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SUMÁRIO

Despertar para o feminismo numa organização mista..................................5

A construção do feminismo no campo popular: história de luta e


transformação..................................................................................................12

Feminismo Camponês Popular: contribuições para o debate....................39

Nosso caminhar: balanços e apontamentos da construção do feminismo


popular no Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos
(MTD).................................................................................................................47

Feminismo popular e trabalho territorial - a experiência do Núcleo


Soledad Barrett na região metropolitana do Recife, Pernambuco.............58

A Mulher Polvo.................................................................................................65

2
Saudações companheiras e companheiros!

Esse que vocês têm em mãos é um caderno de debates que reúne escritas
sobre temas de interesse do feminismo popular, nos marcos da construção da
nossa Assembleia Luiz Gama. É o resultado da produção de companheiras da
Consulta Popular Um Passo a Frente que atenderam ao convite do setor
nacional provisório de mulheres para elaborar textos que subsidiarão nossas
reflexões no Seminário Nacional de Mulheres Paula Oliveira Adissi, que
acontecerá dia 22 de fevereiro 2022.

O Seminário tem como objetivo identificar a partir da nossa prática, ou seja,


das diversas construções do feminismo que já fazemos como mulheres da
Consulta Popular – um passo à frente, os elementos de desafios e
potencialidades para ampliar a organização das mulheres.

Partimos do pressuposto que é muito importante que as mulheres escrevam


também no caderno de debates geral do partido, mas frisamos a importância
de pensarmos especificamente sobre nossos passos na construção do
feminismo popular. Nesse sentido, a construção deste caderno buscou colher
depoimentos da nossa práxis na construção do feminismo popular, por meio de
algumas perguntas geradoras:

a) O que e como temos feito nosso trabalho com o feminismo?

b) Nosso feminismo se constrói em movimento auto-organizado e com


auto-organização das mulheres nos movimentos mistos, quanto ao
gênero das pessoas que participam;

c) O que pensamos sobre: patriarcado; divisão sexual e racial do trabalho;


economia solidária; economia feminista; acesso ao emprego e renda e a
vida das mulheres; solidariedade e a vida das mulheres negras nas
periferias do Brasil; reforma agrária e reforma urbana e a vida das
mulheres; comunicação e a vida das mulheres; gênero e sexualidade; a
luta pela descriminalização do aborto; conjuntura do movimento de
mulheres; massificação da organização das mulheres; impacto dessas
elaborações na organização que queremos e precisamos ser; entre
outros temas que tenhamos acúmulo individual ou coletivo e possamos
contribuir com a elaboração do nosso feminismo popular e os próximos
passos da nossa organização.

Aqui vocês encontrarão textos em diversas linguagens: ensaio, artigo, carta,


poesia etc. que em seu conjunto proporcionam um retrato de trajetórias do
3
feminismo popular na prática da nossa luta que será objeto de reflexão para
avançarmos na organização que precisamos ser.

Boa Leitura!
Rumo ao Seminário Paulo Oliveira Adissi!
Rumo à Assembleia Luiz Gama!

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Despertar para o feminismo
numa organização mista

Olívia Carolino

5
Esse é o texto que eu mais me animo em escrever no processo de dar um
Passo juntas e, ao mesmo tempo, é o que escrevo mais na correria. A
generosidade do setor nacional provisório de mulheres convida as
companheiras da organização a registrar sua relação individual e/ou coletiva
com o feminismo popular. Aqui faço um breve depoimento de uma militante que
despertou para o feminismo popular na trajetória de uma organização mista.

Se fecho os olhos, lembro do primeiro contato numa roda de conversa em


algum momento fora da programação da III Assembleia Apolônio de Carvalho,
2007 em MG. Retenho alguns fleches da primeira reunião que organizei em
São Paulo no retorno da assembleia, acho que já era 2008. A reunião foi em
casa, assistimos “Acorda Raimundo, acorda” e fizemos um debate se na
Consulta Popular seria mais conveniente organizar setor de gênero ou de
mulheres. Eu era simpática à primeira opção, pela vivência no MST e pela
concepção de que um setor de gênero seria mais favorável à reeducação de
homens e mulheres juntos.

Não tardou o meu convencimento da auto-


organização. Em 2011, quando assumimos o
compromisso com feminismo popular na nossa
estratégia, eu já estava totalmente convencida.
Tenho memorias muito importantes III Encontro
de Mulheres da Consulta Popular, Pagu,
preparatório da IV Assembleia Carlos Marighella
em que firmamos o nosso compromisso entre as
mulheres para depois sensibilizar ou convencer o
todo da organização.

Foi nesse ano de 2011 que ingressei na Direção Nacional pela tarefa da
formação sindical. Lá vão dez anos que me ressinto de, entre tantas tarefas na
direção, não ter conseguido priorizar o setor de mulheres. Durante um tempo
eu achava que a maneira de contribuir com feminismo que vínhamos
construindo era me desafiando a assumir tarefas de elaboração, formação que
são muitas vezes hegemonizadas por companheiros. Era minha mística
quando tinha que fazer um espaço de conjuntura ser apoiada pelas
companheiras e me sentir acompanhada por todas quando o microfone vinha
parar na minha mão.

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Talvez a inflexão na minha relação com feminismo popular
tenha se dado quando minha filha mais velha, Luísa, nasceu.
Definitivamente a sociedade em que a gente vive nos convoca
à vida privada dos cuidados e nos avisa que o espaço público
da política não é pra gente.

Seguir na militância é uma luta de todos os dias. Luísa com


três meses eu no puerpério topei uma mesa sobre a crise do
capitalismo que aconteceu com a bebezinha mamando o
tempo todo no peito.

Agora na segunda filha, Aurora, essa convicção dobrou, mas


eu aprendi os tempos de fazer as pausas.

Os compromissos do Projeto Popular para o Brasil: democracia,


desenvolvimento, soberania, sustentabilidade e solidariedade são pilares que
assumimos ao nos filiar ao leito histórico revolucionário latino-americano, que
demonstrou nos processos de lutas por libertação nacional o lugar das tarefas
democráticas e populares na transição socialista. O Feminismo Popular é a
elaboração mais original. É a contribuição propriamente do nosso tempo ao
pensamento crítico ou ao marxismo latino-americano. E ao assumir o sexto
compromisso resgatamos o protagonismo das mulheres nessas e, em outras,
experiências revolucionárias para reivindicá-lo como nosso. O passo de
assumir o compromisso com a igualdade étnico racial na Assembleia Luiz
Gama é um grande desafio que nos colocamos coletivamente nessa linha da
originalidade, do pensar com cabeça própria e nos conectar com questões
radicais da constituição do povo brasileiro como a estrutura patriarcal e o
racismo.

Compreender o embricamento entre classe, gênero e raça é uma contribuição


do feminismo popular para a leitura de Formação Social e Econômica do Brasil
no Campo Político, o que se traduz concretamente na incorporação da leitura
de Saffioti no Curso Realidade Brasileira, na linha de publicação na Editora
Expressão Popular.

7
Sem dúvida o Feminismo foi o tema que
mais aprendi na militância com muita
admiração às companheiras que estavam
à frente na elaboração por virem ou por se
constituírem como militantes no
movimento auto-organizado.

Não só na teoria o Feminismo Popular


abriu minha cabeça, mas na prática, por
meio da experiência de construção do 8 de
março em São Paulo que, sem dúvida, é
um espaço de muito aprendizado com
relação a articulação política e nossa
postura de construtora da unidade.

Em algum momento me indignei com um suposto "termômetro de feminismo”


na organização. Tinha a impressão que era uma espécie de reflexo de
diferentes concepções de feminismo e desconfiei de frentes de massa auto
organizadas. Prevaleceu uma dimensão individual: eu enfiada em “tarefas de
homem” no sindical, na elaboração, na formação nunca seria uma feminista na
minha organização.

Mas antes que essa impressão torta se tornasse uma ideia concebida, o
feminismo na Consulta fez algo que considero incrível: reivindicou como
feminismo popular todas as lutas do Campo Político protagonizada por
mulheres.

A ocupação de 2006 que bateu de frente


com agronegócio: é feminismo popular!
Marchas, trabalho popular nos bairros, as
mulheres em movimento e por ai vai …
Pronto! Eu estava totalmente identificada
com feminismo popular e com a convicção
de que esse feminismo é revolucionário.

E para dentro da organização que eu acreditava ser revolucionária? Como


ficava o feminismo? Para dentro da organização o Feminismo Popular me

8
colocou diante da contradição de casos de violência e machismo. Nos casos
em que tive a tarefa de acompanhar pela nacional tive duas professoras que
faço questão de nomear: Paula Adisse e Bernadete Esperança.

As tarefas internacionalistas também foram muito importantes para meu


aprendizado e devo muito, às companheiras argentinas pelas charlas e
também por processos de mobilização massiva. Assim como às cubanas, a
Federação de Mulheres Cubanas é um processo que pude acompanhar de
perto por alguns anos.

Atualmente no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social,


onde eu trabalho, tem uma linha de pesquisa sobre Feminismo
que lançou materiais muito interessantes dos quais destaco
dois: Estudos feministas 01 “Mulheres de luta, mulheres em
luta” (março 2019) que da voz à luta das mulheres nos três
continentes, trazendo um retrato da luta das mulheres na
África, Asia e América (https://thetricontinental.org/pt-
pt/estudos-feminismos-1/) ; E o Corona Choque e o
Patriarcado, um estudo de folego sobre o impacto da crise
com pandemia na vida das mulheres
(https://thetricontinental.org/pt-pt/estudos-4-coronachoque-e-
patriarcado/). Recomendo muito a leitura do que estamos
produzindo.

Por essa trajetória militante tenho muita referência do feminismo dos


movimentos populares notadamente do MST e MMC. Desde 2016 acompanho
a iniciativa do Projeto Brasil Popular e não queria deixar de citar porque é um
processo que tenho aprendido bastante principalmente com a companheira
Nalu Faria da MMM que coordena o que foi o GT de mulheres e faz parte da
coordenação política.

Os estudos sobre feminismo têm se desenvolvido com grande intensidade. A


contribuição de Saffioti (2014) ao mostrar que características de sexo e raça,
se tornam mecanismos que funcionam em desvantagem no processo
competitivo e atuam de forma conveniente para a conservação de estruturas de
classes transformando-os nos grupos mais vulneráveis social e
economicamente assume ainda mais importância na crise estrutural que
estamos vivendo. Quanto mais acessamos os estudos de Federici (2018)
temos elementos para compreender que o patriarcado e racismo consolidam
hierarquias de poder que se perpetuam e se intensificam em cada nova rodada
de acumulação. Assim como Fraser (2016) que mostra como a crise dos
cuidados se instala no debate político diante do desmonte da sociedade
9
fordista. E para aterrizar na periferia do Capital, Gouvêa e Mastropaolo (2019)
desenvolvem a linha de que cada vez mais é impossível negar que tanto o
racismo como o patriarcado fundamentam as estruturas deste modo de
produção. Só para fazer alguns registros de autoras que tenho tentado
acompanhar.

Não só na teoria, mas na práxis, a participação das mulheres na cena política


teve um marco importante no período recente, desde o “Fora Cunha”, no golpe,
no “Ele Não”. Não só na cena, mas o que de mais perene existe nos bastidores
da política, na vida real do trabalho popular o protagonismo das mulheres é
marcante.

Sem dúvida foram mulheres que protagonizaram a política de solidariedade,


estiveram na linha de frente dos Agentes Populares, na linha do povo cuidando
da vida do povo diante da fome, da violência e do vírus. Esse “sem dúvida” é
baseado em pesquisas! Acho que das coisas mais interessantes que participei
foi o processo de pesquisa que o tricontinental estruturou com o Periferia Viva
para investigar “o que tem na mochila do militante da política de solidariedade”
e que se desdobrou no Curso Trabalho de Base é Educação Popular. A escuta
atenta e sistematização de um processo de trabalho popular nas periferias
deixa bem claro o papel das mulheres na engenharia da sobrevivência e na
utopia semeada pela luta popular. Além de ser um processo condizido por três
comandantas: Eliane, Thays e Kelly. Talvez por isso não bombe tanto nas
experiencias mais propagandeadas no Campo Político. Já essa constatação
não tem base cientifica! É só impressão. Fica o convite para todas conhecerem
os Cadernos de Educação Popular publicados em parceria com ENFF e FRL.

Já vou chegando na página quatro ou cinco desse relato pessoal. Sem


nenhuma pretensão de fazer um balanço do feminismo na Consulta Popular eu
gostaria de registrar uma autocrítica sobre a condução política no processo das
mulheres na gestão da DN 2011 - 2017 e notadamente no processo de
preparação da Assembleia Zilda Xavier. Foi um processo de irreparáveis
perdas, em que muitas companheiras se afastaram e todas nós saímos
quebradas. Ousamos vislumbrar uma Frente Popular de Mulheres como
ferramenta organizativa sob a qual pudesse acolher iniciativas diversas de
organização, luta, formação com mulheres do campo e da cidade. Sem ousadia
não se faz política, mas a solução organizativa sem equacionar as questões
políticas e conjunturais se mostrou inviável. Esse é um aprendizado que as
mulheres podem e devem contribuir ativamente para a reorganização,
refundação ou fundação da organização que está prestes a nascer nesse
março de 2022. Primeiro, porque colocamos a política no centro de comando e
diante dos desafios da luta de classes, conseguimos nos olhar nos olhos e
militar juntas depois de passar por um processo de cisão; Segundo, porque
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minha experiência militante me convenceu que entre as mulheres prevalece a
lógica da colaboração e não da competição (que caracteriza tanto a luta
política). Terceiro, porque não há centralidade na construção de força social
urbana sem levar em conta as dimensões estruturais do patriarcado e do
racismo. Quarto, a reorganização do setor nacional provisório de mulheres está
dando um exemplo pedagógico de que se pode sair de uma experiência de
organização que fracassou em seu modelo organizativo e criar condições para
a efetiva democracia interna que favoreça a diversidade no debate e o olhar
generoso sobre as práticas que fazem concretamente nossa luta avançar.
Correndo o risco de ser panfletária, termino dizendo que eu realmente acho
que as mulheres colocam os problemas da vida do povo acima de qualquer
construção política e por isso somos a potência criativa do projeto popular.

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A construção do feminismo no
campo popular: história de luta e
transformação

Michela Calaça1
Noeli Welter Taborda2
Josimara Farias Neves³

1Militante do núcleo garrancho de Mossoró-RN e do Movimento de Mulheres Camponesas;


2 Militante CP: um passo à frente – SC e do Movimento de Mulheres Camponesas;
3 Militante do núcleo 23 de novembro de Natal-RN e Levante Popular da Juventude
12
Nosso objetivo é apresentar uma parte da nossa trajetória na construção do
feminismo popular, e para isso é necessário deixar um pouco mais preciso a
ideia de feminismo popular, para fugirmos da lógica que somos as primeiras ou
as únicas que construímos uma perspectiva popular no feminismo, mas ao
mesmo tempo trazer a particularidade das nossas construções.

Logo no início faremos uma apresentação sobre os usos do termo popular já


existentes no âmbito do feminismo e depois apresentamos o que aqui no Brasil
entendemos que seria o feminismo popular que no nosso campo político é
composto por movimentos de mulheres, como também pela auto-organização
de mulheres em movimentos mistos. Na nossa compreensão também é parte
dessa construção o Feminismo Camponês Popular que temos construído na
Via Campesina especialmente na América Latina e Caribe.

O uso desse conceito

A primeira menção à noção de Feminismo Popular que encontramos na história


do feminismo é nos Estados Unidos da América, no início de 1971, em uma
revista comercial chamada de Ms., uma revista tipicamente ligada ao
feminismo liberal. A Revista se propunha a “popularizar o feminismo” e a fazer
uma divulgação em massa do feminismo, por isso, Amy Erdman Farrell (2004) 4
a trata, em sua pesquisa, como a promessa do feminismo popular. Nesse
sentido, o termo Popular é usado no sentido de alcance de público, uma lógica
de massificação das ideias da revista. De fato, essa foi uma revista com
bastante alcance, tendo chegado a marca de 3 milhões de leitoras, com
tiragens de 400 a 500 mil exemplares, entre os anos 1970 e 1980. Para Farrell
(2004), a Ms. foi uma revista que realizava uma junção do feminismo com o
capitalismo. Não é nessa lógica numérica e liberal que pensamos o feminismo
popular, mas é importante saber que o uso não se dá apenas no campo das
esquerdas.

Nas esquerdas, também é possível encontrar usos do termo feminismo popular


para nomear práticas feministas, mesmo que elas sejam bastante diferentes
entre si. No México, o encontro das feministas com as mulheres da classe
trabalhadora e a teologia da libertação, a partir do enfrentamento às demandas
geradas pela crise econômica de 1982 e o terremoto de 1985, gerou um
processo de organização das mulheres nas periferias que também foi chamado
de Feminismo Popular (TIITINEN, 2011)3. Esse, pelo que expõe Sarri Tiitinen
(2011), muito próximo do que construímos no Brasil.

3 TIITINEN, Sarri Vuorisalo. ¿Feminismo indígena? Un análisis crítico del discurso sobre los
textos de la mujer en el movimiento zapatista 1994–2009. 2011. 310f. Trabalho de conclusão
de curso (Doutorado) - Latin American Studies, Department of World Cultures, University of
Helsinki – Helsinki, 2011.
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O feminismo popular e o campo democrático popular

O Feminismo Popular no Brasil descende do processo de redemocratização


pós golpe de 1964. O mesmo processo que deu origem ao PT (1980), às
organizações de mulheres camponesas pelos estados brasileiros (a partir de
1982), à CUT (1983) e ao MST (1984), entre outras organizações que se
construíram na resistência à ditadura e no processo de reorganização da
esquerda que caracterizou esse período. De certa forma, também é possível
dizer que nós da Consulta Popular também somos fruto desse período, afinal
nascemos de um processo de crítica de militantes do PT, ao partido que
deixava de ser visto como instrumento político com perspectiva revolucionária e
militantes do MST, que juntou a chamada esquerda social para construir um
movimento com uma perspectiva revolucionária, a partir da construção de um
projeto popular para o Brasil.

A derrota que a esquerda sofreu com o golpe empresarial-militar de 1964


promoveu um processo de cerco e aniquilamento, tanto físico, representado
pelas prisões, torturas e assassinatos, quando ideológico, devido às várias
derrotas vivenciadas pela classe trabalhadora da América Latina. Esse
processo levou a esquerda, de forma geral, a um profundo balanço crítico4 das
orientações teórico-políticas das organizações de esquerda até o período do
golpe.

No Brasil, a esquerda, de então, era, majoritariamente, orientada sob o


pensamento da construção da revolução por etapas (PCB), sendo essa leitura
superada, serão propostas saídas à direita e à esquerda. Essa derrota no país
e no continente soma-se ao processo de balanço que já estava dividindo a
esquerda brasileira desde 1956, iniciado com o polêmico “Relatório Nikita
Khrushchov” no XX Congresso do Partido Comunista da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas.

As organizações de esquerda no Brasil, além de serem postas na


clandestinidade, sofreram inúmeras perdas de militantes, vivenciaram nesse
período, anos de luta para se manter vivas, tanto as pessoas, quanto as
organizações. Fora do país, as e os intelectuais de esquerda estavam
debatendo os rumos para a reconstrução de um projeto de país e buscando se
manter ligados aos trabalhadores no âmbito nacional. No final dos anos 1970,
começa um novo processo de organização da classe trabalhadora brasileira, a
partir da organização dos metalúrgicos em São Paulo, e no campo, nas

4 Crítico aqui não significa que o balanço está certo, nem que o que veio depois foi melhor ou
pior.
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florestas e nas águas, a teologia da libertação faz o trabalho de formiguinha 5 de
ir ajudando o povo a perceber que é preciso construir o céu também na terra.
São esses dois processos, a atuação dos militantes no exílio e na
reorganização da esquerda dentro do país que, de forma mais visível,
construíram o campo político conhecido como o Campo Democrático Popular.
É possível dizer que é entre o exílio, as greves do ABC e as primeiras
ocupações de terra que o Projeto Democrático Popular se construiu.

A estratégia democrático-popular tem múltiplas referências teóricas, desde os


clássicos do marxismo, como Marx, Lenin, Trotsky, passando pela Teologia da
Libertação, por teóricos do chamado eurocomunismo, nos quais o tema da
democracia vai ganhando centralidade, no Brasil, grande referência nesse
debate é Carlos Nelson Coutinho, com seu texto de 1979, A democracia como
valor universal (1979). Essa estratégia não abandona os6 grandes pensadores
nacionais como Florestan Fernandes e sua dialética de revolução dentro e fora
da ordem; Rui Mauro Marini para debater a dependência; Darcy Ribeiro, para
pensar o povo Brasileiro, através de novas sínteses para responder um dilema
velho, conhecido das esquerdas: o dilema da reforma ou revolução. Lélia
Gonzalez, Florestan Fernandes, Elizabete Souza-Lobo, Octavio Ianni, Plinio de
Arruda Sampaio, Betânia Àvila, entre outras e outros são construtores desse
momento de transição. É importante esse destaque no sentido de percebermos
que o projeto democrático popular já inicia em uma perspectiva ampla de
espectro teórico e de práticas políticas.

O projeto democrático popular, nem hoje e muito menos no seu período de


consolidação na esquerda, entre 1980 a 2000, se resumiu a uma forma de
visualizá-lo, menos ainda de construí-lo, mas talvez a forma mais sintética que
possamos expressar o que ele significa seja: uma saída pensada a partir do
acúmulo de força das organizações populares expressas em partido e em
movimentos sociais populares, que pelo processo de democratização da
política e da economia via acesso a direitos para uma classe trabalhadora que
praticamente nunca os teve. Direitos construídos via reformas estruturais como
a reforma agrária e a democratização do Estado ampliam os direitos e a
participação popular com vistas a melhoria na vida do povo. Para alguns, é
acúmulo de força para construção da revolução e para outros, esse processo já
é a própria revolução em um país periférico e de capitalismo dependente feito o
Brasil. Essas duas vias carregam profundas diferenças sobre o caráter do
projeto democrático popular e elas permanecem em disputa até os dias atuais.

5 Usamos esse termo porque, como é descrito pelas que vivenciavam a época, fala de um
trabalho que era realizado em vários lugares diferentes que parecia não ter uma articulação,
mas que refletia uma grande organização.
6 Nesse caso, importante demarcar, “os” mesmo, pois as referências eram apenas homens.

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Esse período de reorganização da esquerda é um período de nítido avanço das
lutas feministas no Brasil, seja pelo surgimento dos diversos movimentos de
mulheres rurais que se organizam pelo interior do país lutando por direitos, seja
pela volta do exílio de mulheres intelectuais que tiveram aproximação com o
feminismo na Europa. As mulheres, nesse período, são protagonistas de
diversas lutas e mesmo assim permanecem, de certa forma, invisíveis. Elas
passam a disputar dentro e fora dos partidos e movimentos mistos quanto ao
gênero de seus/suas participantes, a importância da organização das
mulheres, a luta pelo direito das mulheres, sendo compreendida como parte
dessa volta à democracia. Os textos de Lélia Gonzalez7, Heleieth Saffioti8 e
Elisabeth Souza-Lobo9 são emblemáticos nessa construção. Nessa
perspectiva, a visibilidade da luta das mulheres auto-organizadas dentro e fora
das organizações foi se ampliando.

Dentro do campo de construção do projeto democrático popular, podemos falar


de três processos de organização das mulheres que reivindicam hoje a
perspectiva de construção do Feminismo Popular. Parte desse processo
ocorre em duas organizações feministas: A Articulação de Mulheres Brasileiras
(AMB) que surgiu durante o processo de organização das mulheres brasileiras
para participar da IV Conferência Mundial de Mulheres em Beijing – 1995,
dessa articulação nacional também fazia as companheiras que posteriormente
irão formar a Marcha Mundial de Mulheres (MMM) no Brasil. A MMM
internacionalmente e no seu surgimento aqui no país era uma articulação de
mulheres feministas de movimentos populares, com o tempo se tornou um
movimento. E a terceira perspectiva está ligada ao que se denomina como
Campo do Projeto Popular, construído pelas mulheres da Consulta Popular, do
Levante Popular da Juventude, do Movimento de Trabalhadoras e
Trabalhadores por Direitos (MTD), como também por parte das militantes da
MMM, nesse campo também estão as mulheres das organizações da La Via
Campesina Brasil, que nomeiam seu feminismo de Feminismo Camponês
Popular. Esses três processos têm relações na construção de lutas e espaços
de articulação feminista e espaços mais amplos. É possível dizer que esses
três processos se influenciam mutuamente.

O feminismo popular construído na AMB é apresentado por Carmen Silva


(2016)10 ao sistematizar a experiência de construção dessa organização. O fato

7 GONZALEZ, Lélia: Por um feminismo afro latino americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
8 SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes. Mito e realidade. São Paulo: Expressão
Popular, 2013; SAFFIOTI, Heleieth. I. B. O poder do macho. São Paulo: Moderna, 1987.
9 SOUZA-LOBO, Elisabete. A classe operária tem dois sexos: trabalho, dominação e

resistência. São Paulo: Perseu Abramo, 2011.


10 SILVA, Carmen S.M. Feminismo Popular e lutas antissistêmicas. Recife: SOS CORPO,

2016.

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da AMB construir um feminismo que é antissistêmico, como expressão da luta
anticapitalista, antipatriarcal e antirracista, coloca esse feminismo popular em
uma perspectiva de construtor da luta por transformação social. Carmen Silva
(2016), ao apresentar essa perspectiva de feminismo popular, busca sempre
demonstrar uma procura por mulheres populares, uma forma de chegar a elas,
de ouvi-las, o que deixa uma ideia de um feminismo popular de fora para
dentro, no qual as feministas que não seriam dos meios populares buscam
formas de incluir essas mulheres e suas pautas nas lutas e nas reflexões sobre
os rumos políticos das mulheres no Brasil e no feminismo.

Essa ideia de fora para dentro, ou seja, de mulheres que seria feministas e
outras que seriam as populares, aparece em Carmen Silva (2016), na divisão,
sempre difícil de estabelecer, entre movimento de mulheres e movimento
feminista, como também quando a autora narra a história da AMB, com frases
que falam das construções das feministas da AMB, como: “estratégias para
favorecer a participação das mulheres de classes populares” (SILVA, 2016, p.
204); “as demandas das mulheres de classes populares são assumidas por
esta articulação” (Idem, p. 212); “dar vozes as mulheres populares” (Idem, p.
193); “Os processos de formação política que são realizados para e pela AMB
[...] tem forte incidência sobre a socialização feminista de mulheres de classes
populares” (Idem, p. 213).

Parte da ideia de compreender essa perspectiva de feminismo popular como


algo construído de fora para dentro tem ligação com a forma como classe
aparece nos dados trabalhados pela autora. Nitidamente, Carmen Silvia tem
uma perspectiva materialista que entende classe social a partir da divisão
social do trabalho e não apenas como faixa de renda, mas, ao ligar o termo
popular à ideia de fração de classe trabalhadora, situando o popular apenas
aos setores mais precarizados da classe, ela separa as feministas das
mulheres populares, mesmo que feministas sejam da classe trabalhadora,
usando como critério de separação o acesso à renda, a estudos sobre
feminismo, ou às melhores condições de vida.

Ser de fora para dentro demonstra uma movimentação muito importante das
feministas brasileiras, algumas com privilégios de classe, mas,
majoritariamente de esquerda desde o início da AMB (SILVA, C. 2018)11, no
sentido de ao conhecerem o feminismo, buscarem ampliar o acesso a ele por
meio de uma popularização que visa as mulheres mais pobres, que são as
mais afetadas pelo capitalismo, patriarcado e racismo.

11SILVA, Carmen. Vai avançar o Feminismo Popular. In. ÁVILA, Betânia; FERREIRA,
Verônica. Teoria em movimento: reflexões feministas na Articulação Feminista Marcosul.
Recife: SOS CORPO, 2018, p.53-128.
17
Já no feminismo do Campo do Projeto Popular, o conceito de popular vem de
um amplo debate marxista sobre a construção da revolução em cada formação
social especifica, e foi definido por Fidel Castro durante o seu julgamento pelo
assalto ao Quartel Moncada:

Entendemos por povo, quando falamos de luta, a grande massa


irredenta, a que todos oferecem, e a quem todos enganam e traem, a
que anseia por uma pátria melhor, mais digna e mais justa; que é
mobilizada por conceitos ancestrais de justiça por ter padecido a
injustiça e a burla, geração após geração, a que anseia grandes e
sábias transformações em todos os níveis e está disposto, para
alcançá-los, quando acreditar em algo ou alguém, sobretudo quando
acreditar suficientemente em si mesma, a dar sua última gota de
sangue (HARNECKER, 2000, p.34).

Fidel segue descrevendo inúmeras profissões que não correspondem a essa


ideia de povo apenas como a parte mais precarizada da classe trabalhadora,
mas como aqueles que buscam lutando a melhoria da vida da classe
trabalhadora. Talvez por esse entendimento de povo como aquela parte da
classe trabalhadora que junta suas dores (racismo, sexismo, LGBTfobia,
pobreza etc.) e as enfrenta em luta, faz com o que o popular nesse campo
político venha de dentro para fora.
O feminismo construído no Campo do Projeto Popular, apresenta-se
diferente12, no sentido de que as mulheres se reconhecem no feminismo, a
partir das lutas que já travam pela terra, em defesa do território, contra as
barragens, pela agroecologia, no enfrentamento à violência contra as mulheres,
pelo direito à participação das mulheres. Nessa perspectiva, o nome feminismo
vem depois, primeiro vem a luta pela própria condição de viver, e depois
percebemos que é preciso ter uma ação especifica enquanto mulheres e por
isso também é necessário lutar para melhorar as condições de vida das
mulheres de forma mais evidente, em especial das mulheres negras. Isso não
significa uma opção economicista de que a economia vem antes da política,
mas de uma constatação de que quem tem fome, não luta sem as condições
mínimas de sobrevivência, nesse âmbito, as mulheres primeiro lutam pela vida,
pelo acesso ao trabalho remunerado, por condições dignas de trabalho, pela
possibilidade de alimentar seus filhos e filhas todos os dias, sendo nessas lutas
que elas se reconheceram como feministas.

Como mencionado no início, a Consulta Popular surge do entendimento que


havia a necessidade de colocar novamente em pauta a construção da
revolução brasileira, no centro da atuação da esquerda brasileira, a partir de

12
Essa diferença não pode carregar nenhum tipo de juízo de valor, que esse ou aquele é
melhor, pois, como buscamos demonstrar, eles estão sempre muito próximos, ligados pelo
mesmo processo de reorganização da esquerda no Brasil.
18
um projeto popular para o Brasil, ou seja, um caminho brasileiro para
construção de uma revolução própria. Nesse debate que no final dos anos
1990 parecia ter sumido do repertório de parte da esquerda, pelo menos da
parte que era hegemônica nesse período, havia uma crítica ao reformismo
expresso na estratégia que tornava a luta eleitoral como um fim em si mesma,
o que levou a um outro extremo que beirava o debate de classe média que
nega a importância da disputa eleitoral, relegando esse espaço a ideia de
interesses individuais e só eram revolucionários (as) aqueles e aquelas que
dedicavam sua vida, com sacrifício, a luta nos movimentos sociais.

Desse debate, surge o Movimento Consulta Popular que nasce oficialmente na


Conferência de Itaici – SP, mas é fruto das ações e reflexões das organizações
que faziam luta camponesa no Brasil (organizações autônomas de mulheres
estaduais que posteriormente se consolidou no Movimento de Mulheres
Camponesas, Movimento dos Atingidos por Barragens, Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento dos Pequenos Agricultores,
Comissão Pastoral da Terra) junto com intelectuais de esquerda, militantes da
igreja católica, militantes sociais de diversos setores, que constituem o que
estamos chamando aqui de campo do projeto popular.

Essas organizações saíram da Conferência de Itaici, com a proposta de fazer


esse debate com o povo e para isso constroem e buscam ampliar as
articulações com outras organizações para construir a Marcha Popular pelo
Brasil em 1999. Nela, surgem as Assembleias Populares como espaço de
organização do povo que, recolocando os processos de formação e lutas no
centro da estratégia, constroem a ideia de um projeto popular para o Brasil.
Esse processo do Movimento Consulta Popular vai ser construído tendo como
referência a força das lutas camponesas dos anos 1990 e as lutas contra os
ataques neoliberais aos direitos da classe trabalhadora. As mulheres que
constroem essa organização desde seu início são: Eliane Martins, Adriana
Mezadri, Diva Braga, Paula Adissi, Sirlei Gaspareto, Roberta Transpadini, entre
muitas outras cujos nomes parecem sumir para dar visibilidade a três homens.

O Campo do Projeto Popular é permeado por dois processos de construção do


feminismo popular, um mais ligado às organizações camponesas da La Via
Campesina Brasil13, que hoje tem o nome de Feminismo Camponês Popular; e
um processo mais urbano, construído pelas Mulheres da Consulta Popular14,
(são mulheres da Consulta Popular são as companheiras que atuam em

13 Importante frisar que existiam mulheres que eram tanto orgânicas na Consulta Popular
quanto nos movimentos da La Via Campesina, e nos movimentos existiam mulheres de outros
partidos ou apenas do movimento.
14 Nome que o movimento Consulta Popular passa a ter após 2007 quando, em assembleia,

deliberam pelo reconhecimento do seu caráter de instrumento político de caráter partidário


19
movimentos auto-organizados de âmbito local, na MMM e nas próprias
instancias da consulta popular), e pelas mulheres do Movimento de
Trabalhadores Desempregados (atualmente, Movimento de Trabalhadoras e
Trabalhadores por Direitos – MTD) e, mais recentemente, também pelas
mulheres do Levante Popular da Juventude. Esses dois processos - urbano e
rural - se retroalimentam, nem sempre em acordo, mas também nas
divergências, nos debates e com certeza nas lutas que travam juntos
constantemente. Esses dois processos compõem o Feminismo Popular
construído no campo do Projeto Popular e é possível dizer que se organizam
em uma linha teórico-política que é o marxismo.

Essa construção mais urbana do feminismo popular do campo do Projeto


Popular que tem início a partir das mulheres da Consulta Popular. Elas
constroem essa organização desde seu início, todavia, nem sempre baseadas
em uma pauta considerada específica de mulheres, nem reivindicando espaços
das mulheres na estratégia da organização, mas, como acontece em várias
organizações, os nomes que sempre apareceram como referência eram de
homens. No surgimento da consulta popular o tema feminismo não aparecia
como parte desse projeto popular.

Em 2007, inicia-se a auto-organização das mulheres dentro da Consulta


Popular, momento que é tido pela organização como um salto político, pois ela
se reconhece como um partido político, que se constrói na organização do
povo, no trabalho popular, fazendo formação política e buscando construir
processos de lutas unitárias com outras organizações da esquerda, mas ainda
com muitas debilidades em relação a atuação institucional.

As mulheres da Consulta Popular têm como referência política a luta das


feministas socialistas Clara Zetkin, Alexandra Kollontai, das revolucionárias da
América Latina, em especial de Cuba, Nicarágua e Venezuela e as lutas
travadas pelas mulheres de La Via Campesina nas ocupações de terra, na luta
contra os impactos das construções de barragens, no enfrentamento ao
machismo dentro e fora das organizações. A ação contra a Aracruz celulose se
torna um marco na forma como essas mulheres construíram a luta feminista,
pois, diferente do que está nesse momento histórico, em meados dos anos
2000, a pauta de parte do movimento feminista parece não buscar muito
diálogo com a pauta de classe, as mulheres camponesas mostram com sua
história e com essa luta que não é possível separar a luta das mulheres da luta
de classes.

As mulheres da Consulta Popular começaram, em 2007, a construir espaços


próprios de auto-organização, onde produziram suas análises e estratégias de
luta feminista, debateram sobre suas referências teóricas e políticas. Essa
20
construção é fruto da entrada na organização de mulheres que vinham da luta
feminista e seu diálogo com as mulheres do MMC e dos outros movimentos da
La Via Campesina Brasil.

Na Consulta Popular, a auto-organização das mulheres como pauta é expressa


em um documento que surge na I Escola Regional do Programa Estratégico do
Nordeste, onde as mulheres se articularam para chegar no local do curso um
dia antes e construíram um espaço auto-organizado antes do início do curso.
Mirla Cisne, Tatiane Bretas são parte das organizadoras desse processo, com
uma condução leve e sem hegemonismos, esse encontro consegue unir as
mulheres da Consulta Popular para pensar a construção do feminismo
internamente. Desse primeiro espaço auto-organizado, sai a Carta das
Mulheres do Nordeste, pautando a importância do feminismo e da auto-
organização para construção da revolução brasileira. A partir dessa carta, as
mulheres vão se articulando nacionalmente e em 2008, aconteceu o primeiro
encontro de Mulheres da Consulta Popular que foi um marco na construção de
um feminismo que tem na luta popular sua grande referência. Nesse encontro,
as camponesas, as mulheres sindicalistas, mulheres do movimento estudantil,
mulheres de luta periférica, mulheres desempregadas, ou seja, lutadoras
populares em geral, discutem como o feminismo é parte da estratégia de
construção do socialismo. Dele, encaminha-se a ampliação desse debate nos
núcleos e espaços de luta onde as mulheres da Consulta Popular estão
organizadas.

Mas esse processo é permeado por dúvidas e questionamentos, alguns


homens se colocaram abertamente contra a ideia que é necessário feminismo
em uma organização revolucionária, algumas mulheres precisaram ser
convencidas ao longo do processo e dos anos. Os espaços auto-organizados
nem sempre eram bem-vistos por toda a organização, muitas dúvidas se
colocavam sobre qual o seu real papel.

Em 2011, acontece o II Encontro Nacional de Mulheres da Consulta Popular,


os passos dados pelas mulheres até esse encontro antes da assembleia Carlos
Marighella contribuem para que o feminismo entre como sexto compromisso do
projeto popular15, tornando o feminismo parte da estratégia da organização.
Chegar a esse momento foi uma construção coletiva das mulheres da Consulta
Popular que contou com texto das militantes sobre feminismo no caderno de
debates16, como o de Mirla Cisne (2010) Socialismo e Feminismo: uma relação

15 Os seis compromissos do Projeto Popular são: solidariedade, democracia popular,


desenvolvimento, soberania, sustentabilidade e feminismo (Retirado da resolução da IV
Assembleia da Consulta Popular).
16 Cadernos de debates são um instrumento de debates de ideias da Consulta Popular nos

quais todos os militantes podem mandar textos que serão enviados para toda a militância e
devem ser debatidos nas instâncias de base do partido.
21
necessária, que buscou na teoria marxista demonstrar a importância da luta
das mulheres para transformar suas vidas e a sociedade; e o texto de Iracy
Sofia Barbosa (2010) Auto-organização das mulheres para unificação da classe
trabalhadora, no qual a autora demostra a construção histórica da opressão
das mulheres e argumenta sobre a importância da superação dessa situação a
partir da auto-organização das mulheres no partido. O texto termina com a
consigna do congresso da Coordinadora latinoamericana de organizaciones del
campo (CLOC/Via Campesina) de 2010: “sem feminismo, não há socialismo”.
Contou ainda com processos de auto-organização das mulheres nos estados.

A definição do feminismo como um compromisso não é apenas uma definição


que se constrói no papel, ela desafiou as mulheres da Consulta Popular a
ampliarem a relação com as mulheres do campo do projeto popular, para
juntas pensarem em como ampliar a organização das mulheres sob a
perspectiva de trabalho popular, de trabalho que buscasse construir uma
transformação social ampla na sociedade brasileira.

Esse encontro é lembrado até hoje como aquele em que houve uma forte
disputa por saber qual caminho o feminismo da Consulta Popular deveria
seguir. Se colocava para o debate uma linha que pensava que era a
diversidade17 de construção que fortalecia esse feminismo popular e assim
defendia que as mulheres da Consulta Popular pudessem construir seu
feminismo como já construíam, junto às outras diversas lutas que travavam, ou
seja, em movimentos diferentes, que podiam ser auto-organizados ou não, mas
com unidade na linha política. Outra parte defendia escolha de apenas uma
organização, a qual todas as mulheres desse partido se ligassem para construir
o feminismo popular, podendo no máximo, existir uma organização voltada
para o urbano e outra para o rural. Essa segunda opção foi derrotada no
encontro, mas, de certa forma, foi implementada, o que permitiu uma
ampliação significativa de processos de auto-organização nos estados, mas
causou uma divisão profunda entre as feministas da organização.

Essa divisão atrasou o feminismo na Consulta Popular por alguns anos.


Atrasou porque dividiu as feministas da organização, algumas saíram do
partido, outras não conseguiam sentar-se para dialogar entre si. Dificultou
nesse sentido, do debate interno, mas não parou, assim, o feminismo do
campo do projeto popular continuava avançando mesmo com as dificuldades
internas da Consulta Popular, seja porque esse feminismo é maior que o
partido, seja também porque, mesmo com questões internas para resolverem,
as feministas continuaram organizando e fazendo as lutas. Ou seja, quem
construía o feminismo nas lutas populares de forma auto-organizada, como

17 O MMC foi partidário dessa posição.


22
MMM18, Marias, Amélias, MMC ou em espaço misto como Levante, MST, MTD,
MAB, MPA etc., continuou fazendo.

A direção nacional eleita nessa IV assembleia organizou um setor 19 de


mulheres que tinha como tarefa acumular o debate feminista e conduzir o
debate na direção e na organização como um todo. Em sua maioria, o setor foi
constituído por mulheres da Marcha Mundial de Mulheres, que desempenhou
um papel importante na ampliação do processo de auto-organização das
mulheres na Consulta Popular, montou núcleos da MMM pelos estados,
realizou os cursos regionais feministas, experiência importante para o debate
teórico do feminismo no partido. Nos cursos se estudava as mulheres que
lutaram contra a ditadura; as mulheres das revoluções do século XX, em
especial, as da América Latina; economia feminista; histórico das lutas
feministas, entre outros assuntos, com o intuito de dar conteúdo político a
construção do Feminismo Popular, mas também, para qualificar a disputa
política dentro da Consulta Popular, no sentido de ampliar nosso entendimento
sobre a teoria e prática feminista. Um texto representativo desse curso é o
construído por Letícia Carvalho, Maíra Guedes e Maria Júlia Monteiro:
FEMINISMO POPULAR: História e contextos da luta das mulheres pelo poder
que depois chegou a toda a organização no IV Caderno de Debates, da V
Plenária da Consulta Popular.

As mulheres da Consulta Popular, também nesse período após IV Assembleia,


construíram experiências auto-organizadas pelos estados, algumas fazendo
parte da MMM e de outros grupos autônomos, como as Amélias 20 no Rio
Grande de Norte e Marias no Pará, que são puxados por mulheres da Consulta
Popular, porém, não se restringem a elas. Os avanços e dificuldades ocorrem
como ocorre em todas as organizações políticas e o debate do feminismo não
acontecia de forma isolada de outras disputas internas a militância do partido.

Na V Assembleia (2017), o debate posto era a necessidade de avançar na


relação que se tem, historicamente, entre as mulheres do campo do projeto
popular (CP, MTD, LPJ, MST, MMC, MPA, MAB, Marias, Amélias, MAM, MCP,
Núcleos da MMM ligados a Consulta Popular) para a construção de uma frente

18 A MMM é uma organização internacional de articulação de mulheres, que tem formas


diferentes de atuação nos diversos países. Em alguns países atuam como articulação de
diversos movimentos, no Brasil é um movimento social, auto-organizado dirigido pelas
mulheres da Democracia socialista do Partido do Trabalhadores, mas que conta com mulheres
de outras organizações partidárias, como também mulheres autônomas. Parte das mulheres da
Consulta Popular também se organizam na MMM.
19 Setor são estruturas dentro da organização da Consulta Popular que são espaços para

acúmulo político e teórico de temas, mas não se constitui uma instância e são órgãos de
assessoramento à direção do partido.
20 Originalmente era um grupo da MMM e depois optaram por sair.

23
popular de mulheres mais orgânica, para aprofundar as lutas e a construção
teórico-político do Feminismo Popular. O encaminhamento foi:

54. Fortalecer a organicidade do feminismo popular através da


construção da Frente de Mulheres do Campo do Projeto Popular.
Os nossos desafios estratégicos apontam a necessidade de uma
força social de massas do feminismo do campo do projeto popular
para coesionar o nosso campo político e fortalecer o feminismo
popular (CONSULTA POPULAR, 2017, p. 46, grifo do original).

Essa proposta de Frente Popular de Mulheres é uma proposta de parte das


mulheres da Consulta Popular para consolidar essa construção conjunta das
mulheres desse campo político. Esse não foi um debate fácil, como também
não foi os debates anteriores sobre o feminismo e foi perpassado por disputas,
entendimentos divergentes, por uma dificuldade enorme das militantes (o que
obviamente também acontece com os militantes) de lidar de forma madura com
a divergência.

A nova direção nacional composta nessa assembleia compreende um novo


setor de mulheres, composto por representações regionais, pelas
representações dos movimentos do campo político e pelo coletivo de
diversidade sexual. O novo setor permaneceu com as mesmas funções
anteriores, mas com a tarefa central de articular a consolidação dessa frente
popular de mulheres que existe na prática, pois, fazem lutas, encontros e
formações juntas, mas não existe como processo orgânico de construção de
definições políticas conjuntas, o que acontece, geralmente, em outros espaços,
onde o tema não são só as mulheres e muitas organizações estão só
representadas por homens. Outro desafio posto ao setor é incorporar os
debates das questões LGBTQI+ na construção do feminismo popular.

Para a construção da Frente Popular de Mulheres seria extremamente


necessário fortalecer o trabalho já existente com mulheres, mas na verdade
muito do que tínhamos recuo. É necessário pensarmos por que é tão fácil
recuar no trabalho com as mulheres.

A conjuntura brasileira de conjunção de crises no pós-assembleia só piorou, e


fruto do processo de reorganização da esquerda, como também da nossa
dificuldade de lidar com as divergências se estabeleceu uma disputa interna
fratricida, levando a consulta popular a ser duas organizações diferentes dentro
de um mesmo nome, essa construção da frente popular de mulheres ficou
praticamente inviabilizada, não tínhamos mais nem mesmo a construção das
lutas mais amplas de forma unitária entre nós. Em 2020 juntou-se uma crise
sanitária global, que tem colocado dificuldade dessa frente se materializar para
além do que já existia. Permanecendo o desafio de construir uma organicidade
24
entre as feministas do nosso campo político para ações conjuntas e formação
teórico-política.

É importante destacarmos que, ao longo desse processo descrito, as


organizações que compõem o campo do projeto popular, também vão
construindo processos próprios e autônomos de construção e consolidação do
feminismo popular. Nessa perspectiva, o MTD, mesmo sendo um movimento
misto em relação ao gênero dos/as seus participantes, apresenta um
protagonismo muito maior das mulheres, posto que suas bases e direções são
compostas por mulheres, o que tem demonstrado o que os estudos do
feminismo negro já apontavam, que a periferia é mulher e negra. A análise
concreta da situação na organização das trabalhadoras e trabalhadores das
periferias das grandes cidades, coloca o desafio da construção do feminismo
popular na ordem do dia para o MTD.

A situação vivenciada pelas mulheres na periferia, como violência, pobreza,


atuação do tráfico de drogas, atuação das igrejas, a realidade de dificuldade de
terem com quem deixar as filhas e filhos, colocam a essas mulheres dirigentes
desse movimento a necessidade de construir um olhar e uma ação feminista. O
MTD aporta elementos de negritude e periféricos ao feminismo popular, a partir
da vivência dessas mulheres na construção desse campo político.

O Levante Popular da Juventude surgiu em 2006, na periferia de Porto Alegre


no Rio Grande do Sul, já com amplo diálogo com as organizações do campo do
projeto popular. Essa experiência de organização popular da juventude nos
bairros periféricos se nacionalizou em 2012, com a realização do I
Acampamento Nacional, no qual participaram 1200 jovens do campo e da
cidade, de 17 estados do país. Nesse primeiro espaço nacional houve uma
participação ampla de jovens mulheres, mas o encontro não contava com
espaço auto-organizado, as jovens levaram a proposta e alteraram a
programação, o feminismo já se colocava como posição política. Assim, as
mulheres que iniciaram a construção do Levante já demarcaram uma
compreensão no que se refere à organização das mulheres e à necessidade do
feminismo, reflexo de ampliação da aceitação do feminismo pela juventude.

Enxergamos um mundo dividido entre aqueles que exploram e as


trabalhadoras e trabalhadores que têm o fruto de seu trabalho
roubado. Esse é o sistema capitalista-patriarcal-racista que
mundialmente estabelece as formas de organização da sociedade na
sua forma imperialista. Por isso nos comprometemos com a luta
contra o machismo, na sociedade e dentro de nossa organização,
pois se os trabalhadores são explorados pelo sistema capitalista, as
mulheres são duplamente oprimidas e exploradas: enquanto
trabalhadoras e enquanto mulheres. Temos que estar lado a lado
com as organizações do movimento feminista no combate ao
25
patriarcado, a violência sexista e a mercantilização do corpo das
mulheres, assim como fomentar a auto-organização das mulheres no
Levante Popular da Juventude (Carta Compromisso do I
Acampamento Nacional do Levante Popular da Juventude,
fevereiro de 2012).

O Levante se apresenta para a sociedade brasileira como parte de um leito


histórico de lutadoras e lutadores populares, se divide internamente em duas
frentes de atuação: Estudantil e territorial, sendo a territorial dividida em rural e
urbana/periferia. As mulheres jovens dessa organização, estudantes
universitárias, secundaristas, camponesas, moradoras das periferias, são
mães, são lésbicas, são trans, são cis, são negras, são brancas etc. E essa
diversidade se coloca em luta na construção de um projeto popular para o
Brasil, a partir das demandas da juventude.

Sendo uma organização composta por homens e mulheres, elas constroem


espaços de auto-organização das mulheres internamente ao Levante, o que
conduz muitas mulheres a ocuparem espaço de liderança no movimento, seja
nas bases, liderando células, seja nas instâncias ou nas organizações que o
Levante constrói, como Diretórios Estudantis, União Nacional dos Estudantes
(UNE), entre outros.

Essa realidade coloca questões sobre a condição de mulher na política, sobre


as pautas das mulheres jovens na periferia e na universidade. O Levante
Popular da Juventude constrói internamente um setor de mulheres, espaços
auto-organizados em todos os encontros, acampamentos que constroem,
debatem as diversas realidades que as mulheres vivem no movimento e fora
dele. Assim, também constroem um feminismo que vem das lutas vivenciadas
como mulheres e tem contribuído com o feminismo popular desse campo
político, em especial com a forma de lidar com a pauta LGBTQI+ e com a
consolidação de mulheres como lideranças políticas.

O Levante Popular de Juventude viveu internamente muitos desafios para


resolver questões ligadas ao machismo e à violência de gênero, e enfrentar
essa realidade de fato, sem colocar para baixo do tapete, permitiu que o
Levante tivesse instrumentos regulatórios, normas e processos internos
disciplinares melhores que muitas organizações mais antigas, enfrentando o
debate da violência sexista de forma mais organizada. Contudo, esses
processos não livrou o Levante de perder mulheres que poderiam dar grandes
contribuições a organização por causa do machismo.

Um destaque importante a se fazer é que a auto-organização das mulheres no


Levante também reflete na formação dos homens do movimento, o que não
significa superação do machismo, mas contribui para a formação permanente.
26
Em alguns estudos (ARAÚJO, 201621; SILVA, E. 201522; entre outros) que têm
sido feitos sobre o Levante Popular da Juventude, esse debate sobre o
feminismo aparece com regularidade. Elinadja Fonseca Silva (2015) analisa em
um estudo feito com os homens do Levante que:

Na pesquisa de campo, todos os homens afirmaram compreender a


necessidade do feminismo na luta da classe trabalhadora. Todavia, a
desconstrução do machismo ainda é uma grande dificuldade, bem
como, a compreensão dos espaços auto-organizados de mulheres
em movimentos mistos (SILVA, E., 2015, p. 11).

Já ocorreram mais dois acampamentos nacionais, cada um aumentou a


participação do número de jovens e em cada um deles foi possível perceber a
ampliação de mulheres nas bases e nas direções do movimento. Nos
acampamentos foram ampliados também os espaços para debate do
feminismo à luz da construção popular. As maiores referências do Levante
Popular da Juventude até hoje são mulheres, claro que também há homens
como referências, mas dos movimentos do campo do projeto popular os nomes
das principais lideranças são de mulheres:23 Juliane Furno (umas das primeiras
lideranças ainda do Levante em Porto Alegre), Carla Bueno, Thais Carvalho,
Jessy Dayane, Elida Elena como lideranças nacionais, no RN, a principal
liderança também é mulher: Josimara Farias e Nátaly Santiago (ambas
atuaram também nacionalmente), na Paraíba, Marciana é uma referência.

Essas construções no urbano acontecem sempre muito interligadas com a


construção do campo, nas florestas e nas águas, a partir das organizações da
La Via Campesina Brasil, junto com as mulheres da Consulta Popular, com o
MTD e com o Levante Popular da Juventude dialogando, lutando e fazendo
formação sobre a realidade das mulheres e sobre feminismo. Esse processo
tem conformado o que esse campo chama de Feminismo Popular, um
feminismo que, como o Feminismo Camponês Popular, surge da luta concreta
pela sobrevivência e das reflexões sobre ela. Dentro da CLOC/ LVC, as
Escolas de mulheres da CLOC foram fundamentais, o MMC já era em 2004
expressão de uma compreensão da necessidade de uma organização

21 ARAUJO, Joana dos S. Juventude, participação e projeto popular: A experiência político-


organizativa do Movimento Levante Popular da Juventude. 2016. 120f. Trabalho de Conclusão
de curso (mestrado). Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFRN, Natal. 2016.
Disponível em:
https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/21486/1/JuventudeParticipaçãoProjeto_Ar
aujo_2016.pdf. Acesso em: abril de 2020.
22 SILVA, Elinadja Fonseca. FEMINISMO E MILITÂNCIA DE ESQUERDA: uma análise da

percepção de homens do levante popular da juventude. Anais da VII Jornada Internacional de


Políticas Públicas. UFMA. São Luis. 2015. Disponível em:
http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinpp2015/pdfs/eixo6/feminismo-e-militancia-de-esquerda-
uma-analise-da-percepcao-de-homens-do-levante-popular-da-juventude.pdf. Acesso em: abril
de 2019.
23 Isso também acorre com o MTD que logo vem à cabeça Eliane Martins, Adilia e Débora.

27
feminista camponesa de caráter nacional. No MST, em 2006, a direção
nacional passa a ser paritária em gênero, depois começam a construir o curso
Feminismo e Marxismo, curso responsável pela formação de muitas militantes
desse campo político, todos esses processos contribuíram para as elaborações
desse feminismo popular do Campo do Projeto Popular.

Sintetizando para dar um passo à frente

Esse feminismo popular, construído nesse campo político, pode ser


caraterizado por quatro pressupostos organizadores da luta feminista: A luta
feminista na sociedade, ou seja, a transformação social, as lutas econômicas
e políticas, a construção de uma outra sociedade são pautas desse feminismo.
Esta dimensão abarca a política de alianças, as lutas e bandeiras que podem
aglutinar as forças feministas em torno do projeto popular para o Brasil, e
busca a construção feminista para estratégia de transformação da sociedade.

Um segundo é a necessidade de travar a luta feminista no âmbito das


organizações da classe trabalhadora, para avançar na consciência feminista
de mulheres, e acabar com o machismo e o patriarcado reproduzido pelos
homens, combinando a luta contra o patriarcado com a luta socialista e
antirracista, assegurando a participação das mulheres nos diversos espaços
políticos e de direção das organizações.

O terceiro pressuposto é a luta feminista nos espaços auto-organizados,


pois, as mulheres precisam ter espaços só de mulheres para fortalecer umas
às outras, para construírem reflexões coletivas sobre suas vidas e sobre as
diversas lutas que travam. Esse processo pode se dar tanto em movimentos
auto-organizados, como em auto-organização dentro de movimentos mistos.

E por último, a luta interna/pessoal para se reconstruir. A compreensão de


que homens e mulheres são formados por essa sociedade patriarcal, racista e
capitalista coloca a esse feminismo e às mulheres tarefas que são pessoais,
haja vista que a mudança nas questões pessoais também é parte da luta
feminista mais ampla, e a construção da nova mulher e do novo homem passa
também por mudanças nas relações interpessoais. A busca por não reproduzir
atitudes machistas, não reproduzir a violência de gênero, provocar a reflexão
sobre divisão de tarefas em casa e nas organizações, são atitudes que também
precisam ser compreendidas internamente como importantes.

Nesse sentido, entende-se existe uma perspectiva de feminismo popular sendo


construída nesse campo do projeto popular que ainda não tem textos com
grandes formulações sobre o que é e o que propõe, mas é possível analisá-la
sob a ótica das lutas que as mulheres do campo político, que reivindicam esse
28
nome, têm realizado, dos vários documentos dessas organizações que, nem
sempre, falam diretamente sobre feminismo, mas demonstram uma visão de
construção da liberdade e da resistência a partir das mulheres.

O feminismo popular construído pelo campo do projeto popular se constituiu


por mulheres populares. São as mulheres que fazem a luta popular por terra,
por território, por direitos, pela revolução brasileira, pela agroecologia, por viver
sem violência, por saúde e educação pública etc. São mulheres da classe
trabalhadora urbana e rural que vão se reconhecendo como feministas na
medida em que lutam e que percebem que as lutas que parecem gerais, tem
particularidades quando pensadas e vivenciadas por mulheres. Nos processos
de organização, formação e lutas, elas vão se descobrindo feministas e,
dialeticamente, construindo esse feminismo. Sendo assim um feminismo
popular se constrói de dentro para fora.

É dentro das lutas que as mulheres do projeto popular, reconhecem as


particularidades do ser mulher, ser mulher negra, ser mulher trans em cada luta
travada e assim o feminismo vai se construindo. Vamos tentar demonstrar
como isso tem acontecido com as camponesas.

Experiências das camponesas – a integração das lutas

Trazer algumas experiências de luta e organização das camponesas nas quais


uma pauta que parece enfrentar apenas uma dimensão das desigualdades, na
verdade quando construída por essas mulheres, enfrenta várias questões.
Pretendemos demonstrar que lutas que alguns só conseguem enxergar como
enfrentamentos isolados ao capitalismo ou ao patriarcado e/ou ao racismo, no
modo de lutar e se organizar do nosso campo político, elas acontecem de
forma imbricada.

Luta por direitos: A luta da previdência dentro da seguridade social na


constituinte de 1987:

29
Fotografia 1 - Comitiva para debater os direitos das trabalhadoras rurais na
CF88.

A luta por acesso aos direitos trabalhistas que já existia no urbano para o rural,
na perspectiva das mulheres era também uma luta pelo reconhecimento,
enquanto mulheres trabalhadoras rurais. É dessa luta que nos anos 1980
surgem vários movimentos estaduais de mulheres trabalhadoras rurais. Essa
luta é compreendida como enfrentamento de classe, pois é uma categoria de
trabalhadoras que buscam direitos, mas também, é compreendida como uma
luta que dialoga com a lógica do reconhecimento enquanto mulheres,
enfrentamento direto ao patriarcado que entendiam as mulheres como não
trabalhadoras.

As camponesas sempre trabalharam nos diversos espaços da unidade de


produção familiar, mas esse trabalho, estava relegado à condição de ajuda a
um outro, geralmente, homem, que era entendido como quem de fato trabalha.
Contudo, esse direito não era ausente apenas para as mulheres, os
trabalhadores rurais também não tinham direito a aposentadoria até a
constituição de 1988, direito conquistado pelos trabalhadores urbanos em
1943.

As camponesas no Brasil estavam formando grupos de mulheres em espaços


diferentes em suas realidades locais. Havia grupos de mulheres cristãs ligados
à Teologia da Libertação, grupos de mulheres nos sindicatos rurais, e já existia
30
alguns movimentos de mulheres camponesas (com nomes diferentes), esses
grupos discutiam as propostas para a nova constituição que atendessem às
suas necessidades.

Essa luta enfrentava no campesinato uma resistência dos homens da liderança


que a entendiam como uma luta menor, “reformista”, “não estrutural”, todavia,
as camponesas sabiam o quanto trabalhavam na roça e em todos os espaços
da unidade de produção e como esse não reconhecimento tirava delas a
oportunidade de uma vida mais autônoma, e mesmo a possibilidade de acesso
às políticas públicas para produção. Perceber que é o machismo como
expressão do patriarcado que impede a visibilidade do trabalho das mulheres
foi parte do processo de luta por direitos.

Foi a luta das camponesas que levou direito à aposentadoria, ao auxílio-


doença, e vários outros direitos trabalhistas a homens e mulheres do campo. O
reconhecimento do direito à aposentadoria permitiu que as camponesas
lutassem por políticas públicas específicas para mulheres camponesas e
conquistassem o direito à titulação conjunta da terra na reforma agrária. A
conquista dos direitos trabalhistas para o rural teve impacto concreto na luta de
classe, pois os fazendeiros tiveram que pagar os direitos e dificultou a lógica
dos fazendeiros empregarem o homem e poder explorar o trabalho da família
inteira, haja vista que agora todos e todas que trabalhavam em alguma fazenda
precisavam ser registradas/os.

Campanha pela documentação da trabalhadora rural

Fotografia 02SEQ Figura \* ARABIC2 - Um dos Lançamentos da Campanha


(arquivo pessoal de Dona Nina (Bahia).

As conquistas da constituição de 1988, tempo depois levaram a uma


constatação: as mulheres camponesas continuavam não tendo acesso aos
31
direitos trabalhistas conquistados. As camponesas se reuniram em articulação
com outros movimentos e organizações feministas, também com mulheres
camponesas de outros movimentos, para lutarem pela regulamentação de cada
direito conquistado, em especial, a licença maternidade, e juntas perceberam
que existiam muitos relatos de camponesas que não tinham nenhum tipo de
documento, nem mesmo o registro de nascimento. Essa realidade fez com que
as camponesas organizadas em diversos espaços diferentes promovessem
uma Campanha Nacional para que as trabalhadoras rurais tivessem acesso
aos documentos básicos como Certidão de nascimento, registro geral e
Cadastro de Pessoa Física.

A campanha se chamou NENHUM TRABALHADORA RURAL SEM


DOCUMENTO e foi pensada, organizada e executada pelas camponesas que
viajavam entre as regiões e estados, que conduziam reuniões em vários
lugares, paróquias, sindicatos, comunidades rurais. Algumas viajavam por
semanas, outras iam para lugares mais perto de suas casas, mas todas
tiveram que enfrentar os comentários machistas do marido, das vizinhas e
vizinhos, e enfrentar essa realidade, tornava a ideia de autonomia e liberdade
parte da luta pela documentação.

As camponesas em atividades do MMC já mencionaram que encontraram


mulheres que eram praticamente escravizadas, tendo casado muito novas,
sem saber ao certo sua idade e sem poder sair de casa nunca. O
analfabetismo entre essas mulheres era uma constante e com ele a pouca ou
nenhuma noção dos direitos que tinham enquanto seres humanos. Algumas
camponesas que viajavam nessa campanha, relatam as violências vivenciadas
por elas, como forma de impedi-las de chegar às mulheres sem documentação.

A não documentação é, sem dúvida, a expressão da violência de classe que


vive o rural brasileiro, mas é também a expressão do racismo e do patriarcado
que desumaniza as mulheres, particularmente, as mulheres negras, essa
campanha virou política pública em 2003 e não teve mais orçamento
direcionado a ela em 2017.

32
Fotografia 3 - Lançamento da Campanha na Câmara de Deputados em
Brasília.

Aracruz celulose - “Ação da Aracruz Celulose como ação e afirmação do


feminismo”

Fotografia 4 - Marcha em Porto Alegre (2006) (Arquivo do MST).

Foram as mulheres, elas pensaram, organizaram, executaram. As notícias na


mídia hegemônica diziam que foi tudo organizado por um homem. É o nome de
um homem que vai aparecer como o grande nome por traz daquela ação.
Sendo que as fotos só mostram mulheres, muitas mulheres, com os rostos
cobertos por lenços, elas derrubaram um viveiro de mudas em uma empresa
33
que vinha acabando com a água em vários lugares do país, empresa que
respondia na justiça por invasão de território indígena.

Não sabemos exatamente os nomes de quem estava lá, mas sabemos que
eram mulheres camponesas que lutavam contra uma empresa que lucra
causando prejuízo ambiental. A plantação de eucalipto é responsável por secar
inúmeras fontes de água no Espírito Santo, no Rio Grande do Sul e as
mulheres camponesas, defensoras da agroecologia, que entendem a
importância da água para manutenção dos diversos modo de vida, “se vingam”.
Elas enfrentam o capital e o racismo que essa empresa representa, quando se
coloca como representante do progresso, colocando em risco os modos de
vida dos indígenas. E, novamente, precisaram afirmar que as mulheres são
capazes de construir e executar uma ação revolucionária sozinhas. Defender,
internamente, nas organizações camponesas, a importância da ação foi uma
confirmação da autonomia e liberdade das mulheres de lutar como querem e
pelo que acham importante.

A defesa das sementes crioulas e a agroecologia

Fotografia 4 - Mística de abertura de uma reunião do MMC (Arquivo MMC).

O debate ambiental nunca foi, e continua não sendo um consenso na


esquerda. O termo agroecologia chega no Brasil e consegue empolgar um
setor da esquerda ligado aos movimentos do campo e um setor da assistência
técnica e extensão rural que já se preocupava com os prejuízos ambientais da
revolução verde, mas que entendiam que essa questão não era possível ser
resumida nas mudanças apenas tecnológicas da produção de alimentos.

34
Quando voltamos nosso olhar para as camponesas, a agroecologia chegou e
elas se reconheceram nas propostas, seja porque por muito tempo tiveram que
enfrentar os técnicos dizendo que o conhecimento delas era atrasado, que era
preciso “modernizar”, seja porque aquelas sementes que elas escondiam,
plantavam em locais escondidos do quintal, agora alguém dizia e demonstrava
que eram importantes. As camponesas foram, nas suas unidades de produção,
aquelas que lutaram contra a padronização das unidades, seus quintais eram
exemplos concretos do resultado que a diversidade de plantas e animais
podiam fazer tanto em benefício da alimentação da família, quanto de
preservação da natureza.

A experiência de preservação e resgate de sementes é uma prática das


mulheres camponesas que tem passado de geração em geração, e acontece
em todos os países e todas as organizações que compõe a Cloc. No MMC, foi
o estado de Santa Catarina que primeiro, já em 2001, estruturou um programa
de resgate de sementes, com ações de cunho organizativo e formativo. A
experiência exitosa de Santa Catarina e o reconhecimento que essa era uma
prática que ocorria em todos os Estados onde o MMC estava organizado, levou
o movimento a nacionalizar, em 2007, um processo organizativo de resgate de
sementes24 através da Campanha Nacional pela Alimentação saudável. Sobre
a campanha escreveu Jalil (2009, p. 179)25:

Elas não só reconhecem a Campanha, elas se reconhecem nela, com


ela e para ela; ao praticarem, ao construírem os bancos de sementes
crioulas, ao trocarem sementes, ao plantarem as plantas medicinais,
trocarem receitas e mudarem os hábitos alimentares, elas resgatam,
divulgam e fortalecem suas práticas milenares.

Foi elaborada uma cartilha como ferramenta metodológica para utilizar na


campanha. A cartilha está dividida em seis encontros, cada um com um tema
que liga o trabalho das sementes a uma luta mais ampla, contra o agronegócio,
o machismo e o racismo que negam os conhecimentos ancestrais. Para o
MMC, a preservação das sementes tem uma importância em si mesma, pois é
preservação da cultura, dos costumes alimentares e da natureza, mas é
também enfrentamento ao capitalismo, racismo e ao patriarcado.

24 Em 2017, como respostas a crise econômica que na vida do povo se transforma em fome, o
MMC transforma esse processo na Campanha Nacional Sementes da Resistência:
camponesas semeando esperança, tecendo transformação, como forma de ampliar o resgate
de sementes e diminuir o impacto da fome nas comunidades que o MMC está presente.
25 JALIL, Laeticia Medeiros. Mulheres e soberania alimentar: a luta para a transformação do

meio rural brasileiro. 2009. 197 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais em


Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade). Instituto de Ciências Humanas e Sociais,
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2009.

35
O tema das sementes também aparece em todos os Seminários Internacionais
que discutiram o Feminismo Camponês Popular e, como explicam Calaça,
Seibert e Cinelli (2020, np.)26:

Fica evidente quando nos debruçamos sobre o trabalho de sementes


realizado pelo MMC que existe uma relação de ida e vinda, ou talvez
complementariedade na ação, quando o movimento busca, a partir da
experiência vivenciada pelas mulheres no seu cotidiano, da sua
cultura e do seu modo de vida, trazer reflexões sobre as ligações
entre essa realidade e os problemas gerados pelo sistema capitalista,
patriarcal e racista, mas também como o entendimento sobre esse
sistema possibilita que as camponesas superem tradições culturais
que lhes aprisionam e construam saídas para as relações sociais que
são tidas como naturais em suas vidas.

Como mostrou Catiane Cinelli (2012)27, ao estudar a construção do Programa


de sementes crioulas do MMC, para as mulheres preservarem suas sementes
foi necessária muita luta e muitas estratégias coletivas, pois, a forma como
eram tratadas dava a entender que elas não tinham direito a produzir da forma
que queriam, a manterem seus costumes.

Duas questões são importantes como sínteses dessas 4 lutas que


apresentamos aqui e muitas outras tocadas pelas camponesas do MMC e da
Cloc/La Via Campesina, como lutas que enfrentam o capitalismo, o patriarcado
e o racismo de forma articulada.

A primeira é que as mulheres camponesas, ao construírem suas lutas são,


necessariamente, impactas pelo fato de serem mulheres da classe
trabalhadora e algumas pelo fato de serem negras ou indígenas. Isso não
significa que por terem essa condição as mulheres lutem, a opção por fazer a
luta vem de outros elementos. Nosso destaque aqui se refere ao fato de elas
não terem como vivenciar o ataque do agronegócio aos seus territórios, sem
que essas condições atuem juntas nos resultados que esse ataque traz as
suas vidas. Ou seja, quando uma mulher camponesa indígena sofre o ataque
de uma mineradora ao seu território, não é apenas um ataque de classe, ela,
muito provavelmente, terá no seu corpo a marca do estupro, ouvirá inúmeros
insultos racistas, e se perderem a luta para a empresa, sua vida na cidade será
atingida em inúmeras dimensões a mais que a vida do homem indígena.

26 CALAÇA, Michela; SEIBERT, Iridiani; CINELLI, Catiane. Sementes da resistência na


construção cotidiana do Feminismo Camponês e Popular. v. 15 n. 2 Anais do XI Congresso
Brasileiro de Agroecologia, São Cristóvão, Sergipe. 2020. Disponível em: http://cadernos.aba-
agroecologia.org.br/index.php/cadernos/article/view/4514/3262 acesso: dezembro de 2020
27 CINELLI, C. Programa de sementes crioulas de hortaliças: experiência e identidades no

movimento de mulheres camponesas. INUJUI. Ijui. 2012


36
Um segundo elemento é que ao construírem as lutas, as mulheres enfrentam a
todo momento o machismo, seja em querer explicar para elas o que elas
vivenciam, ensinar quais as prioridades pelas quais elas têm que lutar, seja por
desconsiderar seus conhecimentos como validos. Se forem mulheres negras,
essa realidade é ainda mais violenta porque as expressões do racismo
intensificam os ataques quando, para as mulheres negras, não se impõe o
machismo a partir da “delicadeza” como muitas vezes acontece com mulheres
brancas. Os ataques machistas e racistas às mulheres que lutam chegam tanto
das classes dominantes, quanto dos companheiros que também defendem a
natureza e os direitos dos trabalhadores.

Percebemos a cada pauta e luta que acompanhamos das camponesas, seja no


Brasil ou na América Latina, que elas sempre precisam provar que estão
certas. Suas análises, a princípio, são sempre questionadas, sempre colocadas
em dúvidas, mas foram as camponesas que disseram que a Soberania
Alimentar era primordial para a conquista da segurança alimentar e nutricional;
foram as camponesas que aqui no Brasil primeiro colocaram a importância
estratégica para a classe trabalhadora do debate da Alimentação saudável,
enquanto alguns ainda acusavam essa de ser uma pauta de classe média e
não percebiam que alimento saudável carrega cultura, carrega reforma agrária,
carrega unidade campo, floresta, água com a cidade.

Assim, podemos dizer que esse feminismo é formatado pela história de cada
uma, pela história de todas, pela história dos vários movimentos, em especial,
os movimentos de mulheres, pois, muitas vezes, foi necessário um
protagonismo das organizações auto-organizadas/autônomas para colocar as
pautas das mulheres e o feminismo para debate.

O Feminismo Popular não é algo fechado que possamos dizer assim: tem
essas e essas características e pronto. Muitas de suas características podem
ser diferentes em lugares ou em movimentos distintos, posto que, da mesma
forma que a realidade se modifica à medida que as lutas acontecem, o
Feminismo Popular também se modifica, se renova, mas se mantém
carregando sua história de luta e transformação, a partir da luta por um projeto
popular para o Brasil.

Um passo à frente

É preciso que a auto-organização continue sendo um pressuposto de qualquer


organização que venhamos construir. Que ela possa acontecer internamente
ao movimento/partido, que ela possa ser também mais uma das nossas frentes
de massas e seja realmente parte da nossa estratégia de construção da

37
revolução brasileira, que necessariamente será anticapitalista, anti-imperialista,
antipatriarcal e antirracista.

Com feminismo construímos socialismo!

38
Feminismo Camponês Popular:
contribuições para o debate

Noeli Welter Taborda28


Michela Calaça29
Edcleide da Rocha Silva30
Adriana Maria Mezadri31
Angélica Lazaro da Cunha32
Catiane Cinelli33
Justina Inês Cima34
Itamara P. de S. Almeida35
Noemi Margarida Krefta36
Carmen Lorenzoni37

28 Militante do Núcleo Loiva Rubenich em construção e do Movimento de Mulheres


Camponesas.
29 Militante do Núcleo Garrancho de Mossoró-RN e do Movimento de Mulheres Camponesas.
30 Militante do Núcleo Loiva Rubenich em construção e do Movimento de Mulheres

Camponesas.
31 Militante do Movimento de Mulheres Camponesas
32 Militante do Núcleo Garrancho de Mossoró-RN e do Movimento de Mulheres Camponesas.
33 Militante do Núcleo Loiva Rubenich em construção e do Movimento de Mulheres

Camponesas.
34Militante do Núcleo Loiva Rubenich em construção e do Movimento de Mulheres

Camponesas.
35 Militante do Núcleo Garrancho de Mossoró-RN e do Movimento de Mulheres Camponesas.
36 Militante do Núcleo Loiva Rubenich em construção e do Movimento de Mulheres

Camponesas.
37 Militante do Movimento de Mulheres Camponesas

39
Este texto pretende apresentar alguns elementos do Feminismo Camponês
Popular (FCP), como forma de contribuir no fortalecimento da organização das
mulheres da Consulta Popular (CP) Um Passo a Frente, essa é uma
construção que vem sendo aprofundada no Movimento de Mulheres
Camponesas (MMC), uma organização autônoma de mulheres do campo na
qual militamos, bem como na CLOC/LVC38.

Para compreendermos o FCP é importante trazermos alguns aspectos da


história do MMC, que nasce no processo de luta contra a ditadura militar, pela
reabertura política e democratização do país, bem como na luta por direitos e
políticas públicas que proporcionassem vida digna para a classe trabalhadora
entre o final dos anos de 1970 e início dos anos 1980, período em que no
Brasil diversas ferramentas de luta (como movimentos populares e sindicais,
partidos políticos de base) são construídas. E as mulheres, mesmo
participando intensamente desse momento importante na história do país,
devido a cultura capitalista, patriarcal, colonialista e racista continuavam
invisibilizadas (MMC, 2018).

Diante disso, as mulheres camponesas ousaram, em diversos estados do


Brasil, construir grupos, movimentos e associações como espaços de diálogo,
debate e reflexão sobre a realidade por elas vividas (MMC, 2018). Constataram
que a opressão, exploração e violência sofridas só poderiam ser enfrentadas
com luta política e organizativa, que a igualdade de direitos e participação
deveria ser protagonizada pelas próprias mulheres, sobretudo à dura realidade
imposta à vida na agricultura, que intensificava a exploração das mulheres
camponesas. É importante destacar que ao mesmo tempo em que as mulheres
assumiram as lutas pelo reconhecimento da profissão, documentação, direitos
previdenciários, saúde, não deixaram de debater as questões da agricultura e
defender políticas públicas para a produção camponesa.

Nessa construção histórica as mulheres camponesas percebem a necessidade


de fortalecer-se enquanto coletivo que deseja transformar as relações sociais,
o que apresenta o desafio de unificar num movimento nacional os diversos
grupos existentes no Brasil. Escolhem o marco do dia 8 de março de 2004,
para a realização do I Congresso Nacional realizado em Brasília, no qual
consolidam o Movimento de Mulheres Camponesas – MMC Brasil. As
camponesas reafirmam a identidade de ser um Movimento camponês,
autônomo, popular e feminista, assumindo a missão de libertação das mulheres
trabalhadoras de qualquer tipo de opressão e discriminação. Isso se concretiza
nas lutas, na organização, na formação e na implementação de experiências
de resistência popular, onde as mulheres sejam protagonistas de sua história.
38 Coordenadora Latino Americana das Organizações do Campo e Via Campesina
40
Lutar por uma sociedade baseada em novas relações sociais entre os seres
humanos e deles com a natureza (MMC, 2004).

Ao constituir o MMC, as mulheres afirmaram que com a trajetória histórica de


organização, resistência e luta “foi sendo construída uma mística feminina,
feminista e libertadora” (MMC 2004, p.1).

Para o materialismo histórico dialético, o substrato material de todos os


fenômenos sociais apresenta grande importância, sendo necessário afirmar
que a sociedade não comporta uma única contradição, mas três fundamentais:
a de gênero, raça/etnia e a de classe, o que também dialoga com o MMC
(2018) ao apresentar que o Feminismo Camponês Popular se constrói na luta
de enfrentamento a violência sofrida pelas mulheres, no enfrentamento ao
patriarcado, ao racismo, através da luta por direitos e emancipação, na
construção de um projeto de agricultura camponesa agroecológico feminista
que se contrapõe ao modelo hegemônico do agronegócio.

As mulheres de forma organizada vão construindo experiências de libertação,


anticapitalistas, antirracistas e antipatriarcais, ou seja,

O Feminismo Camponês e Popular é forjado na luta cotidiana de


resistência e enfrentamento ao capitalismo, particularmente em sua
expressão no campo. Construímos a partir da luta contra o
agronegócio na defesa da natureza, dos bens naturais, contra os
agrotóxicos e os transgênicos, contra o roubo e saque de nossos
territórios e terras. É assim que as ações de lutas das mulheres
contra os latifundiários, contra as empresas do agronegócio, de
enfrentamento ao Estado e contra sua repressão e criminalização da
luta das mulheres camponesas faz parte da história e da formação da
luta feminista camponesa popular. Essa ação enfrenta muitos
inimigos, o agronegócio que destrói a natureza e a vida das mulheres,
mas também o patriarcado que coloca a mulher restrita ao espaço
privado, pois, mais uma vez, se coloca a importância da visibilidade
das lutas e do trabalho das mulheres como sujeitas concretas de
transformação da sociedade, ressaltando o caráter de luta contra o
capitalismo e o patriarcado do FCP (MMC, 2018, p. 33).

A construção do Feminismo Camponês Popular no MMC se dá junto às


experiências e a relação com a identidade, no sentido do identificar-se,
assumir-se feminista por parte das militantes e do movimento, de forma
articulada, pessoal e coletiva. Traz a responsabilidade individual e coletiva da
luta das mulheres, o respeito às diferenças, a construção de novas relações
entre homens e mulheres e com a natureza, a solidariedade, amor a luta, o
companheirismo, capacidade de indignar-se diante das injustiças,
transformando a indignação em ação concreta, mística feminista e
revolucionária (MMC, 2018).
41
A busca por libertação das camponesas envolve ações práticas
geradoras de conflitos, disputas de poder no seio familiar e da
sociedade, conflitos que visam equilibrar os poderes entre homens e
mulheres, [...] Para romper as barreiras da dominação e da
submissão as camponesas devem confrontar permanentemente o
sistema capitalista e patriarcal.[...] o feminismo camponês popular
emerge como uma proposta política construída coletiva e
organicamente pelas mulheres camponesas do MMC, junto as
mulheres da CLOC/LVC. [...] A perspectiva feminista das
camponesas, se efetiva em um processo permanente de
transformação de cada mulher, em sua libertação individual das
relações de dominação e exploração, mas ao mesmo tempo
coletivamente, que é o espaço onde cada uma se alimenta e se
fortalece para suas batalhas internas de libertação e também
fortalece um sujeito coletivo que trava as disputas para conquistas
coletivas, como as alcançadas pelo MMC ao longo de sua trajetória
de organização popular (SEIBERT, 2019, p. 117).

No construir-se historicamente, o MMC tem a busca da transformação dessa


sociedade, reafirmando na consolidação em 2004, os princípios de ser
“camponês, feminista, de classe e popular”. No marco da nacionalização,
assume a palavra feminista nos escritos, no entanto, a atuação feminista é
anterior, se dá na construção da libertação e emancipação das mulheres,
reafirmando a necessidade de mudanças e trazendo a luta histórica das
mulheres como instrumento de luta por direitos à terra, à vida e política
agrícola, comprometidos com a transformação nas relações sociais de gênero
e classe. Essa construção está intimamente ligada ao trabalho, sem o qual não
conseguimos compreender a vida das mulheres no campo.

Com a formação, lutas e organização as mulheres compreendem o significado


do feminismo e passam a identificarem-se e assumirem-se como feministas,

Quando vivenciamos, em nossa caminhada, a valorização do trabalho


da mulher e, consequentemente, a valorização do “ser mulher”,
afirmamos que a libertação das mulheres assumida pelo Movimento e
pelas mulheres pesquisadas se refere à conquista da autonomia, ao
passarem ser donas da própria vida, ao terem vez e voz, saberem o
que querem e não dependerem dos outros para tomar as decisões
tanto no campo pessoal, quanto coletivo. Mas sim aprender, em
contrapartida, a terem solidariedade, tomarem decisões coletivas e
juntas praticarem a discussão das concepções e ações. Esse
conjunto de elementos, podemos dizer, constitui o feminismo, o qual
é um feminismo camponês, porque é vivenciado pelas mulheres
camponesas. (CINELLI, 2012, p. 105).

Gaspareto (2018, p. 193) caracteriza como um feminismo que coloca como


fundamental a luta pela agroecologia. Há uma preocupação com a
42
biodiversidade e com a produção de alimentos saudáveis. Tem compromisso
com a vida, aprendizado sobre sementes, plantas medicinais, estudo,
formação, troca de saberes. “Por isso mesmo é um feminismo camponês
agroecológico, que incide no território e promove condições humanas, sociais e
ambientais, geradoras de uma convivência justa e sustentável”.

O MMC reconhece a agroecologia, a agricultura camponesa como


parte da construção do seu feminismo, a prática histórica de
resistência das mulheres dos povos originários do Brasil, a
escravidão, contra a tomada do seu território e pela preservação da
sua cultura, reconhece a luta das mulheres negras escravizadas, seja
na criação dos quilombos ou na luta direta com os brancos,
reconhece também que as camponesas pobres que migraram da
Europa fugindo da fome e das guerras burguesas, também
conformam nosso berço histórico e que seus conhecimentos
ancestrais contribuíram para que há trinta anos atrás as camponesas
de diversos cantos do país se organizassem e pudessem ter forças e
elementos para lutar por reconhecimento e direitos (CALAÇA et al,
2018, p. 77).

Rodrigues e Seibert (2017, p. 10) também discorrem sobre o Feminismo


Camponês Popular, pontuando seu nascimento na luta pela terra e território
das populações indígenas, camponesas e negras, trazendo um projeto
camponês e indígena de produção de alimentos. As autoras afirmam que o
Feminismo Camponês Popular identifica as causas da dominação e exploração
das mulheres camponesas latino-americanas,

as mulheres que constroem o Feminismo Camponês e Popular têm


em comum a relação com a terra, o território e a produção de
alimentos, como identidade que as unifica, mas com a certeza de que
essencialismos e romantismos em relação às identidades indígenas,
camponesas e negras devem ser superadas, assim como devem ser
eliminadas todas as formas de hierarquias ou relações de
desigualdade reproduzidas no interior destas comunidades
(RODRIGUES; SEIBERT, 2017, p.12).

O feminismo camponês popular é antipatriarcal, antirracista e anticapitalista.


Incorpora a pluralidade e diversidade, se reconhece a heterogeneidade de
formas de pensar, de se organizar, de produzir e de viver das mulheres e
povos do campo. Busca compreender a complexidade das formas de
exploração e dominação para construir um movimento integral. Com isso,
nosso feminismo tem fortalecido essa construção com as mulheres
camponesas, mas também com espaços de jovens, bem como, o debate da
diversidade de gênero, o que possibilita ampliar o debate acerca de todas as
violências sofridas pelas mulheres, para que seja possível superar todos os
meandros dessa violência, além de construir autonomia.

43
Compreende o caráter estrutural das questões étnico/raciais para a dominação,
discriminação e exploração das mulheres negras e indígenas, e como este
elemento de diferença é socialmente construído para a desigualdade, para a
inferioridade, com a compreensão de que existem assimetrias em como as
mulheres vivenciam as explorações e violências nesta sociedade de classes,
como a questão de raça, assim esse feminismo é antirracista. O feminismo
camponês e indígena é necessariamente de classe (CALAÇA et al, 2018).

Não há como compreendê-lo sem entender as determinações


materiais de um longo processo que culmina em sua definição. Pois,
descobrir-se ou entender-se como feministas para as camponesas
não é algo novo, mas é a reafirmação de muitas histórias de
organização, lutas, resistências e enfrentamentos que empreenderam
historicamente, ainda que não assumido e percebido desta maneira
em todo este processo. Na atualidade entende-se que desde sempre
sua luta era feminista e que as ações que realizavam sobre a
perspectiva de gênero e de classe, como mulheres trabalhadoras do
campo, era e é a expressão da luta feminista das camponesas.
(SEIBERT, 2019, p. 155).

Por fim, reafirmamos que o Feminismo camponês popular no Movimento de


Mulheres Camponesas é o resultado das experiências, a partir da trajetória
histórica das mulheres que ousaram se organizar e lutar contra o sistema
capitalista, patriarcal e racista. Por isso, contribui com o fortalecimento de toda
forma de organização para avançarmos na resistência e no enfrentamento à
discriminação, à opressão, à exploração e à violência. Como podemos ver no
livro organizado coletivamente pelas militantes desse movimento, “Feminismo
Camponês Popular”, lutamos por um mundo humano e justo, que respeite
todas as formas de vida, por meio de novas relações (MEZADRI et al, 2020,
p.7).

Sintetizamos com as palavras do próprio Movimento de Mulheres Camponesas


“Feminismo Camponês e Popular é respeito a nosso modo de vida, baseado no
projeto de agricultura camponesa e agroecológica, na produção de alimentos
saudáveis para o povo do campo e da cidade, mas é também transformação,
pois, busca construir as bases para uma sociedade sem classes, a sociedade
socialista e feminista” (MMC, 2018, p. 11). “É a expressão da história
construída e vivenciada pelas mulheres camponesas, pois é nele que as
mulheres do campo se percebem como sujeitos, portadoras de direitos e
capazes de transformar a realidade”. As camponesas afirmam que o
Feminismo Camponês Popular não é algo novo, que vem de fora para dentro,
mas é construído a partir da prática cotidiana de vida, luta e organização das
mulheres do campo, mesmo quando ainda não o entendiam desta forma pode-
se afirmar que suas lutas eram e são feministas, camponesas e populares. As
camponesas ao se debruçarem no aprofundamento do mesmo identificam que
44
há uma divisão sexual do trabalho, e que para romper com as cercas dessa
opressão compreendem que,

É preciso utopia, construções coletivas como experiência do que


ainda não havia, para fazer as mudanças necessárias. Ou as
fazemos com nossas próprias mãos ou não o farão por nós.
Precisamos construir formas de lutas, tecendo sonhos de libertação,
de solidariedade, de resistência, com ousadia e garra, princípios para
construir uma sociedade de justiça, de vida digna e de igualdade [...].
Nós, mulheres organizadas, continuaremos na luta pelo
reconhecimento, valoração e valorização do trabalho realizado
diariamente pelas camponesas. A libertação da mulher é obra da
própria mulher! (CALAÇA, CONTE, TABORDA, 2020, p. 131).

Diante do exposto percebe-se que a resistência feminista das mulheres


camponesas organizadas no MMC, suas lutas e a prática cotidiana as levam a
afirmar o Feminismo Camponês Popular como uma importante ferramenta que
congrega luta política com a ousadia de se organizar e ir em busca da
emancipação das mulheres de forma coletiva, elementos que para nós são
fundamentais e contribuem no fortalecimento e organização da Frente Popular
de mulheres do nosso instrumento.

REFERENCIAIS

CALAÇA, M., CONTE, I. I., & CINELLI, C. (2018). Feminismo camponês e


popular: uma história de construções coletivas... Rev. Bras. Educ. Camp.
Tocantinópolis v. 3 n. 4 p. 1156-1183 set./dez. 2018 ISSN: 2525-4863 1164.

CINELLI, Catiane, Programa de sementes crioulas de hortaliças: experiência e


identidades no Movimento de Mulheres Camponesas. Dissertação de Mestrado
em Educação e Ciências, UNIJUí, Ijuí, 2012.

GASPARETO, S. A. K. Pedagogia da Semeadura: a Construção de Saberes


pelo Movimento de Mulheres Camponesas no Programa de Sementes
Crioulas”. Ed. Dialogar. São Paulo, SP. 2018.

MEZADRI, A.M. et al., (orgs.). Feminismo camponês popular: reflexões a


partir de experiências no Movimento de Mulheres Camponesas. São Paulo:
Outras expressões, 1. ed. 2020.

MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS - MMC. Deliberações do


Movimento de Mulheres Camponesas – Brasil. Uma Afirmação de Muitas
Histórias. Documento tese do MMC. Brasília, 2004.

45
MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS - MMC, Feminismo
Camponês e Popular, Ed. Passografic, Passo Fundo, 2018.

SEIBERT, I.G., RODRIGUES, S.M.R. A Aproximação teórica entre o


Feminismo Camponês e Popular e o Marxismo Latino-americano. 2017.
Disponível em: https://singa2017.files.wordpress.com. Acesso 15.06.2021.

SEIBERT, Iridiani Graciele. Feminismo Camponês Popular: Contribuição


das mulheres camponesas na luta de transformação social. Dissertação de
mestrado no Programa de Pôs graduação de Estudos Comparado para as
Américas, Ciências Sociais, Universidade de Brasília/UNB, Brasília, 2019.

46
Nosso caminhar: balanços e
apontamentos da construção do
feminismo popular no Movimento
de Trabalhadoras e
Trabalhadores por Direitos (MTD)
Porque devemos ser um partido-
movimento?

Coletivo Nacional de Mulheres do MTD

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Introdução

O Movimento de Trabalhadoras e Trabalhadores por Direitos - MTD, ao longo


de sua trajetória, contou com a participação ativa de mulheres de diferentes
faixas etárias e regiões do nosso país – com isso, discussão acerca do urbano
fez-se entrelaçada ao cotidiano desse sujeito. Sabemos que ao pensarmos as
periferias dos grandes centros urbanos do nosso país, quem se encontra na
linha de frente são as nossas mulheres, em sua grande maioria, mulheres
negras.

Diante da enorme contradição com a qual convivemos nas cidades brasileiras,


o grupo social preterido pela categoria de cidadã e atingido pela desigualdade,
racismo, precarização do trabalho, a ausência de políticas públicas de saúde,
cultura e educação são as mulheres negras e os sujeitos vulneráveis que se
encontram no seu entorno e dependem das suas tarefas e trabalho de cuidado
e da reprodução social da vida.

Com isso, nós, a passos lentos, porém firmes, estamos avançando na


construção do Feminismo Popular em nosso movimento. Não negamos que
temos um longo caminho pela frente, e ao trazermos esse debate para o centro
da nossa pauta política e para a nossa militância, não falamos de algo com
início, meio e fim – falamos de uma luta cotidiana, que nem sempre cabe nas
elaborações e teorizações, mas sim, falamos de experiências de vida e
resistência diária a esse sistema predador que nos domina e nos quer reféns.

Vale esclarecer que ao notarmos os relatos e as trocas de experiência acerca


do Feminismo Popular em nosso movimento, este é percebido mais na prática
do que por meio de conceitos – o que nos revela o desafio da elaboração e da
sistematização em nossas fileiras de militantes, para avançarmos também nas
discussões teóricas, assimilando o Feminismo enquanto teoria social e
enquanto movimento social.

Assim, nos desafiamos a sistematizar as nossas experiências nacionais por


meio do presente texto que se organiza em três partes – inicialmente
perpassamos o Feminismo Popular e os acúmulos do nosso campo, em
seguida avançamos na discussão acerca da auto-organização das mulheres no
MTD, com um olhar atento às iniciativas e experiências de trabalho e renda
junto a nossa base e por fim, lançamos olhar aos desafios da construção do
Feminismo Popular em nosso movimento – o qual nos impulsiona a continuar a
nossa caminhada.

1. Feminismo Popular: acúmulos do Campo do Projeto Popular


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Ao longo da História do Feminismo no Brasil, pudemos observar o processo de
chegada ao campo de debate teórico e acadêmico, com recorte de sujeito
europeizado (na categoria de gênero e sua amplitude), mais uma vez,
importado junto das teorias explicativas da nossa história enquanto povo do Sul
Global e enquanto sub-continente latinoamericano, teorias que, hoje, podemos
afirmar que possuem caráter e teor colonialista, portanto, escritas pelos sujeitos
da classe dominante. Observamos um processo de absorção das nossas
pautas pela institucionalidade e também pelas organizações que compõem o
chamado Terceiro Setor, fazendo com que o feminismo latino e brasileiro, por
um longo período de tempo, não dialogassem com as mulheres da classe
trabalhadora. Ao longo desse processo, foram sendo delineadas linhas a
respeito do pensamento feminista local que se distanciavam da realidade
concreta das trajetórias de vida das mulheres latinas e brasileiras.

Dessa forma, vimos o avançar das forças em disputa nesse debate forjarem a
formação de diversos coletivos, grupos e articulações em nível nacional, sendo
hoje, os mais representativos no campo democrático popular: a Articulação de
Mulheres Brasileiras (AMB – composta por amplas redes do terceiro setor nos
estados, por mulheres das setoriais de mulheres do PT, PSB e PSOL); a União
Brasileira de Mulheres (UBM – composta por mulheres principalmente do PC
do B e UJS); e, a Marcha Mundial das Mulheres (MMM – composta
nacionalmente por mulheres das setoriais de mulheres do PT, da CUT e
também por companheiras nossas da Consulta Popular que constróem a
organização e disputam a sua linha política, fazendo um trabalho valioso pelo
viés do projeto popular). Estas três grandes articulações compõem o que
chamamos de composição do feminismo no nível do campo democrático-
popular, mas que no caso específico da MMM, é composta e disputada
também por mulheres do Campo do Projeto Popular.

Atualmente nos vemos diante de teorizações e práticas a respeito do


feminismo popular que são construídas, no Brasil, por estas três forças. Porém,
nos questionamos: o que é o feminismo popular para o nosso campo político?
Onde está o feminismo popular ao qual nos filiamos e queremos construir no
interior do MTD?

O feminismo popular ao qual nos filiamos é o feminismo construído a partir das


práticas dos movimentos e organizações políticas que compõem o Campo do
Projeto Popular, são as práticas e teorizações acumuladas ao longo das
últimas décadas pelas mulheres da MMM, do MST, do MAB, do MPA, do MMC,
do MAM e do LPJ.

O feminismo popular tecido nesse período por nossos movimentos deriva da


necessidade concreta de olhar para a composição de nossos movimentos
mistos e auto-organizados e refletir sobre as condições em que vive boa parte
das mulheres que compõem as dirigências e as bases desses movimentos. O
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feminismo que está em construção nesse processo é um feminismo de base
marxista, que parte da reflexão sobre a condição das mulheres dentro da
superestrutura político-social brasileira e latinoamericana, a partir da
diversidade de seus sujeitos: mulheres camponesas, mulheres quilombolas,
mulheres indígenas, mulheres ribeirinhas, e hoje, mulheres das cidades
brasileiras.

Estamos falando de um longo período de tempo em que a estrutura agrária


brasileira forjou movimentos sociais populares de massa, que disputaram a
estrutura fundiária do campo brasileiro, a partir da autoafirmação enquanto
categoria que conforma o campesinato brasileiro/agricultura familiar
camponesa. O desenvolvimento da nossa economia nacional enquanto
economia primário-exportadora fez com que a Reforma Agrária nunca
acontecesse, e levou a famigerada Burguesia Nacional a concentrar a
propriedade privada da terra e a levar a um amplo movimento de expulsão do
povo para as bordas das cidades brasileiras, formando um contingente
populacional que nos últimos 21 anos se tornou sujeito da luta do MTD e de
tantos outros movimentos urbanos construídos nesse período.

Portanto, quando falamos em feminismo popular, estamos falando de um


feminismo que possui as suas bases práticas e conceituais derivadas e
construídas principalmente por mulheres camponesas que participaram da
formação destes movimentos do campo, e dessa forma, também é chamado de
Feminismo Camponês Popular.

Os movimentos do nosso campo político vêm construindo o feminismo popular


a partir da necessidade concreta de dar voz e refletir sobre as mulheres que
não foram incluídas nos feminismos urbanos, aqueles que, hoje, trazem a
diversidade das pautas das mulheres urbanas, mas que, muitas vezes, não
dialogam com os conceitos de classe e raça. O Feminismo Popular Camponês
vem sendo forjado desde os anos 2000, no interior da Via Campesina, a partir
do Congresso Nacional do MST de 2005, que reuniu um percentual de cerca
de 42% de mulheres, algo que nunca havia acontecido antes.

A partir desse momento, com a força da organização da Via Campesina


enquanto articulação transnacional, o feminismo camponês popular passa a ser
pauta dos nossos movimentos do campo do projeto popular. É com a força da
chegada da MMM no Brasil no fim dos anos 1990, que também compõe a Via
Campesina, trazida por mulheres das direções da CUT e do PT, que a ideia de
um feminismo pautado também nas relações de classe e construído em
organizações mistas começa a ser construído.

Estamos falando de um feminismo que surge do seio da classe trabalhadora


brasileira e latina, a partir da auto-determinação dos sujeitos que constróem o
tripé dos movimentos populares: a organização, a formação e a luta. A partir
desse momento, passamos a incorporar em nossos debates nacionais a
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necessidade da organização das mulheres enquanto recorte da luta de classes,
a incorporar nas formações dos movimentos o debate sobre a condição das
mulheres que fazem parte dos movimentos e a nos dirigir para as lutas políticas
também com as pautas das mulheres como prioritárias.

Dessa forma, principalmente na figura do MST e do MMC, o feminismo


marxista passa a ser pauta constante nas rodas de construção dos
movimentos, construindo (no caso do MST) os setores de gênero, os setores
de homens (em alguns estados como no RS), os cursos intitulados “Feminismo
e Marxismo” (que foi construído nos estados e também em turmas nacionais)
trazendo a reafirmação dos nossos sujeitos mulheres como mulheres latinas,
negras, quilombolas, camponesas, indígenas e ribeirinhas, portanto,
localizando o debate dentro da perspectiva latina e também territorial da luta
feminista anti-classista, anti-patriarcal e anti-racista.

Esse curso marcou o avanço da pauta do feminismo camponês popular dentro


do movimento, levando ao aprofundamento do processo de formação feminista
popular cerca de 70 dirigentes estaduais, trazendo o recorte LBT, da negritude,
do autocuidado, do bem-viver, do ecofeminismo, da pauta da violência de
gênero, da pauta da comunicação feminista desde uma filiação teórica ao
materialismo histórico-dialético. No curso, foram trazidas feministas históricas
que compõem o arcabouço teórico do feminismo marxista: Heleith Saffioti,
Rosa Luxemburgo, Kruspkaya, Wendy Goldman, Alexandra Kollontai, Silvia
Féderici, Carole Pateman, Nancy Fraser.

Estamos, portanto, trazendo uma experiência teórica que produz, mais


recentemente, uma espécie de manifesto feminista marxista da segunda
década do século XXI, intitulado “Feminismo para os 99%” (2019), em um já
clássico escrito de Cinzia Arruzza, Nancy Fraser e Tithi Bhattacharya, inspirado
em uma nova onda de ativismo combativo que vê nas lutas das mulheres as
principais forças capazes de produzir a resistência e a proteção às
democracias em ameaça pelo neofascismo ao redor do mundo. Esse manifesto
é o aprofundamento da necessidade de articulação entre as categorias raça,
classe, gênero e poder, portanto, traz a perspectiva de que o racismo, o
sexismo e o classismo são estruturantes das relações de dominação nas
sociedades capitalistas.

Ora, ao falarmos em feminismo popular, estamos nos referindo a raízes


históricas e políticas. Nos referimos a um feminismo que está em disputa na
sociedade, em constante embate com o feminismo liberal que vem sendo
construído nos países do Norte Global e pela classe dominante nos países do
Sul, que vê na individualidade e nas trajetórias personificadas das mulheres o
símbolo da luta feminista contemporânea, sendo fortemente cooptado pelo
capitalismo e por suas estruturas de dominação, transformando nossas pautas
em mercadorias. Portanto, o feminismo popular é, primordialmente, anti-
capitalista.
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A partir desses acúmulos do campo democrático popular e, mais diretamente,
do nosso campo político do Projeto Popular, é que buscamos aprender com
nossas companheiras a construir o caminho necessário para a auto-
organização das mulheres também nas cidades brasileiras, em especial, aos
sujeitos fundamentais na construção estratégica do MTD, que são as mulheres,
negras, pauperizadas, analfabetizadas, furtadas de seu futuro e que constróem
diariamente a resistência e a organização popular nas periferias do nosso país.

2. Auto-organização das mulheres no MTD

O Brasil é o 5º país no mundo que mais mata mulheres por questão de gênero
– absurdamente o Brasil registra um feminicídio a cada 6 horas e meia – casos
de homicídio motivado por questões de gênero subiram em 14 das 27 unidades
federativas, de acordo com relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Acreditamos que a auto-organização das mulheres é fundamental para que o
processo de emancipação aconteça.

Em nossa Cartilha, no item “Como nos organizamos” encontramos: “A maioria


das pessoas que se organizam no MTD são mulheres, que possuem
demandas especiais no acesso ao seus direitos, como a luta pelo fim da
violência contra a mulher, a saúde da mulher, o direito à participação social.
Neste sentido, o estímulo a auto-organização e a realização de atividades e
lutas construídas por mulheres, aumenta a nossa força e nos faz avançar no
nosso caminho”.

Todas as mulheres devem se sentir empoderadas, serem emancipadas,


independente dos espaços que ocupam, da situação em que se encontram.
Aliás, a emancipação e o empoderamento são fundamentais para acabar com
a desigualdade, com a violência e com todas as formas de opressões que as
mulheres sofrem. E como podemos construir o processo de emancipação das
mulheres organizadas no MTD? Que tipo de emancipação queremos? Vamos
começar trazendo o conceito de emancipar e empoderar.

Emancipar diz respeito a tornar-se independente e libertar-se. Empoderar, em


nossa perspectiva, é relativo às condições e capacidade de tomar decisões,
condições de ter poder – estar com poder. Simone de Beauvoir fala que “[...]
como indivíduos, as mulheres podem se sustentar, seja lá por qual motivo,
conseguem se sentir mais livres. Mas como classe, as mulheres certamente
não são mais livres, precisamente porque [...] elas não têm o poder econômico.
A partir da perspectiva de classe – só há empoderamento se houver
emancipação”.

O processo de conquista da autonomia, da autodeterminação, passa, então,


pela libertação das amarras da opressão de gênero e da opressão patriarcal.
Portanto, autodeterminação tem quem alcançou as condições objetivas e
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subjetivas. A justiça econômica se constitui num dos pilares fundamentais para
o empoderamento das mulheres e das meninas, visando a promoção da
igualdade de gênero. Além disso, esta justiça deve ser construída de forma
coletiva, com o poder partilhado, com as mulheres tendo poder econômico.

Um Movimento Social precisa construir condições para que as Mulheres se


emancipem. E que condições objetivas e subjetivas são necessárias para
alcançar o empoderamento, a emancipação? Vamos olhar para as diversas
dimensões necessárias.

Cognitiva: Visão crítica da realidade – desnaturalizar as coisas, as atitudes, as


ações... Perguntar-se: por quê?

Psicológica: Sentimento de autoestima; reconhecer-se por aquilo que é, sentir-


se bem sendo quem é. Buscar a essência de si própria, e não as normas
estabelecidas por uma sociedade de consumo e padronizada.

Política: Consciência das desigualdades de poder; capacidade de se organizar


e se mobilizar.

Econômica: Capacidade de gerar renda independente; capacidade de


reconhecer a sua criatividade.

É de fundamental importância a organização das mulheres, para a conquista


dos objetivos estratégicos, que libertam de todas as formas de opressão. Para
isso, precisamos acabar com a ordem patriarcal, que passa por vencer os
princípios hierarquizantes da divisão sexual do trabalho: Trabalho de Homem X
Trabalho de Mulher. Trabalho de um – o homem, vale mais que o trabalho da
outra – a mulher. Afirmamos e compreendemos que a emancipação passa por
um processo coletivo, muito além de um processo individual.

Dessa forma, levantamos questões fundamentais: Como e onde podemos nos


organizar? Como tornamos a emancipação das mulheres parte fundante da
construção de uma sociedade que permitiu a autodeterminação e emancipação
de seu povo? Como trataremos de resolver questões históricas da condição de
vida das mulheres da classe trabalhadora, como é o caso da tripla jornada de
trabalho? Como colocaremos luz ao debate sobre o trabalho produtivo -
remunerado ou sub-remunerado pelo sistema capitalista – e o trabalho
reprodutivo – desenvolvido, em grande medida, pelas mulheres que formam a
base social do nosso movimento, na lógica da vida privada, sem remuneração,
sendo um dos pilares da reprodução social da vida? Como construiremos a luta
das trabalhadoras domésticas, que garantem esses mesmos serviços de
cuidado, porém, sendo desenvolvidos de forma precária como trabalho
terceirizado pelas famílias em centros urbanos e regiões mais abastadas? Que
alternativas estão sendo elaboradas e desenvolvidas por nós na luta pela
garantia da materialidade da vida das mulheres no MTD? Como é possível lutar
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contra os feminicídios e os altos índices de violência contra as mulheres da
nossa base social?

Trazemos aqui algumas experiências de organização das mulheres no interior


do nosso movimento, a partir da reafirmação do nosso sujeito fundamental
como a mulher negra empobrecida pela superestrutura do sistema capitalista e
neocolonial. Essa afirmação dentro da linha política estratégica do MTD, faz
com que a lente usada por nós para olhar toda a estrutura organizativa do
movimento de cima a baixo passa a ser uma lente feminista popular, e dessa
forma, podemos afirmar que todo o nosso acúmulo recente de nacionalização e
expansão do movimento passou pela organização das mulheres em todos os
estados em que estamos presentes – hoje o MTD está presente em 17 estados
de federação.

Dessa forma, temos experiências antigas e duradouras, como é o caso do


Grupo Erotildes Brasil, do Assentamento Belo Monte, localizado no município
de Eldorado do Sul, no Rio Grande do Sul. Um grupo de mulheres que se
constituiu a partir da necessidade de enfrentar situações de violência pelas
quais as mulheres estavam passando – pois, na prática, a coordenação e
direção do movimento não possuíam ainda os métodos adequados para lidar
com essa questão. O grupo desenvolveu ações para o enfrentamento da
violência e a criação de redes de apoio, sendo muito bem-sucedido nessa
pauta, e ao longo do tempo, tornou-se espaço para vivência, formação e luta.

Também temos a experiência do Grupo de Produção Ilhéus Ecológico,


localizado em Ilhas/Porto Alegre, no RS, que realiza a organização das
mulheres para a produção de sabão medicinal, gerando trabalho e renda, que
garante a um grupo de mulheres sua subsistência e independência econômica.
Mais recentemente, durante o enfrentamento à pandemia e a construção da
política de solidariedade no interior do movimento, tivemos a criação da
Saboaria Las Margaritas, em Caxias do Sul, no RS, que hoje conta com muitas
mulheres organizadas através da pauta econômica.

No Distrito Federal temos a experiência das padarias, que ajudam a organizar


as mulheres na pauta da alimentação e também a experiência de economia
popular feminista chamada a Renda Delas.

Nos estados da Paraíba, Ceará e Rio de Janeiro tivemos a criação das


chamadas Cozinhas Populares do movimento, que surgiram através da
neessidade de organização popular para o combate à fome no enfretamento ao
bolsonarismo, à pandemia e à grave crise econômica e social que derivou da
conjunção desses dois elementos, organizando hoje 6 cozinhas e tendo como
perspectiva para 2022 a nacionalização desse processo.

No interior do movimento e dentro da campanha Periferia Viva, realizamos a


formação de diversas turmas através da metodologia de formação de
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coordenações comunitárias, chamada de Agentes Populares (de saúde, de
educação, de comunicação, de direitos), que foram formadas,
substancailmente, por mulheres que passaram a acompanhar o processo de
organização popular das suas comunidades através das demandas concretas
do nosso povo durante a pandemia.

Da mesma forma, tivemos o desdobramento dos Agentes Populares de Saúde


em alguns estados na criação de farmacinhas e hortas comunitárias, também
experienciadas por mulheres da base do movimento. Dessa forma, nos
colocamos como desafio a sistematização detalhada de todos esses processos
para que possamos compreender os caminhos que as mulheres organizadas
no MTD buscam para as suas vidas e para a autodeterminação das suas
comunidades, tendo com pauta central desse processo o enfretamento à
violência, a geração de trabalho e renda e a construção de comunidades
organizadas para a defesa da vida e de um outro futuro possível.

3. Desafios do MTD na construção do Feminismo Popular

Olhando para o nosso caminhar, a caminho trilhado até o momento nos mostra
um processo forte e com potencial de grandes avanços, o que nos possibilita
contribuir com o acúmulo coletivo do feminismo popular a partir da perspectiva
da mulher urbana e do cenário atual em que vivemos.

Para isso, destacamos os próximos passos necessários para esse salto de


qualidade no nosso movimento:

Auto-organização: como princípio do feminismo popular, a auto--organização


se faz imprescindível mesmo em movimentos mistos. O MTD deve estimular
processos de auto-organização das mulheres em todos os níveis da militância,
sendo incorporada à nossa organicidade como princípio teórico e prático.
Destacando que se construa um coletivo para pensar esse processo a nível
nacional, tendo periodicidade de encontros das mulheres da coordenação
nacional com debates que possam subsidiar nossas lutas e o fortalecimento de
nossas dirigentes;

Ciranda: construir uma política de ciranda é urgente e tem sido ainda um


processo débil em nosso movimento. Pensar em processos formativos para
nossas crianças, é pensar o futuro da nossa organização e da sociedade.
Também é elemento fundamental para a garantia das mulheres nos espaços
do MTD e, por isso mesmo, não deve ser tarefa relegada às próprias mulheres.
Precisamos de um coletivo que debata e avance na nossa política de ciranda e
de orientações para que todo espaço do MTD tenha estrutura e militantes
preparados para formar e cuidar de nossas crianças;

Sistematização: Temos tido diversas experiências em processos de


organização das mulheres. Elas são a maior parte da nossa base e do sujeito
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que queremos organizar. Sistematizar essas experiências se faz necessário
para que possamos nacionalizar iniciativas e incorporar às nossas bandeiras
de luta. Sempre associando a luta das mulheres às nossas lutas gerais. Esse é
o feminismo que defendemos;

Formação: Incorporar os estudos sobre o feminismo popular no nosso plano


nacional de formação para que seja estudado por TODA a militância e
incorporado a todas as nossas análises; Esse debate deve ser feito desde a
base até as instâncias de direção;

Política de quadros: Na construção da nossa política de quadros, perceber a


desigualdade estrutural entre homens e mulheres e como ela é refletida dentro
do MTD. É perceptível que somos a maior parte da base do movimento, mas
temos participado cada vez menos dos espaços de direção. Formar e projetar
mulheres como quadros dirigentes é coerente com a nossa construção
estratégica, o que não pode ser cumprido artificialmente ou secundarizado;

Bandeira de luta e participação: As lutas das mulheres passam a ser


prioridade no nosso calendário e programa, necessitando de efetiva
participação de toda a militância na organização, na construção de debates e
lutas. As mulheres devem ser protagonistas, mas a luta das mulheres é de todo
o movimento;

Articulação política: atuar de forma mais orgânica nos espaços amplos de


debate e construção das lutas das mulheres. O MTD deve estar presente
nessas articulações e levar a nossa perspectiva para eles, assim como inserir
os nossos territórios nos processos de luta geral;

Princípios e valores: Não temos atualmente uma forma nacionalizada de lidar


com processos de violência contra a mulher dentro da nossa organização. A
direção precisa estabelecer critérios e método para agir. Essa necessidade
será essencial tanto para o acolhimento das vítimas quanto para a averiguação
das denúncias, na busca de processos educativos para os agressores e para o
conjunto da militância. Não pretendemos cumprir o papel do Estado, mas
devemos cumprir os acordos coletivos que serão elaborados para nos orientar
mediante esses casos;

Mística e autocuidado: Sabemos que o agravamento das condições de vida


da classe trabalhadora impacta mais fortemente a vida das mulheres. Essa é a
realidade da nossa base, militância e dirigentes. Precisamos estimular a
mística e garantir o acompanhamento das companheiras, em especial as que
estão em alguma situação de adoecimento, mudança de vida, maternidade,
desemprego. A organização precisa ser lugar de acolhimento e cuidado e não
mais um espaço que sobrecarrega e esgotamento.

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A nossa afirmação-síntese para o futuro do MTD no Projeto Popular para o
Brasil é que:

“Cuidar das nossas mulheres é cuidar da existência do MTD”.

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Feminismo popular e trabalho
territorial - a experiência do
Núcleo Soledad Barrett na região
metropolitana do Recife,
Pernambuco.

Elisa Maria - Pernambuco

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1. O presente texto é um primeiro exercício de compartilhar a experiência
de trabalho territorial a partir da construção do feminismo popular na
região metropolitana do Recife, Pernambuco. Primeiro olharemos para a
organicidade e alcance atual do núcleo Soledad Barrett. Em seguida,
para os principais marcos conjunturais que influenciaram e influenciam a
formatação do trabalho hoje. Por fim, apontaremos alguns desafios.

2. Hoje o núcleo Soledad Barrett possui trabalho e influência em mais de


dez territórios da região metropolitana do Recife. Além da inserção nos
bairros, as militantes compõem as comissões (finanças, comunicação,
negras e secretaria operativa). O núcleo se converte num local de
encontro e fortalecimento das mulheres dos diferentes bairros periféricos
da região, bem como fonte da linha política geral do campo popular.

3. Compreendemos o que somos hoje como fruto da formulação em torno


do Feminismo Popular. Nossa aposta de construção não está na
expectativa da adesão espontânea das mulheres, o que acabaria
alcançando especialmente mulheres jovens, com acesso às redes
sociais, mas na centralidade e construção consequente nos bairros
periféricos de Recife e região, conformando entre nosso perfil majoritário
mulheres adultas, mães, chefes de família, trabalhadoras precarizadas e
da “viração”.

4. Em uma crescente de tentativa e erro, a partir de uma experiência muito


particular, com pouco espaço para reflexão mais a nível nacional, tendo
como principal referência teórica e de linha nacional o acúmulo da
Escola da Formação Feminista da Consulta Popular, em especial das
formulações em torno da economia feminista, o núcleo Soledad Barrett
se forjou como um coletivo que tem centralidade na mulher periférica e
nas iniciativas de geração de renda.

5. De 2012, surgimento do núcleo, para cá, temos alguns marcos de


estrada. Sempre integrando a Marcha Mundial das Mulheres, de 2012
até 2014 o núcleo era composto das militantes da Consulta Popular e do
Levante Popular da Juventude, até o momento em que se decide que as
mulheres do Levante irão se auto-organizar no seio do próprio
movimento. Em 2014 o núcleo Soledad Barrett é retomado como uma
decisão estadual da Consulta Popular.

6. Num primeiro momento o núcleo se forja a partir da construção do


calendário feminista. Sem pudor, digamos, com um número reduzido de
militantes, “colocamos a cara no sol” e nos inserimos nos diferentes

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espaços de articulação ampla para a construção do calendário feminista
na cidade.

7. A resistência ao golpe travestido de impeachment à Presidenta Dilma é


um primeiro marco na atuação do núcleo que deu centralidade à
construção da Frente Brasil Popular e suas diversas iniciativas, como a
ocupação da Praça da Democracia, a Caravana da Resistência que
adentrou o estado e os comitês de mulheres da FBP. A visibilidade que
conquistamos nesse momento é convertida na I Escola de Formação
Feminista Popular Soledad Barrett, com mais de 500 inscrições e 200
participantes na sua primeira etapa.

8. Com a construção do Congresso do Povo se adensa à compreensão do


Feminismo Popular como instrumento das mulheres trabalhadoras, a
compreensão do método de construção a partir da unidade e valorização
das organizações comunitárias. O período coincide, assim, com um
maior enraizamento do trabalho do Soledad a partir dos bairros. A
Escola de Formação Feminista acompanha as mudanças, sendo a cada
edição mais dedicada ao fortalecimento do coletivo e aos desafios do
enraizamento do trabalho feminista popular.

9. Contraditoriamente, no contexto da crise sanitária, o Soledad tem mais


um marco de fortalecimento e ampliação. É também nesse contexto
recente que se consolida a direção coletiva do núcleo e é o momento de
maior autonomia em relação à Consulta Popular, uma vez que esta já
não estava mais dando respostas ao trabalho crescente do núcleo e aos
novos desafios.

10. Foi sem dúvidas o período mais desafiador pelo qual passou o coletivo.
Além das determinantes das incertezas sanitárias e do governo
genocida, o Soledad é atravessado por todas as tensões e disputas no
seio do campo popular e da Consulta.

11. Como nossas mulheres, militantes ativas do coletivo, são mulheres


periféricas, a fome nos alcançou. Foi ela que nos impulsionou a articular
com a campanha Mãos Solidárias a distribuição de cestas básicas nos
bairros, ao lado das ações que já vinham sendo desenvolvidas de
entrega de alimentos no centro urbano para a população em situação de
rua. Como tínhamos iniciativas de geração de renda, a partir da costura,
fomos, ao mesmo tempo, convidadas a constituir o que depois
chamamos de brigadas das máscaras solidárias, experiência única,
auge da resistência ao contexto das incertezas “pandemicas”.
Chegamos a articular mais de 300 mulheres, principalmente na região
60
metropolitana, mas também em outras regiões do estado, e confeccionar
e distribuir mais de 20 mil máscaras de proteção facial. A ação foi
vanguardista, ousada, única. Antes mesmo de sair qualquer diretriz
oficial sobre a importância do uso da máscara e qual modelo apropriado,
somos esforços para estudar, produzir, mobilizar e organizar pessoas
em torno dessa frente da política de solidariedade. Quem sabia costurar,
costurava, que não sabia, comprava e transportava material, cortava o
tecido para diminuir o tempo de trabalho nas máquinas caseiras de
costura, orientava de forma virtual práticas em saúde para dirimir as
dores advindas da costura, entre outras iniciativas criativas, coletivas, de
cooperação.

12. A compreensão de que o acesso à proteção facial deveria ser uma


política pública e poderia ser conduzida de forma a gerar renda para a
pequena produtora nos fez lançar uma carta pública com o mote
“Máscaras para todos e todas e não apenas para quem pode pagar!
Sobre saúde para toda a população e geração de renda para as
periferias”. Mesmo aquém das propostas levantadas, a prefeitura do
Recife lançou um edital para credenciamento de costureiras,
cooperativas, microempresas individuais ou não.

13. Como saldo, a rede de costureiras segue tendo referência no nosso


campo político, algumas se incorporaram mais organicamente as fileiras
e um curso de costura básica em um dos bairros de atuação do
feminismo popular foi concretizado.

14. Paralelamente tivemos o fortalecimento da Fábrica de Vassouras


Ecológicas de Brasília Teimosa, iniciativa idealizada em 2018, uma
parceria entre o núcleo Soledad Barrett e a ONG Turma do Flau, a partir
das Mães do Flau, que em plena pandemia recebeu o apoio do Fundo
Casa Socioambiental, fundamental para a consolidação e visibilidade da
iniciativa, colocando-a em outro patamar com vistas a formalização da
cooperativa de mulheres.

15. Outro grande avanço gestado nas contradições da pandemia foi a


consolidação de um acúmulo coletivo sobre a centralidade do debate
racial no seio do feminismo popular construído pelo núcleo. As mãos
que teceram resistência e vida contra o capital, a fome e a morte, foram
as mãos de mulheres negras, a valorização do trabalho destas e de
suas contribuições políticas é condição para a massificação do
feminismo popular. A solidariedade, a cooperação, a autogestão e o
afeto são parte da fórmula de se manterem vivas numa estrutura que

61
lucra e se mantém com a exploração e invisibilização das contribuições
das mulheres negras trabalhadoras.

16. Esse acúmulo teve impactos na compreensão da importância da auto-


construção e fortalecimento do coletivo, no método de construção cada
vez mais pautado na escuta atenta das mulheres a partir dos bairros
para a construção e validação de linhas gerais de atuação, na promoção
de momentos de auto-cuidado coletivo, espaços em que as mulheres se
sentem seguras, reforçam laços de confiança contra a lógica
individualista e competitiva reinante.

17. A constatação da presença das mulheres na linha de frente da luta pela


vida, a partir dos territórios, força indispensável para a materialidade da
política de solidariedade deve ser compreendida a partir de uma leitura
crítica da posição da mulher no sistema racista, capitalista e patriarcal,
qual seja, do cuidado, o que permeia (a partir de uma visão dicotômica
que precisamos superar na nossa prática política) o âmbito privado e
público. Não à toa as mulheres são a maioria na produção
agroecológica, haja vista a falta de acesso à tecnologias; não à toa as
mulheres são maioria nos movimentos urbanos, haja vista o impacto
direto na vida das chefes de família ante a ausência do direito à
moradia, saúde, educação; não à toa as mulheres são maioria nos
trabalhos de cuidados remunerados, empregadas domésticas,
enfermeiras, posto que estão são profissões que reafirmam o local da
mulher na divisão sexual do trabalho.

18. Nosso horizonte segue sendo o da visibilização, valorização e


socialização do trabalho doméstico e de cuidados, bem como
visibilização e valorização e uma participação compatível com nossa
contribuição prática nos espaços de decisão e poder da sociedade.

19. Desafios. Primeiro o da sistematização, enquanto uma experiência


coletiva e participativa e capaz de sistematizar seus fatores objetivos e
subjetivos para a extração de lições para a massificação do feminismo
popular. Fortalecer e crescer o feminismo popular enquanto força social
passa, necessariamente, pelo exercício da sistematização de
experiência, também sendo muito proveitoso o intercâmbio entre as
iniciativas existentes.

20. O poder convocatório das mulheres é comprovado pelas diversas


expressões de massa da luta das mulheres. Primavera feminista, Fora
Cunha, Marcha das Margaridas, Marcha das Mulheres Negras, #EleNão,
a presença majoritária nas ações de solidariedade são exemplos dessa
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força. Garantir essa força nos espaços de direção e a incorporação das
pautas segue sendo um desafio. Estamos na construção dos Comitês
Populares de Luta, a força das mulheres é indispensável para o seu
enraizamento e sentido de continuidade da resistência gestada no último
período.

21. Temos a tarefa zero de derrotar o Bolsonaro e o bolsonarismo. Pautas


em torno dos direitos sexuais e reprodutivos e a ideologia de volta ao lar
para as mulheres serão mobilizadas pelos nossos inimigos. Calibrar bem
nossas forças e não retroceder nos acúmulos, nem barganhar as pautas
do feminismo popular deve fazer parte da nossa tática. Elevar nossas
construções, como por exemplo, as hortas urbanas, as cozinhas
solidárias, as produções cooperadas, a parte do projeto político também.

22. A fé no povo nos guia. Resgatar a pedagogia da pergunta e a


generosidade entre nós é parte da massificação do feminismo e do
projeto popular.

Para conhecer mais:

Mulheres em movimento sustentam a vida: as ações de solidariedade da


Marcha Mundial das Mulheres no Brasil. Disponível em: https://www.sof.org.br/wp-
content/uploads/2021/12/A%C3%A7%C3%B5es-de-solidariedade-web.pdf

Sosteniendo la vida desde nuestras experiencias económicas. Disponível em:


https://www.marchamundialdasmulheres.org.br/wp-content/uploads/2021/11/Mapeo-v3.pdf

Máscaras solidárias: https://www.campanhamaossolidarias.org/mascaras-solidarias

Vozes Populares | Fábrica de Vassouras gera renda e fortalece mulheres em


periferia do Recife. Disponível em: https://cutt.ly/5º4CWjZ

Outras matérias e reportagens:

1) Jornal do Commercio - Garrafas pets viram ferramenta para gerar renda


para mulheres em Brasília Teimosa (15/05/2021)

https:/jc.ne10.uol.com.br/economia/2021/05/12124681-garrafas-pets-viram-
ferramenta-para-gerar-renda-para-mulheres-em-brasilia-teimosa.html

2) NE10 - Mulheres geram renda ao produzir vassouras com garrafas pets no


Recife (21/05/2021)

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https:/ interior.ne10.uol.com.br/noticias/2021/05/21/mulheres-geram-renda-ao-
produzir- vassouras-com-garrafas-pets-no-recife-209814

3) Brasil de Fato - Grupo de mulheres enfrenta a crise através da


sustentabilidade (10/06/2021)

https:/www.brasildefatope.com.br/2021/06/10/grupo-de-mulheres-enfrenta-a-
crise-atraves-da-sustentabilidade

4) Jornal do Commercio - Carol Patrícia é exemplo e guia de transformação em


Brasília Teimosa (12/03/2021)
https:/jc.ne10.uol.com.br/pernambuco/2021/03/12039665-carol-patricia-e-
exemplo-e-guia-de-transformacao-em-brasilia-teimosa.html

5) Entrevista à Rádio Frei Caneca (101.5 FM), no Programa Salada Pop


(21/10/2021)

https:/www.youtube.com/watch?v=LxyexsV3pzg&ab_channel=FreiCanecaFM

6) Participação no Projeto Terra Fértil, realizado pela Coletiva Cabras, da


comunidade do Bode, também com apoio do Fundo Casa Socioambiental
(16/07/2021)

https:/www.youtube.com/watch?v=CSJGLWOg7_A&ab_channel=ColetivaCabr
as

7) Brasil de Fato - Campanhas de solidariedade intensificam doações durante


período natalino (10/12/2020)

https:/www.brasildefatope.com.br/2020/12/10/campanhas-de-solidariedade-
intensificam-doacoes-durante-periodo-natalino

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A Mulher Polvo

Berenice39

39Militante da Consulta Popular – Um passo à frente de Minas Gerais do núcleo de Juiz de


Fora.
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Ao receber um e-mail das mulheres da CP, pensei que não conseguiria
escrever nada. A minha consciência foi me perseguindo e resolvi escrever este
texto. Um texto prático, o que sentimos, experienciamos e percebemos. Espero
estar contribuindo, para abrir algum diálogo a começar com as mulheres da
CP.

A história do Patriarcado nos manipulou com uma divisão sexual do trabalho de


multi-tarefas, que parecia lógica, mas resultou num trabalho de escravidão,
difícil de ser resolvido no mundo Moderno.

As mulheres são exploradas em todos os níveis: no corpo físico, no emocional


no mental, nas crenças. É obvio que somos diferentes. Os homens se valem da
nossa sensibilidade para nos explorar. Faz tudo para nos convencer a sermos
dependentes deles e, assim controla o feminino.

Ser um homem feminino


Não fere o meu lado masculino
Se Deus é menina e menino
Sou masculino e feminino

Se no Universo tem esse magnetismo, que essa energia alinha tudo isso, essa
energia também está no cérebro humano.

(os artistas e poetas carregam esse sentimento)

Sem equilíbrio vem o caos. A sociedade Patriarcal, capitalista, neoliberal está


desequilibrada; Sem o equilíbrio vem o caos. Imagine um desequilíbrio nas
forças do Universo! Que resultado pode vir? Ou já vem vindo?

O planeta está marcado pelo desequilíbrio de ambiental, social e de gênero. O


sofrimento está em todo o planeta. As mulheres são as que mais sofrem na
história da humanidade. Por isso somos alinha de frente na transformação
desta sociedade duramente patriarcal e capitalista com imensas
desigualdades. Essa cultura patriarcal está incrustada em nossa mente, das
mulheres também, pois está naturalizado.

A mulher polvo

O que me inspirou a escrever este texto? Numa das plenárias nacional da CP


onde quem coordenava era uma mulher com uma criança no colo, não me
lembro o seu nome coordenou a plenária controlando, simultaneamente, as
duas coisas. Já entrei em sala de aula com blusa pelo avesso. Nós nos
viramos do avesso para dar conta de tudo. E a Sociedade Patriarcal criou essa
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cultura. Isso nos traz sofrimento. Isso estressa, cria ansiedade. Se já
incorporamos essa crença, somos abusas sem perceber. O que traz sofrimento
não é natural. Esse é um argumento para a super-exploração da mulher.
Levantava-me às cinco da manhã para dar conta de dois cargos na rede
Estadual, da casa e das crianças. Quando aposentei, eu me vi anestesiada,
não acreditando no que estava acontecendo. Aí fui acordando, me perguntando
como dei conta de tudo isso.

A mulher Polvo tem muitos braços de trabalho. Não deveria ser natural. Isso foi
historicamente construído, é a zona de conforto dos homens e não são eles
quem vão lutar por essa transformação. Essa luta é nossa. Não basta um
socialismo masculinizado. Precisamos do equilíbrio para construir felicidade. É
uma luta com distância temporal. A largada é a consciência desta situação, sair
do estado de anestesia, nos organizarmos coletivamente.

A mulher polvo é mãe, babá, educadora, motorista, cuidadora de idosos,


enfermeira, cozinheira... Enfim, só não há tempo para nos cuidar com
tranquilidade. Se trabalhamos fora de casa, temos uma recompensa salarial
desvalorizada duplamente explorada pelo capital, se os serviços reprodutivos
não são remunerados, alguém ganha com isso, pois criamos energia vital
explorada pelo capitalismo que nos é cruel e ainda nos desvaloriza e oprime
com todas cultura patriarcal pesando sobre nós ainda nos impedindo a
valorizar a nós próprias. O caminho é educar a nós próprias e trazer para a
sociedade uma nova educação. Arrancar de nós o machismo incorporado em
nós ao longo da história dessa sociedade.

As mulheres têm uma longa jornada a percorrer até obter um equilíbrio de


gênero. Há muito feminicídio, porque os homens sentem-se proprietário das
mulheres. Quem ama não mata. E não somos proprietários de ninguém.

Assim vamos lutando, acumulando forças para cortar as amarras da escravidão


do capital e do cruel patriarcado que vem com aparência de amor. Devemos ir
nos preparando também para sair da escravidão emocional, que traz
sofrimento. Isso não significa não amarmos as energias masculinas. O
Universo tem essas duas energias, atraindo os astros pelo magnetismo
harmonizado. Sem isso, o universo seria caótico. Como cantava Raul Seixas
“cada um de nós é um universo. Pedro, onde você vai eu também vou, pois
tudo acaba onde começou.”

Às mulheres da CP muita gratidão por me incentivar a escreve este. Tenho


certeza de que incentivam muitas outras a se expressarem também.

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