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----------------------

A obra de arte na época de


sua reprodutibilidade técnica
[segunda versão]

Walter Benjamin

apresentação, tradução e notas


Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado
- r•••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• ~

© 2012 Editora Zouk


Apresentação
Projeto gráfico. Alexandre Dias Ramos
Imagem da capa. Set de filmagem de O grande ditador,
de Charles Chaplin, 1939/40. © Roy
Export Company Establishment.
Revisão gramatical. Mateus Colombo Mendes o leitor tem aqui a tradução, inédita no Brasil, da
Copidesque. Renato Siqueira de Azevedo segunda versão alemã do ensaio "Aobra de arte na época
Editoração. William C. Amaral de sua reprodutibilidade técnica", na qual Walter
Benjamin trabalhou entre dezembro de 1935 e final de
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) janeiro de 1936, e que foi a primeira considerada por ele
Benjamin, Walter. 1892-1940. como pronta para publicação. Por muito tempo tida por
A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica / Walter
Benjamin; apresentação, tradução e notas Francisco De Ambrosis desaparecida, só foi encontrada nos arquivos de Max
Pinheiro Machado.
2. reimpr. - Porto Alegre, RS: Zouk, 2014.
Horkheimer, em Frankfurt, em meados da década de 1980
Título original: Das Kunstwerk im Zeitalier seiner /echnischen e publicada, pela primeira vez, em 1989, no volume
Reptoduzietbatkeit
inclui bibliografia suplementar VII de Gesammelt Schriften [Obras reunidas]. 1
ISBN 978-85-8049-023-7
Desse fato, já se pode deduzir que a história do
1. Arte e sociedade. 2. Estética. 3. Filosofia alemã. 4. Cultura. 5. Cinema.
6. Ciência e tecnologia. l. Título. surgimento e da publicação desse famoso ensaio de
CDD 701
Benjamin é bastante complexa e polêmica. Não faz
sentido tratá-Ia detalhadamente aqui, mas somente
direitos reservados à
Editora Zouk. rua Garibaldi. 1329. Bom Fim. 90035.052. Porto apontar seus momentos principais. A segunda versão
Alegre. RS. Brasil. resultou de uma revisão e ampliação considerável da
você também pode adquirir os livros da zouk pelo primeira (escrita entre outubro e dezembro de 1935),2
www.editorazouk.com.br f. 55 51. 3024.7554 já levando em conta algumas questões suscitadas por

Por respeito a todos os profissionais que trabalharam neste livro


(autores, tradutores, revisores, diagramadores, editores, impressores, IBenjamin, 1991, VII: 350-384.
distribuidores e livreiros). pedimos que não seja feito xerox de 2Benjamin, 1991, I: 431-469. No Brasil, foi traduzi da por Sérgio Paulo Rouanete
nenhum trecho. A compra do exemplar, além de prestigiar estes publicadaemBenjamin, 1985: 165-196.
profissionais, permite à editora manter este livro em catálogo e
publicar novas obras que beneficiarão o público leitor.
5

Horkheimer e Theodor Adorno. Serviu tamb~m de base publicado pela primeira vez no Brasil, em tradução de
para a tradução francesa que Pierre Klossowski realizou 1968, realizada por Carlos Nelson Coutinho." De lá para
na época, tradução esta que terminou por constituir cá, sua influência só cresceu.
uma "versão francesa" autônoma do ensaio, pois sofreu Não cabe detalhar as diferenças entre as versões,
novas alterações ocasionadas por interferência de Max mas vale destacar alguns trechos muito relevantes que
Horkheimer. Nessa versão francesa é que o ensaio foi aparecem somente na segunda versão, a saber: uma
publicado, pela primeira vez, na Zeitschrift für teoria da mimes e na arte pautada na relação entre
Sozialforschung [Revista para pesquisa social], em maio aparência [Schein] e jogo [Spiel]; e uma teoria do
de 1936.3 Benjamin aceitou as mudanças e autorizou a afrouxamento [Aufiockerung] da massa proletária
publicação, mas manifestou sua decepção em carta a compacta, que a transformaria em classe com consciência
seu amigo Scholern, dizendo que não via, naquele revolucionária (respectivamente, notas x e XII). Merece
momento, chances de publicação do texto original." destaque ainda um importante trecho - vinculado a estes
Benjamin trabalhou ainda em uma terceira versão alemã, dois já citados e que aparece somente na segunda versão
provavelmente até 1938, retomando a maioria dos trechos e na versão francesa - no qual Benjamin explicita a
e notas cortados na versão francesa, bem como diferença entre a primeira e a segunda técnica, a partir
acrescentando novos. A publicação desta terceira versão, da qual se destacam o conceito de jogo e suas
a primeira desse ensaio em língua alemã, ocorreu implicações para a teoria da arte e da revolução (final da
somente em 1955, na coletânea Schriften [Escritos], parte VI e nota IV). Todos esses trechos trazem novos
organizada por Theodor Adorno.' Foi nessa terceira elementos que elucidam posições de Benjamin somente
versão que, no final da década de 1960, o ensaio começou implícitas nas outras versões. Permitem também
a se tornar mais conhecido e ter uma recepção entender melhor alguns pontos das críticas e dos elogios
internacional e mais positiva. Época, inclusive, que foi que Adorno fez a este ensaio em suas correspondências

3 Benjamin, 1991, I: 709-739. 6 Tradução publicada primeiramente na Revista da Civilização Brasileira (Rio de
4 "Carta a Gershom Scholem de 29/03/1936" (apud Schõttke, 2007: 127-128). Janeiro, 1968, ano IV; n. 19-20) e depois na coletânea organizada, prefaciada e
5 Benjamin, 1991, I: 472-508. comentada por Luiz Costa Lima, Teoria da cultura de massa, em 1969 (Benjamin,
2000a). Ainda em 1969, o ensaio recebeu outras duas publicações: uma na coletânea
organizada, prefaciada e traduzida por José Lino Grünewald, em A ideia do cinema
(Rio de Janeiro: Civilização Brasileira), outra de Dora Rocha, no livro Sociologia da
7

modo mais rico do texto, do autor, de sua época, de seu


de 1936 com Benjamin e Horkheirner, pois a versão a
que se referia, na época, foi precisamente a segunda, lugar e de sua língua, na medida em que nos faz
conhecer também a distância que nos separa deles.
que vem aqui traduzida.
Segundo Benjamin, "toda tradução é apenas um Francisco De Ambrosis Pinheiro Machado
7
modo provisório de lidar com a estranheza das línguas".
Pode-se dizer que a presente tradução partiu dessa
posição e, sem precisar assumir todo o peso metafísico-
teológico que Benjamin está pressupondo ali, optou por
respeitar as diferenças e os estranhamentos que
inevitavelmente surgem nesta tarefa de transposição de
uma língua a outra. Para tal, pautou-se na literalidade,
seguindo o mais perto possível, por exemplo, a tendência
à substantivação da língua alemã, bem como seu modo
de construção das frases. Esse respeito se voltou
também à peculiaridade da escrita de Benjamin, evitando,
por exemplo, simplificar passagens e construções de
frases que no original são mais elípticas ou herméticas,
não dissimulando o estranhamento e as dificuldades
que causam também para quem lê diretamente em
alemão. Essa opção pode tornar, em alguns momentos,
a leitura mais difícil, exigindo do leitor mais atenção e
paciência; no entanto, permite aproximarmo-nos de um

arte W,organizado por Gilberto Velho (Rio de Janeiro: Zahar). Entre os pioneiros na
recepção deste ensaio no Brasil na década de 1960, podemos citar José Guilherme
Merquior, Leandro Konder, Roberto Schwarz, Benedito Nunes e Augusto de Campos.
7 "A tarefa do tradutor" (1923). Benjamin, 2011: 110.
Coin de Ia rue Saint-Séverin et des nos 4 et 6 rue Saint-jacques (5' arr.) , de
Eugêne Atget, fotografia, 1899.
9

o verdadeiro é o que ele pode; o falso, o que ele quer. 8

Madame de Duras

Quando Marx empreendeu a análise do modo de


produção capitalista, este modo de produção estava em
seus primórdios. Marx'? orientou suas investigações de
tal modo que adquiriram valor de prognóstico. Recuou
às relações fundamentais da produção capitalista e
apresentou-as de forma a delas resultar o que futuramente
ainda poderia ser esperado do capitalismo. Deste era de
se esperar não só uma exploração cada vez mais
intensificada dos proletários, como também, finalmente,
o estabelecimento das condições que tornariam possível
a sua própria abolição.
O revolvimento " da superestrutura, que se
processa muito mais lentamente que o da infraestrutura,
precisou de mais de meio século para fazer valer, em

8 Le vrai est ce qu'il peut; le faux est ce qu'il veut. Madame Claire de Duras (1778-
1828), autora das novelas Ourika (1823) e Edouard (1825), presidia um famoso
salão literário em Paris. Estas notas explicativas se baseiam em boa parte nos
comentários de Detlev Schõttke ("Kommentar", 2007), nas notas dos tradutores
Edmund]ephcott e Harry Zohn (Benjamin, 2002) e nas "Notas dos Editores" de
RolfTiedmann e Hermann Schweppenhãuser (Benjamin, 1991).
11

todos os domínios da cultura, a mudança das condições


de produção. De que forma isso aconteceu, somente hoje
se pode indicar. A partir dessas indicações, devem ser
levantadas certas exigências de caráter prognóstico, às
quais correspondem, todavia, não tanto teses sobre a
arte do proletariado depois da tomada de poder, menos
ainda sobre a arte na sociedade sem classes, mas teses
sobre as tendências do desenvolvimento da arte sob as
condições atuais de produção, cuja dialética não é menos
perceptível na superestrutura do que na economia. Por
isso, seria falso subestimar o valor de combate de tais
teses. Elas põem de lado um número de conceitos
tradicionais - como cri atividade e genialidade, valor de
eternidade e mistério -, conceitos cuja aplicação
incontrolada (e, no momento, dificilmente controlável)
conduz à elaboração do material factual em um sentido
fascista. Os conceitos introduzidos a seguir, novos na
teoria da arte, diferenciam-se dos mais correntes pelo
fato de serem completamente inutilizáveis para os
objetivos do fascismo. Pelo contrário, podem ser
utilizados para a formulação das exigências
revolucionárias na política da arte.

radical, por isso, optou-se aqui pelo termo correspondente em português,


9 Essa primeira parte foi inteiramente cortada na versão francesa deste ensaio.
"revolvirnento". O termo Revolution foi traduzido por "revolução", e revolutioniir
10 Karl Marx (1818-1883), filósofo político e jornalista, um dos mais importantes
por "revolucionário".
e influentes teóricos críticos do capitalismo e do movimento social dos trabalhadores.
Benjamin se aproximou do marxismo a partir de 1924.
11 Umwiilzung, que é formado a partir do verbo umwiilzen [revirar, revolver]; na
forma substantivada significa revolução, num sentido mais neutro, ou transformação
13

11

A obra de arte sempre foi, por princípio.


reprodutível. O que os homens fizeram sempre pôde ser
imitado por homens. Tal imitação foi praticada igualmente
por discípulos, para exercício da arte; por mestres, para
difusão das obras; e, finalmente, por terceiros, ávidos de
lucros. Em oposição a isso, a reprodução técnica da obra
de arte é algo novo, que vem se impondo na história de
modo intermitente, em saltos separados por longos
intervalos, mas com intensidade crescente. Com a
xilogravura, pela primeira vez, a arte gráfica se tornou
reprodutível - muito antes que, por meio da imprensa, o
mesmo ocorresse com a escrita. As enormes mudanças
que a imprensa, a reprodução técnica da escrita, provocou
na literatura, são conhecidas. Porém, são apenas um caso
especial, por certo particularmente importante, do
fenômeno que aqui é considerado em escala histórico-
universal. À xilogravura juntam-se, no decorrer da Idade
Média, a estampa em cobre e a água-forte, bem como, no
início do século XIX, a litografía."

12 A técnica da xilogravura ficou conhecida na Europa por volta de 1400; permite

uma tiragem de algumas centenas de cópias. A imprensa foi desenvolvida por


johannes Gutenberg (1397-1468) em Mainz, Alemanha, a partir de 1440. A estampa
em cobre surgiu em 1420, permitindo uma tiragem de cerca de mil cópias. A água-
forte foi desenvolvida em tomo de 1515. A litografia foi inventada por Alois Senefelder
(1771-1834), permitindo a tiragem de vários milhares de exemplares.
_.
15

Com a litografia, a técnica de reprodução alcança


um estágio fundamentalmente novo. O procedimento
muito mais exato, que diferencia a aplicação do desenho
sobre uma pedra de seu entalhe em um bloco de madeira
ou de sua gravação com água-forte sobre uma placa de
cobre, permitiu à arte gráfica, pela primeira vez, levar
suas produções ao mercado não só em massa (como já
ocorria antes), mas também em formas diariamente novas.
Por meio da litografia, a arte gráfica se tornou capaz de
acompanhar ilustrativamente o cotidiano. Começou a
acertar o passo com a imprensa. Já nesse começo, porém,
poucas décadas depois da invenção da litografia, ela foi
sobrepujada pela fotografia. Com a fotografia, 13 a mão foi
desencarregada, no processo de reprodução de imagens,
pela primeira vez, das mais importantes incumbências
artísticas, que a partir de então cabiam unicamente ao
olho. Como o olho apreende mais rápido do que a mão
desenha, o processo de reprodução de imagem foi
acelerado tão gigantescamente que pôde manter o passo
com a fala. Se na litografia estava virtualmente oculto o
jornal ilustrado, 14 na fotografia estava o filme sonoro."
A reprodução técnica do som foi empreendida no final

I3 O primeiro registro fotográfico foi realizado por ]oseph Nicéphore Niépce (1765-
1833) em 1826. A técnica de cópias de registros fotográficos usando um negativo
foi desenvolvida em 1841, pelo inglês Henri Fax Talbot (1800-1877).
14 Os primeiros jornais ilustrados [illustrierte Zeitung] surgiriam simultaneamente
em 1833 em Londres, Paris e Leipzig.
15 O filme mudo surgiu na déc. de 1890; o filme falado, em meados da déc. de 1920.
17

do século passado. Em torno de 1900, a reprodução


técnica alcançou um padrão a partir do qual começou
não só a transformar a totalidade das obras de arte
tradicionais em seu objeto, e submeter o efeito destas a
profundas transformações, como também conquistou para
si um lugar próprio entre os procedimentos artísticos.
Para o estudo desse padrão, nada é mais elucidativo que
o modo como suas duas diferentes manifestações -
reprodução da obra de arte e arte cinematográfica
retroagem sobre a arte em sua forma tradicional.

11I

Mesmo à mais perfeita reprodução falta um


elemento: o aqui e agora da obra de arte - sua existência
única no local onde se encontra. Nessa existência única,
porém, e em nada mais, realiza-se a história à qual foi
submetida no decorrer de seu existir. Isso compreende
tanto as mudanças que a obra sofreu no correr do tempo,
em sua estrutura física, como as cambiantes relações de
propriedade em que ingressou. Os rastros da primeira só

Banca de jornal na rue de Sêvres (7' arr.), de Eugêne Atget, fotografia, 1911.
podem ser revelados por meio de análises químicas ou
físicas, que não se deixam realizar na reprodução; os rastros
da segunda são objetos de uma tradição, que deve ser
perseguida a partir do lugar onde se encontra o original.
O aqui e agora do original constitui o conceito de
sua autenticidade e sobre o fundamento desta encontra-se
a representação" de uma tradição que conduziu esse objeto
até os dias de hoje como sendo o mesmo e idêntico objeto.
A esfera da autenticidade, como um todo, subtrai-se à
reprodutibilidade técnica - e, naturalmente, não só a que
é técnica. Enquanto, porém, o autêntico mantém sua
completa autoridade em relação à reprodução manual, que
em geral é selada por ele como falsificação, não é este o caso
em relação a uma reprodução técnica. A razão disso é dupla.
Em primeiro lugar, a reprodução técnica efetua-se, em relação
ao original, de modo mais autônomo que a manual. Pode,
por exemplo, na fotografia, acentuar aspectos do original
acessíveis somente à lente - ajustável e capaz de escolher
arbitrariamente seu ponto de vista -, mas não ao olho
humano. Ou pode, com a ajuda de certos procedimentos,
., como ampliação e câmera lenta, fixar imagens que
simplesmente se subtraem à óptica natural. Essa é a primeira

16 Vorstellung, no sentido de representação intelectual de algo, em oposição à


"representação, encenação", "apresentação, exposição", que em alemão seria
Darstellung, tal como aparece em outras partes do ensaio. Daí também Darsteller
ser traduzido por "ator".
21

razão. Além disso, em segundo lugar, a reprodução técnica


pode colocar a cópia do original em situações que são
inatingíveis ao próprio original. Sobretudo, torna possível
ir ao encontro daquele que a recebe, seja na forma da
fotografia, seja na do disco. A catedral abandona seu lugar
para encontrar sua recepção no estúdio de um amante das
artes; o coral que foi executado em uma sala ou a céu aberto
se deixa ouvir em um quarto.
Essas circunstâncias modificadas podem deixar, no
mais, a constituição da obra intocada - desvalorizam, em
todo o caso, seu aqui e agora. Mesmo que isso de modo
algum valha só para a obra de arte, mas igualmente, por
exemplo, para uma paisagem que passa diante do
espectador no filme, por meio desse processo é afetado
um núcleo dos mais sensíveis do objeto da arte, que em
nenhum objeto natural é tão vulnerável. Trata-se de
sua autenticidade. A autenticidade de uma coisa é a
quintessência de tudo aquilo que nela é transmissível desde
a origem, de sua duração material até seu testemunho
histórico. Na medida em que este se funda naquela, então,
•. na reprodução, quando a duração material se subtrai aos
homens, também o testemunho histórico da coisa é
23

abalado. De certo, somente isso, mas o que desse modo é


abalado é a autoridade da coisa, seu peso tradicional.
Pode-se resumir essas marcas distintivas com o
conceito de aura e dizer: o que desaparece na época da
reprodutibilidade técnica da obra de arte é sua aura. Esse
processo é sintomático; seu significado vai muito além
da esfera da arte. A técnica de reprodução, assim se pode
formular de modo geral, destaca o reproduzido da esfera
da tradição. Na medida em que multiplica a reprodução,
coloca no lugar de sua ocorrência única sua ocorrência
em massa. E, na medida em que permite à reprodução ir
ao encontro daquele que a recebe em sua respectiva
situação, atualiza o que é reproduzido. Esses dois
processos conduzem a um violento abalo do que foi
transmitido - um abalo da tradição, que consiste no
reverso da atual crise e renovação da humanidade. Estão
em estreita conexão com os movimentos de massa de
nossos dias. Seu agente mais poderoso é o cinema.
Seu significado social não é concebível, inclusive e
precisamente em sua forma mais positiva, sem esse lado
destrutivo, catártico: a liquidação do valor de tradição na
herança cultural. Esse fenômeno é mais palpável nos
25

grandes filmes históricos. Ele ocupa cada vez mais


I GANCE, Abel. "Le temps de l'image est venu", L'art posições em sua área. E quando Abel Gance, 17 em 1927,
cinematographique II. Paris, 1927, p. 94-96.
exclamou entusiasticamente: "Shakespeare, Rembrandt,
Beethoven farão cinema [...]. Todas as lendas, todas as
mitologias e todos os mitos, todos os fundadores de
religiões, sim, todas as religiões [...] esperam por sua
ressurreição iluminada, e os heróis premem-se nos
portões",' ele convidava, talvez sem esta intenção, para
uma vasta liquidação.

IV

No interior de grandes períodos históricos,


transforma-se com a totalidade do modo de existência
das coletividades humanas também o modo de sua
percepção. O modo como a percepção humana se
organiza - o medium'í no qual ocorre - não é apenas
condicionado naturalmente, mas também historicamente.
A época das migrações dos povos, na qual surgiram a
indústria artística tardo-romana e o Gênese de Viena, 19
possuía não só uma outra arte que a da Antiguidade,

17 Abel Gance (1889-1981), diretor de cinema francês. Realizou filmes épicos e


históricos, como j'Accuse (1919), filmado com soldados franceses no final da
I Guerra, e Napoléon (1927). Benjamin citou esse último na primeira versão deste
ensaio, como exemplo de liquidação da herança cultural.
18 Optou-se por manter o termo original Medium, usado por Benjamin no sentido

de "meio" enquanto ambiente, espaço onde ocorre a percepção, em oposição a uma


27

como também uma outra percepção. Os estudiosos da


Escola de Viena, Riegl e Wickhoff, que se contrapuseram
ao peso da tradição clássica, sob a qual aquela arte ficara
soterrada, foram os primeiros a pensar em extrair dela
conclusões sobre a organização da percepção da época na
qual estava em vigor. Por mais destacados que fossem
seus conhecimentos, tinham seu limite no fato de estes
pesquisadores se contentarem em apontar a
característica" formal própria da percepção na época tardo-
romana. Não tentaram - talvez não pudessem também
ter esperanças de consegui-Io - mostrar os revolvimentos
sociais que encontraram sua expressão nestas mudanças
da percepção. No presente, as condições para uma tal
visada são mais favoráveis. E se as mudanças no medium
da percepção, das quais somos contemporâneos, se
deixarem apreender como decadência da aura, então é
possível indicar as condições sociais desta decadência.
O que é propriamente aura? Um estranho tecido
fino " de espaço e tempo: aparição única de uma
distância, por mais próxima que esteja. Em uma tarde
de verão, repousando, seguir os contornos de uma
cordilheira no horizonte ou um ramo, que lança sua

acepção instrumental de "meio para um fim determinado", que em alemão é Mittel,


história da arte, como tecelagem e outros, a partir de uma teoria da produção
tal como aparece no restante do texto.
artística. Defendia que diferentes ordens formais de arte emergem como expressão
19 Alusão ao importante estudo "Die spõirõmische Kunstindustrie nach den Funden
de diferentes épocas históricas. "Genese de Viena" designa um suntuoso manuscrito
in Ósterreich-Hungam" [A indústria artística tardo-romana a partir das descobertas
ilustrado do século VI, que contém um dos primeiros ciclos de imagens bíblicos.
na Áustria-Hungria], do historiador da arte austríaco Alois Riegl (1858-1905),
Os historiadores da arte austríacos Franz Wickhoff (1853-1909) e Wilhelm von
publicado pela primeira vez em 1901, que aborda também domínios marginais da
Hartel publicaram um estudo, com o título "Die Wiener Genesis", sobre esse
...•

29

sombra sobre aquele que descansa - isso significa


respirar a aura dessas montanhas, desse ramo. Dispondo
dessa descrição, é fácil entender os condicionamentos
sociais da atual decadência da aura. Baseiam-se em duas
circunstâncias, ambas relacionadas com o crescimento
cada vez maior das massas e com a crescente intensidade
de seus movimentos. Nomeadamente: "Trazer para mais
próximo" de si as coisas é igualmente um desejo
apaixonado das massas de hoje, como o é a tendência
desta de suplantar o caráter único de cada fato por
meio da recepção de sua reprodução. Diariamente,
torna-se cada vez mais irresistível a necessidade de
possuir o objeto na mais extrema proximidade, pela
imagem, ou, melhor, pela cópia, pela reprodução." E,
de modo inconfundível, a reprodução, tal como
fornecida pelos jornais ilustrados e noticiários semanais
cinematográficos," se diferencia da imagem. Unicidade
e duração encontram-se tão estreitamente imbricadas
nesta como fugacidade e repetibilidade naquela. O
despojamento do objeto de seu invólucro, a destruição
da aura, é a característica de uma percepção, cujo
"sentido para o igual no mundo"?" cresceu tanto que

manuscrito em 1895, contrapondo-se à noção de que haveria períodos de decadência Esse conceito aparece em uma formulação diferente no ensaio "Sobre alguns temas
na arte. Todos esses autores pertenciam à chamada Escola de Viena, grupo de em Baudelaire", de 1939 (Benjamin, 1989: 137-145).
professores da Universidade daquela cidade. 22 "Imagem" [Bild], "cópia" [Abbild], bem como "reprodução" [Reproduktion],
20 Signatur, pode ser entendida também como "sinal", "marca" ou "chancela". são termos recorrentes e centrais no decorrer do ensaio, assim como: bilden
21 Gespinst. A definição de aura que Benjamin formula aqui é muito próxima da que [formar], Gebilde [figuração], Bild [no sentido de quadro, pintura], Bildung ou
fez no ensaio "Pequena história da fotograria", de 1931 (Benjamin, 1985a: 101). Ausbildung [formação], Nachbildung [imitação], abbilden [copiar].
31

por meio da reprodução também o capta no que é único.


Manifesta-se assim na esfera da intuição o que na esfera
da teoria se torna evidente com o crescente significado
da estatística. A orientação da realidade para as massas
e das massas para a realidade é um processo de alcance
ilimitado, tanto para o pensamento como para a intuição.

A unicidade da obra de arte é idêntica à sua inserção


no contexto da tradição. Essa tradição é ela mesma
completamente viva e extraordinariamente mutável. Uma
estátua antiga de Vênus, por exemplo, encontrava-se em
um contexto de tradição diferente entre os gregos, que
dela fizeram objeto de culto, que entre os clérigos
medievais, que nela viam um ídolo maléfico. No entanto,
o que se colocava igualmente diante de ambos era sua
unicidade, ou seja: sua aura. A maneira originária de
inserção da obra de arte no contexto da tradição
encontrava sua expressão no culto. As obras de arte mais
antigas, como sabemos, surgiram a serviço de um ritual,

23 Wochenschau, noticiários com temas políticos e sociais, de cerca de 10 minutos,

produzidos para serem apresentados de uma a duas vezes por semana antes do filme
principal. Surgiram em 1908.
24 Passagem de ExotischeNovellen (1919: 41-42) do novelista dinamarquês johannes
V Iensen (1873-1950), que recebeu o Nobel de literatura em 1944.

..•
33

primeiramente mágico, depois religioso. É de importância


decisiva que esse modo aurático de existência da obra de
arte nunca se destaca completamente de sua função
ritual. Em outras palavras: o valor único da obra de arte
"autêntica" tem seu fundamento sempre no ritual. Esse
fundamento, por mais mediado que seja, pode ser
reconhecido, enquanto ritual secularizado, também nas
mais profanas formas de culto à beleza. O culto profano
da beleza surgiu com o Renascimento, para vigorar por
três séculos, até sofrer o primeiro forte abalo; depois disso,
deixou claramente reconhecer aqueles fundamentos.
Quando a arte, com o advento do primeiro meio de
reprodução efetivamente revolucionário - a fotografia (ao
mesmo tempo que o despontar do socialismo), pressentiu
a aproximação da crise, que, após cem anos se tornou
inegável, reagiu com a doutrina da arte pela arte." que é
uma teologia da arte. A partir dela, então, surgiu como
que uma teologia negativa na forma da ideia de uma arte
"pura", que rejeita não só qualquer função social, mas
também qualquer determinação por meio de um assunto
objetivo. (Na literatura, Mallarrné" foi o primeiro a
alcançar essa posição.)

2S ['art pour ['art.


26 Stéphane Mallarmé (1842-1898), poeta francês, fundador do movimento
simbolista.

•••
35

11 Nas obras cinematográficas, a reprodutibilidade dos Levar em conta essas relações é indispensável para
produtos não é, como por exemplo, nas obras da literatura uma investigação que tem a ver com a obra de arte na
ou da pintura, uma condição externamente imposta para
época de sua reprodutibilidade técnica, pois preparam o
sua difusão em massa. A reprodutibilidade técnica de obras
cinematográficas está fundada imediatamente na técnica de conhecimento do que é decisivo aqui: a reprodutibilidade
sua reprodução. Esta possibilita não só a difusão em massa técnica da obra de arte emancipa esta, pela primeira vez
das obras cinematográficas do modo mais imediato, como na história universal, de sua existência parasitária no
muito mais as obriga a tal difusão. Isso porque a produção
ritual. A obra de arte reproduzida torna-se cada vez mais
de um filme é tão cara que um indivíduo que poderia
comprar um quadro não pode mais pagar um filme. Em a reprodução de uma obra de arte voltada para a
1927, calculou-se que um filme de maior porte, para ser reprodutibilidade." Da chapa fotográfica, por exemplo, é
rentável, precisaria alcançar um público de nove milhões possível uma multiplicidade de tiragens; a pergunta sobre
de pessoas. Com a introdução do cinema falado, aliás,
a tiragem autêntica não tem sentido. No instante, porém,
verificou-se inicialmente um retrocesso; seu público
restringia-se às fronteiras das línguas. E isso ocorreu ao em que a medida da autenticidade não se aplica mais à
mesmo tempo em que os interesses nacionais eram produção artística, revolve-se toda a função social da arte.
acentuados pelo fascismo. Mais importante, porém, do que No lugar de se fundar no ritual, ela passa a se fundar em
registrar esse retrocesso, que, no mais, se enfraqueceu com
uma outra práxis: na política.
a sincronização, é não perder de vista sua correlação com o
fascismo. A simultaneidade de ambos os fenômenos se
baseia na crise econômica. Os mesmos distúrbios que em
VI
geral conduziram à tentativa de manter as relações de
propriedade vigentes por meio de violência aberta, levaram
o capital cinematográfico, ameaçado pela crise, a forçar os
Seria possível apresentar a história da arte como
trabalhos prévios de realização do cinema falado. A
introdução do cinema falado gerou, desse modo, um alívio um confronto de duas polaridades no interior da própria
obra de arte e distinguir a história de seu curso nos
37

momentâneo. E isso não só porque o cinema falado trouxe deslocamentos alternados do peso de um para outro polo
de novo as massas para as salas de cinema, mas também da obra de arte. Esses dois polos são seu valor de culto e
porque tornou os novos capitais da indústria elétrica seu valor exposição." A produção artística começa por
solidários com o capital cinematográfico. Assim, observado
de fora, fomentou interesses nacionais; visto de dentro,
figurações" que estão a serviço da magia. Nessas
porém, internacionalizou a produção cinematográfica ainda figurações, importante é apenas que estejam lá, não que
mais do que antes. sejam vistas. O alce que o homem paleolítico copia nas
111 Essa polaridade não pode ser levada em conta pela paredes de sua caverna é um instrumento de magia, que
estética do idealismo, cujo conceito de beleza a apreende
somente de modo casual ele apresenta aos outros homens;
fundamentalmente como algo indistinto (e, de acordo com
isso, a exclui enquanto algo distinto). Ainda assim, ela se o mais importante é que os espíritos o vejam. O valor de
anuncia tão claramente em Hegel-? quanto possível, dentro culto enquanto tal como que obriga manter a obra de arte
dos limites do idealismo. Nas Preleções sobre a filosofia da oculta: certas estátuas de deuses são acessíveis somente
história [Vorlesungen iiber die Philosophie der Geschichte]
ao sacerdote na cela, certas imagens de madonas
lê-se: "imagens, possuímos há muito: a piedade necessitava
delas desde os primórdios para sua devoção, mas ela não
permanecem quase que o ano inteiro encobertas, certas
carecia de belas imagens, estas até mesmo a perturbavam. esculturas em catedrais da Idade Média não são visíveis
Na imagem bela também está presente algo exterior, mas na para o observador ao nível do solo. Com a emancipação
medida em que é bela, o espírito da mesma fala ao homem;
das práticas artísticas individuais do seio do ritual,
naquela devoção, porém, essencial é a relação com uma coisa,
pois ela mesma é somente um entorpecimento, sem espírito, crescem as oportunidades de exposição de seu produto. A
da alma. [...] A bela arte [...] surgiu [...] na própria Igreja [...], exponibilidade de um busto, que pode ser enviado para lá
se bem que [... ] já se desvinculou do princípio eclesial" e para cá, é maior que de uma estátua de um deus com um
(HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Werke IX. Berlim, 1837,
local fixo no interior do templo. A exponibilidade de um
p. 414). Também uma passagem das Preleções sobre Estética
[Vorlesungen über die Aesthetik] mostra que Hegel quadro é maior que de um mosaico ou afresco que o
precederam. E se a exponibilidade de uma missa, por sua

27 George Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), filósofo idealista alemão. As


28 Gebilde,no sentido de imagemou algo composto,formado,construido,produzido,
preleções citadas por Benjamin foram proferidas entre 1820 e 1829, e publicadas
cuja forma, em geral, é indeterminada e difícil de ser caracterizada.
mais tarde tendo por base principal anotações dos estudantes.

'.
39

natureza, não era talvez menor que a de uma sinfonia,


pressentiu aqui um problema. Nestas Preleções, lê-se: esta surgiu em um momento no qual sua exponibilidade
"estarnos além do estágio em que podíamos reverenciar obras
prometia se tornar maior que a da missa.
de arte como divinas e adorá-Ias; a impressão que causam é
I I'

'" de espécie mais judiciosa e aquilo que por meio da arte é Com os diferentes métodos de reprodução técnica
provocado em nós requer uma pedra de toque mais elevada" da obra de arte, sua exponibilidade cresceu em escala tão
(HEGEL, G. W. F. Werke X. 1. Berlirn, 1835, p. 14).
poderosa que, de modo parecido ao ocorrido no tempo
prirnevo," o deslocamento quantitativo entre seus dois
I
palas reverteu-se em uma mudança qualitativa de sua
I
natureza. Assim como no tempo primevo, a obra de arte,
por meio do peso absoluto depositado sobre seu valor de
culto, tornou-se, em primeira linha, um instrumento da
magia, que, de certa forma, somente mais tarde foi
reconhecido como obra de arte. Do mesmo modo, hoje,
por meio do peso absoluto depositado sobre o seu valor
de exposição, a obra de arte torna-se uma figuração com
funções totalmente novas, entre as quais se destaca aquela
de que temos consciência, a função artística, que no
futuro possivelmente será reconhecida como secundária.
Certo é que atualmente o cinema oferece os elementos
mais úteis para esse conhecimento. É certo ainda que o
alcance histórico dessa mudança de função da arte, que
no cinema se manifesta do modo mais avançado, permite

29 Urzeit, no sentido do tempo mais antigo, inicial. Optou-se aqui por não traduzir

esse termo por "pré-história", pois carregaria uma ideia de um momento da


humanidade sem história, que Benjamin não visa aqui; nem "tempo originário",
pois "origem",para Benjamin, tem um sentido diferente de começo.
41

seu confronto com o tempo primevo da arte, não só do


ponto de vista metodológico, mas do material também.
A arte do tempo primevo fixa, a serviço da
magia, certas notações que servem à práxis. E isso,
provavelmente, como exercício nos procedimentos
mágicos (o entalhar a figura de um antepassado é, em si
mesmo, uma execução mágica), também como
ensinamento destes procedimentos (a figura de um
antepassado demonstra uma postura de ritual) e,
finalmente, como objeto de uma contemplação mágica (a
contemplação da figura de um antepassado intensifica a
força mágica daquele que contempla). Assuntos para
essas notações são oferecidos pelo homem e seu mundo
circundante e são copiados segundo as exigências de uma
sociedade, cuja técnica primeiramente só existia
misturada com o ritual. Essa técnica, comparada com a
da máquina, é naturalmente atrasada. Não é isso, no
entanto, o importante para uma consideração dialética.
A esta importa a diferença tendencial entre aquela técnica
e a nossa, diferença que consiste no fato de que a primeira
técnica utiliza ao máximo o homem e a segunda o utiliza
o mínimo possível. O grande ato técnico da primeira

Telhado da nave e transepto norte da catedral de Notre-Dame, de Paris, 1163-1250.


I
43

técnica é, em certa medida, o sacrifício humano, o da


segunda está na linha dos aviões controlados por
telecomandos, que não precisam de tripulação humana.
O de-uma-vez-por-todas vale para a primeira técnica (ali
se trata da falta, que nunca poderá ser reparada, ou da
morte sacrifical, enquanto substituição eterna). O uma-
vez-é-vez-nenhuma'? vale para a segunda técnica (esta
tem a ver com o experimento e sua incansável variação
da ordenação experimental). 31 A origem da segunda técnica
deve ser buscada lá onde o homem, pela primeira vez e
com astúcia inconsciente, começou a tomar distância da
natureza. Encontra-se, em outras palavras, no jogo."
Seriedade e jogo, rigor e desobrigação manifestam-
se entrelaçados em cada obra de arte, mesmo que em
graus muito cambiáveis de participação. Com isso, já
está dito que a arte está vinculada tanto à segunda como
à primeira técnica. Aliás, deve-se notar aqui que
"dominação da natureza" designa o objetivo da segunda
técnica de modo altamente contestável; ela o designa
assim do ponto de vista da primeira técnica. Esta tem
realmente em mira a dominação da natureza; a segunda,
muito mais um jogo conjunto entre natureza e

30 No original, respectivamente: Das Ein for allemal e Das Einmal ist keinmal. Em
um fragmento de "Imagens de Pensamento", de 1932, Benjamin recorre a essa
oposição para tratar do ato de escrever (Benjamin, 1994: 272-273 e 1991, IV:433-434).
31 Versuchsanordnung. No ensaio "Que é o teatro épico: um estudo sobre Brecht",
de 1931, Benjamin recorre a esse conceito para distinguir o teatro naturalista, que
buscaria "retratar a realidade" de modo ilusionístico, do teatro épico que, ao manter
45

humanidade. A função social decisiva da arte de hoje é o


IVAs revoluções têm por objetivo acelerar essa adaptação. exercício nesse jogo conjunto. Isso vale principalmente
Revoluções são inervações do coletivo: mais precisamente,
para o cinema. O cinema serve para exercitar o homem
tentativas de inervação do novo coletivo, historicamente,
o primeiro que possui seus órgãos na segunda técnica. Essa naquelas apercepções e reações condicionadas pelo trato
segunda técnica é um sistema no qual a dominação das com um aparato, cujo papel em sua vida cresce quase
forças sociais elementares é o pressuposto para o jogo com diariamente. O trato com esse aparato ensina-o, ao
as forças naturais. Como uma criança que, ao aprender a
mesmo tempo, que a escravidão a seu serviço só dará
pegar coisas, estende a mão tanto para a lua como para
uma bola, a humanidade tem em vista em suas tentativas lugar à libertação por meio dele quando a constituição
II de inervação, ao lado dos objetivos alcançáveis, aqueles da humanidade tiver se adequado às novas forças
que num primeiro momento são utópicos. Pois não é só a produtivas
' . d escerrou.
que a segun d a tecmca
IV

segunda técnica que anuncia suas exigências à sociedade


nas revoluções. Justamente porque esta segunda técnica
almeja, sobretudo, a crescente libertação do homem do VII
jugo do trabalho; o indivíduo, por outro lado, vê de uma
vez seu espaço de jog033 imensamente ampliado. Nesse
espaço de jogo, ele ainda não sabe se orientar. Porém, Com a fotografia, o valor de exposição começa a
anuncia suas exigências. Pois, quanto mais o coletivo se
premir para trás o valor de culto em todas as frentes.
apropria de sua segunda técnica, tanto mais palpável se
torna para os indivíduos a ele pertencentes, o quão pouco, Este, porém, não recua sem resistência. Ocupa uma
até então, sob o feitiço da primeira, lhes coubera o que era última trincheira que é a face humana. Não é nada casual
deles. É, em outras palavras, o homem individual que o retrato era central nos primórdios da fotografia.
emancipado pela liquidação da primeira técnica que
No culto da recordação dos entes amados, distantes ou
reivindica seus direitos. A segunda técnica não havia ainda
apenas se assegurado de suas conquistas revolucionárias falecidos, o valor de culto da imagem encontrou seu
quando as questões vitais do indivíduo - de amor e de último refúgio. Na expressão fugaz de um rosto humano,

presente a consciência de que é teatro, permite tratar "os elementos do real no de um personagem", "ação livre, sem fins determinados". Quando no sentido de
sentido de uma ordenação experimental" (Benjamin, 1991, II: 522; cf. também encenar ou atuar em um filme ou peça de teatro, optou-se por traduzir spielen por
Benjamin, 1985a: 81). "interpretar" (cf.também nota 16). Este parágrafo e o próximo, bem como a nota
32 Spiel. O conceito de "jogo" é central nesta segunda versão do ensaio. Benjamin IV de Benjamin, são exclusivosdesta e da versão francesa.
33 Spielraum, pode ser entendido como um espaço de ação livre.
explora os vários sentidos que esse termo tem em alemão: "jogo", "brincadeira",
"execuçãode uma música","interpretaçãoou representaçãoteatral,cinematográfica

.••...... : -
.--

47

morte -, soterradas pela primeira, pressionavam de novo a aura acena das primeiras fotografias pela última vez. E
por soluções. A obra de Fourier " é o primeiro documento
é isso que perfaz sua beleza melancólica e incomparáveL
histórico dessa exigência. .
Onde, porém, o homem se retira da fotografia, ali, pela
primeira vez, o valor de exposição se sobrepõe ao valor de
culto. Dar a esse processo o seu lugar próprio constitui
o significado inigualável de Atget," que fixou as ruas de
Paris, por volta de 1900, vazias de homens. Com muita
justiça, dizia-se dele que as fotografou como um local de
crime. Também esse é vazio de homens. É fotografado
por causa dos indícios. Os registros fotográficos começam
com Atget a se tornar documentos de prova no processo
histórico. Nisso reside sua significação política oculta.
Essas fotos já exigem uma recepção em um sentido
determinado. Não lhes é mais adequada uma
contemplação livre. Inquietam o observador; ele sente
que para chegar até elas precisa procurar um caminho
determinado. Ao mesmo tempo, os jornais ilustrados
começam a oferecer-lhe indicadores de caminho.
Verdadeiros ou falsos - não importa. Neles, as legendas
se tornaram, pela primeira vez, obrigatórias. E é claro
que possuem um outro caráter, que não o de título de
um quadro. As diretivas que o observador de imagens

34 Charles Fourier (1772-1837), um dos principais teóricos franceses do socialismo


35 Eugêne Atget (1857-1927), importante fotógrafo francês, pouco conhecido em
utópico. Defendeu a reorganização da sociedade em "falanstérios" (comunidades
produ~oras cooperati~as). Tem um papel importante no projeto sobre as passagens vida, fotografou sobretudo a parte antiga de Paris e bairros pobres. Benjamin trata
de Paris, no ~ual.BenJamin trabalhou de 1927 a 1940 (cf Benjamin, 2006), e nas mais longamente de sua obra no ensaio "Pequena história da fotografia", de 1931
teses de Benjamin "Sobre o conceito de história" (Benjamin, 1985a: 222-232; e (Benjamin, 1985a: 91-107).
Benjamin, 2005).
49

obtém das revistas ilustradas por meio das legendas se


tornarão, logo em seguida, ainda mais precisas e
imperativas no cinema, onde a compreensão de cada
imagem individual aparece prescrita pela sucessão de
todas as imagens precedentes.

VIII

Os gregos conheciam somente dois processos de


reprodução técnica de obras de arte: a fundição e a
cunhagem. Bronze, terracota e moedas eram as únicas
obras de arte que podiam ser fabricadas por eles em massa.
Todas as outras eram únicas e não podiam ser
reproduzi das tecnicamente. Por isso, precisavam ser feitas
para a eternidade. Os gregos eram obrigados, pelo estágio
de sua técnica, a produzir na arte valores eternos. A essa
circunstância devem seu lugar eminente na história da
arte, a partir do qual os que vieram depois puderam
determinar o seu lugar próprio. Não há dúvida de que o
nosso lugar se encontra no polo oposto ao dos gregos.
Nunca antes as obras de arte foram tecnicamente

Rue des Ursins (4' arr.) , de Eugene Atget, fotografia, 1900.


1I I
51

reprodutíveis em escala tão elevada e em extensão tão


ampla como hoje. No cinema temos uma forma, cujo
caráter de arte, pela primeira vez, é determinado de parte
a parte por sua reprodutibilidade. Seria ocioso confrontar
essa forma em seus detalhes com a arte grega. Em um
ponto exato, porém, esse confronto é esclarecedor. Com
o cinema, tornou-se determinante para a obra de arte
uma qualidade que os gregos aprovariam em último lugar
ou considerariam como a menos essencial. Trata-se da
sua perfectibilidade. O filme acabado não tem nada em
comum com uma criação em um lance; é montado a partir
de muitas imagens e sequências de imagens, entre as
II quais o montador" pode fazer sua escolha - imagens, de
resto, que, desde o início da sequência da filmagem até
o resultado final, poderiam ser melhoradas à vontade.
Para realizar seu Casamento ou luxor," que tem um
comprimento de 3.000 metros, Chaplin filmou 125.000
metros. Portanto, o cinema é a obra de arte mais
perfectível. E esta perfectibilidade tem a ver com sua
radical renúncia ao valor de eternidade. Isso resulta da
contraprova: para os gregos, cuja arte estava presa à
produção de valores eternos, a arte mais elevada era a

36 Monteur.
37 Filme que Charlie Chaplin (1889-1977) realizou em 1923, cujo título original em
inglês é A Woman of Paris. Benjamin usa no texto I.:Opinion Publique, que foi o
título dado na França.
I I
53

menos perfectível, a escultura, cujas criações se fazem


literalmente a partir de um bloco. O declínio da escultura
na época da obra de arte montável não pode ser evitado.

IX

A disputa encetada no decorrer do século XIX


entre pintura e fotografia, quanto ao valor artístico de
seus respectivos produtos, parece-nos, hoje, mal-
encaminhada e confusa. Isso, porém, não diz nada
contra sua importância, ao contrário, pode muito mais
sublinhá-Ia. De fato, essa disputa era a expressão de
um revolvimento histórico-universal, que, enquanto
tal, nenhuma das partes era consciente. Na medida
em que a época de sua reprodutibilidade técnica
destacou a arte de seu fundamento no culto, apagou-
se para sempre a aparência de sua autonomia. A
mudança de função da arte resultante disso, no
entanto, saiu do campo de visão daquele século.
Também escapou por longo tempo ao século XX, que
vivenciou o desenvolvimento do cinema.
55

v Gance, 1927: 101.


Se anteriormente se dedicou muita perspicácia vã
na solução da questão se a fotografia seria uma arte -
sem que fosse levantada a questão prévia se por meio da
invenção da fotografia o caráter total da arte não teria se
transformado -, logo depois os teóricos do cinema
adotaram um questionamento igualmente precipitado.
Mas as dificuldades que a fotografia oferecia à estética
tradicional eram brincadeira de criança diante daquelas
que o cinema apresentaria. Daí a violência cega que marca
os inícios da teoria do cinema. Assim, Abel Gance
compara, por exemplo, o cinema com os hieróglifos:
"Chegamos, pois, em consequência de um notabilíssimo
retorno ao passado, de novo ao nível de expressão dos
egípcios. [...] A linguagem das imagens não alcançou
ainda a maturidade, porque nossos olhos ainda não estão
à sua altura. Ainda não há respeito suficiente, culto
suficiente para aquilo que nela se expressa"." Ou, como
escreve Séverin-Mars." "Para qual arte foi reservado um
sonho [...] que fosse mais poético e mais real ao mesmo
tempo! Considerado a partir de um tal ponto de vista, o
cinema representaria um meio de expressão
absolutamente incomparável, e em sua atmosfera

38Séverin-Mars (1873-1921), ator francês cujo nome verdadeiro era Arrnand-Iean


de Malafayade. Atuou em vários filmes de Abel Gance.
57

deveriam mover-se somente personagens com os modos


VI Séverin-Mars apud Gance, 1927: 100.
de pensar mais nobres, nos instantes mais perfeitos e
misteriosos do curso de suas vidas"." É muito instrutivo
observar como o anseio de acrescentar o cinema à "arte"
impele esses teóricos a introduzir interpretativamente,
com uma falta de escrúpulos sem igual, elementos de
culto no cinema. E, no entanto, na época em que estas
especulações foram publicadas, já havia obras como
Casamento ou luxo? e Em busca do ouro.í? Isso não
impede que Abel Gance faça comparações com os
hieróglifos e que Séverin-Mars fale do cinema como
se poderia falar de imagens de Fra Angelico.:" É
característico que, ainda hoje, autores especialmente
reacionários busquem o significado do cinema na mesma

I I direção, senão diretamente no sagrado, ao menos no


sobrenatural. Por ocasião da adaptação ao cinema de Sonho
de uma noite de verão, por Reinhardt, Werfel " observa
que indubitavelmente seria a cópia estéril do mundo
exterior com suas ruas, interiores, estações de trem,
restaurantes, carros e praias, o que até agora teria obstado
a elevação do cinema ao reino da arte. "O cinema ainda
não compreendeu seu verdadeiro sentido, suas verdadeiras

39 Filme de Chaplin realizado em 1925, cujo título original em inglês é The Gold

Rush. Benjamin usa no texto La Ruée Vers l'Or, que foi o título dado na França.
40 Fra Angelico de Fiesole (1387-1455), frade italiano dominicano do início do
Renascimento; suas pinturas eram dedicadas a temas religiosos.
41 Max Reinhardt (1873-1943), importante diretor e produtor alemão de cinema.
Em 1935, dirigiu com William Dieterle o filme A Midsummer Night's Dream. De
59

VII WERFEL, Franz. "Ein Sommernachtstraum. Ein Film von


N W' possibilidades. [...] Estas consistem em sua singular
Shakespeare und Reinhardt"
, eues zener [ournal CIt. Lu
[dans Ia presse universe1], 15 Nov. 1935. ,. faculdade de expressar com meios naturais e com uma
força persuasiva inigualável o feérico, maravilhoso,
sobrenatural. "VII

Um tipo de reprodução é a da fotografia de uma


pintura, outro tipo é aquela que se deixa fazer de um
acontecimento fictício em um estúdio cinematográfico.
No primeiro caso, o objeto reproduzido é uma obra de
arte, e a sua produção" não o é. Pois o desempenho do
fotógrafo com a objetiva cria tão pouco uma obra de arte
como o de um regente diante de uma orquestra; no
melhor dos casos, cria um desempenho artístico. Outra
coisa ocorre no estúdio cinematográfico. Aqui, o objeto
reproduzido não é uma obra de arte e a reprodução, por
sua vez, tampouco o é, como no primeiro caso. A obra de
arte surge aqui somente em razão da montagem. De uma
montagem, na qual cada componente individual é a
reprodução de um acontecimento, que não é em si mesmo

oridgemFjUdaica,emigrou para os Estados Unidos quando os nazistas tomaram o


po er. ranz Werfel (1890 1945) .
'.
Expresszomsmo. -, escntor e poeta austríaco associado ao 42Produktion, entenda-se "produção da cópia" ou simplesmente "sua reprodução",
tal como aparece formulado algumas linhas abaixo em relação ao cinema.
61

uma obra de arte, nem resulta em uma obra de arte pela


fotografia. O que são esses acontecimentos reproduzidos
no filme, já que não são obras de arte?
A resposta deve partir do desempenho artístico
peculiar do ator cinematográfico. Ele se diferencia do ator
de teatro, pois seu desempenho artístico, em sua forma
original, pela qual serve de base para a reprodução, não
ocorre diante de um público casual, mas diante de um
grêmio de especialistas que podem, enquanto produtor,
diretor, operador de câmera, engenheiro de som,
iluminador etc., a qualquer momento, chegar em uma
situação de intervir em seu desempenho. Trata-se aqui
de uma marca distintiva socialmente muito importante.
A intervenção de um grêmio técnico em um desempenho
artístico é característica no desempenho esportivo e, num
sentido mais amplo, em todo desempenho de teste." Tal
intervenção determina de fato inteiramente o processo
de produção cinematográfica. Muitos trechos, como se
sabe, são filmados com variantes. Um grito de socorro,
por exemplo, pode ser registrado em diferentes versões.
Entre estas, o montador " faz então uma escolha,
estabelecendo, ao mesmo tempo, uma delas como o

43 Testleistung. Entenda-se como resultado alcançado ao submeter-se a um teste, a


uma prova, e não ao testar, tentar, experimentar algo.
44 cutter.
63

recorde. Um acontecimento representado em um estúdio


de filmagem diferencia-se, portanto, do acontecimento
correspondente real, do mesmo modo como o lançamento
de um disco em uma arena esportiva durante uma
competição se diferencia do lançamento do mesmo disco,
no mesmo local, com a mesma trajetória, que ocorresse
para matar um homem. O primeiro acontecimento seria
um desempenho de teste, o segundo não.
Porém, esse desempenho de teste para o ator de
cinema é de espécie inteiramente única. No que consiste?
Consiste em ultrapassar uma certa barreira que encerra
o valor social de desempenhos de teste dentro de limites
estreitos. Não se trata aqui do desempenho esportivo,
mas do desempenho em um teste mecanizado. O esportista
conhece de certa forma somente o teste natural. Mede-
se em tarefas que a natureza lhe oferece, não naquelas de
um aparato - salvo em casos excepcionais, como Nurmi,"
de quem se dizia que corria contra o relógio. Nesse
ínterim, o processo do trabalho, principalmente depois
de normatizado pela cadeia de montagem, ocasiona,
diariamente, inumeráveis provas de teste mecanizado.
Tais provas ocorrem secretamente: quem não passar nelas

45Paavo Nurmi (1897-1973), corredor finlandês de longa distância, venceu três


Olimpíadas (1920, 1924 e 1928).

Cartaz dos Jogos Olímpicos da Antuérpia, na Bélgica, litogravura, 1920.


POUVOIRS PUBLICS
r --

65

1I
é desligado do processo de trabalho. Ocorrem, no entanto,
também de modo explícito: nos institutos para provas
de aptidão profissional. Em ambos os casos, depara-se
com a barreira mencionada acima.
Essas provas, diferentemente das esportivas, não
podem ser expostas em um grau desejável. E este é
exatamente o ponto no qual o cinema intervém. O cinema
torna exibível o desempenho de teste, ao transformar,
em um teste, a própria exponibilidade do desempenho.
Pois o ator de cinema não interpreta" diante de um
público, mas de um aparato. O diretor de cinema ocupa
precisamente o mesmo posto que o diretor de exames em
uma prova de aptidão. Interpretar sob a luz dos refletores
e, ao mesmo tempo, satisfazer as exigências do microfone
é um desempenho de teste de primeira ordem. Representá-
10 significa conservar sua humanidade diante do aparato.
O interesse desse desempenho é gigantesco. Porque é
diante de um aparato que a preponderante maioria dos
citadinos, nos escritórios e nas fábricas, durante seu dia
de trabalho, precisa se alienar de sua humanidade. À
noite, as mesmas massas enchem as salas de cinema para
vivenciar a revanche que o ator de cinema leva a cabo por

46 spielt (cf. nota 32).

- -- --
67

elas, na medida em que não só afirma sua humanidade


(ou o que assim lhes aparece) contra o aparato, como
também coloca este a serviço de seu próprio triunfo.

XI

No cinema, importa muito menos que o ator


represente um outro personagem ao público que represente
'I
a si mesmo para o aparato. Um dos primeiros que percebeu
I essa mudança do ator por meio do desempenho de teste
foi Pirandello." Pouco diminui a relevância das observações
que fez a esse respeito em seu romance Cadernos de Serafino
Gubbio operador 48 o fato delas se restringirem a enfatizar
o lado negativo dessa mudança. Menos ainda por se
referirem ao cinema mudo. Pois o cinema falado não alterou
nada de fundamental nesta questão. Decisivo é que
interpreta para um aparato - ou dois, no caso do cinema
falado. "O ator de cinema", escreve Pirandello, "sente-se
como no exílio. Exilado não só do palco, mas de sua própria
pessoa. Com um obscuro mal-estar, sente o vazio
inexplicável que surge pelo fato de seu corpo se tornar a

47 Luigi Pirandello (1867-1936), dramaturgo italiano.


48 Publicado em 1915 com o nome Sigira, foi reeditado em 1925 com o título de
Quaderni di Serafino Gubbio operatore. Romance no qual narra o processo de
autoalienação de um operador de câmera diante da técnica de registro. No texto,
Benjamin usa Es wirdgefilmt [Filma-se], em alemão, e, na nota, On tourne, em
francês (cf. Pirandello, 1990 ou 2009).
I

69

VII: PI~r:~D~LLO, Luigi. On tourne. Apud PIERRE-QUINT, manifestação de uma perda, de se volatizar e ser privado
Leon. Significaton du cinema", L'art cinématographique II de sua realidade, sua vida, sua voz, e dos sons que produz
Paris, 1927, p. 14-15. . '
ao se mexer, para se metamorfosear em uma imagem muda,
!I que treme um instante sobre a tela e então desaparece em
silêncio [...]. O pequeno aparato interpretará diante do
público com suas sombras; e o ator mesmo deverá se
contentar em interpretar diante do aparato."?" Pode-se
caracterizar o mesmo fato da seguinte maneira: pela
primeira vez - e isso é obra do cinema - o homem chegou
na situação em que deve atuar com a totalidade da sua
pessoa viva, mas sob a renúncia de sua aura. Pois a aura
está vinculada ao seu aqui e agora. Não há cópia dela. A
aura em torno de Macbeth, em um palco, não pode ser
destacada da aura que, para o público vivo, envolve o ator
que o interpreta. Próprio de uma gravação no estúdio
cinematográfico, porém, é que no lugar do público é
colocado um aparelho. Assim, a aura em torno daquele
que representa deve desaparecer - e, com ela, a aura em
torno daquele que é representado.
Não é de se espantar que precisamente um
dramaturgo como Pirandello, na caracterização do ator
de cinema, toque involuntariamente no fundamento da

._--.
71

crise que vemos acometer o teatro. De fato, para a obra


IX ARNHEIM, Rudolf. Film als Kunst. Berlim, 1932, p. 176-
de arte que é apreendida integralmente pela reprodução
17~. Certas p~rticu~aridades, aparentemente secundárias, por
mero das quais o diretor de cinema se distancia das práticas técnica ou que surge dela - como o cinema - não há
no palco, adquirem nesse contexto um interesse elevado. É o oposição mais decisiva que o palco de teatro. Qualquer
caso da tentativa de deixar o ator interpretar sem maquilagem, observação penetrante confirma isso. Observadores
como, entre outros, Dreyer levou a cabo em A paixão de
especializados reconheceram há muito que, na
[oana D'Arc.50 Ele precisou de meses para encontrar os
q~arenta atores apropriados com os quais se compõe o representação cinematográfica, "os maiores efeitos quase
!nbunal da Inquisição. A procura por estes atores equivaleu sempre são alcançados quando se 'interpreta' o mínimo
a proc,u~a de adereços difíceis de se obter. Dreyer esforçou-se possível. [...] O desenvolvimento mais recente", nota
ao máximo para evitar semelhanças de idade estatura
Arnheirrr" em 1932, consiste em "tratar o ator como
fisionomia entre estes atores (cf SCHULTZ, M~urice. "L~
maquillage", L:art cinématographique VI, Paris, 1929, p. 65- um adereço que se escolhe segundo suas características
66).51 Quando o ator se torna adereço, não é raro, por outro e [... ] que se coloca no lugar certo". IX Outra
lado, que o adereço funcione como ator. Em todo o caso, é circunstância está estreitamente relacionada a essa. O
comum que o cinema chegue a uma situação de atribuir um
ator que age no palco transpõe-se para o interior de um
papel ao adereço. Em vez de tomar qualquer exemplo de
uma quanti~ade infinita, vamos nos ater a um que possui papel. Ao ator de cinema essa possibilidade é muito
uma. especial força comprobatória. Um relógio em frequentemente negada. Seu desempenho não é em nada
funcIOnamento, no palco, sempre terá apenas um efeito unitário, mas composto a partir de muitos desempenhos
perturbador. Seu papel, o de medir o tempo, não lhe pode
individuais. Ao lado das considerações casuais, como
ser atribuído no palco. O tempo astronômico colidiria
também em uma peça naturalista, com o tempo cênico. Nessas aluguel do estúdio, disponibilidade de parceiros,
circunstâncias, é extremamente significativo para o cinema decoração etc., são as necessidades elementares da
que ele possa, quando oportuno, aproveitar sem' mais a maquinaria que despedaçam a interpretação do ator em
medida de tempo dada por um relógio. Aqui se pode
uma sequência de episódios montáveis. Trata-se,
reconhecer, mais que em muitos outros traços, como sob

49Rudolf Arnheim (1904-2007), jornalista e teórico da arte alemão, associado à


psicologia gestáltica, migrou para os EUA em 1933.
50Mais exatamente: La passion deJeanne d'Arc. Direção de Carl Theodor Dreyer,
França,1928.
51O nome correto é MauriceSchutz,pseudônimo de Henri Schutzenberger (1866-
1955), ator francêsde teatro e cinema que atuou no filme citado, de Dreyer.
..••
'1
"',:

"I~ I 73

,1111/'
certas circunstâncias cada adereço individual pode assumir sobretudo, da iluminação, cuja instalação obriga a dar
:unções de~sivas no cinema. Daqui, somente um passo leva
conta da representação de um acontecimento, que na
1I1II I a. constataçao de Pudowkin, de que "a interpretação do ator
I' vinculada a um objeto e sustentada em torno deste [...] [é] tela aparece como uma sequência unificada e veloz, em
s~mpre um, dos métodos mais fortes da construção uma série de registros individuais que, no estúdio,
II c~nematografica" (PUDOVKIN, V. Filmregie und
I conforme as circunstâncias, distendem-se por horas.
Filmmanuskript. Berlirn, 1928, p. 126).52 Dessa forma o
Sem falar dos casos mais palpáveis de montagem. Assim,
cinema é o primeiro meio artístico capaz de mostrar corno a
II , •
ma~ena atua
53
sobre o homem. Pode, por isso, ser um um salto por uma janela pode ser filmado no estúdio na
eminente instrumento de apresentação materialista. forma de um pulo de um andaime, mas a fuga
x O significado da "bela aparência" está fundado na época da subsequente pode ser rodada, eventualmente semanas
percepção aurática, que caminha para o seu fim. A teoria depois, em uma tomada externa. Aliás, não é difícil
estética desta época encont~u ~ua versão mais exprêssiv~
construir casos ainda mais paradoxais. Pode-se pedir
em Hegel, para quem a beleza é "manifestação do espírito
em sua for~a imediata [...], sensível, criada peiõ espírito ao ator que se assuste depois de uma batida na porta .
.f.omo a ele mesmo adequada" (HEGEL. Werke X. 2. Berlim Talvez esse assombro não ocorra do modo desejado.
18?:,.r. 121): Certamente essa versão carrega traço~ Então, o diretor pode recorrer ao expediente de,
eI?lgomcos. A formula de Hegel, segundo a qual a arte retiraria
oportunamente, quando o ator se encontrar novamente
"a aparência e a ilu~ão desse mundo ruim e efê-mero" do
"teor verdadeiro dos fenômenos" (HegeC 1835: 13), já se no estúdio, sem o conhecimento prévio deste, mandar
destacou do tradicional solo da~periê~dessa doutrina. disparar um tiro às suas costas. O susto do ator pode,
O solo da experiência é a aura. Ao contrario, a bela aparência, nesse momento, ser registrado e montado no filme. Nada
enquanto realidade aurática, ainda preenche inteiramente a
mostra de modo mais drástico que a arte evadiu-se do
obra de Goethe. Mignon, Otília e Helena participam dessa
realidade. 54 "O belo não é o invólucro, nem o objeto envolto, reino da "bela aparência", que até então era considerado
mas o objeto em seu invólucro?" - eis a quintessência da o único onde poderia prosperar."

52Vsevolod Illarionovic Pudovkin (1893-1953), um dos principais diretores partir de um ideal clássicode beleza: Mignon aparece no romance de formaçãoOs
russos d~ cinema mudo. Seu primeiro filmefoi Malj [Mãe, 1926], no qual descreve anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (1796); Otília, na novela As afinidades
a r.evo~uçaofr~cassadade 1905, na Rússia. A obra citada por Benjamin é uma das eletivas (1809); e Helena, na parte II da tragédia Fausto (1832).
primeiras teonas da produção cinematográfica. Benjamincitaaqui trechode seu próprioensaio'As afinidadeseletivasde Goethe",
55
53 mitspielt. de 1922 (Benjamin,1991,I:95;cf.essa passagem na tradução brasileira:Benjamin,
54 Personagens femininas criadas por ]ohann Wolfgangvon Goethe (1749-1832) a
2009: 112).
--
f
75

XII
concepção artística tanto de Goethe como dos antigos. Sua
I decadência torna duplamente necessário voltar o olhar para
sua origem. Esta se e~ra na mimese enquanto fenômeno Na representação 58 do homem por meio do aparato,
originário" de toda atividade artística. Aquele que imita faz a sua autoalienação experimentou uma utilização
oque faz só aparentemente. E até mesmo o imitar mais antigo altamente produtiva. Pode-se medir essa utilização, pelo
conhece somente uma matéria na qual forma: rara-se do
fato de que o estranhamento do ator diante do aparelho,
cOlJlo daquele mesmo que imita. Dança e lingüãgem, gestos
do corpo e dos lábios são as mais antigasmanifestações da tal como Pirandello o descreve, é, originalmente, da
mimese. Aquele que imita faz seu objeto aparentemente. mesma espécie que o estranhamento do homem diante
~o-ªe-se dizer que ele interpreta o objeto. E nisso nos de sua aparição no espelho, na qual os românticos
deparamos com a põlaridade que rege na mimese. Na mimese
amavam em se demorar. Agora, porém, essa imagem
dormitam, dobrados estreitamenteum no outro como
folhetos em rionários, os dois lados da arte: aparência e jogo. especular tornou-se destacável dele, podendo ser
Essa polaridãCIesã podeter Interesse parã'õ diãlé1ico quando transportada. Para onde? Para diante da massa." A
está em jogo um papel histórico. E, de fato, esse é o caso. Tal consciência disso, naturalmente, não abandona o ator
papel é determinado pelo confronto histórico-universal entre
de cinema nem por um instante. Ele sabe, quando está
a primeira e a segunda técnica. A aparência é o esquema a
que mais se recorre e por isso o mais duradouro de todo diante do aparato, que, em última instância, está ligado
modo de procedimento mágico da primeira técnica; o jogo é à massa. É esta quem irá controlá-lo. E precisamente ela
o reservatório inesgotável de todo procedimento de não é visível, não está ainda presente enquanto ele cumpre
experimentação da segunda. Nem o conceito da aparência
o desempenho artístico que ela controlará. A autoridade
nem o de jogo são estranhos à estética tradicional; isso não
diz nada de novo, na medida em que o par de conceitos vaLor desse controle se intensifica por meio daquela
de cuLto e vaLor de exposição está encasulado no primeiro invisibilidade. Certamente, não se deve esquecer que a
par mencionado. No entanto, essa circunstância se transforma utilização política desse controle deve esperar até que o
de um golpe, assim que esses conceitos perdem sua
cinema se liberte dos grilhões de sua exploração
indiferença diante da história. Com isso, conduzem a uma

sua pesquisa sobre a ".Origem d o drama barroco alemão", publicadaem 1928 (cf.
56 Urphiinomen. Conceito elaborado por Goethe em seus estudos de botânica.
sobretudo o prefácioem Benjamin,1984),bem comoseu projeto sobre as passagens
Concebido como um fenômeno superior (comvalor de regra geral), mas que seria
parisienses (cf.fragmento N 2a 4, In: Benjamin, 2006: 504). .
condiçãoe não causa dos fenômenos naturais observadosdiretamente na natureza
57 Charles Ferdnand Ramuz (1878-1947), escritor suíço de novelas rurais que
ou em experimentos, dos quais depende e portanto não pode ser-isolado
residiu em Paris.Colaborou com Igor Stravinsky.
abstratamente. Benjaminvê nesse conceito o correlato de seu conceito de origem
58 Repriisentation.
transposto para o domínio da história, a partir do qual fundamentou, entre outros,
77

perspectiva pratica. Quer dizer: o que advém com o capitalista. Pois, por meio do capital cinematográfico, as
definhamento da aparência, com a perda da aura nas ,obras chances revolucionárias desse controle metamorfoseiam-
de arte é um enorme ganho em espaço de jogo. O mais amplo
se em contrarrevolucionárias. O culto do estrelato
espaço de jogo abriu-se com o cinema. Neste, o momento da
aparência recuou completamente em favor do momento do fomentado por esse capital conserva não só aquela magia
jogo. As posições que a fotografia conquistou em da personalidade, que há muito consiste no brilho
contraposição ao valor de culto se fortaleceram enormemente pútrido de seu caráter de mercadoria, como também seu
com o cinema. O fato de o momento da aparência, no cinema,
complemento, o culto do público, e estimula igualmente
abdicar de seu lugar para o momento de jogo está ligado à
segunda técnica. Essa ligação foi apreendida há pouco por a constituição corrupta da massa, que o fascismo procura
Ramuz, em uma formulação que, sob a aparência de uma .~ . d e cIasse. XII
por no lugar de sua consciencia
metáfora, acerta no objeto mesmo. Ramuz diz: "Presenciamos
atualmente um acontecimento fascinante. As diferentes
ciências, que até então trabalharam para si mesmas em seus XIII
domínios próprios, começam a convergir em seus objetos e a
se unificar em uma única: química, física e mecânica
entrecruzam-se. É como se perseguíssemos hoje, como Está relacionado tanto à técnica do cinema como
testemunhas oculares, a conclusão enormemente acelerada exatamente à do esporte o fato de que cada um assiste
de um quebra-cabeça, no qual a colocação das primeiras peças
como um semiespecialista aos desempenhos que elas
exigiu milhares de anos, enquanto que as últimas, em função
de seu perfil, para admiração das que estão em torno, estão a expõem. Basta ouvir uma vez um grupo de jovens
ponto de encontrarem sua posição por si mesmas" (RAMUZ, jornaleiros, apoiados em suas bicicletas, discutindo ~s
Charles Ferdnand. "Paysan, nature", Mesure, n. 4, oct. 1935).51 resultados de uma competição de ciclismo, para descobnr
Nessas palavras, manifesta-se de modo insuperável o
essa relação. Quanto ao filme, o noticiário cinematográfico
momento de jogo da segunda técnica, no qual o momento de
jogo da arte se fortalece. semanal prova claramente que cada indivíduo pode se

...••
79

XI A mudança, aqui constatada, do modo de exposição por encontrar na situação de ser filmado. Mas essa
meio da técnica de reprodução pode ser notada também na
possibilidade não esgota a questão. Cada homem hoje
política. A crise das democracias pode ser entendida como
uma crise das condições de exposição do homem político. As tem o direito de ser filmado. Um olhar sobre a situação
democracias apresentam o político imediatamente em sua histórica da literatura atual esclarece da melhor forma
própria pessoa e diante de representantes. O parlamento é esse direito.
seu público. Com as inovações nos aparatos de registro, que
permitem ao orador durante seu discurso ser ouvido e, pouco Por séculos, a situação da literatura foi tal que
tempo depois, ser visto por um número ilimitado de pessoas, para um pequeno número de escritores havia um
a exposição do homem político diante desse aparato de número multiplamente maior de leitores. No final do
registro passa para o primeiro plano. Esvaziam-se os
século passado, teve início uma mudança. Com a
parlamentos ao mesmo tempo que os teatros. Rádio e cinema
transformam não só a função do ator profissional, mas crescente ampliação da imprensa, que colocou à
igualmente a função daqueles que, tal como o homem político, disposição dos leitores novos órgãos políticos,
representam a si mesmos diante destes meios. O sentido religiosos, científicos, profissionais e locais, grande
dessa transformação, independente de suas diferentes tarefas
parte dos leitores - no princípio, esporadicamente -
especiais, é o mesmo para o ator de cinema e para o político.
Ela aspira à exposição de desempenhos controláveis e até começou a escrever. O início se deu com a abertura da
admissíveis sob determinadas condições sociais, como o seção "Cartas dos leitores", nos jornais diários. Hoje,
esporte demandara primeiramente sob certas condições a situação é tal que há poucos europeus inseridos no
naturais. Resulta disso um novo tipo de seleção, uma seleção
processo de trabalho que, em princípio, não possam
diante do aparato, da qual o carnpeão.s? o astro'" e o ditador
emergem como vencedores. encontrar uma oportunidade de publicação de uma
XliA consciência de classe proletária, que é a mais iluminada, experiência de trabalho, uma reclamação, uma
transforma fundamentalmente, diga-se de passagem, a reportagem ou algo semelhante. Com isso, a diferença
estrutura da massa proletária. O proletariado com entre autor e público está a ponto de perder seu caráter

59 Champion.

60Star.
81

essencial. Ela se torna funcional, variando em cada


consciência de classe forma uma massa compacta, apenas
visto de fora, na representação'" de seus opressores. No caso. O leitor está sempre pronto para se tornar um
momento em que assume sua luta de libertação, a sua massa escritor. Enquanto perito, em que foi obrigado a se
aparentemente compacta na verdade já se afrouxou. Ela tornar, por bem ou por mal, no processo de trabalho
cessa de se manter sob o domínio da mera reação e passa
extremamente especializado - mesmo que em uma
para a ação. O afrouxamento das massas proletárias é obra
da solidariedade. Na solidariedade da luta de classes pequena função -, adquire acesso à condição de autor."
proletária, a oposição morta, não dialética, entre indivíduo O próprio trabalho toma a palavra. E a apresentação do
e massa é abolida; essa oposição não existe para os trabalho em palavras faz parte das habilidades exigi das
camaradas. Por isso, por mais decisiva que a massa seja
para o seu exercício. A competência literária não se
também para o dirigente revolucionário, o maior
desempenho deste não consiste em atrair a massa para si, funda mais na formação especializada, mas na
mas sempre de, novamente, deixar-se integrar na massa, politécnica, e, assim, torna-se bem comum.
afim de sempre de novo ser, para ela, um entre centenas de
Tudo isso pode ser transposto sem mais para o
milhares. A luta de classes afrouxa a massa compacta dos
proletários; precisamente a mesma luta de classe, porém, cinema, onde os deslocamentos, que na literatura
comprime a classe dos pequenos burgueses. A massa demandaram séculos, realizaram-se no decorrer de uma
enquanto algo impenetrável e compacto, como Le Bon62 e década. Pois, na práxis do cinema - sobretudo no cinema
outros a transformaram em objeto de sua Psicologia das
russo - esse deslocamento em parte já foi realizado.
massas, é a pequeno-burguesa. A pequena burguesia não é
uma classe; é, de fato, apenas massa e, de certo, uma massa Alguns dos atores que se encontram no cinema russo
tanto mais compacta quanto maior a pressão a que é não são atores no nosso sentido, mas pessoas que se
submetida entre as duas classes inimigas, entre a burguesia representam - e isso, em primeira linha, no seu processo
e o proletariado. Nessa massa, de fato, o momento
de trabalho. Na Europa Ocidental, a exploração capitalista
emocional, do qual trata a psicologia de massas, é
determinante. Porém, justamente por meio disso, essa massa do cinema bloqueia a consideração do direito legítimo de
compacta constitui a antítese dos quadros do proletariado ser reproduzido que o homem atual possui. Impede-a

61 Vorstellung (cf. nota 16). 64 Benjamin retoma aqui posições que desenvolveu em 1934, no ensaio "O autor
62 Gustave Le Bon (1841-1931), físico e sociólogo francês, autor de Psicologiadas
como produtor" (Benjamin, 1985a: 120-136).
massas, de 1895.
63 ratio.
83

que obedece a uma razão= coletiva. Nessa massa, de fato, o também o desemprego, que exclui grandes massas da
momento reativo, do qual trata a psicologia de massas, é produção, em cujo processo de trabalho essas massas
determinante. Porém, justamente por isso, essa 'massa
encontrariam, em primeira instância, seu direito de ser
compacta, com suas reações imediatas, constitui a antítese
dos quadros proletários, com suas ações mediadas por uma reproduzido. Sob essas circunstâncias, a indústria
tarefa, mesmo que seja a mais momentânea. Assim, as cinematográfica possui todo o interesse em estimular a
manifestações da massa compacta carregam inteiramente participação das massas por meio de representações
um traço de pânico - seja ao darem expressão ao entusiasmo
ilusórias e especulações ambíguas. Com esse objetivo,
pela guerra, ao ódio contra os judeus ou ao impulso de
autoconservação. Esclarecida a diferença entre a massa mobilizou um poderoso aparelho publicitário: colocou a
compacta, nomeadamente pequeno-burguesa, e a massa seu serviço a carreira e a vida amorosa dos astros."
proletária, com consciência de classe, então sua importância organizou plebiscitos, convocou concursos de beleza.
operativa também fica clara. Dito de forma mais evidente,
Tudo isso para falsificar, por um caminho corrupto, o
essa diferença demonstra seu direito em nenhum outro lugar
melhor que nos casos, de modo algum raros, nos quais o interesse originário e justificado das massas pelo
que era originalmente desregramento de uma massa cinema - um interesse de autoconhecimento e, com isso,
compacta, em consequência de uma situação revolucionária, de conhecimento de classe. Vale, portanto, em particular
talvez já depois do decorrer de segundos, tornou-se a ação
para o capital cinematográfico, o que, no geral, vale para
revolucionária de uma classe. Próprio de tais acontecimentos
verdadeiramente históricos, é que a reação de uma massa o fascismo: que uma necessidade inegável por novas
compacta provoca nela mesma um abalo que a afrouxa e condições sociais é explorada secretamente no interesse
lhe permite reconhecer a si mesma como a união de quadros de uma minoria de proprietários. A desapropriação do
com consciência de classe. O que um tal acontecimento
capital cinematográfico, assim, é uma exigência urgente
concreto logra no prazo mais abreviado não é diferente
daquilo que na linguagem dos táticos comunistas se chama do proletariado.
"ganho sobre a pequena burguesia". Os táticos comunistas
mesmos estão interessados no esclarecimento desse

65 stars.

, I

I
I
85

acontecimento também em um outro sentido. Pois, sem


XIV
dúvida, um conceito ambíguo de massa, e a referência
descompromissada a seu humor, como foi comum na
imprensa revolucionária da Alemanha, fomentaram ilusões
o registro de um filme, sobretudo, o de um filme
que foram fatais para o proletariado alemão. O fascismo, sonoro, oferece uma visão que nunca antes e em lugar
ao contrário, fez uso excelente dessa lei - tenha ele a nenhum foi concebível. Expõe um acontecimento em
entendido ou não. Ele sabe: quanto mais compactas as relação ao qual não se pode mais encontrar um único
massas que ele mobiliza, tanto maior a chance do instinto
ponto de vista, em que o aparato de registro, a maquinaria
contrarrevolucionário da pequena burguesia determinar as
suas reações. No entanto, o proletariado, por sua vez, de iluminação, a equipe de assistentes etc., que não
prepara uma sociedade na qual não estão mais presentes pertencem ao acontecimento interpretado, não entrem
nem as condições subjetivas nem as objetivas para a no campo de visão do espectador (a não ser que a posição
formação de massas.
da pupila coincidisse com a posição do aparato de
registro). Essa circunstância, mais que qualquer outra,
torna as semelhanças existentes entre uma cena no
estúdio de cinema e sobre o palco superficiais e
insignificantes. O teatro conhece, a princípio, a posição
a partir da qual o acontecimento não pode ser facilmente
I1
percebido como ilusório. Diante da cena que está sendo
registrada no cinema não há esta posição. A natureza
ilusória do cinema é de segunda ordem; resulta do corte.
Quer dizer: no estúdio cinematográfico, o aparato
penetrou de modo tão profundo na realidade que o aspecto
puro desta, livre dos corpos estranhos do aparato, é o

Construção de cenário no estúdio de Georges Mélies, 1897.


87

resultado de um procedimento especial, nomeadamente,


o registro por meio de um aparelho fotográfico
apropriadamente ajustado e sua montagem, junto com
outros registros do mesmo tipo. O aspecto da realidade,
livre do aparato, transformou-se aqui no seu aspecto mais
artificial; e a visão da realidade imediata transformou-se
na flor azul no país da técnica."
A mesma situação do cinema, gue tanto se destaca
~m contraposição à do teatro, deixa-se confrontar de modo
mais esclarecedor ainda com a situação na qual a pintura
- -
se encontra. Aqui, devemos levantar a seguinte questão:
como se relaciona o operador de câmera com o pintor?
Para respondê-Ia, permita-se recorrer a uma construção
auxiliar, que se apoia no conceito de operador, tal como é
corrente na cirurgia. O cirurgião representa um pala de
uma ordem cu·o 010 o osto é ocupado pelo mágico. A
atitude do mago, que cura um doente por meio ~~
imposição da mão, é diferente da do cirurgião, que
.!mpreende uma intervenção no doente. () mágico preserva
a distância natural entre ele e aquele que é tratado; mais
precisamente: ele a diminui um pouco - por força de sua
:nã? imposta -, e a aumenta muito - por força de sua

66 No romantismo alemão, a "flor azul" era símbolo do anseio pelo infinito.


Aparece, entre outros, no romance inacabado de Novalis, Heinrich von
Ofterdingen (1802), cujo protagonista é um poeta medieval em busca da flor
azul que conteria a face de sua amada desconhecida. Em seu artigo sobre o
Surrealisrno, Traurnkitsch [Kitsch onírico], de 1927, Benjamin escreve: "Não se
sonha mais direito com a flor azul. Quem acorda hoje como Heinrich von
89

autoridade. °
cirurgião procede de modo inverso: diminui
muito a distância em relação àquele que é tratado - na
medida em que penetra em seu interior -, e a amplia só
um pouco - por meio da cautela com a qual sua mão se
move sob os órgãos. Em uma palavra: diferentemente do
mágico (que ainda está presente no médico prático), o
cirurgião renuncia, no momento decisivo, a se colocar
diante de seu doente, numa relação de homem a homem.
Ele penetra-o operativamente. °mágico está para o cirurgião
como o pintor está para o operador de câmera. O_pintor
~bserva, no seu trabalho, uma d~t~cia_n~tural para coI?
aquilo que é dado, o operador Ee câmera, ao contrário,
penetra profundamente no tecido" da realidade dada._As
imagens que cada um obtém diferenciam-se enormemente.
!). do intor é total, a do operador ~e câmera é
multipla~ente fragmentada, cujas partes se juntarr:
segundo uma nova lei. Dessa forma, a apresentação
cinematográfica da realidade possui um significado
incomparavelmente maior para o homem atual, pois fornece
!!. EEJecto livre de aparelho da realidade, que ele tem o
direito de exi ir da obra de arte, baseada justamente nc:
penetra ão mais intensiva da realidade com o a arato.
( JO)'f'" l(1"v
.R"".c~

67 Gewebe. Compare-se com a definição acima de aura como tecido fino (Gespinst).
Ofterdingen deve ter dormido demais" (Benjamin, 1991, II: 620· e Schõttke
2007: 190). ' ,
I 91
I
xv

A reprodutibilidade técnica da obra de arte


ai tera a relação da massa com a arte. De uma atitude
extremamente retrógada diante, por exemplo, de um
Picasso.t" passa a uma relação extremamente progressista
em face, por exemplo, de um Chaplin. O comportamento
progressista se caracteriza aqui pelo fato de que, nele, o
prazer em ver e vivenciar possui uma ligação imediata e
interna com a postura do avaliador especialista. Tal
ligação é um indício social importante, pois, quanto
mais o significado de uma arte diminui, tanto mais se
separam - como se comprova nitidamente face à
pintura - a postura crítica da postura de fruição no
público. O que é convencional frui-se sem crítica, e critica-
se o que é realmente novo, com aversão. Não é assim na
sala de cinema. E aqui a circunstância decisiva é que, na
sala de cinema, mais que em qualquer outro lugar, as
reações do indivíduo, cuja soma constitui a reação em
massa do público, mostram-se condicionadas de antemão
por sua massificação iminente. E, na medida em que se

68Pablo Picasso (1881-1973), pintor espanhol, viveu em Paris; um dos criadores do


eu bismo. Benjamin teria conhecido suas obras no mais tardar em 1917.
II
I
,I
- - -
.,...; ~ - . '
95

hierarquicamente mediado. Quando isso muda, então,


ganha expressão o peculiar conflito no qual a pintura foi
envolvida por meio da reprodutibilidade técnica da
imagem. No entanto, mesmo que se buscasse apresentá-
Ia às massas nas galerias e nos salões, não havia nenhum
caminho por meio do qual as massas pudessem, em tal
recepção, se organizar e controlar a si mesmas. Assim,
exatamente o mesmo público que diante de um filme
grotesco reage de modo progressista precisa tornar-se
retrógrado diante do Surrealismo.

XVI

Dentre as funções SOCIaIS do cinema, a maIs


importante é a de estabelecer o equilíbrio entre o homem
e o aparato. Essa tarefa o cinema a cumpre inteiramente,
não só pelo modo como o homem se representa perante
o aparato de registro, mas também pelo modo como
representa para si o mundo circundante com ajuda desse
aparato. O cinema, por meio dos grandes planos retirados
do inventário do mundo circundante, por meio da ênfase
93

manifestam, essas reações se controlam. De novo, a


comparação com a pintura é útil. Um quadro sempre teve
a peculiar pretensão de ser contemplado por um ou por
poucos. A contemplação simultânea de quadros por um
grande público, o que passou a ocorrer no século XIX, é
um primeiro sintoma da crise da pintura. Crise que, de
modo algum, foi desencadeada somente pela fotografia,
mas, de modo relativamente independente dela, também
por meio da pretensão da obra de arte dirigida à massa.
A pintura, de fato, não está em condições de oferecer
o objeto de uma recepção coletiva simultânea, tal como
sempre foi caso da arquitetura, como antes foi o caso do
poema épico e como hoje é o caso do cinema. E, por
menos que dessa circunstância, em si, seja possível tirar
conclusões a respeito do papel social da pintura, ela ganha
o peso de um sério obstáculo, no momento em que a
pintura é confrontada, por meio de situações especiais e,
em certa medida, contra sua natureza, diretamente com
as massas. Nas igrejas e nos mosteiros da Idade Média e
nas cortes principescas até o final do século XVIII, a
recepção coletiva de quadros não ocorria de modo
simultâneo, mas de modo complexamente graduado e

Inaugurado em 1906, na rue Voltaire, o café-concerto Scala se transformou em


1936 no cinema Mondial, que funcionou até 1975.
97

dada a detalhes ocultos nos adereços que nos são comuns,


por meio da investigação de ambientes" banais sob a
direção genial da objetiva, por um lado, amplia a
perspectiva sobre as necessidades que regem nossa
existência e, por outro, chega ao ponto de nos assegurar
um enorme e insuspeitado espaço de jogo.
Nossos bares e ruas de grandes cidades, nossos
escritórios e quartos mobiliados, nossas estações de trem
e fábricas, pareciam nos encerrar sem esperança. Então,
veio o cinema e explodiu esse mundo encarcerado com a
dinamite dos décimos de segundo, de tal modo que nós,
agora, entre suas ruínas amplamente espalhadas,
empreendemos serenamente viagens de aventuras. Com
o grande plano, o espaço se dilata, com a câmera lenta, o
movimento. E, assim como na ampliação, não se trata
ri
somente de uma mera clarificação daquilo que "de
qualquer modo" se veria de modo indistinto, mas vêm à
luz formações estruturais da matéria inteiramente novas;
do mesmo modo, a câmera lenta não torna visível apenas
motivos de movimentos conhecidos, mas, também,
nestes, descobre motivos totalmente desconhecidos, "que
de modo algum aparecem como desaceleração de

69 Millieus.
99

XIII Arnheim, 1932: 138. movimentos rápidos, mas como propriamente deslizantes,
flutuantes, supraterrestres" .XIII Desse modo, torna-se
evidente ser uma a natureza que fala à câmera e outra a
que fala aos olhos. Outra, sobretudo, no sentido de que
no lugar de um espaço entretecido" com a consciência
pelo homem se coloca um espaço onde o homem entretece
inconscientemente. Se é comum se dar conta, mesmo
que em grandes traços, do andar das pessoas, não se sabe
certamente nada sobre sua posição na fração de segundo
em que dão um passo. Se nos é familiar, ainda que grosso
modo, o ato de pegar o isqueiro ou a colher, nada sabemos,
todavia, do que se passa propriamente entre a mão e o
metal, menos ainda como isso se altera de acordo com as
diferentes disposições em que nos encontramos. Aqui a
câmara intervém com seus recursos auxiliares, seu descer
e subir, seu interromper e isolar, seu dilatar e acelerar a
seqüência, seu ampliar e diminuir. Por meio dela
tomamos, pela primeira vez, conhecimento do
inconsciente óptico, tal como tomamos conhecimento
do inconsciente pulsional pela psicanálise.
De resto, há entre as duas espécies de inconsciente
as mais estreitas relações. Pois os múltiplos aspectos

70 durchwirkt, do verbo durchwirken, que, além do ato de passar um fio em um


tecido, pode ser traduzido por "atuar dentro"; optou-se por "entretecer", pois transpõe
melhor a ideia de tecido ou invólucro da realidade que perpassa o texto de Benjamin
e está presente nesta passagem também.

~ . . "
101

que o aparato de registro pode extrair da realidade, em


grande parte, somente se encontram fora de um espectro
normal das percepções sensoriais. Muitas deformações e
estereotipias, muitas das metamorfoses e catástrofes que
podem afetar o mundo da óptica no cinema, afetam esse
mundo de fato nas psicoses, nas alucinações, nos sonhos.
E, assim, aqueles modos de proceder da câmera
correspondem a muitos procedimentos graças aos quais
a percepção coletiva pode se apropriar dos modos
individuais de percepção do psicótico ou do sonhador.
Na antiga verdade de Heráclito - os despertos possuem
um mundo em comum, cada um dos que dormem possuem
um mundo para si - o cinema abriu uma brecha. E fez
isso muito menos pela apresentação do mundo onírico
que pela criação de figuras do sonho coletivo, como a de
Mickey Mouse, que circula pelo mundo inteiro.
Levando-se em conta as perigosas tensões que a
tecnicização, com suas consequências, engendrou nas
grandes massas - tensões que, em estágios críticos,
assumem um caráter psicótico -, então, reconhecer-se-á
que essa mesma tecnicização criou, contra tais psicoses
das massas, a possibilidade de uma vacina psíquica por

Kaiserpanorama, móvel com 3,75m de diâmetro, com dispositivo de visualização


estereoscópica para 25 lugares, 1913.
103

meio de certos filmes, nos quais o desenvolvimento forçado


XIV Uma análise compreensiva desses filmes não deveria, de fantasias sádicas ou delírios masoquistas pode impedir
certamente, silenciar seu sentido contraditório. Ela teria que
o amadurecimento natural e perigoso destes nas massas.
partir do sentido contraditório daquelas situações que têm
efeito tanto cômico como de horror. Comédia e horror A risada coletiva representa a erupção prematura e saudável
encontram-se, como as reações das crianças mostram, muito de tal tipo de psicose de massa. A enorme quantidade de
próximos. E porque deveria, em face de determinadas acontecimentos grotescos consumidos no cinema é um
circunstâncias, ser proibida a questão de qual reação em um
indício drástico dos perigos que ameaçam a humanidade,
caso dado seria a mais humana? Alguns dos mais novos filmes
de Mickey Mouse apresentam uma situação que justifica esta resultantes das repressões que a civilização carrega
questão. (Sua obscura magia de fogo, à qual o filme colorido consigo. Os filmes grotescos americanos e os filmes de
criou as condições técnicas, sublinha um traço, que até então Disney" provocam uma explosão terapêutica do
só vigorava ocultamente, e mostra como o fascismo de modo
inconsciente. XIV Seu antecessor foi o excêntrico. Nos novos
confortável, também nesse domínio, se apropria de inovações
"revolucionárias".) O que vem à luz nos novos filmes de espaços de jogo surgidos COIfl o cinema, foi ele o primeiro
Disney, já se encontrava, de fato, em alguns mais antigos: a a sentir-se em casa: seu primeiro morador. Neste contexto
tendência de acatar comodamente a bestialidade e a violência é que Chaplin tem seu lugar enquanto figura histórica.
como fenômenos concomitantes da existência. Com isso,
retoma-se uma tradição antiga que desperta tudo, menos
confiança; foi introduzida pelos desordeiros" dançantes, que XVII
encontramos em imagens medievais de pogroms," e a
"Canalha" nos contos de Grimm constitui sua retaguarda
confusa e pálida. Uma das tarefas mais importantes da arte sempre
xv "A obra de arte", diz André Breton," "só tem valor na foi a geração de uma demanda, cuja hora de sua completa
medida em que reflexos do futuro a fazem vibrar
satisfação não havia chegado ainda. xv A história de cada
inteiramente". De fato, toda forma artística madura encontra-
se no cruzamento de três linhas de desenvolvimento. Em forma de arte contém épocas críticas, nas quais essa forma

73 Pogrom,termo iídiche russo que significa "destruição". Na Rússia czarista,


71 Walter Elias Disney (1901-1966) artista, produtor, cineasta e roteirista,
usado para designar pilhagens, agressões e massacres contra uma comunidade
contribuiu consideravelmente para o avançodo desenho de animação.Seus filmes
étnicaou religiosa,especialmente contra osjudeus.
curtos, entre eles os do camundongo Mickey,ficaram famosos já nos anos 1930.
74 André Breton (1896-1966),poeta, críticoe editor francês,um dos fundadores do
Benjamin se refere a Mickeytambém no ensaio "Experiênciae pobreza", de 1933
movimento do Surrealismo.
(Benjamin, 1985a: 114-119).
72 hooligans.
105

primeiro lugar, a técnica trabalha em busca de uma forma de aspira por efeitos que serão alcançados sem esforço,
arte determinada. Antes de o cinema aparecer, havia livrinhos somente com um padrão técnico transformado, ou seja,
de fotos, cujas imagens, por meio de uma pressão do polegar, em uma nova forma de arte. As extravagâncias e cruezas
passavam rapidamente diante do espectador e apresentavam
da arte que, sobretudo nas assim chamadas épocas de
uma luta de boxe ou uma partida de tênis. Havia máquinas
automáticas nos bazares, cuja sequência de imagens era decadência, resultam disso, decorrem, na verdade, de seu
mantida em movimento pelo giro de uma manivela. Em centro de força histórico mais rico. Em tais barbarismos,
segundo lugar, as formas tradicionais da arte em certos estágios ainda recentemente, o Dadaísmc" encontrava seu gozo.
de seu desenvolvimento trabalham penosamente em busca
Seu impulso é reconhecível somente agora: O Dadaísmo
de efeitos, que mais tarde são alcançados sem esforço pela
nova forma artística. Antes de o cinema se impor, os dadaístas tentava gerar, com os meios da pintura (ou da literatura),
procuraram, por meio de suas manifestações, provocar no os efeitos que o público busca hoje no cinema.
público um movimento, que depois um Chaplin provocaria
Toda geração de uma demanda fundamentalmente
de maneira mais natural. Em terceiro lugar, transformações
sociais, muitas vezes imperceptíveis, trabalham em direção nova e que abre caminhos irá atirar para além de seu
a uma transformação da recepção, da qual somente a nova alvo. O Dadaísmo faz isso na medida em que sacrifica os
forma de arte se beneficiará. Antes que o cinema começasse valores de mercado, que, em tão grande escala, são
a formar o seu público, imagens (que já deixavam de ser
próprios do cinema, em favor de intenções mais
imóveis) eram recebidas no Panorama Imperial" por um
público reunido. Esse público encontrava-se diante de um significativas - das quais, naturalmente, não são
biombo, no qual estavam instalados estereoscópios, um para conscientes na forma aqui descrita. Os dadaístas deram
cada participante. Diante desses estereoscópios apareciam, muito menos importância à utilidade mercantil de suas
automaticamente, imagens individuais, que persistiam por
obras de arte que à sua inutilidade como objeto de imersão
um instante e, então, davam lugar às outras. Edson." ainda
precisou trabalhar com meios semelhantes quando contemplativa. Procuraram atingir essa inutilidade não
apresentou a primeira fita de cinema - antes que a tela de menos por meio de uma desvalorização radical de seu
cinema e os procedimentos de projeção fossem conhecidos - material. Seus poemas são "saladas de palavras", contêm

75Kaiserpanorama. Aparelho inventado por August Fuhrmann, instalado a partir de 76 Thomas Alva Edison (1847-1931), em 1891 inventou o Kinetoscope, ao qual
1880 na Passagem-Kaiser,em Berlim. Na Europa, foram instalados cerca de 250 Benjaminse referenesta passagem, o que fezdele um dos primeiros inventores do
desses aparelhos. O da Passagem-Kaiser funcionou até 1939, o último a ser cinema.
desativado,em 1955,encontrava-sena filial,em Viena.Em "Infânciaem Berlimem 77 Espéciede antimovimento ou de movimento antiartístico-literário, iniciadoem
tomo de 1900",Benjamindedicaum capítulosobre sua experiência,quando criança, Zurique, em 1916, com um grupo de artistas (Hugo Ball,Hans Arp, Tristan Tzara
com um desses aparelhos (Benjamin, 1994: 75-77). e Hans Richter) que migraram para Suíça por causa da I Guerra. Outros grupos
107

expressões obscenas e todos os lixos imagináveis da


a um pequeno público, que olhava com estupor dentro do
linguagem. O mesmo ocorria em seus quadros, nos quais
aparelho no qual a sequência de imagens se desenrolava.
Aliás, na instalação do Panorama Imperial se expressa montavam botões e bilhetes de trânsito. O que alcançaram
de modo particularmente claro uma dialética do com estes meios foi uma destruição inescrupulosa da
desenvolvimento. Pouco antes do cinema transformar a
aura de suas obras, nas quais imprimiram com os meios
observação de imagens em algo coletivo, ocorre mais uma
da produção os estigmas de uma reprodução. Perante um
vez, diante dos estereoscópios desses estabelecimentos
rapidamente ultrapassados, a observação de imagens por um quadro de Arp ou um poema de August Stramm, é
indivíduo com a mesma intensidade como outrora ocorria a impossível se dar, como diante de um quadro de Derain
observação da imagem de deuses pelo do sacerdote na cela. ou um poema de Rilke," o tempo necessário para o
recolhimento e a tomada de posição. À imersão, que se
tornou, na degeneração da burguesia, uma escola de
comportamento associal, contrapõe-se à distração como
uma modalidade de comportamento social. De fato, as
manifestações dadaístas garantiram uma distração muito
veemente, ao transformarem a obra de arte no centro de :
escândalo. Tinha, sobretudo, uma exigência a satisfazer:
provocar a indignação pública.
De uma aparência sedutora aos olhos ou de uma
convincente imagem sonora a obra de arte convertia-se,
com os dadaístas, em um projétil. Atingia com violência
o espectador. Ganhava uma qualidade tátil. Com isso,
facilitou a demanda pelo cinema, cujo elemento de

Dadá sugiram em 1918 em Nova York (Marcel Duchamp, Man Ray) e, com forte 78]ean (Hans) Arp (1886-1966), pintor e escultor franco-germânico que pertenceu
acento político, em Berlim (George Grosz, Hannah Hõch, Raoul Hausmann,]ohn ao grupo Dadá de Zurique e, em 1925, uniu-se ao Surrealismo. August Stramm
Heartfield). Em meados de 1920, esses grupos foram se desfazendo, sendo que (1874-1915), carteiro e lírico; seus poemas se caracterizam por abandonar as regras
alguns desses artistas se aproximaram do Surrealismo, outros do Construtivismo. gramaticais e por um estilo comprimido. André Derain (1880-1954), pintor francês,
Benjamin conheceu muitos deles pessoalmente. pós-impressionista, um dos fundadores do Fauvismo. Reiner Maria Rilke (1875-
1926), escritor e lírico, de tendência neorromântica.

------------~ -- ------------~ -- --
109

distração é também, em primeira linha, um elemento tátil,


XVI Compare-se a tela sobre a qual o filme se desenrola com
nomeadamente, baseado na mudança de cenas e de
a tela sobre a qual se encontra uma pintura. A imagem de
uma altera-se, a da outra não. A última convida o espectador enquadramentos, que avançam em golpes sobre o
à contemplação; diante dela, ele pode se entregar ao espectador. XVI O cinema liberou o efeito de choque físico
desenrolar de suas próprias associações. Diante do registro da embalagem do efeito de choque moral, em que o
cinematográfico, isso não é possível. Mal ele apreendeu o
dadaísmo o manteve como que empacotado.
registro com seus olhos, este já se transformou. Ele não
pode ser fixado. O desenrolar das associações daquele que
o observa é imediatamente interrompido por meio de sua
XVIII
transformação. Nisso se baseia o efeito de choque do
cinema, que, como todo efeito de choque, requer ser captado
por meio de uma presença de espírito intensificada. O
A massa é a matriz, da qual, atualmente, todo
cinema é a forma de arte que corresponde ao acentuado
perigo de vida no qual vivem os homens de hoje. o comportamento familiar diante de obras de arte
Corresponde às profundas transformações do aparelho de emerge de modo renovado. A quantidade converteu-
apercepção - transformações tal como a vivencia, na escala se em qualidade: a massa substancialmente maior
da existência privada, cada passante no trânsito de uma
de participantes fez surgir um modo diferente de
grande cidade e, na escala da história universal, cada um
que luta contra a ordem social de hoje. participação. O fato de que esse modo se manifesta
primeiramente em uma forma mal-afamada não deve
induzir o observador ao erro. Reclama-se a ele que as
massas procurariam distração, enquanto que o amante
da arte se aproximaria desta com recolhimento. Para as
massas, a obra de arte seria uma oportunidade de
entretenimento; para o amante da arte, ela seria um
111

objeto de sua devoção. Isso deve ser examinado mais de


perto. Distração e recolhimento encontram-se em uma
oposição que permite a seguinte formulação: aquele que
se recolhe perante uma obra de arte submerge nela, entra
nesta obra, tal como, segundo narra a lenda, um pintor
chinês no momento da visão de seu quadro acabado. Ao
contrário, a massa distraída, por seu lado, submerge
em si a obra de arte; circunda-a com as batidas de suas
ondas, envolve-a em sua maré cheia. Isso é mais evidente
nos edifícios. A arquitetura sempre ofereceu o protótipo
de uma obra de arte, cuja recepção ocorre na distração e
por meio do coletivo. As leis de sua recepção são as
mais instrutivas.
Os edifícios acompanham a humanidade desde
sua história primeva. Muitas formas de arte surgiram e
desapareceram. A tragédia surgiu com os gregos, para
se extinguir com eles e reviver novamente, séculos
depois. A epopeia, cuja origem encontra-se na juventude
dos povos, apaga-se na Europa, no final do
Renascimento. A pintura de quadros é uma criação da
Idade Média e nada garante sua duração ininterrupta. A
necessidade do homem por um abrigo, no entanto, é
113

constante. A arquitetura nunca deixou de existir. Sua


história é mais longa que a de qualquer outra arte, e ter
presente sua influência é de grande importância para
qualquer tentativa de dar conta da relação das massas
com a obra de arte. Os edifícios são recebidos de dois
modos: por meio do uso e por meio da percepção. Ou,
melhor: são recebidos tátil e opticamente. Não há
nenhum conceito dessa recepção, quando ela é
representada segundo o tipo de recepção recolhida,
como é comum, por exemplo, a viajantes diante de
edifícios famosos. Pois, não existe do lado tátil nenhuma
contraparte daquilo que do lado óptico é a contemplação.
A recepção tátil ocorre não tanto pelo caminho da
atenção que pelo caminho do hábito. Com relação à
arquitetura, este último determina amplamente até
mesmo a recepção óptica. Também ela ocorre, por
princípio, muito menos por um atentar concentrado que
por um notar de passagem. Essa recepção formada a
partir da arquitetura possui, em certas circunstâncias,
porém, valor canônico. Pois: as tarefas postas, em épocas
históricas de guinada, ao aparelho perceptivo humano
não podem, de modo algum, ser resolvidas pelo caminho

Feldherrnhalle ["Pavilhão dos Generais"], edifício encomendado pelo rei Ludwig I


ao arquiteto Friedrich von Gãrtner e construído entre 1841 e 1844, no bairro
Schwabing, em Munique.
115

meramente óptico, portanto, da contemplação. São


dominadas aos poucos, segundo a direção da recepção
tátil, por meio da haoituação."
O distraído pode também se habituar. Mais: poder
dominar certas tarefas na distração prova que resolvê-Ias
tornou-se um hábito para o indivíduo em questão. Por
meio da distração, tal como a arte tem a oferecer, controla-
se secretamente até que ponto as novas tarefas da
apercepção se tornaram solúveis. Como, de resto, existe
para o indivíduo a tentação de subtrair tais tarefas, então
a arte irá atacar as mais difíceis e importantes, ali, onde
pode mobilizar as massas. Ela o faz hoje no cinema. A
recepção na distração, que se observa com intensidade
cada vez maior em todos os domínios da arte e que é
sintoma de uma profunda mudança da apercepção, tem
no cinema seu instrumento de exercício próprio. Por seu
efeito de choque, o cinema vem ao encontro dessa forma
de recepção. Assim, ele se mostra, também deste ponto
de vista, como o objeto atualmente mais importante
daquela teoria da percepção, que entre os gregos se
chamava estética.

79 Gewohnung. Optou-se por verter em "habituaçâo", termo um tanto incomum,


para deixar explícita, como ocorre no original, a relação com os outros termos
centrais dessa passagem "hábito" [Gewhonheit], "habituar-se" [sich gewohnen],
que remetem todas ao verbo "habitar" [wohnen] e permitem a Benjamin explorar o
tipo de recepção que ocorre pela arquitetura.
I,

117

XIX
XVIIAqui, uma circunstância técnica é importante, sobretudo
com respeito ao noticiário semanal cinematográfico, cujo
significado propagandístico dificilmente pode ser A crescente proletarização dos homens de hoje e a
superestimado. Da reprodução em massa vem ao encontro
especialmente a reprodução das massas. Nos grandes desfiles
crescente formação de massas são dois lados de um mesmo
festivos, nos comícios monstruosos, nos eventos de massa acontecimento. O fascismo procura organizar as massas
esportivos e na guerra, que hoje são todos conduzidos ao proletarizadas recérn-surgidas sem tocar nas relações de
aparato de registro, a massa se vê em face de si mesma. Esse propriedade, por cuja eliminação elas pressionam. Ele vê
processo, cuja amplitude não precisa ser enfatizada, está
sua salvação em deixar as massas alcançarem a sua
estreitamente relacionado com o desenvolvimento das
técnicas de reprodução e de registro. Movimentos de massa expressão (de modo algum o seu direitor.v" As massas
apresentam-se no geral de modo mais nítido ao aparato de possuem um direito à mudança das relações de
registro que ao olhar. Quadros de centenas de milhares se propriedade; o fascismo busca dar-lhes uma expressão
deixam captar do melhor modo pela perspectiva aérea. E
conservando essas relações. O fascismo resulta,
mesmo quando essa perspectiva é igualmente acessível ao
olho humano e ao aparato, a imagem que o olho carrega não consequentemente, em uma estetização da vida política.
pode ser objeto de ampliação, como é o registro fotográfico. Com O'Annunzio, 80 a decadência teve sua entrada na
Isso significa que os movimentos das massas e, no seu ápice, política, com Marinetti," o Futurismo e, com Hitler, a
a guerra representam uma forma de comportamento humano
tradição de Schwabing."
que vai especialmente ao encontro do aparato.
Todos os esforços pela estetização da política
culminam em um ponto. Esse ponto é a guerra. A guerra,
e somente a guerra, 'torna possível dar um objetivo aos
movimentos de grandíssima escala das massas, sem
prejuízo às relações de propriedade tradicionais. Assim,

80 Gabriele D'Annunzio (1863-1938), escritor italiano, herói militar e político.


Defendeu a entrada da Itáliana I Guerra e, pouco depois,aderiu ao fascismo,dando
suporte a Mussolini.Suavidae obra caracterizaram-sepor amoralidadee violência.
81 Filippo Tomaso Marinetti (1876-1944), fundou o movimento futurista em

1909, defendendo uma arte revolucionária e total liberdade de expressão, bem


como o direcionamento das formas artísticas para a técnica moderna. Tevegrande
[I
;I
119

formula-se a situação em termos da política. Em.termos


da técnica, formula-se da seguinte maneira: somente a
guerra torna possível mobilizar todos os meios técnicos
do presente sem prejuízo das relações de propriedade. É
óbvio que a apoteose da guerra pelo fascismo não se serve
deste argumento. Mesmo assim, é instrutivo lançar um
olhar sobre ela. No manifesto de Marinetti a respeito da
guerra colonial na Etiópia.P lê-se: "Há vinte e sete anos,
nós, futuristas, nos levantamos contra o fato de a guerra
ser caracterizada como antiestética [...]. De acordo com
isso, afirmamos: [...] a guerra é bela, pois, graças às
máscaras de gás, dos megafones assustadores, dos lança-
chamas e dos pequenos tanques, funda o domínio do
homem sobre a máquina subjugada. A guerra é bela,
porque inaugura a sonhada metalização do corpo
humano. A guerra é bela, porque enriquece um prado
florido com as orquídeas de fogo das metralhadoras. A
guerra é bela, porque unifica o fogo dos fuzis, dos
canhões, o cessar-fogo, os perfumes e os odores de
decomposição, em uma sinfonia. A guerra é bela, porque
J
cria novas arquiteturas, como a dos grandes tanques,
das esquadras aéreas geométricas, as espirais de fumaça

influência na Itália e na Rússia. Em 1919 entrou para o partido fascista e apoiou


nesse mesmo bairro, em 1923, a marcha para a Feldherrnhalle ("Pavilhão dos
Mussolini. Benjamin teve oportunidade de conhecê-Io pessoalmente em setembro
Generais", monumento com estátuas de militares do século XIX), uma tentativa
de 1924, em Capri.
fracassada de golpe contra o governo de Gustav Stresemann, que resultou na prisão
82 Schwabing é um bairro de Munique, tradicionalmente frequentado por artistas e
de Hitler.
intelectuais. Nos anos 1920, alguns de seus restaurantes e cervejarias eram ponto de
83 A Itália invadiu a Abssínia, na África Oriental, em outubro de 1935, a qual anexou
encontro de AdolfHitler e outros membros do partido nazista. Estes realizaram,
à Eritreia e Somália, formando a Etiópia. Marinetti acompanhou o exército italiano.
I'
121

de vilas em chamas, e muito mais [...]. Poetas e artistas


XVIII La Stampa, Torino." do Futurismo [...] lembrai-vos destes princípios de uma
estética da guerra, afim de que vossa luta por uma nova
poesia e uma nova escultura [...] seja iluminada por
eles!".xvllI
Esse manifesto tem o mérito da clareza. Sua
colocação do problema merece ser adotada pelo dialético.
A este, a estética da guerra atual se apresenta do seguinte
modo: se a utilização natural das forças produtivas é detida
pela ordenação da propriedade, então o aumento dos
recursos técnicos, dos ritmos, das fontes de energia,
impele para uma utilização não natural. Essa utilização
é encontrada na guerra que, com suas destruições,
comprova que a sociedade não estava madura o suficiente
para fazer da técnica o seu órgão, e que a técnica não
estava suficientemente elaborada para dominar as forças
sociais elementares. A guerra imperialista é determinada,
em seus traços mais cruéis, pela discrepância entre os
poderosos meios de produção e a sua utilização
insuficiente no processo de produção (em outras
palavras, por meio do desemprego e da falta de mercados).
A guerra imperialista é um levante da técnica que exige

publicado em 1937 em Milão (cf. Schôttke, 2007: 195).


84 Benjamin apresenta como fonte desta citação o jornal de Turim, sem data.
Detlev Schôttker consultou a redação desse jornal, mas não encontrou o texto
referido. A hipótese de Schõttker é que Benjamin provavelmente retirou essa
passagem de uma pré-edição ou reportagem de outro jornal sobre a invasão da
Etiópia, que teria citado La Stampa como fonte. O trecho se encontra em uma
Londres bombardeada por aviões da Alemanha nazista, em 1940.
pré-edição do livro de Marinetti, Il Poema Africano Della Divisione '28 Ottobre',
123

"em material humano" o que a sociedade lhe negou de


seu material natural. Em vez de usinas de força, ela coloca,
no campo, a força humana, na forma de exércitos. Em
vez de trânsito aéreo, instaura o trânsito de projéteis, e,
na guerra de gases, encontra um meio de abolir, de uma
nova maneira, a aura.
"Faça-se arte, pereça o mundo"." diz o fascismo,
e espera a satisfação artística da percepção sensorial
transformada pela técnica, tal como Marinetti confessa,
da guerra. Isso é evidentemente a consumação da arte
pela arte." A humanidade, que outrora, em Homero, foi
um objeto de espetáculo para os deuses olímpicos,
tornou-se agora objeto de espetáculo para si mesma. Sua
autoalienação atingiu um grau que lhe permite vivenciar
sua própria destruição como um gozo estético de primeira
ordem. Essa é a situação da estetização da política que o
fascismo pratica. O comunismo responde-lhe com a
politização da arte,"

85 No original, em latim: "Fiatars-pereatmundus". Divisa modificada do Imperador


Fernando I (1503-1564): "Fiat iustitia pereat mundos" [Faça-se justiça, mesmo
que o mundo pereça].
86 Em sua resenha "Teorias do fascismo alemão: sobre a coletânea Guerra eguerreiro

editada por Ernst]iinger", de 1930, Benjamin também estabelece esse vinculo entre
a guerra e a teoria da l'art pour l'art (Benjamin, 1985a: 63).
125

Edições e traduções consultadas

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reproduction". (3a versão) Trad. Harry Zohn. In:
Illuminations. New York: Schocken Books, 1969.
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técnica: Arte e società di massa. (3a versão) Trad. Enrico
Filippini. 4. ed. Torino: Enaudi, 1970.
___ "Loevre d'art à l'êre de as reproductibilité
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(3a versão) Trad. Maurice Gandillac. In: Oevres, tomo lII.
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(3a versão) Trad. José Lino Grünnewald. In: BENJAMIN et
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___ "Obra de arte na época de sua reprodutibilidade
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técnica". (P versão). In: Magia e técnica, arte e política. Op.


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______ [1989]. Gesammelte Schriften. v. I e VII. Ed. Rolf
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___ "Obra de arte na época de sua reprodutibilidade
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técnica". (3a versão) Trad. Maria Luz Moita. In: Sobre arte,
técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D'Água, 1992.
___ "L'oevre d'art à I'ere de as reproductibilité
o techníque".
(P versão) Trad. Rainer Rochlitz. In: Oevres, tomo III. Paris:
Gallimard, 2000.

87Em sua resenha "Um marginal se faz notável: a respeito de 'Die Angestellten' direta só pode advir da práxis. Contra seus colegas arrivistas, porém, irá em
[Os empregados] de Sigfried Krakauer", de 1930, Benjamin afirma que Kracauer pensamento se apoiar em Lenin, cujos escritos provam da melhor forma o quanto
recusa a ação política demagógica direta, que pretende tornar o intelectual um o valor literário da práxis política, a influência direta, está longe dos cacarecos
proletário, e opta pela politização da própria classe; com isso estaria a caminho do factuais e de reportagens que se fazem passar por ela atualmente" (Benjamin,
que seria a "politização da inteligência": "essa influência indireta é a única a que 1991, III: 225; e Schõttke, 2007: 196).
um escritor revolucionário da classe burguesa pode hoje se propor. Efetividade

~ ~~. ..~,,:,'
,,~;; .
- --
127

. "Sobre o conceito de história". Trad. jeanne Marie


___ [1969]. "Obra de arte na época de sua reprodutibilidade
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___ o Rua de mão única. Trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho e José Carlos Martins Barbosa. 4. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas Il).

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