grupo de
Estudos Educação Libertária (projeto formal de pesquisa cadastrado na UFPel) e a
FLIA/Pelotas (Feira Libertária Independente e Autônoma de Pelotas). A FLIA

[...] nasceu em Buenos Aires/Argentina e logo espalhou-se para várias outras partes
do mundo. Livres de qualquer padrão, patrão ou intenções lucrativas, a proposta é,
ao contrário da feira do livro tradicional e burguesa, abrir um espaço organizado
pelo povo e para o povo que dê voz a escritores e escritoras independentes, poetas
marginais, literatos, contadorxs de histórias, músicxs, artesãos, artesãs, cozinheirxs e
demais artistas interessadxs em expor seus contos e aumentar esse ponto! 116

Quando questionados sobre a existência de uma linha política entre os habitantes da


casa, os moradores se autoidentificam politicamente e contraculturalmente como
anarcopunks, incorporando tendências acratas117 e anarquistas libertárias118. Neste sentido,
um ocupante destaca a influência do movimento Okupa ou Squatter nas práticas da casa 171:

115
Sobre a Associação Bem da Terra e sobre a Rede Bem da Terra, veja-se seção 2.1.4. - Núcleo de produção
das artesãs da Associação Bem da Terra, na parte final neste capítulo.
116
Site da FLIA/Pelotas. Disponível em: <http://fliapelotas.blogspot.com.br/>. Acesso em: 18 out. 2015.
117
Termo muito utilizado na Argentina para identificar anarquistas de casas ocupadas. Entrevista realizada com
morador da okupa 171 em 10 de dezembro de 2015.
118
Oliveira aponta a existência de uma situação de caos ideológico no meio punk, “uns usam camisetas pretas,
outros brancas; alguns têm os cabelos espetados, outros em estilo moicano ou de outro tipo; uns pintam o cabelo
71

[...] a relação com os “okupa” é forte, vem gente de todo mundo aqui em casa da
Europa, da América do sul. [...] Acho que existe uma rede squatter bem forte de
troca de experiências nas casas: - como é que vocês vivem lá na Grécia? – Ah,
tivemos três desalojos em uma noite, no outro dia ocupamos sete casas! [...] na
Espanha, na Catalunha [...] então tem esse intercâmbio de informação é
contracultura [...] a informalidade de viver num lugar e criar coisas que te fazem
bem e que podem abranger outras pessoas. A “oficina” é como passar o
conhecimento[...] os anarquistas é quem trouxeram desde sempre. Quem primeiro
fez escola no Brasil foi os anarcos [...] o governo da republica velha não sabia fazer
escola [...] quando ele fez a escola prussiana que é a de sempre, mas quem primeiro
organizou a escola pra ensinar a gente pra jovens e adultos que hoje é o EJA foram
os anarquistas [...] o cara operário trabalhava o dia inteiro [...] ah tu não sabe fazer
tal coisa, então tu vai aprender a costurar tal coisa e depois tu pode fazer uma grana
pra ti [...] e a oficina acho que ainda tem isso de conhecimento compartilhado, de
formar a pessoa a conseguir sua autonomia, gerir ela mesmo tanto na questão da
produção quanto pra ela mesmo. Ser autônomo é um exercício para a mente! Pra não
desprezar as tuas potencialidades. 119

A Okupa 171 é a única ocupação anarquista da cidade, o que, segundo os moradores,


dificulta muito a ampliação da proposta tanto em termos políticos como econômicos. No
entanto o coletivo Tranca Rua e a CooperActiva mantém algumas relações com outros
militantes, coletivos, movimentos e redes. Existe uma constante relação com o espaço OCA
(Ocupação Coletiva de Arteirxs), ocupação contracultural situada num prédio público da
UFPEL (Universidade Federal de Pelotas). Outra parceria permanente que existe é com o
Coletivo Negada, um coletivo anarquista local que fomenta a discussões, pesquisas e ações
diretas em relação à temática étnico-racial contemplando também a bandeira do
anarcofeminismo. Também há uma parceria duradoura com um militante e produtor do
programa de rádio Samba e Liberdade, de acordo com os moradores da casa, um dos
primeiros programas a abordar a temática anarquista em Pelotas. Também apareceu a
relação favorável com a Casa Fora do Eixo da cidade, especialmente para a realização de
eventos de rua. O nomadismo também facilita o surgimento de relações com outras ocupações
tanto em âmbito nacional como internacional. Foram citadas relações por uma rede
internacional com ocupações do Chile, Argentina, Holanda, Grécia, Espanha; e no âmbito
local, com ocupações no estado do Rio Grande do Sul como a do Bosque Ibirapijuca e a
Utopia e Luta em Porto Alegre e as ocupas Atazana e Catch a Fire na cidade vizinha de Rio
Grande.

É unanimidade, nas narrativas dos ocupantes, que o inimigo maior da Okupa 171 é o
capitalismo e como consequência a própria especulação imobiliária que os coloca numa

de azul, outros de vermelho ou simplesmente não pintam. Há os que se definem anarquistas, de esquerda; os que
se dizem apolíticos ou os que afirmam não ter opinião sobre o assunto”. OLIVEIRA, op.ci.t, 2006.
119
Entrevista realizada com morador da okupa 171 em dezembro de 2015.
72

condição de estudantes sem teto. No entanto também são apontados alguns inimigos mais
visíveis e concretos como skinheads e fascistas, pela sua histórica perseguição aos punks.

2.1.2.1 O Anarquismo das Okupas120

Já foi dito que por se tratar de uma ocupação cultural e de estudantes, que antes de
tudo precisam resolver seu problema de moradia e de renda, as atividades da CooperActiva se
articulam de forma tão orgânica às atividades da Okupa que muitas vezes se torna difícil
distingui-las. Contudo, importa anotar que tal imbricação de perspectivas e de estruturas não
ocorre de forma voluntarista; ela ocorre referenciada em experiências pretéritas, tanto da
construção de espaços de educação libertária pelo anarquismo como pela práxis anarquista
dentro das próprias okupas, com suas variadas inclinações nos diversos países onde ocorrem.
De acordo com Marques e Rodrigues:

[...] pode-se perceber o legado do passado nestas atividades das okupas, cujas
premissas da autonomia individual, autogestão, ação direta, ajuda mútua,
cooperação e solidariedade constituem a prática do que Passeti e Augusto (2008)121
identificam como heterotopias da invenção, um outro lugar de experimentações,
agenciamentos de novas subjetividades éticas e estéticas próprias. São novos tempos
e circunstâncias diferentes que mantém ideias-forças, valores e práticas que
permanecem vivas nas invenções de cultura-educação libertárias de hoje.122

Neste mesmo sentido, Marques e Rodrigues123 tecem interessante comparação,


identificando elementos de continuidade e inovação entre as práticas atuais da Okupa 171 e as
práticas do Grupo Iconoclasta de Pensadores Livres, constituído por operários, artistas e
intelectuais anarquistas no ano de 1914 na cidade de Pelotas:

Se naquele período os anarquistas criaram os Ateneus nos sindicatos e Escolas


Modernas, como instrumento de educação para a classe trabalhadora, hoje existem os
Grupos de Estudo, Oficinas, Ciclo de cine-debate, bibliotecas como atividades de
cultura-educação das Okupas; se ontem os libertários criaram jornais e revistas, hoje
existem os blogs, sítios e fanzines digitais; se no passado os libertários realizavam
piqueniques e teatros, hoje fazem pizzadas e Circo Ákrata; se antes dirigiam
sindicatos, hoje atuam na construção de espaços de vivência e produção econômica
coletiva e autogestionária.

As cidades de Pelotas e de Rio Grande são consideradas por parte importante da

120
Esta seção foi desenvolvida a partir dos documentos disponíveis no acervo da biblioteca da Okupa 171 José
Saul, com ênfase especial à pesquisa “Memória, teorias e práticas de educação libertária no RS” da qual
participam dois moradores da casa que estudam na Universidade Federal de Pelotas.
121
PASSETTI, E. AUGUSTO, A. Anarquismos & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
122
MARQUES; RODRIGUES, op. cit. 2015.
123
Ibid.
73

historiografia como o berço do movimento operário gaúcho124,125, pois nesta região deu-se
inicio o processo de desenvolvimento industrial do Estado a partir de meados do Século XIX,
especialmente através da exportação e importação vinculadas aos setores da alimentação e da
produção têxtil. Nesta condição, Pelotas tornou-se um interessante atrativo para um
significativo contingente de operários imigrantes, principalmente alemães e italianos. Parte
considerável destes trazia consigo traços dos movimentos que rondavam a Europa, como o
marxismo, o socialismo e o anarquismo. O primeiro anarquista italiano que se tem notícia
chegou a Pelotas por volta de 1880 e chamava-se José Saul126:

Suas ideias escandalizaram os reacionários, preocupavam as autoridades e deixavam


confusa a maioria dos trabalhadores pouco esclarecida. Apesar disso, firme em suas
convicções libertárias, inicia um trabalho paciente de doutrinação e vai ganhando
seguidores. O seu progresso ideológico cresce e não tarda a organizar os primeiros
Grupos Libertários, mas autoridades preocupadas com o avanço de suas ideias,
resolvem expulsá-lo de Pelotas.

Alguns anos depois são criadas as primeiras entidades de apoio mútuo, as mutualistas,
impulsionadas pelo surgimento de uma nova classe operária que faria parte da pré-história do
movimento operário127. Segundo Marçal128, o período mutualista pode ser identificado como a
primeira etapa, como uma fase embrionária do movimento operário gaúcho a partir da criação
da primeira entidade de ajuda mútua: a Sociedade Operária Italiana Mútuo Socorro e
Beneficiência Vittorio Emanuele II em Porto Alegre, no ano de 1877. Uma década depois
surgiria o Congresso Operário de Pelotas, que posteriormente se transformaria na Liga
Operária de Pelotas, a mais antiga sociedade operária do Rio Grande do Sul129.

Muita coisa ocorreu desde então, mas importa evidenciar a influência da Liga Operária
de Pelotas no desenvolvimento de diversas iniciativas de cunho libertário daquele período,
dentre as quais se destacam:

Federação Operária (1913), Centro de Estudos Sociais (1914), Grupo Teatral


Cultura Social (1914); Grupo Musical 18 de Março (1914); Grupo Iconoclasta
(1914) que criará o Ateneu Sindicalista Pelotense (1914), a Escola Primária (1914),
com aulas noturnas gratuitas para crianças e adultos; Sindicato dos Inquilinos
(1915); Centro Feminino de Estudos Sociais (1915); Núcleo Popular Pró-Paz

124
MARÇAL, J. As primeiras lutas operárias do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1985.
125
PETERSEN, R.; LUCAS, M. Antologia do movimento operário gaúcho-1870-1937. Porto Alegre:
UFRGS/Tchê, 1992.
126
RODRIGUES, E. Os anarquistas: Trabalhadores italianos no Brasil. São Paulo, Global, 1984.
127
MARQUES; RODRIGUES, op.cit., 2015.
128
MARÇAL, op.cit. 1985.
129
PETERSEN; LUCAS, op. cit., 1992.
74

(1915); Grupo Juventude Anti-militarista (1915); Banda Musical 11 de Novembro


(1916) e Escola Racionalista ou Moderna (1918).130

Mesmo com toda a abundância de iniciativas deste período, “a memória das ações dos
educadores libertários permanece marginalizada” 131. O que importa aqui é salientar como tais
práticas ainda influenciam e inspiram os ocupantes da casa 171 a assimilarem a história e
ações locais pretéritas para inaugurarem novas práticas de cultura-educação que emergem
nos espaços de vivência anarquista, como as okupas. Como evidência singela, mas concreta
da influência da pré-história do movimento operário em Pelotas tem-se a criação da biblioteca
José Saul e do Grupo de Estudos Educação Libertária, protagonizado pelos próprios
moradores da casa Okupa 171.

De acordo com os ocupantes da casa, é da confluência do anarquismo com o


movimento squatter ou okupa que surge a perspectiva autogestionária como estilo de vida dos
habitantes da casa.

Nascido na Europa durante a década de 1960, o movimento squatter buscava


alternativas à falta de moradia, propondo a invasão de casas ou apartamentos
fechados ou abandonados devido à especulação imobiliária, que os mantinham para
que se valorizassem e pudessem ser vendidos num momento de bom preço, ou que
almejava sua deterioração para facilitar a demolição visando dar lugar a
empreendimentos lucrativos [...] na contramão desta especulação imobiliária, o
Squat, como espaço recuperado, nasce do comprometimento coletivo (puxar água e
luz por vezes de forma clandestina, limpar e reformar em regime de mutirão)
enquanto a organização política segue o princípio anarquista da autogestão, ou seja,
a administração do espaço desenvolve-se mediante o compartilhar de
responsabilidades entre os envolvidos. 132

Os squatters ou okupas (como são chamados na Espanha e na América Latina) são


geralmente compostos por um público bem diversificado como desempregados, sem-teto,
estudantes, ex-detentos do sistema prisional, moradores de rua, usuários do sistema de saúde
mental, anarquistas e punks diretamente afetados pela produção capitalista do espaço urbano.
No Brasil, o movimento squatter torna-se bandeira de luta entre os anarcopunks a partir da
década de 1990 e tem-se notícia que a partir no ano de 1993, “uma ocupação de Florianópolis
sinalizava a primeira experiência de repercussão no país”. 133

2.1.2.2 Autogestômetro da CooperActiva – Okupa 171

130
MIRANDA, C. O Teatro na voz operária: Grupo teatral cultural social e o anarquismo em Pelotas – seus
operários e suas palavras. 213 f. Dissertação. (Mestrado em Teatro). UDESC, 2014.
131
MARQUES; RODRIGUES, op.cit., 2015.
132
RUDY, Antônio Cleber. Os silêncios da escrita. A historiografia em Santa Catarina e as experiências
libertárias. 2009. 177 f. Dissertação. (Mestrado em História). UDESC/SC. 2009. p. 36.
133
RUDY, op. cit. p. 37.
75

A seguir segue o autogestômetro institucional, relativo à CooperActiva - Okupa


171134.

Figura 8 – Autogestômetro institucional – OTA 2 – CooperActiva - Okupa 171


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).

2.1.3 Cooperativa Teia Ecológica – Restaurante agroecológico135

134
Veja-se os indicadores institucionais no Quadro 5, Capítulo 1.
135
Além dos instrumentos de pesquisa já mencionados, as informações referentes à Teia Ecológica foram
obtidas mediante a observação participante/militante em inúmeras visitas realizadas ao restaurante tanto na
condição de consumidor como na posição de apoiador da cooperativa. Também contribuiu sobremaneira o
trabalho de assessoria/incubação realizado junto ao coletivo entre os anos de 2010-2011.
76

A Teia já passou por momentos muito cruéis, foi a


perseverança [...] sem perseverança e muita teimosia não
estaríamos aqui!

Trabalhadora da Teia ecológica

A terceira OTA pesquisada trata-se da Cooperativa de consumo, trabalho e produção


Teia Ecológica Ltda., localizada na região central da cidade de Pelotas e conhecida
comumente por seus associados, consumidores e parceiros como Teia Ecológica, ou
simplesmente Teia.

O propósito inicial da constituição da Teia foi:

[...] o de reduzir a distância que separa o alimento produzido agroecologicamente da


mesa do consumidor; tendo como objetivos defender, divulgar e aplicar os
princípios cooperativistas, trabalhando, divulgando e incentivando a cultura
agroecológica. O restaurante impulsiona um trabalho regional de produção e
consumo de alimentos isentos de agroquímicos, buscando, ainda, trabalhar a
educação e a consciência ecológica, divulgando as necessidades e vantagens de uma
melhor qualidade dos alimentos, oferecendo aos seus associados e a comunidades
em geral. [...] Na medida em que a cooperativa amplia o consumo urbano de
produtos agroecológicos, proporciona e ajuda a incentivar os agricultores ecologistas
a consolidarem o interesse em expandir sua produção agroecológica, visto que
encontram um espaço organizacional que garante a comercialização e assegura o
pagamento a preços adequados 136.

Percebe-se que a Teia constitui-se numa organização associativa que não se limita a
resolver os problemas dos trabalhadores associados, mas propõe-se a avançar numa
integração socioprodutiva entre trabalhadores, produtores (rurais e urbanos) e os
consumidores urbanos. Necessário assim, destacar alguns elementos da trajetória de todo esse
processo até que a proposta da Teia alcançasse a atual configuração.

Em meados de 1995 os agricultores agroecologistas da região - mediante a assistência


técnica fornecida pela Pastoral Rural de Pelotas e pelo Centro de Apoio ao Pequeno
Agricultor (CAPA), articulada e financiada por intermédio do convênio TEAR 137 - já haviam
adotado a iniciativa pioneira de produzir de maneira sustentável nas suas propriedades
familiares. No entanto, com a produção em andamento, precisavam de uma solução para a

136
BRUSCATTO, Márcio Antônio Hoffmann. A Cooperativa de consumo, trabalho e produção Teia Ecológica
Ltda. e a Agricultura Familiar no Município de Pelotas – RS: uma abordagem sistêmica. Trabalho de Conclusão
do Curso. 2011. (Graduação em Geografia). Universidade Federal de Pelotas, 2011, p. 48.
137
O TEAR foi um convênio realizado entre a Pastoral da Igreja Católica com o CAPA. Este custeava o salário
de um agrônomo e a aquela garantia veículos e recursos para o deslocamento dos técnicos e apoiadores.
Entrevista realizada com informante-chave em 15 de outubro de 2015.
77

comercialização e escoamento138 de seus produtos, que já estavam com a produção em escala


regular e constante.

A comercialização destes produtos era feita, muitas vezes, no mercado


convencional, através de atravessadores, sem uma valorização e identificação dos
produtos agroecológicos produzidos de maneira sustentável. Surgiu então, a
necessidade de uma comercialização mais adequada, evitando o atravessador e
diminuindo a distância entre o produtor e o consumidor final. Assim foi criada, em
1995, a ARPA-SUL (Associação Regional de Produtores Agroecologistas da Região
Sul), com o propósito de organizar associativamente os agricultores, e proporcionar
aos mesmos, condições de uma comercialização mais justa e sustentável,
possibilitando o fornecimento de produtos de qualidade ao consumidor,
completamente isentos de agrotóxicos. 139

Nesse sentido, diversas experiências com a agricultura ecológica na região começam a


demonstrar a viabilidade desta forma de produção de alimentos.

Em meados de 94 e 95, há uma quantidade significativa de agricultores com


experiências na produção de alimentos ecológicos. A partir daí, um novo entrave se
coloca na formação da rede: quais os espaços para a comercialização dos alimentos
ecológicos? Como questiona Lúcio não adianta produzir tomate ecológico se não
tem quem vai comprar o tomate ecológico, então tem que ter um espaço para esse
cara vender esse tomate como ecológico e não a 0,50 centavos o quilo como o
convencional. Para efetivar a organização da venda da produção se formula a
associação ARPA-SUL [...] a primeira associação de produtores ecologistas da
região Sul do estado do Rio Grande do Sul [...]que começou com oito ou nove
grupos de famílias, tendo cerca de 50 famílias cadastradas [...] abrangia agricultores
de diversas cidades da região sul do estado como, por exemplo, Pelotas, Canguçu,
Piratini, Arroio do Padre, São Lourenço, entre outros municípios. Nesse sentido, o
intuito em formar a associação era de organizar os agricultores ecologistas em
grupos de famílias, a fim de reunir a venda e a comercialização dos alimentos
produzidos. Com uma produção já avançada e com a associação formada,
agricultores e técnicos concentram esforços na constituição da feira ecológica na
cidade de Pelotas.140

É neste contexto de confluência das demandas de várias famílias da região e de


entidades de apoio que é criada a ARPA-SUL. A proposta de formação da feira vai tomando
corpo e atingindo outros grupos e movimentos que simpatizavam com a causa. Reuniões entre
agricultores, técnicos, professores e estudantes das universidades locais, representantes do

138
A problemática do escoamento e da comercialização da produção é uma constante na realidade das
organizações de trabalho associado tanto urbanas como rurais. Vários são os gargalos do escoamento da
produção dentro da lógica do capital: Como comercializar? Com quais recursos humanos e estruturas físicas
contar? Distribuir no mercado convencional ou para o Estado por intermédio dos programas de aquisição de
alimentos (PAAs)? A questão de fundo reside nas desvantagens e contradições de se escoar a produção no
mercado convencional, o que na maioria das vezes não depende da vontade dos produtores, considerando os
ainda insuficientes instrumentos não-capitalistas de escoamento, comercialização e consumo (em que pesem
todas as a suas contradições).
139
BRUSCATTO, op. cit. 2011, p.45.
140
CRUZ, Patrícia Postali. Mapeando a rede ecológica na região de Pelotas, Rio Grande do Sul: um estudo
etnográfico sobre a organização e a construção de sentidos da rede local. 2015. 165 f. Dissertação (Mestrado em
Antropologia). Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2015, p.61-62.
78

poder público da cidade de Pelotas e região formularam as pretensões e os passos que a


comercialização de um produto saudável poderia alcançar. Neste momento, houve um amplo
envolvimento de vários apoiadores como estudantes, técnicos e professores da região de
Pelotas e

[...] também da cidade de Porto Alegre ligados à cooperativa COOLMÉIA. A ideia


inicial era realizar a feira em Porto Alegre. [...]. Entretanto, em uma visita (de
agricultores, estudantes e professores da Universidade Federal) à Feira Ecológica na
EMATER, observou-se que com a quantia de produção local seria possível efetivar
a organização da feira na cidade de Pelotas [...] teve um envolvimento muito grande
de vários apoiadores e colaboradores até a feira se efetivar.141

A principal atividade econômica da ARPA-SUL são as feiras agroecológicas de


Pelotas. A Feira foi inaugurada no final de 1995 e ocorre atualmente três vezes por semana
em locais estratégicos da cidade.

Apesar do sucesso nas vendas das primeiras feiras lá em 1995, muitos produtos
trazidos da zona rural para serem comercializados, sobravam e retornavam ao campo sem
serem vendidos ou consumidos, e parte significativa acabava sendo descartado, o que acabava
desestimulando os trabalhadores. Assim, percebeu-se a necessidade, de um espaço físico que
oferecesse produtos de uma forma variada e permanente, para um consumidor cada dia mais
adepto da agroecologia. Demonstrava-se mais coerente criar mecanismos para escoar o
excedente da produção que prosseguir com o trabalho de banca nas feiras (e neste momento já
havia uma rede sólida de consumidores dos alimentos ecológicos e algumas agricultoras já
estavam processando alimentos como geleias, bolachas, molhos etc.). Passado um ano de
atividade da banca nas feiras, cogitava-se a hipótese da abertura de um entreposto no centro
de Pelotas.

Em 1996, surgiu a iniciativa de abrir o entreposto com a finalidade de abastecer o


consumo da cidade, ou seja: um armazém. Este armazém foi incrementado com produtos
agroecológicos vindos também de outras regiões do Estado a fim de ampliar a oferta de
produtos não produzidos pelos agricultores locais. O entreposto funcionou como Armazém
em dois locais. O primeiro espaço [...] era pequeno e pouco estruturado e abrigou durante
alguns meses o entreposto. Neste momento tem-se o nascedouro da Teia Ecológica, ainda
organizada em forma de empresa e com poucos produtos para comercialização. 142

Os responsáveis pela Teia

141
CRUZ, op. cit., p.63.
142
Ibid. p.69.
79

[...] mudam a lojinha para uma casa na Rua Sete de Setembro intitulada Ponto
Verde, ali continuam com as hortaliças e, além disso, produzem pão, biscoito,
granolas para sustentar o espaço. Contavam também com o auxílio da cooperativa
COOLMÉIA para distribuição de outros produtos que ainda não tinham na região
como arroz, suco de uva, entre outros. Com o tempo a demanda de consumidores
começa a aumentar e se mudam novamente para uma casa um pouco maior na Rua
Piratinino de Almeida. Ali, além do entreposto, os militantes passam a oferecer
sopas no local e é assim que inicia a ideia de construir um restaurante somente com
produtos ecológicos. Passado um período de um pouco mais de um ano, a casa já
não comportava mais tanto consumidor.143

Até que se notou “a necessidade de adequação do manuseio dos produtos perecíveis da


feira ecológica. Era necessário que se transformassem os alimentos sem haver desperdício, e
para tanto foi necessária a criação de um restaurante e em junho de 1998 foi inaugurado o
Restaurante Teia Ecológica”.144

O restaurante foi constituído como cooperativa na sua fundação estatutária por 43


sócios fundadores. De acordo com o estatuto possui três categorias de sócios: os
trabalhadores, os produtores e os consumidores, que formam o quadro social da Teia.

Atualmente, a Teia conta com sete trabalhadores no núcleo de produção do restaurante


(seis mulheres e um homem) e o quadro atualizado registra 32 sócios entre trabalhadores,
consumidores e produtores. A adesão de novos sócios trabalhadores ocorre livremente
mediante a demanda do processo produtivo com critérios técnicos para cada setor e políticos
razoavelmente definidos (compreensão mínima sobre a temática da agroecologia). A
remuneração dos trabalhadores cooperativados se dá mediante o sistema de retirada. Com
exceção de uma trabalhadora que está em estágio probatório e tem carteira assinada pela
cooperativa, os demais trabalhadores contribuem como trabalhadores contribuintes
individuais autônomos e a contribuição junto à Previdência Social é paga pela cooperativa.
Quando questionados sobre as vantagens e desvantagens do trabalho em uma cooperativa,
todos os trabalhadores entrevistados demonstraram satisfação em relação à retirada que é bem
mais elevada que o salário mínimo comercial, mas por outro lado manifestaram preocupação
em relação às desvantagens de não ter a sua carteira assinada como numa relação assalariada
de emprego:

Acho que está todo mundo satisfeito aqui. Ganhamos bem mais do que ganharíamos
fora daqui, mesmo não tendo carteira assinada e FGTS, ganhamos bem mais.
Sabemos que seria bem melhor ter a carteira assinada. Mas a legislação das
cooperativas não facilita muito. A gente recolhe sobre aquilo que a gente ganha. No
momento que, agora mesmo uma trabalhadora vai entrar em licença maternidade e

143
CRUZ, op. cit., p.70.
144
Entrevista com trabalhadora da Teia realizada em janeiro de 2016.
80

nós fazemos o cálculo das últimas contribuições e a pessoa vai continuar recebendo
o que ganha aqui, mesmo que o benefício seja menor, a cooperativa faz a
compensação. No início não era assim, a gente pagava aquele carnezinho pelo
Salário Mínimo. Então se precisasse de licença saúde ou de aposentadoria era sobre
o salário mínimo, mesmo ganhando mais. Agora melhorou. Faz uns quatro ou cinco
anos, a gente conseguiu organizar isto aí. Precisamos quando as meninas
engravidaram e receberam o salário maternidade. É um problema, porque temos que
contratar alguém pra substituir a trabalhadora que está saindo de licença porque
somos poucos. Então a pessoa contratada entra no regime da CLT, vai receber os
benefícios da CLT, e a pessoa que saiu vai entrar no INSS prá pedir ou requerer o
auxilio maternidade. Aí o benefício dela vai ser o mesmo valor que estava ganhando
na cooperativa. Discutimos muito isso, de como arranjar a coisa da melhor forma
possível pra nós, trabalhadores. É necessário fazer a compensação mesmo que custe
ao caixa da cooperativa.145

Apesar da consciência sobre as desvantagens de não ter a carteira assinada, a


satisfação em relação a alguns relevantes direitos garantidos pela cooperativa, como as férias
anuais e a possibilidade de compensar faltas ocorridas em decorrência de problemas pessoais
com flexibilidade e compreensão dos demais colegas, aparecem em vários dos depoimentos.

Eu tive problemas com os meus dois filhos que tiveram Catapora. Eu tava faltando
muito. Estava demais, o meu pequeno ficou internado. Ficou mal mesmo. Pegou
infecção e teve muita febre, febrão de quarenta. Eu não conseguia baixar a febre. Era
véspera de Natal, 20 de dezembro e eu com o gurizinho no hospital lá. E eu só liguei
pra Francisca, e disse, não tenho como eu ir. Mas se fosse outro lugar eu estava na
rua. Outra época eu estava com muita dor de cabeça, enxaqueca mesmo, não tinha
condições. As meninas me disseram: guria tu vais embora, não tem condições de
ficar trabalhando assim. A gente chama alguém de folga pra te cobrir ou se desdobra
em trinta, quarenta.146

Apesar de não ter sido o foco desta pesquisa, um elemento de destaque em relação ao
perfil dos trabalhadores da Teia é que apesar de terem sua origem em extratos
desprivilegiados da classe trabalhadora urbana e rural, 4/5 dos entrevistados possui curso
superior e aponta que a condição diferenciada do trabalho na Teia propiciou o acesso ao
ensino superior e a conclusão do curso.

Em termos espaciais a Teia assume a formato de restaurante e seu espaço físico está
distribuído da seguinte forma: duas cozinhas, uma para a preparação de pratos verdes e
saladas e outra para a preparação dos pratos quentes; uma sala onde se localizam os buffets;
quatro salas com mesas e cadeiras para o consumo das refeições; sala para recepção e caixa;
sala com o balcão de sucos e sobremesas; área descoberta com jardim para refeições ao ar
livre; dois banheiros; escritório; área de lavanderia e dispensa. Neste sentido, a organização
do processo produtivo e a divisão do trabalho condizem com as seções próprias de um

145
Entrevista com trabalhador da Teia realizada em dezembro de 2015.
146
Entrevista com trabalhadora da Teia realizada em janeiro de 2016.
81

restaurante. Assim, todo o processo é estruturado em dois grandes setores – setor financeiro e
caixa – que são subdivididos nas seguintes funções: (a) caixa; (b) balança; (c) cozinha
(dividida em seção de saladas e seção de pratos quentes); (d) setor de sucos e sobremesa; (e)
salão e atendimento das mesas; (f) compras 147. Considerando, o número pequeno de
trabalhadores, cada tarefa é desempenhada por um/a trabalhador/a que a executa de acordo
com determinação do coletivo.

Todas as decisões são tomadas por nós mesmos, não tem outra pessoa de fora que
vai determinar o que a gente tem que fazer o que não tem que fazer. Não. A
autogestão aqui é direta. Todos. Acho que todos participam. O mais importante para
a autogestão é o comprometimento. As pessoas se responsabilizarem. Aqui dentro
mesmo, determinados setores, determinadas coisas que tem que fazer. A
responsabilidade e também se apropriar daquilo que está fazendo. Aquilo que está
fazendo pra si. 148

A coordenação de todo o processo do núcleo de trabalho do restaurante está


concentrada em dois associados, os mais antigos da cooperativa e que participaram
intensamente de todos os momentos conflituosos do passado. A divisão de papéis dentro da
cooperativa implica numa pequena diferença de remuneração. As duas coordenações recebem
20% a mais que os demais trabalhadores. Constatou-se a existência de debate coletivo sobre a
as diferenças, que são justificadas e aceitas por todos os entrevistados em razão das distintas
responsabilidades exercidas.

A carga horária de trabalho na Teia se aproxima das 40 horas semanais, com alguma
margem de variação, considerando que não há um horário rígido de entrada e saída, pois não há
registro de ponto. As atividades iniciam-se por volta das 8h e terminam em torno das 15h. O
horário de ingresso e de saída depende do contexto de vida do cooperado. Algumas trabalhadoras
precisam levar seus filhos à creche ou a escola, tendo a possibilidade de chegar mais tarde e sair
mais cedo.

Em relação aos processos deliberativos, todos os trabalhadores entrevistados


comentaram que as reuniões, muito frequentes em tempos passados, estão bem mais
esporádicas no presente e que as divergências são resolvidas dentro do processo da
organização do trabalho.

[...] no dia a dia a gente vai vendo as coisas que vão acontecendo, a gente conversa e
já de imediato, já tenta resolver. Claro que uma coisa mais complexa, uma pintura
na casa, uma coisa mais estrutural que demanda mais dinheiro, aí a gente faz uma
reunião. O que pode e o que não pode, quem vai chamar. E tem a reunião mensal

147
Entrevista com trabalhadora da Teia realizada em janeiro de 2016.
148
Idem.
82

assim da coordenação que é pra relatar o que foi feito o que não foi feito. Nós temos
assembleias uma vez por ano. Chamamos todos os sócios, faz um relato do ano da
cooperativa, e o que a gente pretende fazer nos próximos anos, faz um balanço
geral.149

Todos os trabalhadores entrevistados enfatizaram a ocorrência de um passado muito


conflituoso especialmente atribuído à “falta de compreensão do processo do trabalho coletivo,
das suas desvantagens e vantagens”. 150 Com o passar dos anos os trabalhadores menos
alinhados a proposta do restaurante foram saindo e a identidade do coletivo se fortaleceu.

Os trabalhadores cumprem o definido pelo coletivo. De vez em quando a gente meio


que se desentende, ficamos uns olhando meio feio pros outros, mas acaba sempre se
entendendo. Talvez isto seja o bom da cooperativa. Todo mundo tem a ideia de ser o
dono. Então tem que fazer. Não adianta, querer empurrar tudo com a barriga. Tu
tens que fazer. É diferente de um lugar onde há um patrão. O patrão define e
dependendo do jeito como tu estás com o teu patrão, vai naquele remancho, vai
remanchando... Remanchando... Fazendo só o básico do básico. Aqui não, aqui não
dá prá fazer assim. Porque como tu és o dono, tu ta te prejudicando. Então não dá
prá ser deste jeito. Tu tens sempre que trabalhar o máximo. E da melhor forma
possível prá aquilo poder render da melhor forma prá todo mundo, pro coletivo. 151

As reuniões da produção são realizadas mensalmente, ao final do expediente de sábado,


que termina mais cedo. Nestas são discutidos os problemas da produção, é feita uma avaliação
dos encaminhamentos das reuniões passadas e algum ponto de pauta específico.

Aqui se faz reunião do núcleo de produção uma vez por mês. Está tudo tão certinho,
ta tudo tão encaixadinho. Também não vai ficar massacrando, reunião toda semana é
demais. A gente chega a fazer duas horas reunião. O pessoal cansado louco pra ir pra
casa. Outra coisa, é que já nos conhecemos bastante, aqui a gente se considera uma
família. Um olha pro outro e a gente já sabe. Já tem coisa errada. Então nesta
questão melhorou muito. Pode perguntar pro pessoal, melhorou muito. O respeito, a
valorização do trabalho melhorou muito. Aquele negócio que eu tava te dizendo que
era valorizar as pessoas, A credibilidade pra tocarmos os setores e a cooperativa,
isso aí ajuda muito. O pessoal se sente valorizado. Melhorou bastante nos últimos
seis anos prá cá. Não dá pra comparar porque não tem como. Dá pra sentir que tá
legal. Eu acho que está bom, o clima está bom pra trabalhar. Quando eu vim prá cá,
faz seis anos, agora em fevereiro, os trabalhadores trabalhavam chorando, é ruim
não? Aquela época deu até polícia, inquérito policial com delegado e tudo. Eu vim
aqui pra ficar um mês e fiquei seis anos. Fui eleito, o pessoal gostou do meu trabalho
e fiquei. E agora eu gosto daqui. Não gostava, não gostava. 152

Em relação à organicidade, a cooperativa tem todos os órgãos obrigatórios pela


legislação cooperativa brasileira: Assembleia Geral, Conselho de Administração e Conselho

149
Entrevista com trabalhadora da Teia realizada em janeiro de 2016.
150
Idem.
151
Idem.
152
Entrevista com trabalhador da Teia realizada em dezembro de 2015.
83

Fiscal. Além destes órgãos obrigatórios, o estatuto dispõe sobre a criação de um Conselho de
Educação e Pesquisa e um Conselho de Representantes.153

As Assembleias Gerais são as instâncias mais amplas de discussão e deliberação: a


Ordinária ocorre anualmente entre os meses de janeiro e março; as Extraordinárias ocorrem
sempre que necessário e podem deliberar sobre qualquer assunto. Das assembleias participam
todos os sócios: consumidores, produtores e trabalhadores. Mediante a análise das atas e dos
relatos, constata-se que a participação dos consumidores e produtores tem sido muito
importante nos momentos mais decisivos da cooperativa, especialmente quando foi
encaminhada proposta de dissolução desta por parte de alguns associados154. A gestão da
Cooperativa é realizada pelo Conselho de Administração Autogestionário composto por sete
membros: coordenador geral, coordenador de tesouraria, coordenador da secretaria geral,
coordenador da tesouraria, coordenador da secretaria geral, coordenador da secretaria cultural
e três associados do conselho de representantes, atuando cada um em nome das três categorias
de associados (trabalhadores, produtores e consumidores); todos eleitos para um mandato de
três anos, com renovação obrigatória de no mínimo 3/7 dos integrantes. O conselho fiscal que
tem a tarefa de fiscalizar as operações da cooperativa é composto por seis membros (três
efetivos e três suplentes).

Dentre os órgãos não obrigatórios, merecerem destaque: o conselho de educação e


pesquisa e o conselho de representantes. O conselho de representantes tem a finalidade de
qualificar a participação e integração das três categorias de associados na gestão da
cooperativa: produtores, consumidores e trabalhadores. O conselho de educação e pesquisa,
composto por quatro membros (três efetivos e um suplente), tem as seguintes tarefas: planejar
as atividades de formação e pesquisa da cooperativa; participar das atividades formativas de
movimentos cooperativistas e ecologistas; promover a integração da cooperativa junto à
comunidade; coordenar a admissão de novos associados; promover a reflexão teórica e prática
da autogestão dos conselhos e categorias de associados; acompanhar a organização dos
associados em núcleos de trabalhos do conselho de representantes.

Constatou-se que os consumidores e os produtores formam dois grupos importantes na


dinâmica da cooperativa especialmente nos momentos delicados. No entanto, “sempre
tiveram dificuldade de cumprir o seu papel político de expansão da proposta agroecológica e

153
Estatuto Social da Cooperativa de Consumo, Trabalho e Produção Teia Ecológica Ltda.
154
O momento mais crítico da história da cooperativa ocorreu entre 2010-2011, quando a proposta de dissolução
desta foi apresentada como única solução, mas foi derrotada em assembleia.
84

155
de práticas formativas para a autogestão,” conforme dispõe o estatuto social. Assim, a
participação dos consumidores fica adstrita às assembleias anuais e ao consumo; enquanto
que o papel dos produtores acaba ficando limitado ao abastecimento.

Em relação às atividades formativas de cunho técnico e político, todos os entrevistados


comentaram a existência de atividades do tipo no passado da cooperativa e lamentaram a
inexistência de oferta de atividades no momento atual.

Estou aqui há quatro anos, então eu não peguei esta fase da Teia que tinha cursos.
Uma vez até perguntei pra uma colega como é que era. Porque ela é uma das mais
antigas. Então tinham muitos cursos logo que começou a teia, pra poderem entender
tudo o que acontecia no mundo. Eles faziam muitos cursos, agora já não fazem mais
tanto. Agora parece que a coisa já solidificou e as pessoas já sabem como trabalhar.
Já sabem o que querem. Já sabem entender o que é uma cooperativa, a economia.
Então já não se faz tanto. Então a gente acaba conversando. Tem três colegas, (os
mais antigos) que comentam muito [...] de vez em quando fazemos algum curso na
área de cozinha, que alguma entidade oferece. Agora deixa eu ver, estamos em
janeiro, eu acho que foi novembro, setembro [...] teve cursos mais direcionados para
a área de turismo. Que foi o pessoal aqui do curso de turismo e hotelaria que deu.156

Em relação às práticas comunicativas, por se tratar de um coletivo pequeno, a


comunicação interna funciona basicamente pela oralidade e por meio de um mural localizado
no salão do restaurante, que está sempre com avisos e convites para atividades relacionadas à
temática da agroecologia e das demandas de movimentos populares. Nas paredes do
restaurante estão afixadas diversas imagens e diagramas educativos; a decoração simples e
natural submete os consumidores a um contato direto com vários elementos da vida
camponesa. Além disso, a Teia possui um perfil numa rede social que é atualizado
quinzenalmente por uma trabalhadora, no qual são exibidas fotos do núcleo de trabalhadores
durante o processo produtivo, receitas culinárias, eventos e novidades com protagonismo dos
trabalhadores no processo criativo. A inexistência de publicações impressas ou digitais com
alcance externo como panfletos, boletins, revistas, livros, zines dificulta a captação da
intencionalidade do sujeito coletivo Teia Ecológica. Contudo, a totalidade de trabalhadores
entrevistados manifestou afeição às pautas progressistas ou de esquerda.

Apesar do isolamento territorial das suas atividades econômicas produtivas, que se


concentram exclusivamente na sede do Restaurante, a cooperativa demonstra alguma
tendência com vistas à integração socioprodutiva com outras OTAs e redes de OTAs,
especialmente na ampliação de canais alternativos para o escoamento dos alimentos
produzidos, em especial dos produtos panificados.
155
Conversa informal com associado-consumidor da Teia ocorrida em abril de 2016.
156
Entrevista com trabalhadora da Teia realizada em janeiro de 2016.
85

A cooperativa mantém relação direta com alguns atores que defendem a bandeira da
agroecologia. No fornecimento dos alimentos que abastecem o restaurante estão envolvidas
cerca de 200 famílias de camponeses da região, muitas destas organizadas em cooperativas e
associações como a Arpa-sul e a Sul Ecológica (Cooperativa Sul Ecológica de Agricultores
Familiares Ltda.) assim como movimentos sociais e populares como o MPA (Movimento dos
Pequenos Agricultores) e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra).

A Teia é associada fundadora da Associação Bem da Terra, que desde 2007 passou a
construir a Rede Bem da Terra – Comércio Justo e Solidário.157 A Rede fomenta o
desenvolvimento estratégico de estruturas de comercialização, de compras coletivas de
insumos e sementes para a produção, tecnologias para incentivar o consumo consciente e
politizado da população, além de prestar assessoramento técnico e formação política aos
grupos que a compõem. Apesar de ser uma participação ainda pontual, o envolvimento da
Teia nas atividades da Rede Bem da Terra pode sinalizar futuramente para uma maior
integração socioprodutiva das suas atividades às de outros sujeitos coletivos 158.

O histórico da Teia aponta a existência pretérita de relações políticas mais orgânicas


com outras OTAs, movimentos sociais e populares, partidos políticos, sindicatos, entidades de
apoio. O mesmo se confirma no que se relaciona às atividades de integração sociopolítica com
as famílias dos trabalhadores e a comunidade local. Os relatos dos trabalhadores também
denotam uma participação política mais ativa dos trabalhadores nas pautas do movimento
agroecológico ou nas atividades políticas de parceiros da Cooperativa. Conforme relatado
pelos trabalhadores, a estabilidade financeira ocasionada pela boa inserção do restaurante no
mercado e pela consolidação das relações de trabalho forjadas no processo de autogestão ao
longo dos anos podem ter contribuído para o arrefecimento destas atividades.

A cooperativa mantém o restaurante funcionando de segunda a sábados, com um


cardápio ovo-lacto-vegetariano, ou seja, utiliza ovos e leite, produtos de origem animal, na
preparação dos alimentos, mas não utiliza a carne sob nenhum aspecto. A Teia oferece
aproximadamente 4000 refeições mensais aos seus clientes e sua clientela é muito
157
A Associação Bem da Terra reúne 30 empreendimentos solidários nas cidades de Pelotas, Canguçu, Capão do
Leão, Pedras Altas e Piratini e várias entidades apoiadoras tanto públicas como privadas. São grupos produtivos,
associações e cooperativas de pequenos produtores rurais agroecológicos, de artesãos, de assentados da reforma
agrária, de pescadores, enfim, de diferentes ramos de produção, que somam aproximadamente 350 produtores.
Os empreendimentos associados representam cerca de 850 produtores/trabalhadores, e estão articulados em
distintas frentes e bandeiras de lutas como a produção orgânica e agroecológica, a segurança e soberania
alimentar, o acesso à terra e à reforma agrária, geração de emprego e renda, saúde mental, permacultura, pesca
artesanal etc. Sobre a Associação Bem da Terra e a Rede Bem da Terra, veja-se seção 2.1.4. - Núcleo de
produção das artesãs da Associação Bem da Terra, na parte final neste capítulo.
158
Página da Rede Bem da Terra. Disponível em: <bemdaterra.org>. Acesso em: 22 out. 2015.
86

diversificada, abrangendo distintas idades e classes sociais. Durante uma conversa informal
com um trabalhador do caixa da Teia este manifestou preocupação com a elitização de
propostas como a da Teia,

estamos congelando os preços e mantemos quase 10% abaixo dos valores das
propostas similares à nossa na cidade. Não porque sejam nossos concorrentes e
queremos oferecer um preço mais baixo. Mas porque queremos que o trabalhador
também possa comer comida sem veneno. Teremos que pensar em estratégias para
atrair a classe trabalhadora no futuro.159

A descrição e a análise feita até aqui permitem avaliar a relevância de diversos


elementos objetivos e subjetivos particulares da territorialidade de Pelotas para o surgimento
da Teia Ecológica; elementos historicamente construídos e diretamente impulsionados pelos
avanços e pelas dificuldades das experiências de trabalho associado e dos próprios
camponeses da região.

Percebe-se também que com o surgimento da agroecologia as pautas pontuais iniciais,


alicerçadas principalmente na permanência na terra, na manutenção do trabalho agrícola
familiar e na reconfiguração da identidade camponesa; avançam para questões ligadas ao
modo de produzir, buscando uma maneira diferenciada ao que era até então realizado. O
movimento agroecológico que começa a se forjar na região foi mola propulsora para que os
grupos de agricultores familiares começassem a direcionar os esforços para a formação
técnica e política das famílias no sentido de uma produção agrícola ecológica. O que
influenciou de maneira contundente o surgimento da Cooperativa Teia Ecológica.

2.1.3.1 A agroecologia de base popular

A agroecologia como paradigma agrícola é uma construção recente. Pode ser definida
como “um conjunto de conhecimentos sistematizados, baseados em técnicas e saberes
tradicionais (dos povos originários e camponeses) que incorporam princípios ecológicos e
valores culturais às práticas agrícolas que, com o tempo, foram desecologizadas e
160
desculturalizadas pela capitalização e tecnificação da agricultura” . Para compreender as
condições para o surgimento da agroecologia, tanto em termos conceituais como bandeira de
luta política, é crucial entender a questão ecológica como uma das principais expressões da

159
Entrevista com trabalhador da Teia realizada em dezembro de 2015.
160
LEFF, Enrique. Agroecologia e saber ambiental. In: Agroecologia e Desenvolvimento Rural sustentável, Porto
Alegre, v. 3, n. 1, jan.-mar. 2002, p.42, apud GUBUR, Dominique Michèle Perioto; TONÁ, Nilciney.
Agroecologia. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO,
Gaudêncio. (orgs.). Dicionário de Educação no campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
87

crise estrutural do capital. Para além de circunstâncias meramente conjunturais, a


permanência dos camponeses no campo e sua reprodução social, encontram-se drasticamente
ameaçadas pelo modelo tecnológico hegemônico que é, em escala global, a base de
sustentação do agronegócio. Chesnais e Serfati denunciam que

[...] hoje em dia, por trás de palavras como „ecologia‟ e „meio ambiente‟, encontra-
se nada menos do que a perenidade das condições de reprodução social de certas
classes, de certos povos e, até mesmo, de certos países. Como esses estão, mais
frequentemente, situados seja no que se denomina, hoje, de „Sul‟ ou no antigo
„Leste‟, a ameaça parece longínqua e, portanto, abstrata nos países do centro do
capitalismo mundial. [...] Os grupos industriais e os governos dos países da OCDE
tiram, amplamente, partido desse fato para difundir a ideia de que a degradação das
condições físicas da vida social faria parte dos males „naturais‟ a que alguns povos
seriam chamados a submeter-se. Para esses seria uma infelicidade suplementar. 161

De acordo com Leite e Medeiros162, o termo agronegócio, de uso relativamente recente


em nosso país, guarda correspondência com a noção de agribusiness, cunhada pelos
professores norte-americanos John Davis e Ray Goldberg163 nos anos 1950, no âmbito da área
de administração e marketing. O termo foi criado para expressar as relações econômicas
(mercantis, financeiras e tecnológicas) entre o setor agropecuário e aqueles situados na esfera
industrial (tanto de produtos destinados à agricultura quanto de processamento daqueles com
origem no setor), comercial e de serviços. Para os introdutores do termo, tratava-se de criar
uma proposta de análise sistêmica que superasse os limites da abordagem setorial então
predominante.

Assim, o agronegócio é cada vez mais associado ao desempenho econômico e à


simbologia do progresso, enquanto as relações sociais que lhe dão carne são ofuscadas.

A generalização da Revolução Verde164 levou a um avanço na divisão social do


trabalho entre a indústria e a agricultura: à agricultura restou apenas a tarefa de produzir
matéria prima para a agroindústria, a partir de insumos e máquinas fornecidos pela indústria.
Assim, aprofundou-se a separação entre concepção/planejamento e execução, separação cujo

161
CHESNAIS, François; SERFATI, Claude. “Ecologia” e condições físicas de reprodução social: alguns fios
condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo, v.1, n.16, 2003. Disponível em:
<www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo9539_merged.pdf>. Acesso em: 29 dez. 2015.
162
LEITE, Pereira Sérgio; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. In: CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel
Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio. (orgs.). Dicionário de Educação no campo. Rio de
Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Expressão Popular, 2012.
163
DAVIS, John; GOLDBERG, Ray. A Concept of Agribusiness. Boston: Division of Research, Graduate
School of Business Administration, Harvard University, 1957.
164
A revolução verde ocorre no Brasil e em muitos países do mundo a partir de 1950, com a introdução em larga
escala de inovações com vistas à alta produtividade agrícola. Pode ser entendida como um pacote tecnológico -
insumos químicos, sementes de laboratório, irrigação, mecanização, grandes extensões de terra – conjugado ao
difusionismo tecnológico, bem como a uma base ideológica de valorização do progresso.
88

objetivo é dar à direção capitalista do processo de trabalho os meios para aproximar-se de


165
todos os conhecimentos práticos até então monopolizados pelo trabalhador. Além disso, o
sistema de registro de patentes e a transgenia retiram dos agricultores o controle sobre as
sementes e sobre a produção no campo em benefício das grandes corporações, que, com sua
tendência a controlar áreas cada vez mais extensas dos países, são peças fundamentais no
regime de acumulação financeira que caracteriza a mundialização do capital. Tal processo de
concentração é marcado também pela verticalização sociometabólica do capital, ou seja: os
grandes grupos controlam hoje toda a cadeia, desde a produção de insumos e sementes, o
armazenamento, o beneficiamento e a comercialização final.

A expansão do agronegócio tem levado à reprodução de formas degradantes de


trabalho. Assim, “há uma interconexão entre as agressões ecológicas e as agressões contra as
condições de existência dos produtores diretos.” 166

Embora tenha havido uma redução de mão de obra no setor agrícola, o emprego do
trabalho assalariado em atividades braçais está longe de desaparecer. Mesmo culturas que são
mecanizadas demandam mão de obra para recolher os restos deixados pelas máquinas, para o
plantio de mudas ou para o combate de pragas. Consolidou-se um mercado de trabalho
composto por trabalhadores permanentes e temporários (compostos por segmentos
qualificados de mão de obra e por trabalhadores altamente precarizados, boa parte destes
vivendo nas periferias das cidades polo do agronegócio). 167

É neste contexto que a reprodução social dos camponeses passa a exigir uma mudança
na maneira de produzir, motivando experiências de resistência ao modelo do agronegócio.

O debate sobre a agroecologia parece ter surgido na década de 1930 dentro das
universidades, como sinônimo de ecologia aplicada à agricultura. O uso do termo se
popularizou nos anos 1980, a partir dos trabalhos de Miguel Altieri168 e, posteriormente de
Stephen Gliessman169, que seriam expoentes da vertente americana da agroecologia. Outra
fonte importante é escola europeia, que surge em meados dos anos 1980 na Espanha, e

165
GUBUR; TONÁ, op. cit.
166
Ibid. p.58.
167
LEITE; MEDEIROS, op. cit.
168
ALTIERI, Miguel. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de Janeiro: PTA/Fase,
1989.
169
GLIESSMAN, Stephen R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável. Porto Alegre:
Universidade-Editora da UFRGS, 2000.
89

representa uma agroecologia de viés sociológico, que busca inclusive uma caracterização
agroecológica do campesinato.170

No Brasil, a contestação à Revolução Verde surgiu com o movimento da agricultura


alternativa do final da década de 1970, mas permaneceu inicialmente restrita a um pequeno
grupo de intelectuais, em sua maioria profissionais das ciências agrárias. José Lutzemberger,
Adilson Paschoal, Ana Primavesi, Luiz Carlos Pinheiro Machado e Sebastião Pinheiro são
alguns dos pioneiros da crítica à revolução verde no Brasil, que tem nas organizações não
governamentais (ONGs), a partir dos anos 1990, a principal agência de disseminação da
agroecologia. 171

Já naquela época surgia o alerta em relação ao biobusiness (ou bionegócio), pois na


medida em que se ampliaram as resistências ao padrão de agricultura capitalista tributários da
Revolução Verde, os termos agroecológico e sustentável passaram a ser disputados por
setores representantes dos interesses capitalistas mais ferozes e que patrocinam a depredação
da natureza.

Não se devem confundir os estilos de agricultura alternativa com a agroecologia, ou


mesmo com a agricultura de base ecológica, que se baseia em orientações e princípios
políticos mais amplos ao passo que os objetivos das agriculturas alternativas (orgânica,
biológica, natural, biodinâmica, dentre outras) podem estar limitados a atender a um nicho de
mercado ecologizado e por vezes elitizado: “temos hoje, tanto algumas agriculturas familiares
ecologizadas, como a presença de grandes grupos transnacionais que estão abocanhando o
mercado orgânico em busca de lucro imediato, como vem ocorrendo com os chamados
alimentos corporgânicos. 172

De acordo com Leff173, a agroecologia se encaixa no contexto de uma economia


política do ambiente.

Frente à transformação da geopolítica de uma economia ecologizada que hoje em


dia revaloriza o sentido conservacionista da natureza - reabsorve e redesenha a
economia natural dentro das estratégias de mercantilização da natureza -, reduzindo
o valor da biodiversidade em suas novas funções como provedora de riqueza
genética de valores cênicos e ecoturísticos e de sua capacidade de absorção de
170
GUBUR; TONÁ, op. cit.
171
Ibid.
172
CAPORAL, Francisco Roberto; COSTABEBE R, José Antônio. Agroecologia: alguns conceitos e princípios.
Brasília: MDA–SAF–Dater-IICA, 2004, p.9. Disponível em: <https://www.socla.co/wp-content/uploads/2014/
Agroecologia-Conceitos-e-princpios1.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2016.
173
LEFF, Enrique. Agroecologia e saber ambiental. In: Agroecologia e Desenvolvimento Rural sustentável, Porto
Alegre, v. 3, n. 1, jan.-mar., 2002, p.40. Disponível em <http://www.emater.tche.br/site/sistemas/adminis
tracao/tmp/958934218.pdf>. Acesso em: 12 jan. 2016.
90

carbono, a Agroecologia se encrava no contexto de uma economia política do


ambiente. Desta maneira, devolve o sentido à força de trabalho como labor
produtivo que trabalha com forças da natureza, onde o trabalho, dentro de m
conjunto de práticas, não só é conduzido por saberes e conhecimentos práticos, mas
por uma teoria que os envolve em uma estratégia política que os conduz e os faz
valer, frente às valorizações crematísticas da produtividade econômica e tecnológica
de curto prazo.

Estes e outros artifícios são empregados massivamente pelo capital na construção de


uma imagem positiva do agronegócio perante a opinião pública que reflete diretamente no
debate político, que também incide na discussão sobre o tamanho que o agronegócio
realmente tem na economia brasileira: “por trás dessa guerra metodológica e de números,
esconde-se uma disputa pelos recursos públicos, tão mais legitimada quanto maior for o peso
que se atribui ao agronegócio”.174

O avanço deste modelo agrícola é tão danoso que na medida em que o termo
agronegócio se impõe como símbolo da modernidade, passa a ser identificado, pelas
organizações populares como o novo inimigo a ser combatido, já que o próprio paradigma
produtivo apaga o latifúndio improdutivo do cenário agrário, ao menos de acordo indicadores
econômicos de produtividade (que são os únicos indicadores analisados pelo Sistema de
Justiça).

Assim, a agroecologia não pode ser considerada o mero desenvolvimento de


experiências alternativas de base ecológica. Isso desproveria a agroecologia do seu conteúdo
político, como um novo projeto de campo e sociedade, e ofuscaria variados processos de
organização política existentes em torno do tema.

No final dos anos 1990 os movimentos populares do campo, em especial aqueles


175
vinculados à Via Campesina incorporaram o debate sobre a Agroecologia à sua agenda
política e passaram a contribuir de forma incisiva, desenvolvendo ações diretas e campanhas,
plataformas, eventos e pesquisas importantes.

Dentre os eventos e plataformas destacam-se: a Jornada de Agroecologia, realizada


anualmente no Paraná, com os seguintes lemas - Cuidando da terra, Cultivando a

174
LEITE; MEDEIROS, op. cit., p.84.
175
A Via Campesina é um movimento internacional que reúne milhões de camponeses, pequenos e médios
produtores , pessoas sem terra, povos indígenas, imigrantes e trabalhadores rurais em todo o mundo. Defende a
agricultura sustentável em pequena escala, como forma de promover a justiça social e a dignidade. A Via se opõe
fortemente ao agronegócio e às multinacionais e reune cerca de 164 organizações locais e nacionais em 73 países
na África, Ásia, Europa e América. No Brasil,estão na Via o Movimentos dos Trabalhadores Sem Terra, o
Movimento dos Pequenos Agricultores, o Movimento das Mulheres Camponesas, o Movimentos dos Atingidos
por Barragens etc. Ao todo, representa cerca de 200 milhões de pessoas . É um movimento autônomo , pluralista
e multicultural. Disponível em <http://www.viacampesina.org/>. Acesso em: 20 out. 2015.
91

Biodiversidade e Colhendo soberania alimentar; Terra Livre de Transgênicos e Sem


Agrotóxicos; Por um Projeto Popular e Soberano para a Agricultura; o Dia Mundial pela
Luta Camponesa, realizado no dia 17 de abril em memória do massacre de Eldorado dos
Carajás; o Encontro Nacional de Agroecologia que desde 2002 realiza a articulação nacional
das organizações em defesa da agroecologia; o Congresso Brasileiro de Agroecologia; a
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA); e a Associação Brasileira de Agroecologia
(ABA).

Em relação às campanhas distinguem-se: a campanha permanente contra os


agrotóxicos e pela vida, protagonizada por movimentos sociais, universidade e instituições de
pesquisa, inclusive da área da saúde com objetivo de sensibilizar a população brasileira para
os riscos que os agrotóxicos representam; e a campanha sementes patrimônio dos povos a
serviço da humanidade 176, lançada em 2003 pela Via Campesina durante o III Fórum Social
Mundial em 2003, em defesa da soberania alimentar dos povos e promoção da agroecologia
como estratégia produtiva camponesa na defesa dos territórios, valorização das culturas e dos
conhecimentos locais.

A expressão da bandeira da agroecologia como ação direta pode ser ilustrada também
por diversas atividades nacionais e internacionais como a ocupação de terras para
assentamento, de prédios públicos e as marchas pelas rodovias e cidades. Nas últimas décadas
tem ganhado evidência às ocupações em grandes propriedades privadas pertencentes a
algumas multinacionais e a grandes grupos empresariais do Agronegócio. Neste sentido,
ganhou vulto a ocupação do viveiro florestal de mudas da multinacional Aracruz Celulose no
Rio Grande do Sul por 1800 mulheres da Via Campesina, com a destruição de mudas ilegais
de eucalipto transgênico, como parte das atividades do dia internacional da mulher em 2006; e
a ocupação da Fazenda Pompílio na região de Palmeira das Missões/RS por cerca de 2000
jovens e a destruição plantas de milho transgênico, como parte do 14° Acampamento Latino-

176
Nesse contexto, destaca-se a criação da Bionatur em 1997, como uma das principais iniciativas do MST na
área do resgate, melhoramento, multiplicação e distribuição de sementes agroecológicas. A Bionatur não
trabalha com híbridos e se estruturou como a primeira empresa social da América Latina dedicada à produção e à
comercialização de sementes agroecológicas de hortaliças. As sementes são produzidas por famílias camponesas
que empregam processos agroecológicos. As sementes são exclusivamente de variedades possibilitando, caso
seja viável pelas condições naturais, que os agricultores que as utilizam possam multiplicá-las, não necessitando
comprá-las anualmente. A meta é que a produção passe a ser um componente integrado aos sistemas de
produção de um grande número de famílias e de assentamentos, criando novas possibilidades econômicas. A
comercialização das sementes é realizada por intermédio de organizações populares e sindicais simpatizantes da
reforma agrária e da agricultura camponesa e comprometidos com a agroecologia.
92

Americano da Juventude CLOC - Via Campesina (Coordenação Latino-americana das


Organizações do Campo).

Estes e outros movimentos dão um novo sentido ético à agroecologia, incorporando


estratégias de luta política que dialogam com outras pautas estratégicas, e especialmente por
denunciar que: as soluções empresariais, ancoradas na matriz tecnológica, são falsas e não
resolverão a crise ambiental.

2.1.3.2 Autogestômetro da Teia Ecológica

A seguir segue o autogestômetro institucional, relativo à Cooperativa Teia


Ecológica.177

177
Veja-se os indicadores institucionais no Quadro 5, Capítulo 1.
93

Figura 9 – Autogestômetro institucional – OTA 3 – Cooperativa Teia Ecológica


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
94

2.1.4 Núcleo de produção das artesãs da Associação Bem da Terra 178

A quarta OTA pesquisada trata-se do Núcleo de Produção das Artesãs da Associação


Bem da Terra. O Núcleo de Produção (NP) é um coletivo composto por 10 artesãs e foi
constituído há aproximadamente dois anos no interior da Associação Bem da Terra, que
consiste numa associação civil de fins não lucrativos que congrega Empreendimentos de
Economia Solidária (EES) da região sul do Rio Grande do Sul. Apesar de ser formado por
trabalhadoras de empreendimentos da Associação Bem da Terra, o NP possui organicidade
própria, ou seja, pode ser considerado como um empreendimento independente, no qual toda
a gestão e organização do trabalho são determinadas pelas próprias trabalhadoras no local de
trabalho, sem qualquer ingerência por parte da Associação. No entanto, antes da análise do
NP, é imprescindível compreender o contexto do seu surgimento no interior da Associação
assim como o contexto de criação da própria Associação Bem da Terra.

A Associação Bem da Terra surgiu na cidade de Pelotas em outubro de 2007 como


uma rede informal. Inicialmente contava com a participação de 14 empreendimentos (urbanos
e rurais), e foi consolidada com o apoio do Núcleo de Economia Solidária da Universidade
Católica de Pelotas (NESIC/UCPEL), do Fórum Microrregional de Economia Solidária e da
Associação Cultural RádioCom 104.5 FM. No ano de 2009 os empreendimentos
formalizaram a criação da Associação Bem da Terra, que representa oficialmente a Rede Bem
da Terra. De acordo com o seu sítio oficial, a Associação tem como objetivo:

[...] desenvolver a economia solidária na microrregião sul do Rio Grande do Sul,


através da difusão dos princípios e práticas do comércio justo e do consumo
solidário, da construção de estruturas de comercialização compartilhadas entre os
empreendimentos e da realização de projetos e programas de formação e
assessoramento para os coletivos de produção. 179

A Associação Bem da Terra nasceu como resultado direto de uma pesquisa-ação


desenvolvida por um Grupo de Pesquisa formado pelos empreendimentos fundadores e pelo
NESIC/UCPEL entre os anos de 2007-2009. Nesse período, os pesquisadores-trabalhadores
visitaram empreendimentos de comércio justo e solidário (como a Cooesperança, em Santa
Maria/RS e o Mundo Paralelo, em Porto Alegre/RS) e estudaram algumas experiências

178
Além dos instrumentos de pesquisa já mencionados, as informações referentes ao Núcleo de Produção foram
obtidas mediante a observação participante/militante em inúmeras visitas realizadas ao empreendimento na
condição de apoiador da Associação Bem da Terra. Também contribuiu sobremaneira o trabalho de
assessoria/incubação realizado junto à Associação entre os anos de 2010-2016.
179
ASSOCIAÇÃO BEM DA TERRA, 2015. Disponível em: <http://bemdaterra.org/content/bem-da-terra/>.
Acesso em: 10 set. 2015.
95

exitosas (como o supermercado Eróski, em Mondragón/País Basco/Espanha, o Centro de


Abastecimento Comunal El Galpón, em Buenos Aires/Argentina e o CEPESI – Centro
Público de Economia Solidária, em Itajaí/SC). A pesquisa aprofundou estudos sobre o
comportamento dos consumidores e através de oficinas que buscavam resgatar as experiências
de comercialização dos próprios empreendimentos envolvidos, tentou construir um perfil para
o consumidor solidário atual. 180

As muitas reuniões de trabalho terminaram por desenhar um modelo que pareceu ao


grupo como o projeto apropriado para ser coletivamente construído, e que levou em
consideração as seguintes especificidades:

(a) as feiras são importantes, mas não são ideais: elas demandam muito tempo de
organização, custos muito grandes de logística e deslocam os produtores da
produção, que são obrigados a fazer também sua própria comercialização;
(b) os consumidores solidários são os mais exigentes: eles reúnem as características
básicas de um consumidor convencional (querem praticidade: a maior variedade
possível de produtos num mesmo lugar, de fácil acesso e com instalações
confortáveis, de preferência com preços compatíveis aos dos produtos
convencionais) com as características do consumo consciente (os produtos devem
ser saudáveis, produzidos de forma sustentável e com trabalho solidário);
(c) a gestão da comercialização não pode ser exercida apenas pelos produtores, pois
nesse caso o empreendimento deixa de ser autogestionário: os trabalhadores viram
meros empregados. Também não é possível deixar apenas nas mãos dos
trabalhadores: seus interesses podem acabar subordinando as necessidades dos
empreendimentos. Portanto, é necessário ter pessoas especializadas no processo de
comercialização, cujos rendimentos dependam da sua eficiência profissional, mas
que por outro lado não percam de vista a relação do empreendimento com a
economia solidária;
(d) os produtos oferecidos, além de grande variedade, devem estar preocupados com
sua qualidade – devem atender as exigências dos consumidores, em todas as suas
dimensões. A produção, portanto, deve ser qualificada;
(e) O layout dos espaços de comercialização deve ser coerente com a proposta:
devem servir como um espaço de sociabilidade entre produtores, trabalhadores e
consumidores, de cada um deles com seus próprios pares. 181

Após estas reflexões, a proposta final propôs espaços com as seguintes características:

[...] pontos fixos de comercialização; operados por pessoas especializadas em


comprar dos grupos e vender aos consumidores e que evite esquemas de
consignação; co-geridos (50% a 50%) entre trabalhadores e representantes dos
empreendimentos; com estruturas de participação direta dos consumidores; com
produtos ofertados com a máxima variedade, saudáveis, sustentáveis e solidários;
com espaços que privilegiem a sociabilidade entre seus frequentadores; com
informação abundante sobre todas as etapas do processo: produção, distribuição,
consumo; que permita um intercâmbio regional com baixos custos, “importando”

180
Documentos internos da associação Bem da Terra como atas de reunião, projetos e convênios executados.
181
Idem.
96

produtos da economia solidária que não são oferecidos na região (café, erva-mate,
açúcar, banana etc.). 182

Por conseguinte, os trabalhadores avançaram em direção à concretização da proposta:


formalizaram uma associação, criaram um nome e uma marca, e passaram a realizar uma
atividade experimental – uma feira mensal nas imediações da universidade, que atenderia a
um público muito variado (como um passo de dupla acumulação: social e econômica). 183

A Associação foi registrada em 2010 e seu estatuto define os seguintes objetivos:

[...] reunir, congregar e fomentar empreendimentos que atuam na perspectiva da


economia solidária, incentivando-os nas práticas de autogestão e comercialização de
seus produtos, e para tanto: I – organizando cursos de formação nas áreas de: (a)
economia solidária; (b) processos participativos; (c) gestão cooperativa; (d)
adequação sócio-técnica e tecnologias apropriadas; (e) educação popular; II –
estimulando a organização dos empreendedores solidários para a formação de
parcerias e redes de comercialização, incluindo-se aí o compartilhamento de: (a)
estruturas físicas e jurídicas; (b) assessorias e consultorias; (c) propriedade de
marcas e/ou empresas consistentes com seus objetivos. 184

Atualmente, o Bem da Terra é uma associação da qual fazem parte associações,


cooperativas e grupos informais, ou seja: é um coletivo de coletivos. Em termos organizativos
a Associação é conduzida por três categorias de associados: associados-empreendimentos (de
economia solidária), associados-trabalhadores (que atuam diretamente nos empreendimentos
ensejados pela Associação) e associados-apoiadores. 185

Entre os associados da categoria empreendimentos constam grupos (informais,


associações e cooperativas) de variados tamanhos. Os associados fundadores foram: Arpa-Sul
(28 famílias da região de Pelotas - produção agroecológica); Coomelca (52 famílias da cidade
de Canguçu - beneficiamento e comercialização de mel e derivados - produção agroecológica
familiar); Coopal (625 famílias da região de Canguçu - industrialização e comercialização de
leite e bebidas lácteas - produção agroecológica familiar); Coopava (17 famílias do
assentamento de reforma agrária Conquista da Liberdade, cidade de Piratini - produção
agroecológica familiar); Cooperativa Sul-Ecológica (240 associados da região de Pelotas -
produção agroecológica familiar); Cooperativa Teia Ecológica (53 associados trabalhadores,
produtores e consumidores da cidade de Pelotas - restaurante ovo-lacto-vegetariano);

182
Idem.
183
Documentos internos da associação Bem da Terra como atas de reunião, projetos e convênios executados.
184
Artigo 3° do Estatuto da Associação.
185
O estatuto prevê que o poder de voto nas assembleias gerais e na coordenação geral da Associação obedece à
seguinte proporção: 4/9 dos votos para empreendimentos solidários associados; 4/9 dos votos para trabalhadores
dos empreendimentos criados pela Associação; 1/9 dos votos para apoiadores.
97

Coopressul (52 associados da cidade de Pelotas - artesanato e confecção); Lagoa Viva (83
associados da colônia de pescadores Z-3 - pesca artesanal); Mãe Natureza (cinco famílias do
assentamento de reforma agrária Nossa Senhora da Glória, cidade de Pedras Altas - queijaria
e laticínios); Retrate – Re-Habilitação, Trabalho e Arte (31 associados usuários do CAPS -
Centro de Apoio Psicossocial de Pelotas - artesanato em materiais recicláveis e confecção
têxtil); Terra Florida (13 associados da região de Pelotas - flores e plantas ornamentais,);
UNAIC (1.131 associados da região de Canguçu - beneficiamento e comercialização de
grãos/farinhas/sementes/hortifruti - produção agroecológica familiar); grupos Emanuel,
Esperança, Reciclarte, Cidadania e Vida e Grupo Girassol (25 integrantes vinculados ao
Fórum Micro-regional de Economia Popular Solidária de Pelotas - artesanato)186.

Como associados-apoiadores fundadores constavam: a Universidade Católica de


Pelotas, representada pelo NESIC/UCPel; a Cáritas Diocesana de Pelotas; o Fórum Micro-
regional de Economia Popular e Solidária; a Associação Cultural RádioCom187.

Transcorridos quase dez anos do seu surgimento como rede, o Bem da Terra conta
atualmente com cerca de 30 empreendimentos que representam aproximadamente 850
produtores/trabalhadores das cidades de Pelotas, Canguçu, Capão do Leão, Pedras Altas e
Piratini, além das citadas entidades apoiadoras tanto públicas como privadas 188. São grupos
produtivos, associações e cooperativas de pequenos produtores rurais agroecológicos, de
artesãos, de assentados da reforma agrária, de pescadores, enfim, de diferentes ramos de
produção, que somam aproximadamente 350 produtores. Os empreendimentos associados
representam cerca de 850 produtores/trabalhadores, e estão articulados em distintas frentes e
bandeiras de lutas como a produção orgânica e agroecológica, a segurança e soberania
alimentar, o acesso à terra e à reforma agrária, geração de emprego e renda, saúde mental,
permacultura, pesca comunitária e artesanal etc.

A atividade produtiva dos coletivos cobre uma ampla variedade de produtos como
alimentos e bebidas processadas, artesanato, brinquedos infantis, artigos de higiene pessoal
(cosméticos e limpeza), artigos para casa (cama, mesa e banho), carnes, conservas, doces,
especiarias, grãos, cereais, homeopatias, produtos hortifrutigranjeiros, laticínios, massas,

186
Documentos internos da associação Bem da Terra como atas de reunião, projetos e convênios executados.
187
Após a fundação da Associação se incorporaram ao rol de entidades apoiadoras as incubadoras universitárias
da UFPEL - Núcleo Interdisciplinar de Tecnologias Sociais e Economia Solidária (TECSOL) - e do IF-Sul-
Riograndense - Núcleo de Economia Solidária (NESOL).
188
Este número não contempla os diversos empreendimentos solidários parceiros, que não estão formalmente
associados, mas têm na Feira Virtual um instrumento alternativo de escoamento da produção, sem
atravessamento do mercado.
98

plantas ornamentais, produtos de limpeza, panificados, pescados, vestuário, calçados etc.

Além de constituir-se como sujeito coletivo, a Associação é a estrutura jurídico-formal


e a instância política superior da Rede Bem da Terra – Comércio Justo e Solidário. A Rede
Bem da Terra (da qual faz parte a Associação) fomenta o desenvolvimento estratégico de
estruturas de comercialização, de compras coletivas de insumos e sementes para a produção,
tecnologias para incentivar o consumo consciente e politizado da população, além de prestar
assessoramento técnico e formação política aos grupos que a compõem. Atualmente, a Rede
desenvolve ações estratégicas nas seguintes frentes: (a) Feiras Itinerantes organizadas em
espaços consolidados da cidade de Pelotas como a Universidade Católica de Pelotas e o
Instituto Federal Sul-rio-grandense, e, em eventos específicos do campo da Economia
Solidária e de temáticas afins; (b) Loja Bem da Terra no Mercado Central da Cidade – é um
espaço de comercialização conquistado para escoar especialmente a produção urbana/local
dos empreendimentos da Associação, assim como para difundir a imagem da Rede Bem da
Terra; (c) Feira Virtual - Grupo de Consumo Responsável (GCR) 189 - gerido por produtores e
consumidores, do qual são associados 200 famílias organizadas em 17 núcleos de consumo
que aglutinam trabalhadores, sindicalistas, estudantes, universitários e militantes oriundos de
coletivos autônomos, associações e movimentos populares; (d) Centro de Distribuição e sede
operacional da Feira Virtual que funciona três dias da semana para a retirada das compras
coletivas e para atividades formativas nas temáticas específicas da autogestão, economia
solidária, agroecologia e comércio justo, além de servir como espaço de reunião aos
empreendimentos da rede; (e) Rizoma - tecnologia social desenvolvida em parceria com os
núcleos universitários TECSOL e NESIC que viabiliza a aquisição direta de insumos de
produção para os empreendimentos solidários da região sul do Rio Grande do Sul bem como
de produtos processados que não são encontrados na região para o abastecimento dos
190
associados da Rede ; (f) Núcleo de Produção das Artesãs da Associação Bem da Terra,
formado por dez trabalhadoras oriundas de oito empreendimentos vinculados a Associação

189
A Feira Virtual Bem da Terra é um circuito local de comércio justo organizado a partir do modelo dos grupos
de consumo responsáveis (GCRs) – inspirado nas tradicionais cooperativas de consumo. Apesar de estar
referenciada nos modelo das tradicionais cooperativas de consumo, a Feira Virtual trata-se de uma complexa
cadeia de produção, circulação e consumo que articula muitas instâncias e atores, especialmente pela co-gestão
realizada entre produtores e consumidores, com a participação contínua de sindicatos, organizações sociais e
movimentos populares. Apesar do adjetivo virtual, percebe-se que a virtualidade do circuito se limita ao sistema
de pedidos aos produtores. O restante do processo organizativo dos núcleos de consumidores, dos produtores,
dos Conselhos e dos Grupos de trabalho acontece presencialmente, mediante o trabalho solidário dos
participantes.
190
Atualmente um armazém de comercialização de produtos da Economia Solidária da cidade vizinha de Rio
Grande está provendo seu abastecimento pela plataforma Rizoma e paulatinamente está se aproximando da Rede
Bem da Terra. Informações disponíveis em <www.bemdaterra.org> Acesso em 12 de outubro de 2015
99

Bem da Terra, com vistas ao desenvolvimento e consolidação de um processo autônomo de


produção solidária.

Neste sentido, o Núcleo de Produção cumpre um papel muito relevante, pois é o


primeiro grupo a se estruturar como uma Organização de Trabalho Associado, com tarefas
produtivas, no interior da estrutura política da Associação. Neste contexto, constatou-se algo
muito intrigante e relevante para a pesquisa: apesar de o NP ter surgido no interior da
Associação Bem da Terra, o isolamento das suas atividades socioprodutivas demonstram que
está caracterizado como um apêndice da Associação e da Rede Bem da Terra e não que como
componente da Rede. Tal desintegração, que se confirma nas narrativas dos trabalhadores,
pode ser compreendida pelos elementos a seguir demonstrados191.

Durante a entrevista, uma trabalhadora do NP relata o momento inaugural do seu


surgimento, a partir do contato com a extensão universitária:

Há muito tempo nós tínhamos a ideia de ter um centro de distribuição, uma banca no
mercado e um ateliê. Não queríamos abrir mão de nada. Então eu levei uma proposta
pra reunião de fazer uma coleção em homenagem, para homenagear os 10 anos da
associação e os grupos. Quando eu cheguei lá tinha uma integrante da incubadora da
UCPel e uma assessora do SEBRAE que disseram: “- temos uma proposta que pode
ser a ponta da ideia de vocês, um projeto de pesquisa para o desenvolvimento de
uma coleção de artesanato junto ao CNPQ, aí vocês tentam construir um coletivo
com integrantes dos grupos mais fragilizados”. Então pensei que foi um encontro de
duas ideias que deram numa mesma proposta. O projeto foi aprovado. Não existia
muito recurso, mas custeava profissionais e equipamentos. Então foi uma pedreira.
Mas tocamos em frente e aqui estamos. No início os grupos (da Associação) faziam
o próprio material porque já começamos sem recurso nenhum. 192

O projeto de pesquisa citado pela trabalhadora foi submetido pelo NESIC/UCPel


junto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)193 e
obteve recursos para a preparação da coleção Elementos da Terra, como componente
propulsor do Núcleo de Produção194. Os recursos aprovados contemplaram: contratação de
assessores em áreas técnicas como Design e gestão da produção; locação de veículo e
combustível; instrumentos de produção como máquina de costura, tesouras, bastidores, teares,

191
Neste sentido, o Núcleo de Produção diferencia-se das demais OTAs pesquisadas, principalmente por estar
em fase de experimentação. O NP atravessa um momento crucial no qual os comportamentos individuais vão
forjando a identidade coletiva no interior do processo de auto-organização do trabalho.
192
Entrevista realizada com trabalhadora do NP em abril de 2016.
193
Trata-se de um convênio interministerial do qual participam também a Secretaria Nacional de Economia
Solidária (SENAES), Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Programa Nacional de Incubadoras de
Cooperativas Populares (PRONINC) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
194
Apesar de o recurso ter sido gerido pelo NESIC, constatou-se uma importante participação e integração
institucional do núcleo universitário TECSOL da UFPel, tanto na perspectiva de formação e assessoramento do
Núcleo de Produção como pela sua integração aos processos de ensino, pesquisa e extensão universitária.
100

agulhas; matéria-prima para pesquisa e desenvolvimento da coleção como algodão, álcool,


botões, tecidos diversos, linhas, fibras; material de expediente; computador e projetor;
passagens para assessores de outras localidades e para integrantes do NP. A assinatura do
convênio entre a UCPel e o CNPQ viabilizou a cessão do uso de uma sala da universidade
para a produção, que funciona como ateliê do NP, sendo está sua a única unidade produtiva.
Além disso, o projeto possibilitou a realização de um estudo de mercado preliminar à
execução da coleção e de uma pesquisa sobre o perfil das trabalhadoras do núcleo, realizado
concomitantemente à execução das etapas da coleção.

Em novembro de 2015 foi lançada a coleção Elementos da Terra, que reúne itens com
destaque para a identidade e a flora local, cuja perspectiva é o resgate e preservação de traços
regionais. “Na confecção de todas as peças são utilizadas técnicas artesanais combinadas com
novas tecnologias sociais. Resgatar as técnicas do bordado caseiro transmite a ideologia do
cuidado com a natureza”.195

O lançamento da Coleção simboliza um importante momento de superação coletiva,


pois a necessidade de um núcleo de produção já era apontada desde o surgimento da
Associação.

Acho que o início da produção foi entre 2012/2013 quando aprontamos todos os
protótipos, 63 peças. Mas daí o pessoal pensou, não dá. Ficamos com medo por que
nós tínhamos que correr atrás de recurso. Algumas ficaram com medo e deram para
trás, mas eu não desisti daquela ideia que vinha lá de trás e o Deus da UCPel
também não (risos). Daí quando deu esse projeto do CNPQ elas falaram: - vamos
botar como base o núcleo de produção! Então em 2014 começamos a nos estabelecer
aqui na sala e a chamar os grupos de volta. A coleção foi o primeiro trabalho efetivo,
naquele dia que eu vi os protótipos com cada setor, setor de crochê, de costura, de
pintura, ficava aquele núcleo de mulheres trabalhando ali, era lindo de ver, e eram
dias de frio que não dava nem pra ficar sentada. Eu pensei isso funciona aqui dentro.
Quando foi para terminar a coleção, ficava um grupo aqui e outro ali [...] isso aqui
formigando. Olha que foi bonito, a gente tava podre, mas era assim que era para
ser.196

Quando provocada a respeito do impacto gerado pelo término do projeto e sobre


futuro do empreendimento, a trabalhadora reagiu:

Ter um projeto, é como se fosse um mapa, tem as metas e tu tens que chegar nelas
no futuro, mas tu tens que trabalhar no presente. Eu acho que a gente está se
desenhando aqui nas atitudes para alcançarmos algo muito maior. Mas tem sido uma
pedreira [...] tem horas que eu quase explodo. Por que a gente escuta umas coisas
que é de demolir a pessoa. Aí eu digo: ta ruim então? Vamos acabar com isso, já que
o projeto acabou! [...] Nós chegamos a estar em 20 pessoas no total, daí quando

195
Entrevista realizada com trabalhadora do NP em abril de 2016.
196
Idem.
101

faltou dinheiro pra continuar o projeto algumas preferiram voltar para seus grupos,
mas a gente não desistiu e aí algumas voltaram. Quando a coleção Elementos da
Terra ficou pronta, todas pensaram: vamos vender! Mas primeiro tem que produzir.
Então algumas disseram: - eu não vou vir pra cá todos os dias e deixar o meu grupo.
Eu disse: - mas aí nos vamos produzir muito, nos vamos ter uma remuneração, a
gente vai poder usufruir, ter férias, vamos descansar, não vamos andar de barraca
nas costas. Mas algumas ainda preferem subir escada, montar barraca, fazer feirinha
[...] é isso aí. 197

Alguns problemas que acompanham o percurso da Associação também se refletem no


interior do Núcleo de Produção:

[...] o que achávamos que era a nossa grande riqueza, era a nossa fraqueza: fazer um
projeto com tantas realidades diferentes é complicado. É o que enfrentamos hoje no
Bem da Terra: muitas realidades diferentes. Como é que se faz um projeto
abrangendo todas essas áreas [...] Tem também o “raio” da competição e do
individualismo, essa doença danada da sociedade! Achávamos que aqueles que
tinham mais cultura, que avançavam no conhecimento e que iriam reproduzir para os
outros que vinham [...] então foi ao contrário, pessoas que viajavam muito, que
eram representantes daqui [...] chamavam para outro cargo lá a gente achava que era
a ponte, mas [...] “agora eu to em tal cargo”, quando senta na cadeira, já viu né! 198

Note-se que a fala da trabalhadora revela dois elementos reincidentes no cotidiano de


vários empreendimentos, especialmente os do campo da Economia Solidária: (1) a dificuldade
de articular vários ramos produtivos bem diversos numa mesma proposta e (2) a cooptação
exercida por gestores públicos ao absorver boa parte das lideranças populares para o interior
da máquina governamental, fragilizando sobremaneira à organicidade dos empreendimentos.

Além disso, o perfil socioeconômico das integrantes do Núcleo de Produção destaca a


sua particularidade:

[...] sobre a questão de gênero, o NP (Núcleo de Produção) é composto


integralmente por mulheres. Destas, 80% está acima dos 51 anos de idade e 90%
moram em bairros pobres. A escolaridade média das trabalhadoras é o ensino médio
completo [...] 50% reside com companheiros ou filhos que trabalha e contribuem
com a renda familiar. Quanto à renda mensal das trabalhadoras, todas recebem
menos de R$1.000,00 como renda mensal [...] 60% recebe até um salário mínimo
regional e 30% recebe menos de R$300,00. Sobre a composição da renda 60%
declarou receber menos de R$100,00 mensais na atividade junto ao empreendimento
solidário a qual está vinculada e 40% declarou não receber mais de R$ 400,00 [...]
50% usufrui de benefício previdenciário (aposentadoria, pensão por morte ou
benefício de prestação continuada). Estes resultados são determinados pelos fatores
mencionados anteriormente como, a composição familiar (se mais alguém trabalha

197
Entrevista realizada com trabalhadora do NP em abril de 2016.
198
Idem.
102

na família), bem como se tem alguma outra fonte de renda (benefício previdenciário,
aposentadoria, pensão etc.). 199

É possível inferir que a avançada faixa etária, somada a fruição de benefícios


previdenciários e à não-garantia de renda digna proveniente da organização do trabalho
associado, apresentam-se como variáveis que não favorecem estruturas organizativas mais
dinâmicas e intensas. Talvez, por esta razão, as trabalhadoras não se sintam encorajadas a
dedicarem-se exclusivamente ao NP, desempenhando uma dupla função e acumulando as
tarefas produtivas nos seus núcleos de origem e no NP. Apesar de serem trabalhadoras em
situação de vulnerabilidade social e que necessitam de fontes alternativas de renda, os
números referenciados apontam para o eventual papel que o trabalho associado representa na
vida destas trabalhadoras. Todas as entrevistadas manifestaram que a Economia Solidária tem
mais relevância política e recreativa que econômica. Evidentemente que a escassez de
recursos financeiros é componente de grande impacto no quadro apresentado. Os elementos
destacados não minimizam a importância do Núcleo de Produção como organização de
trabalho associado, apenas lhe confere essência distinta se comparado às demais OTAs
pesquisadas.

Neste primeiro ano de atividade produtiva o NP ainda não atingiu viabilidade


econômica e os poucos recursos que compõem a sua receita são destinados ao pagamento das
mensalidades da Associação.

Em relação à organização do trabalho percebeu-se que o NP possui algumas funções


razoavelmente definidas como a costura, o crochê e a pintura; a coordenação é exercida por
uma trabalhadora bolsista do projeto e que se mantém na função desde o início do convênio.

O Núcleo não possui regimento interno ou estatuto. As reuniões da produção e os


processos deliberativos são realizados de acordo com a necessidade. As trabalhadoras mantêm
o ateliê funcionando dois dias por semana e a incipiente produção é escoada principalmente
nos canais de comercialização da Rede Bem da Terra – loja do mercado, feira virtual e feira
itinerante.

Em relação às práticas comunicativas, por se tratar de um coletivo recente e pequeno,


a comunicação interna funciona basicamente pela oralidade e por meio de alguns murais
afixados no ateliê, que também exibem fotos e um breve histórico do Núcleo de Produção.

199
Relatório parcial da pesquisa Núcleo de produção/Associação Bem da Terra - Perfil socioeconômico, processo
autogestionário/cooperativo, aspectos sociopolíticos. Pesquisa ainda não publicada. Arquivo interno do Núcleo
de Economia Solidária e Incubação de Cooperativas, NESIC/UCPEL.
103

Além disso, algumas atividades do Núcleo são divulgadas no sítio e nos perfis de redes
sociais da Associação. O NP possui um perfil próprio numa rede social ainda com discreta
utilização. Apenas uma trabalhadora entrevistada manifestou afeição às pautas progressistas
ou de esquerda. A inexistência de publicações impressas ou digitais com alcance externo
como panfletos, boletins, revistas, livros ou zines dificulta a captação da intencionalidade
política do coletivo em relação a outras pautas ou bandeiras políticas. Destacando-se as
referências à Economia Solidária.

Quanto às práticas formativas, a equipe de execução do convênio junto ao CNPQ tem


se encarregado da realização de atividades de cunho mais técnico. As trabalhadoras
declararam não terem participado de atividades de formação política nos últimos anos. No
entanto, algumas entrevistadas registraram a ocorrência de atividades desta natureza,
especialmente durante os momentos iniciais da Associação Bem da Terra. Durante a
entrevista, uma trabalhadora entendeu que isso seria uma fragilidade importante e ser
contornada:

Continua essa coisa do individualismo, do egoísmo, do é meu. Lutamos muito pra


substituir esse é meu pelo é nosso. Essas coisas, pequenas coisas do dia a dia e que
eu nunca tinha visto sabe. Começaram a surgir agora, nessa caminhada que a gente
tem dentro da Economia Solidária. Até dentro do Bem da Terra, a gente nunca tinha
discutido discriminação, preconceito e agora estamos vendo esse tipo de coisa
acontecer. Antes a gente via o egocentrismo e o individualismo. Mas agora estão
surgindo situações de discriminação. Eu fiquei chocada, nesse corre-corre surge
gente nova e nós vamos ter que encarar esta questão com muita formação.200

Apesar da participação da Associação Bem da Terra em diversos espaços e atividades


políticas (fóruns, redes, conferências e conselhos), o mesmo não se confirma em relação ao
Núcleo de Produção, que tem suas atividades mais concentradas no processo produtivo. O
mesmo se confirma no que se relaciona às atividades de integração sociopolítica com as
famílias dos trabalhadores e a comunidade local que se limita ao contato nas feiras livres.
Apesar da participação conjunta em algumas feiras itinerantes e eventos, algumas
entrevistadas apontaram certo distanciamento entre a Associação e o Núcleo de Produção,
desde a sua criação.

2.1.4.1 O Movimento da Economia Solidária

200
Entrevista realizada com trabalhadora do NP em abril de 2016.
104

No Brasil, o associativismo renasce no contexto das duras condições de reprodução da


vida, originadas pelas especificidades do desenvolvimento capitalista dependente201, e
impulsionadas pela reconfiguração da divisão internacional do trabalho sob a finança
mundializada (centralização do capital em um número restrito de grandes empresas mundiais
aliada à descentralização das operações produtivas, comerciais e financeiras que em um
conjunto limitado de grandes empresas mundiais).202

Os grupos industriais, financeiros e comerciais multinacionais introduzem novas


formas de gestão e de controle do trabalho; os investimentos externos diretos são
potencialmente criadores de novas configurações tecnológicas e organizacionais que servem
ao regime de acumulação flexível, onde a flexibilização da produção e da circulação se
destacam. Tal reestruturação agride a duros golpes o polo frágil da relação capital-trabalho,
ocasionando galopantes processos de precarização onipresentes de norte a sul do globo:
trabalho temporário, informalidade, subcontratação, terceirização (inclusive da atividade fim
das empresas e do setor público), e a cooperativização (como artimanha para burlar direitos e
garantias conquistadas a duras penas pelo movimento operário e popular); são algumas das
faces sensíveis deste fenômeno.

Por outro lado, ao longo das últimas décadas, a experiência de alguns movimentos
sociais populares levou ao

[...] surgimento de milhares de iniciativas econômicas de tipo associativo –


cooperativas populares, associações, empresas recuperadas, instituições
comunitárias de crédito, clubes de trocas etc. – no Cone Sul da América Latina, a
partir dos anos 1990, representa a emergência de um fenômeno econômico e social
que, embora guarde estreitas relações com experiências anteriores, tem
características específicas, que resultaram das transformações ocorridas nas últimas
décadas, tanto da economia quanto da sociedade latino-americana203

Na confluência destes dois elementos (condicionamento econômico ao mercado de


trabalho e as ações sociais mais ou menos organizadas), o trabalho associativo reemergiu com
grande força na década de 1990 em praticamente toda a América Latina. Pela ótica dos

201
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1972;
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1975.
202
A mundialização é resultado de dois movimentos conjuntos, estreitamente interligados, mas distintos. O
primeiro pode ser caracterizado como a mais longa fase de acumulação ininterrupta do capital que o capitalismo
conheceu desde 1914. O segundo diz respeito às políticas de liberalização, de privatização, de
desregulamentação e de desmantelamento de conquistas sociais e democráticas, que foram aplicadas desde o
início década de 1980, sob o impulso dos governos Thatcher e Reagen. CHESNAIS, François. A mundialização
do capital. São Paulo: Xamã, 1996, p. 34.
203
CRUZ, Antônio. A diferença da igualdade. A dinâmica econômica da economia solidária em quatro cidades
do Mercosul. 2006. 343 f. Tese (Doutorado em Economia). UNICAMP, Campinas, 2006. p.1.
105

trabalhadores, como alternativa ao desemprego crônico/estrutural e como forma de resistência


à crescente precarização das condições e relações de trabalho, e pelo lado institucional, como
política pública e privada destinada a desempenhar distintas finalidades e implementada por
organismos internacionais, por partidos políticos e governos, pela iniciativa privada, por
vertentes da Igreja Católica, organizações não-governamentais, associações sindicais etc.

No Brasil, esse conjunto de diferentes experiências de auto-organização, em que os


trabalhadores detêm a posse dos meios de produção, praticam a gestão democrática e realizam
a distribuição dos resultados segundo critérios definidos por eles próprios é majoritariamente
denominado de Economia Solidária.204

Conforme já destacado, Economia Solidária é uma expressão conceitual polêmica e


em permanente disputa. “socioeconomia solidária, economia popular e solidária, economia
solidária, nova economia social e novo cooperativismo” 205 ou ainda “economia comunitária,
economia do trabalho, socioeconomia, bem viver” 206; são alguns dos termos que procuram, de
alguma forma, nomear tais experiências (ou ao menos uma parte delas) e que o fazem
reverberando o passado, isto é, ancorando seus significados a alguma categoria anteriormente
utilizada, mas agora ressignificada.

Em termos analíticos, dentre os autores que vislumbram algum potencial


emancipatório na Economia Solidária, a compreendem a partir de (no mínimo) quatro
enfoques: (a) aqueles que percebem na Economia Solidária uma possibilidade de superação
do Capitalismo; (b) os que defendem uma complementaridade entre a Economia Solidária e o
Capitalismo; (c) alguns que expandem sua análise para além da Economia Solidária, focando
na Economia Popular; e (d) aqueles que percebem a Economia Solidária como um espaço de
prática da autogestão no momento histórico atual, mas que defendem sua generalização na
sociedade, tendo o autogoverno pelos produtores livremente associados como horizonte. 207

Nos últimos anos, percebe-se também a publicação de pesquisas que vem alertando
para a funcionalidade destas experiências associativas ao regime de acumulação flexível.
Cada uma a sua maneira (resgatando referenciais teóricos marxistas ou analisando os
meandros empíricos da produção associada no contexto das novas morfologias do mundo do
204
WIRTH, I. G.; FRAGA, L.; NOVAES, H.T. Educação, trabalho e autogestão: limites e possibilidades da
Economia Solidária. In: BATISTA, Eraldo Leme; NOVAES, Henrique (orgs.). Trabalho, Educação e
Reprodução Social. Campinas: Editorial Práxis, 2013. p.3.
205
CRUZ, op. cit. p.1.
206
GAIGER, Luiz Inácio. O mapeamento nacional e o conhecimento da Economia Solidária. Revista da
Associação Brasileira de Estudos do Trabalho, v.12, n.1, 2014. p. 10.
207
Idem. p.3. O debate acerca do papel da Economia Solidária e sobre as principais correntes teóricas será
realizado no capítulo V.
106

trabalho), estas investigações208 denunciam que no atual contexto de mundialização


desregulamentada da economia, de reestruturação produtiva e de desemprego estrutural; o
estímulo ao cooperativismo e a outras formas de produção associativa têm sido
instrumentalizado por governos, organismos internacionais, ONGs e por grandes corporações
como política oficial de mascaramento da questão social - ocultar a pobreza, rebaixar os
custos de produção e humanizar o capital.

Por oportuno, convém destacar duas das teses centrais defendidas por Cruz 209, e que
realocam o debate num contexto sociopolítico dos limites e as possibilidades concretas destas
experiências:

(1) a economia solidária, como fenômeno emergente da economia e da sociedade


dos países do Cone Sul na virada do século XX ao XXI, é um fenômeno ainda
embrionário, originado da síntese entre os condicionamentos do mercado de trabalho
(derivados das reformas neoliberais dos anos 90), de um lado, e de um tipo
específico de ação alternativa a esta conjuntura, informada pelos valores e ideias
instituídos pelos novos movimentos sociais (que por sua vez nasceram da luta contra
as ditaduras militares e que se consolidaram após as redemocratizações);
(2) a economia solidária pode ser delimitada e compreendida como um conjunto de
experiências de iniciativas econômicas, que por enquanto apenas eventualmente
articulam relações entre si (não constituem, portanto, um sistema) e que são
caracterizadas pelo desenvolvimento de relações sociais de produção não-
capitalistas no interior das iniciativas, embora na maioria das vezes se relacionem e
se expressem economicamente no mercado convencional (capitalista); tais
iniciativas econômicas guardam, portanto, semelhanças e diferenças significativas
com as iniciativas econômicas convencionais (as firmas capitalistas).

O primeiro argumento de Cruz aponta a economia solidária como fenômeno originado


da síntese de dois fatores: (a) os condicionamentos do mercado de trabalho derivados das
reformas neoliberais dos anos 1990 e (b) um tipo específico de ação alternativa a esta
conjuntura, informada pelos valores e ideias instituídos pelos novos movimentos sociais, que
no caso latino-americano, são tributários da luta contra as ditaduras militares e se que
consolidaram após as redemocratizações.

208
Dentre as quais destacamos LIMA, Jacob. C. Trabalho flexível e autogestão: estudo comparativo entre
cooperativas de terceirização industrial. In: LIMA, J. C. (Org.) Ligações perigosas: trabalho flexível e trabalho
associado. São Paulo: Annablume, 2007. MENEZES, Maria Thereza C. G. de. Economia solidária: elementos
para uma crítica marxista. Rio de Janeiro: Gramma, 2007. WELLEN, Henrique. Para a crítica da economia
solidária. São Paulo: Outras Expressões, 2012. CARVALHO, Keila Lúcio de. Economia Solidária como
estratégia de desenvolvimento – uma análise crítica a partir das contribuições de Paul Singer e José Ricardo
Tauile. In: Anais do I circuito de debates acadêmicos. CODE 2011. Disponível em:
<www.ipea.gov.br/code2011/chamada2011/pdf/area2/area2-artigo21.pdf>. Acesso em 15/01/2014. BARBOSA,
Rosângela Nair de Carvalho. A economia solidária como política pública: uma tendência de geração de renda e
ressignificação do trabalho no Brasil. São Paulo: Cortez, 2007.
209
CRUZ, op. cit. p.2-3.
107

O segundo argumento de Cruz define que a Economia Solidária pode ser


compreendida como um conjunto de experiências de iniciativas econômicas, que por
enquanto apenas eventualmente articulam relações entre si (não constituem, portanto, um
sistema).

Estas importantes afirmações de Cruz remetem a um debate oportuno e inevitável para


esta seção: o Movimento de Economia Solidária pode ou não ser considerado um sujeito
coletivo autônomo e politicamente organizado? Pode ser caracterizado como um movimento
social? Ou seria a Economia Solidária um conjunto de iniciativas econômicas mais ou menos
agrupadas de um campo político, ou seria esta uma política pública? A preocupação se
justifica não pelo intuito de classificar a Economia Solidária a partir de qualquer tipologia que
a enquadre como velho, novo ou novíssimo movimento social. Questionar se o Movimento da
Economia Solidária constitui-se como um sujeito coletivo é problematizar a sua capacidade de
aglutinar demandas que configuram sua identidade; identificar adversários e aliados; ter
minimamente uma base de militantes ou simpatizantes, lideranças e assessorias; ter alguma
organicidade com estruturas mais ou menos rígidas; possuir projetos ou visões de mundo que
dão suporte as suas demandas e capacidade de sustentar e encaminhar suas reivindicações
referenciadas num programa mais ou menos definido; e, principalmente que este programa
seja conhecido e tenha legitimidade e repercussão nas ações dos integrantes destes
movimentos, no caso, os próprios empreendimentos econômicos solidários.

Neste sentido, Aline Santos210 pondera que o “movimento da economia solidária no


Brasil pode ser compreendido por um associativismo que visa objetivos comuns, mas
expressa diferentes atores coletivos”, ou seja, sua identidade está muito próxima a uma
plataforma ou a uma rede de movimentos sociais, no sentido dado por Gohn211 e Sherer-
Warren212.

No contexto de uma rede de movimentos, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária


(FBES) é o sujeito coletivo que corporifica o Movimento da Economia Solidária no Brasil.

O FBES surgiu em 2003 como elaboração oriunda das Plenárias Nacionais de


Economia Solidária.

210
SANTOS, Aline Mendonça. O movimento de economia solidária no Brasil e os dilemas da organização
popular. 2010. 445 f. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. 2010,
p.18.
211
GOHN. Maria da Glória. Movimentos Sociais e redes de mobilizações civis no Brasil contemporâneo.
Petrópolis: Vozes, 2010.
212
SHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Revista Sociedade e Estado,
n.1, jan../abr. 2006.
108

Em junho de 2003 realizou-se a III Plenária Brasileira de Economia Solidária, que


contou com um processo preparatório de mobilização em 17 estados, e teve a
participação de 900 pessoas de diversas partes do país. Foi neste evento que foi
criada, de forma definitiva, a denominação Fórum Brasileiro de Economia Solidária
(FBES). A SENAES foi constituída pouco antes deste evento. O FBES saiu desta III
Plenária com a incumbência de articular e mobilizar as bases da Economia Solidária
pelo país em torno da Carta de Princípios e da Plataforma de Lutas aprovadas
naquela oportunidade.213

Além de definir a composição e funcionamento do FBES, iniciou-se um processo de


214
interlocução do FBES junto a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) com
o compromisso de

[...] promover um intercâmbio qualificado de interesses econômicos, sociais e


políticos, numa perspectiva de superar práticas tradicionais de dependência, que
tanto têm comprometido a autonomia necessária ao desenvolvimento das
organizações sociais. Outro fruto decorrente daquele evento foi o desencadeamento
da criação dos fóruns estaduais e regionais que puderam garantir, por sua vez, a
realização do I Encontro Nacional de Empreendimentos de Economia Solidária com
trabalhadoras/es advindos de todos os estados. Este encontro teve um total de 2500
pessoas e aconteceu nos dias 13, 14 e 15 de agosto de 2004.215

Exibe-se a seguir a Figura 10, representando o Campo da Economia Solidária no


Brasil.

213
Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em http://www.fbes.org.br/index.php?option=com_
content&task=view&id=61&Itemid=57. Acesso em: 22 dez. 2013.
214
Em 2003, logo após a eleição de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, foi criada a
Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES) inserida no Ministério de Trabalho e Emprego (MTE),
com o objetivo de “favorecer o desenvolvimento e divulgação da Economia Solidária” (SENAES, 2009, p. 7),
passando a mapeá-la, monitorá-la e difundi-la em âmbito nacional.
215
Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: <http://www.fbes.org.br/index.php?option=
com_content&task=view&id=61&Itemid=57>. Acesso em: 22 dez.2013.
109

Figura 10 - O campo da Economia Solidária no Brasil


Fonte: Sítio do Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: <www.fbes.org.br>.

O FBES é fruto do processo histórico que culminou na realização do I Fórum Social


Mundial, que contou com a participação de 16 mil pessoas vindas de 117 países, nos dias 25 a
30 de janeiro de 2001. A manifestação de interesses e a necessidade de articular a participação
nacional e internacional do I FSM propiciaram a constituição do Grupo de Trabalho Brasileiro
de Economia Solidária (GT- Brasileiro), composto de redes e organizações de uma
diversidade de práticas associativas do segmento popular solidário: rural, urbano, estudantes,
igrejas, bases sindicais, universidades, práticas governamentais de políticas sociais, práticas
de apoio ao crédito, redes de informação e vínculo às redes internacionais. As doze entidades
e redes nacionais que em momentos e níveis diferentes participavam do GT-Brasileiro foram:

Rede Brasileira de Socioeconomia Solidária (RBSES); Instituto Políticas


Alternativas para o Cone Sul (PACS); Federação de Órgãos para a Assistência
Social e Educacional (FASE); Associação Nacional dos Trabalhadores de Empresas
em Autogestão (ANTEAG); Instituto Brasileiro de Análises Sócio-Econômicas
(IBASE); Cáritas Brasileira; Movimento dos Trabalhadores Sem Terra
(MST/CONCRAB); Rede Universitária de Incubadoras Tecnológicas de
Cooperativas Populares (Rede ITCPs); Agência de Desenvolvimento Solidário
(ADS/CUT); UNITRABALHO; Associação Brasileira de Instituições de Micro-
110

Crédito (ABICRED); e alguns gestores públicos que futuramente constituíram a


Rede de Gestores de Políticas Públicas de Economia Solidária.216

Por conseguinte, “foi a partir do GT-Brasileiro que se propõe a constituição de um


fórum com dimensão nacional [...] com empreendimentos de economia solidária e empresas
de autogestão nas diversas regiões do país”. 217

No final de 2002, decorrente do processo eleitoral que culminou com a eleição do


presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o GT-Brasileiro elaborou uma carta ao governo
intitulada Economia Solidária como Estratégia Política de Desenvolvimento. Aquele
documento de interlocução com o futuro governo apresentava as diretrizes gerais da
Economia Solidária e reivindicava a criação da Secretaria Nacional de Economia Solidária
(SENAES). Durante a I Plenária Brasileira de Economia Solidária, realizada em São Paulo,
nos dia 9 e 10 de dezembro de 2002, contando com mais de 200 pessoas - entre
trabalhadoras/es de empreendimentos associativos, entidades de representação, entidades de
assessoria/fomento e gestores de políticas públicas – foi aprovada e encaminhada a Carta.

De acordo com os relatos publicizados pelo FBES, caracterizar e identificar o Fórum


foram ações prioritárias no sentido de demarcar e qualificar o campo da Economia Solidária,
através do Mapeamento da Economia Solidária e da elaboração do Atlas da Economia
Solidária no Brasil, frutos de uma política de integração do movimento da ES com o governo
(Ministério do Trabalho e Emprego, através da SENAES).

Em termos organizativos, o FBES consiste na articulação entre três segmentos do


Movimento de Economia Solidária: (a) empreendimentos solidários, (b) entidades de
assessoria e fomento e (c) gestores públicos. Assim definidos:

Empreendimentos Econômicos Solidários são organizações com as seguintes


características: 1) Coletivas (organizações suprafamiliares, singulares e complexas,
tais como associações, cooperativas, empresas autogestionárias, clubes de trocas,
redes, grupos produtivos, etc.); 2) Seus participantes ou sócias/os são
trabalhadoras/es dos meios urbano e/ou rural que exercem coletivamente a gestão
das atividades, assim como a alocação dos resultados; 3) São organizações
permanentes, incluindo os empreendimentos que estão em funcionamento e as que
estão em processo de implantação, com o grupo de participantes constituído e as
atividades econômicas definidas; 4) Podem ter ou não um registro legal,
prevalecendo a existência real; 5) Realizam atividades econômicas que podem ser de
produção de bens, prestação de serviços, de crédito (ou seja, de finanças solidárias),
de comercialização e de consumo solidário;
Entidades de assessoria e/ou fomento são organizações que desenvolvem ações nas
várias modalidades de apoio direto junto aos empreendimentos solidários, tais como:

216
Fórum Brasileiro de Economia Solidária. Disponível em: <www.fbes.org.br>. Acesso em: 22 out. 2013.
217
Idem.
111

capacitação, assessoria, incubação, pesquisa, acompanhamento, fomento à crédito,


assistência técnica e organizativa;
Gestores públicos são aqueles que elaboram, executam, implementam e/ou
coordenam políticas de economia solidária de prefeituras e governos estaduais.218

A sua instância máxima de decisão é a Coordenação Nacional, que consiste nos


representantes das entidades e redes nacionais de fomento, além de três representantes por
estado indicadas pelos Fóruns Estaduais de Economia Solidária. Destes três representantes
por estado, dois são empreendimentos e um é entidade de assessoria. Compõe também a
Coordenação Nacional dois gestores por região e mais dois gestores em nível nacional, ambos
indicados pela Rede de Gestores. A Coordenação Nacional reúne-se duas vezes ao ano.

Para a gestão política, interlocução com outros movimentos e com o governo federal, e
acompanhamento da Secretaria Executiva Nacional, há uma Coordenação Executiva
Nacional, composta por 13 pessoas, sendo sete representantes de empreendimentos (dois do
norte, dois do nordeste, e um representante para cada uma das demais regiões), cinco
representantes das Entidades e Redes Nacionais de promoção à Economia Solidária, e um
representante da Rede Nacional de Gestores Públicos. Por fim, para dar suporte aos trabalhos
do FBES, propiciar a comunicação entre as instâncias e operacionalizar reuniões e eventos, há
a Secretaria Executiva Nacional. Existem ainda Grupos de Trabalho (GT's) responsáveis por
temáticas específicas.

Na sua carta de princípios o FBES afirma o papel do movimento: “a Economia


Solidária ressurge hoje como resgate da luta histórica dos(as) trabalhadores(as), como defesa
contra a exploração do trabalho humano e como alternativa ao modo capitalista de organizar
as relações sociais dos seres humanos entre si e destes com a natureza.”

Santos, na sua pesquisa que problematiza a Economia Solidária como movimento


social, destaca que o movimento deu um relevante salto qualitativo e que uma evidência capaz
de simbolizar esta transição diz respeito maturação da palavra de ordem: o primeiro lema,
inspirado no Fórum Social Mundial, afirmava que uma outra economia é possível, poucos
anos depois [...] o lema passou a ser uma outra economia acontece.219

Na mesma pesquisa, Aline Santos aponta dois componentes que complexificam a


organicidade e a ação concreta do Movimento da Economia Solidária: a questão da autonomia
e o inter-reconhecimento.

218
Fórum Brasileiro de Economia Solidária, op. cit.
219
SANTOS, op. cit. p.18.
112

No debate atual, duas vertentes para a ação caracterizam tal complexidade: a


primeira é que os movimentos sociais mantêm, em certa medida, a desconfiança de
ação conjunta com o Estado, constituindo o binário autonomia-institucionalização,
e, ao mesmo tempo, vêem a necessidade de manter uma autonomia frente ao
mercado, evitando assim sua fusão e identificação de suas ações como
complementares a este220; a segunda vertente é uma pluralização da organização
societária, marcada tanto pelo aumento dos movimentos e da organização societária,
quanto pelas múltiplas identidades, transversalidade dos direitos e pela
transnacionalidade de suas atuações, ela coloca estes movimentos diante de novas
formas de ação e de mobilização que possam incidir sobre uma nova forma de inter-
reconhecimento de subjetividade coletiva. 221

Em relação ao problema do inter-reconhecimento, a autora destaca que a diversidade


de atores que formam o movimento da Economia Solidária, aliada a forma de atuação em
redes, coloca para o movimento “o desafio de construir um inter-reconhecimento da
subjetividade coletiva, ou, nas palavras do próprio movimento, a construção da unidade
através da diversidade”222. O problema tem muita relevância e coloca em xeque a
possibilidade de existência de identidade do movimento - tanto pela incapacidade de
capilarizar bandeiras históricas da luta da classe trabalhadora (tendo em vista que as pautas
centrais da Economia Solidária estão no campo do mundo do trabalho); como pela dificuldade
de afirmar solidariedade às lutas particulares dos atores incorporados, assegurando que as
lutas particulares e imediatas dos vários setores do movimento sejam também lutas de todo o
movimento. Considerando que participam do movimento grupos com as reivindicações mais
diversas sejam estas pautas: classistas, identitárias, de gênero, culturais, ambientais; a tarefa
do inter-reconhecimento e de desenvolvimento de uma subjetividade coletiva plural é tarefa
muito desafiadora. Neste sentido, seria também interessante apurar o grau de organicidade e
de comprometimento que estes outros grupos e movimentos têm para com o Movimento da
Economia Solidária. Percebe-se, a partir do contato direto propiciado pelas experiências de
apoio e assessoria a coletivos e movimentos, que alguns movimentos populares,
especialmente aqueles identificados com bandeiras mais progressistas ou de esquerda e que
desenvolvem práticas mais contestatórias ao Estado e ao próprio Capitalismo, têm certa
aversão a serem considerados como empreendimentos de economia solidária, apesar de
muitas vezes serem mapeados como se o fossem. A principal justificativa apresentada é a
identificação das práticas econômico-solidárias como atitudes revisionistas ou salvacionistas
típicas do terceiro setor e funcionais à reprodução do capital.

220
DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz popular - movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, ANPOCS, 1995.
221
SANTOS, op. cit. p.117.
222
Ibid. p.184.
113

No que toca à questão da autonomia-institucionalização do Movimento da Economia


Solidária, o problema que se coloca é o seguinte: em que medida a aproximação ao Estado
provocou nestes últimos 14 anos (período em que o Partido dos Trabalhadores está à frente da
Presidência da República) um enfraquecimento da autonomia, da organicidade e
combatividade do Trabalho Associado assimilado pelo Movimento da Economia Solidária. O
dilema da institucionalização dos movimentos é um tema relevante e muito debatido tanto na
academia como no interior das organizações. Se por um lado a postura autonomista em
relação ao Estado parece a mais interessante para fins de organicidade e combatividade, por
outro não é coerente negligenciar que o Estado, também se configura como arena de luta por
projetos e programas, seja na condição de regulador do controle social ou como
metarregulador - quando este perde o controle da regulação social, mas mantém o controle da
“seleção, coordenação, hierarquização e regulação dos agentes não estatais que, por
223
subcontratação política, adquirem concessões de poder estatal”.

No caso do FBES a questão se coloca de forma mais concreta e aguda, pois existe
representação permanente de gestores públicos nas principais instâncias de poder do
movimento: Coordenações Estaduais, Coordenação Nacional e Coordenação Executiva
Nacional. Não se pretende com isso, apontar a atual situação como determinante frente ao
dilema da autonomia-institucionalização na Economia Solidária. A melhor resposta poderá ser
dada pelos próprios empreendimentos solidários e demais integrantes do movimento, pois no
contexto da grave crise política e econômica na qual o país está inserido 224, a capacidade de
continuidade histórica da Economia Solidária como sujeito político e econômico poderá ser
medida pela sua capacidade futura de passar a fazer efetiva diferença na correlação de forças
políticas, podendo assim disputar e implantar seu projeto de sociedade durante o próximo
período.

223
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma reinvenção solidária e participativa do Estado. In: PEREIRA, L.C.
Bresser et al (org.). Sociedade e Estado em transformação. São Paulo/Brasília: UNESP/ENAP, 1999.p. 264-265.
224
No momento de conclusão desta tese (maio/junho de 2016) a presidente da República, Sra. Dilma Rousseff,
acabara de ser afastada do cargo em razão da instauração de processo de Impeachment instruído com parecer
favorável do senado que aponta indícios de crime de responsabilidade - pela emissão de seis decretos de crédito
suplementar e operação irregular de crédito. O fato político é considerado um golpe de estado institucional por
diversos analistas e observadores internacionais. Com menos de 15 dias em exercício de mandato interino, o
vice-presidente da República, Sr. Michel Temer, já anunciava a extinção do Ministério da Cultura (que foi
incorporado ao Ministério de Educação); do Ministério de Mulheres, Igualdade Racial, Juventude e Direitos
Humanos, incorporados ao Ministério da Justiça; e a separação do ministério do Trabalho e Previdência Social
que se divide, colocando em risco a continuidade da Secretaria Nacional de Economia Solidária.
114

2.1.4.2 Autogestômetro do Núcleo de Produção das Artesãs da Associação Bem da Terra

A seguir segue o autogestômetro institucional do Núcleo de Produção. 225 Note-se que


os indicadores n. 12 (diferença na retirada) e 14 (carga horária e intensidade da jornada de
trabalho) constam em branco porque à época do trabalho de campo o NP não possuía carga
horária de trabalho bem definida e tampouco atingia viabilidade econômica capaz de gerar
sobras para as trabalhadoras.

Figura 11 – Autogestômetro institucional – OTA 4 – Núcleo de Produção das Artesãs


da Associação Bem da Terra
Fonte: Elaborado pelo autor (2016).

225
Veja-se os indicadores institucionais no Quadro 5, Capítulo 1.
115

CAPÍTULO III - A AUTOGESTÃO EM PERSPECTIVA COMPARADA -


RUPTURAS E CONTINUIDADES NO TRABALHO ASSOCIADO - 2° SEGMENTO
DA PESQUISA DE CAMPO

A difícil passagem do Eu para o Nós


A capacidade de ver no outro sua própria angústia,
de ver no outro algo além que a extensão do opressor,
algo humano que nos torna humanos e descobrir
as energias insuspeitáveis da ação coletiva.
E o grito toma forma na ação que se confronta
com a ordem das mercadorias, com a lógica do capital,
com a prepotência dos que se julgam invencíveis.
E o germe do futuro toma forma contra a barbárie,
nos acampamentos dos sem-terra, na opressão das fábricas,
na mulher agredida, no jovem que nega futuro,
o futuro nasce com raiva.

(Mauro Luis Iasi)

3.1 RUPTURAS E CONTINUIDADES NAS ORGANIZAÇÕES DE TRABALHO


ASSOCIADO

O objetivo principal do terceiro capítulo é avaliar as rupturas e continuidade do


trabalho associado a partir da comparação entre as distintas perspectivas autogestionárias
identificadas nas quatro Organizações de Trabalho Associado (OTAs) estudadas, tanto nas
suas dimensões institucionais como no que se relaciona à experimentação autogestionária dos
diretamente (mas não unicamente) interessados em todo o processo, os/as trabalhadores/as. O
capítulo anterior destacou importantes diferenças entre as quatro OTAs, em vários aspectos
que compõe as três variáveis estruturantes definidas – (1) identidade, (2) autogestão interna e
(3) autogestão societal ampliada.

As experiências estudadas estão construídas por certas condições sociais que levam as
marcas do momento histórico e da totalidade social concreta assentada sobre determinadas
relações de poder que forjam um determinado tipo de comportamento e consciência nos
trabalhadores.

Assim, não será priorizada a compreensão do comportamento e da consciência como


algo que o trabalhador deva alcançar como essência para constituir-se num sujeito
116

transformador, ou seja: o que a consciência deveria ser para ser de classe, como uma
fórmula.226

O padrão de sociabilidade forjado pelo capital não pode ser superado por decreto,
como num passe de mágicas, ou ainda pela simples socialização dos meios de produção. Não
se pode afirmar que a formação de organizações de trabalho associados é por si só, indício de
um futuro processo contra-hegemônico e que seus objetivos são antagônicos aos de uma
sociedade estratificada em classes. Provavelmente, em muitas das OTAs, a emancipação dos
trabalhadores nem esteja na agenda. No entanto, dependendo dos elementos institucionais
forjados dentro das OTAs, é possível fazer da experimentação autogestionária um conjunto de
mediações mais ou menos propícias para o desenvolvimento da consciência e da práxis que
avance inclusive para outras esferas econômicas e políticas da realidade concreta.

Assim, algumas organizações de trabalhadores podem apresentar elementos favoráveis


ao surgimento de uma nova consciência (a consciência revolucionária ou de classe), pois que
sustentam suas experiências em bases favoráveis a formação de uma outra forma de perceber
o mundo e de interagir neste. Contudo, neste capítulo importa questionar: Por que os
embriões desta nova consciência aparecem somente em algumas OTAs? Seriam mediações
propícias para o surgimento da nova consciência? Se os elementos organizativos são as
variáveis determinantes dessa possibilidade, de onde eles vêm, considerando que a
organicidade dos grupos é constituinte, mas também constituída pelos próprios
trabalhadores?

É na busca pelos vestígios sobre as rupturas e as continuidades do Trabalho


Associado que seguem as próximas seções do capítulo.

3.2. O COMPORTAMENTO E A CONSCIÊNCIA EM ORGANIZAÇÕES DE TRABALHO


ASSOCIADO – Quando a ordem dos fatores altera o produto [...]

Na sociedade sob domínio do Capital, enquanto seu sociometabolismo alcança todas


as esferas da vida, não é possível alcançar uma nova consciência, a não ser de forma
embrionária. Os trabalhadores e as trabalhadoras são, no máximo, indivíduos inseridos nesta
sociedade e dispostos a destruí-la. Uma nova consciência não se desenvolve sem uma nova

226
Apesar de o instrumento de tabulação do anexo D – (variáveis comportamentais, indicadores e níveis para
tabulação) – apresentar um padrão idealizado de comportamento definido com forte, os indicadores apontados
como influentes nas variáveis da pesquisa foram coletados a partir das próprias entrevistas de alguns
trabalhadores. Não se tratam de comportamentos enquadrados a partir de uma compreensão idealizada do
pesquisador.
117

ordem de relações sociais. Não se pretende com isso afirmar que a transformação material da
atual sociedade só ocorrerá quando as novas consciências estiverem aptas a fazer a
transformação material, e que após isso, ela ocorrerá automaticamente. Ainda que preservada
certas determinações materiais, as esferas objetivas e subjetivas combinam-se, assim que a
luta de ideias e a capacidade de uma classe demonstrar suas concepções e valores de forma
estratégica, preparam o terreno para transformações, até revolucionárias.

Acredita-se que discutir o processo de consciência no interior das OTAs pesquisadas


pode ser uma possibilidade, dentre outras possíveis, para identificar diferenças nas variáveis
estruturantes fundamentais das OTAs e seus impactos no comportamento e na consciência dos
trabalhadores.

O percurso escolhido para tratar do tema recorrerá aos estudos realizados por Mauro
Iasi227 sobre os processos de consciência e a metamorfose da consciência de classe. A partir
de algumas categorias de Jean-Paul Sartre, Norbert Elias e Sigmund Freud, Iasi desenvolve
seus estudos, e entende a consciência como processo, como “desenvolvimento dialético, em
que cada momento traz em si os elementos de sua superação, em que as formas já incluem
contradições que, ao amadurecerem, remetem à consciência para novas formas e contradições,
de maneira que o movimento se expressa num processo que contém saltos e recuos”.228

3.2.1 A consciência como processo

A subjetividade é um assunto muito relevante ao debate marxista. Durante um largo


período a leitura positivista das obras de Marx negligenciou a relevância do tema da
subjetividade, tratando-a como desimportante na análise dos fenômenos sociais. No debate
sobre a consciência de classe não havia muito a se dizer – cada classe com sua consciência
própria, se esta não estava a manifestando propriamente, bastava despertá-la.

O debate sobre a consciência se estende em diversas direções e se orienta por distintas


matrizes epistemológicas: Anthony Giddens, Jürgen Habermas, Pierre Bourdieu, Émile
Durkheim, Claude Lévi-Strauss, além de Marx, trabalharam, conservadas as suas
peculiaridades, questão relacionadas ao exterior/interior, objetivo/subjetivo. Alguns deles
empregam ainda outras noções como reflexividade, discursividade, racionalidade, habitus;
mas todas comungam da noção de subjetividade.

227
IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da Consciência de Classe: o PT entre a negação e o consentimento. São
Paulo: Expressão Popular, 2012; IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo:
Expressão Popular, 2007; IASI, Mauro Luis. Processo de Consciência. São Paulo: CPV, 1999.
228
IASI, op, cit., 2007, p.12.
118

O Processo de Consciência foi produzido em 1985, mas no prefácio da versão do


texto publicada em 1999 229, o autor já registrava sua preocupação com o caminho da
militância e seus objetivos transformadores frente ao impasse gerado pela burocratização das
entidades sindicais e das administrações democrático-populares, ainda em fase incipiente.
Falar em Processo de Consciência na atual conjuntura,

[...] é enfrentar algumas questões centrais para o movimento dos trabalhadores. A


forma como se deu nossa história mais recente, poderia nos levar à falsa impressão
de um movimento em ascenso constante desde a retomada dos sindicatos, a
formação da CUT e do PT e a consolidação de um movimento nacional. No interior
deste processo, tornar-se consciente equivalia a assumir um papel militante em
algum ponto do movimento. Os impasses que hoje enfrentamos, expressos na
defensiva da luta dos trabalhadores, a burocratização das entidades sindicais, nas
administrações democrático-populares, nos levam a repensar de forma mais ampla
sobre a militância e nossos objetivos transformadores. A falsa visão de linearidade
tem feito com que muitos daqueles que viam de forma triunfalista o caminho da
consciência, agora resvalem para um pessimismo desmobilizador. 230

Na obra As metamorfoses da Consciência de Classe: o PT entre a negação e o


consentimento Iasi analisa a história do Partido dos Trabalhadores. Neste estudo, o autor
aprofunda os caminhos do PT, que surge como um partido derivado das lutas operárias dos
anos 1970, que prega o socialismo e o anti-capitalismo; e se converte após eleito em um
partido da ordem que estaria, segundo a conclusão do autor, hegemonizado pela política
pequeno-burguesa e abaixo mesmo da social-democracia, porque nem reformas que
acumulasses forças sociais conseguira realizar. Nesse sentido, o autor destaca que é
imperativo entender o fenômeno da consciência como um movimento e não como algo dado.
Só é possível conhecer algo se o inserirmos na história de sua formação, ou seja, no processo
pelo qual ele se tornou o que é; assim também é com a consciência: ela não é, ela se torna.
Esta amadurece por fases distintas que se superam, através de formas que se rompem, gerando
novas, que já indicam elementos de seus futuros impasses e superações. E quando menos se
espera, o movimento traz consigo elementos de fases superadas, retomando, aparentemente,
as formas que abandonou. Outra questão preliminar muito importante: o processo é ao mesmo
tempo múltiplo e uno.

Cada indivíduo vive sua própria superação particular, transita de certas concepções
de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de relações que compõe a base
material de sua concepção de mundo. Como então podemos falar em processo como
um todo? Acreditamos que a partir da diversidade de manifestações particulares

229
De acordo com o autor, o texto foi publicado com o objetivo de servir de apoio ao Programa de Formação de
Monitores do Núcleo de Educação Popular 13 de maio e ao Programa de formação de formadores da Secretaria
Nacional de Formação política do PT. IASI, op. cit.1999.
230
IASI, op. cit. 1999. p.6-7.
119

podemos encontrar, nitidamente, uma linha universal quando falamos em


consciência de classe. Essa consciência não se contrapõe à consciência individual,
mas forma uma unidade, em que as diferentes particularidades derivadas do
processo próprio de vida de cada um sintetizam pois, sob algumas condições, um
todo que podemos chamar de consciência de classe. 231

Neste sentido, nenhum ser ou nenhuma classe é portadora metafísica de um tipo


determinando de consciência. Em a Ideologia Alemã, Marx e Engels afirmam que a
consciência é:

[...] pois, logo desde o começo, um produto social, e continuará a sê-lo enquanto
existirem homens [...] naturalmente, começa por ser apenas consciência acerca do
ambiente sensível mais imediato e consciência da conexão limitada com outras
pessoas e coisas fora do indivíduo que se vai tornando consciente de si [...] por outro
lado, a consciência da necessidade de entrar em ligação com os indivíduos à sua
volta é o começo da consciência do homem de que vive de fato numa sociedade.
Esse começo é tão animal como a própria vida social dessa fase [...].232

Assim inicia-se a primeira forma de consciência.

3.2.2 A primeira forma de consciência – alienação subjetiva

Iasi utiliza Freud para desvendar como se dá a transformação das relações sociais em
funções psicológicas, ou seja, “como se formaria essa representação que todos possuem?” 233
Freud desenvolveu uma noção da psiquê cujo fio condutor de realização se dá em termos da
relação dialética id-ego-superego. Desta forma, inicialmente, a consciência seria o processo
de representação mental (subjetiva) de uma realidade concreta e externa (objetiva), formada
neste momento, mediante um vínculo de inserção mais imediato, a percepção. Ou seja: uma
realidade externa que se interioriza. A questão se torna complexa na medida em que essa
representação não é um simples reflexo da materialidade externa que se busca representar na
mente, mas é a captação de um concreto aparente, limitado: uma parte do todo e do
movimento de sua entificação (o processo em que algo torna-se o que é). O novo ser ao ser
inserido no conjunto das relações sociais, que tem uma história que antecede a do indivíduo e
vai além dela, capta, assim um momento abstraído do movimento, e busca compreender o
todo pela parte, é a ultrageneralização. Até este momento não é possível falar em relação,
somente de instintos somáticos. A partir do momento em que o indivíduo percebe que não
pode controlar aquilo que supõe ser parte da sua anatomia, o seio materno, é que surge uma
relação e a noção do eu. É na interação com o mundo que se forma o psiquismo, a estrutura
231
IASI, op. cit., 2007. p. 13.
232
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p.44-45.
233
IASI, op. cit. 2007, p.13.
120

básica do universo subjetivo do ser. Os indivíduos chegam ao mundo apenas com instintos e
impulsos básicos, o que Freud chama de ID 234. A vivência nas relações de família, permite o
início da construção do universo interiorizado. “Sob influência do mundo externo que nos
cerca, uma porção do ID sofre um desenvolvimento especial [...] que atua como intermediário
entre o ID e o mundo externo, o EGO”235. O mecanismo primordial dessa intermediação,
entre o EGO e o mundo externo, é o chamado princípio do prazer, pela qual se busca o prazer
e se evita o desprazer. Na busca do prazer, o EGO satisfaz as exigências do ID, levando em
conta a limitada realidade perceptível nesta fase da vida. A ação dos pais mediatiza as
exigências sociais, histórica e socialmente determinadas, apresentando-se ao “EGO em
formação como uma força a ser levada em conta na sua busca de equilíbrio e adaptação” 236.
Essa ação dos pais cumpre o papel de formação de um agente especial no prolongamento da
influência parental sobre o indivíduo, que somadas às influências da família (que para Freud
simboliza o núcleo de tipo burguês tradicional – pai, mãe e prole), e das tradições vivenciadas
por esta, o SUPEREGO. Tal movimento permite compreender que o controle social e a
dominação são subjetivados como autocontrole e como carga afetiva e não como meras ideias
que podem ser facilmente substituídas. O externo se interioriza, uma relação entre o EGO e o
mundo externo interioriza-se, formando uma parte constitutiva do universo subjetivo do
indivíduo. Neste momento reside um fenômeno de extrema importância para a formação da
primeira forma de consciência:

Acontece que aquilo que é visto pela pessoa em formação como mundo externo,
como objetividade inquestionável, portanto, como realidade, é apenas uma forma
particular, historicamente determinada, de se organizarem as relações familiares. No
entanto, esse caráter particular não é captado pelo indivíduo, que passa a assumi-lo
como natural. Assim, o indivíduo interioriza essas relações, as transforma em
normas, estando pronto para reproduzi-las em outras relações através da
associação. 237

Por conseguinte, na luta do EGO para administrar as exigências pulsionais do ID,


diante das condições estabelecidas os instintos se diferenciam em dois grupos fundamentais:
alimentação (ligada à sobrevivência física) e o sexo (ligada a atividade de desejo, vinculada à
reprodução). Toda criança elege um objeto de seu desejo e fantasia sua perfeita integração
com ele. Na estrutura triangular da família monogâmica essa ação é interrompida pela
presença de uma terceira pessoa. Assim, a fantasia e a possibilidade de eliminação do

234
FREUD, Sigmund. Esboço de psicanálise. In: Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1978.
235
Ibid. p. 199,200.
236
IASI, op. cit. 2007.p. 16.
237
Ibid. p. 17.
121

concorrente são contidas em função da sobrevivência imediata. Neste momento da vida, a


sobrevivência física é mais imediata que o desejo e por uma série de mecanismos, a criança
desenvolve um sentimento de impotência e culpa que o EGO sente como desprazer e busca
eliminar. A saída encontrada é dada pela própria natureza dos impulsos: reprime-se o desejo
para garantir a sobrevivência imediata. A partir daí, a cada passo o novo indivíduo vai
criando a base sobre a qual estruturará seu psiquismo e sua personalidade, ao mesmo tempo
em que amolda à sociedade da qual está interiorizando as relações e formando, a partir delas,
a consciência de si e do mundo. É claro que o que fica interiorizado não são as relações em si,
mas os padrões de conduta, normas, valores, concepções. Os elementos descritos até aqui são
os principais componentes da primeira forma de consciência, que Iasi sintetiza na forma de
sete elementos:

(1) A vivência de relações que já estavam preestabelecidas como realidade dada; (2)
a percepção da parte pelo todo, onde o que é vivido particularmente como uma
realidade pontual, torna-se a realidade (ultrageneralização); (3) por esse caminho, as
relações vividas perdem seu caráter histórico e cultural para se tornarem naturais,
levando à percepção de que sempre foi assim e sempre será; (4) a satisfação das
necessidades, seja da sobrevivência ou do desejo, deve respeitar a forma e a ocasião
que não são definidos por quem sente, mas pelo outro que tem o poder de determinar
o quando e o como; (5) essas relações não permanecem externas, mas se
interiorizam como normas, valores e padrões de comportamento, formando com o
SUPEREGO, um componente que o indivíduo vê como dele, como autocobrança e
não como uma exigência externa; (6) na luta entre a satisfação do desejo e a
sobrevivência, o indivíduo tende a garantir a sobrevivência, reprimindo ou
deslocando o desejo; (7) assim, o indivíduo submete-se às relações dadas e
interioriza os valores como seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e
reprodução.238

As relações familiares são complementadas, reforçadas ou revertidas pela inserção nas


diversas relações sociais pelo qual o indivíduo passa durante a vida. Nessas o indivíduo pode
assumir um papel mais ativo, menos dependente e até protagonista da sua história. No
entanto, nem sempre esse protagonismo se manifesta e a tendência é que essas vivências
secundárias (escola, trabalho, comunidade) à formação da personalidade, acabem por reforçar
as bases axiológicas lançadas na família. Na escola tradicional prussiana, por exemplo, as
regras são determinadas por outros que não os estudantes, com o poder para defini-las. Salvo
exceções, os alunos submetem-se diante da necessidade de sobrevivência imediata. As normas
internas são naturalizadas e a disciplina torna-os cidadãos disciplinados. Algo similar ocorre
no ambiente de trabalho assalariado, pois as regras são predeterminadas: vender a força de
trabalho a um patrão em troca de salário não é percebido como absurdo, mas como natural. A

238
IASI, op. cit. 2007. p.18-19.
122

lógica imposta pelo capital (externa aos indivíduos) interioriza-se e naturaliza-se. Os


indivíduos alegram-se quando algum capitalista dispõe-se a comprar sua força de trabalho, e
pregam as ideias do capital como se suas fossem. Para Iasi, “formada essa primeira
manifestação de consciência, o indivíduo passa a compreender o mundo a partir de seu
vínculo imediato e particularizado, generalizando-o. Tomando a parte pelo todo, a consciência
expressa-se como alienação”239. Assim, a alienação é a forma de manifestação inicial da
consciência. Essa forma será a base concreta onde será plantada a ideologia como forma de
dominação.

A ideologia não pode ser compreendida apenas como um conjunto de ideias que são
introjetadas na cabeça dos indivíduos pelos mais distintos meios como a mídia, a escola ou a
religião. Essa compreensão levaria ao equívoco de rotular uma ação anti-ideológica com a
possibilidade de trocar velhas por novas ideias – substituir ideias conservadores por ideais
revolucionárias. Marx e Engels, quando destacaram a importância do ser social e da
consciência social, para a compreensão materialista da história, oportunamente destacaram:

A consciência (das Bewunntsein), nunca pode ser outra coisa senão o ser consciente
(das bewusste Sein), e o ser dos homens é o seu processo real de vida. Se em toda a
ideologia os homens e as suas relações aparecem de cabeça para baixo como numa
câmera escura, é porque esse fenômeno deriva do seu processo histórico de vida da
mesma maneira que a inversão dos objetos na retina deriva do seu processo
diretamente físico de vida. Em completa oposição à filosofia alemã, a qual desce do
céu à terra, aqui sobe-se da terra ao céu. Isto é, não se parte daquilo que os homens
dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados,
imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte-se
dos homens realmente ativos, e com base no seu processo real de vida apresenta-se
também o desenvolvimento dos reflexos (Reflexe) e ecos ideológicos desse processo
de vida. Também as fantasmagorias (Nebelbildungen) no cérebro dos homens são
sublimações necessárias de vida material empiricamente constatável e ligado e
premissas materiais. A moral, a religião, a metafísica, e toda outra (sonstige)
ideologia, e as formas de consciência que lhe correspondem, não conservam assim
por mais tempo a aparência de autonomia [...]. Não é a consciência que determina a
vida, é a vida que determina a consciência.240

A alienação cede terreno para a ideologia, mas diferencia-se desta. A alienação que se
expressa na primeira forma de consciência é subjetiva, profundamente enraizada como carga
afetiva, baseada em modelos e identificações de fundo psicológico. A ideologia agirá sobre a
alienação e se servirá de suas características fundamentais para exercer uma dominação que
agindo de fora para dentro, encontrará nos indivíduos um suporte para estabelecer-se
subjetivamente.

239
IASI, op. cit. 2007. p. 20.
240
MARX; ENGELS, op. cit., p. 31-32.
123

Quando numa sociedade de classes, a que uma delas detém os meios de produção,
tende a deter também os meios para universalizar sua visão de mundo e suas justificativas
ideológicas a respeito das relações sociais de produção que garantem sua dominação cultural e
econômica. Em relação aos meios de comunicação em massa, se dizer que estes representam
os interesses da classe dominante já é ultrapassado; atualmente os meios de comunicação são
a própria classe dominante, tamanho é o avanço das fusões empresariais que redundam em
grandes conglomerados econômicos. Assim, as ideias da classe dominante são em cada época
as ideias dominantes:

Ora, se na concepção do curso da história separarmos da classe dominante as ideias


da classe dominante, se lhe atribuirmos uma existência autônoma, se nos limitarmos
a que numa época dominaram estas e aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as
condições de produção e com os produtores dessas ideias, se, portanto, deixarmos de
fora os indivíduos e as condições do mundo que estão na base das ideias, então
podemos dizer, por exemplo, que durante o tempo em que dominou a aristocracia
dominaram os conceitos honra, lealdade etc., durante o domínio da burguesia
dominaram os conceitos de liberdade, igualdade etc. [...]. Em média, é isso que a
própria classe dominante imagina. Essa concepção da história, que a todos os
historiadores é comum, em especial a partir do século 18, há de necessariamente
chocar com o fenômeno de que dominam ideias cada vez mais abstratas, isto é,
ideias que assumem cada vez mais a forma de universalidade.241

Em suma: cada nova classe que se coloca no lugar de outra que dominou antes dela é
obrigada, para realizar o seu propósito, apresentar o seu interesse como universal de todos os
cidadãos, ou seja: dar à sua ideia aparência de universalidade, apresentando-a como verdade
racional e com validade universal.

As relações sociais baseadas na propriedade privada e no assalariamento da força de


trabalho são determinantes do modo de produção capitalista e não propiciam condições para
emancipação humana, muito pelo contrário, são relações que potencializam e intensificam a
alienação, que se manifesta em pelo menos três níveis: (a) o ser humano está alienado da
natureza; (b) o ser humano está alienado de si mesmo; (c) o ser humano está alienado de sua
espécie. 242

Ao viver o trabalho alienado, o ser humano aliena-se da sua própria relação com a
natureza, pois é pelo trabalho que o ser humano se relaciona com a natureza, a humaniza e
assim pode compreendê-la. Vivendo relações em que ele próprio se coisifica, onde o produto
do seu trabalho lhe é algo estranho e que não lhe pertence, a natureza se distancia e se
fetichiza. Marx exemplifica o primeiro nível de alienação:

241
MARX; ENGELS, op. cit. p.68-69.
242
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.
124

[...] o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o
trabalhador. Produz palácios, mas cavernas para o trabalhador. Produz beleza, mas
deformação para o trabalhador. Substitui o trabalho por máquina, mas lança uma
parte dos trabalhadores de volta a um trabalho bárbaro e faz da outra parte máquinas.
Produz espírito, mas produz imbecilidade, cretinismo para o trabalhador.243

Num segundo aspecto, o ser humano aliena-se de sua própria atividade. O trabalho
transforma-se, deixa de ser a ação própria da vida para se converter num meio de vida. Ele
trabalha para o outro, contrafeito o trabalho não gera prazer, é a atividade imposta que gera
sofrimento e aflição. Alienando-se da atividade que o humaniza, o ser humano se aliena de si
próprio (autoalienação). Como resultado necessário desta relação, “encontramos a relação de
propriedade do não-trabalhador com o trabalhador e com o trabalho”.244

Isso nos leva ao terceiro aspecto. Alienando-se de si próprio como ser humano,
tornando-se coisa (o trabalho não me torna um ser humano, mas é algo que eu vendo para
viver), o indivíduo afasta-se do vínculo que o une à espécie. Em vez de o trabalho tornar-se o
elo entre os indivíduos, a produção social da vida, metamorfoseia-se num meio individual de
garantir a própria sobrevivência particular. Neste sentido, “o não trabalhador faz contra o
trabalhador tudo o que o trabalhador faz contra si mesmo, mas não faz contra si mesmo o que
faz contra o trabalhador”.245

Iasi aduz que a materialidade dessas relações produtoras da alienação (em seus três
aspectos) são expressas no universo das ideias como ideologia. São relações materiais
concebidas como ideias. A ideologia encontra na primeira forma de consciência uma base
favorável para a sua aceitação. As relações de trabalho já têm na ação prévia das relações
familiares e afetivas os elementos de sua aceitabilidade. 246

As referências mais singelas e corriqueiras como ter sucesso, ser alguém na vida, ser
pobre, ser rico e a própria felicidade, já são ancoradas no imaginário da criança com base em
um conjunto de valores interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois estão
referenciados nas relações concretas e nos vínculos afetivos familiares e de vizinhança que ela
possui antes mesmo que tenha qualquer informação mais sistematizada.

A percepção generalizada da vivência particular não apenas se baliza em valores como


deforma a realidade pela transposição de juízos presos à particularidade. Os valores que
aparecem como sendo de uma criança quando manifesta suas percepções infantis sobre ter

243
MARX, op. cit. p.82.
244
Ibid. p.89.
245
Ibid. p.90.
246
IASI, op. cit. 2007.
125

sucesso ou ser alguém na vida, não foram interiorizados pelo contato perceptivo com as
relações sociais determinantes na sociedade onde vive. Os valores são mediatizados por
pessoas que servem de veículo de valores, são modelos – modelos de sucesso e de pessoas
que são alguém na vida, de acordo com a limitada cadeia de valores-referência que a criança
já possui; mesmo que não conheça pessoalmente ninguém com tais características, mas
baseada na forma como outras pessoas se posicionam em relação a tais valores. “Não se trata
da identificação com a sociedade, as relações capitalistas ou as ideias; são as relações de
identidade com outros seres humanos, seus modelos, que a pessoa em formação assume
valores dos outros como sendo seus”.247 Assim o indivíduo vai construindo uma visão do
mundo que julga como sendo própria.

Essa visão acrítica, desistoricizada, sem um inventário, é o que Gramsci chama de


senso comum:

Quando a concepção de mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e


desagregada, pertencemos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa,
nossa própria personalidade é composta de maneira bizarra: nela se encontram
elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais moderna e
progressista; preconceitos de todas as fases históricas passadas, grosseiramente
localistas [...] o início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somos
realmente, isto é, um conhece-te a ti mesmo como produto do processo histórico até
hoje desenvolvido. 248

Esse conjunto que une desordenadamente e contraditoriamente elementos do senso


comum e instituições de um pensamento crítico (conforme a noção de Gramsci) é a base do
que Iasi chama de primeira forma de consciência. Ela apresenta-se como alienação não
porque se desvincula da realidade, mas pelo fato de naturalizá-la, por desvincular os diversos
elementos componentes da visão de mundo do seu contexto e de sua história.

A relevância da base dessa primeira forma de consciência leva Iasi a procurar outras
fontes de compreensão do fenômeno. Assim, o autor passa a considerar os estudos de Norbert
Elias na obra A sociedade dos indivíduos249. Nesta, Elias se debruça sobre a relação entre a
pluralidade de pessoas e a pessoa singular chamada de indivíduo, e da pessoa singular com a
pluralidade de pessoas definia como sociedade. Neste desenvolvimento histórico particular, o
controle social é internalizado como autocontrole e como repressão dos impulsos (a
dominação é subjetivada como carga afetiva), visando oportunizar uma realização do ideal de
ego.
247
IASI, op. cit. 2007. p.24.
248
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. p.12.
249
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1994.
126

Esse ideal de ego do indivíduo, esse desejo de se destacar dos outros, de se suster
nos próprios pés e de buscar a realização de uma batalha pessoal em suas próprias
qualidades, aptidões, propriedades ou realizações, por certo é um componente
fundamental da pessoa individualmente considerada. Trata-se de algo sem o qual ela
perderia, a seus próprios olhos, sua identidade de indivíduo. Mas não é,
simplesmente, parte de sua natureza. É algo que se desenvolveu nela através da
aprendizagem social. Como outros aspectos do autocontrole ou consciência, só
emergiu na história, dessa maneira pronunciada e difundida, gradativamente.250

De acordo com Elias, o ideal de ego está relacionado ao processo histórico de


individualização. Quer se aperceba disso ou não, o indivíduo é colocado numa constante luta
competitiva (parcialmente tácita e parcialmente explícita) em que ele possa dizer a si mesmo:
“esta é a qualidade, posse, realização, ou dom pelo qual me difiro das pessoas que encontro a
meu redor, aquilo que me distingue delas”.251

Em outras palavras, esse ideal faz parte de uma estrutura de personalidade que só se
forma em conjunto com situações humanas específicas com sociedades dotadas de uma
estrutura particular, com alto grau de diferenciação. É algo da esfera pessoal e ao mesmo
tempo, específico de cada sociedade. O ser não escolhe por livre convicção o ideal
individualista entre diversos outros existentes. De acordo com Elias, esse ideal individual é
socialmente exigido e inculcado na grande maioria das sociedades altamente diferenciadas. É
claro que existe possibilidade de resistir a tal exigência social, decidindo por si só e
destacando-se dos demais. Mas em geral, essa forma de ideal de ego e o alto grau de
individualização a ela correspondente são parte integrante de seu ser, uma parte de que não
podem livrar-se assim tão facilmente.

Normalmente, as pessoas criadas dessa maneira aceitam o ritual de batalha e o


comportamento que o acompanha como naturais. A margem de escolha (aparentemente
ampla) nestas sociedades se limita às metas possíveis – primeiro através da posição de seus
pais e depois através da que ela mesma atinge – para realizar atividades que destaquem os
indivíduos dos demais, seja de esporte ou lazer.

No entanto, a probabilidade de se chegar à realização desses fins são sempre ínfimas


em relação ao número de pessoas que buscam. Isso também estimula uma batalha pessoal
aprendida, produzida no indivíduo por instituições sociais e experiências específicas; sendo
que as próprias instituições sociais não satisfazem a realização dos desejos criados. Assim,
essa luta só poderá ser vencida por uma minoria.

250
ELIAS, op. cit. p.118.
251
Ibid.
127

Se por outro lado, o indivíduo sofre um processo crescente de autonomização, por


outro, “é característico da estrutura das sociedades mais desenvolvidas de nossa época que as
diferenças entre as pessoas, sua identidade-eu, sejam mais altamente valorizadas do que
aquilo que elas têm em comum, sua identidade-nós”.252 Em estágios anteriores do
desenvolvimento era muito comum a balança nós-eu ser inclinada para o lado da identidade-
nós em vez da identidade-eu. Tal guinada exige reposição social de autocontrole em doses
ainda maiores. A preponderância da identidade-eu sobre a identidade-nós produz uma forma
de ser-estar particular da modernidade, o das cápsulas de individualidade. Iasi aponta que
essa forma particular de ser-e-estar é generalizada pelas engrenagens do capital ao longo de
um processo no qual a generalização do ser social particulariza-se e particularidade
universaliza-se.

A individualização do ser social é uma precondição para que os livres vendedores de


força de trabalho se apresentem ao mercado, assim como é essencial para a forma
privada de apropriação dos meios de produção e, mediante este ato, também do
valor excedente gerado no processo de consumo da mercadoria força de trabalho. No
reino da igualdade todos os indivíduos disputam entre si, seja uma vaga no mercado
de trabalho, seja na livre concorrência entre capitalistas, e esta guerra é disciplinada
pelas leis do mercado e suas mãos invisíveis.253

Por tal razão, na sociedade das cápsulas de individualidade, a consciência imediata só


pode assumir a forma de consciência do eu, e um eu que tenderá a (re)produzir,
continuamente, os parâmetros da primeira forma de consciência.

A (re)produção social, mesmo de uma consciência encapsulada na forma do eu, não


tem outra maneira de se processar senão coletivamente. “A consciência é relacional e por isso
mesmo que está plenamente permeada pelas contradições e antagonismos típicos das relações
sociais sob o sociometabolismo do capital” 254. Os valores liberal-burgueses, subjetivados
afetivamente, acarretam uma situação em que os trabalhadores vislumbram na venda de sua
força de trabalho a única possibilidade de subir na vida e ascender de classe. Trabalhar cada
vez mais horas; para mais de um empregador; ser autônomo; desenvolver competências;
trabalhar informalmente. Contudo, essas práticas, que são estratégias de valorização da força
de trabalho, e de acordo com Ferraz 255 tendem a produzir duas consequências:

252
ELIAS, op. cit. p.130.
253
IASI, op. cit. 2012, p. 195.
254
FERRAZ, Deise Luiza da Silva. Projetos de geração de trabalho e renda e a consciência de classe dos
desempregados. In: Organizações e Sociedade, 2015, v. 22, n.72, p. 128.
255
Ibid. p. 129
128

(1) Por mais criativos, talentosos e flexíveis que sejamos, é inerente ao processo de
(re)produção do capital que não haja trabalho para todos; os obstáculos da
mobilidade social são, em geral, creditados ao sistema de méritos, o que faz encobrir
a questão realmente determinante – é a posição ocupada pelo indivíduo no processo
produtivo o condicionante do acesso ou não à qualificações, networks e postos de
trabalhos mais rentáveis, limitando a muito poucos chances efetivas de vencer na
vida;
(2) Um possível aumento na renda se faz acompanhar pelo aumento do desgaste
físico-psíquico, que deteriora a mercadoria vendida (força de trabalho), reduzindo
sua possível vida útil para o capital. [...]. Por outro, aquele aumento não ocorre sem
a correspondência proporcional no aumento da produtividade do trabalho que, por
sua vez, intensifica a concorrência intra-classe trabalhadora, tendendo a um
decréscimo do valor da mercadoria no mercado de trabalho, isto é, efetiva-se a
tendência do decréscimo do possível primeiro aumento do rendimento no âmbito
geral. Tal luta heroica e individualizada para vencer na vida evolui numa crescente
de agressividade e tende a resultar em cada vez menos e menores vantagens reais
para os vendedores de força de trabalho.

No exemplo citado a respeito do senso comum sobre o sonho da mobilidade social


observa-se que ele é sustentado: (a) pelos valores constituintes da consciência encapsulada
que redundam no vencer na vida; (b) pelas ideias aceitas pelo grupo imediato do que
representa vencer na vida; e (c) pelas possibilidades concretas no mercado de trabalho – não
raro, algum trabalhador que atinge o sucesso será exaustivamente propagandeado.256 No
entanto, a exceção confirma a regra.

Num contexto onde o trabalhador-indivíduo percebe o outro mediado por relações


sociais alienadas fixadas na primeira forma de consciência, há o obscurecimento de que o
crescimento de alguns só é possível à custa do descarte de outros.

3.2.3 As contradições da primeira forma de consciência

Os argumentos que até agora sustentaram a consciência como um processo, permitem


reconhecer que esta é formada a partir de uma relação dialética entre as representações ideais
dos indivíduos e as relações concretas por estes assumidas. O universo ideológico não pode
ser entendido como mero reflexo mecânico das relações sociais, o que colocaria no caminho
armadilhas do tipo: Quem determina a alienação? A família ou as relações de trabalho? A
leitura dialética possibilita entender que a família, que antecipa sua ação no indivíduo em
relação às atividades de produção, é por sua vez determinada por essas relações, na verdade as
mediatiza: aquilo que determina é determinado. A família, que ao mesmo tempo reproduz e
reforça relações sociais de produção, fornece o suporte necessário para que a ideologia
frutifique e garanta a reprodução destas.

256
FERRAZ, op. cit. p.128-129.
129

Não pode haver dominação ideológica perfeita. A ideologia e as relações sociais de


produção formam um todo dialético, não estabelecem simples relações de
complementariedade, mas uma união de contrários. Por mais elaborada, sofisticada ou
eficiente que seja a ideologia, ela é ainda a representação mental de certo estágio das forças
produtivas historicamente determinadas. Uma visão de mundo interiorizada não torna-se
irrevogável pois a estrutura produtiva e as relações que lhe deram vida podem alterar-se;
inclusive tais alterações constantes das condições materiais são marcas do modo de produção
capitalista, portanto vitais para os interesses dominantes. Eis aqui uma contradição insolúvel
da sociedade capitalista que pode virar o germe de uma crise ideológica:

Enquanto as forças produtivas devem constantemente desenvolver-se, as relações


sociais de produção, sua manifestação e justificativa ideológica devem permanecer
estáticas em sua essência. Com o desenvolvimento das forças produtivas, acaba por
ocorrer uma dissonância entre as relações interiorizadas como ideologia e forma
concreta como se efetivam na realidade em mudança.257

Tal contradição pode ser vivida como um conflito subjetivo pelo indivíduo. Se sua
consciência inicial é formada pela interiorização de normas, valores e comportamentos
sentidos a partir das relações imediatas que estabeleceu desde sua mais tenra idade, o
mecanismo provocador da contradição na primeira forma de consciência não é outro senão o
próprio que lhe deu existência. Em tese, as relações vividas com novos conteúdos têm similar
potencial de interiorização que as anteriores, podendo gerar novos valores que servirão de
base para novas condutas e comportamentos.

No mesmo sentido da reflexão anterior: se alguém que acreditasse que trabalhando


cada vez mais horas por dia, para mais de um empregador, desenvolvendo competências,
poderia alcançar tudo o que quer, mas não consegue o suficiente para viver tampouco possuir
um lar próprio; vivencia uma contradição que pode levá-lo à revolta. Suas relações concretas
passam a não corresponder à base de valores interiorizada, contudo, tal contradição ainda é
vivida na subjetividade e está condicionada aos limites da própria estrutura da sua primeira
forma de consciência.

A primeira forma de manifestação dessa contradição não é ainda a superação da


alienação, é mais uma forma transitória que se expressa de maneira mais nítida, no estado de
revolta.

257
IASI, op. cit., 2007, p.27.
130

Nesse momento da vida, as relações são vividas como injustas e talvez exista a
disposição subjetiva de não se submeter a algo. No entanto, pela complacência própria da
primeira forma de consciência ou pelo instinto de sobrevivência, as contradições acabam
sendo mentalmente convertidas a fatalismos inerentes à realidade do trabalhador.

É apenas sob certas condições que a insatisfação pode se tornar uma passagem para a
nova etapa do processo de consciência.

3.2.4. O processo dialético de totalização mediado pelos grupos

Na busca por pistas dessas condições de superação da primeira forma de consciência


(como visto, marcada pela alienação subjetiva do indivíduo), Iasi faz uma conexão entre a
situação da autonomização do indivíduo nas cápsulas de individualidade de Elias e a noção
de serialidade de Jean-Paul Sartre na obra Crítica da Razão Dialética258. O capital produz um
novo tipo de escassez por meio da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. Na
sociabilidade do capital o seu humano é empurrado para uma luta pela busca do fim
estipulado pela materialidade capitalista fetichizada onde os indivíduos concorrem entre si
pelas possibilidades de uma vaga na divisão social do trabalho – a única maneira de garantir a
sobrevivência no contexto da luta de todos contra todos. Tal sociabilidade é o que Sartre
denomina de “campo prático-inerte”259. Nesse campo ainda existe reciprocidade, mas de
forma invertida, pois a forma social coletiva é a da ocupação do mesmo espaço de luta, “como
multiplicidade de individualidades, como pluralidade de solidões”. Essa forma de expressão
inicial do coletivo é que Sartre denominará de serialidade260. Cada indivíduo vem de sua
inserção em grupos, mas a série em que se encontra não é um grupo, é um coletivo serial no
qual cada parte está acidentalmente ocupando um lugar, cada um é indeterminado, estão
reunidos, mas não integrados. Sartre exemplifica a questão com duas situações cotidianas
vivência de serialidade: pessoas numa fila do ônibus (vivência presencial direta) e ouvintes de
uma rádio (situação de ausência). – e que poderia ser perfeitamente compreendida, de forma a
atualizar o exemplo de Sartre, como a serialidade de um grupo qualquer de pessoas que
recebe as mesmas informações por algum aplicativo conectado às redes sociais.

A consciência imediata do ser sob esta ordem só pode se apresentar como uma
consciência individual, naturalizada e atemporal, desagregada e ocasional, formada
bizarramente, mas revelando uma coerência irretorquível àquela que a possui, herdada de uma
258
SARTRE, Jean-Paul. Crítica de la Razón Dialéctica. Buenos Aires: Editorial Losada, v.1, 1979.
259
IASI, op. cit., 2012, p. 215.
260
SARTRE, Ibid. p.396.
131

sociabilidade objetiva imposta, mas que o indivíduo julga como sua autêntica subjetividade.
Cada um buscando seu próprio interesse realiza o interesse geral, mas este não é a harmonia e
a felicidade do conjunto como quer o pensamento liberal, mas o capital total e a reprodução
das condições gerais de sua perpetuação. Neste sentido, a alienação não estaria apenas na
objetividade do ponto de partida e na forma objetivada ao final, mas igualmente na mediação
pela própria atividade dos indivíduos, constituindo não propriamente uma práxis, mas uma
antipráxis na qual o espaço da liberdade é nulo.261

Em suma, a interiorização de uma objetividade social particular se mostra como


subjetividade singular, como traço diferencial da personalidade, quando na verdade cada um
se comporta de acordo com o interesse do próprio sociometabolismo do capital, na convicção
que realiza uma escolha permitida pela igualdade formal internalizada como conquista social.

Para Sartre, a dialética dos grupos é uma dialética da totalização, momento no qual se
instituem totalidades a partir de totalidades instituídas, momento de mediação subjetiva entre
duas objetividades: (1) aquela na qual o ser humano se encontra como ponto de partida e (2)
aquela que é produto de sua objetivação. Assim, este movimento descreve uma negação da
negação, de forma que a primeira objetividade, o chamado campo prático-inerte, é negada
pela ação subjetiva da livre práxis, que produz uma nova objetivação que se aliena em um
novo campo prático-inerte.

Essa totalização dialética reproduz no grupo a negação da negação, assim “o grupo é a


mediação que permite à universalidade encontrar o caminho de sua própria recondução como
totalidade; por isso, o grupo é o momento particular desta totalização” 262. Para Iasi, o grupo é
pré-condição de passagem entre a vivência de uma contradição entre antigos valores
assumidos e a realidade das novas relações vividas; é a possibilidade da primeira negação da
serialidade e constitui o meio pelo qual a práxis livre age sobre a materialidade objetiva e
pode transformá-la. No entanto, o autor alerta para um risco: ao se construir enquanto grupo-
organização, o grupo passa a ser objeto de sua própria ação objetivando-se e, sob certas
condições, se institucionalizando de modo a negar sua negação e retornar a serialidade. 263

Os momentos pelos quais o grupo constitui-se em sua totalização dialética, na


abordagem de Sartre, é o que se discutirá a seguir.

261
IASI, op. cit, 2012. p.217.
262
Ibid. p.285
263
Ibid, p.84.
132

O primeiro momento do percurso de totalização dialética é a situação de serialidade,


ou o coletivo serial. Assim, a força que age sobre o coletivo serial e pode transformá-lo em
grupo assume a forma de uma impossibilidade:

[...] até aqui, de fato, - na dimensão do coletivo -, o real se definia por sua
impossibilidade. Aquilo que chamam de sentido de realidade significa exatamente:
sentido daquilo que por princípio, está proibido. A transformação tem, pois, lugar
quando a impossibilidade é ela mesma impossível, ou, se preferirem, quando um
acontecimento sintético revela a impossibilidade de mudar como impossibilidade de
viver. O que tem como efeito direto que a impossibilidade de mudar se volta como
objeto que se tem que superar para continuar a vida.264

Noutras palavras: a situação de serialidade é produzida por algo que não depende da
vontade de cada indivíduo do coletivo serial, como no exemplo do passageiro de ônibus na
relação com o objeto ônibus e no caso do eleitor na relação com objeto eleição (outro
exemplo utilizado por Sartre); mas tanto o passageiro como o eleitor veem seus atos como
expressão particular da sua vontade e acreditam estarem em situação de alteridade serial para
com o outro. Assim, o mesmo fator (espera na fila/eleições) produz a alteridade serial
(passageiros/eleitores) e a unidade de conjunto como coletivo (fila/colégio eleitoral). Como o
real é aquilo que está proibido pela situação de serialidade (entrar diretamente no ônibus ou
fazer política com as próprias mãos não passa na cabeça do indivíduo serial), o fator que age
na transformação do coletivo serial em grupo é uma impossibilidade da impossibilidade que
atua em algum ponto essencial à sobrevivência. O coletivo serial é colocado diante da
impossibilidade de manter uma restrição que ele mesmo produz em cada um e no todo, e vê a
necessidade de romper o campo prático-inerte. Ao agir o “coletivo verifica com surpresa
como em um momento de sua atividade passiva foi um grupo”265 Tal momento pode marcar a
quebra da serialidade em direção ao grupo em fusão – segundo momento do percurso. Esse
momento se dá quando a necessidade individual ou o perigo são sentidos como problemas
comuns e agrupam os indivíduos, dissolvendo a serialidade. Não se trata de um simples
enxergar-se no outro, pois além da formação do grupo, a fusão dá-se na ação de romper com
a serialidade em direção à práxis aberta à totalização. A partir desse momento o grupo vive
uma permanente tensão entre o caminho aberto pelo grupo em fusão, no sentido de totalização
e a ameaça de se dissolver na serialidade. Se o grupo não se dissolve há uma tendência de
afirmação da práxis livre mediante uma reciprocidade com capacidade para reproduzir sua
própria inércia na direção do objetivo comum para negar a serialidade. É como se fosse uma

264
SARTRE, op. cit., p.14.
265
Ibid, p.287.
133

primeira “negação da dialética no coração da dialética” 266. É a fase do novo estatuto que
Sartre chama de juramento (terceiro momento do percurso de totalização dialética). Mas a
diferença qualitativa deste momento de inércia dentro do movimento de totalização é que a
identidade do grupo não é mais dada por uma entidade externa, é fruto da mediação do
próprio grupo, que trata de alcançar a práxis livre ao mesmo tempo em que limita livremente
esta liberdade. O projeto já é um projeto recíproco do grupo, e o compromisso já é mediado
por um terceiro, pois o juramento de cada um é também juramento dos outros e do grupo ao
mesmo tempo. Sua solidez se explica pela manutenção de algo externo, por um perigo, pelo
medo. Enquanto ameaça externa, este objeto de perigo está na base da fusão do grupo; no
entanto, num segundo momento de relaxamento dessa situação de perigo externo produz em
cada um do grupo a persistência de uma nova ameaça e um novo perigo: “o de progressivo
desaparecimento do interesse comum e do reaparecimento dos antagonismos individuais e da
impotência serial”267. O juramento é o produto que deriva desse momento da vida do grupo e
o demarca agora como grupo jurado. Nesse sentido, o juramento pode ser compreendido
como pacto coletivo permanente (seja explícito ou implícito) que carrega as marcas da
motivação e da intensidade do envolvimento dos seus integrantes na sua criação. As
Organizações de Trabalho Associado também possuem seus juramentos, e estes costumam
refletir os movimentos e bandeiras de luta representadas e as principais motivações dos seus
integrantes (geração de renda, alternativa ao desemprego, direito ao trabalho, integração
social etc.). As OTAs menores tendem a ter juramentos mais vívidos, enquanto as mais
numerosas dificilmente logram escapar da burocratização, mesmo que em proporções
mínimas. As OTA que passaram por situações de conflito intenso tendem a carregar consigo
esta tatuagem como elemento que fortalece os laços identitários do grupo. Um simples
exemplo capturado na entrevista de um integrante da CooperActiva pode exemplificar a
questão:

[...] no passado fomos mais flexíveis com quem ficava aqui, as vezes nem sabíamos
quantos estavam dormindo, atualmente somos mais seletivos e mandamos embora
quem não comunga dos nossos princípios libertários. Não somos muito rígidos
quanto a leituras específicas do anarquismo, mas não aceitamos um cara machista ou
homofóbico aqui dentro. Isso já ocorreu e mandamos ele embora. 268

Nesse caso a natureza do juramento reflete a identidade política desse sujeito coletivo
e sua rigidez é diretamente proporcional ao tamanho das ameaças e dos perigos que

266
SARTRE, op. cit., p.14.
267
Ibid.
268
Entrevista realizada com morador da CooperActiva em janeiro de 2016.
134

atormentam o grupo cotidianamente.269 Tal perspectiva está relacionada ao próximo momento


do percurso de totalização dialética, como reação direta do grupo jurado e que o encaminha
no sentido do quarto movimento do percurso de totalização dialética definido por Sartre como
fraternidade-terror.270 Para Iasi, por mais paradoxal que possa parecer, este é o momento de
mais elevada liga solidária e unidade do grupo, pois é um momento de unidade de contrários
fundamental que lhe confere identidade. O grupo em fusão que se transforma no grupo jurado
reforça os laços que mantém o grupo unido e solidifica os mecanismos de identidade
horizontal (entre os membros dos grupos) e vertical (com as eventuais lideranças); assume o
ser-no-grupo como limite insuperável: fora dele há morte271. O não juramento de um terceiro
elemento no interior do grupo passa a representar a possibilidade concreta de sua dissolução
novamente em serialidade (regredindo ao primeiro momento do sistema de Sartre). Quando
esta ameaça ao grupo manifesta-se internamente, desencadeia-se um violento processo de
terror, mas precisamente no fato de que o grupo tem o direito de matar o traidor (nas
palavras de Iasi), seja diretamente – dependendo da temperatura histórica – seja por sua
expulsão do grupo, considerado limite fora do qual a vida é impossível. A figura do
dissidente, ou do traidor, funciona internamente na situação do grupo como substituto da
ameaça externa, permitindo, pois a utilização da força comum, até então comprometida contra
o adversário e que agora é considerada legítima por intermédio do pacto coletivo estabelecido.
O membro do grupo que representa essa situação pode não ser imediatamente eliminado, pode
inclusive ser mantido no grupo para que possa ser constantemente aniquilado em nome da
solidariedade do grupo. No exemplo dado anteriormente da CooperActiva, além de proceder a
retirada de um visitante machista ou homofóbico tal eliminação (de quem poderia inclusive
tornar-se membro futuro do grupo) cumpre papel de afirmação dos valores do coletivo,
definindo as fronteiras daquilo que é aceito e o que não pode ser aceito – uma espécie de
pedagogia da coerência, pois não bastam acordos formais se tais acordos não são reforçados
concretamente, é necessário ter coerência nas relações cotidianas do grupo. Organizações que
não demonstram as fronteiras de sua solidariedade em momento algum das relações
concretas; são solidárias a quê? Nessa direção, Lia Tiriba põe na ordem do dia importante
questionamento, quando discute a fragmentação da cultura nas organizações econômicas

269
Os anarquistas e punks são historicamente perseguidos por grupos neonazistas e por outras tribos urbanas
derivadas. Por se tratar de uma OTA que oferta atividades abertas ao público, tais grupos não tem entrada
permitida e qualquer pessoa que apresente comportamento que destoe minimamente dos princípios da casa é
imediatamente retirada do local.
270
IASI, op. cit., 2012, p.290.
271
Ibid.
135

populares e as distintas origens e influências dos grupos: economia solidária, mas solidária a
quê? Na sequência da pergunta, a autora desenvolve o argumento:

Não se pode afirmar que a formação de grupos de trabalhadores associados é, em si


mesma, indício de um futuro processo de contra-hegemonia e que seus objetivos são
antagônicos aos de uma sociedade estruturada em classes sociais. Não há,
necessariamente, a intenção do partido político ou do intelectual coletivo de lutar
contra os antagonismos estruturais do modo de produção capitalista. Devido à
experiência associativa anterior (eclesial, sindical, de vizinhança etc.), alguns grupos
já surgem com a intenção de um projeto embrionário; outros vão acontecendo ao
longo do caminho e pouco a pouco seus atores dão-se conta de que não querem
voltar à forma anterior ao trabalho, de que não querem voltar a ter um patrão. [...]
Por certo, quando o grupo surge com um vínculo estreito com os movimentos
populares (ou, pelo menos, com a comunidade local), quando os trabalhadores
viveram experiências anteriores ou o associativismo é algo que, embora novo, é
intensamente refletido pelos seus integrantes, maior é a possibilidade de construção
de um processo de trabalho calçado em relações mais amplas de solidariedade. 272

Durante o trabalho de campo, teve-se notícia de outra situação ocorrida na OTA 4,


conveniente para elucidar o momento fraternidade-terror descrito por Sartre e a sua
importância para o grupo. Após o polêmico e inusitado processo de aprovação do pedido de
impeachment da Presidente Dilma Rousseff na câmara dos deputados em abril de 2016 273,
integrantes de um empreendimento da Associação Bem da Terra manifestaram apoio ao
posicionamento do deputado; iniciando uma sequência de manifestações nas redes sociais
com a publicação de conteúdos supostamente incompatíveis com a proposta da Associação,
que manifestavam discursos de ódio a minorias, posicionamentos racistas, sexistas e
homofóbicos; odiosos inclusive aos próprios movimentos que integram a Associação. Quando
questionados pelas razões das manifestações os associados reafirmaram seu posicionamento,
destacando que não havia sido um posicionamento inocente e sim uma opinião consciente274.
Assim, o comportamento foi considerado incompatível com os princípios éticos da associação
por uma das categorias que compõe a associação – o Conselho de Consumidores. O conselho
apresentou a questão na reunião geral da Associação por meio de uma carta que além de
sugerir atividades formativas que tratasse da conjuntura política nacional, destacava:
“precisamos nos pautar firmemente por valores que se alicercem numa ética de
solidariedade e tolerância para reforçar os princípios éticos e preceitos ideológicos

272
TIRIBA, Lia. Economia popular e cultura do trabalho – pedagogia da produção associada. 2001. p.346-359.
273
Remete-se ao fato de um dos deputados, ao declarar seu voto, declarou homenagem ao coronel
reformado Carlos Brilhante Ustra, que foi chefe do Doi-Codi de São Paulo entre 1971-1974, um dos mais
sangrentos centros de tortura da ditadura militar no Brasil 1964-1985. Em nota o conselho federal da Ordem dos
Advogados do Brasil declarou: “não é aceitável que figuras públicas, no exercício de um poder delegado pelo
povo, se utilizem da imunidade parlamentar para fazer esse tipo de manifestação num claro desrespeito aos
direitos humanos e ao Estado Democrático de Direito". Disponível em: <http://www.oab.org.br/noticia/51516/
oab-emite-nota-de-repudio-a-declaracoes-de-deputado?argumentoPesquisa=formsof(inflectional,%20%22bolson
aro% 22)>. Acesso em: 15 mai. 2016.
274
Conversa informal ocorrida com integrante do Conselho de Núcleos.
136

afirmados pelo regimento da Associação a fim de rejeitar qualquer manifestação que


fira estes valores, seja por parte dos consumidores ou dos produtores [...]
defendemos a revogação da participação do associado que não respeite as premissas
275
da Associação conforme o seu regimento”.
Não se teve notícia do resultado das repercussões do fato, mas esse pode ser
compreendido como situação capaz de fortalecer ou enfraquecer a unidade de contrários. Se o
fato não for gerador de qualquer represália ou desconforto no grupo, esta inércia pode ser
interpretada como um sinal de regresso à serialidade, ou mais sutilmente: que o momento da
fusão não foi bem consolidado no grupo. Recorde-se que o processo de totalização mediado
pelos grupos tem natureza essencialmente dialética, sendo importante o cuidado de não
considerar os diferentes momentos ou movimentos de forma etapista ou linear.

Para Iasi, a condição para o juramento é a fusão, e o juramento é a base para a


fraternidade-terror, que anuncia os elementos do quinto momento do processo de totalização:
o grupo organizado ou a organização.276

Se o direito à violência que cada um tem sobre o outro fundamenta a solidariedade do


grupo, esse direito, dependendo da forma de controle do seu exercício também pode ameaçá-
lo de desintegração. A fim de alicerçar o que Sartre denomina de poder difuso de
jurisdição277, o grupo, diante de um juramento, um objetivo comum, de um projeto comum,
do perigo comum; especializa funções e distribui tarefas. O momento da organização foi
intensamente explorado no capítulo II da pesquisa. As particularidades de cada organização,
seus distintos percursos de luta, a existência de distintos órgãos e coordenações mais ou
menos formalizadas, instâncias de poder, divisão do trabalho, interferência de agentes
externos, canais de participação e de deliberação direta, tipos de gestão; todos componentes
que traduzem distintas perspectivas autogestionárias presentes nas OTAs que em outras
palavras traduzem a repartição do poder jurídico de uma forma difusa.

Para Iasi, é nesse momento que o poder jurídico difuso assume forma de regulamento,
estatuto, normas comuns. Ainda que já baseado em uma diferenciação de funções na qual são
definidas as estruturas básicas nas quais o grupo define e inventa suas instituições a partir de
rupturas e continuidades com o campo prático-inerte do qual partiu, como atividade-
estruturada, o ciclo ainda não se fechou sobre a práxis livre do grupo. A diferença em relação

275
Arquivo interno da Associação Bem da Terra.
276
IASI, op.cit. 2012. p.291.
277
SARTRE, op. cit., p.14.
137

à etapa anterior é que agora se trata de uma “práxis organizada”, “uma ação do grupo sobre si
mesmo, com a ação de seus membros sobre o objeto” .278

Atenção: aqui reside um divisor importante e central para a compreensão do


argumento de Sartre! Aqui se encerra o ciclo sobre a práxis livre do grupo. Mas, por quê?

Ao proceder como práxis organizada, o grupo se objetiva em um produto – o grupo


organizado – de forma que essa objetivação comum não é senão a realização do objeto.
Contudo, “o grupo se temporaliza em uma objetivação que o suprime como organização ativa
em benefício do resultado como realidade produzida” 279. Para Iasi, a implicação final deste
movimento é que a totalização, no interior da qual os agentes produziam a si mesmos
mediante a atividade, se totaliza por meio da organização em seu estágio mais elevado e a
“livre práxis de converte em processo”280. Enquanto a práxis se desdobra a si mesma diante de
um campo de possibilidades em direção a um fim, ou seja, é projeto, o processo, por seu
turno, é práxis constituída, mediada por instrumentos que se tornaram seus próprios fins,
enquanto o fim, antes projeto, se converte em outro em-um-outro-lugar evanescente:
virtualiza-se.

Este é o momento em que o grupo se converte em Instituição, sexto momento do


processo de totalização.

A livre práxis do grupo organizado se cristaliza e é convertida em práxis constituída,

o grupo se institucionaliza, endurece, envelhece; o que era movimento se torna


rotina, o que era ação converte-se em procedimentos, o que era poder jurisdicional
difuso se tornam instâncias, o que eram laços de solidariedade se torna disciplina, o
que era projeto se torna programa. Não se apresenta mais como uma força que,
diante da impossibilidade da impossibilidade, se move para a ação, mas constitui,
ele próprio, parte de um novo campo prático-inerte que se move pela reprodução da
inércia de certas impossibilidades. 281

Para Sartre, a práxis orgânica instituída “se manifesta como inércia insuperável, isto é,
como exterioridade explosiva”. 282

Neste ponto ocorre o retorno à serialidade inicial, pois aquilo que era uma atividade
em si repleta de significação é substituída por uma função institucional – é a livre práxis
transformada em procedimento institucional: uma ação cada vez mais mediada por

278
SARTRE, op. cit., p.114.
279
Ibid., p.125.
280
IASI, op. cit. 2012. p.293.
281
Ibid. p.293.
282
SARTRE, ibid. p.223.
138

procedimentos e normas, tempos e ritmos, necessidade de coordenar o esforço de vários


indivíduos numa ação disciplinada, ou seja, “cada vez mais assumindo uma racionalidade que
conhecemos muito bem desde Weber, cada vez mais impessoal e rotineira, a decrescente
importância do carisma e sua substituição pela disciplina racional: a organização
burocrática”283 (sétima situação da totalização).

Pela lógica dialética-circular de Sartre, a forma institucional do movimento do grupo o


leva, no ponto máximo de sua manifestação, à negação do próprio ser do grupo por meio da
forma burocrática e esta reconduz de volta à serialidade, pelo processo de negação da negação
dessa.

Assim, importa visualizar os distintos momentos do processo dialético de totalização


por meio dos grupos: a serialidade (coletivo serial), o grupo em fusão, o grupo jurado, a
fraternidade-terror, o grupo organizado, a instituição, a organização burocrática e o retorno à
serialidade. Para tanto segue uma ilustração (Figura 12):

Figura 12 – Processo dialético de totalização mediado pelos grupos


(Sartre e considerações de Iasi)
Fonte: FERRAZ (2010 apud MENNA-BARRETO, 2012, p. 197)284.

283
IASI, op.cit. 2012. p. 295.
284
FERRAZ, Deise Luiza da Silva; MENNA-BARRETO, João Alberto. A organização dos trabalhadores
desempregados como mediação para a consciência de classe, o&s - Salvador, v.19, n.61, p.187-207,
abr./jun.2012.
139

A ilustração apresenta interessante síntese do argumento. Sartre vê o fim do


movimento sendo imposto pela negação da negação, ou seja: pelo retorno à serialidade.
Encerra-se o ciclo sobre a práxis livre do grupo que é cristalizada em práxis constituída;
aquilo que era uma atividade em si repleta de significação é substituída por uma função
institucional burocrática – uma ação mediada por procedimentos e normas, tempos e ritmos,
necessidade de coordenar o esforço de vários indivíduos numa ação disciplinada.

Neste sentido, Iasi apresenta importantes ressalvas ao raciocínio de Sartre285, a que


mais interessa ao tema desta tese é o caráter imutável da dialética circular de Sartre em
relação ao fim do movimento do grupo. Quando os indivíduos seriais, após constituírem-se
como grupo e edificarem a organização burocrática, opera-se o retorno da serialidade, mas
não o fechamento de um ciclo, pois para Iasi a dialética do movimento ocorre seguindo um
espiral e não de forma circular. Assim, a negação da negação apresenta duas possibilidades do
grupo: (1) a cristalização da práxis livre em práxis constituída – a burocratização; (2) o salto
em direção à classe pela percepção de que o complexo de contradições no qual estão inseridos
vai além do seu autointeresse. A impossibilidade da impossibilidade como fator de
transformação não reside num ponto essencial à sobrevivência do grupo (como o que ocorre
no movimento do coletivo serial em direção ao grupo); agora a impossibilidade da
impossibilidade reside na produção social da existência humana enquanto espécie, permitindo
a constituição da consciência como consciência humana e de classe, em si e para si.

Os distintos momentos da totalização dialética dos grupos correspondem a momentos


da consciência em seu próprio movimento - a consciência individual do ser social imersa na
serialidade. A crise de objetividade é interiorizada na forma desta consciência inicial como
senso comum diante das contradições da realidade em movimento. A possibilidade de
enxergar no outro esta sua contradição forja uma identidade coletiva que permite ao ser
romper sua cápsula de individualidade é ver-se como ser social pela mediação do grupo. Sua
ação como grupo pode produzir um salto em sua consciência, podendo levá-lo a um segundo
momento e a uma primeira negação do senso comum. Assim, o que se segue depende da

285
Outra crítica realizada por Iasi concerne à compreensão da objetivação realizada por Sartre: “Sartre não herda
apenas a base hegeliana do movimento dialético da totalização, mas acaba preso a uma de suas armadilhas
idealistas. Para Hegel, toda objetivação conduz ao extermínio e daí ao estranhamento, uma vez que se trata da
materialização do espírito, a objetivação do subjetivo. A diferença é que Hegel pressupõe em seu sistema um fim
possível no momento do reencontro do sujeito no objeto, enquanto Sartre transforma o movimento da liberdade
na busca permanente e sempre virtual. Apesar da diferença, ambos acreditam que toda objetivação é (ou
virtualmente sempre se torna) estranhamento. Ocorre que não é o mesmo para Marx que localiza o fenômeno do
estranhamento no qual a objetivação humana se volta como uma força hostil e antagônica em determinações
historicamente precisas (nas classes, na religião, no Estado, no Capital)”. IASI, op.cit. p. 349.
140

natureza do grupo em que as pessoas estão inseridas e da radicalidade da contradição


expressada na impossibilidade da impossibilidade, e do tipo de sobrevivência. Pelo
movimento dialético, o ser jamais será o que era, porém, transformar-se em algo
completamente diferente pressupõe a existência de condições materiais diferentes. O tipo de
mudança depende essencialmente da radicalidade das contradições que ensejam as mediações
concretas necessárias para assegurar a continuidade da produção da vida. Quando a ameaça é
aquela que fere e se confronta com um interesse pontual (como a precariedade nas condições
de uma rua, o autoritarismo da direção de um estabelecimento de ensino, as condições das
instalações de um hospital), a consciência do grupo corresponderá ao limite do universo da
demanda e dos interessados em jogo nessas situações. Apesar de necessários, esses grupos
têm duração determinada no tempo, que são dissolvidos, uma vez solucionada a demanda. A
consciência dos participantes sofre sutil oscilação durante a ação grupal pontual. Essa poderá
ser sensivelmente alterada nas situações onde a mobilização coletiva se sustenta no tempo,
como no caso de um coletivo setorial, possibilitando a passagem – grupo fusão, juramento,
fraternidade-terror (nos termos de Sartre) – e pode gerar na consciência um incremento mais
significativo. O desenvolvimento mais significativo se dá quando grupos estabelecem
organizações mais complexas exigidas para enfrentamentos relacionados aos interesses de
categorias como a dos estudantes, das mulheres, dos professores, dos trabalhadores de
determinado ramo. Esse é o momento privilegiado para a potencial alteração da consciência, a
consciência derivada da ação coletiva contra um inimigo em comum, e atinge seu grau
máximo quando o inimigo é o próprio sistema, como no caso movimentos com tendências
anticapitalistas.

Nesse ponto é que segundo Iasi, a dialética circular de Sartre coloca uma camisa de
força, pois além de estar adstrita a inteligibilidade individual presa ao grupo - do ponto de
vista abstrato o movimento se resolve na tendência de a organização se institucionalizar e daí
dissolver a livre práxis em processo de práxis constituída e o grupo em nova serialidade.
Apesar de o desfecho mais provável ser mesmo a burocratização, a dimensão da análise
adstrita ao grupo isolado negligencia a teia de interrelações da ação coletiva que pode advir da
contradição mais abrangente que ameaça a continuidade da vida em distintos níveis
societários. Para Iasi essa particular circunstância “produz uma identidade, ação e
correspondente momento da consciência que não podem simplesmente ser reduzidos aos
141

mecanismos do grupo, muito menos derivados de mecanismos individuais. Este seria o salto
em direção à classe”286.

A partir de Iasi, percebe-se que “a circularidade dialética de Sartre que leva à


organização e à instituição, e desta à burocracia não desaparece, mas assume outra dimensão,
um patamar superior em seu ciclo de negação da negação” 287. Talvez a principal diferença
esteja nos recursos de poder com os quais o grupo ou a classe enfrentam o campo-prático
inerte instituído como real.

Neste sentido, questiona-se: não haveria diferença qualitativa entre um grupo de


artesãs impulsionado por necessidades imediatas que decide associar-se para produzir
conjuntamente e posteriormente fundar uma associação; ou um grupo de operários oprimidos
por uma situação de iminente despedida em massa e em seu caminho acaba constituindo-se
num coletivo que controlará uma fábrica de forma autogestionária, passando a lutar pelo
direito ao trabalho autodeterminanado e não apenas por mais direitos trabalhistas; ou um
grupo de estudantes sem teto que se aproxima de um movimento anarquista e decide ocupar
um imóvel ocioso da cidade para habitação, contestando conscientemente a especulação
imobiliária e convertendo-o em espaço artístico-cultural livre e aberto à população de seu
bairro; e um grupo de produtores agroecológicos que decide construir um restaurante para
escoar sua produção e propiciar uma alimentação saudável à classe trabalhadora, difundindo
assim seus ideais agroecológicos?

Ainda que pelo movimento abstrato descrito por Sartre os processos possam ser os
mesmos (serialidade, fusão, organização, instituição, burocracia e o eventual retorno à
serialidade), a natureza e dimensão dos processos nas quatro OTAs pesquisadas são muito
distintos, e não apenas em termos quantitativos. O movimento proposto por Sartre parece
excelente para identificar o momento da ação grupal com a possibilidade de práxis livre. Mas
essa práxis não pode ser classificada como livre a priori e precisa também ser analisada a
partir de um contexto mais amplo do sociometabolismo, relacionando a parte com o todo, ou
seja: sua incidência em um campo prático-inerte maior. Uma coisa é conseguir negociar com
a gerência patronal o aumento do salário dos operários; outra bem diferente é ocupar a fábrica
a assumir uma gestão operária da fábrica e discutir entre operários a remuneração justa; e
outra ainda mais difícil é superar a relação capital-trabalho como eixo de sociabilidade.

286
IASI, op.cit. 2012. p.307.
287
Ibid.
142

Iasi acrescenta alguns questionamentos centrais para a questão 288: se é verdade que um
grupo em confronto com certa objetividade se coloca em movimento livre e institui uma nova
objetividade na qual volta a se estranhar, o que determina este amoldamento? Qual a força ou
forças que agem sobre a organização e a transformam em instituição? O que se institui nesse
momento que condena os seres sociais ao retorno da serialidade alienada? Por que ao nos
organizarmos contra certa ordem acabamos por instituí-la por outros meios?

Iasi reage às suas perguntas de forma simples e direta: “A velha realidade permanece
ou volta a se instituir pelo simples fato de que não a superarmos direito. O novo tem
dificuldades em surgir porque não rompemos de fato com o velho e não construímos as novas
relações, talvez acreditando que elas, assim como as velhas, seriam naturais.” 289 As velhas
foram feitas e instituídas pela ação da humanidade e as novas precisam ser construídas ao
mesmo tempo em que as velhas forem destruídas. E acrescenta:

Quando um grupo rompe com um aspecto do campo prático-inerte e se constitui


enquanto práxis livre, pode abrir caminho para instituir o novo, mas, tratando-se de
formas sociais mais amplas (mais que amplas, determinantes), o ser do grupo pode
se moldar por formas inertes mais abrangentes do que aquelas com as quais se
defronta em sua ação particular e acabar por encontrar um novo jeito de ser escravo
ou sobreviver na barbárie assalariada. Só pode haver um salto de qualidade quando a
impossibilidade que se apresenta diante do grupo é uma impossibilidade geral, ou
seja, uma ameaça geral à produção social da existência.

Isso significa que, neste trajeto de construção das condições para a emancipação
humana, a resistência caminha dentro da ordem sociometabólica do capital, e antes de ser
contra essa ordem já precisa iniciar seus passos para além desta.

Florestan Fernandes desenhara o quadro da difícil combinação de uma revolução


dentro da ordem290 que desemboca em uma revolução contra a ordem:

A revolução dentro da ordem possui um conteúdo bem distinto do que ela assumiu
na órbita histórica dos países capitalistas centrais. As classes burguesas não se
propõem as tarefas históricas construtivas, que estão na base das duas revoluções, a
nacional e a democrática; e as classes trabalhadoras têm de definir por si próprias o
eixo de uma revolução burguesa que a própria burguesia não pode levar até o fundo
e até o fim [...] Os que repudiam tais tarefas históricas do proletariado por temor do
oportunismo e do reformismo ignoram duas coisas. Primeiro, que, sem uma maciça
presença das massas destituídas e trabalhadoras na cena histórica, as potencialidades
nacionalistas e democráticas da ordem burguesa não se libertam e, portanto, não
podem ser mobilizadas na fase em transcurso de organização do proletariado como
classe em si. Segundo, que o envolvimento político das classes trabalhadoras e das

288
IASI,. op.cit. 2012.
289
Ibid. p.311.
290
A ideia já aparecera como conceito de revolução permanente em Marx na Mensagem do Comitê Central,
depois consagrado por Trotsky.
143

massas populares no aprofundamento da revolução dentro da ordem possui


consequências socializadoras de importância estratégica [...] o proletariado cresce
com a consciência de que tem que tomar tudo com as próprias mãos e, a médio
prazo aprende que deve passar tão depressa quanto possível da condição de fiel da
democracia burguesa para a de fator de uma democracia da maioria, isto é, uma
democracia popular ou operária [...] a noção de revolução tem que ser calibrada
pelas classes trabalhadoras em termos de relações antagônicas entre a burguesia e o
proletariado dentro do capitalismo da era atual. 291

A ideia de Florestan induz que a constituição da identidade de classe passa por


momentos que vão desde o seu amoldamento à ordem até a sua transformação em classe em
si, na construção de uma alternativa para além do capital.

A reflexão realizada por Iasi elaborada a partir de Sartre sobre o processo dialético de
totalização mediado pelos grupos provoca importantes reflexões sobre o processo de
consciência dos trabalhadores das Organizações de Trabalho Associado. Assim, destaca-se
três argumentos que podem servir de síntese para o tratamento dos dados obtidos pelo
trabalho de campo.

(a) A constituição de cada OTA como processo dialético de totalização mediado pelo
grupo implica considerar o trabalho associado como um arranjo político-econômico
sensivelmente contraditório e com importantes limitações estruturais sob o
sociometabolismo do capital que ocasionam a existência de rupturas e continuidades
no interior das organizações;
(b) Ainda que pelo movimento abstrato descrito por Sartre os processos possam ser os
mesmos (serialidade, fusão, organização, instituição, burocracia e o eventual retorno à
serialidade), a natureza e dimensão dos processos concretos nas quatro OTAs
pesquisadas são muito distintos. Assim é possível identificar elementos
autogestionários internos e ampliados que favorecem e que impedem a manifestação
da livre práxis;
(c) Na medida em que os próprios mecanismos da organização se instituem, se fixam
e se perpetuam, o grupo-organização deixa de ser o meio para a livre práxis dos seres
humanos e passa a cristalizar-se em práxis constituída com vistas a institucionalização
dos procedimentos burocratizados que obedecem às suas próprias leis de organização,
restabelecendo assim a serialidade. O processo autogestionário pode sob algumas
condições desempenhar importante papel quando limita livremente a liberdade292 na
direção do projeto coletivo e pode estimular a criação e a renovação de embriões da

291
FERNANDES, Florestan. O que é Revolução. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984. p.13
292
IASI, op.cit. 2012. p.294.
144

livre práxis (no sentido do salto em direção à classe, apontado por Iasi). Apenas
algumas OTAs apresentam elementos indicadores do salto em direção à classe. Estes
ocorrem principalmente em OTAs que mantém relação orgânica com movimentos e
organizações populares, incorporando interesses de classe aos objetivos econômico-
corporativos das OTAs.

3.2.5 As contradições entre a segunda forma de consciência e a nova consciência nas


quatro OTAs – classe em si e classe para si

Genericamente, já é possível afirmar que no contexto de rupturas e continuidades das


Organizações de Trabalho Associado investigadas estão presentes as três formas de
consciência apontadas por Mauro Iasi293, assim tipologicamente desenhadas: (1) primeira
forma de consciência – alienação subjetiva; (2) segunda forma de consciência – consciência
em si; (3) terceira forma de consciência – consciência para si (nova consciência ou
consciência de classe).

A discussão realizada até agora apontou as principais características da primeira forma


de consciência e a suas contradições. Na sequência, discutiu-se o processo dialético de
totalização mediado pelos grupos, para destacar ferramentas de análise das potencialidades
das OTAs como mediações essenciais, como elos de sociabilidade propícios para forjar a
nova consciência, consciência essa que privilegie a manifestação da livre práxis.

Cabe discutir as diferenças entre a segunda e a terceira forma de consciência, para


possibilitar a apresentação dos resultados globais do trabalho de campo.

Os argumentos que até agora sustentaram a consciência como um processo, permitem


reconhecer que esta é formada a partir de uma relação dialética entre as representações ideais
dos indivíduos e as relações concretas por estes assumidas. Considerando às críticas feitas por
Iasi à representação dialética circular de Sartre, talvez seja mais didático compreendê-la como
um movimento espiral.

A primeira manifestação da contradição entre a consciência no estado de alienação


subjetiva é a revolta, mas essa ainda não é superação da alienação, é mais uma passagem, uma
forma transitória. Apenas sob certas condições que a revolta (externada ou não pelo ser) pode
provocar a passagem para a segunda forma de consciência.

293
IASI, op. cit. 2007.
145

Quando uma pessoa vive uma injustiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas
circunstâncias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse também é um
mecanismo de identificação da primeira forma, mas aqui a identidade com o outro produz um
salto de qualidade. Uma situação elucidativa da questão é o momento inaugural da OTA 1
(indicador n.1 do autogestômetro institucional – Quadro 5), especialmente quando se da a
deflagração do conflito entre os operários e os antigos patrões. A percepção consciente da
situação de desemprego como não sendo individual de cada operário provoca o surgimento
de laços de identidade coletiva. Daí a importância da realização de vivências e visitas a outras
experiências similares como fábricas ocupadas/recuperadas (indicador institucional n. 20
Quadro 5). Identificar-se na carência do outro gera laços de solidariedade.

A vivência de uma contradição entre antigos valores assumidos e a realidade das


novas relações vividas também pode gerar um embrião de superação da primeira fase da
consciência. A precondição para essa passagem pode ser a experimentação da
autodeterminação nas relações de trabalho. Note-se a resposta de uma trabalhadora da OTA 3
quando questionada sobre as vantagens e desvantagens de trabalhar numa OTA:

[...] cheguei um dia muito ruim, tinha que levar o filho ao médico. As colegas
responderam: - tá, sem problemas, vai. Não vão te marcar no outro dia, ou terás que
fazer tantas horas a mais porque tu levaste teu filho ao médico, porque foi preciso.
Tu não vais ficar em casa de perna pro ar, foi preciso. E eu vejo isto, se fosse noutro
restaurante de carteira assinada, não teria a possibilidade. Tu vais ter um desconto
no final do mês por aquele dia. Ou tu vais ficar fazendo uma hora extra ou alguma
coisa assim. Claro que a gente tem consciência. Já que ontem eu não vim, então hoje
eu vou compensar e ajudar. Mas assim ó, se não precisar, não precisou. Tu sabes, tu
tens aquela consciência. Eu vou hoje ou eu não posso ir, mas sabendo da falta que
vou fazer aqui, né. Mas aqui neste ponto é bom. Eu tive problemas com os meus
dois filhos que tiveram Catapora. Eu tava faltando muito. Estava demais, o meu
pequeno ficou internado. Ficou mal mesmo. Pegou infecção e teve muita febre,
febrão de quarenta. Eu não conseguia baixar a febre. Era véspera de Natal, 20 de
dezembro e eu com o gurizinho no hospital. E eu só liguei pra Francisca, e disse,
não tenho como ir. Mas se fosse outro lugar eu estaria na rua. Outra época eu estava
com muita dor de cabeça, enxaqueca mesmo, não tinha condições. As meninas me
disseram: guria tu vais embora, não tem condições de ficar trabalhando assim. A
gente chama alguém de folga pra te cobrir ou se desdobra em trinta, quarenta.294

Tal processo pode ou não acontecer de diversas formas no interior de uma OTA. Uma
mãe, sem qualquer histórico de socialização militante ou experiência associativa pregressa
que ingressa numa OTA e logo tem essa série de complicações, quando ela precisa se ausentar
do trabalho em razão das adversidades e percebe que não terá desconto no salário, e ainda,
que isso ocorreu em virtude da compreensão dos seus colegas, e não por força legal (como
pode eventualmente acontecer em casos de dispensa na relação de trabalho assalariado); ela
294
Entrevista com trabalhadora da Teia realizada em janeiro de 2016.
146

tende a questionar sua pré-concepção: aquela que diz que nas relações de trabalho vigora a lei
de talião das cápsulas de individualidade, ou, que os colegas de trabalho sempre querem
ascender na carreira sob qualquer circunstância.

O comentário se fosse noutro lugar eu estaria na rua demonstra uma percepção


construída a partir das suas experiências anteriores, quando percebe a diferença entre a
relação de trabalho assalariado e a relação construída no interior da sua organização. Não se
pretende insinuar, que tal gentileza não possa ocorrer também numa relação convencional de
emprego, mas as possibilidades que elas ocorram são bem reduzidas. Assim, está posta uma
contradição entre os valores antigos da relação de emprego e esta concepção diferenciada na
relação entre supostamente iguais, no interior da sua OTA.

O sujeito geralmente citado para exemplificar a via coletiva de superação é a classe


operária: e a sua mais didática manifestação é a greve. A injustiça vivida como revolta é
partilhada numa identidade grupal, o que possibilita a ação coletiva. O mesmo ocorre no
exemplo da ocupação da fábrica. Daí decorre a importância de construir instrumentos eficazes
de comunicação interna e de massa, de formação política e de mobilização (indicadores
institucionais n. 9, 15, 16, 21 e 25 – Quadro 5). Pois se o trabalhador não internalizar
conscientemente o porquê daquele acontecimento, a greve ou a ocupação pode carecer de
sentido. É muito comum a existência de greves nas quais os trabalhadores nem tem ciência
dos pontos mínimos de reivindicação. Esses ficam ao redor da empresa e eventualmente,
permanecem em casa. O sindicato desperdiça assim uma didática oportunidade de formação
na luta.

Um grupo de costureiras extremamente exploradas na sua relação de empregos que


visitam uma organização de trabalho de associado composto de artesãs com grau de coesão e
organicidade avançado, num ambiente solidário, com jornada de trabalho reduzida e com
retirada/remuneração adequada; podem perceber que sua condição de exploração não é
natural, e que pode ser superada, pela via da luta sindical ou do próprio trabalho associado.

A ação coletiva coloca as relações vividas num novo patamar. Vislumbra-se a


possibilidade de não apenas se revoltar contra as relações predeterminadas, mas de
alterá-las. Questiona-se o caráter natural dessas relações e, portanto, de sua
possibilidade de alterá-las. A ação dirige-se, então à mobilização dos esforços do
grupo no sentido da reivindicação, da exigência para que se mude a manifestação da
injustiça.295

295
IASI, op.cit., 2007, p. 29.
147

Essa é a chamada consciência em si ou consciência da reivindicação. A forma


tradicional de manifestação dessa forma de consciência é a luta sindical mediada pelos
sindicatos. É possível incluir as lutas populares, os sem-terra, os sem-teto, os atingidos por
barragens, indígenas, quilombolas, pescadores, camponeses explorados, movimentos
culturais, movimento de mulheres e o próprio campo do Trabalho Associado. Estes são,
portanto, “todos aqueles movimentos que se fundamentam em pautas únicas, ou melhor
dizendo, em opressões específicas e que não se pretendem como ancoradouro de uma
transformação mais completa da sociedade, mormente da sociedade capitalista” 296.

A consciência em si representa ainda a consciência que se baseia na vivência das


relações e dos interesses imediatos, não mais do ponto de vista do indivíduo, agora do grupo,
da categoria, e pode evoluir até a consciência de classe. Para Iasi, ela é parte fundamental da
superação da primeira forma de consciência, portanto, da alienação; no entanto, seu pleno
desenvolvimento ainda evidencia traços da antiga forma ainda não superados297.

O processo subjetivo de negação de uma parcela da ideologia pela vivência particular


das contradições do modo de produção, não vai destruir as relações anteriormente
interiorizadas e seus valores correspondentes de uma só vez (recorde-se a representação do
processo grupal em formato espiral, com fluxos e refluxos). Isso significa que, apesar de
consciente de parte da contradição do sistema (da falta de moradia, precárias condições dos
serviços públicos, péssimas condições laborais, baixos salários, opressão de gênero,
preconceito étnico) a pessoa ainda trabalha, age, pensa, vive sob a influência dos valores
anteriormente assumidos, que, apesar de serem parte da mesma contradição, continuam sendo
vistos pela pessoa como naturais e verdadeiros. Ainda faltam alguns passos para romper com
a segunda forma de consciência. O dito popular russo dizer a palavra açúcar, açúcar, açúcar
não adoça o café elucida o momento de passagem. A pessoa conhece o café e o açúcar como
elementos isolados; tem uma vaga ideia sobre a consequência gerada pela sua fusão, mas
desconhece os meios concretos que podem ocasioná-la, e tampouco as condições materiais de
sua produção.
Na sua luta contra o capital, os trabalhadores, num primeiro momento, negam a
pretensão do capitalismo em supor uma igualdade entre capital e trabalho, assumindo-se como
uma classe distinta e particular.

296
PAZELLO, Ricardo Prestes. Movimentos Populares. In: Revista Captura Crítica, v.1, n.3, jul/dez.
Florianópolis, 2010. p.390.
297
IASI, op. cit. 2007.
148

A principal afirmação do capitalismo e sua ideologia liberal, é de que todos são


livres proprietários de distintas mercadorias. O proletariado afirma-se como classe
com interesses distintos e antagônicos ao capital quando se organiza para buscar
maiores salários ou melhores condições de vida e trabalho. No entanto, o
proletariado, ao se assumir como classe, afirma a existência do próprio capital.
Cobra desse uma parte maior da riqueza produzida por ele mesmo, alegra-se quando
consegue uma parte um pouco maior do que recebia antes.298

Ou seja, a consciência nessa fase ainda reproduz o mecanismo pelo qual a satisfação
do desejo cabe ao outro; manifesta o inconformismo e não a submissão; reivindica a solução
de um problema ou injustiça. Mas quem reivindica ainda reivindica de alguém!

Além disso, no interior do Estado Democrático de Direito, de natureza


preponderantemente burguesa, para manifestar esse inconformismo é preciso manifestá-lo
dentro das regras, da forma e pelos mecanismos definidos por outros e de forma pacífica e
ordeira – democraticamente. Não se trata de diminuir a importância dos instrumentos de luta
da classe trabalhadora, como a greve. É que é justamente quando a greve com objetivos
corporativos sai vitoriosa é que se percebe seu limite, os limites da reivindicação e da segunda
forma de consciência – a consciência em si.

Quando um setor da classe trabalhadora confronta-se com o patrão ou com o Estado


exigindo melhores salários e outras reivindicações, demonstra que entendeu em parte o caráter
da contradição fundamental entre a produção social e a acumulação capitalista - cobra do
capitalista ou do Estado capitalista uma parcela maior daquilo que produziu e que lhe foi
retirado. Assim, o trabalhador percebe que é elemento-chave para o processo de produção,
nota sua importância e a usa contra o capital, adquire consciência de sua potência, de sua
união enquanto classe e sobre a possibilidade de acumular forças. Mas e se a greve sai
vitoriosa? Os trabalhadores retornam ao trabalho com suas reivindicações atendidas e
novamente disponíveis a retomar as relações de exploração e o próprio capitalismo.

[...] ao se assumir enquanto classe, o proletariado nega o capitalismo afirmando-o.


Organiza-se como qualquer vendedor que quer alcançar um preço maior por sua
mercadoria. Portanto, em sua luta revolucionária, não basta o proletariado assumir-
se enquanto classe (consciência em si), mas é necessário se assumir para além de si
mesmo (consciência para si). Conceber-se não apenas como um grupo particular
com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas também se colocar diante
da tarefa histórica da superação dessa ordem. A verdadeira consciência de classe é
fruto dessa dupla negação: num primeiro momento, o proletariado nega o
capitalismo assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a si próprio

298
IASI, op. cit.. 2007. p.31.
149

enquanto classe, assumindo a luta de toda a sociedade por sua emancipação contra o
capital. 299

Um mecanismo similar pode ser visualizado em diferentes lutas, como é o caso das
OTAs pesquisadas. De que vale a luta pelo direito ao trabalho dos operários da Flaskô, se
estes não lutarem também pelos seus colegas trabalhadores das indústrias vizinhas que
padecem da mesma exploração que estes sofriam antes da ocupação da fábrica? Qual o
sentido da luta pela moradia travada pelos estudantes da Okupa 171 se estes não questionarem
a organização capitalista do espaço urbano que por intermédio da especulação imobiliária
priva considerável parcela da classe trabalhadora do direito à moradia e a expele das regiões
melhor atendidas pela rede pública de serviço? Qual a validade da defesa da agroecologia pela
Cooperativa Teia Ecológica se apenas um grupo seleto de pessoas tiver capacidade econômica
para alimentar-se de sua saudável produção, isenta de agrotóxicos?

Quais seriam as consequências de uma estagnação nessa etapa da consciência? São


muitas as manifestações dessa estagnação: o corporativismo, o carreirismo, a burocratização,
regressão às formas anteriores de consciência. Esse é o momento que Sartre define como a
conversão do grupo em Instituição, sexto momento do processo de totalização, discutido na
seção anterior. É a livre práxis do grupo organizado cristalizada em práxis constituída –
quando o grupo se institucionaliza, endurece; o que era movimento se torna rotina, o que era
ação converte-se em procedimentos.

Em certa medida, é o processo aparente ocorrido na OTA 3. Quando questionada


sobre a existência de cursos e práticas formativas na OTA, uma trabalhadora respondeu:

É mais conversa. Eu to aqui há quatro anos, então eu não peguei esta fase da Teia
que tinha.. Uma vez até perguntei pra Fernanda, como era antes. Porque ela é uma
das mais antigas. Então ela disse que tinham muitos cursos logo quando começou a
teia, pra poderem entender tudo que acontecia no mundo. Eles faziam muitos cursos,
agora já não fazem mais tanto. Agora [...] as pessoas já se solidificaram, já sabem
como trabalhar. Já sabem o que querem. Já sabem entender o que é a cooperativa. A
economia. Então já não se faz tanto. Então a gente acaba conversando a Fernanda, a
Manuela, o Felipe são os mais antigos, né. Então falam muito dessa época. Esse
pessoal mais antigo. Conversam e explicam. Algumas coisas que a gente se perde
[...] Que é mais novo, a gente tira a dúvida com eles. 300

299
IASI, op. cit.. 2007. p.32.
300
Entrevista com trabalhador da Teia realizada em janeiro de 2016. Os nomes foram alterados para preservar a
identidade dos trabalhadores.
150

Com um passado repleto de relações políticas com outras OTAs e com práticas
formativas diversas; atualmente, a OTA-3 prioriza as relações econômicas fundamentais e não
organiza qualquer modalidade de prática formativa ou lúdica para os seus trabalhadores.
Talvez a elevada sintonia entre os trabalhadores, a rotinização do processo de trabalho e a boa
demanda e aceitação do produto tenham contribuído para tal arrefecimento político. Tal
elemento reflete diretamente no processo de consciência dos trabalhadores, como será
demonstrado nos resultados globais sobre o comportamento e consciência dos
entrevistados301.

A consciência nesta segunda fase está mais preocupada com as consequências e não
com as causas das contradições sociais. Ela é prisioneira da superfície, se alimenta da
vivência particular e das inserções imediatas. Cristalizada e estagnada nesta fase não encontra
elementos necessários à sua superação, acabando por reforçar aquilo que inicialmente pensava
estar negando.

Segundo Iasi, quando a consciência em si “não ultrapassa a simples negação de uma


parte, acaba por se distanciar de sua meta revolucionária, busca, novamente, mecanismos de
adaptação à ordem estabelecida”. 302 É a consciência patinando no mecanismo de
reivindicação.

Tal contradição pode levar o trabalhador a um novo patamar no processo de


consciência, dependendo dos processos políticos que atravessar dentro do grupo em que está
inserido303. Este processo dialético pode levar o trabalhador à busca da compreensão das
causas, o desvelar das aparências e a análise da essência do funcionamento da sociedade, não
se contentando mais com a aparência. É na busca pelo funcionamento da sociedade que se
descobre como é possível e necessário transformá-la.

É na própria constatação de que a sociedade precisa ser transformada que se supera a


consciência da reivindicação pela da transformação. O indivíduo transcende o grupo
imediato e o vínculo precário com a realidade dada, busca compreender relações que
se distanciam no tempo e no espaço, toma como sua a história da classe e do mundo.
Passa a conceber um sujeito coletivo e histórico como agente da transformação
necessária.304

301
Veja-se os autogestômetros comportamentais da OTA 3 em anexo.
302
IASI, op. cit.. 2007. p.34.
303
Os indicadores institucionais n. 18-32 traduzem a existência de mecanismos institucionais mediadores deste
salto de consciência.
304
IASI, op. cit. 2007. p.34-35.
151

Importante destacar que na consciência em si, mesmo supondo o sujeito coletivo, o


que move a reivindicação ainda é a satisfação de algo do próprio indivíduo ou no máximo de
sua família, pois quem está desempregado e luta por trabalho, por exemplo, luta para
sustentar-se, se possível no mais curto período de tempo. Entretanto, a transformação da
sociedade exige um outro sujeito: a classe.

Na passagem da consciência em si para a consciência para si (revolucionária e de


classe), abre-se uma importante contradição: as consciências são vivenciadas em nível
individual, mas seu processo de transformação é necessariamente coletivo, envolvendo
primeiramente o grupo e depois a classe. Assim, o amadurecimento subjetivo da consciência
de classe, se dá de forma desigual, depende de fatores ligados às experiências da vida e às
percepções de cada indivíduo. A possibilidade de dissonância no grupo ou na classe é grande,
surgindo a questão do indivíduo que desenvolveu uma consciência em estágio mais avançado
que o seu grupo, e eventualmente ainda pode partilhar de uma consciência alienada. As
mediações políticas consistem, em parte, no esforço de superar essa distância.

O elemento da dissonância foi um dos resultados globais da pesquisa de campo.


Quando os trabalhadores foram consultados sobre o seu percurso ou sua socialização
militante,305 constatou-se que em cada organização, havia no mínimo um/a trabalhador/a com
percurso militante resultante de experiências anteriores ao trabalho associado, e que
consequentemente apresentou níveis de consciência mais elevados que os entrevistados que
não tinham vivenciado experiência associativa alguma. O operário da OTA 1 já havia
trabalhado em duas outras fábricas sob controle dos trabalhadores e é militante do Movimento
das Fábricas Ocupadas; a trabalhadora da OTA 2 é militante anarquista e tem histórico de
participação em coletivos contraculturais e de defesa das rádios comunitárias; o trabalhador
da OTA 3 é pequeno agricultor e no passado participou de movimentos camponeses; a
trabalhadora da OTA 4 havia participado organicamente da Pastoral Operária Católica assim
como de movimentos populares que estiveram na base social da fundação do Partido dos
Trabalhadores. No entanto, há um interessante elemento que diferencia as OTAs 1 e 2 das
demais. Nas OTAs 1 e 2 constatou-se a presença de percurso militante que se efetivou após o
ingresso na OTA. Ou seja: as mediações políticas nestas OTAs foram capazes de despertar a
consciência dos seus trabalhadores, superar esse distanciamento e convencê-los a se inserir
organicamente em uma luta mais ampla, para além da atividade do trabalho associado. O

305
Questões 60 e 61 do roteiro de entrevista – anexo B. “Você participa ou já participou de algum movimento ou
organização social - sindicato, partido político ou associação? Desde quando e com que frequência? Indicador
comportamental número 23 – Existência de socialização ou percurso militante.
152

mesmo não ocorreu nas OTAs 3 e 4, nas quais os únicos militantes existentes tinham percurso
construído anteriormente ao ingresso na organização e declararam estar afastados das
atividades há um bom tempo. Tal elemento fica evidente se examinado o contraste entre o
quadro comparativo nos itens 14-32 (Figura 7 – quadro comparativo por contraste dos
indicadores comportamentais nas 4 OTAs), e entre as OTAs 1, 2, 3 e 4 (figuras comparativas
13, 14, 15 e 16). Outra questão relacionada à nova consciência (de classe) é o eventual
isolamento da pessoa que passa a assumir posicionamentos de classe. Assim explica Iasi:

[...] dentro do indivíduo, a consciência nova ocupa, por assim dizer, uma área
liberada, que faz fronteira com setores fortemente ocupados pelo inimigo, ou seja, as
antigas relações sociais interiorizadas como valores, juízos e normas.
Psicologicamente, o EGO se enfraquece diante das sempre presentes exigências dos
impulsos básicos e de um SUPEREGO que foi criado pela interiorização de normas
e padrões anteriores. O indivíduo afirma algo novo e aspectos de seu próprio
universo subjetivo são contestados. 306

A sociedade capitalista, por mais hipócrita que isso possa parecer, se autojustifica
como a sociedade da harmonia, da igualdade e da justiça. O indivíduo em conflito é isolado
como se não expressasse uma contradição, mas fosse ele mesmo a contradição, mais que isso,
o culpado por sua existência. Enquanto isso, o alienado recebe o título de normal. 307

No mesmo sentido, foi discutido o ideal do ego e as cápsulas de individualidade de


Elias.308 De acordo com Elias, o ser não escolhe por livre convicção o ideal individualista
entre diversos outros existentes. Esse ideal individual é socialmente exigido e inculcado na
grande maioria das sociedades complexas. É claro que existe possibilidade de resistência a tal
exigência social, decidindo por si só e destacando-se dos demais. Mas em geral, essa forma de
ideal de ego e o alto grau de individualização a ela correspondente são parte integrante de seu
ser, uma parte de que não podem livrar-se assim tão facilmente. Os valores liberal-burgueses,
subjetivados afetivamente, acarretam uma situação em que os trabalhadores vislumbram na
venda de sua força de trabalho a única possibilidade de subir na vida e ascender de classe. As
cápsulas também têm a função de repelir ameaças, tanto internas como externas. O ser que foi
forjado num ambiente de propagação de individualismo altamente competitivo; quando se
insere num grupo que apresenta mediações propícias para inflectir sua consciência no sentido

306
IASI, op. cit., 2007. p.36.
307
Ibid. .p. 37.
308
ELIAS, op. cit., 1994.
153

da solidariedade de classe, passará a ter dificuldades em transitar nos seus ciclos de convívio
anteriores, dificuldades de natureza subjetiva e externa, como a própria rejeição do grupo. 309

No entanto, a tomada de consciência, por muitas vezes é um caminho sem volta. A


nova consciência já não cabe no ser, o transborda, necessita ganhar objetividade. Mas nem
sempre a tomada de consciência é acompanhada de condições objetivas para a sua realização,
ou seja: a vida cobra da pessoa uma postura para a qual não foram internalizadas estruturas
prévias para a sua realização. A realidade concreta está estruturada para agir contra a vontade
da nova consciência, que deseja o mundo. O indivíduo está apto a aceitar a realidade,
assumindo sua impotência diante de relações estabelecidas e predeterminadas. Assim, o
trabalhador que se torna consciente é, antes de tudo, um ser em conflito. É comum que
militantes tenham longos períodos de depressão e crises devido ao excesso de represálias
impostas por pessoas que transitam nos seus círculos de convívio. A forma de lidar com a
mudança, guarda estreita relação com os traços da personalidade, mas no centro do problema
está a velha contraposição entre a vontade e a materialidade.

Diante dessa encruzilhada, o indivíduo que alcança esse patamar de consciência tem a
possibilidade de buscar mediações políticas que construam junto aos seus pares as condições
subjetivas. Pois, “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não
a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com quem se defrontam
diretamente legadas e transmitidas pelo passado”. 310

Na sociedade sob domínio do Capital, não é possível alcançar uma nova consciência, a
não ser de forma embrionária. Os trabalhadores e as trabalhadoras organizadas são, no
máximo, indivíduos inseridos nesta sociedade e dispostos a destruí-la. A transformação das
consciências “não está além da luta política e da materialidade onde esta se insere. É ao
mesmo tempo um produto da transformação material da sociedade e um meio político de
alcançar tal transformação”. 311

A consciência não está para além da “evolução histórica real. Não é o filósofo que a
introduz no mundo; o filósofo não tem, portanto, o direito de lançar um olhar arrogante sobre
as pequenas lutas do mundo e de as desprezar”. 312

309
É claro que o processo de subjetivação da militância política ou da predisposição à consciência de classe não
é tão simples como descrito. No entanto, o aprofundamento do tema foge dos objetivos desta tese.
310
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas à Kulgelman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p.17.
311
IASI, op. cit. 2007. p.43.
312
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Rio de Janeiro: Elfos, 1989, p.59.
154

A análise sobre o impacto da autogestão no comportamento dos trabalhadores


associados, que evidenciam rupturas e continuidades, privilegia o duplo papel que o processo
autogestionário pode desempenhar, tanto como resultado da autodeterminação na organização
do trabalho como estratégia de luta dos trabalhadores pela sua emancipação.

3.2.6 Análise dos indicadores – o comportamento autonomista e a práxis autogestionária


ampliada – reivindicação e contestação nas 4 OTAs

No percurso do capítulo foram lançados alguns elementos concretos relacionados ao


comportamento dos trabalhadores, seja em forma de narrativas, seja como comentário livre
organizado pelo autor. Neste espaço serão demonstrados os resultados gerais sob a
perspectiva comparativa.

Os resultados serão apresentados no formato de tópicos que continuarão na sequência


dos dois quadros que compilam a tabulação das 20 entrevistas realizadas com os trabalhadores
(Quadro 6 do Capítulo I - indicadores comportamentais – numeração e descrição e Quadro 7 –
quadro comparativo por contraste dos indicadores comportamentais nas 4 OTAs).
155

Quadro 7 – Quadro comparativo por contraste dos indicadores comportamentais nas 4


OTAs

Legenda: A identificação dos níveis aparece nas seguintes nuances: (4) nível forte – cinza escuro; (3) nível
moderado - cinza claro; (2) e (1) níveis fraco e muito fraco (cor branca).
Legenda: T-1, T-2, T-3(Trabalhador 1, trabalhador 2, trabalhador 3)
Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
156

No universo alcançado pela pesquisa foram identificadas as três formas de consciência


apontadas por Mauro Iasi313, assim tipologicamente desenhadas: (1) primeira forma de
consciência – alienação subjetiva; (2) segunda forma de consciência – consciência em si; (3)
terceira forma de consciência – consciência para si (nova consciência ou consciência de
classe).

A metodologia e as estratégias de pesquisa não foram orientadas para classificar cada


trabalhador numa das três tipologias da consciência, tampouco apresentar os resultados na
forma de percentuais de cada um. Mas os resultados obtidos permitem triangular os dados e
tecer algumas relações entre o estado da consciência dos trabalhadores e o processo
autogestionário nas diferentes OTAs.

O instrumento de tabulação foi desenvolvido com a pretensão de organizar


qualitativamente o comportamento dos trabalhadores, sendo que os 32 indicadores (Quadro 5)
são na verdade descrições comportamentais que combinam aspectos relacionados à
consciência, a percepção e a prática concreta dos entrevistados. Tais descrições foram
agrupadas em quatro níveis (muito fraco, fraco, moderado e forte) conforme consta no anexo
D. Note-se ainda que no anexo D, os níveis 1 e 2 (muito fraco e fraco) estão separados dos
níveis 3 e 4 (moderado e forte) por uma linha pontilhada que simboliza a fronteira entre o
socialmente inaceitável e o aceitável. A divisão leva em consideração que os trabalhadores
entrevistados estão inseridos em grupos organizados que já superaram os momentos da
serialidade, fusão e fraternidade-terror, de acordo com o processo dialético de totalização
314
mediado pelos grupos de Sartre. Ou seja: espera-se um comportamento mínimo dos
trabalhadores para que se confirme o potencial pedagógico das OTAs na formação humana
dos seus integrantes. A fronteira entre o socialmente inaceitável e o aceitável também está
representada no quadro comparativo por contraste de cor, onde as respostas que se encaixam
nos níveis 1 e 2 aparecem na cor branca (socialmente inaceitável) e as respostas que se
encaixam nos níveis 3 e 4 aparecem em cor cinza (aceitável) (3 – cinza claro e 4 – cinza
escuro) – Quadro 7.

Os 32 indicadores estão divididos em três grandes blocos: autogestão interna,


autogestão ampliada e aspectos sociopolíticos gerais. O contraste provocado entre as cores
branca e cinza no Quadro 7 possibilita a exposição em blocos, que será processada a seguir.

313
IASI, op. cit. 2007.
314
Veja-se a seção 3.2.4. - o processo dialético de totalização mediado pelos grupos.
157

3.2.6.1 Análise por blocos – autogestão interna, autogestão ampliada, aspectos sociopolíticos
gerais

O bloco 1 (indicadores 1-14) - autogestão interna - incidiu sobre aspectos referentes à


organicidade interna, compilando indicadores relativos à cooperação, autonomia,
participação, disciplina, confiança e liberdade. A entrevista provocou a reação dos
entrevistados sobre: o que possa ser a autogestão (ou expressões análogas como a auto-
organização ou o controle operário); a divergência de opiniões e os conflitos; a cooperação
interna; a participação nas decisões; os canais de participação existentes; a participação nas
atividades internas e externas de formação técnica; a motivação para trabalhar numa OTA; a
divisão do trabalho; retirada/remuneração dos trabalhadores; a carga horária e a intensidade
do trabalho; as perspectivas futuras da OTA.

Se existem diferentes maneiras de cooperar, participar e protagonizar no interior das


OTAs torna-se necessário entender com qual intencionalidade os trabalhadores experimentam
a repartição do poder e os avanços obtidos no interior das unidades produtivas. Os resultados
foram em síntese:

(1) Os indicadores das OTAs 1 e 2 apresentam predominância do nível forte com


mínima incidência do nível moderado e nenhuma incidência de manifestações de nível
fraco ou muito fraco. Tal resultado indica uma destacada apropriação dos
trabalhadores sobre processo autogestionário interno, tanto em termos de concepção
como em relação à experimentação cotidiana da autogestão;

(2) Os indicadores da OTA 3 apresentam predominância do nível forte e moderado,


com alguma incidência de manifestações de nível fraco e pouca incidência do nível
muito fraco. Os elementos que apresentaram maior fragilidade foram os relativos aos
indicadores: 8 (participação, interesse e colaboração nas atividades internas de
formação técnica) e 14 (apreciação sobre os aspectos necessários para o
aprimoramento da OTA). A falta de uma opinião formada acerca dos aspectos
relevantes para o aprimoramento da OTA pode revelar a situação de estagnação vivida
por esta. Talvez a elevada sintonia entre os trabalhadores, a rotinização do processo de
trabalho e a estabilidade financeira ocasionada, dentre outros fatores, pela boa
aceitação do produto no mercado, tenham contribuído para um arrefecimento político,
uma estagnação. O indicador 8 (participação, interesse e colaboração nas atividades
158

internas de formação técnica), assim como o indicador 18315 no bloco 2 (participação e


interesse em atividade internas e externas de formação política), corroboram para a
ausência de uma visão ampliada da realidade social;

(3) Os indicadores da OTA 4 apresentam uma partição quase que igualitária entre a
incidência de manifestações do nível muito fraco e fraco (socialmente inaceitável) e
do tipo moderada e forte (aceitável). As fragilidades foram detectadas em vários
elementos, muito aguçadas nos indicadores: 1, 2, 6, 8, 12, 13, 14. Tal questão pode
resultar do momento delicado em que vive o empreendimento. O resultado indica uma
fragilizada apropriação dos trabalhadores sobre o processo autogestionário interno,
tanto em termos de concepção como em relação à experimentação cotidiana da
autogestão. Isso pode ser atribuído ao caráter quase que experimental do
empreendimento. No entanto, considerando que as trabalhadoras da OTA 4 integram
também outras experiências é possível inferir que estas reproduzam as mesmas
dinâmicas fragilizadas dos seus empreendimentos de origem na OTA 4, evidenciando
também a debilidade destes. Conforme apresentado no capítulo I, é possível que a
avançada faixa etária, somada a fruição de benefícios previdenciários e a não-
garantia de renda digna316 proveniente da organização do trabalho associado, sejam
fatores desfavoráveis a consolidação de estruturas organizativas dinâmicas e intensas.
Assim, o trabalho associado na perspectiva das trabalhadoras da OTA 4 pode ter mais
significado recreativo que econômico. Tendo como referência os distintos momentos
do processo dialético de totalização por meio dos grupos articulados por Iasi a partir
de Sartre317, os indicadores apresentados permitem indagar se a OTA 4 superara o
momento da serialidade ou do coletivo serial. Tal argumento pode ser reforçado pela
fragilidade identificada mediante a análise discursiva das entrevistas, especialmente no
que toca a ausência de qualquer compreensão sobre a expressão autogestão, mesmo se
compreendida como sinônimo de autonomia, autodeterminação ou cooperação.

315
O indicador 18 (participação, interesse e colaboração em atividades internas e externas de formação política e
mobilização) foi alocado no bloco 2 – autogestão societal ampliada, mas apresenta importante relação com a
autogestão interna.
316
Quanto à renda mensal das trabalhadoras, todas recebem menos de R$1.000,00 como renda mensal [...] 60%
recebe até um salário mínimo regional e 30% recebe menos de R$300,00. Sobre a composição da renda 60%
declarou receber menos de R$100,00 mensais na atividade junto ao empreendimento solidário a qual está
vinculada (empreendimento de origem) e 40% declarou não receber mais de R$ 400,00 [...] 50% usufrui de
benefício previdenciário (aposentadoria, pensão por morte ou benefício de prestação continuada).
317
A serialidade (coletivo serial), o grupo em fusão, o grupo jurado, a fraternidade-terror, o grupo organizado, a
instituição, a organização burocrática e o retorno à serialidade. SARTRE, op. cit. p. 223 apud IASI, op. cit.
159

O bloco (2) - autogestão societal ampliada – buscou avaliar a participação dos


trabalhadores em atividades políticas internas e externas que extravasem os muros da unidade
produtiva assim como a sua percepção sobre as relações políticas e econômicas estabelecidas
pela OTA com outras OTAs e atores sociais. Nesse sentido averiguou-se: o grau de
apropriação do trabalhador sobre o histórico da OTA e as principais mobilizações políticas,
períodos de crise e vitórias ocorridas; o interesse por atividades internas e externas de
formação política e a efetiva participação nestas; o conhecimento de outras experiências de
trabalho associado e a existência de solidariedade a estas; o nível de compreensão sobre as
relações com outros atores; a capacidade de identificar aliados, parceiros e adversários da
OTA; a percepção sobre os movimentos ou organizações sociais e a participação orgânica ou
pontual nas atividades destes; o esclarecimento sobre movimento-referência da OTA; a sua
avaliação sobre outras lutas e bandeiras de movimentos sociais contra a exploração de
qualquer natureza; a ciência a respeito da existência de relações econômicas em nível micro e
macro econômico; a existência de reflexão sobre perspectivas ampliadas de autogestão tanto
na esfera política como econômica como o compartilhamento de espaços, recursos produtivos,
economias de rede, serviços, crédito solidário, bens e objetos com outras OTAs, organizações
e movimentos populares, entidades de apoio ou redes de OTAs e o Estado; a preocupação
com a integração sociopolítica da OTA com as famílias dos trabalhadores e a comunidade na
qual a OTA está inserida.

Buscou-se mensurar em que medida a solidariedade com a classe trabalhadora está


presente no imaginário dos trabalhadores e qual a sua percepção sobre uma eventual
confluência dos objetivos corporativos da OTA com bandeiras de lutas mais amplas e a
socialização dos eventuais avanços obtidos no interior da sua organização.

Como previsto, o bloco 2 (indicadores 15-21) apresentou os resultados mais frágeis da


etapa comportamental da pesquisa. Os desníveis das OTAs 3 e 4 em relação às OTAs 1 e 2 se
repetiram, de maneira ainda mais incisiva. Os resultados podem ser sintetizados da seguinte
forma:

(1) Os indicadores das OTAs 1 e 2 apresentam predominância dos níveis moderado e


forte, com pouca incidência de manifestações de nível fraco e muito fraco. Os
trabalhadores das duas OTAs apresentaram interessante nível de percepção
relacionado aos indicadores do bloco, com especial destaque para o conhecimento
detalhado do histórico da sua OTA; a compreensão das relações políticas e
econômicas com outros atores; o conhecimento de outras experiências de trabalho
160

associado da sua região e de outras partes do mundo; preocupação com a integração


sociopolítica da OTA com as famílias dos trabalhadores e a comunidade na qual a
OTA está inserida; conhecimento das bandeiras de outros movimentos sociais e
capacidade de identificar aliados, parceiros e adversários da OTA e da classe
trabalhadora de modo geral. No que se relaciona à prática concreta, os entrevistados
confirmaram a participação e interesse por atividades internas e externas de formação
política da sua OTA e dos movimentos-referência; utilização dos espaços para leitura
e aprendizagem da OTA; participação das práticas artístico-culturais realizadas pelas
OTAs; utilização de indumentária e vestimenta da OTA tanto em espaços da produção
como nos espaços de lazer; audiência aos meios de comunicação da OTA. Algumas
fragilidades podem ser apontadas em relação ao indicador 15. Quando questionados
sobre o que seria importante para o sucesso da OTA e o que deveria acontecer para
que isso ocorra;318 os trabalhadores da OTA 1 apresentam clareza sobre a relevância
da estatização da fábrica para o sucesso da OTA; enquanto que os trabalhadores da
OTA 2 não apresentaram muitas perspectivas futuras para a OTA. Não foram
registradas manifestações em relação a outros aspectos como financiamento e crédito,
intercooperação econômica com outras OTAs, compartilhamento de espaços, recursos
produtivos, escoamento da produção por fora do mercado capitalista;

(2) Os indicadores da OTA 3 apresentam predominância dos níveis fraco e muito


fraco, com alguma incidência de manifestações individuais de nível moderado ou
forte. O resultado mais positivo foi relativo à apropriação dos momentos históricos da
OTA319. Em menor nível, mas também importante, apareceu a compreensão sobre as
relações econômicas que a OTA estabelece em nível local, especialmente relacionado
ao sistema de fornecimento dos alimentos que abastecem o restaurante, feito por 200
famílias da região, e à participação da OTA numa associação regional de produtores e
consumidores. Alguns trabalhadores confirmaram a existência pretérita de relações
políticas mais orgânicas com outras OTAs, movimentos sociais e populares, partidos
políticos, sindicatos, entidades de apoio. O mesmo ocorre em relação às atividades de
integração sociopolítica com as famílias dos trabalhadores e a comunidade local assim
como uma participação política mais ativa dos trabalhadores nas pautas do movimento
agroecológico ou nas atividades políticas de parceiros da Cooperativa no passado;
318
Questão 33 e 34 do roteiro de entrevista (anexo B): O que considera importante para o sucesso da OTA? O
que deveria acontecer para que isso ocorra?
319
Um dos trabalhadores escreveu uma monografia de conclusão que contém o histórico da OTA, publicação
utilizada para a elaboração do capítulo I.
161

(3) Os indicadores da OTA 4 apresentam primazia dos níveis fraco e muito fraco, com
poucas manifestações individuais e isoladas de nível moderado ou forte. Apesar da
OTA estar inserida no contexto de uma complexa Associação de produtores e
consumidores integrada por diversas OTAs, o grau de apropriação e de compreensão
sobre outras experiências de trabalho associado é muito reduzido, colocando a
existência de solidariedade a estas sob condição muito duvidosa, com exceção de uma
trabalhadora que apontou que a OTA precisa integrar-se em uma cadeia mais ampla,
interligando outros elementos do processo produtivo. Algumas entrevistadas relataram
que a referida Associação atravessa uma fase de alta conflituosidade entre seus
integrantes, o que vem dificultando a integração da OTA ao restante do arranjo
associativo, segundo o relato das trabalhadoras. Talvez essa seja uma importante
variável interveniente no processo de isolamento da experiência. Os demais
indicadores não apresentaram nenhum elemento de destaque;

(4) As percepções dos trabalhadores das OTAs 3 e 4 relacionadas aos indicadores 21 e


22320 revelaram uma questão importante. Quando provocados a manifestar-se sobre a
relação da OTA com movimentos sociais e outras bandeiras de luta, a maioria dos
entrevistados não tinha ciência do movimento social-referência da OTA, apontado na
primeira parte da pesquisa pelos informantes-chave de cada organização – descrito no
capítulo II. Ou seja: enquanto os trabalhadores das OTAs 1 e 2 demonstraram
capacidade descritiva sobre os movimentos-referência e alguns ainda afirmaram
participar dos mesmos; os trabalhadores das OTAs 3 e 4 sequer os mencionaram nas
entrevistas. A explicação para o que ocorre nas OTAs 3 e 4 pode ser pensada no
mínimo sob quatro pistas: (a) existe uma relação com o movimento-referência, mas
está concentrada em alguma(s) pessoa(s), portanto a informação não é compartilhada
entre os trabalhadores da OTA; (b) existiu uma relação pretérita mais orgânica com o
movimento social que não perdurou no tempo, permanecendo os resquícios desta; (c)
inexiste uma relação concreta com os movimentos-referência, e esses foram
mencionados no sentido de representarem um horizonte abstrato no imaginário dos
trabalhadores; (d) o movimento social referência na realidade trata-se de uma bandeira
política ou uma atividade concreta que é incorporada por vários atores sociais não
havendo possibilidade de relacionamento orgânico. Inúmeras outras hipóteses
poderiam ser elaboradas para elucidar a questão. No entanto os dados levantados
320
O indicador 22 apesar de pertencer ao bloco 3 – aspectos sociopolíticos gerais, tem íntima relação com a
percepção sobre os movimentos sociais
162

sugerem que no caso da OTA 3 a explicação circunde a letras (b) e (c), e no caso da
OTA 4 a provável razão seja o argumento da letra (a).

Os aspectos sociopolíticos gerais - (indicadores 22-32, bloco 3) foram organizados


para provocar a reação dos entrevistados em relação a temas relevantes à classe trabalhadora e
com grande repercussão nos meios de comunicação no momento histórico da realização das
entrevistas. Numa primeira etapa os trabalhadores foram questionados se sabiam o que
significava cada um dos temas e em caso de resposta afirmativa, foram estimulados a
manifestar a sua opinião. As respostas não foram tabuladas a partir da pré-definição de uma
posição política correta ou mais correta sobre cada assunto, mas a partir da capacidade
reflexiva sobre cada tema. Reforma agrária, redução da maioridade penal, cotas raciais e
sociais, movimentos sociais, união homoafetiva, papel da mulher na sociedade, política,
capitalismo, meios de comunicação e preconceito, foram as temáticas abordadas.

Mesmo supondo o sujeito coletivo OTA, cada indivíduo vive sua própria superação
particular, transita de certas concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de
relações que compõe a base material de sua concepção da realidade. Sobre o bloco 3 é
possível estabelecer algumas conclusões:

(1) Os indicadores das OTAs 1 e 2 apresentam predominância dos níveis moderado e


forte, com mínimas incidências de manifestações de nível fraco e muito fraco. O
conjunto pode ser considerado aceitável em se tratando da amostra das OTAs. Tais
ocorrências (fraca e muito fraca) foram apresentadas justamente pelos trabalhadores
que alegaram não terem tido socialização ou percurso militante acentuado, antes ou
durante a experiência na OTA (trabalhadores 4 e 5 da OTA 1; trabalhador 1 – OTA 2);

(2) Os indicadores da OTA 3 apresentam predominância dos níveis moderado e forte,


com poucas incidências de manifestações de nível fraco e muito fraco enquanto que os
indicadores da OTA 4 apresentam uma partição quase que igualitária entre a
incidência de manifestações entre os níveis moderado e forte/fraco e muito fraco.
Considerando que o nível fraco indica total desconhecimento sobre os temas e o nível
2 indica conhecimento muito superficial desprovido de capacidade mínima de reflexão
sobre os assuntos propostos;

(3) Sobre o indicador comportamental número 23 – existência de socialização ou


percurso militante. Quando os trabalhadores foram consultados sobre o seu percurso
163

ou sua socialização militante,321 constatou-se que em cada organização havia no


mínimo um/a trabalhador/a com percurso militante resultante de experiências
anteriores ao trabalho associado na OTA e que chegaram à OTA em razão da
militância política. O operário da OTA 1 já havia trabalhado em duas outras fábricas
sob controle dos trabalhadores e é militante do Movimento das Fábricas Ocupadas; a
trabalhadora da OTA 2 é militante anarquista e apresentou histórico de participação
em ocupações e coletivos contraculturais e de defesa das rádios comunitárias; o
trabalhador da OTA 3 é pequeno agricultor e no passado participou de movimentos
camponeses; a trabalhadora da OTA 4 participou organicamente da Pastoral Operária
Católica assim como de movimentos populares que estiveram na base social da
fundação do Partido dos Trabalhadores. No entanto, há um interessante elemento que
diferencia as OTAs 1 e 2 das demais. Nestas constatou-se a presença de percurso
militante ainda em outros trabalhadores, e que se efetivou após o ingresso na OTA. Ou
seja: as mediações políticas nestas OTAs foram capazes de despertar a consciência dos
seus trabalhadores, superar a primeira e por que não dizer, a segunda forma de
consciência; inserindo-os organicamente em alguma luta mais ampla, para além da
atividade do trabalho associado. O mesmo não ocorreu nas OTAs 3 e 4, nas quais os
únicos militantes existentes tinham percurso constituído anteriormente ao ingresso na
OTA e declararam estarem afastados das atividades há um bom tempo.

(4) O indicador número 9 – motivações pessoais para trabalhar numa OTA - também
merece algum destaque. Quando provocados sobre as razões que os levaram a
trabalhar na OTA e se gostariam de trabalhar em outro local, a integralidade da
amostra manifestou vantagens diretas no processo autogestionário e salvo por
imposição da realidade, não trocaria por um trabalho autônomo ou assalariado.

3.2.6.1. Análise Global

Após o registro dos resultados comportamentais, já é possível dialogar com os


problemas empíricos da pesquisa, assim sintetizados:
(1) Na sociedade sob domínio do Capital, enquanto seu sociometabolismo alcançar
todas as esferas da vida, não é possível contemplar uma nova consciência a não ser de
forma embrionária. No entanto, compreender a consciência como um processo,
permite reconhecer que esta não é estática ou que se desenvolve de forma linear; é
321
Questões 60 e 61 do roteiro de entrevista – anexo B. “Você participa ou já participou de algum movimento ou
organização social - sindicato, partido político ou associação? Desde quando e com que frequência?
164

formada a partir da relação dialética existente entre as representações ideais dos


indivíduos e as suas relações concretas;

(2) Sob as circunstâncias anteriores, as experimentações autogestionárias nas


Organizações de Trabalho Associado podem sob algumas condições engendrar
mediações propícias para o desenvolvimento de práticas democratizantes no âmbito
interno das experiências com a eventual socialização dos avanços obtidos no interior
das unidades produtivas. As rupturas não anulam as continuidades com a lógica
heterogestionária, portanto o horizonte da emancipação dos trabalhadores não está
garantido; as condições e mediações precisam ser apuradas;

(3) Nas OTA (1) e (2) os componentes institucionais favorecem, mesmo que de
forma embrionária, o despertar de uma nova consciência (consciência para si), pois
que sustentam suas experiências em bases favoráveis a outra forma de perceber o
mundo e de interagir neste. Os indicadores comportamentais evidenciam que a
solidariedade com a classe trabalhadora está presente no imaginário dos trabalhadores,
inclusive em âmbito internacional. A consciência e a solidariedade dos trabalhadores
se confirmam na prática concreta da OTA; os indicadores institucionais atestam a
confluência dos objetivos econômico-corporativos da OTA com bandeiras de lutas
mais amplas e com socialização dos avanços obtidos no interior da sua organização,
especialmente pela integração sociopolítica das unidades produtivas à comunidade nas
quais estão inseridas, mesmo que de forma incipiente. É a livre práxis estabelecida na
autogestão ampliada: da resistência e reivindicação na produção à contestação social
do capital;

(4) Na OTA (3) a cooperação, a autonomia, disciplina e a participação estão em


níveis avançados. Trata-se de uma organização consolidada, que superou momentos
muito difíceis. Atualmente existe uma interessante sintonia entre os trabalhadores, o
trabalho flui. No entanto, a estabilidade no processo de trabalho e a boa situação
financeira, colocaram a OTA numa situação de estagnação. Alguns trabalhadores
chegaram a comentar que “não há muita reunião porque não há o que conversar, está
tudo funcionando bem”. Os indicadores relativos à autogestão ampliada indicam a
dificuldade dos trabalhadores em compreender que o seu trabalho está inserido num
contexto mais amplo do sociometabolismo do capital ou de forma mais simplificada,
que os acontecimentos no interior da OTA também são influenciados pelo movimento
de outros atores importantes como o Estado e próprio Mercado. Além de inexistir
165

qualquer opinião abstrata sobre a autogestão ampliada (o que não surpreende), os


trabalhadores desconhecem outras experiências e as relações estabelecidas pela
própria OTA. O argumento de Sartre sobre o momento de conversão do grupo em
instituição burocrática pode fornecer uma pista de compreensão. Com um passado
repleto de relações políticas com outras OTAs e com práticas formativas diversas;
atualmente, a OTA (3) prioriza as tarefas de gestão do empreendimento e os interesses
econômico-corporativos, não ofertando qualquer modalidade de prática formativa ou
lúdica para os seus trabalhadores ou de relacionamento desses com a comunidade
local. Como visto, para Sartre, é a livre práxis do grupo organizado cristalizada em
práxis constituída: quando o grupo se endurece e o que era movimento se torna rotina,
o que era ação converte-se em procedimentos. É a práxis orgânica instituída que “se
manifesta como inércia insuperável, isto é, como exterioridade explosiva”.322 Assim, o
empreendimento corre o risco do retorno à serialidade. O que seria desastroso,
considerando a bela trajetória da OTA. Passos importantes precisam ser dados pela
OTA no sentido de retomada da sua práxis livre. Contudo, a perspectiva do grupo
pode ser tipificada como um comportamento autogestionário/autonomista, como
equivalente, na tipologia de Iasi323, à segunda forma de consciência – a consciência
em si. A resistência na produção é o traço marcante da OTA;

(5) OTA (4). Em relação aos aspectos sociopolíticos gerais, indicadores da OTA

apresentaram uma partição quase que igualitária entre a incidência de manifestações


do tipo moderada e forte/fraca e muito fraca. Considerando que o nível fraco indica
total desconhecimento sobre os temas e o nível 2 indica conhecimento muito
superficial desprovido de capacidade mínima de reflexão sobre os assuntos propostos;
esses resultados são um tanto alarmantes e podem evidenciar que o comportamento
coletivo da OTA 4 aponta a predominância de elementos típicos da primeira forma de
consciência como a ultrageneralização e a reprodução de perspectivas conservadoras
de maneira naturalizada. Em relação aos aspectos relativos à autogestão interna, além
de inexistir quaisquer perspectivas reflexivas sobre o que venha a ser a autogestão,
seja como autonomia ou como autodeterminação; a fragilidade dos componentes
institucionais dos indicadores institucionais 7-17 atestam a fragilidade do
empreendimento em termos de perspectivas emancipatórias. Mesmo existindo
diferentes maneiras de cooperar, participar e protagonizar no interior das OTAs; é
322
SARTRE, op. cit. p. 223 apud IASI, op. cit.2012. p.293.
323
IASI, op. cit. 2007.
166

arriscado identificar uma organização do trabalho enquanto fato de poder. Os demais


indicadores relativos à autogestão ampliada confirmam o argumento, de forma ainda
mais aguda. O convênio estabelecido pela OTA possibilitou a aquisição de maquinário
e recursos tecnológicos que possibilitarão uma produção apta a gerar renda às
trabalhadoras. Se a renda não vier acompanhada de um salto político, será mais uma,
dentre tantas experiências orientadas unicamente para a sobrevivência dos seus
integrantes. Assim, o fortalecimento da organicidade da OTA é tarefa urgente e
necessária;

(6) A incorporação dos trabalhadores das OTAs (1) (2) às lutas políticas mais amplas
(reivindicação e contestação) a partir da relação orgânica das OTAs com movimentos
e organizações populares apresenta-se como vetor determinante para o surgimento de
embriões da nova consciência, sobrepondo a solidariedade de classe aos objetivos
corporativos das OTAs;

(7) O indicador institucional número 5 (participação institucional da OTA em


movimentos populares ou organizações sociais e participação destes na OTA)
combinado com qualificados índices de repartição do poder (representado pelo
conjunto global dos indicadores institucionais 7-17) tornam-se variáveis determinantes
num duplo sentido: (a) como mediação necessária para o surgimento de embriões da
nova consciência; (b) como fator indispensável para superação dos objetivos
econômico-corporativos das OTAs; além de elevá-las da condição de sujeito coletivo à
de sujeito político capaz de incidir na correlação de forças políticas, com eventuais
possibilidades de disputa pela implantação de seu projeto político.

(8) No sentido anterior, a pedagogia do movimento, da luta e da rebeldia pode ser


entendida como instância mediadora, como intencionalidade formativa produzida na
dinâmica da luta social e na organização coletiva das Organizações de Trabalho
Associado.
No próximo capítulo, serão desenvolvidos os conceitos mais importantes da análise.

Na sequência seguem as representações gráficas dos resultados comentados.


- Figura 13 - OTAs em perspectiva comparada;
- Figura 14 - comparação OTA 1 – institucional x comportamental (trabalhadores);
- Figura 15 – comparação OTA 2 – institucional x comportamental (trabalhadores);
- Figura 16 – comparação OTA 3 – institucional x comportamental (trabalhadores);
167

- Figura 17 – comparação OTA 4 – institucional x comportamental (trabalhadores)

Na base de cada figura comparativa (Figuras 14, 15, 16 e 17) seguem pequenas figuras
que projetam os autogestômetros comportamentais dos trabalhadores de forma reduzida. As
barras coloridas, definidas a partir do centro em direção às extremidades do círculo indicam:
socialmente inaceitável (cor lavanda); aceitável (cor amarela); socialmente necessário (cor
vermelha); padrão idealizado (cor roxa).

Em anexo seguem os autogestômetros comportamentais dos trabalhadores: Anexos E,


F, G, H, I, J, K, L, M, N (elaborados a partir dos indicadores institucionais).

Figura 13 - OTAs em perspectiva comparada


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
168

Figura 14 – Comparação OTA 1 – institucional x comportamental (trabalhadores)


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
169

Figura 15 – Comparação OTA 2 – institucional x comportamental (trabalhadores)


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
170

Figura 16 – Comparação OTA 3 – institucional x comportamental (trabalhadores)


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
171

Figura 17 – Comparação OTA 4 – institucional x comportamental (trabalhadores)


Fonte: Elaborado pelo autor (2016).
172

CAPÍTULO IV – A AUTOGESTÃO COMO ESTRATÉGIA – MOVIMENTO E


IDEAL – TEORIA SOCIAL – PROCESSOS, EVENTOS E EXPERIMENTAÇÕES

Inevitável vontade de mudar o jogo,


inusitado desejo de desobediência.
Urgência em plantar indignação,
ensaiar as consciências.
Examinar as verdades Celebrar as vidas!
Traçaremos justos os caminhos de outra estação.

Diva Lopes

O título deste capítulo traduz de forma honesta e lúcida a dificuldade que recai nos
ombros de qualquer pesquisador ou militante que se atreva a definir, compreender ou
descrever a autogestão. As análises existentes oscilam entre o registro historiográfico das
várias experiências que incorporaram em maior ou menor intensidade a auto-organização
plena da vida; a exposição dos fundamentos epistemológicos das matrizes teóricas dos
principais autores que trataram da temática; ou ainda, dos elementos centrais da própria práxis
autogestionária.

Cláudio Nascimento aponta uma saída ao dilema, quando despretensiosamente registra


que a “autogestão é uma estratégia-movimento social e um ideal-teoria social”324. A
autogestão antes de tudo é referenciada em eventos e processos históricos mais ou menos
duradouros e capilarizados, nas quais os trabalhadores tentaram o assalto ao céu. Por isso,
importa indagar: afinal, existiu um sistema com autogestão social plena? A pergunta gera
interminável polêmica. O termo autogestão surge na Iugoslávia, referenciado naquela
experiência social.

Marx, em diversas passagens, falou em modo de produção de produtores


associados325 e se declarou favorável às cooperativas de produção, desde que organizadas em
escala nacional. No entanto, não se debruçou sobre a discussão da organização

324
NASCIMENTO, Cláudio. Momentos e ideias decisivos para uma história da autogestão. s/d. s/e. p.25
Disponível em: <http://claudioautogestao.com.br/wp-content/uploads/2014/04/Elementos-para-uma-historia-
daautogest%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2014.
325
MARX, Karl. O capital. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. Livro 1.
173

autogestionária ou do socialismo em bases autogestionárias de forma direta, pois talvez não


tenha tido tempo para tal empreitada.

A autogestão pode ser apresentada como teste de ferro a qualquer processo, evento ou
experiência que se autoproclama socialista ou pós-capital. Nesse sentido, parece apropriada a
ideia de experimentação social proposta por Pierre Naville na obra Le temps, La technique,
l‟autogestion326 quando define que o experimental é o que não é natural, não é espontâneo. Ou
seja, é lutando que se aprende a lutar. Nas palavras de Rosa Luxemburgo 327, “é só exercendo
o poder que a massa aprende a exercer o poder. Não há outra maneira de ensinar-lhe [...] Sua
educação se faz quando eles passam à ação”. 328

Para muitos autores a autogestão aparece como sinônimo de forma ideal de


organização dos trabalhadores em situação pós-revolucionária, pós-capitalista ou ainda pós-
Estado, com ou sem a tomada do poder político. Para outro grupo de teóricos, a autogestão é
concebida como forma social possível dentro do próprio capitalismo, entendendo que os
trabalhadores podem conquistar autonomia política e econômica, sem a necessidade de
conquista do poder político e econômico e que este é o caminho para a sociedade dos
produtores livremente associados. O principal paradoxo da autogestão foi assinalado por
Daniel Mothé, na obra Autogestão gota a gota329. O autor problematizou o principal nó do
socialismo autogestionário, quer seja: como articular a autogestão como ideologia com as
experiências práticas? Só pode existir autogestão com a Revolução (dilúvio), ou, esta também
pode existir com experiências pontuais (gota a gota)? Como conciliar a audácia do projeto
autogestionário com a limitação das tentativas de gestão das unidades produtivas? O
imaginário com a realidade concreta? Buscando dar respostas a estas indagações, Mothé
formulou a ideia da autogestão gota a gota, dentro de uma visão ampla de experimentação,
baseada também na perspectiva de Rosa Luxemburgo. Sob tal paradoxo, Mothé defendeu a
participação dos trabalhadores em experiências de funcionamento coletivo nas empresas de
autogestão, mesmo que limitadas quando inseridas na lógica do capital.

326
NASCIMENTO, Cláudio, op. cit. p.13.
327
Apesar de algumas correntes políticas definirem Rosa como espontaneísta, entende-se que a espontaneidade a
qual ela se referia está relacionada espontaneidade necessária no partido de massas, pela relação entre massas-
militantes-direção. Se fosse diferente ela não daria tanta importância ao partido e a militância política.
328
Discurso proferido em dezembro de 1918, na conferência diante do congresso de fundação do Partido
Comunista Alemão (Liga Espártaco).
329
MOTHÉ, Daniel. L‟Autogestion goutte a goutte. Éditions Du Centurion. Paris, 1980 apud NASCIMENTO,
Cláudio. Socialismo Autogestionário. Disponível em
<www.contag.org.br/imagens/f763socialismoClaudioNascimento.pdf> Acesso em 25/05/2013.
174

Sob esse horizonte, o capítulo IV pretende situar a autogestão como estratégia-


movimento e ideal-teoria social, para verificar a essência histórica desta e avaliar as
possibilidades do Trabalho Associado na vigência do capital sob o prisma autogestionário,
em que pese todas as rupturas e continuidades com a lógica da heterogestão do trabalho e da
organização societal.

4.1 A AUTOGESTÃO COMO ESTRATÉGIA – MOVIMENTO E IDEAL – TEORIA


SOCIAL

Em sua consagrada obra Autogestão: uma mudança radical 330, Guillerm e Bourdet
destacaram que a palavra autogestão é relativamente recente e só aparece na língua francesa
no início dos anos 1960, como tradução literal da expressão servo-croata samoupravlje, (samo
sendo equivalente eslavo do prefixo grego auto, e upravlje significando aproximadamente
gestão). A palavra foi introduzida na França para designar a experiência política, econômica e
social da Iugoslávia331 de Tito nos anos 1950, em sua ruptura com o stalinismo, mas segundo
os autores, na própria Iugoslávia, o “sistema de autogestão não era tido como uma inovação;
ao contrário, como um retorno ao marxismo autêntico, pervertido pelo stalinismo” 332.

Contudo, para Guillerm e Bourdet o uso generalizado do termo - que passou a ser
utilizado como palavra de ordem, tema de pesquisas e de notícias na grande imprensa – criou
uma espécie de saco de gatos. Para elucidar o problema, os autores mencionam o episódio de
uma publicação feita na época que aplicara o termo autogestão para caracterizar o direito à
autogestão dos detidos numa célula presidiária, por estes se encarregarem, diariamente e por
rodízio, da missão de despejar o urinol 333. Ainda nos dias de hoje, a banalidade é tanta que
muitos militantes que desejam um sistema baseado na autogestão societal plena, por motivos
estratégicos, recusam-se a utilizar o termo.

330
GUILLERM, Alain; BOURDET, Yvon. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.
331
A República Socialista Federativa da Iugoslávia foi um Estado Federal com formato de uma comunidade
estatal de nações unidas e suas 6 Repúblicas, mais as províncias socialistas de Kossovo e de Voivodina, que
eram partes da República Socialista da Sérvia. A sua estrutura foi baseada no poder e na autogestão da classe
trabalhadora sobre as empresas, as instituições de gestão social (ensino, saúde, cultura etc.) e a vida política
como um todo. Tratou-se de uma complexa organização social, apesar de algumas contradições concretas e as
assimetrias entre as regiões. O órgão político maior de cada república iugoslava e das regiões autônomas era a
Assembleia. A assembleia era formada por três conselhos: o Conselho de Trabalho Associado, eleito pelos
conselhos de trabalhadores nas comunas; o Conselho das Comunas, eleito pelas assembleias comunais; e o
Conselho Sociopolítico, eleito pelos conselhos do mesmo tipo nas comunas. A Assembleia das repúblicas
federadas e das províncias autônomas elegia o Conselho Executivo, os órgãos administrativos e judiciários, além
da presidência colegiada. Para uma análise mais pormenorizada da experiência recomenda-se a leitura de
QUEIROZ, Bertino Nóbrega de. A autogestão iugoslava. São Paulo: Brasiliense, 1980; NASCIMENTO,
Cláudio. As lutas operárias autônomas e autogestionárias. Rio de Janeiro: CEDAC, 1986.
332
GUILLERM; BOURDET, op. cit. p. 11.
333
GUILLERM; BOURDET, op. cit. p.9
175

Tiriba e Fisher discorrem sobre o duplo horizonte de sentido que pode ser atribuído ao
termo autogestão, especialmente com os acontecimentos do maio de 68 na França, quando o
termo passou a ser utilizado para qualificar práticas sociais alternativas ao capitalismo e
tornou-se palavra de ordem nas lutas reivindicatórias no âmbito de todas as esferas da vida
social. O poder estudantil no controle das escolas e das universidades entrou na pauta do dia
como prática autogestionária. Contudo, as autoras destacam a importância da categoria
autogestão a partir da sua imbricação com a produção associada dos trabalhadores, no sentido
da construção de um modo de produção de produtores associados. Assim referem que,

[...] no sentido restrito, autogestão é uma prática social que se circunscreve a uma
ou mais unidades econômico-sociais, educativas ou culturais, nas quais, em vez de
se deixar a organização do processo de trabalho aos capitalistas e a seus
representantes e/ou delegá-la a uma gerência científica, trabalhadores e
trabalhadoras tomam para si, em diferentes níveis, o controle dos meios de
produção, do processo de trabalho e do produto do trabalho. No sentido político,
econômico e filosófico, as práticas sociais autogestionárias carregam consigo o
ideário da superação das relações sociais capitalistas e a constituição do socialismo,
concebido como uma sociedade autogestionária.334

No mesmo sentido, Guillerm e Bourdet ao concluírem sua obra reafirmam a validade


da categoria autogestão, atestando que esta não pode ser entendida como vaga ideia, pois tem
fontes profundas na história da humanidade, na ação e no pensamento revolucionário; como
palavra de ordem sintetiza os conceitos essenciais da luta do proletariado moderno, que
segundo os autores podem ser reduzidos em quatro conceitos:

- o socialismo não se limita à nacionalização dos meios de produção [...]; é o


autogoverno dos produtores associados; – A U.R.S.S. e as democracias populares
não são socialistas, mas capitalistas-burocráticas. Essa burocracia não é, a bem dizer,
uma nova classe; é uma transformação do capitalismo; - a crise atual da sociedade
não resulta essencialmente da exploração, mas da alienação e, mais precisamente, da
coisificação da qual o proletariado, tendendo a se constituir em classe, é a negação
permanente; - essa negação da alienação – a autogestão – não consiste no
aperfeiçoamento das condições de trabalho, e sim na invenção de um novo tipo de
atividades livremente construídas que revolucionam o trabalho, as ferramentas e os
produtos.335

Num sentido mais amplo a autogestão assume contornos políticos mais radicais,
contemplando práticas sociais mais intensas que carregam, de diferentes maneiras, e
ancoradas em distintos referenciais teóricos, a superação das relações capitalistas e a

334
TIRIBA, Lia; FISCHER, Maria Clara Bueno. Produção Associada e autogestão. In: CALDART, Roseli
Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio (orgs.). Dicionário de
Educação no Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão
Popular, 2012. p.614.
335
GUILLERM; BOURDET, op. cit. p. 210-211.
176

constituição de uma sociedade pós-capital, na qual todos os domínios da vida – educação,


cultura, saúde, lazer – necessariamente devem estar sob controle direto do povo. Apesar de a
denominação ser recente, a questão é tão antiga que remonta a própria constituição do
capitalismo como modelo hegemônico e a existência do movimento operário na sua trajetória
pela construção de novas formas de produzir e de resistir. A autogestão pode ser entendida
como a própria estrutura da sociedade socialista, na economia, na política e na cultura.

Nesta perspectiva, a convenção internacional pelo socialismo autogestionário definiu


a autogestão como:

[...] a construção permanente de um modelo de socialismo, em que diversas


alavancas de poder, os centros de decisão, de gestão e controle, e os mecanismos
produtivos sociais, políticos e ideológicos, se encontram nas mãos dos produtores-
cidadãos, organizados livres e democraticamente, em formas associativas criadas
pelos próprios produtores-cidadãos, com base no princípio de que toda organização
deve ser estruturada da base para a cúpula e da periferia para o centro, nas quais se
implante a vivência da democracia direta, a livre eleição e revogação, em qualquer
momento das decisões, dos cargos e dos acordos.336

Considerando todas essas definições, para Nascimento 337, é preciso compreender a


autogestão sob dois ângulos articulados e interdependentes: (1) como conteúdo real do
socialismo, um regime que sucede ao capitalismo através da revolução social, portanto, um
modelo de reorganização da sociedade; (2) como linha de mobilização dos trabalhadores e
cidadãos em busca desta vitória, é uma estratégia revolucionária.

Assim, a autogestão ganha materialidade histórica a partir do resgate de diversas


experiências, eventos ou processos pretéritos, dotados de distintos sentidos, formas, contextos
e condições subjetivas/objetivas (pois nem sempre se constituem em períodos revolucionários
nos quais está em jogo a conquista do Estado ou a ruptura com o sistema capitalista),
apresentando diferentes graus de controle dos meios de produção e sustentabilidade no tempo.

A história conheceu vários experimentos autogestionários. A experiência fundante do


poder operário foi a Comuna de Paris (1871), quando por pouco mais de dois meses as
fábricas passaram a ser geridas pelos próprios trabalhadores e o povo de Paris forjou uma
proposta de gestão do conjunto da cidade. É possível afirmar que a Comuna influenciou todas
as lutas revolucionárias que a sucederam, como o Soviet de Petrogrado (1905) e a Revolução
de 1917. Mas além desses exemplos outras tentativas autogestionárias também foram

336
PELO SOCIALISMO AUTOGESTIONÁRIO. Edições base. Lisboa. 1979. Documentação da Conferência
Nacional ”Pelo Socialismo Autogestionário”, Porto, 1978.
337
NASCIMENTO, op. cit. . 2014, p .2.
177

importantes como a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), a República dos Conselhos


Operários da Hungria (1918-1919), os Conselhos Operários na Itália (1919-1921), na
Iugoslávia (1950), na Hungria (1956) e na Polônia (1956, 1970 e 1980), a experiência da
Argélia (1962) e da Checoslováquia (1968) e a Revolução dos Cravos em Portugal (1974), a
Comuna da Shangai (1966), a Comuna de Gdanks (1980). No âmbito latino-americano,
destacamos o processo revolucionário de Cuba (a partir de 1959), os cordões industriais no
Chile (1972) e Nicarágua (1979), além de curtas experiências vividas na Bolívia e no Peru, e a
dos Zapatistas em Chiapas, México (desde 1994). No Brasil, especialmente no campo, vale
lembrar as experiências da República de Canudos (1896), do Quilombo dos Palmares (na
segunda metade do século XVII), do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto (1920) e das Ligas
Camponesas (1950), destacando-se pela criação da Sociedade Agrícola e Pecuária de
Plantadores de Pernambuco (SAPPP) em 1954.

É notável que as experiências mencionadas ocorreram em estruturas e contextos


históricos bem distintos. Assef Bayat338 sistematizou as experiências históricas da autogestão
utilizando quatro categorias:

(a) Autogestão sob contexto de dualidade de poder, em conjunturas revolucionárias -


da Rússia (1917), da Argélia (1962), do Chile, (1972), de Portugal (1974) e do Irã
(1979);
(b) Autogestão nos países ditos socialistas do Terceiro Mundo – como no caso da
China, Cuba, Moçambique e Nicarágua;
(c) Autogestão em governos populistas do Terceiro Mundo - Tanzânia, Peru, Egito e
Turquia;
(d) Possibilidades de autogestão em condições normais na periferia do capitalismo.
A quarta e última categoria não se refere a exemplos históricos, mas às possibilidades.
Bayat afirma que o Terceiro Mundo é o principal portador das possibilidades de autogestão,
no contexto do capital globalizado.

É na mesma perspectiva que Henri Lefebvre define a autogestão: “É a abertura ao


possível”. O filósofo Henri Lefebvre 339 tentou sistematizar os “problemas teóricos da
autogestão”. Suas ideias são estimulantes e importantes na perspectiva de tentar situar em um

338
BAYAT, Assef. Work, Politics and Power: an international perspective on workers‟ control and self-
management. Nova York: Montly Review, 1991 apud NASCIMENTO, Cláudio. Do “beco dos sapos” aos
canaviais de Catende. Brasília: SENAES, 2004, p .4-5.
339
LEFEBVRE, Henri. De l‟Etat.Le mode de production étatique, 10/18. Paris: Coll, 1977, p.10-18 apud
NASCIMENTO, op. cit. 2004, p .2.
178

quadro teórico as experiências históricas. De acordo com Lefebvre, a experiência social


mostra que as associações de autogestão surgem nos pontos frágeis da sociedade existente.
Toda sociedade tem seus pontos fortes que, no conjunto, formam a armadura, a estrutura da
sociedade.

O Estado repousa sobre estes pontos fortes. A política estatal tem por tarefa soldar as
possíveis fissuras. Em volta destes espaços reforçados nada acontece. Todavia, entre estes
pontos fortes, consolidados pelo Estado, encontram-se as áreas frágeis e as lacunas. É ai que
ocorrem fatos novos. As forças sociais intervêm nestas lacunas, as ocupam, as transformam
em pontos fortes, ou, ao contrário, em outra coisa.

Os pontos frágeis, os vazios, só se revelam na prática ou às iniciativas de indivíduos


capazes ou às pesquisas de grupos capazes de agir. Os pontos frágeis podem resultar de um
abalo ou de uma desestruturação do conjunto.

A história das lutas pela emancipação humana demonstra que toda vez que a classe
trabalhadora atinge momentos de alta mobilização revolucionária, ela se orienta no sentido de
sua auto-organização e daquilo que Cláudio Nascimento define de Princípio de Poder
Popular-Comunal como sendo o conteúdo que pode ser manifestar sob diversas formas: seja
como conselho operário, camponês, de bairro; ou como práxis revolucionária de muitos e
plurais sujeitos históricos como operários e camponeses, homens e mulheres, jovens e
adultos, estudantes, soldados, índios e quilombolas. As diversas tentativas dos trabalhadores
de assalto ao Céu significam ensaios de construção dos órgãos de poder popular-comunal;
que é Potência que traz em si a Utopia Concreta, o Inédito Viável e o ainda-não-ser; muitas
vezes antagônico ao núcleo fundamental do sociometabolismo do capital: capital, trabalho
assalariado e Estado. Seu campo prático é o do mundo do trabalho e se por um lado, essa
longa história de experiências vem marcada por derrotas, por outro lado, essa utopia concreta
não se extingue. A velha toupeira entra em ciclos de hibernação e desperta em outros espaços
geográficos, convicta de que apesar de derrotas pontuais, sua luta é legítima, viável e possível.

Outra importante contribuição é a construção dos ciclos ascensionais de lutas


autônomas publicados por João Bernardo, na obra Economia dos Conflitos Sociais340.
Bernardo articula complexos elementos como a evolução do Estado, as classes gestoras,
capitalista e trabalhadora e o papel das lutas autogestionárias no enfrentamento das
contradições capital-trabalho ao longo dos séculos XIX e XX. Frente à impossibilidade de

340
BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
179

estabelecer datas exatas para o limite temporal de cada ciclo ascensional de lutas autônomas,
resta a possibilidade de estabelecer períodos mais ou menos referenciados, conforme segue:

- 1° ciclo:
Abertura: possivelmente 1830
Fase de assimilação: 1848 até 1860
- 2°ciclo:
Abertura: 1870
Fase de assimilação: 1875 até 1916-1917
- 3°ciclo:
Abertura: 1917
Fase de Assimilação: 1930 até 1960
- 4° ciclo:
Abertura: 1960 até 1980
Fase de assimilação: 1982 até [...].

Importa destacar alguns elementos da obra, que se relaciona a importantes


componentes dos registros históricos, assim resumidos:

(1) Bernardo emprega os ciclos longos da mais-valia relativa em contraposição aos


ciclos curtos de mais-valia relativa. Os ciclos curtos se definem pela cotidiana assimilação
das reivindicações e pressões dos trabalhadores, e, a degenerescência das formas de
organização da luta autônoma. Já os ciclos longos se caracterizam pela ascensão de formas
autônomas e autogestionárias de luta dos trabalhadores. Assim, o autor propõe uma diferente
dinâmica de cada ciclo, analisando suas várias fases. Assim explica:

[...] Na sequência de Schumpeter, inúmeros economistas têm dividido o ciclo nas


fases de prosperidade, recessão, depressão e recuperação. Mudando o eixo da
problemática para os conflitos sociais, a divisão deve ser outra. A fase de ascensão
de formas autônomas de luta marca o início de um ciclo longo de mais-valia
relativa. Os repetidos colapsos constituem, por si mesmos, o quadro em que essas
formas degeneram-se e são assimiladas pelo capitalismo, criando-se
progressivamente mecanismos que permitem a assimilação cada vez mais fácil e
rápida das lutas do mesmo tipo que venham a desencadear-se. É esta a segunda fase.
Quanto mais solidamente a fase de assimilação parece estar implantada, mais
começam, porém, a difundir-se novos tipos de luta autônoma, cuja recuperação é
inviável no interior dos mecanismos já constituídos. A generalização destes novos
tipos de luta marca o início da primeira fase do ciclo seguinte341.

(2) Outro elemento importante é que Bernardo mantém atenção permanente para o
relacionamento entre as classes sociais - capitalistas e a classe trabalhadora. Como as classes
não existem senão em luta, o autor conclui que classes opostas evoluem com a evolução das
lutas, transformando-se organicamente mediante a assimilação ou a repressão dos conflitos

341
BERNARDO, op. cit., 2009. p.371-372.
180

sociais. Para elucidar este processo, o autor distingue entre dois inseparáveis aspectos: o das
reivindicações e consequentes pressões e o da forma de organização adotada. A cotidiana
assimilação das reivindicações e pressões do ritmo às flutuações econômicas a que o autor
denomina de ciclos curtos da mais-valia relativa.

(3) Nota importante se refere ao processo de assimilação das lutas. Além da


reorganização ampliada dos processos de trabalho o colapso das novas relações sociais não
suscita apenas a integração na classe gestorial de antigos delegados dos trabalhadores
degenerados em dirigentes. Não se trata somente da absorção pelo capitalismo de pessoas ou
de funções decorrentes do declínio das formas organizativas autônomas. São também as
próprias instituições da luta autônoma a serem assimiladas, levando os trabalhadores a
desacreditarem da possibilidade de combaterem radicalmente o capital. Ao se afastarem da
participação ativa nos órgãos de deliberação e de decisão, estes não desaparecem, sendo
mantidos pelos antigos delegados convertidos em novos gestores. Não são as instituições de
participação coletiva e ativa que se mantêm, mas apenas a sua sombra, mas sem as relações
sociais de tipo novo que lhes haviam conferido a absoluta originalidade revolucionária inicial.
Servem agora de quadro para a cooptação dos novos dirigentes e é com esta bagagem
institucional que eles vão se inserir no capitalismo. Os critérios capitalistas de produtividade
liquidam o caráter coletivista e igualitário das formas de luta autônoma. O seu colapso
implica, em suma, a recuperação das suas instituições, quando já degeneradas.

(4) Contrariamente às teorias econômicas legitimadoras do capitalismo que pregam o


conceito de equilíbrio econômico, Bernardo identifica como o modelo de mais-valia emerge
da luta de classes baseado na força de trabalho capaz de ação na luta de classes como forma
de ação contraditória. Nesse processo de luta, o capital pode ceder limitadamente às
reivindicações como forma de antecipar futuros conflitos ou empregar a repressão.

(5) Outra questão importante é a diferenciação apresentada entre Estado Amplo


(Estado A) e Estado Restrito (Estado R). O Estado (A) é constituído por aqueles processos
que asseguram aos capitalistas a reprodução da exploração, incluindo, portanto, todos aqueles
que, no mundo da produção e da fábrica, garantem a subordinação hierárquica e estrutural do
trabalho ao capital. Por sua vez, o Estado (R) é aquele que expressa o sistema de poderes do
Estado Liberal clássico (polícia, exército, poder judiciário). É pela limitação do Estado (R)
que o autor recorre a uma noção ampliada de Estado para apontar as engrenagens da
dominação. Considerando que na sociedade atual o Estado (A) se sobrepõe ao Estado (R) este
181

abarca também o poder nas empresas, os capitalistas que se convertem em “Governante,


legislador, polícia, juiz e carrasco”342, nas palavras de Bernardo.

(6) Em relação às classes dominantes, Bernardo opera uma bifurcação entre a classe
burguesa e classe dos gestores. A classe burguesa é definida a partir de um enfoque
descentralizado, isto é, em função de cada unidade econômica em seu microcosmo. A classe
dos gestores, ao contrário, tem uma alçada mais universalizante e é definida em função das
unidades econômicas em relação ao processo global. Ambas se apropriam da mais-valia,
ambas controlam e organizam os processos de trabalho, ambas garantem o sistema de
exploração e têm uma posição antagônica em relação à classe trabalhadora. De acordo com
Bernardo estas se diferenciam em vários aspectos: “(a) pelas funções que desempenham no
modo de produção e, por conseguinte; (b) pelas superestruturas jurídicas e ideológicas que
lhes correspondem; (c) pelas suas diferentes origens históricas; (d) pelos seus diferentes
desenvolvimentos históricos.”343 Enquanto a classe burguesa organiza processos
particularizados visando sua reprodução no plano mais micro, a classe dos gestores organiza
estes processos particularizados articulando-os com o funcionamento econômico global e
transnacional. A classe dos gestores pode pretender assumir a forma de uma classe
aparentemente não-capitalista, mas isso se dá apenas em sua aparência. O Estado (A) ao
ampliar a consistência interna e unificar seu funcionamento, foi-se transferindo
progressivamente para o seu âmbito a centralização política e a coordenação da economia. A
classe dos gestores, ao mesmo tempo que se torna hegemônica no interior de cada uma das
unidades constitutivas do Estado (A) e neste aparelho de poder globalmente considerado,
reforça também a sua ascendência sobre o que de significativo possa restar do Estado (R).
Assiste-se cotidianamente, nos países industrializados, à maciça transferência para o Estado
(A) da propriedade de grandes empresas que, até então, haviam sido formalmente detidas pelo
Estado (R), especialmente no que se relaciona aos setores mais estratégicos. Nas fases iniciais
do capitalismo, a classe dos gestores encontrava-se fragmentada por campos vários e, no
interior de cada um, por instituições e unidades econômicas distintas, sem que os grupos
assim formados se relacionassem reciprocamente. Tratava-se de uma classe que não se
comportava, porém, como tal na prática das contradições sociais. De acordo com Bernardo,
foram os mecanismos da mais-valia relativa, acarretando a integração econômica, que
progressivamente uniram as múltiplas frações em instituições de classe comuns, de onde

342
BERNARDO, op. cit., 2009. p. 177.
343
Ibid. p. 218.
182

resultou um número reduzido de linhas de ação coletiva. Substituídos pelos gestores enquanto
representantes do capitalismo associado, os burgueses converteram-se em rentistas.

(7) Em relação à burguesia, ela pode tanto recorrer à mais-valia absoluta e ser
autoritária, prender trabalhadores, fechar os sindicatos para impedir o surgimento de quadros
políticos como pode recorrer a mecanismos participativos, ceder em parte às reivindicações
operárias para antecipar-se a elas mediante o aumento da exploração do trabalho pela mais-
valia. Destarte, modos distintos de exploração são assimilados/reprimidos/incorporados pelo
capital de modo também diferenciado, aumentando ou diminuindo a duração dos ciclos e do
próprio sistema capitalista.

A obra de Bernardo trata-se de ímpar descrição dos processos revolucionários ao


longo da história. A partir dos elementos articulados por Bernardo em cada ciclo, percebe-se
que a constituição da classe trabalhadora, como sujeito coletivo organizado num processo de
luta (sabotagens, resistências, boicotes, greves) se dá com a sua autogestão através de
estruturas horizontais e com novas relações que rompem com o verticalismo dominante nas
unidades produtivas capitalistas. A quase integralidade das lutas ocorreu em regimes
capitalistas que apresentaram fendas ou rachaduras. O que abre espaço para a discussão sobre
a validade política e econômica do Trabalho Associado na Vigência do Capital.

4.2 O TRABALHO ASSOCIADO NA VIGÊNCIA DO CAPITAL

As Organizações de Trabalho Associado (OTAs) são modalidades específicas de


associativismo surgidas no calor dos movimentos de resistência dos trabalhadores ao longo da
história, em várias partes do globo. No princípio, apareceram em forma de cooperativas, mas
com o passar dos tempos, e especialmente se pensadas de forma atrelada às lutas
autogestionárias, surgiram sob outras configurações que buscam, dentre outras coisas, alterar
as relações de produção a partir do interior das unidades produtivas. Na literatura mais atual,
trabalho associado aparece mais frequentemente como uma expressão equivalente a
cooperativas populares, empreendimentos solidários, empresas recuperadas, fábricas
ocupadas. E de fato, na vigência do capitalismo e em razão do marco jurídico existente no
país, a maioria das OTAs está sob o formato jurídico de cooperativa.

No período da memória curta, o trabalho associado reemergiu com grande força na


década de 1990 em praticamente toda a América Latina – seja no Brasil, Argentina, Bolívia,
Uruguai, Venezuela, Equador; para citar apenas alguns lugares. Seja pelo protagonismo dos
trabalhadores na luta pela sobrevivência ou mesmo pelo viés institucional, como política
183

pública ou privada; o trabalho associado está ainda inserido num sistema de cooperação com
o capital. Assim, o trabalho associado surge quando essa mesma cooperação com o capital é
empregada no intuito de forjar um sistema de “cooperação autônomo ou para si”344. E esse é
o sentido do Trabalho Associado considerado pela perspectiva da autogestão. Mas não pela
perspectiva da autogestão banalizada, como significante vazio; mas a autogestão como
categoria ancorada na luta de resistência e orientada para a emancipação humana.

De acordo com Dal Ri e Vieitez345 o trabalho associado configura-se quando um


coletivo detém posse ou a propriedade de uma unidade econômica passando a controlar a sua
gestão. Este possui algumas características que o diferencia das empresas capitalistas, como:
“supressão do trabalho assalariado; retiradas (salários) iguais ou equitativas; substituições das
hierarquias burocráticas por coordenações; deliberações em Assembleias gerais; nova
perspectiva educacional para os trabalhadores, entre outras”. Os mesmos autores ainda
empregam a expressão OTAs mais-democráticas para designar empreendimentos com
algumas características mais propensas ao engajamento em processos de mudança social. 346

Sob tal prisma, as OTAs são o gênero em que estão compreendidas algumas espécies
de cooperativas populares, empreendimentos econômicos solidários, empresas recuperadas,
fábricas ocupadas e outras definições. Todas essas designações podem conter elementos ou
tendências institucionais favoráveis a emancipação dos trabalhadores. No entanto tais
elementos não estão sempre presentes nos empreendimentos, que ainda apresentam rupturas e
continuidades em relação aos aspectos da exploração e da subordinação ao capital. Os
resultados do trabalho de campo bem apontaram neste sentido.

Para Tiriba e Fisher 347 as categorias produção associada e autogestão “podem ser
apreendidas e problematizadas se consideradas as condições objetivas/subjetivas em que, nos
diversos espaços/tempos históricos, as classes trabalhadoras tomam para si os meios de
produção”. E acrescentam que no embate contra a exploração e degradação do trabalho, não é
suficiente aos trabalhadores se apropriarem dos meios de produção.

344
VIEITEZ, Candido Giraldez; DAL RI, Neusa Maria. Trabalho associado e mudança social. In: DAL RI,
Neusa Maria (org.). Trabalho Associado, Economia Solidária e Mudança Social na América Latina. Associação
das Universidades Grupo Montevidéu. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília: Oficina Universitária;
Montevidéu : Editorial PROCOAS, 2010. p. 75.
345
DAL RI, Neusa Maria; VIEITEZ, Cândido, Giraldez. Movimentos Sociais, Trabalho Associado e Educação:
Reformas e Rupturas. In: NOVAES, Henrique Tahan; BATISTA, Eraldo Leme. (orgs.) Trabalho, Educação e
Reprodução Social – As contradições do capital no século XXI. Bauru, SP: Canal 6, 2011. p. 292.
346
VIEITEZ; DAL RI, op. cit, 2010.
347
TIRIBA; FISCHER, op. cit. 2012. p. 615.
184

Relevante destacar que, na perspectiva de Marx e Engels e do materialismo histórico,


a produção é concebida numa dimensão de totalidade dos processos de criação e recriação da
realidade humano-social mediados pelo trabalho, pelos quais o ser humano confere
humanidade às coisas da natureza e humaniza-se com as criações e representações que produz
sobre o mundo. Eles utilizaram os termos trabalho associado, produção coletiva, sociedades
cooperativas e associação cooperativa para definir uma célula no interior do modo de
produção fundada na negação do trabalho assalariado, na propriedade e gestão coletiva dos
meios de produção e na distribuição igualitária dos frutos do trabalho dentro do contexto da
sociedade capitalista.

Ao se conferir desproporcional atenção ao tema das decisões democráticas realizadas


dentro dos muros de cooperativas populares, associações de trabalhadores e fábricas
recuperadas em detrimento de uma crítica profunda dos mecanismos de mercado, acaba-se
por negligenciar o tema da alienação e da desalienação dos trabalhadores e a sua
potencialidade enquanto horizonte de transformação social. A plasticidade do termo
autogestão comporta designações analíticas que vão desde aquelas que incitam o controle das
empresas pelos trabalhadores competindo no mercado; as que defendem o socialismo de
mercado; até as que postulam a necessidade de se combinar ataques duplos, ou seja:
mudanças na divisão do trabalho nas fábricas e associações até o planejamento global da
produção e distribuição. Nesses termos Tiriba destaca que prefere

[...] não adjetivar um empreendimento de autogestionário. Talvez fosse um pouco


mais humilde de nossa parte dizer que nestes processos produtivos os trabalhadores
se inspiram nos princípios da autogestão para poder repensar a organização do
trabalho. Penso que chamar, de antemão, esses processos de autogestionários é
reduzir o significado da autogestão a um processo que é vivido apenas entre as
quatro paredes de um estabelecimento. Como vimos em outras mesas deste
seminário, a autogestão diz respeito aos processos mais amplos da vida [...] A
produção associada como uma forma de organização dos trabalhadores [...] não diz
respeito a vinte trabalhadores que olham para sim mesmos, para seu próprio umbigo,
mas têm a sociedade dos produtores livres como horizonte348.

Não surpreende que a retomada do trabalho associado enquanto prática popular tenha
revigorado o debate histórico acerca dos seus limites e potencialidades, tanto no campo
acadêmico como na esfera política.

348
TIRIBA, Lia. Trabalho, educação e autogestão: desafios frente à crise do emprego. 2002. Disponível em:
<http://www.fafich.ufmg.br/nesth/IIIseminario/texto4.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2013.
185

Nestes termos, os clássicos debates entre o socialismo utópico e científico 349 e sobre a
natureza degenerativa das cooperativas 350 vêm incorporando novos elementos, como o
aspecto da consciência dos trabalhadores das OTAs e a crítica da alienação como
possibilidade de questionamento das (des)continuidades da perda do controle do produto do
trabalho numa sociedade regida pelo capital, mesmo em associações de trabalhadores, onde
aparentemente a questão da transferência da propriedade dos meios de produção já se
encontra realizada. Veja-se agora alguns componentes do debate.

4.2.1 Autogestão interna – a questão do poder

Sob a lógica do capital os trabalhadores se organizam coletivamente em unidades


produtivas com objetivo, segundo a tipologia mais usual de: (a) produzir bens; (b) ofertar
serviços aos próprios associados; (c) ofertar serviços para consumidores externos. Tal
organização ainda está ainda inserida num sistema de cooperação com o capital, mas agora
uma cooperação supostamente autônoma ou para si.

Como descrito no capítulo II, este sistema de cooperação influencia praticamente


todos os determinantes da organização, em especial a questão do poder, fator sobre o qual as
rupturas e continuidades tendem a se manifestar de forma mais aberta.

A partir dos distintos percursos das quatro OTAs contatou-se como a experimentação
do ato de ocupar e resistir pode alimentar um devir coletivo que não fica marcado somente no
corpo dos trabalhadores, mas na própria organização. Provavelmente, aqui reside uma grande
diferença entre as OTAs pesquisadas: a luta e a mobilização dos trabalhadores para assegurar
o controle e a posse do empreendimento.

349
A organização das unidades produtivas segundo princípios não-capitalistas – que, portanto, negam ou
sinalizam a necessidade de superação da alienação do trabalhado e a extração da mais-valia – remete a um
debate clássico entre o socialismo utópico e o socialismo científico. Esse debate acompanha o contexto da 1ª
Revolução Industrial e, consequentemente, o surgimento do proletariado. Os socialistas utópicos foram muito
importantes num determinado momento histórico do movimento operário e tiveram grande influência na
formação do cooperativismo moderno. Mas do ponto de vista dos socialistas utópicos como Fourier, Owen e
Proudhon, a organização dos trabalhadores em cooperativas ou em sociedades comunitárias, como reação às
duras condições do trabalho industrial, seria suficiente para a constituição gradativa de uma autêntica sociedade
socialista. Já para o socialismo científico, todos os esforços organizativos deveriam ser dirigidos à superação
revolucionária do sistema: superação da sociedade de classes, superação do Estado capitalista e do trabalho
alienado. Embora reconhecesse o valor educativo da cooperativa, para muitas correntes marxistas, tal
organização era considerada um modelo adequado para o momento histórico posterior. Outra crítica feita ao
socialismo utópico é que divulgava e incentivava um tipo de cooperativismo paternalista e sem luta de classes.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2011
350
No início do século XX, Rosa Luxemburgo publica a obra Reforma ou Revolução? A obra recoloca o debate
sobre o cooperativismo quando o capitalismo já havia se tornado o modelo hegemônico. Em discordância com
Bernstein, a autora assinala o caráter degenerativo das cooperativas por terem de adaptar seu sistema de
produção às trocas capitalistas. Aponta, assim, a contradição entre a lógica de funcionamento interna e o
imperativo externo. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 1999.
186

Em geral, as OTAs costumam apresentar vínculos anteriores com algum movimento,


sindicato ou partido político. Noutros casos não há qualquer vinculação, o que torna o esforço
inicial de mobilização ainda mais significativo. Mesmo considerando o envolvimento de
apenas parcela dos trabalhadores na mobilização inicial, este já é um indicador importante na
configuração das relações futuras. No entanto, a influência de um momento inaugural
mobilizador tende a perder fôlego com o tempo, caso tal influência não se desdobre em ações
e resultados que reforcem para o trabalhador o valor da cooperação, o que pode acarretar um
retorno à serialidade, conforme discutido no capítulo III. Os componentes formativos e
recreativos são muito importantes neste sentido.

Diferentemente do trabalhador assalariado que pode ser demitido a qualquer momento,


o trabalhador de uma OTA, uma vez admitido como associado, integra-se ao coletivo e só
pode ser excluído de acordo com as definições dos acordos coletivos. Portanto, os critérios
para a admissão e demissão de associados são reveladores da abertura da OTA. No caso das
OTAs pesquisadas, todas se apresentaram como relativamente abertas à adesão. É mediante
um ato de vontade política societária que os trabalhadores decidem constituir uma associação
para organizar o seu próprio trabalho, estabelecendo as normas e procedimentos que definem
parte significativa das relações sociais do empreendimento.

Talvez o maior desafio no interior de uma OTA seja o de lidar com as heranças ou
continuidades da antiga forma. O primeiro desafio é de converter a eficiência formada pela
cooperação para si para fins que não sejam o da acumulação e da competição interna entre os
associados. Se a própria gestão empresarial busca hoje formas para envolver, de forma
contraditória é verdade, os trabalhadores com os destinos da empresa, pois a cooperação é de
fato um elemento redutor de cursos, ou melhor, de agregação de valor; não estranharia se a
continuidade da lógica empresarial, cooperar mas competindo, fosse reproduzida no interior
de uma OTA. Por isso a necessidade de capturar o sentido dessa cooperação para os
trabalhadores.

Outra continuidade manifesta-se na questão da propriedade, muito em razão da


incongruência, dos formatos jurídicos disponíveis para enquadrar uma OTA no contexto
nacional. A legislação cooperativa foi criada para tutelar outro tipo de práticas sociais e
econômicas desenvolvidas na agricultura, à época do último regime militar 1964-1985. Os
formatos que aparecem são a propriedade cooperativa ou a propriedade privada externa,
quando os trabalhadores não são proprietários, mas gerem a OTA. Mas essa não é a única
questão, a herança do capital também ronda este componente. A questão da vontade de
187

propriedade privada, ou do sentir-se dono está muito presente no comportamento dos


trabalhadores. Alguns trabalhadores da OTA 3 e 4 manifestaram a preocupação com o sentir-
se dono, especialmente quando foram questionados sobre as vantagens do trabalho
associativo. Nas duas OTAs que não têm a propriedade e não têm pretensão de tê-la (OTA 1 e
2) não houve qualquer manifestação de preocupação nesse sentido 351. As manifestações foram
mais no sentido da posse como mediação para exercer o direito ao trabalho, de poder
continuar trabalhando e permanecendo no local.

Em termos conceituais, um modelo que vem sendo discutido mais recentemente é o da


propriedade social ou comunal. A Iugoslávia de Tito forjou o conceito, quando os setores
autogestionários eram de propriedade social. Há quem defenda que a forma de propriedade
mais promissora para ao trabalho associado sob o capital seja a propriedade estatal. No
entanto, o trabalho associado apenas pode preservar e potencializar seus avanços se o
empreendimento for controle dos trabalhadores – é a estatização sob controle operário. Esse
modelo ocorreu na Revolução Russa, porém, em algumas fábricas e durante curto período.
Logo foi sucedido pelo comando burocrático do partido.

A estatização sob controle dos trabalhadores também foi experimentada na Venezuela.


Mas o sistema venezuelano na prática está mais inclinado à uma co-gestão Estado x
Conselhos de Fábrica, com níveis de poder operário que variam entre as experiências. Talvez
não se trate somente de uma questão jurídica, mas política, pois não basta existir a
possibilidade de controle operário se inexiste base política para tanto.

O debate sobre a propriedade é histórico e ainda provoca imensa polêmica. Talvez um


importante passo a ser dado devesse ser no sentido de problematizar a legitimação da posse,
em vez de insistir na propriedade. Contudo, a fragilidade dos instrumentos jurídicos de
proteção da posse dificultam o debate, em termos políticos.

A negação do trabalho assalariado e a distribuição ou retirada do excedente


econômico são características fundamentais das OTAs. De acordo com Vieitez e Dal Ri,
“uma das características mais importantes das OTAs mais-democráticas é a rejeição prático-
ideológica do trabalho assalariado, seja em sua forma típica, seja sob forma disfarçada ou
indireta. O trabalho assalariado apenas é admitido em caráter supletivo ou emergencial”352.
No entanto, negar o trabalho assalariado não implica a negação de direitos. Por óbvio que faz-

351
Muito em função da bandeira da estatização sob controle dos trabalhadores na OTA 1 e do anarquismo da
OTA 2.
352
VIEITEZ; DAL RI, op. cit, 2010, p.73.
188

se referência às cooperativas constituídas como verdadeiros empreendimentos patronais e que


operam a precarização do trabalho e a negação dos direitos sociais e previdenciários. Por certo
que a inexistência de uma legislação que garanta a integralidade dos direitos sociais aos
cooperativados, não por acaso, dificulta um debate mais aprofundado sobre o tema. Inobstante
a forma jurídica de cada país, a possibilidade de enquadrar um segmento de trabalhadores
assalariados ou com outros tipos de vínculo no interior da OTA, pode provocar assimetrias no
conjunto da OTA.

A retirada ou distribuição do excedente econômico pode ser dividida em partes iguais,


após o pagamento de todos os fatores de produção. Existe referência à equidade de
remuneração, no entanto, pode haver diferença entre o piso e o teto, que costuma ser de até
três vezes. Um estudo realizado por Henriques et al.353 sobre as empresas recuperadas no
Brasil apontou que 49 empresas (96% entre aquelas que responderam à entrevista) relataram
ter retiradas diferenciadas entre os trabalhadores. A principal justificativa dada pelos
entrevistados para a desigualdade de remuneração é a diferenciação por função própria do
sistema. A justificativa é dada em função dos diferentes níveis de responsabilidade, ou níveis
de qualificação, ou simplesmente por que o trabalho é distinto nas diferentes funções.
Segundo a pesquisa, a média da diferença entre o valor mínimo e o máximo no Brasil é de
4,76 (máximo/mínimo). De fato, o estabelecimento de retiradas aritmeticamente iguais é
muito difícil sob o domínio da lei do valor de mercado. Mas, em geral, os desníveis existentes
nas OTAs decorrem mais de montantes diferenciais de trabalho prestado, e das necessidades
dos associados, do que propriamente de critérios decorrentes. Em muitas cooperativas de
produção do Sistema Cooperativo de Assentamentos (SCA) do MST o total de horas
trabalhadas para além da jornada obrigatória resulta em certo diferencial de rendimentos e na
maioria dos casos a tarefa de mobilização política em outros assentamentos ou atividades do
movimento também são computadas como hora trabalhada. Em outras OTAs as diferentes
necessidades dos trabalhadores podem gerar diferentes rendimentos, como é o caso da
ZANON na Argentina. Por lá os mais antigos na empresa recebem um pouco a mais, assim
como os associados que têm famílias mais numerosas. A retribuição equitativa é mais viável
nas OTAs mais simples, com composição profissional mais homogênea. A escola capitalista
que prepara a força de trabalho realiza também uma indexação profissional baseada no mérito
- profissões que demandam curso superior são melhor remuneradas que as que demandam

353
HENRIQUES et al., op. cit.
189

apenas o ensino fundamental. Nas OTAs a distribuição pode ser um dos temas em torno do
qual se reapresentam os conflitos de classe típicos da sociedade capitalista. Assim,

A estrutura de classes, a composição do sistema de status social, o dinheiro, a


estrutura de consumo vigente e o sistema escolar, propiciam uma tendência poderosa
à promoção da desigualdade, e o florescimento desta não é outra coisa do que a
corrosão da democracia na OTA. Portanto, a questão da pressão social que clama
por desigualdade nunca está realmente resolvida nas OTAs sob o regime burguês, o
que demanda uma luta difícil e recorrente contra ela354.

Daí a importância da existência de debates transparentes acerca das razões que


justificam tais diferenças, no interior dos empreendimentos.

Em relação ao exercício do poder (gestão financeira e política), é possível afirmar


que a maior continuidade para com a antiga forma de trabalho se dá em razão da tensão entre
o sentimento de poder participar e a pesada herança dos tempos de trabalho heterogestionário,
que redunda num comportamento ambivalente do trabalhador, que muitas vezes não está
habituado ao binômio disciplina x liberdade. No entanto, é possível dizer que o núcleo central
e formal do poder costuma ser a assembleia geral, inclusive por imposição legal, no caso das
cooperativas. Importa saber que outros instrumentos vão sendo construídos de forma
temporária ou permanentes para além dos órgãos exigidos pelo estatuto ou regimento da OTA
- conselhos, assembleias, espaços e encontros preparatórios para reuniões dinamizam e
potencializam esse exercício, inclusive em seu sentido pedagógico. Via de regra, a maior
parte das decisões das OTAs é tomada na Assembleia Geral e, alguns órgãos intermediários se
encarregam da discussão prévia e da tomada de decisões setoriais.

Trocas constantes de experiências e informações entre os trabalhadores geralmente


propiciam que estes compreendam e até aprendam a tarefa dos colegas e possam incidir na
definição das tarefas e da divisão do trabalho, com capacidade de modificá-las. Um
complemento de fundamental importância para o exercício do poder é a existência e
regularidade de múltiplos canais de comunicação para a circulação interna e externa de
informação tanto sobre a gestão da OTA como sobre a realidade social na qual ela se insere -
boletins, panfletos, jornal, mural, revista, blogs em redes sociais, programas de rádio etc. São
os canais de comunicação, que dão vida à OTA, tanto na esfera da gestão como na
mobilização política dos associados.

A existência de eleição dos representantes e da diretoria/coordenação mediante


processo democrático com eleição direta e universal e a possibilidade de revogação imediata
354
VIEITEZ; DAL RI, op. cit, 2010, p.81.
190

de mandato está presente em algumas OTAs que ainda observam a paridade de gênero e a
alternância de mandatos. A oferta de atividades internas e a participação de atividades
externas de formação técnica e/ou gestão associada e a eventual participação dos
trabalhadores na organização destas encerram por assim dizer os elementos mínimos para a
autogestão interna de uma OTA com elementos aptos para a promoção de um tiop de
consciência do tipo autonomista/autogestionária, ou em si.

4.3 A AUTOGESTÃO SOCIETAL AMPLIADA E OS ATAQUES DUPLOS – A


DIALÉTICA DA RESISTÊNCIA DA PRODUÇÃO À CONTESTAÇÃO DO CAPITAL

A partir dos apontamentos realizados sobre os processos autogestionários que


ratificam a autogestão como estratégia-movimento ideal/teoria social, desnecessário seria
falar no caráter ampliado desta, pois que deveria ser um componente indissociável. Desta. A
autogestão não pode desenvolver-se de forma atomizada, a não ser como embrião, como
projeto. Mas considerando o esvaziamento da expressão, torna-se necessário reafirmar a sua
possibilidade como crítica concreta ao sociometabolismo do capital, em todas as suas
dimensões. Assim, os indicadores do bloco autogestão societal ampliada foram construídos
com base em alguns aportes teóricos que serão desenvolvidos a partir de agora.

A primeira pista para a discussão foi encontrada numa passagem da obra de Mészáros
quando o autor, imbuído da tarefa de uma teoria da transição, propõe-se a responder o
complexo questionamento: “como solapar o processo produtivo capitalista constantemente
renovado pela homogeneização orientada para a quantidade e o valor de troca e substituí-lo
pelo processo qualitativo orientado para a necessidade e o valor de uso?” 355 Parte da resposta
foi:

[...] não há possibilidade de reforma que leve a transformações estruturais do modo


de produção capitalista; isso também explica por que todas as tentativas desse tipo,
nos seus quase cem anos de história – do Socialismo Evolucionário de Bernstein às
suas imitações do pós-guerra –, fracassaram em abrir qualquer fenda na ordem
estabelecida. Falharam apesar de todas as promessas acerca da reconstrução
gradual, apesar de completa, da ordem estabelecida no espírito do socialismo. A
possibilidade de uma modificação sustentável inclusive das menores partes do
sistema do capital implica a necessidade de ataques duplos, constantemente
renovados, tanto às células constitutivas ou microcosmos (isto é, o modo pelo qual
as jornadas de trabalho singulares são organizadas dentro das empresas produtivas
particulares) como aos macrocosmos autorregulantes e aos limites estruturais
autorrenovantes do capital em sua inteireza356 (grifo nosso).

355
MÉSZÁROS, op. cit., 2011. p.629.
356
MÉSZÁROS, op. cit., 2011. p.630
191

Nesse parágrafo o autor faz menção à importância da dialética entre as parte e o todo,
mas seu contexto de fundo é a crítica que Rosa Luxemburgo 357 faz a Bernstein, endossada por
Mészáros. Para Luxemburgo o problema das cooperativas não está na falta de disciplina dos
trabalhadores, como afirmado por Bernstein. A principal contradição das cooperativas é que
elas têm que governar a si mesmas jogadas no sistema do capital. Neste sistema os
trabalhadores são obrigados a assumir o papel de donos contra si próprios – uma contradição
que responde pelas dificuldades e pelo fracasso das cooperativas de produção, que ou
degeneram ou tornam-se puras empresas capitalistas. E Rosa também demonstrou ser adepta
da ideia dos ataques duplos.

Mais adiante Mészáros se justifica anotando que sua crítica ao gradualismo (localizada
no mesmo parágrafo) não pode ser confundida com uma crítica às mediações materiais e
institucionais necessárias para a estratégia revolucionária, e afirma que “o que decide a
questão é o modo pelo qual os passos parciais são integrados numa estratégia coerente global,
cujo alvo não é apenas a melhoria do padrão de vida dos trabalhadores (que são estritamente
conjunturais e, em todo caso, reversíveis), mas a reestruturação radical da divisão de trabalho
estabelecida”358. Assim, Mészáros sugere que mediações tópicas, desde que pensadas como
passos táticos na sua relação com o todo estratégico que vise à emancipação integral, podem e
precisam ser implantadas.

Em outra passagem quando Mészáros discute as continuidades da divisão social e


hierárquica do trabalho na burocracia pós-revolucionária, o autor faz uma critica a uma
anotação de Lukács em História e consciência de classe, que atribui o impacto negativo da
divisão social do trabalho à racionalização, abstração e à especialização capitalistas quando
diz que: “a especialização das qualificações leva à destruição de toda e qualquer imagem da
totalidade”359. Para Mészáros a passagem trata-se de uma mistura infeliz de elementos
desiguais que revela a permanência da influência weberiana em Lukács, pois:

[...] um grau muito alto de especialização é perfeitamente compatível com uma


imagem adequada do todo, desde que o praticante das habilidades em questão não
seja violentamente separado do poder de tomada de decisão, sem o qual é
inconcebível a participação significativa dos indivíduos sociais na constituição da
totalidade. O que transforma o trabalho vivo em trabalho abstrato, sob o
capitalismo, não é possível a especialização em si, mas a rigidez e o

357
LUXEMBURGO, op. cit.
358
MÉSZÁROS, op. cit., 2011. p.630
359
LUKÁCS, op. cit. 1989 apud MÉSZÁROS op cit, 2011. p.861-861
192

desumanizante confinamento das funções dos especialistas em tarefas de execução


inquestionáveis.360

Assim, sem negligenciar que o objetivo da emancipação socialista é a radical


transcendência da divisão social hierárquica do trabalho, Mészáros enfatiza o peso da
separação entre concepção e a execução, entre capital e o trabalho não superado nos regimes
pós-capitalistas, pois a divisão social do trabalho não é abolida por decreto. O que permite
inferir que a autogestão ampliada além de ser uma estratégia é possibilidade tática, pois além
de almejar uma sociedade autogovernada, os efeitos colaterais desse processo podem
paulatinamente melhorando as condições de inserção dos trabalhadores na luta de classes, a
partir do seu local de trabalho.

Mészáros aponta ainda que “a radical eliminação do capital pelos indivíduos


autoemancipados de sua presente dominação do metabolismo social é o exato conteúdo do
projeto socialista”361, e complementa que:

[...] o programa marxiano de transferência do controle do metabolismo social para


os produtores associados não perdeu nada de sua validade desde a época de sua
formulação. Ao contrário, surgiu de novo, mais forte que nunca, na agenda histórica
de nossos dias, visto que somente os produtores associados podem elaborar, por si
próprios, as modalidades práticas com as quais pode ser resolvida a dupla crise, hoje
onipresente, de autoridade e do desenvolvimento.362

Em suma, o argumento fundamental do autor é o controle “global do processo de


trabalho pelos produtores associados”, e não simplesmente a questão de como subverter os
direitos de propriedade estabelecidos; “precisamente por isso é que devemos constantemente
ter em mente que a expropriação dos expropriadores é apenas o pré-requisito necessário para
as mudanças necessárias”.363

A expressão pós-capitalismo é frequentemente utilizada pelo autor em referência à


experiência soviética que extinguiu a propriedade privada dos meios de produção, mas deu
origem ao planejamento burocrático na determinação de mercadorias. A caracterização
marxiana da troca comunal pressupõe seu envolvimento não com “uma troca de valores de
troca, mas de atividades determinadas pelas necessidades e pelos propósitos comunais,
apontando para uma reorientação fundamental do processo de reprodução social estabelecido

360
MÉSZÁROS op. cit., 2011. p.861-862.
361
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004, p.538.
362
Ibid. p.516
363
MÉSZÁROS op. cit., 2011. p.828.
193

há muito tempo”364. Ao mesmo tempo sinaliza para a emancipação progressiva dos indivíduos
sociais dos constrangimentos estruturalmente impostos da divisão do trabalho e de sua lei do
valor quantitativamente autoimposta, sem que isso possa ser considerado gradualismo. A
necessidade e a dificuldade histórica da reorientação radical da relação de troca é algo
imperioso para o empreendimento emancipatório na futura sociedade comunal:

[...] a urgência da reestruturação comunal das práticas produtivas estabelecidas


emerge de uma circunstância séria, sem a qual o empreendimento socialista não
pode sequer começar a realizar seus objetivos fundamentais. Tal circunstância exige
que se realize, ao mesmo tempo e com sucesso, a conversão da troca de produtos,
burocraticamente comandada de cima, em troca de atividades produtivas
genuinamente planejadas e autoadministradas. Isso significa que é preciso mudar
completamente a forma de reprodução social orientada para, e estritamente
subordinada a realização de objetivos materiais preestabelecidos, tal como praticada
por séculos e profundamente enraizadas nas estruturas produtivas e nos complexos
instrumentais que a sociedade pós-capitalista herdou do passado.365

Assim, fica evidente a preocupação de Mészáros em romper o círculo vicioso de auto-


reprodução do capital, constantemente renovado pela homogeneização orientada para a
quantidade e o valor de troca. Parte da resposta apontada pelo autor é justamente o controle
global da produção pelos produtores livremente associados.

No entanto, para além da questão teórico-analítica, qual a validade dos ataques duplos
em termos políticos?

Uma das prováveis respostas para a questão pode ser encontrada ao final de Para além
do capital, quando o autor discute os contornos de uma Política radical e transição para o
socialismo. É quando o autor afirma que dentro da ordem do capital não há medida
econômica que resolva os dilemas da crise, portanto a “tarefa de reestruturar a economia
torna-se primariamente político-social e não econômica”. Diante disso, apesar das
manifestações imediatas da crise estrutural serem econômicas – inflação, desemprego, guerra
comercial, colapso de sistemas financeiros –, só existe um caminho para a ofensiva socialista:

O único caminho, entretanto, no qual o momento histórico da política radical pode


ser prolongado e estendido - sem, eis o ponto, recorrer a soluções ditatoriais, contra
as intenções originais - é fundir o poder da tomada de decisão política com a base
social da qual ele foi alienado durante muito tempo, criando por este meio, um novo
modo de ação política e uma nova estrutura – determinada genuinamente pela massa
como sua necessária precondição.366

364
MÉSZÁROS op. cit., 2011. p.883-884.
365
Ibid. p.884.
366
MÉSZÁROS, op. cit., 2011. p. 1078.
194

Para o marxismo autogestionário, o cooperativismo questiona apenas parcialmente a


propriedade dos meios de produção, pois na ausência de uma revolução que questione a
propriedade dos meios de produção como um todo, a propriedade cooperativista não passa de
uma célula marginal neste organismo dominado por grandes corporações.

No entanto é possível entender, a partir de Mészáros, que as OTAs podem ser


experiências práticas de auto-organização dos trabalhadores desde que com mediações que a
permitam incidir de maneira favorável numa correlação de forças que provoque
transformações sociais. No entanto, se estas permanecerem isoladas de outras OTAs e de
outras formas de luta social, elas tendem a ingressar na lógica corporativa ou a desaparecer.

Assim, os ataques duplos são as mediações dialéticas que permitem este salto de
qualidade em relação à totalidade social. Da resistência no interior da unidade produtiva à
contestação social ampliada.

Assim, a segunda pista encontrada foi encontrada por Cláudio Nascimento, que a
partir do marxismo autogestionário, faz um minucioso exame de boa parte das grandes lutas
autônomas e autogestionárias que se tem registro público. Nascimento define o Princípio de
Poder Popular-Comunal367 como sendo o conteúdo que pode se manifestar sob a forma de
conselhos operários, camponeses, de bairro; ou como práxis revolucionária de muitos sujeitos
históricos: como operários e camponeses, homens e mulheres, jovens e adultos, estudantes,
soldados, índios e quilombolas. As diversas tentativas dos trabalhadores de Assalto ao Céu
significam ensaios de construção dos órgãos de poder popular-comunal; que é Potência que
traz em si a Utopia Concreta, o Inédito Viável e o ainda-não-ser.368

Na sua trajetória de militância política e de educador popular Nascimento pode valer-


se do exílio na França para avaliar os meandros de uma série de eventos da memória curta e
da memória longa da autogestão. Sua longa e densa análise histórica vai desde o movimento
sem-terra dos Diggers na Inglaterra entre 1649-50; passando pela Comuna de Paris em 1871
(a forma enfim encontrada, segundo Marx369); pelo Soviet de Petrogrado, em 1905, e pela
Revolução de outubro de 1917; pela Unidade Popular e os cordões industriais do Chile de
Allende da década de 1970; por diversas revoltas, rebeliões e revoluções ocorridas na região

367
NASCIMENTO, op. cit. Disponível em https://cirandas.net/recapes/biblioteca/cartilha-autogestao.pdf. Acesso
em: 2 mar.2013.
368
NASCIMENTO, Cláudio; PALUDO, Conceição. Rede de Educação Cidadã - O Poder Popular: a “Forma
Comunidade”. Disponível em: <http://claudioautogestao.com.br/wp-content/uploads/2014/04/O-Poder-Popular-
ultima-vers%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 2 mar. 2013.
369
A “Forma política enfim descoberta para levar adiante dentro de si a emancipação econômica do trabalho”
MARX, Karl. La Guerra civil em Francia. Moscou: Editorial Progresso, 1977, p. 67.
195

das sociedades pós-capitalistas do Leste Europeu, especialmente quando na Polônia surgiu a


rede autogestionária que controlava 3000 empresas e que fundou A Republica Autogestionária
da Polônia; chegando ao continente latino-americano, quando em 1994 o Exército Zapatista
de Libertação Nacional retomando os ideais do Zapatismo da Revolução Mexicana de 1910-
11, instalou um território indígena autônomo na região de Chiapas.

O longo percorrido histórico de Nascimento lhe permite apontar que as grandes ondas,
os Tsunamis da História370 - rebeliões, revoltas e revoluções - não chegam de surpresa, o
poder popular é, e sempre será fruto de processos de longa duração. A velha toupeira se
move no meio dos setores populares, entre os mais oprimidos da sociedade, para construir
alternativas; sua práxis é germinal e prefigurativa.

Nascimento mobiliza diversos autores que vão desde os clássicos marxistas aos
desconhecidos, para ressignificar a questão do poder popular-comunal a partir das
experiências das últimas décadas, inclusive no continente latino-americano. De modo mais
especifico, pensar o Poder Popular desde a práxis das organizações populares. O autor
questiona as visões estratégicas centradas unicamente na questão da tomada do poder do
Estado. Apesar de ser um Estado de classe, não pode ser tido como um simples objeto ou
instrumento-máquina, manipulado pela burguesia como uma máquina monolítica sem
fissuras, sem contradições. O Estado é uma síntese de conflitos sociais e para o autor, uma
concepção estratégica e ressignificada do Poder Popular-Comunal precisa percebê-lo a partir
de 3 pontos centrais: (a) o Estado do Capital é um Estado de classe, portanto, sua lógica é a de
garantir a produção e reprodução das relações capitalistas de produção; (b) o Estado é
também um aparato administrativo, burocrático, político e legal. Essa superestrutura tem por
base um conjunto de relações de força entre as classes fundamentais, seus aliados e seus
representantes políticos; em um determinado momento pode formar-se um bloco histórico
e esse processo de reprodução do capital requer um aparato de força militar e policial; (c) no
campo das representações simbólicas, da ideologia, o Estado aparece como um cenário
neutro, que oculta sua essência classista.371

A partir desta chave de leitura, Nascimento ressignifica o Poder Popular clássico,


redefinindo-o como “processo através do qual os locais de vida (trabalho, estudo, lazer,
moradia etc.) das classes populares se transformem em órgãos coletivos constituintes de um

370
NASCIMENTO; PALUDO, op. cit.
371
NASCIMENTO, Cláudio. Sobre o Poder Popular. Material Impresso. [199?].
196

poder social alternativo e emancipatório, que permita avançar na construção e consolidação de


um campo contra-hegemônico”.372

A ideia de Poder Popular-Comunal trata-se, portanto, de uma construção territorial de


espaços de antecipação e prefiguração de outra ordem social, política e econômica que pode
ou não conseguir impor-se frente à lógica do Capital. Pois, não é só nas grandes batalhas que
este se constrói; ele é forjado nas relações que se dão no micro, no meso e no macro; é uma
construção ao mesmo tempo subjetiva-objetiva-subjetiva, que se expressa nas relações do dia
a dia. Tal construção não prescinde da participação de partidos políticos e sindicatos. Estes
são mais essenciais que nunca, mas precisam retomar suas raízes históricas de organização de
base, atuando como caixa de ressonância do poder popular.

Para Nascimento, o poder popular precisa estar engravidado do elemento cultural e


ético; supõe um processo de educação, formação de base, oficinas, cirandas, encontros,
linguagens diversas e também uma mística que alimente esta construção. Não se trata de
tomar o poder, somente por cima, mas de transformá-lo as relações sociais, por baixo e desde
baixo para cima.

O poder não está concentrado em determinado espaço da sociedade, mas se dissemina


de forma desigual, mas combinada no conjunto da formação social. Noutra passagem, e que
mais interessa à tese da autogestão societal ampliada, Nascimento define alguns espaços
concretos de poder popular que devem ser priorizados373:

(1) Autogestão do processo de trabalho-produção: É a partir da vida cotidiana e dos


locais de trabalho e de moradia que deve começar a desarticulação e a ruptura com os
mecanismos de exploração e dominação. Esta superação implica a planificação
coletiva da produção e a supressão da divisão econômico-social entre dirigentes e
dirigidos. Os trabalhadores convertem-se em produtores ativos e conscientes,
livremente associados;
(2) Auto-organização política: a autogestão da atividade produtiva é apenas um
aspecto do projeto político. Esta necessita abranger o conjunto da sociedade e sua
organização; questionar radicalmente a dominação política e o poder do Estado
enquanto superestrutura alienante. A lógica do lucro deve ser abolida no conjunto da
sociedade: fábricas, escolas, bairros, família, sindicatos, partidos, igrejas, etc. Trata-se
de, sobre a base da realidade popular, respeitada em sua heterogeneidade, ir

372
Ibid.
373
Ibid.
197

construindo um novo metabolismo social e forjando uma vontade coletiva nacional-


popular em que diversos coletivos sociais possam convergir e reconhecer-se dentro de
um mesmo projeto comum;
(c) Autocriação cultural: As transformações econômicas, e mesmo as modificações
sociopolíticas, não são suficientes para definir o projeto de transformação social numa
linha de emancipação socialista. Para esta ser radical e integral deve questionar,
criticar e transformar o núcleo primário dos valores e significados que habitam o mais
profundo dos costumes, hábitos e modos de viver e pensar incutidos na e pela
sociedade capitalista. O socialismo deve apontar a socialização não apenas do ter e do
poder, mas, igualmente, a socialização do criar, no sentido de criar condições objetivas
que tornem possível para que todos tenham a realização integral e múltipla das
potencialidades criadoras do ser humano. Criar a possibilidade de uma vida feliz, que
só pode ser alcançada mediante uma liberdade criadora e lúdica e um re-encantamento
da vida.

Os três espaços citados por Nascimento recolocam a importância das mediações


dialéticas entre as partes e o todo como elemento privilegiado, destacando mais uma vez o
papel da Produção Associada no complexo de mediações subjetivas e objetivas necessárias
para a autogestão ampliada da vida. No plano de fundo, está colocada a complexa relação
entre as forças produtivas, as relações de produção e a necessidade global de planejamento da
produção no contexto de uma necessária transição para a sociedade pós-capital apontada por
Mészáros.

Mas, sendo assim, quais os passos concretos para viabilizar a confluência destes três
espaços? Como construir as mediações tão discutidas por Nascimento e Mészáros?

Dessa forma surge uma terceira pista na proposta de autogestão de caráter societal
baseada na organicidade socioprodutiva desenvolvida pela VIA-SOT – Sistema Orgânico do
Trabalho374. A VIA-SOT desenvolve um projeto de sistema societal pós-capital e pró-
trabalho associado que abrange três novas mediações ou conceitos estruturantes de
reversão/anulação dos fundamentos do capital – “propriedade orgânica, renda sistêmica e
autogestão societal”375. De acordo com os seus idealizadores, para o controle global da
produção é preciso substituir as três mediações do capital em mediações propícias para o

374
BENINI, Édi Augusto. Sistema orgânico do trabalho: arquitetura crítica e possibilidades. São Paulo: Ícone,
2012; BENINI, Édi Augusto; SABINO, Adalberto; GOMES, Ana Lúcia Sales. Organicidade socioprodutiva:
metodologia construtiva de uma autogestão de caráter societal. Revista MovimentAção v.2, n.2, p.1-20, 2015.
375
BENINI, 2012, op. cit. p.60.
198

desenvolvimento da autogestão, a saber: do intercâmbio mercantil para a renda sistêmica, da


propriedade privada para uma forma propriedade social e orgânica e da divisão hierárquica do
trabalho para a autogestão de caráter societário 376. A perspectiva de integração socioprodutiva
avançaria para uma realidade não mais de tentativa de autogestão como forma de
gerenciamento pontual da unidade produtiva, mas sim enquanto autogestão societal -
enriquecida com conteúdos de auto-organização e ampliada com elementos crescentes de
produção econômica e reprodução social, por parte dos trabalhadores que vierem a se associar
e se integrar nesse espaço emancipatório.

Para tanto, é desenvolvida uma ferramenta de organicidade socioprodutiva baseada em


três metodologias integradas, cada uma delas com mediações específicas e elementos
institucionais que dialogam sobremaneira com os três espaços de Poder Popular-Comunal
apontados por Nascimento. As três metodologias que compõem a totalidade do sistema
podem ser assim resumidas: (1) Metodologia de Organicidade; (2) Metodologia de
Recuperação de Forças Produtivas; (3) Metodologia de Formação e Integração
Sociocultural.377
A proposta, que embasou a construção dos indicadores do bloco autogestão societal
ampliada, é construída a partir de elementos constitutivos de várias experiências autônomas e
autogestionárias. Além da crítica a respeito da subsunção formal e material das
experimentações autogestionárias isoladas frente ao intercâmbio mercantil, a proposta tem
uma preocupação com o lugar dos sujeitos coletivos no processo. Até porque um sistema
como esse não se sustenta sem uma base social capilarizada.

Nesses termos, a luta pelo trabalho associado necessita metabolizar os acúmulos, em


termos de lutas, experiências, inovações, conhecimentos, tecnologias sociais; para dar um

376
Ibid.
377
(1) A Metodologia de Organicidade diz respeito à formação e sustentação de uma nova dinâmica de
intercâmbio sistêmico e social, no qual se recupere a integralidade, logo o controle societal sobre as dimensões
da produção, distribuição, consumo e investimento. A mediação econômico-produtiva é a renda sistêmica dos
trabalhadores. O Elemento de sustentação jurídico-institucional é a Associação Integral de Produção e
Socialização; (2) A Metodologia de Recuperação de Forças Produtivas consiste na integração e aglutinação de
diversos tipos de projetos dentro de uma única estrutura socioprodutiva com a criação de um mecanismo
múltiplo de cota-entrada, com um valor de referência socialmente determinado, e tendo como parâmetro
principal a capacidade reprodutiva interna de absorção de novos associados. A mediação socioprodutiva é o
intercâmbio inter-sistêmico de transição e inclusão de trabalhadores e recursos. O elemento institucional é uma
cooperativa mista de crédito, compras e vendas; (3) A Metodologia de Formação e Integração Sociocultural é o
elemento de sustentação social, cultural e político de todo o processo construtivo de um sistema orgânico do
trabalho, buscando a ambientação de novos associados, a formação continuada e a equidade do poder decisório.
A mediação é a educação e a igualdade substantiva. Os componentes institucionais são a Universidade Livre e
Sistema de Conselhos. BENINI, Édi. 2012, op. cit..
199

salto em direção a processos coletivos que ampliem a possibilidade de resistência local e que
apontem para a possibilidade de enfrentamento de contradições estruturais.

O aumento substancial de uma nova classe trabalhadora que se reproduz na


precarização, tende a transformar o trabalhador num elemento cada vez mais dinâmico nos
processos de luta, embora coloque imensos desafios em relação às formas de organização.
Esse sujeito histórico, cada vez mais marcado pela heterogeneidade das formas de
sobrevivência tende a se organizar mais no espaço territorial que no espaço da produção. Daí
decorre a relevância de construir unidades a partir de confluências entre o trabalho associado
no campo e na cidade com os movimentos populares e desses com as unidades produtivas.
200

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo da pesquisa foi o de comparar aspectos institucionais de quatro


Organizações de Trabalho Associado (OTAs) a fim de verificar em que medida o processo
autogestionário alterou as relações de trabalho, e se está relacionado a outras perspectivas de
luta política; interpretando o impacto desta relação e os condicionantes institucionais daí
resultantes no processo de consciência dos trabalhadores para verificar os limites e as
possibilidades da autogestão como mediação para a sua emancipação.

Relevante destacar que para os fins comparativos a que se propôs a pesquisa, foram
selecionadas, intencionalmente, organizações com significativas diferenças identitárias, como
o ramo e a atividade fim; o envolvimento dos trabalhadores no seu surgimento; a organização
territorial; a configuração institucional/formato jurídico atual e/ou pretendido; a forma de
ingresso e associação de novos integrantes; a organicidade e a maior ou menor autonomia em
relação a parceiros, apoiadores e agentes externos. Tais diferenças refletem as distinções
concretas existentes entre os diversos tipos de OTAs na atualidade. A autogestão no Trabalho
Associado foi o elo analítico que permitiu equacionar experiências tão ricas e diversas. O
autogestômetro - como instrumento de tabulação, análise e demonstração dos dados – é a
síntese central da empreitada metodológica. Neste sentido, as conclusões apresentadas para os
quatro casos estudados podem ser estendidas a um universo mais amplo que o estudado. Tal
generalização, apesar de possível, deve ser feita de forma cuidadosa, sob pena de incidir em
grave equívoco metodológico.

Na sociedade sob o domínio do Capital, enquanto seu sociometabolismo alcançar


todas as esferas da vida, não é possível contemplar uma nova consciência a não ser de forma
embrionária. No entanto, compreender a consciência como um processo, permite reconhecer
que esta não é estática ou que se desenvolve de forma linear; é formada a partir da relação
dialética existente entre as representações ideais dos indivíduos e as suas relações concretas.
Os resultados desta pesquisa permitiram entender como ocorrem os processos de consciência
no interior das OTAs.

A partir das circunstâncias anteriores, as experimentações autogestionárias nas OTAs


podem, sob algumas condições, engendrar mediações propícias para o desenvolvimento de
práticas democratizantes no processo de trabalho, com a eventual socialização dos avanços
obtidos no interior das unidades produtivas. No entanto, as rupturas não eliminam as
continuidades com a lógica heterogestionária do trabalho: o horizonte da emancipação dos
201

trabalhadores não está totalmente assegurado. Por outro lado, as continuidades não aniquilam
as rupturas. Para tanto, as condições e mediações relacionadas às rupturas e continuidades
precisam ser criticamente apuradas.

De acordo com os resultados da pesquisa de campo, alguns componentes institucionais


evidenciam um posicionamento politicamente engajado, favorecendo o despertar de uma nova
consciência nos trabalhadores (consciência para si ou de classe). Assim, as OTAs n° 1 e n° 2
sustentam suas experiências em bases favoráveis a outra forma de perceber o mundo e de
interagir neste (resultado demonstrado nas figuras 13-17, capítulo III e nos autogestômetros
comportamentais, anexos E-N). Os indicadores comportamentais evidenciam que a
solidariedade de classe está presente no imaginário dos trabalhadores destas OTAs, inclusive
numa perspectiva internacionalista. A consciência e a solidariedade de classe dos
trabalhadores se confirmam na prática concreta destas OTAs, que apresentam perspectivas de
confluência dos seus objetivos corporativos com bandeiras de lutas políticas mais amplas e
com a socialização dos avanços obtidos no interior da sua organização, especialmente pela
integração sociopolítica das unidades produtivas à comunidade nas quais estão inseridas. É a
livre práxis estabelecida na autogestão ampliada: da resistência e reivindicação na produção à
contestação social do capital.

Em algumas OTAs a cooperação, a autonomia, a disciplina e a participação também se


encontram em níveis avançados (como no caso da OTA n° 3). São organizações consolidadas
e que já superaram momentos muito difíceis. Nestas existe uma interessante sintonia entre os
trabalhadores e o trabalho coletivo flui. No entanto, a estabilidade no processo de trabalho e a
boa situação financeira podem levar OTAs que se encaixam nesta tipologia a uma condição
de estagnação: esta situação pode ser perigosa e precisa ser contornada. Algumas vezes os
canais de comunicação e participação perdem funcionalidade porque tudo vai bem e não há
mais o que discutir. São OTAs que apresentam um histórico de intenso engajamento político
com práticas formativas diversas, mas com o passar dos anos passaram a priorizar tarefas de
gestão do empreendimento e demandas econômico-corporativos, desatentando para as
práticas formativas dos seus trabalhadores e o seu relacionamento com a comunidade local.
Como visto, para Sartre, é a livre práxis do grupo organizado cristalizada em práxis
constituída: quando o grupo se endurece e o que era movimento se torna rotina, o que era
ação converte-se em procedimentos. 378. As OTAs com este perfil tendem a estimular um
comportamento do tipo autogestionário/autonomista, como equivalente, na tipologia de

378
SARTRE, Jean-Paul. Crítica de la Razón Dialéctica. Buenos Aires: Editorial Losada, v.1, 1979.
202

Iasi379, à segunda forma de consciência – a consciência em si. A resistência na produção é o


traço marcante destas OTAs.

Os resultados relacionados aos aspectos sociopolíticos da pesquisa demonstraram que


alguns trabalhadores ainda têm um conhecimento muito superficial de assuntos relevantes à
classe trabalhadora. Esses resultados são um tanto alarmantes e podem evidenciar OTAS com
predominância de trabalhadores com comportamentos típicos da primeira forma de
consciência, como a ultrageneralização e a reprodução de perspectivas conservadoras de
maneira naturalizada. O fragilizado entendimento dos aspectos políticos e sociais mais
relevantes, somado à falta de compreensão mínima sobre o que venha a ser a autogestão,
mesmo no sentido de autonomia ou de autodeterminação, revela a fragilidade dos
componentes institucionais de algumas OTAs e põe em dúvida as perspectivas emancipatórias
destas na constituição dos sujeitos envolvidos no processo de trabalho associado. Mesmo
existindo diferentes maneiras de cooperar, participar e protagonizar no interior das OTAs; são
duvidosas as potencialidades emancipatórias das organizações com este perfil. O
fortalecimento da sua organicidade é tarefa urgente e necessária (é o caso da OTA n° 4).

Alguns trabalhadores associados ainda apresentam dificuldades em compreender que o


seu trabalho está inserido num contexto mais amplo do sociometabolismo do capital ou de
forma mais simplificada, que os acontecimentos no interior da OTA também são
influenciados pelo movimento de outros atores importantes como o Estado e próprio
Mercado. Os resultados da pesquisa de campo revelaram que uma quantidade considerável
dos trabalhadores entrevistados desconhecem outras experiências e as relações estabelecidas
pela própria OTA com outros atores. Esse é um bom motivo para a retomada das práticas
formativas. No entanto, estas práticas precisam ultrapassar o método clássico de formação
política. A pedagogia mediada pelas práticas artístico-culturais como o teatro, a música, a
dança e o muralismo, são surpreendentes instrumentos de sensibilização e transformação dos
sujeitos.

O distanciamento ocorrido nas últimas décadas entre os movimentos populares e o


campo do trabalho associado no Brasil, ocasionou um afastamento das OTAs do campo do
enfrentamento político. Neste sentido, a pesquisa revelou que a relação entre as OTAs
pesquisadas e os movimentos-referência ocorre de várias maneiras: desde uma forma mais
orgânica e integrada (como nos casos das OTAs n° 1 e n° 2), ou como uma mera referência
(OTAs n° 3 e n° 4) - quando os movimentos populares são mencionados no sentido de
379
Ibid.
203

representarem um horizonte meramente abstrato ou uma bandeira de luta no imaginário dos


trabalhadores.

Quando os trabalhadores entrevistados foram consultados sobre o seu percurso ou sua


socialização militante,380 constatou-se que em cada OTA havia no mínimo um/a trabalhador/a
com percurso militante resultante de experiências anteriores ao trabalho associado na OTA e
que chegaram à OTA em razão da militância política. No entanto, um interessante elemento
diferencia as OTAs n° 1 e n° 2 das demais. Nestas constatou-se a presença de percurso
militante em mais de um trabalhador, e que se efetivou após o ingresso do trabalhador na
OTA. Ou seja: as mediações políticas nestas OTAs foram capazes de despertar a consciência
dos seus trabalhadores e provocar a superação da primeira e por que não dizer, da segunda
forma de consciência; inserindo-os organicamente em alguma luta mais ampla, para além da
atividade do trabalho associado na unidade produtiva. O mesmo não ocorreu nas OTAs n° 3 e
n° 4, nas quais os únicos militantes existentes tinham percurso militante constituído
anteriormente ao ingresso na OTA e declararam ainda estarem afastados das atividades nos
movimentos há um bom tempo.

A partir dos resultados exibidos pelos autogestômetros institucionais (veja-se Figura


13 - OTAs em perspectiva comparada) conclui-se que o indicador institucional n° 5
(participação institucional da OTA em movimentos populares ou organizações sociais e
participação destes na OTA) combinado com qualificados índices de repartição do poder
(representado pelo conjunto global dos indicadores institucionais n° 7-17) tornam-se variáveis
determinantes num duplo sentido: (1) como mediação necessária para o surgimento de
embriões da nova consciência dos trabalhadores; (2) como vetor indispensável para a
superação dos objetivos econômico-corporativos das OTAs.

As evidências do campo sugerem que a incorporação das OTAs às lutas políticas mais
amplas (reivindicação e contestação) a partir da relação orgânica com movimentos e
organizações populares torna-se um indispensável caminho para a possibilidade de superação
dos objetivos unicamente corporativos das OTAs; elevando-as à condição de sujeito político
capaz de incidir na correlação de forças com eventuais possibilidades de disputa pela
implantação de seu projeto político.

380
Questões 60 e 61 do roteiro de entrevista – anexo B. “Você participa ou já participou de algum movimento ou
organização social - sindicato, partido político ou associação? Desde quando e com que frequência?
204

Para tanto, a pedagogia do movimento, da luta e da rebeldia pode ser entendida como
instância mediadora, como intencionalidade formativa produzida na dinâmica da luta social e
na organização coletiva das Organizações de Trabalho Associado.

A retomada da relação do Trabalho Associado com outras forças populares, além de


resgatar a sua imbricação pretérita com o movimento popular pode ressignificar seu papel de
resistência histórica na luta pela autogestão societal ampliada.

Necessário se faz o resgate da autogestão no sentido que Claudio Nascimento dá ao


Princípio de Poder Popular-Comunal como “processo através do qual os locais de vida
(trabalho, estudo, lazer, moradia etc.) das classes populares se transformem em órgãos
coletivos constituintes de um poder social alternativo e emancipatório, que permita avançar na
construção e consolidação de um campo contra-hegemônico”.381

Neste sentido, os ataques duplos propostos por Mészáros são efetivados pela retomada
da relação do Trabalho Associado com outras forças populares; iniciando pela resistência na
produção e avançando para a contestação do sociometabolismo do capital.

381
NASCIMENTO, Cláudio. Sobre o Poder Popular. Material Impresso. [199?].
205

REFERÊNCIAS

ALTIERI, Miguel. Agroecologia: as bases científicas da agricultura alternativa. Rio de


Janeiro: PTA/Fase, 1989.
ANTEAG – Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e
Participação Acionária; IBASE. Autogestão em avaliação. São Paulo: Edições ANTEAG,
2004.
ASSOCIAÇÃO BEM DA TERRA, 2015. Disponível em:
<http://bemdaterra.org/content/bem-da-terra/>. Acesso em: 10 set. 2015.
BENINI, Édi Augusto. Sistema orgânico do trabalho: arquitetura crítica e possibilidades. São
Paulo: Ícone, 2012.

BENINI, Édi Augusto; SABINO, Adalberto; GOMES, Ana Lúcia Sales. Organicidade
socioprodutiva: metodologia construtiva de uma autogestão de caráter societal. In: Revista
Movimentação v.2, n.2, p. 01-20, 2015.
BERNARDO, João. A autogestão da sociedade prepara-se na autogestão das lutas. Revista
Piá piou! n. 3, nov. 2005.
BERNARDO, João. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
BRUSCATTO, Márcio Antônio Hoffmann. A Cooperativa de consumo, trabalho e produção
Teia Ecológica Ltda. e a Agricultura Familiar no Município de Pelotas – RS: uma abordagem
sistêmica. 2011. Trabalho de Conclusão do Curso (Graduação em Geografia). Universidade
Federal de Pelotas, 2011.
CAMARGO, Vinícius. Vila Operária e Popular – um terreno e uma fábrica ocupadas: 10
anos de luta. Cemop: Sumaré, 2015.
CAPORAL, Francisco Roberto; COSTABEBE R, José Antônio. Agroecologia: alguns
conceitos e princípios. Brasília: MDA–SAF–Dater-IICA, 2004. Disponível em:
<https://www.socla.co/wp-content/uploads/2014/ Agroecologia-Conceitos-e-princpios1.pdf>.
Acesso em: 12 jan. 2016.
CASTEL, Robert. As transformações da questão social. In: BELFIORE-WANDERLEY,
Mariangela et al. Desigualdade e a questão social. São Paulo: Educ, 2004.
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. Dossiê 10 anos do movimento de fábricas
ocupadas, n.4, out. 2012.
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. Jornal Atenção. Encarte especial. Ed. 20,
dez. 2014.
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. O que é a adjudicação e o que querem os
trabalhadores da Flaskô? 2015.
CEMOP – Centro de Memória Operária e Popular. Una breve história de la lucha de los
obreros de Flaskô en Brasil: estatización para La defensa de los empleos delante del
gobierno de Lula. 2010.
CHESNAIS, François. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
CHESNAIS, François; SERFATI, Claude. “Ecologia” e condições físicas de reprodução
social: alguns fios condutores marxistas. Crítica Marxista, São Paulo, v.1, n.16, 2003.
206

Disponível em: <www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/


artigo9539_merged.pdf>. Acesso em: 29 dez. 2015.
COLETIVO DE COMUNICAÇÃO, CULTURA E JUVENTUDE DA VIA CAMPESINA.
Agitação e propaganda no processo de transformação social. 2007.
CRUZ, Antônio. A diferença da igualdade. A dinâmica econômica da economia solidária em
quatro cidades do Mercosul. 2006. 343 f. Tese (Doutorado em Economia). UNICAMP,
Campinas, 2006.
CRUZ, Patrícia Postali. Mapeando a rede ecológica na região de Pelotas, Rio Grande do Sul:
um estudo etnográfico sobre a organização e a construção de sentidos da rede local. 2015.
165f. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Universidade Federal de Pelotas, Pelotas,
2015.
DAL RI, Neusa Maria; VIEITEZ, Cândido, Giraldez. Movimentos Sociais, Trabalho
Associado e Educação: Reformas e Rupturas. In: NOVAES, Henrique Tahan; BATISTA,
Eraldo Leme. (orgs.) Trabalho, Educação e Reprodução Social – As contradições do capital
no século XXI. Bauru, SP: Canal 6, 2011.
DAVIS, John; GOLDBERG, Ray. A Concept of Agribusiness. Boston: Division of Research,
Graduate School of Business Administration, Harvard University, 1957.
DELMONTES, Camila; CLAUDINO, Luciano. Flaskô: fábrica ocupada. Sumaré: CEMOP,
2009.
DIAS, Rafael Gironi. Mobilização e Comunicação na Fábrica Ocupada Flaskô. In: CEMOP.
Dossiê 10 anos do Movimento de Fábricas Ocupadas. n. 4, out. 2012.
DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz popular - movimentos sociais e participação política no
Brasil pós-70. Rio de Janeiro: Relume Dumará, ANPOCS, 1995.
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: ZAHAR, 1994.
FAJN, Gabriel (coord.) Fábricas y empresas recuperadas: protesta social, autogestión y
rupturas en la subjetividad. Buenos Aires: Centro Cultural de la Cooperación/Ediciones Del
Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos, 2003.
FERNANDES, Florestan. Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1975.
FERNANDES, Florestan. O que é Revolução. São Paulo: Abril Cultural/Brasiliense, 1984.
FERNANDES, Florestan. Sociedade de classes e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Zahar,
1972.
FERRAZ, Deise Luiza da Silva. Projetos de geração de trabalho e renda e a consciência de
classe dos desempregados. In: Organizações e Sociedade, 2015, v. 22, n.72. p.123-141.
FERRAZ, Deise Luiza da Silva; MENNA-BARRETO, João Alberto. A organização dos
trabalhadores desempregados como mediação para a consciência de classe, o&s - Salvador,
v.19, n.61, p.187-207, abr./jun.2012.
FLASKÔ. Uma fábrica ocupada pelos trabalhadores. Fanzine. 2012.
FREUD, Sigmund. Esboço de psicanálise. In: Os pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1978.
GAIGER, Luiz Inácio. A economia solidária diante do modo de produção capitalista, 2003.
Caderno CRH, Salvador, n. 39, p. 181-211, jul./dez. 2003.
207

GAIGER, Luiz Inácio. O mapeamento nacional e o conhecimento da Economia Solidária.


Revista da Assocação Brasileira de Estudos do Trabalho, v.12, n.1. 2014, p. 7-24.
GARCIA, Silvana. Teatro da militância. São Paulo: Perspectiva/Edusp,1990.
GLIESSMAN, Stephen R. Agroecologia: processos ecológicos em agricultura sustentável.
Porto Alegre: Universidade-Editora da UFRGS, 2000.
GOHN. Maria da Glória. Movimentos Sociais e redes de mobilizações civis no Brasil
contemporâneo. Petrópolis: Vozes, 2010.
GRAMSCI, Antonio. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1978.
GUBUR, Dominique Michèle Perioto; TONÁ, Nilciney. Agroecologia. In: CALDART,
Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio.
(orgs.). Dicionário de Educação no campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola Politécnica de
Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.
GUILLERM, Alain; BOURDET, Yvon. Autogestão: uma mudança radical. Rio de Janeiro,
Zahar, 1976.
HENRIQUES, Flávio Chedid et al. As empresas recuperadas por trabalhadores no Brasil:
resultados de um levantamento nacional. Mercado de trabalho, IPEA, n. 55, ago. 2013.
IASI, Mauro Luis. As metamorfoses da Consciência de Classe: o PT entre a negação e o
consentimento. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular,
2007.
IASI, Mauro Luis. Processo de Consciência. São Paulo: CPV, 1999.
IASI, Mauro. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
LEFF, Enrique. Agroecologia e saber ambiental. In: Agroecologia e Desenvolvimento Rural
sustentável. Porto Alegre, v. 3, n. 1, jan.-mar., 2002. Disponível em:
<http://www.emater.tche.br/site/sistemas/administracao/tmp/958934218.pdf>. Acesso em: 12
jan. 2016.
LEITE, Pereira Sérgio; MEDEIROS, Leonilde Servolo de. In: CALDART, Roseli Salete;
PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO, Gaudêncio. (orgs.). Dicionário
de Educação no campo. Rio de Janeiro/São Paulo: Escola Politécnica de Saúde Joaquim
Venâncio/Expressão Popular, 2012.
LUKÁCS, Georg. História e Consciência de Classe. Rio de Janeiro: Elfos, 1989, p. 59.
LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou Revolução? São Paulo: Expressão Popular, 1999.
MANDL, Alexandre. Uma década do movimento das Fábricas Ocupadas: histórico, balanços
e perspectivas. In: CEMOP. Dossiê 10 anos do movimento de fábricas ocupadas, n.4, out.
2012.

MARÇAL, J. As primeiras lutas operárias do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo, 1985.

MARQUES, Paulo L. A.; RODRIGUES, Edson. 100 anos de cultura-educação libertária em


pelotas: do Grupo Iconoclasta à Casa Okupa 171. 2015. Disponível em:
<http://libertariosufpel.blogspot.com.br/2015/11/educacao-anarquista-em-pelotas.html>.
Acesso em: 20 nov. 2015.
208

MARX, Karl. A enquete operária – o questionário de 1880. Anexo 1. In: THIOLLENT,


Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Pólis, 1981.

MARX, Karl. Instruções para os Delegados do Conselho Geral Provisório: as diferentes


questões. In: BARATA-MOURA, J.; CHITAS, E.; MELO, F.; PINA, A. (Orgs.). Marx e
Engels: Obras Escolhidas em Três Tomos. Lisboa: Edições Avante, 1982. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/marx/1866/08/instrucoes.htm>. Acesso em: 29 jan. 2014.
MARX, Karl. La Guerra civil en Francia. Moscou: Editorial Progresso, 1977.
MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas à Kulgelman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MARX, Karl. O capital. Livro 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital. Campinas: Editora da Unicamp/Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. Campinas:
Editora da Unicamp/Boitempo, 2011.
MIRANDA, C. O Teatro na voz operária: Grupo teatral cultural social e o anarquismo em
Pelotas – seus operários e suas palavras. 2014. 213 F. Dissertação. (Mestrado em Teatro).
UDESC, 2014.
MORISSAWA, Mitsue. A história da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão
Popular, 2001.
NASCIMENTO, Cláudio. Socialismo Autogestionário. Disponível em: <www.contag.org.br/
imagens/f763socialismoClaudioNascimento.pdf>. Acesso em: 25 mai.2013.
NASCIMENTO, Cláudio. Momentos e ideias decisivos para uma história da autogestão. s/d.
s/e. p.25 Disponível em: <http://claudioautogestao.com.br/wp-content/uploads/2014/04/
Elementos-para-uma-historia-da-autogest%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 10 jan. 2014
NASCIMENTO, Cláudio. As lutas operárias autônomas e autogestionárias. Rio de Janeiro:
CEDAC, 1986.

NASCIMENTO, Cláudio. Do “beco dos sapos” aos canaviais de Catende.Brasília: SENAES,


2004.

NASCIMENTO, Cláudio. Sobre o Poder Popular. Material Impresso. [199?].

NASCIMENTO, Cláudio; PALUDO, Conceição. Rede de Educação Cidadã - O Poder


Popular: a “Forma Comunidade”. Disponível em: <http://claudioautogestao.com.br/wp-
content/uploads/2014/04/O-Poder-Popular-ultima-vers%C3%A3o.pdf>. Acesso em: 2 mar.
2013.
NOVAES, Henrique T. (Org.). A alienação em cooperativas e associações de trabalhadores:
uma introdução. São Paulo: Expressão Popular, 2010.
NOVAES, Henrique. T. (Org.). O retorno do caracol à sua concha: alienação e desalienação
em associações de trabalhadores. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
209

OCUPAR E ARRUINAR – Radicais do PT criam o MST das fábricas e usam dinheiro das
empresas ocupadas em proveito próprio. Revista Veja. São Paulo, edição 2023, 29 ago. 2007.
p. 86-88.
OLIVEIRA, Antônio Carlos de. Os fanzines contam uma história sobre punks. Rio de
Janeiro: Achiamé, 2006.
OPERÁRIOS OCUPAM FÁBRICA E TOCAM PRODUÇÃO EM SUMARÉ. A voz do
Trabalhador. Boletim n. 1. Rio de Janeiro, jul. 2003.
PASSETTI, E. AUGUSTO, A. Anarquismos & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
PAZELLO, Ricardo Prestes. Movimentos Populares. In: Revista Captura Crítica, v.1, n.3,
jul/dez. Florianópolis, 2010.
PELO SOCIALISMO AUTOGESTIONÁRIO. Edições base. Lisboa. 1979. Documentação da
Conferência Nacional ”Pelo Socialismo Autogestionário”, Porto, 1978.
PETERSEN, R.; LUCAS, M. Antologia do movimento operário gaúcho-1870-1937. Porto
Alegre: UFRGS/Tchê, 1992.
QUEIROZ, Bertino Nóbrega de. A autogestão iugoslava. São Paulo: Brasiliense, 1980.
RODRIGUES, E. Os anarquistas: Trabalhadores italianos no Brasil. São Paulo, Global, 1984.
RUDY, Antônio Cleber. Os silêncios da escrita. A historiografia em Santa Catarina e as
experiências libertárias. 2009. 177 f. Dissertação. (Mestrado em História). UDESC/SC. 2009.
SANTINHO, Pedro Alem; VERAGO, Josiane Lombardi. O movimento em retrospectiva e os
casos de ocupações menos conhecidos. In: CEMOP. Dossiê 10 anos do movimento de
fábricas ocupadas. n.4, out. 2012.
SANTOS, Aline Mendonça. O movimento de economia solidária no Brasil e os dilemas da
organização popular. 2010. 445 f. Tese (Doutorado em Serviço Social). Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, 2010.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma reinvenção solidária e participativa do Estado.
In: PEREIRA, L.C. Bresser et al (org.). Sociedade e Estado em transformação. São
Paulo/Brasília: UNESP/ENAP, 1999.
SARTRE, Jean-Paul. Crítica de la Razón Dialéctica. Buenos Aires: Editorial Losada, v.1,
1979.
SHERER-WARREN, Ilse. Das mobilizações às redes de movimentos sociais. Revista
Sociedade e Estado, n.1, jan./abr. 2006.
TAUILE, José Ricardo [et al]. Empreendimentos autogestionários provenientes de massas
falidas: relatório final: junho de 2004. Brasília: MTE, IPEA, ANPEC, SENAES, 2005.
THIOLLENT, Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São
Paulo: Polis, 1981.
TIRIBA, Lia. Economia popular e cultura do trabalho – pedagogia da produção associada.
2001. p.346-359.
TIRIBA, Lia. Trabalho, educação e autogestão: desafios frente à crise do emprego. 2002.
Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/nesth/IIIseminario/texto4.pdf>. Acesso em: 2
mar. 2013.
TIRIBA, Lia; FISCHER, Maria Clara Bueno. Produção Associada e autogestão. In:
CALDART, Roseli Salete; PEREIRA, Isabel Brasil; ALENTEJANO, Paulo; FRIGOTTO,
210

Gaudêncio (orgs.). Dicionário de Educação no Campo. Rio de Janeiro, São Paulo: Escola
Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Expressão Popular, 2012.

TRENTIN, Bruno. Pesquisa sobre a consciência de classe. Anexo 2. In: THIOLLENT,


Michel. Crítica metodológica, investigação social e enquete operária. São Paulo: Polis, 1981.
p. 257-62.

VASCONCELOS, Felipe Gomes da Silva. A experiência do controle operário na fábrica


Flaskô: perspectivas do controle operário na sociedade contemporânea. In: CEMOP. Dossiê
10 anos do movimento de fábricas ocupadas. n. 4, out. 2012.

VIEITEZ, Candido Giraldez; DAL RI, Neusa Maria. Trabalho associado. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.

VIEITEZ, Candido Giraldez; DAL RI, Neusa Maria. Trabalho associado e mudança social.
In: DAL RI, Neusa Maria (org.). Trabalho Associado, Economia Solidária e Mudança Social
na América Latina. Associação das Universidades Grupo Montevidéu. – São Paulo: Cultura
Acadêmica; Marília: Oficina Universitária; Montevidéu: Editorial PROCOAS, 2010.
WEBLER, Darlene Arlete. A autogestão na perspectiva da análise do discurso. São Carlos:
Pedro e João editores, 2010.
WIRTH, I. G.; FRAGA, L.; NOVAES, H.T. Educação, trabalho e autogestão: limites e
possibilidades da Economia Solidária. In: BATISTA, Eraldo Leme; NOVAES, Henrique
(orgs.). Trabalho, Educação e Reprodução Social. Campinas: Editorial Práxis, 2013.
211

ANEXOS
212

ANEXO A - Roteiro semiestruturado para entrevista dos informantes-chave e coleta de dados referentes às
organizações de trabalho associado

1. Quanto à identidade da OTA (envolvimento dos trabalhadores no surgimento da OTA; organização


territorial; configuração institucional/formato jurídico; forma de ingresso e associação; organicidade e
autonomia em relação a parceiros, apoiadores e agentes externos:
1.1. Tipo de OTA – atividades fins e matérias- primas básicas; produção manual, mecânica ou automatizada;
demais atividades produtivas ou não produtivas; número de trabalhadores e perfil socioeconômico
predominante;
1.2. Disposição territorial da/s unidades de produção, de distribuição e/ou de consumo;
1.3. Breve histórico – motivos que levaram à autogestão e o envolvimento dos trabalhadores na construção da
OTA e nos momentos subsequentes;
1.4. Programa político/projeto/visões de mundo/orientação política e demandas que configuram a sua
identidade;
1.5. Outras experiências históricas que influenciam o coletivo;
1.6. Regime e formato jurídico de posse/propriedade;
1.7. Relação com partidos políticos, sindicatos e movimentos sociais e populares

2. Autogestão interna: estruturas, organicidade, cooperação, autonomia e participação (representação e


democracia direta); divisão do trabalho; canais de informação e formação voltados para o processo
produtivo.
2.1. Estrutura de produção e sua integração com canais internos de participação direta e deliberação – setores,
seções, coordenações, estruturas vinculadas a agentes externos e parceiros; conselhos, assembleias, formas de
eleição dos representantes, tempo de mandato, periodicidade das reuniões e percentual de participação,
encontros preparatórios, estruturas vinculadas a agentes externos e parceiros;

2.2. Divisão do trabalho - retirada, papéis e funções, cotas de participação, vínculo dos trabalhadores com a
OTA, hierarquias, jornada de trabalho, índice de absenteísmo, acidentes de trabalho, conflitos internos;

2.3. Meios/canais de informação e formação continuada voltadas para o processo produtivo e para a
autogestão interna;
3. Autogestão societal ampliada: elementos de socialização autogestionária e tendências para a
integração socioprodutiva ampliada. Meios/canais de informação e formação continuada, mobilização
política, agitprop (agitação e propaganda). Relação com movimentos sociais e outras OTAs. Integração
sociopolítica com a comunidade na qual a OTA está inserida.
3.1. Estruturas/canais de informação e formação continuada, divulgação externa, mobilização política e
agitprop (agitação e propaganda):
a) práticas comunicativas (palavra/oratória) e dialógicas: palestras, oficinas e cursos internos e participação
em espaços externos;
b) existência de biblioteca e de gráfica própria para produção de conhecimento. Publicações impressas com
alcance interno e externo: panfleto, jornal, mural, banner, revista, livro, zines, quadrinhos etc.;
c) prática e envolvimento com artes plásticas: pichações, grafitagem, muralismo, painelismo, faixas, cartazes,
fotografia, estêncil etc.;
d) práticas teatrais: teatro jornal, teatro fórum, teatro invisível, teatro procissão, teatro de rua, festivais e
mostras;
e) música e poesia: corais, saraus, festivais, apresentações de rua ou em rádios, etc.;
f) produção/confecção de materiais de indumentária/vestimenta: bonés, camisetas, bandeiras, broches etc.;
g) exposição, troca e comercialização de produtos do coletivo (participação de feiras ou realização de feiras;
213

h) meios de comunicação de massa: programa ou participação em programas de rádio, televisão e/ou internet,
cinema, jornal, blog e páginas nas redes sociais;
i) participação em ações de massa - ações diretas, práticas de mobilização, manifestações e passeatas,
ocupações de espaços públicos;
j) celebrações das datas importantes para a OTA;
l) existência de setor específico para a mobilização política;
3.2. Relação e integração com outros atores sociais e econômicos – parceiros e adversários:
a) relações orgânicas da OTA com outras OTAs, movimentos sociais e populares, partidos políticos,
sindicatos, entidades de apoio, redes, outros coletivos e com o Estado;
b) compartilhamento de espaços, recursos produtivos, logística e canais de escoamento da produção,
economias de rede, serviços, crédito solidário/intercooperativo, bens e objetos com outras OTAs ou redes de
OTAs; integração da produção com sistemas de compra direta governamental (PNAE, PAA etc.), feiras
agroecológicas/solidárias, cooperativas de consumo, Grupos de Consumo Responsável, sistemas CSA
(Comunidade que Sustenta a Agricultura), Sistema Orgânico do Trabalho etc.;
c) existência de atividades de integração sociopolítica com as famílias dos trabalhadores e comunidade na
qual a OTA está inserida, além de relacionamento com outras instituições como associação de moradores,
coletivos artístico-culturais, escolas/universidades etc.
214

ANEXO B – Roteiro estruturado de entrevista com questões diretivas e não diretivas abertas aplicadas aos
trabalhadores e trabalhadoras das organizações de trabalho associado

Autogestão interna: organicidade, cooperação, autonomia, participação, disciplina, confiança e


liberdade
1- Sabe o que é autogestão?
2- O que é autogestão?
3-Para você, o que é um empreendimento autogestionário/cooperativo/ocupado? (dependendo da tipologia
adotada pela OTA)
4- Você acredita que seu grupo pratica a autogestão? 5- Por quê?
6- O que é necessário para que a autogestão de certo?
7- Você se interessa pela gestão do coletivo?
8- Conhece quais setores/funções existentes?
9- Existe integração/colaboração entre os trabalhadores que desenvolvem diferentes funções?
10- De que maneira ocorre a integração/colaboração/cooperação?
11- Você participa das principais tomadas de decisão? 12- Se sim, como elas acontecem?
13- Quais são as principais decisões tomadas?
14- Existem opiniões diferentes dos integrantes do coletivo? 15- Você acha que a divergência de opinião faz
mal ou bem ao grupo? Por quê?
16- A direção da OTA promove a participação? 17- Como ela ocorre?
18- Quais os principais canais de participação existentes?
19- Existe circulação de informação sobre o funcionamento da OTA?
20- Você recebe informações e sabe o que acontece na OTA?
21- O que faz com a informação que recebe (fica consigo/multiplica)?
22- O que te levou a trabalhar numa OTA?
23- Há quanto tempo trabalha no coletivo?
24- Já fez parte de outra OTA?
25- Percebe vantagens em trabalhar numa OTA em comparação ao trabalho formal assalariado?
26- Quais vantagens e desvantagens?
27-Percebe vantagens no trabalho associativo/autogestionário/cooperativo comparado com o trabalho
autônomo, por conta própria? 28 – Quais vantagens e desvantagens?
29-Se houvesse possibilidade de trabalhar autonomamente com o mesmo ganho/retirada do trabalho no
coletivo, você deixaria o grupo? 30- Por quê?
31-Se houvesse possibilidade de trabalhar numa empresa com o mesmo ganho do trabalho no
grupo/empreendimento, você deixaria o grupo? 32 – Por quê?
33- O que considera importante para o sucesso da OTA? 34- O que deveria acontecer para que isso ocorra?
35- Qual o comportamento/atitude considera mais importante dos integrantes da OTA?
36- Cumpre as tarefas definidas? 37- Elas são determinadas por quem?
38- Concorda com a sua carga horária de trabalho? 39- É definida por quem?
40- Concorda com a sua remuneração/retirada? 41- É definida por quem?
42- Existe ganho diferenciado na OTA? 43- Esta questão é debatida? 44- Você concorda com retiradas
diferenciadas. 45- Por quê?
46-Percebeu alguma mudança na sua vida depois que passou a trabalhar numa OTA? (comportamento,
disposição para o trabalho, família etc.)?
47- Se sim, quais as principais mudanças (aspectos negativos e positivos)?

Autogestão ampliada/organicidade socioprodutiva/intercooperação político-econômica/participação


externa/mobilização política
48-Sabe como e quando a sua OTA iniciou as atividades (mobilização/início da atividade-fim)? 49- Participou
do momento inicial?
50-O coletivo mantém relação com outros grupos, movimentos, OTAs, Estado? 51- Acha importante? Por
quê?
52- Vocês tem aliados, parceiros e/ou adversários? 53- Quem são?
54- Você sabe se a OTA participa de movimentos sociais ou articulação ou constrói redes com outros
coletivos? 55- Quais?
56- Qual a sua opinião sobre a participação o estabelecimento de relações?
57- Você participa ou já participou de atividades de formação técnica/política dentro da cooperativa ou fora
dela? De que tipo?
215

58- Você conhece experiências similares ao do seu coletivo?


59- A sua OTA contribui para o fortalecimento ou criação de OTAs semelhantes ou em outras áreas?
60-Você participa ou já participou de algum movimento ou organização social (sindicato, partido político,
associação etc.)? 61 – Desde quando e com que frequência?
62- Alguém do grupo desempenha alguma atividade específica em algum movimento social? Qual?

Aspectos sociopolíticos gerais


63- O que é reforma agrária? 64- É contra ou a favor? Por quê?
65- Sabe o que é a redução da idade de maioridade penal? 66- É a favor ou contra a redução da maior idade
penal? Por quê?
67- Sabe o que são cotas nas universidades e concursos públicos para grupos específicos (negros, indígenas,
PCD)?
68- É contra ou a favor das cotas? Por quê?
69- É contra a união de pessoas do mesmo sexo? Por quê?
70- O que é Capitalismo? 71- Acha que o capitalismo é um modo de produção e distribuição justo? Por quê?
72- Existe preconceito de classe social no Brasil? Por quê?
73- Existe racismo no Brasil? Por quê?
74- Quem é mais capaz de exercer cargos de coordenação, chefia ou supervisão - homem ou mulher?
75- Nas eleições, vota no projeto de um partido político ou em um candidato de sua confiança? Por quê?
76- Atualmente, acha a política e os políticos representam os interesses da população? Por quê?
77- Quais meios de comunicação você tem acesso e obtém informações sobre os acontecimentos sociais?
78- Você acredita nas informações que recebe dos meios de comunicação que costuma utilizar?
79- Você sabe o que são movimentos sociais? 80- O que pensa sobre eles? Por quê?
81- Já participou e/ou participa de algum movimento social ou de atividades de movimentos sociais?
82- Você já ouviu falar de economia solidária? Você considera a Economia Solidária como um movimento
social?
83- Quais os principais objetivos da Economia Solidária?
213

ANEXO C – Quadro 2 – Indicadores e variáveis institucionais para tabulação

Socialmente Socialmente Padrão


Aceitável
inaceitável necessário idealizado

1 Não ter ocorrido qualquer Envolvimento pontual dos trabalhadores Envolvimento dos trabalhadores na criação – Momento Inaugural - Motivação coletiva para
organicidade e autonomia em relação a parceiros, apoiadores e agentes externos; Programa

na criação – momento inaugural da OTA.


Identidade da OTA (envolvimento dos trabalhadores no surgimento da OTA; organização

envolvimento dos trabalhadores na momento inaugural da OTA. Criado por agente o surgimento da OTA. Amplo envolvimento e
territorial; configuração institucional/formato jurídico, forma de ingresso e associação;

criação – momento inaugural da Criado por agente externo mediante externo parceiro, impulsionado pela mobilização mobilização dos trabalhadores na sua criação.
OTA. Criada por agente externo. consulta aos trabalhadores/as. política do/as trabalhadores/as. Eventual apoio externo inicial que não
signifique dependência ou subordinação.
2 Isolamento territorial da unidade Isolamento territorial da unidade Compartilhamento de estruturas territoriais e sinais Organização territorial orgânica e confluência
produtiva. produtiva com sinais de ampliação da de confluência com outros projetos sociais com outros projetos sociais estratégicos, tanto
cadeia produtiva e ralação com outras estratégicos, tanto de produção como de de produção como de reprodução social,
OTAs. reprodução social. inclusive com horizonte de solidariedade
internacional com outras experiências.
político, demandas ou visão de sociedade

3 Regime jurídico imposto por agente Dificuldades de alcance do regime Existência de debate aprofundado sobre a escolha Existência de debate sobre escolha do regime
externo. Inexistência de qualquer pretendido em razão da lacuna ou do regime jurídico (atual ou pretendido) mais jurídico (atual ou pretendido) mais apropriado.
debate sobre as vantagens ou inexistência de legislação específica. apropriado. Dificuldades de alcance do regime Existência de estratégia conjunta articulada.
desvantagens da forma jurídica Existência de algum debate sobre as pretendido em razão da falta de vontade política ou Obtenção da propriedade e/ou existência de
escolhida. consequências do regime jurídico e sobre inexistência de legislação específica. posse segura dos meios de produção.
o regime temporário escolhido.
4 Grupo fechado. Não associa ou Indicação política ou familiar de Existência de alguns critérios objetivos para a Livre adesão com critérios técnicos e políticos
incorpora novos associados ao grupo integrantes sem regras definidas, com adesão. Percentual muito reduzido de contratados definidos com/sem tempo/estágio probatório.
detentor da posse/propriedade. Só possibilidade de adesão. Percentual não sujeitos ao regime associativo, desde que não
contrata ou terceiriza, tanto para a moderado de contratados não sujeitos ao relacionados à atividade fim da OTA.
atividade-fim como para a atividade- regime associativo, especialmente no que
meio da OTA. se refere à atividade fim da OTA.
5 Movimento Social (sentido “clássico” Frágil referência a algum movimento Movimento Social (sentido “clássico” ou Movimento Social (sentido “clássico” ou
ou “moderno” – sindicato, partido ou social (sentido “clássico” ou “moderno”). “moderno”) participativo e trabalhadores com “moderno”) como propulsor da OTA e
movimento popular) indiferente a Nenhuma relação concreta entre a OTA e participação institucional difusa, sem organicidade trabalhadores com protagonismo político-
OTA e trabalhadores indiferentes à o movimento de referência. Trabalhadores no movimento social. institucional. Ancoragem institucional da
participação institucional da OTA nos tem alguma ciência sobre o movimento experiência em instituições ou organizações
Movimentos e do movimento na referência da OTA, mas sem participação informais que veiculem ações estratégicas de
OTA. alguma. intervenção coletiva e/ou de solidariedade de
Postura apolítica. classe, inclusive internacional.
6 Inexistência de qualquer programa Menção a alguns objetivos políticos da Menção a objetivos políticos da OTA, programa Programa político, demandas ou visão de
político, demandas ou visão de OTA. político, demandas ou visão de sociedade. sociedade razoavelmente definidos.
sociedade razoavelmente definidos.
214

Socialmente Aceitável Socialmente Padrão


inaceitável necessário idealizado

7 382
Heterogestão ou Co-gestão temporária entre Administração participativa ou gestão Autogestão interna. Cooperação, autonomia e
participação (representação e democracia direta); divisão do trabalho; canais de

heterogestão camuflada trabalhadores e agente externo. democrática (com ou sem profissionais participação (representação e democracia direta) em
(ancoragem institucional que executivos). Democracia interna já se níveis avançados, a partir das variáveis apontadas pelos
Autogestão interna: estruturas, organicidade, cooperação, autonomia e

revela uma autonomia Com sinais de “fortalecimento” encontra impregnada na rotina da OTA, e demais indicadores do instrumento. Fortes sinais para a
dissimulada; gestão da OTA institucional dos quadros. as instâncias de decisão estabelecem superação da condição parcelizada, fragmentada e
informação e formação voltados para o processo produtivo

atuando como “correia de mecanismos de participação ampliados. inferiorizada dos trabalhadores no interior do processo
transmissão” de agentes produtivo.
externos (sindicato, partido
político etc.)
8
Inexistência de canais de Existência de canais permanentes de Existência de alguns canais permanentes e Existência de vários canais permanentes e temporários de
participação e deliberação participação e deliberação para temporários de participação e deliberação participação e deliberação para além dos órgãos exigidos
nas decisões da OTA cumprimento do exigido pelo estatuto para além dos órgãos exigidos pelo estatuto pelo estatuto ou regimento da OTA. Conselhos,
ou regimento da OTA ou regimento da OTA. assembleias, espaços e encontros preparatórios para
reuniões e asssembleias etc.
9
Inexistência de canais em Existência e regularidade de canais Existência e regularidade de canais em que Existência e regularidade de canais em que trabalhadores
que trabalhadores dos setores em que trabalhadores dos setores trabalhadores dos setores e de diferentes dos setores e de diferentes setores trocam informações e
e de diferentes setores trocam informações e definem setores trocam informações e definem definem caminhos a seguir. Reuniões setoriais.
trocam informações e caminhos a seguir. Inexistência de caminhos a seguir. Reuniões setoriais. Momentos e espaços de socialização das informações
definem caminhos a seguir. reuniões intersetoriais. Momentos e espaços de socialização das intersetoriais com a totalidade dos trabalhadores ou de
Inexistência de reuniões informações intersetoriais com parcela significativa. Existência de encontros formativos
setoriais ou intersetoriais. Existência de reuniões setoriais. representantes dos setores. preparatórios para reuniões deliberativas.
10
Inexistência de eleição dos Eleição dos representantes da Eleição dos representantes da Eleição dos representantes da diretoria/coordenação
representantes. Perpetuação diretoria/coordenação mediante diretoria/coordenação mediante processo mediante processo democrático com eleição direta e
dos mesmos integrantes nos processo democrático com eleição democrático com eleição direta e universal. universal. Rotatividade dos cargos diretivos.
cargos diretivos. direta e universal. Rotatividade de Rotatividade dos cargos diretivos. Possibilidade de revogação imediata de mandato e
Impossibilidade de cargos diretivos. Impossibilidade de Impossibilidade de revogação imediata de observância de paridade de gênero.
revogação imediata de revogação imediata de mandato e não mandato, mas observância de paridade de
mandato e não observância observância de paridade de gênero. gênero.
da paridade de gênero.

382
Indicador desenvolvido com base na obra TAUILE, José Ricardo et al. Empreendimentos autogestionários provenientes de massas falidas: relatório final: junho de 2004.
Brasília: MTE, IPEA, ANPEC, SENAES, 2005.
215

11 Divisão de funções/papéis Divisão de funções/papéis Divisão de funções/papéis significando Divisão de funções/papéis não significando grandes
significando grandes significando grandes diferenças na diferenças aceitáveis na distribuição de diferenças na distribuição de responsabilidade quanto á
diferenças e assimetria na distribuição de responsabilidade responsabilidade quanto á gestão da OTA. gestão do empreendimento. Papéis definidos pelos
distribuição de quanto á gestão da OTA. próprios trabalhadores.
responsabilidade quanto á Papéis definidos pelos próprios
gestão da OTA. Poucos agentes internos definem os trabalhadores.
papéis.
Agentes externos definem
os papéis.

12 Divisão de funções Divisão de funções implicando Divisão de funções implicando diferença Divisão de funções não implicando diferença entre a
implicando aguçada considerável diferença entre a maior no limite entre o imposto pelo mercado e o maior e menor retirada. Retirada igualitária.
diferença entre a maior e e menor retirada (mais de 3 vezes). aceitável, entre a maior e a menor retirada
menor retirada (mais de 3 Existência de debate coletivo sobre a (até 3 vezes). Debate coletivo sobre a
vezes). Inexistência de as diferenças, que são justificadas em existência de diferenças.
debate coletivo sobre a as razão das condições de mercado e da
diferenças, que são impostas divisão social do trabalho.
por pequeno grupo.

13 Inexistência de Existir uma colaboração como “ajuda Existir trocas de experiências e Trocas constantes de experiências e informações entre os
colaboração/cooperação mútua”, soma de esforços em informações entre os trabalhadores sempre trabalhadores. Esforço institucional para os trabalhadores
entre os diferentes setores. situações pessoais pontuais. que necessário em situações pessoais e compreendam e aprendam a tarefa dos colegas.
profissionais.

14 No que se relaciona a Algumas pequenas diferenças No que se relaciona à quantidade de horas No que se relaciona à quantidade de horas trabalhadas e à
quantidade de horas positivas em relação ao trabalho trabalhadas e à qualidade trabalho, qualidade trabalho, existência de muitas diferenças
trabalhadas e a qualidade do heterogestionário. existência de muitas diferenças positivas positivas entre o trabalho na OTA se comparado com o
trabalho, inexistir diferença entre o trabalho na OTA se comparado com trabalho heterogestionário Superação da condição
entre o trabalho na OTA se As dificuldades e contradições o trabalho heterogestionário Fortes indícios parcelizada, fragmentada e inferiorizada dos
comparado com o trabalho próprias da autogestão impedem os para a superação da condição parcelizada, trabalhadores no interior do processo produtivo e redução
heterogestionário avanços objetivos. fragmentada e inferiorizada dos de carga horária de trabalho, com respeito aos descansos
trabalhadores no interior do processo remunerados e atividades familiares de lazer e integração
produtivo e redução/adequação da carga comunitária.
horária de trabalho, com respeito aos
descansos remunerados.

15 Inexistência de canais de Existência de canais mínimos para o Existência e regularidade de alguns canais Existência e regularidade de múltiplos canais de
informação e comunicação funcionamento da OTA ou exigidos comunicação para a circulação interna de comunicação para a circulação interna de informação
para a circulação interna de no estatuto/regimento, como a informação sobre a gestão da OTA. sobre a gestão da OTA como boletins, panfletos, jornal,
informação sobre a gestão da publicação de editais de assembleias mural, revista, blogs em redes sociais, programas de rádio
OTA. nos jornais locais. etc.
216

Baixa ou nenhuma
16 participação (em sentido Baixa participação (em sentido Razoável participação (em sentido Elevada participação (em sentido qualitativo e
qualitativo e quantitativo) qualitativo e quantitativo) dos qualitativo e quantitativo) dos quantitativo) dos trabalhadores nos canais de participação
dos trabalhadores nos canais trabalhadores nos canais de trabalhadores nos canais de participação e e deliberação anteriormente citados (físicos e virtuais).
de participação e deliberação participação e deliberação deliberação anteriormente citados.
anteriormente citados. Participação nas decisões previamente elencadas pela
anteriormente citados. Participação nas decisões previamente coordenação e destacado protagonismo dos trabalhadores.
Participação de baixa intensidade, elencadas pela coordenação e Disputas internas e incidência de conflitos.
limitada às decisões previamente protagonismo dos trabalhadores. Disputas
elencadas pela coordenação. Poucas internas e incidência de conflitos.
disputas internas e incidência de
conflitos.
17
Inexistência de oferta de Já ter ofertado atividades internas de Ofertar atividades internas de formação Ofertar atividades internas e participar de atividades
atividades internas de formação técnica e/ou gestão técnica e/ou gestão associada com alguma externas de formação técnica e/ou gestão associada
formação técnica e/ou gestão associada regularidade constantemente. Participar na organização de atividades
associada externas com outras OTAs e movimentos sociais.

Socialmente Aceitável Socialmente Padrão


inaceitável necessário idealizado

18
Inexistência da expressão Existir alguma expressão, mas sem Possuir várias expressões, mas sem Existência da expressão autogestão ou expressão análoga
integração socioprodutiva ampliada.

movimentos sociais e outras OTAs.


autogestionária e tendências para a

formação continuada, mobilização

Autogestão ou expressão qualquer definição significância conceitual ou exemplificativa com definição conceitual e capacidade exemplificativa.
Integração sociopolítica com a
Autogestão societal ampliada:

Meios/canais de informação e

política, agitprop (agitação e

na qual a OTA está inserida.

análoga nos
propaganda). Relação com
elementos de socialização

instrumentos/canais de
comunicação
comunidade

19
Ausência de registro de Registro mínimo do histórico da OTA Registro com detalhes da história da OTA; Registro detalhado da história da OTA; quando iniciou
informações sobre o ano de fundação e alguns momentos suas atividades econômicas e mobilizações políticas para
histórico da OTA. Não haver relevantes a sua constituição.
qualquer registro do início
das atividades econômicas e Registro de momentos de crise que a OTA vivenciou.
a mobilização que resultou Celebração das datas importantes para a OTA.
na constituição do
empreendimento
217

20
Inexistência de registro de Registro mínimo de outras Registro de experiências associativas com Registro de experiências similares e outras experiências
outras OTAs ou experiências experiências, mas sem capacidade as quais a sua OTA mantém relação. diversas. Solidariedade às dificuldades que estas também
associativas similares descritiva atravessam. Já ter realizado vivência/visitas a outros
Realização de algumas vivência/visitas a empreendimentos autogestionários. Compreensão
outros empreendimentos autogestionários manifesta da importância de contribuir na luta de outras
OTAs, tanto na criação como no apoio.
21
Nunca ofertar atividades Já ter ofertado atividades internas de Ofertar atividades internas de formação Organizar atividades internas e participar na organização
internas e externas de formação política/mobilização política/ mobilização com alguma de atividades externas de formação política/mobilização
formação regularidade com temas políticos atuais e relevantes.
política/mobilização
Integração com a comunidade na qual a OTA está
inserida, com movimentos populares, organizações
sociais, partidos políticos, sindicatos e com as famílias
dos trabalhadores.
Existência de setor e/ou instituição específica vinculada à
OTA.

22
Carência de espaço próprio Existência de espaço adaptado para Espaço próprio ou adaptado para leitura e Existência de biblioteca e de gráfica própria para
ou adaptado para leitura e leitura e aprendizagem ou de parceria aprendizagem ou de parceria com produção de conhecimento. Circulação de publicações
aprendizagem ou de parceria com instituições para tal finalidade. instituições para tal finalidade. Inexistência impressas com alcance interno e externo: panfleto, jornal,
com instituições para tal Inexistência de gráfica ou similar de gráfica ou similar para a produção de mural, revista, livro, zines, quadrinhos etc. Integração das
finalidade. Inexistência de para a produção de conhecimento. conhecimento. atividades com a comunidade na qual a OTA está inserida
gráfica ou similar para a e com as famílias dos trabalhadores.
produção de conhecimento.

23
Nenhum indício de prática Indícios pontuais e/ou pretéritos de Razoável desenvolvimento de práticas Prática e envolvimento com artes plásticas: pichações,
artístico-cultual - artes prática artístico-cultual - artes artísticas: artes plásticas e/ou grafitagem, muralismo, painelismo, faixas, cartazes,
plásticas, teatro, música ou plásticas, teatro ou música. práticas teatrais e/ou música e poesia. fotografia, estêncil etc.
poesia. Alguma Integração das atividades com a Práticas teatrais: teatro jornal, teatro fórum, teatro
comunidade na qual a OTA está inserida e invisível, teatro procissão, teatro de rua, festivais e
com as famílias dos trabalhadores. mostras. Música e poesia: corais, saraus, festivais,
apresentações de rua ou em rádios etc.
Integração das atividades com a comunidade na qual a
OTA está inserida e com as famílias dos trabalhadores.
218

24
Inexistência de material de Existência de algum material de Existência e diversidade de material de Produção/confecção própria e/ou terceirizada de
indumentária/ vestimenta da indumentária/ vestimenta da OTA. indumentária/ vestimenta da OTA. materiais de indumentária/vestimenta da OTA em
OTA Pouca produção e pouca utilização abundância: bonés, camisetas, bandeiras, broches etc.
por parte dos trabalhadores. Razoável produção e utilização por parte Integração das atividades de produção com a comunidade
dos trabalhadores. na qual a OTA está inserida e com as famílias dos
trabalhadores.
25 Nenhuma utilização de Utilização pontual de meios de Utilização de alguns meios de Utilização de múltiplos meios de comunicação de massa
meios de comunicação de comunicação de massa. Pouco ou comunicação de massa com alguma com protagonismo dos trabalhadores no processo
massa nenhum protagonismo dos participação dos trabalhadores no processo criativo: programa ou participação em programas de
trabalhadores no processo criativo ou criativo. rádio, televisão e/ou internet, cinema, jornal, blog e
terceirização da edição páginas nas redes sociais.
Integração das atividades com a comunidade na qual a
OTA está inserida e com as famílias dos trabalhadores.
26 Inexistência de qualquer Já ter havido alguma relação pontual Existir frequente relação da OTA com Existência de relações políticas orgânicas da OTA com
relação política da OTA com da OTA com outras OTAs. outros movimentos sociais, entidades de outras OTAs, movimentos sociais, entidades de apoio,
outras OTAs, movimentos apoio, outros coletivos e/ou autônoma com redes, outros coletivos e/ou autônoma com o Estado.
sociais e populares, entidades o Estado. Relações pontuais ou Identificação de responsáveis na OTA ou de setor
de apoio, sindicatos, partidos desarticuladas, inexistência de específico com tal finalidade. Ciência da existência de
políticos, outros coletivos trabalhadores/as responsável pela tarefa na adversários e aliados da OTA. Demonstração de
e/ou Estado. OTA ou setor específico. solidariedade com as lutas de trabalhadores contra a
exploração onde quer que ocorram, seja em nível local,
nacional ou internacional. Participação em ações de
massa - ações diretas, práticas de mobilização,
manifestações e passeatas, ocupações de espaços
públicos.
27 Inexistir qualquer relação Existir algumas relações comerciais Existência de algumas relações econômicas Existência de relações econômicas da OTA com outras
econômica da OTA com pontuais da OTA com outras OTAs, da OTA com outras OTAs, movimentos OTAs, movimentos sociais, redes, entidades de apoio,
outras OTAs, movimentos sociais, entidades de apoio, outros outros coletivos, Estado. Identificação de responsáveis na
sociais, entidades de apoio, coletivos, Estado. Relações pontuais ou OTA ou de setor específico com tal finalidade.
outros coletivos, Estado. desarticuladas. Demonstração de solidariedade e compreensão da
importância de contribuir na luta e sustentabilidade de
outras OTAs, tanto na criação como no apoio. Fomento
de atividades com encontros e vivência/troca de saberes
com experiências similares.
28 Não haver qualquer menção Haver alguma menção ao programa Haver menção detalhada ao programa ou Registro detalhado do programa ou demandas do
ao programa ou às demandas ou às demandas do movimento social às demandas do movimento social movimento social referência da OTA com demonstração
do movimento social referência da OTA nos canais referência da OTA nos canais permanentes explícita de transversalidade de pautas da OTA com
referência da OTA nos canais permanentes de informação. de informação. outras pautas ou lutas sociais do movimento referência ou
permanentes de informação. de outros movimentos (ex. questão de gênero e lgbt, luta
pela moradia, cooperativas populares de coleta/
seleção/reciclagem de resíduos sólidos, agroecologia,
reforma agrária e urbana etc.
219

29 Incapacidade de escoamento Escoamento da produção para um Escoamento da produção para vários Eficiência plena de canais de escoamento da produção
da produção único cliente ou agente. Por clientes e/ou agentes. Construção, ainda por fora do mercado capitalista/formal. Por intermédio de
deliberação ou por razões transitórias. que em fase inicial, de canais de mediações avançadas entre o intercâmbio meramente
escoamento da produção por fora do mercantil para uma renda de natureza sistêmica
mercado capitalista/formal. (produção, circulação, crédito, consumo e investimento).
Integração da produção com sistemas de compra direta
governamental (PNAE, PAA etc.), feiras
agroecológicas/solidárias, cooperativas de consumo,
Grupos de Consumo Responsável, sistemas CSA
(Comunidade que Sustenta a Agricultura), Sistema
Orgânico do Trabalho etc
30 Não haver qualquer registro Registro de aspectos pontuais, Registro de aspectos mistos, tanto Registro de variados aspectos para desenvolvimento da
sobre planejamento ou exclusivamente financeiros financeiros como políticos. Consciência OTA. Importância da simetria entre aspectos financeiros,
táticas para superação das coletiva sobre as contradições limitações de gestão, participação, cooperação interna e externa,
dificuldades e existentes no processo autogestionário. autogestão ampliada, acesso à crédito e intercooperação
aprimoramento da OTA. econômica e política com outros empreendimentos e
movimentos sociais e populares.
31 Isolamento ou não- Isolamento socioprodutivo da OTA Compartilhamento de estruturas territoriais Compartilhamento de espaços, recursos produtivos,
integração socioprodutiva da com singelos sinais de ampliação da e sinais de confluência com outros projetos economias de rede, serviços, crédito
OTA. cadeia produtiva e ralação com outras sociais estratégicos, tanto de produção solidário/intercooperativo, bens e objetos com outras
OTAs. como de reprodução social. OTAs, redes de OTAs, movimentos sociais e populares.

32 Inexistência de integração Já ter ocorrido alguma (s) Desenvolvimento permanente de alguma Desenvolvimento permanente de atividades de integração
sociopolítica com as famílias atividade(s) de integração atividade pontual de integração sociopolítica com as famílias dos trabalhadores e a
dos trabalhadores e a sociopolítica da OTA com as famílias sociopolítica com as famílias dos comunidade na qual a OTA está inserida, além de
comunidade na qual a OTA dos trabalhadores e a comunidade na trabalhadores e a comunidade na qual a relacionamento com outras instituições como associação
está inserida qual a OTA está inserida OTA está inserida. de moradores, coletivos artístico-culturais, cursos EJA,
escolas/universidades, movimentos populares etc.
220

ANEXO D – Quadro 3 – Indicadores e variáveis comportamentais para tabulação

Muito fraca Fraca Moderada Forte

1
Não ter qualquer compreensão Ter alguma noção Possuir alguma compreensão limitada à Ter uma noção apurada do que possa ser a autogestão no
sobre a autogestão, gestão financeira da OTA, com interior da OTA, com precisão de detalhes e capacidade
(autodeterminação, controle dos limitações exemplificativas exemplificativa
trabalhadores) na sua OTA
Autogestão interna: organicidade, cooperação, autonomia, participação,

2
Não perceber a existência de Notar que elas existem, mas pensar que Perceber que elas existem. Mas espera Reconhecer e valorizar a diferença de opiniões. Discordar
opiniões não são relevantes ou são pouco que todos tenham o mesmo sempre que necessário. Diferenças são indispensáveis ao
importantes. pensamento. Conflitos existem, mas grupo, são saudáveis
Evitar discordância com os colegas. polêmicas devem ser evitadas. Conflitos
Perceber a divergência como negativa ao são prejudiciais ao coletivo. Só
disciplina, confiança e liberdade

grupo discordar dos colegas quando é


inevitável

3
Não ter compreensão sobre o Esperar uma colaboração como “ajuda Trocar experiências e informações com Trocar experiências e informações constantemente com
que é colaboração/cooperação mútua”, soma de esforços em situações outros trabalhadores sempre que outros trabalhadores sempre que possível. Ter interesse e
interna pessoais pontuais necessário em situações pessoais e esforçar-se para compreender e aprender a tarefa dos
profissionais colegas

4
Não participar das decisões Estar presente nos espaços onde decisões Tomar posição somente quando Tomar posição, expor sua opinião, sua visão sobre as
são tomadas, mas não tomar posição questionado coisas.

5
Não conhecer os canais de Conhecer os canais de participação e Conhecer e participar por obrigação dos Conhecer, participar e reconhecer a importância de todos os
participação e tomada de tomadas de decisões mas não participar canais de participação e tomada de canais de participação e tomada de decisões
decisões destas decisões

6
Não ter conhecimento do que Ficar a par de alguns acontecimentos da Ficar a par de tudo que ocorre na OTA. Conhecer as funções na OTA, ficar a par e fazer circular as
acontece na OTA. Não receber OTA. Conhecer parte das funções na Conhecer toda ou boa parte das funções informações, ou seja, assimilá-las, produzi-las e repassá-las.
informações. OTA. na OTA.
221

7
Não adotar posicionamentos na Assumir posicionamentos individuais, Só rever opiniões quando não perde Estar disposto e rever posicionamentos e assumir novas
OTA rígidos, poucos flexíveis nada visões quando for fruto de posicionamento do coletivo

8
Nunca participar de atividades Já ter participado de atividades internas de Participar sempre de atividades internas Participar sempre de atividades internas e externas de
internas e externas de formação formação técnica de formação técnica formação técnica. Contribuir na organização e divulgação
técnica das atividades
9
Foi trabalhar numa OTA Foi trabalhar numa OTA motivado pela Foi trabalhar numa OTA por falta de Foi trabalhar numa OTA por falta de opção ou por escolha.
motivado pela falta de opção – falta de opção – vê algumas vantagens opção ou por escolha – apesar das Percebe vantagens diretas ou no processo autogestionário.
não vê vantagem pessoal alguma pessoais diretas ou no processo dificuldades, vê vantagem direta ou no Não trocaria por um trabalho autônomo ou assalariado,
direta ou no processo autogestionário em médio/longo prazo. Se processo autogestionário. Se pudesse salvo por imposição da realidade. Não se enxerga
autogestionário em médio/longo pudesse trocaria por um trabalho trocaria por um trabalho autônomo ou trabalhando autonomamente ou de forma assalariada.
prazo. Se pudesse trocaria por autônomo ou assalariado. assalariado, devido às dificuldades. Mas
um trabalho autônomo ou tem interesse em permanecer na OTA
assalariado.
10
Não ter ciência de como ocorre Efetuar somente o que gosta de fazer Efetuar as suas tarefas, mas sem levar Desenvolver as tarefas determinadas levando em conta as
a definição da divisão das mesmo sabendo das tarefas relativas à em consideração se elas são importantes necessidades e potencialidades da OTA. Participar e refletir
tarefas e funções função previamente determinada. Não e se são determinadas pela coletividade sobre a definição destas, que é realizada de maneira coletiva
levar em consideração se elas são
importantes e se são determinadas pela
coletividade

11
No que se relaciona à Perceber algumas consequências positivas Perceber algumas consequências Perceber variadas consequências positivas e negativas na
quantidade de horas trabalhadas e negativas na sua vida privada. Não positivas e negativas na sua vida sua vida privada e na divisão social do trabalho. Ter ciência
e à qualidade do seu trabalho, acreditar que a autogestão possa privada. Ter ciência sobre as sobre as dificuldades e contradições da autogestão. Pensar
não perceber diferença entre o funcionar. dificuldades e contradições da que ela é um processo constante que pode trazer mais
trabalho que desempenha na autogestão. autonomia e emancipação aos trabalhadores.
OTA e o trabalho
heterogestionário

12
Não ter ciência de como ocorre Saber como ocorre a definição da carga Saber como ocorre a definição da carga Cumprir o horário de trabalho acordado para favorecer o
a definição da carga horária de horária, mas não perceber a importância horária, mas não perceber a importância processo de produção. Participar da definição da carga
trabalho na fixação coletiva da carga horária de na fixação coletiva da carga horária de horária.
trabalho Cumprir o horário de trabalho trabalho Cumprir o horário de trabalho
que lhe seja mais conveniente definido coletivamente

13 Não ter ciência de como são Concordar com que alguém de dentro do Acreditar que a definição da Participar da definição da remuneração. Estipular retirada e
estipuladas a retirada e destino grupo estipule a retirada e destino das remuneração deve ser realizada de destino das sobras ou prejuízos, considerando a
das sobras (remuneração) sobras maneira coletiva. Estipular a retirada e sustentabilidade e a viabilidade da OTA.
o destino das sobras ou prejuízos que
lhe sejam mais satisfatórios.
222

14
Não perceber o que é preciso Identificar aspectos exclusivamente Identificar alguns aspectos importantes Identificar o aprimoramento de variados aspectos para
para aprimorar para o financeiros para o sucesso da OTA para o sucesso da OTA desenvolvimento da OTA. Importância da simetria entre
desenvolvimento da OTA. aspectos financeiros, de gestão, participação, cooperação
interna e externa, autogestão ampliada, acesso a crédito e
intercooperação econômica e política, integração
socioprodutiva com outros empreendimentos, movimentos
sociais e organizações.

Muito fraca Fraca Moderada Forte

15
Autogestão societal ampliada: solidariedade de classe, participação

Não ter qualquer compreensão Ter alguma noção sobre o que venha a ser Possuir alguma compreensão, com Ter compreensão sobre perspectivas ampliadas de
externa, mobilização política e relação com movimentos e outros

sobre a autogestão ampliada limitações exemplificativas autogestão tanto na esfera política como econômica -
(para além dos muros de sua compartilhamento de espaços, recursos produtivos,
OTA) economias de rede, serviços, crédito solidário, bens e
objetos com outras OTAs ou redes de OTAs. Preocupar-se
com a integração sociopolítica da OTA com as famílias dos
trabalhadores e a comunidade na qual a OTA está inserida e
com organizações populares.

16
Desconhecer totalmente o Conhecer minimamente o histórico da Conhecer com detalhes a história da sua Dominar com detalhes a história da sua OTA; quando
histórico da sua OTA. Não ter OTA OTA; ano de fundação e alguns iniciou suas atividades econômicas e mobilizações políticas
atores sociais

ciência sobre o início das momentos relevantes para a sua constituição.


atividades econômicas e a Recordar de momentos de crise que a OTA vivenciou em
mobilização que resultou na atividades de formação ou por vivência própria.
constituição do empreendimento

17
Desconhecer outras OTAs ou Saber que existem outras experiências, Conhecer experiências associativas com Conhecer experiências similares e experiências diversas.
experiências associativas mas sem capacidade descritiva as quais a sua OTA mantém relação Ter ciência das dificuldades que estas também atravessam.
similares Já ter realizado vivência/visitas a outros empreendimentos
autogestionários. Compreender a importância de contribuir
na luta de outras OTAs, tanto na criação como no apoio.

18
Nunca ter participado de Já ter participado de atividades internas de Participar sempre de atividades internas Participar sempre de atividades internas e externas de
atividades internas e externas de formação política/mobilização de formação política/ mobilização formação política/mobilização. Contribuir na organização e
formação política/mobilização divulgação das atividades
223

19
Desconhecer qualquer relação Ter ciência de algumas relações de sua Ter ciência das relações de sua OTA Ter ciência e saber descrever as relações de sua OTA com
política de sua OTA com outros OTA com outros movimentos sociais, com outros movimentos sociais, outros movimentos sociais, entidades de apoio, coletivos,
movimentos sociais, entidades entidades de apoio, coletivos, Estado. entidades de apoio, coletivos, Estado. Estado. Saber como elas são feitas, e se existe alguém
de apoio, partidos políticos, Não saber como elas são feitas, nem se responsável na OTA ou se tem setor específico. Saber
sindicatos, coletivos, Estado. existe alguém responsável na OTA ou identificar adversários e aliados com precisão. Ser solidário
se tem setor específico. com as lutas de trabalhadores contra a exploração onde quer
que ocorram, seja em nível local, nacional ou internacional.

20
Desconhecer qualquer relação Ter ciência de algumas relações Ter ciência das relações econômicas de Ter ciência e saber descrever as relações econômicas de sua
econômica de sua OTA com econômicas de sua OTA com outras sua OTA com outras OTAs, OTA com outras OTAs, movimentos sociais, entidades de
outras OTAs, movimentos OTAs, movimentos sociais, entidades de movimentos sociais, entidades de apoio, apoio, coletivos, Estado. Saber como elas são feitas, e se
sociais, entidades de apoio, apoio, coletivos, Estado. coletivos, Estado. Não saber como elas existe alguém responsável na OTA ou se tem setor
coletivos, Estado. são feitas, nem se existe alguém específico. Compreender a importância de contribuir na
responsável na OTA ou se tem setor luta de outras OTAs, tanto na criação como no apoio.
específico.

21
Não saber o que são Saber o que são movimentos ou Sabe o que são movimentos ou Saber com clareza o que são movimentos ou organizações
movimentos sociais e populares organizações sociais superficialmente mas organizações sociais mas só participa sociais. Participa de atividades organizadas por movimentos
ou organizações sociais, Nunca nunca participou de nenhuma atividade. quando a tarefa é definida pela OTA ou sociais e/ou integra organicamente um movimento social
presenciou ou participou de participa eventualmente de alguma referência da OTA ou parceiro. Ser solidário com as lutas de
atividades. atividade individualmente ou participa trabalhadores contra a exploração onde quer que ocorram,
pontualmente de alguma atividade seja em nível local, nacional ou internacional.
Pertença a algum movimento social ou rede com
participação institucional orgânica
224

Muito fraca Fraca Moderada Forte

22
Não saber o que são Saber o que são movimentos sociais e Saber o que são movimentos sociais. Saber o que são movimentos sociais. Apresentar destacada
movimentos sociais e populares populares. Apresentar razoável capacidade capacidade explicativa e exemplificativa. Compreender
ou apresentar visão hegemônica explicativa e exemplificativa. que estes são agentes de mudança, apesar das contradições
dos movimentos como sendo Sem capacidade explicativa e e dificuldades. Relacionar a atividade da OTA com a pauta
criminosos, atentam contra a exemplificativa. dos movimentos sociais.
ordem social e contrários ao
desenvolvimento do país

23
Não ter tido qualquer Alguma socialização ou percurso ativista Ter tido socialização ou percurso Socialização ou percurso militante aguçado. Ser
socialização ou percurso pontual em organização religiosa cultural, militante em organização ou movimento militante/ativista e/ou integrar organicamente um
militante ou ativista em qualquer filantrópica, assistencialista. social. Interrupção ou afastamento da movimento social ou participar com muita frequência de
organização ou movimento (s) organizações. suas atividades.
Aspectos sociopolíticos gerais

social.

24
Não ter noção alguma sobre o Ter escutado o tema, mas não saber Conhecer o tema, saber que está Compreensão destacada sobre o tema, capacidade mínima
tema da reforma agrária explicar sobre o que se trata. Apresentar relacionado com a questão da terra e de discorrer sobre situação da reforma agrária no Brasil
posicionamento hegemônico sem sua redistribuição. Dificuldade de suas peculiaridades e contradições
sustentação. apresentar posicionamento coerente a
respeito

25
Não ter noção alguma sobre o Ter escutado o tema, mas não saber Conhecer o tema, saber que está Compreensão destacada sobre o tema, capacidade mínima
tema da redução da maioridade explicar sobre o que se trata. relacionado com a questão da segurança de discorrer sobre a violência no Brasil suas peculiaridades
penal pública e redução da criminalidade. e contradições; relacionar redução da criminalidade, direito
Dificuldade de apresentar posicionamento dos menores e segurança pública.
coerente a respeito ou apresentar
posicionamento hegemônico sem
sustentação.

Questões 63 - 83
26
Não ter noção alguma sobre o Dificuldade de apresentar posicionamento Aceitar mas “não concordar” Compreensão destacada sobre o tema, capacidade mínima
tema das cotas nas universidades coerente a respeito ou apresentar de discorrer sobre as vantagens e desvantagens das cotas.
ou em outras instâncias posicionamento hegemônico sem Apresentar posicionamento favorável ou contrário desde
sustentação que fundamentado.
225

27
Não saber o que é, não ter noção Ter escutado o tema, mas não saber Aceitar mas “não concordar” Conhecer o tema, saber que está relacionado com a questão
alguma sobre o tema da união explicar sobre o que se trata. da liberdade sexual ou de orientação sexual. Saber
homoafetiva posicionar-se com alguma base argumentativa
Dificuldade de apresentar posicionamento
coerente a respeito ou apresentar
posicionamento dogmático sem
sustentação ou argumento religioso;
opinar que se trata de prática moralmente
incorreta.

28
Não saber se posicionar em Posicionar-se de maneira inequívoca em ----- Compreensão destacada sobre a questão de gênero e de
relação à maior ou menor relação à maior capacidade da como ela afeta as relações de trabalho, a dupla jornada de
capacidade da mulher/homem mulher/homem para exercer cargos de trabalho exercida pela mulher e sua ampla capacidade de
para exercer cargos de chefia, chefia, coordenação exercer cargos de chefia/coordenação
coordenação

29
Não saber o que é o capitalismo Ter escutado o tema, mas não saber Compreensão sobre o que vem a ser o Compreensão destacada sobre o que vem a ser o
explicar sobre o que se trata. capitalismo como modo de produção. capitalismo como modo de produção que organiza a
Crença na possibilidade de reforma ou produção de bens, serviços e a sua distribuição. Identificar a
de melhoramento do modo de produção relação com o trabalho associado com o Capital e a sua
capitalista relação com a questão social contemporânea

30
Não saber o que é preconceito Saber do que se trata; pensar que o Compreensão sobre o que vem a ser Compreensão sobre o que vem a ser preconceito de classe e
de raça (racismo), de gênero ou preconceito de classe e de raça (racismo) preconceito de classe e de raça de raça (racismo). Identificar e saber explicar situações
de classe social ou opinar que é questão superada no Brasil (racismo). Crer na sua superação onde ele ainda ocorre no cotidiano.
não existe parcial.

31
Não ver importância na política --- Importar-se com política. Entender a Importar-se com a política. Perceber outras dimensões para
(representativa ou não). Associar política unicamente na sua dimensão além da política representativa/partidária. Acreditar que o
a política à corrupção, sem representativa/partidária trabalho associado também contém dimensões políticas. Se
capacidade explicativa alguma. votante, ter preferência por candidatos e/ou partidos de
esquerda.

32
Obter informações de um único Obter informações de meios de Obter informações de meios de Obter informações de diversos meios de comunicação, tanto
grupo de comunicação e comunicação diversos e acreditar no que comunicação diversos. Algumas vezes convencionais como alternativos. Desconfiar no que dizem
acreditar no que ele transmite. eles transmitem. desconfiar do conteúdo transmitido os meios de comunicação de massa e da manipulação que
pode ser operada.
226

ANEXO E – Autogestômetro comportamental T 1 e T2 – OTA1


227

ANEXO F – Autogestômetro comportamental T 3 e T5 – OTA1


228

ANEXO G – Autogestômetro comportamental T 5 e T6 – OTA1


229

ANEXO H – Autogestômetro comportamental T 1 e T2 – OTA2


230

ANEXO I – Autogestômetro comportamental T 3 e T4 – OTA2


231

ANEXO J – Autogestômetro comportamental T 1 e T2 – OTA3


232

ANEXO K – Autogestômetro comportamental T 3 e T4 – OTA2


233

ANEXO L – Autogestômetro comportamental T 3 – OTA3 e T1 – OTA 4


234

ANEXO M – Autogestômetro comportamental T 2 e T3 – OTA4


235

ANEXO N – Autogestômetro comportamental T 4 e T5 – OTA4

Você também pode gostar