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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Escola de Belas Artes

Luiza Peixoto Baldan

A i m a g e m n o f i m

Rio de Janeiro
2020
Luiza Peixoto Baldan

A i m a g e m n o f i m

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio
de Janeiro como requisito para a obtenção do
título de Doutora em Artes Visuais.

Linha de Pesquisa: Linguagens Visuais

Orientador:
Prof. Dr. Felipe Scovino Gomes Lima

Rio de Janeiro
2020

2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

BALDAN, Luiza Peixoto.

A imagem no fim / Luiza Peixoto Baldan ; orientação Felipe Scovino Gomes Lima. Rio de
Janeiro: s.n, 2020.

226 fl.: il.

Tese (Doutorado – Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais. Área de Concentração:


Linguagens Visuais) – Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1. Artes Visuais 2. Exercício de Observação 3. Processo criativo 4. Autoficção


5. Maternagem

I. Scovino, Felipe, orient.

3
Luiza Peixoto Baldan

A i m a g e m n o f i m

Tese apresentada como requisito para a obtenção do título de Doutora em Artes Visuais
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Área de Concentração: Linguagens Visuais.

Rio de Janeiro, 30 de março de 2020.

Orientador: Prof. Felipe Scovino Gomes Lima


Instituição: PPGAV - Escola de Belas Artes / UFRJ

Assinatura: _______________________________

Prof. Frederico Coelho


Instituição: PPGLC - Departamento de Letras / PUC-Rio

Assinatura: _______________________________

Profa. Helena Franco Martins


Instituição: PPGLC - Departamento de Letras / PUC-Rio

Assinatura: _______________________________

Profa. Mariana Rodrigues Pimentel


Instituição: PPGCA/UFF e IART/UERJ

Assinatura: _______________________________

Profa. Michelle Farias Sommer


Instituição: PPGAV - Escola de Belas Artes / UFRJ

Assinatura: _______________________________

4
À m i n h a l u n e t a e a o m e u s a t é l i t e , P i l a r .

5
Agradecimentos

Agradecer a quem direta ou indiretamente participou desta pesquisa é um truque de


memória; é buscar nos achados e perdidos, e alinhá-lxs a um grupo de pessoas que perduram ao
longo de vinte anos de trabalho. Se esqueci de algum nome, por favor me desculpe.
Agradeço então ao meu orientador e amigo, Felipe Scovino, pelo diálogo constante, antes,
durante e depois desta pesquisa; por ter me incentivado a entrar no doutorado junto a Gabriela
Mureb e Mayana Redin; por sua dedicação ao PPGAV e ao ensino público de excelência; por ter
me apresentado a outro parceiro fundamental, Frederico Coelho, cujas trocas começaram em
2010, chegaram à banca examinadora desta tese, e certamente seguirão. Ao Fred agradeço pelo
Marcelo Azeredo, a quem jamais me cansarei de agradecer. Ao Fred e às incansáveis
colaboradoras Ana Kiffer e Raïssa de Góes (que também fez a revisão da tese), agradeço pelo
Departamento de Letras da PUC, que me trouxe nada mais nada menos que Helena Martins
(presente em todo pensamento que antecede à linguagem, e também na banca de qualificação
e defesa), Marília Rothier Cardoso e Victor Squella. À PUC ainda agradeço pelo saudoso Renato
Cordeiro Gomes, que me apresentou a uma outra experiência urbana do Rio de Janeiro, e por
Michel Masson, por aproximar o meu trabalho ao programa de arquitetura e por me convidar,
junto a Flaviana Raynaud, para a banca de Anna Maggia.
À UFRJ e a CAPES agradeço pelo apoio e fomento à minha formação como Mestra
e Doutora; agradeço ao PPGAV e ao meu eterno desorientador, Milton Machado, a minhas
parceiras desilhantes, Lívia Flores (parceria que extrapola a universidade e que participa como
suplente na banca) e Michelle Sommer (que viveu a reviravolta maravilhosa do cometa Livy
e que permanece na minha banca desde a qualificação), axs indisciplinadxs Ana Paula Chaves
Mello e Ivair Reinaldim, a Frederico Carvalho, Glória Ferreira, Natália Quinderé (voz presente e
ativa dentro e fora do texto), Paulo Venâncio Filho (que me aproximou a Gisele Camargo, para
caminharmos juntas para sempre, com as Pestinhas do coração, Gabi e Claudia Savelli), Renato
Vieira e Tadeu Capistrano.
A Miami agradeço pela FIU, por me apresentar as artes visuais, principalmente
a fotografia como formação acadêmica, em especial ao meu grupo de professorxs Bill Maguire,
Manny Torres, Peggy Levison Nolan e Priscilla Ferguson; pelos becos de South Beach,
Wolfsonian Museum e Tropicolor; pelo carinho e incentivo de Carlos Gilmore, Estefanía Durán,
Gina Manjares, família Font Baixeras, Pablo Tarrero, Veronica Llorens e Vicenta Casañ.

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Ao Rio de Janeiro agradeço pela Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), em
especial axs professorxs Anna Bella Geiger, Charles Watson, Hélio Eichbauer e Fernando
Cocchiarale; axs diretorxs e coordenadorxs Claudia Saldanha, Tânia Queiroz, Lisette Lagnado e
Ulisses Carrilho; axs alunxs-monitorxs Bárbara Rossi, Elisa Freitas e Felipe Paiva, a todxs xs
alunxs, em especial quem permanece como amigx, quem além de tudo foi assistente de locação,
Yan Braz, quem participou da exposição na escola em 2013 e foi incluídx na tese em citação ou
imagem, Daniele Cavalcante, Eduardo Freire, Juliana Gueiros, Michele Oliveira e Monica
Guinle; ao companheiro de curso e amigo de vida, Nuno Centeno, que me trouxe Beatriz Luz e
João Doria, além de ser meu porto no além mar. Agradeço à EAV e sua equipe, que teria
recebido a minha defesa e integraria mais um capítulo da minha pesquisa teórico-prática, se não
fôssemos impedidos pela quarentena do Covid-19. Agradeço pelo Ateliê da Imagem, Patricia
Gouvêa e alunxs. Agradeço por Laura Marsiaj que, além do afeto, da formação em arte
contemporânea brasileira e da participação na série “Entre o sono e a vigília”, me trouxe Amanda
Bonan, Cadu, Carolina Costa, Lucia Laguna, Marcos Chaves e um grupo excepcional de artistxs
e colaboradorxs. À Lucia agradeço por ser amor, exemplo e prumo. A Marcos também, e ainda
agradeço por um mundo de outras coisas, como ter me apresentado a Vicente de Mello e às irmãs
Schincariol Mello, fundamentais em tantas etapas da vida profissional e afetiva, nas publicações
“São Casas” e “Derivadores”, chegando à pesquisa pela indicação de Marisa da tese de Renata
Faleiros Camargo Moreno.
Ao Rio de Janeiro agradeço pelo Minhocão e xs moradorxs, em especial Mariana Baptista
de Carvalho, Maria Eduarda Bento, Regina Maria, Sabrina Mara e Yasmin Ialuny, por Beatriz
Lemos, Cristina Ribas e Mauricio Lissovsky; pela Península, Daniela Name e Shakti Leal (e a
ambas por muito mais); pelo Rapozão, Barrão, Bia Lessa, Daniel Roland, e Maria Borba
(presente em mil momentos deste texto); pelo MAM Rio e equipe.
Ao Rio de Janeiro também agradeço pela Baía de Guanabara, mas antes disso, agradeço
a Cabo Frio, por ser a minha cidade-luz e por ter me dado os parceiros Francisco dos Santos
e Jonas Arrabal, sendo então possível chegar a “Derivadores” e “Estofo”. Então agradeço a
Alexandre Anderson/AHOMAR, André Ribeiro de Rezende, Bruna Cerrone, Bruna Vieira de
Medeiros, Juliana Fukuda/APA Guapi-Mirim ICMBio, Maycon Monteiro Quintanilha, Simplício
Neto, Thiago Barros, Thiago Marques/Projeto Grael e Vinícius Pinheiro Palermo/Prooceano. E a
Maria Correa do Lago, por publicar outras imagens da BG no livro Onde o Rio encontra o Mar.

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A São Paulo agradeço pelo casulo de Isabela Diniz e Veronica Villa, e o de Julia Vaz;
pelo Copan, de Ricardo Alves Mendes; pelo Pivô, de Fernanda Brenner, Marta Ramos-
Yzquierdo, Sandra Oksman e Tyaga Sá Brito; por João Bandeira, Paloma Bosquê, Lenora de
Barros e Marcos Augusto Gonçalves (MAG); por Perabé, Ana Luisa Lima, Flavio Cerqueira,
Leonardo Chiarini, Marcio Harum e CCSP; pelo MASP e toda a sua equipe, em especial
a Guilherme Giufrida e Marina Rebouças; pelo apoio de Marcos Gallon (Galeria Vermelho) na
cessão de imagens de Claudia Andujar.
Ao Brasil agradeço pelas paisagens e parcerias: Adolfo Montejo Navas, Ailton Silva,
Alberto Andrade, Alexandre dos Santos Silva, Alfredo Luz, Aline Jobim, Analu Cunha, Ana
Luiza Nobre, Ana Maria Furtado, Ana Maria Maia, André Parente, Bárbara Copque, Brígida
Baltar, Cao Guimarães, Carlos Bevilacqua, Carlos Murad, Carolina Ferreira, Clara Meliande,
Claudia Barcelos, Daniela Labra, Daniel Gorin, David Pacheco, Daisy Xavier, Dilma Vieira e
Silva, Domingos Guimaraens, Eduardo Coimbra, Ernesto Neto, Fernanda Andrade, Fernanda
Gomes, Flora Süssekind, Guilherme Bueno, Helena Bach, Heloísa Estrada, Humberto Cesar,
Ivone Maya, Jaime Vilaseca, Jair Cruz, João Modé, João Paulo Prates, Lorenzo Mammì, Luiz
Guilherme Vergara, Luisa Duarte, Luiz Camillo Osório, Luiz Mors Cabral, Marcelo Campos
(também suplente da banca de defesa), Mariana Kaufman, Mariana Rodrigues Pimentel
(integrante na banca de defesa), Mario Grisolli, Mário Henriques, Mario Vitor Marques, Mauro
Restiffe, Mayra Messora, Mercedes Viegas, Ni da Costa, Otávio Schipper, Paula Oliveira
Camargo, Pedro Rivera, Rafael Alonso, Rafael Borelli, Raul Mourão, Rodrigo Lima Ferreira,
Samuel Betts, Sérgio Bruno Martins, Sérgio Carvalho, Tainá Diniz, Tatiana Grinberg, Tatiana
Paiva, Tiago Cadete, Vanda Klabin, Vinícius Leal, Virginia de Medeiros, Vitória dos Santos.
A Portugal agradeço por Jorge Emanuel Espinho, Manoela Barbosa, Maria José Rua,
Paulo Mendes, Pedro Magalhães, e por me devolver de Havana, passando por Santiago, Cristiana
Tejo, cuja tese fortaleceu a minha escrita.
À França agradeço por Maria do Mar Guinle, Nathalie Guiot, Claudia Jaguaribe, e por me
devolver Cristiane Caldas Camanho.
Ao Chile agradeço por me trazer o Nico, que me trouxe a Pilar, e mudou tudo; pelo
CRAC Valparaíso de José Llano e Paulina Varas, pelos arquitetos de vida, Alejandro Perez
e Soledad Leon, por Chantal de Rementería, Carlos Albarracín, Carlos Guzmán e Catalina

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Jiménez; pela Ciudad Abierta de Ana María Ruz, Ana Paz Yanes, Andrés Garcés, Fernando
Espósito e Jorge Ferrada.
À Alemanha agradeço por Cristina Canale e Lina Kim, que colaboraram ativamente na
pesquisa e no acalanto no velho mundo.
Ao Ashtanga Yoga agradeço pela família Jois, meu mestre Thiago Villa Verde, Edith
Gajardo, Francisca Diaz Olea, Helena Rosenthal, Mati Guerra, Sharmila Desai, axs companheirxs
Bruno Kemp, Danielle Arthur, Helena Holzmeister, Fabio Carvalho e Marta Garcia, e minha
nova casa, Ashtanga House Berlin, de Carol, Mati, Sara e Bruna.
Às mulheres agradeço muito mais, especialmente as que me trouxeram vida, Heloísa
Lessa, Julia Fatorelli, Maria Emília Quaresma; e as que reafirmam vida neste texto e além (e que
não foram citadas anteriormente), Aleta Valente, Ana Dalloz, Bianca Tomaselli, Caroline
Valansi, Cecilia Cavalieri, Chiara Banfi, Clara Cavour, Duda Moraes, Glaucia Mayer, Isabel
Löfgren, Maria Baigur, Lais Myrrha, Laura Erber, Louise Botkay, Keyna Eleison, Mara Pereira e
Paula Huven.
À família Peixoto Baldan Espinoza Santibáñez Benvengnù Camargo Costa Fetter
Jaguaribe Mendes agradeço tudo.

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Resumo

Esta tese se desenvolve a partir de uma trajetória de meu trabalho como artista e a relação
com a prática de exercícios de observação, incluindo os seus bastidores, suas motivações e suas
múltiplas possibilidades de (in)conclusão. Acrescento à análise conversas com artistas com xs
quais pude perceber similaridades na construção de pensamento e obras, e com quem, além das
afinidades e trocas, existe afeto. Os procedimentos escriturais da tese apostam na força teórico-
crítica da experimentação: modulando, mesclando e transpassando protocolos textuais, o trabalho
reage a questões contemporâneas sobre o que faz um lugar, sobre a elusiva e promissora
volatilidade dos vínculos entre tempo e espaço, sobre a relação entre palavra e imagem, sobre o
jogo entre arte e política, sobre as forças do coro na escrita de si, sobre o feminino, a gestação e a
criação.

Abstract

This thesis develops from a trajectory of my work as an artist and the relationship with
the practice of observation exercises, including their backstage, their motivations and their
multiple possibilities of (in)conclusion. I add to the analysis conversations with artists with whom
I have been able to perceive similarities in the construction of thought and works, and with
whom, besides affinities and exchanges, there is affection. The thesis’ scriptural procedures bet
on the theoretical-critical force of experimentation: by modulating, mixing and transposing
textual protocols, the work reacts to contemporary issues about what makes a place, about the
elusive and promising volatility of the bonds between time and space, about the relationship
between word and image, about the game between art and politics, about the choir forces in self-
writing, in the feminine, in pregnancy, and in creation.

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Sumário

Introdução 12
Capítulo 1. Exercícios de observação 22
Capítulo 2. De corpo presente 36
Capítulo 3. Corpo de imagens 64
Reintrodução 83
Capítulo 4. Outro corpo presente 87
Capítulo 5. Notas sobre o fim 150
Referências bibliográficas 170

Anexo A – Textos autorais 177


Alleys, 2000-2001 178
Natal no Minhocão, 2009 180
Carandiru, 2009 (revisitado em março de 2013) 183
De murunduns e fronteiras, 2010 184
Insulares e marginais, 2010 185
Petricor, 2011 186
El luche, 2012 189
Corta Luz, 2013 (revisitado em outubro de 2018) 192
Build Up, 2014 197
Perabé, 2014-2015 199
Estofo, 2016-2017 205
Monumentalidade como coletividade, 2018 206
Quarentena / Apresentação da Defesa da Tese, 2020 207

Anexo B – Reproduções, fotografias 212


Lista de imagens 213

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Introdução
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Observação.
Momento fundamental do raciocínio experimental que registra os fenômenos a fim de suscitar
uma hipótese ou de enunciar diretamente uma lei, nos casos das ditas ciências de observação,
em que a experimentação é impossível. (astronomia)
Distingue-se a observação empírica, que é inteiramente passiva diante do desenrolar dos fatos,
da observação científica, cuja complexidade Claude Barnard sublinhou:
mesmo livre de ideias preconcebidas, deve ter condições de dar origem a um raciocínio hipotético.
A observação provocada (sinônimo de experiência) verifica a lei.1
.
.
.
Observação.
Percepção deliberada, como no ouvir e ver por contraste com escutar e olhar respectivamente.
Não deve ser confundida com o experimento, que é observação planejada dos efeitos
da intervenção ativa do conhecedor na situação concernente.2
.
.
.


1
DUROZOI, G. e ROUSSEL, A. Dicionário de Filosofia. Tradução de Marina Appenzeller. Campinas: Papirus,
1993.
2
BUNGE, M. Dicionário de Filosofia. Tradução de Gita K. Guinsburg. São Paulo: Perspectivas, 2002.
Disponível em: <https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/observa%C3%A7%C3%A3o>

12
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O MÍNIMO DO MÁXIMO
Tempo lento,
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto.
Se não pego isso
que me passa no íntimo,
importa muito?
Rapto o ritmo.
Espaçotempo ávido,
lento espaçodentro,
quando me aproximo,
simplesmente me desfaço,
apenas o mínimo
em matéria de máximo.3
.
.
.
Eis enfim o que explica a minha felicidade. (...) Não vejo nenhuma ligação entre estas observações. Mas que
existe uma ligação, e até várias, não há dúvida, para mim. Mas quais?4
.
.
.


3
LEMINSKI, Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p. 17.
4
BECKETT, Samuel. Primeiro Amor / Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 8.

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Dia 1. Terça-feira, 10:00h. Não sou aposentada nem desempregada nem tenho pressa. Chego a uma
praça desconhecida e sento em um banco qualquer. Não demoro em perceber que o lugar não é de
todo irreconhecível. Outras pracinhas me vêm à lembrança, especialmente as da infância, uma época
em que frequentá-las costuma ser um hábito rotineiro e inquestionável. Se trataria então de um não-
lugar em sua aparição urbana genérica? Ou seria bem um lugar recheado de histórias, ofertando um
senso de pertencimento? Mesmo aqui sendo tão parecido a acolá, o reconhecimento inicial é um
tanto ambíguo. Tudo parece ser igualmente estranho e familiar. Há um certo desconforto talvez no
banco duro demais. Sem saber muito bem o que fazer ou como me posicionar, contento-me em
enxergar apenas o meu próprio corpo meio mal sentado. O gesto, por si só, configura uma espera,
mas não espero nada em particular. Com o passar dos minutos, os pés cavados na terra e as mãos
marcadas pelo chapisco do cimentado, domino de alguma forma aquele espaço que ocupo. Sabe
quando as luzes se apagam repentinamente e se instaura a cegueira no breu? As pupilas gradualmente
se dilatam no ímpeto de observar além? Como se, faminta, a visão precisa se expandir, não pode
evitar... quer dominar o espaço, sentir que está no presente e não num sonho; desvelar o fantasma,
distinguir contornos e vislumbrar interstícios entre o aparente vivível. Já os demais sentidos, tão
acostumados à insubordinação imposta pela velocidade da luz, também passam a protagonizar.
Bagunçada a ordem humana, o medo da paranoia e da claustrofobia, o corpo é então capaz de sentir
conforto, mesmo quando na escuridão. Somos capazes de escutar as estranhezas do dentro.
Pergunto o que faz a penumbra ser tão temível e fascinante? Lembro de Blanchot: “Queria ver algo
a pleno sol, de dia; estava farto do encanto e do conforto da penumbra; sentia pelo dia um desejo de
água e de ar. E se ver era o fogo, exigia a plenitude do fogo; e se ver era o contágio da loucura,
desejava ardentemente essa loucura”5.

Dia 2. Quarta-feira, 16:00h. Retorno à mesma praça. Sob uma luz totalmente diferente do dia
anterior, ainda não reconheço o lugar, com exceção do banco para o qual regresso e que deixa de ser
um banco qualquer para tornar-se aquele banco. Busco me libertar da aparente igualdade entre o aqui
e o acolá. Seria a fundação de um lugar? Sentada, talvez tímida demais ou curiosa de menos para me
locomover, contento-me com o conforto do banco e o estar estando, a duração. Sinto um pouco de
frio e noto a pele-de-galinha do meu braço. Deve ser da sombra da amendoeira que ilude o sol por


5
BLANCHOT, Maurice. La Folie du jour, Montpelier, Fata Morgana, 1973, p. 21. Extraído do texto de Georges
Didi-Huberman, Quando as imagens tocam o real, traduzido por Patrícia Carmello e Vera Casa Nova, disponível
em: <https://issuu.com/carlosdmedeiros/docs/didihuberman-imagem-toca-o-real>

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completo. Observo atentamente o que há ao redor, de ruídos a aromas, e ultrapasso o superficial de
um conjunto de coisas que de fato me são desconhecidas. O perfume esfomeante da pipoca doce,
o assovio pendular do balanço, a mão invisível que faz girar o carrossel, o repouso da gangorra,
os anos acumulados ao redor da mesa de dominós, a declaração de amor inscrita no tronco da
amendoeira que sombreia o meu banco. Admiro esses pequenos acontecimentos cotidianos e nada
exclusivos de uma praça qualquer que decidi frequentar; algo de simplicidade.

Dia 3. Quinta-feira, 13:00h. Retorno. O corpo cada vez mais ativo, mas aparentemente inerte, ainda
sentado no banco. É ele quem escuta, responde, sente. O exercício de olhar para fora implica no
olhar para dentro. Quem eu olho me olha também? O corpo não quer apenas estar, quer ser.
Balbucio palavras desconexas, talvez o cantarolar de uma canção que escutei no caminho mas que
não conheço a letra. Repito em voz alta os pensamentos que me cruzam a cabeça. Experimento
gravá-los no telefone-esperto, mas a voz, quando consciente, atrasa o corpo e se acovarda... gagueja
querendo controlar de sandices a maravilhamentos. Gravo de qualquer jeito, aaahhhhnnnn, éééééé,
ahhhhhhhhhhh. Uso o mesmo telefone para fotografar um susto: o derrapar de uma bicicleta, seu
rastro curvilíneo na areia e muita poeira levantada. Felizmente ninguém se machucou. Após
o espanto, é como se o mundo todo se aquietasse. Movimentos ficam mais lentos, menos
barulhentos, tanto que sou capaz de perceber o estalar discreto das folhas da amendoeira em seu
baile suave que lampejam o meu banco. Aproveito para filmar com o mesmo telefone os ademanes
da árvore e, sem querer, copio seus trejeitos. A essa altura, já estou sensível a quase tudo o que se
passa ao meu redor. A lente do telefone se funde aos meus olhos. Rostos se diferenciam, vozes se
sobressaem. Acabo fitando uma garotinha que, sozinha, se entretém com muito pouco. Sem
brinquedos, ela se diverte construindo montinhos de terra. Fala, gesticula, como se na presença de
uma amizade invisível. Toma.(fazendo que sim com a cabeça, entrega a pá para o espectro).Assim
ó.(pega a pá novamente e volta a catar areia).Junta junta junta.(acerta os montinhos com a mão
construindo uma única montanha).Nããão.(desmonta tudo com a mão e começa novamente). Decido
anotar o seu monólogo no bloco de notas do telefone, esse aparato-prótese, definitivamente uma
extensão do meu corpo naquele momento, descrevendo das mais diversas formas a experiência
vivida sem se limitar ao mero registro de acontecimentos visuais.

Dia 4. Sexta-feira, 11:00h. Retornar. Retornar sem esperar que o ontem se repita, mas reconhecer
quando o ontem se repetir e não se apegar demais às lembranças. Rever a garotinha dos montinhos

15
de terra, mesmo que hoje ela tenha preferido subir no trepa-trepa para se pendurar como uma
morceguinha e que tenha arrumado companhia para dividir as aventuras. Reconhecer como é bom
o que se torna reconhecido. Aprender da repetição e deixá-la passar. Estar atento ao acaso. Ganhar
intimidade com animados e inanimados e se permitir afetar por eles. Sentir-se em casa.

Dia 5, 6, 7... Sábado, domingo, segunda... Retornar, e assim sucessivamente, até reconhecer o outro,
até que o outro lhe reconheça, até se reconhecer em si mesmo. Ou até que o lugar não lhe diga mais
nada ou que já não se possa escutar. Até deixar de entender e partir pra outra. Atentar é distrair.
.
.
.

16
Peggy me disse: “– Pick something you see everyday”6. Enquanto eu me gabava de um
álbum recém feito durante uma viagem de férias, a minha primeira professora de fotografia da
graduação virava as páginas desinteressada e enfatizava: “– They look fine, but I don’t care. Go
out and photograph what you know”7. Na aula seguinte, quase que ironicamente, Peggy projetou
imagens de alguns nomes do início do século XX que fotografavam em preto-e-branco as cenas
mais cotidianas, banais e admiráveis que já vi. Lembro-me especialmente do mexicano Manuel
Álvarez Bravo (1902-2002). Quando as luzes da sala se acenderam, saí apressada com vontade de
ver o mundo pela primeira vez. Quem se lembra da primeira vez que viu o mundo? Era como se
aquelas imagens projetadas de quase um século atrás tivessem me esbofeteado a cara,
confirmando que eu precisava ver o meu mundo de cada dia de outra maneira. Aberta ao espanto,
à surpresa, à poesia, qualquer cena da vida podia ser extraordinária.
Levando uma rotina previsível, diariamente eu me esforçava por escolher trajetos
distintos para driblar a monotonia. Demorei para entender que o monótono não era o que eu via,
mas como eu via. Trinta minutos caminhando ou dez em bicicleta era a distância entre a minha
casa e o trabalho. Nós, funcionárixs, utilizávamos um mesmo acesso controlado por senha,
localizado nos fundos do edifício, em um beco de serviço paralelo às principais avenidas do
bairro. À primeira vista, sem qualquer encanto, aquelas vielas fétidas e silenciosas eram um
espaço-entre, uma exceção invisibilizada, pouco frequentada. Foi quando, em uma manhã
chuvosa, me deparei com um homem dormindo dentro de um vão na parede do prédio vizinho,
um buraco de aproximadamente 0,80 x 1,5 x 2,5m. No ímpeto, peguei a câmera de forma
apressada e cliquei algumas vezes, de diferentes ângulos, mas com bastante incômodo, sentia-me
invadindo sem permissão a privacidade daquela pessoa. Para que eu queria um registro daquele
dormente? Seria o instante decisivo8 tão perseguido por tantos fotógrafos? Seria a influência do
jornalismo apelativo, do racismo estrutural, que me faziam julgar a cena como sendo uma boa
imagem, desconsiderando a dignidade do protagonista? Ou da literatura que me ensinou a divagar
sobre a espera e o ócio? Julgar. Critérios. Na manhã seguinte, na expectativa de avistar o senhor
novamente, de quem sabe ver o seu rosto, encontrei apenas o indício de sua presença: o pedaço
de papelão enrugado que lhe serviu de proteção entre o corpo e o chão.


6
"Escolha alguma coisa que você vê diariamente." Tradução livre.
7
"Elas se vêm bem, mas não me interessam. Saia e fotografe o que você conhece." Tradução livre.
8 Disponível em:

<http://www.uel.br/pos/fotografia/wp-content/uploads/downs-uteis-o-instante-decisivo.pdf>

17
Um lugar é mais do que uma área. Um lugar rodeia algo.
Um lugar é uma extensão de uma presença ou a consequência de uma ação.
Um lugar é o oposto de espaço vazio.
Um lugar é quando ocorreu um evento, ou está acontecendo.9

Foi justamente no beco, a única parte sem variação do trajeto entre a minha casa e o
trabalho, que entendi o que Peggy havia me dito em classe: exercício de observação. Foi na
repetição de um mesmo cenário que a ação inusitada sobressaiu. A partir de um episódio isolado,
percebi que havia um buraco na fachada do prédio que eu via diariamente sem observá-lo;
percebi que não se tratava apenas de uma estranheza na arquitetura, mas também de um espaço
vacante, gerado pela própria arquitetura, passível de ser ocupado por transeuntes em busca de
refúgio. Aquela particularidade sobre um lugar específico foi a desculpa geográfica para
continuar uma pesquisa visual que se estendeu por um ano. Fotografei, filmei e tomei notas sobre
os becos localizados entre as ruas 1 e 17. O projeto gradualmente evoluiu em etapas nas quais
experimentei diversas formas de aproximação a objetos, cenas e pessoas, sendo uma verdadeira
escola para desprogramar noções preconcebidas sobre fotografia, especialmente em seu
formalismo, ajudando a me libertar da pressão por produzir um certo tipo de imagem. No
revisitar frequente um mesmo perímetro urbano, consegui intimidade com o lugar e a sensação de
conforto e segurança, ainda nas partes mais inóspitas. Eu percorria os becos dia e noite, sozinha
ou acompanhada, sem hora para chegar ou sair, ganhando aos poucos autonomia. Passei a
conhecer rostos, arquiteturas, afeiçoando-me a certos detalhes daquelas travessas. Também passei
a ser reconhecida. Adquiri a sensibilidade de perceber pequenas nuances naquilo que parecia ser
sempre o mesmo. Não procurava a surpresa, mas era surpreendida quase sempre.

[O vídeo realizado nos becos, Three Bullets, foi totalmente perdido. Primeiro a fita máster,
extraviada na mudança, e logo a VHS, destruída por mofo. Restam as lembranças, a influência
direta das composições fotográficas, um pequeno texto meu e a trilha sonora composta por
fragmentos frenéticos de Frank Zappa em Didja Get Any Onya? e outros tantos suspendidos de
The Soft Machine em Hope for Happiness.]


9
BERGER, John. Bolsões de Resistência / Trad. Lya Luft. São Paulo: Gustavo Gilli, 2004, p.28.

18
Durante a graduação em Artes Visuais no início da década de 2000, quando me
especializei em fotografia e time-based media10, comecei a praticar exercícios de observação de
assuntos que fossem ou pudessem ser parte do meu cotidiano. Esses exercícios experimentais são
uma construção de conteúdo a partir de uma vivência presencial e atenta, de corpo inteiro e de
modo imersivo, que se revela como um tecido de citações; uma interseção entre vozes que se
manifestam através de fotografias, textos, vídeos e registros sonoros. Para que os projetos se
desenvolvam é necessário alterar o ritmo imposto pelos afazeres diários, em um movimento
voluntário de desaceleração para criar duração; para observar além da visão exclusivamente
visual para que o corpo como um todo seja também capaz de ver, interagir e se afetar. Quase
sempre o assunto escolhido decorre do que chamo desculpa geográfica, ou seja, uma localização-
pretexto que carrega alguma particularidade instigante, servindo objetivamente como ponto de
partida para as observações. Esses exercícios podem ter ou não um resultado, podendo até mesmo
ficar inacabados.
Nesta pesquisa apresento um percurso do meu trabalho baseado em exercícios deste tipo,
presenciais. Faço um levantamento que começa pela a minha própria prática em relação a
algumas interlocuções, identificando os procedimentos para a sua realização, ressaltando a
importância de sua preparação e de seus bastidores (backstage), aqui entendidos como o
laboratório onde tudo acontece: pesquisa, invenção, recorte. Também destaco o texto autoral, a
autoficção, como parte fundamental e constituinte dos projetos. Os resultados dos exercícios,
enquanto processo, são o cerne do trabalho. Os resultados dos exercícios, enquanto produto,
quando existem, são apenas um dos estágios de toda a sua formação/deformação,
construção/desconstrução. A imagem, independente de sua natureza – texto, fotografia, vídeo,
som – é residual. É uma parte do todo, e aparece no fim, cujo sentido será trabalhado aqui de
muitas formas, muito além da ideia restrita de término, tão utilizada por nós ocidentais.
Relaciono a minha prática a algumas referências e vozes que a atravessam, utilizando
fragmentos retirados de escritos já publicados, nos quais xs artistas se expõem sempre em
primeira pessoa, ou extraídos de conversas com artistas com quem dialogo e que tenho acesso aos
bastidores de suas produções. Diferente de entrevistas, nossas conversas são correspondências de


10
Time-based media ou "mídia baseada no tempo" é um termo que se refere a trabalhos de arte com dimensões tanto
físicas quanto temporais, como performance, vídeo, filme, slide, áudio ou tecnologias baseadas em computador;
trabalhos que têm a duração como dimensão e que se desdobram para o espectador ao longo do tempo.

19
áudio transcritas, que trazem a presença, a introspecção e a abertura de quem fala, constituindo o
que carinhosamente chamo de “arquivo vivo”.
Esta pesquisa, que sempre quis tratar de uma prática associada a um tempo particular de
suspensão sobre a lógica de produção incessante, foi interceptada pelo nascimento da minha
primeira filha. Fez-se fundamental adaptar a escrita às transformações que ainda seguem em
observação, sem prazo, sem fim – em todas as suas possíveis definições. Também foi
inquestionável desviá-la para estudos que me provocassem emoção, tesão e vontade de
compartilhar essa nova qualidade de tempo que vivencio desde a maternidade. Se há uma ruptura
brusca no texto é porque trato de evidenciar as tantas metamorfoses que sofrem um mesmo corpo
intelectual, antes e depois do tornar-se mãe. Poderia aqui tomar uma outra vereda, uma outra tese,
já que a observação e a escuta mantêm-se em aberto e desviante sempre. A pesquisa faz-se, então,
metalinguística.

Não poderíamos conhecer a sideração sem ter de reconhecer que alguma coisa chega,
e que, mesmo sendo esperada, nos surpreende radicalmente na medida em que essa chegada introduz uma
experiência singular do tempo, uma suspensão de continuidade, inscrição de um surgimento inaugural que
desloca todas as aquisições prévias, todas as identificações habituais, todos os dispositivos ordenados e,
finalmente, certezas e poderes. Nem é preciso dizer que
pensar a criação é pensar esse surgimento do inesperado e do inaudito.11


11
MONDZAIN, Marie-José. Sideração / Trad. Laura Erber. Rio de Janeiro: Edições Zazie, 2016. (Coleção Pequena
Biblioteca de Ensaios), p.13-14.

20
[Para facilitar a leitura, incluí no corpo da tese apenas imagens em formato de texto, ou seja,
citações imagéticas que potencializam a escrita. Os textos de minha autoria, de projetos
realizados entre 2000 e 2020, estão reunidos no anexo A. Todas as reproduções fotográficas,
incluindo as selecionadas e enviadas pelas pessoas que conversam no texto, foram editadas, sem
hierarquia, no anexo B. A seguir indico as diferentes fontes e tabulações utilizadas:

Texto geral

Citações longas

Imagens

Conversas

Texto autoral (Baldan, Luiza P.)
]

.
.
.
E depois do começo
O que vier vai começar a ser o fim.12


12
JUNIOR MANFREDINI, Renato. Depois do começo, 1987. Disponível em: <https://genius.com/Legiao-urbana-
depois-do-comeco-lyrics>

21
Capítulo 1. Exercícios de observação

Com Becos, projeto iniciado no primeiro período da graduação em Artes Visuais, comecei
a realizar exercícios de observação, práticas de aproximação e aprofundamento de determinado
assunto cotidiano que se desenvolve ao longo de um certo período de tempo, muitas vezes, em
aberto. O assunto se origina no conceito que chamo de desculpa geográfica, uma localização-
pretexto que carrega alguma particularidade instigante, servindo inicialmente como ponto de
partida para uma observação mais ampla. Reforço o termo desculpa porque os lugares funcionam
como platô para desmembrar imaginações para além do documental e questionar a própria noção
de lugar. "Não só a relação entre lugar e espaço como também o relacionamento entre o lugar e o
homem que nele se demora residem na essência dessas coisas assumidas como lugares."13 Usando
Becos como exemplo, a desculpa geográfica seria inicialmente o trecho entre a porta de serviço
do museu onde eu trabalhava e o vão na parede do prédio vizinho que servira de abrigo para um
senhor que flagrei dormindo. Aquele encontro de ações desconexas em um lugar específico foi o
início de uma extensa jornada de observação e rastreio, que se estendeu ao longo de um ano.
Porém, o projeto não se deteve à sua motivação inicial e não se detém até hoje; ele extrapola o
extracampo, aquilo que escapa do enquadramento, não só na composição imagética, mas também
no assunto propriamente dito, perseguindo sempre o que se insinua para fora da cena, seja o
visível ou o invisível, embaralhando toda e qualquer noção de continuidade.
Uma anotação leva a outra, sendo assim possível de se construir uma narrativa aberta a
acasos e imprevistos, incorporando os desdobramentos do próprio fazer, os encontros e
desencontros do caminho, descartando a busca por linearidade espaço-temporal, fidelidade
documental ou resultados específicos. No caso de Becos, o projeto se desgarrou de sua
localização e pretextos inaugurais e se estendeu por quilômetros percorridos diariamente, em
pequenos comentários visuais sobre as mais diversas naturezas, sejam detalhes arquitetônicos,
retratos, ocupações e desocupações. Aquelas vielas, aos poucos, foram se revelando ser o cenário
para uma certa rebeldia em relação à dinâmica de ocupação colorida e superficialmente ordenada
das avenidas do seu entorno, e eu me identificava com aquilo. Tanto as ruas quanto eu éramos
estrangeiras naquele contexto urbano. Existia ali qualquer trânsito entre a legalidade e a


13
HEIDEGGER, M. “Construir, habitar, pensar.” Ensaios e conferências, tr. E. LEÃO... et al. Petrópolis, RJ: Editora
Vozes, 2001.

22
ilegalidade, a informalidade dos acessos de serviço de estabelecimentos comerciais, as pausas
para um cigarro, um trago ou uma ficada, a sujeira, a feiura, o silêncio. Presenciar essas nuances
de perto foi de fato o exercício de observação. Acredito que essa atenção ampliada, esse
conhecimento sobre determinado assunto, só é dado pela aproximação presencial e pelo
aprofundamento rotineiro.

Naquele lugar não havia onde.


Eu estava em algum lugar entre o lugar nenhum e o por toda parte.
Eu estava presente e as coisas estavam em gerúndio.
(...) Aquilo não era um lugar, era o rastro de um lugar.14

O artista Francis Alÿs descreve, em suas próprias palavras, um conceito próximo ao de


desculpa geográfica, que é ponto de contato, ou aquilo que desenlaça a pesquisa de um projeto
específico, mas que também é o fio da meada que conecta uma série de trabalhos relacionados
entre si em uma narrativa maior.

Comecei a investigar a caça das emas a partir de uma anedota, ou de um rumor, que me
contaram na minha primeira viagem aos limites da pampa. Dizem que os Tehuelches
caçavam emas e guanacos esgotando fisicamente o animal. A tribo caminhava durante
semanas perseguindo o animal até se dar por vencido ou morrer de fadiga. Me chamou
muito a atenção pela simplicidade absoluta da técnica e pelo uso do caminhar como uma
arma, um método de caça. Já que venho recorrendo à caminhada como meio, como
modo operativo, em muitas obras, quis provar se havia maneira de ilustrar ou explorar
meus próprios métodos de operação através desta anedota. (…) Mas, muito rapidamente,
me dei conta de que a anedota era muito mais interessante como história que como
imagem. A nível, digamos, cinematográfico, minhas cenas de perseguição funcionavam,
mas a imagem não ia muito além de um documentário tipo National Geographic. Valeu
a pena fazê-lo, pelo ato em si, sobretudo a nível pessoal. Na verdade foi uma experiência
estupenda, mas isso não faz um filme; não se transmitia a sensação de estar perseguindo
alguma coisa que sempre te escapa. A história como tal dizia muito mais que a imagem.
(...) De regresso ao México, comecei a revisar o material e percebi algo que não havia
filmado de propósito: a margem da imagem, como numa visão muito lateral, nos
caminhos de terra que tomamos para procurar os animais, miragens apareciam
e desapareciam ocasionalmente, era um material bastante bruto, mas a imagem me
pegou de imediato; ali estava a imagem de fuite en avant, como se diz, de fuga para
a frente. (...) Isso acontece em muitos projetos: chegar a um lugar com uma ideia muito
intuitiva, tratar de traduzi-la a uma imagem e acabar encontrando a materialização do
que se busca por acidente, onde menos se espera. Imagino que se entra em um estado de
extrema alerta, que te faz captar, onde quer que se vá, o como poder materializar ou
ilustrar, se preferir, essa imagem intuitiva que se busca, essa metáfora que se intui...
Agora sim entendo que o que me seduziu imediatamente na fuga sem fim das miragens é
que se materializava alguma coisa que já tinha pesquisado antes em outras obras. (...)


14 GUIMARÃES, Cao. Histórias do Não-Ver, (terceiro sequestro). Publicação independente, 2001.

23
O caso é que a caça das emas foi o ponto de contato necessário, a porta de entrada para
operar em um território geopolítico totalmente novo para mim...
(ALŸS, 2003-2006, p. 25-26)

Como indica Alÿs, as etapas de aproximação são graduais e conduzem a um


entendimento, não só do que se observa naquele momento específico, mas ao longo de uma
trajetória, de diferentes empreitadas, sendo um ponto comum a maneira dx artista perceber e se
afetar. Ora, se o ato de olhar para fora implica em olhar para dentro, então parte significativa do
que se observa estará sempre presente, sendo convocada, motivada, em diferentes ocasiões e
desculpas geográficas.

O corpo é um enigma. Entre as coisas visíveis, é um visível, mas dotado do poder de ver — é vidente.
Visível vidente, o corpo tem o poder de ver-se quando vê, vê-se vendo, é um vidente visível para si mesmo.
Entre as coisas tácteis, o corpo é um táctil, mas dotado do poder de tocar — é tocante.
Táctil tocante, tem o poder de tocar-se ao tocar, é um tocante táctil para si mesmo.
Entre as coisas móveis, o corpo é móvel, mas dotado do poder de mover — é um movente.
Móvel movente, o corpo tem o poder de mover-se movendo — é móvel movente para si mesmo.
O corpo é sensível para si.15

Exercícios de observação são tentativas, não há erro ou acerto, podem ter ou não uma
conclusão, podem ficar inacabados. É um parêntesis que atravessa a vida para falar sobre a
própria vida. O que eles revelam é o centrifugado do tudo observado, sentido, processado,
durante, antes e depois, do que é lambuzado pelo próprio fazer e por experiências que o
antecedem.

Eu não sou uma artista que passa a limpo. Sou uma artista toda contaminada.16

O fazer ensina que a observação provém de um tempo oportuno, de oportunidades


desprogramadas, que se dá justamente na insistência, na repetição, na monotonia. Observar é
prestar atenção. Atentar é distrair e distraídos venceremos17. Na mesmice dos dias, o inesperado
salta, grita, interrompe. Falei anteriormente em acaso como o inesperado que adentra uma


15
CHAUI, Marilena. Merleau-Ponty: Obra de arte e filosofia.
Disponível em: <https://artepensamento.com.br/item/merleau-ponty-obra-de-arte-e-filosofia/>
16
Anna Maria Maiolino em conversa com Paulo Herkenhoff de 1 de abril de 2001.
17
Em referência ao livro de Paulo Leminski.

24
narrativa aberta. Acasos acontecem, mas nem todo mundo está apto a percebê-los. Trago
novamente o Leminski, já que “o acaso é este encontro entre o tempo e o espaço.”18 Lembro de
imediato do artista Cao Guimarães, que certo dia me disse que o acaso só acontece para quem
está atento. Em uma entrevista de 2005 a Cezar Migliorin, para a Revista Cinética19, Cao comenta
sobre o seu processo de trabalho:

Eu inventei uma metáfora pra falar do meu trabalho. É a ideia da realidade como
a superfície de um lago... A questão é como se posicionar, então, diante dessa realidade:
Ou você fica no barranco contemplando a realidade do lago (que é como eu vejo esses
meus pequenos filmes contemplativos), ou você joga uma peça no lago pra que ele
reverbere e volte ao normal de uma forma diferente (que é a ideia dos trabalhos mais
propositivos como Rua de mão dupla), ou, por fim, você se joga dentro do lago, entra
nele (que é como eu vejo meus trabalhos mais imersivos, os “documentários” onde você
entra dentro de um universo, vai viver com um eremita lá um tempo e se propõe
a investigar aquele universo). Mas às vezes o acaso é quem domina, como aconteceu no
Da Janela do Meu Quarto, por exemplo: eu estava com um filme Super-8 e uma câmera
na mão, indo embora de uma aula que eu dei no Pará, estava chovendo muito, e, de
repente, chegam aqueles meninos e começam aquela dança, aqueles negócios, aquela
beleza. Na hora, alguma coisa detonou em mim, eu peguei a câmera e os 3 minutos de
Super-8 que eu tinha e comecei a rodar. Acho que foram lembranças de quando eu era
pequeno e eu pensava: só tenho 3 minutos, até onde eles vão com isso? (...) Resolvi
filmar até o rolo acabar e dei sorte porque bem nos momentos finais dos 3 minutos,
a menina sai correndo e menino sai correndo atrás dela... Como um final.

Então, de súbito, enquanto escrevo minhas palavras, envio uma mensagem a Cao dizendo
que estava pensando muito nele e que queria conversar; que como eu estava em Berlim, que a
melhor maneira seria por WhatsApp. Ele logo me responde, parafraseando Camus: “Luiza
querida, o acaso é o deus da razão. Estou chegando aí amanhã (...) vamos encontrar Bj”.
Acaso e atenção. As falas de Cao sempre ressoam em mim, há anos. Em texto de Cassia
Hosni, o artista “perde-se para encontrar-se, caminhando por lugares desconhecidos sem o intuito
de formular algo já determinado”20, permitindo que a receptividade do olhar gere a sua poética. E
segue: “(...) as percepções de cada lugar ocorrem na ‘não acomodação do olhar’, na permissão
para a subjetividade, abertura respeitosa da observação dos lugares. O acaso é aliado ao tempo e
na busca pela essencialidade de uma realidade que não precisa de artifícios para apresentar-se.”21


18
LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 133.
19
Disponível em: <https://www.revistacinetica.com.br/entrevistacaoguimaraes.htm>
20
HOSNI, Cassia Takahashi. O acaso na obra de Cao Guimarães: Gambiarras expandidas, 2012, p. 3.
21
Idem.

25
O olhar e a percepção (...) deixam de ser apenas o registro, expandem-se para a vida do
artista e tornam-se uma forma de pensamento que perpassa por toda sua produção.
O não-oficioso, a receptividade e a atenção do olhar, aliados ao ato de caminhar,
processo de imersão em um pensamento fluido, observador e movente, torna-se um
convite ao acaso, um gesto de abertura para que algo inesperado seja encontrado.
(HOSNI, 2012, p. 6)

Para estar abertx ao acaso, ao inesperado, há de se estar atentx e provocar uma espécie de
brecha nas atividades automatizadas do dia, dar um jeito de caminhar mais devagar, falar menos e
mais lentamente, ouvir mais e com mais intenção, inspirar, respirar e esperar, sem medo de ser
atropeladx pelo fluxo da vida. Essa irrupção também pode ser uma ferida, um corte, uma fenda.
Um alívio, um pesar. Há de haver um dispêndio inverso às demandas de uma vida veloz e
produtiva; um tempo morto que deturpa os valores monetários do tempo otimizado, imposto pelas
sociedades capitalistas.

Levantar da cama sem sexo comer um pedaço de pão em pé na cozinha queimar a língua no café um
banho rápido saltar degraus da escada do prédio correr pelas escadas do metrô checar o facebook
para escapar minutos chegar bufando no escritório fumar para escapar um minuto parar ao meio-dia
por sessenta minutos para engolir uma comida checar o facebook para escapar muitos minutos
comprar mais um maço de cigarros com a imagem do seu futuro pulmão putrefato um pau brocha
não ver a troca entre a tarde e à noite arrastar-se pelas escadas do metrô checar o facebook para
escapar outros minutos chegar em casa com enxaqueca pegar qualquer coisa na geladeira sentar-se
diante da televisão com uma lata colorida de bebida e o facebook para escapar da televisão cochilar
ali mesmo sem banho. Fim do mês tem contracheque previsto na folha de pagamento com plano-de-
saúde tíquete-refeição bilhete-único.

26
A racionalização do tempo esconde em um fenômeno natural, uma lógica do capitalismo
que é eminentemente política. Há uma escolha do modo como o tempo é tratado em
nossa sociedade, pois essa medição é humana e não natural. Se o tempo hoje nos foge é
porque se calcula diversas atividades para um tempo que se divide muito. O tempo não
pode ser ‘desperdiçado’. Essa é uma expressão que só tem sentido na sociedade
capitalista complexa em que atividades não produtivas, são consideradas como tempo
morto. Se o foco está na produção, o tempo dedicado ao lazer e atividades diretamente
não produtivas, passam a ser um tempo de segunda categoria, que só pode ser fruído por
aqueles que já cumpriram ou não precisam cumprir o tempo produtivo.22

Costuma-se associar o tempo morto a desperdício. No futebol, associa-se à bola parada.


No entanto, há exemplos melhores para problematizarmos o termo. Na filosofia, Deleuze e
Guattari (1991, p. 139) referem-se ao tempo morto como um “entretempo, um acontecimento,
onde não se passa nada, uma expectativa infinita que é já infinitamente passada, expectativa,
reserva. Esse tempo morto não vem depois do que acontece, ele coexiste com o instante ou o
tempo do acidente, mas como imensidão do tempo vazio em que o vemos ainda por vir e já
chegado.”23 A imagem por si só é enorme, é a suspensão na própria ideia cronológica de tempo.
No cinema, na TV e nas mídias digitais, Aleph Teruya Eichemberg (2005, resumo) defende que o
tempo morto se dá quando nada de importante acontece desde o ponto de vista narrativo, mas que
pode ser aproveitado como elemento de linguagem24. Na psicologia, Maria Rita Kehl (2009, p.
21) associa o tempo morto à melancolia e a depressão de maneiras distintas, sendo na primeira,
um tempo em que o Outro (figura materna) deveria ter comparecido, mas não compareceu, e na
segunda, um tempo-refúgio contra a urgência das demandas de gozo do Outro25. Na antropologia,
Gilberto Freyre escreveu uma "autobiografia à prestação"26 intitulada Tempo morto e outros
tempos: trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade, 1915-1930, na qual
embaralha os momentos de escrita e de vivência propriamente dita. No prefácio, Freyre
questiona: "Haverá, afinal, de modo absoluto, tempo morto? Ou o homem é que morre, como
indivíduo e ao seu próprio tempo, num transtempo, este como que imortal? Imortal como


22
Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/3837/Tempo-morto-no-processo-judicial-brasileiro>
23
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Qu’est-ce que la Philosophie? Paris: Minuit, 1991, p. 139. Traduzido por
Catarina Pombo Nabais.
Disponível em: <http://cfcul.fc.ul.pt/biblioteca/online/pdf/catarinanabais/filosofiaarteciencia.pdf>
24
EICHEMBERG, Aleph T. A experiência do tempo morto no cinema e nos games. Dissertação de mestrado,
Departamento de Comunicação e Semiótica, PUC/SP, 2005.
Disponível em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/4565>
25
KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 21.
26
Expressão do próprio autor.

27
superação do tempo apenas histórico."27 Para além do leque de possibilidades semânticas, o
conceito tempo morto carrega em si, independente da disciplina aplicada, uma imagem poética e
uma qualidade temporal que rompe, justamente, com a ordem produtivista, cronológica, a que
estamos submetidxs.
Pode-se dizer que, em geral, a produção de imagens na contemporaneidade acompanha a
lógica capitalista que renega a ociosidade propícia à observação contemplativa do tempo morto.
Vivemos numa urgência qualquer, de extrema velocidade entre a captação e a veiculação das
imagens, de edição relâmpago e desatenção, em cujo processo, o pensar e o sentir são postos em
uma segunda instância. A temporalidade online transcende em sua virtualidade o tempo mecânico
antiquado da imaginação e da reflexão prévia; o tempo é submetido à ação.

É verdade que o homem contemporâneo é incapaz de traduzir a vida cotidiana, que é a matéria-prima
da experiência na experiência, e é isso que torna o aqui e agora tão insuportável.
Mas eu quero ser otimista em relação ao futuro e acreditar que o que é permanente
no ser humano, sua necessidade de transformação, prevalecerá.
Por enquanto, me poupo, me protejo, me refugio na memória daquele primeiro trabalho com a mão,
revivendo a memória do conhecimento, não do trabalho alienante da industrialização, ou do virtual,
mas daquelas primeiras ações de trabalho manual que são comuns a nós todos
desde o começo da humanidade. 28

As imagens técnicas por vezes destituem a presença de quem viu, daquele corpo presente
que testemunhou a ação ao vivo, e desaparecem com o referente. Muitas delas são geradas por
dispositivos à distância, arquivos remotos, algoritmos, câmeras de vigilância, drones, que retiram
dx sujeitx seu papel de fundamento originário para torná-lx uma função variável e complexa do
discurso. Quem observa o acontecimento pode ser facilmente substituídx por uma narração
ausente e sua presença residual seria deslocada para a pós-produção, a interatividade, a realidade
virtual. Para Jonathan Crary, "se é possível dizer que a visão teve alguma característica constante
ao longo do século XX, esta seria precisamente a falta de características constantes. Ao contrário,


27
FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempos: Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade,
1915-1930, prefácio.
28
Anna Maria Maiolino em conversa com Helena Tatay. Tradução livre.
Disponível em: <https://d13.documenta.de/research/assets/Uploads/A-Conversation-between-Anna-Maria-Maiolino-
and-Helena-Tatay.pdf>.

28
a visão está imersa em um padrão de adaptabilidade a novas relações tecnológicas, configurações
sociais e imperativos econômicos."29

(...) é preciso que nos voltemos para o nosso mundo, para o qual o regime ensurdecedor
da exclamação é o único remédio contra a depressão e o tédio. Poderíamos esperar que a aceleração
intempestiva dos ritmos de informação e do entretenimento produzisse uma temporalidade tecida
de surpresas e deslumbramentos que não cessariam de transformar o mundo e a nós, seus habitantes.
Ora, o paradoxo está aí, diante de nós: uma siderante agitação, uma instabilidade contínua dos fluxos geram
uma apneia do olhar e do pensamento, uma paralisia, uma atonia dos gestos, uma passividade sonolenta
dos corpos que ilustra bem a proposta feita pela rainha a Alice, siderada pela velocidade do tabuleiro
de xadrez do mundo sob seus pés, em Alice através do espelho. "Aqui tudo acontece tão rápido",
explica a rainha, "que você precisa correr o mais que puder para permanecer no lugar."
Então Alice corre até perder o fôlego.30

É indiscutível a relevância na arte contemporânea do aproveitamento de material de


arquivo imagético nos processos de compreensão crítica, estética e política de momentos
históricos e de projeções para o que ainda virá. O artista Harun Farocki, por exemplo, opera no
descontínuo do tempo, um tempo intempestivo composto por fragmentos de imagens, tanto as
produzidas por ele, como as adquiridas da grande mídia ou de sistemas de segurança e controle,
montando-as anacronicamente para construir uma espécie de contradiscurso histórico,
questionador das versões “oficiais”, enfatizando o que há de mais perverso e cruel na política
(das imagens).31 Desta maneira, Farocki transita entre tempos e memórias, pessoais e coletivas,
aproximando-se e distanciando-se dos fatos para criticá-los de forma veemente, o que faz com
que sua obra seja uma das mais potentes da contemporaneidade neste quesito. No entanto, nos
exercícios de observação que discuto nesta tese, meu interesse está no imediatismo das relações
mais primitivas, corriqueiras, próximas, íntimas, e nos relatos contaminados pela experiência
ativa em tempo e corpo presente, de autoria mista, no qual o eu-autorx, completamente embebidx
daquilo, sai de si para interatuar com as distintas vozes do percurso, perdendo qualquer
distanciamento, para inserir a crítica nos próprios atos e fatos vivenciados pela dinâmica da
afetação dos corpos envolvidos.


29
CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna / Trad. Tina Montenegro.
São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 35.
30
MONDZAIN, Marie-José. Sideração / Trad. Laura Erber. Rio de Janeiro: Edições Zazie, 2016, p. 9-10.
31
Referências extraídas do livro Desconfiar de las imágenes, de Harun Farocki.

29
O corpo vivo é a condição por excelência de nossa existência, consciência e convivência,
é ele que nos permite reconhecer nossos congêneres e ainda nos sensibilizar com aquilo
que é outro. Ignorar sua presença e realidade pode nos conduzir a caminhos perigosos,
como a falta de um sentido e crivo para as descobertas do intelecto, a indiferença e até
a opressão. Afinal, é porque somos esse corpo vivo – que chora e ri, que sente frio
e calor, que sofre, ama, duvida, crê, odeia, constrói e destrói, aprende e esquece, vive
e morre, enfim, que existe, e por isso tem consciência da força e das fraquezas a que
estamos sujeitos – que temos a consciência solidária da existência de corpos análogos,
que vivenciam experiências como as nossas, e também temos a consciência do que é
o outro, que mesmo levando uma existência distinta da nossa, deve ser igualmente
preservado. (...) É porque temos um corpo vivo que habitamos, compartilhamos
e fazemos parte de um mundo que excede nossas individualidades.
(CANDIDO, 2019, p. 2)

Exercícios de observação não são um mero gesto nostálgico, mas uma persistência de
certa forma também anacrônica em relação à atualidade, uma construção de conteúdo a partir de
uma vivência essencialmente demorada e atenta, de corpo presente e de modo imersivo, que se
revela como um tecido de citações; uma interseção entre olhares, vozes, silêncios. “Existe apenas
uma visão perspectiva, apenas um 'conhecer' perspectivo; e quanto mais afetos permitirmos falar
sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto
mais completo será nosso 'conceito' dela, nossa 'objetividade'.”32 O anacronismo aqui se aplica
especialmente em relação ao mal-estar a todo o imediatismo e o processo fugaz de propagação e
esquecimento da informação hoje, mesmo quando perpetuando invisivelmente em bancos de
dados da nuvem, sem o nosso conhecimento e controle. Como dito antes, para a prática de
exercícios dessa natureza é preciso alterar o ritmo imposto pelos afazeres diários, em um
movimento voluntário de desaceleração para criar duração; para ver além do exclusivamente
visual e subordinado aos dispositivos disponíveis, para que o corpo como um todo seja também
capaz de ver, interagir e se afetar.

A modernidade ocidental desde o século XIX exigiu que os indivíduos se definissem


e se adaptassem de acordo com uma capacidade de "prestar atenção", ou seja, de
desprender-se de um amplo campo de atenção, visual ou auditivo, com o objetivo de
isolar-se ou focalizar-se em um número reduzido de estímulos. Que nossas vidas sejam
tão inteiramente uma colcha de retalhos de tais estados desconexos, não é uma condição
"natural" e, sim, o produto de uma densa e poderosa recomposição da subjetividade
humana no Ocidente ao longo dos últimos 150 anos. Tampouco é insignificante o fato de
que no fim do século XX uma imensa crise social de desintegração da subjetividade seja
metaforicamente diagnosticada como um déficit de "atenção".
(CRARY, 2013, p. 25)

32
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Genealogia da Moral: uma polêmica / Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 109.

30
Por se tratar de uma observação diária, que provém da combinação entre atenção e
oportunidade, poderia dizer que os exercícios possuem uma temporalidade própria oscilante entre
o cronológico e o kairológico. Para os gregos antigos, o tempo não era formado apenas por um
conceito, mas por dois: o chronos, como nós ocidentais entendemos o tempo cronológico,
sequencial ou, segundo a mitologia, aquele que devora ao mesmo tempo que gere; e o kairós, o
tempo qualitativo que valoriza o momento oportuno. Os exercícios são uma rotina, cronológica,
mas a observação e a apreensão consequente são kairológicas. “A conjunção de dois astros, que
só pode ser vista num momento específico, é observada por um terceiro protagonista, o
astrólogo.”33
Se voltarmos à introdução do presente texto, leremos um breve relato de um exercício de
observação. As primeiras palavras já evidenciam uma desaceleração do tempo, um dispêndio
aparentemente improdutivo, que possibilita a "criação por meio da perda"34, como diria Bataille.
Exercícios de rotina, disciplinados ou não, ditam o seu percurso e duração. Trata-se da
contemplação mútua possível entre seres e paisagens em consequência da repetição de encontros.
É a aproximação dos olhares.

Vivemos nosso cotidiano numa troca permanente com o conjunto de fenômenos diários
que nos rodeiam – às vezes são muito familiares, outras inesperados e novos,
mas sempre nos confirmam em nossas vidas.
(...) O que vemos habitualmente nos confirma.35

Entre 2011 e 2017, ofereci semestralmente um curso na Escola de Artes Visuais do


Parque Lage intitulado “Exercício de Observação com Fotografia”. Foi ali que pela primeira vez
busquei o termo "exercício de observação" na internet. Pensei que apareceriam referências diretas
à prática do desenho e da pintura, mas o primeiro link me direcionou para um vídeo de Mooji36,
discípulo do mestre Advaita, Papaji, apresentando o seu "exercício de observação". Junto a
Mooji, haviam indicações para outros textos37 relacionados ao Zen (“só pode ser compreendido

33
A doutrina das semelhanças, in Walter Benjamin. Obras escolhidas I, p. 110.
34
BATAILLE, Georges. A Parte Maldita: precedida de "A Noção de Despesa" / Trad. Júlio Castañon Guimarães.
Rio de Janeiro: Imago Editora, 1975, p. 32.
35
BERGER, John. Bolsões de Resistência / Trad. Lya Luft. São Paulo: Gustavo Gilli, 2004, p. 9.
36
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=LElnG0eojmk>
37
Disponíveis em: <https://www.tudopositivo.com.br/lista-de-textos-e-artigos-por-autor-e-assunto/>

31
por alguém que é, ele próprio, um místico e, portanto, não é tentado a ganhar com métodos
obscuros o que a experiência mística lhe esconde”38), à meditação e à prática da observação,
como os de Jiddu Krishnamurti, Osho e Tao, este último também presente em várias citações de
Roland Barthes em A Preparação do Romance. Percebi que, na minha ignorância, vinha
irresponsavelmente adotando um termo e me aproximando por instinto de uma filosofia, em
especial do pensamento de Krishamurti, cujas falas públicas e fragmentos de seus textos podem
ser acessados online com certa facilidade em uma página oficial39. Destaco aqui dois trechos:

É necessário esse espírito de observação, que ao mesmo tempo explora e observa, escuta
e percebe. É nesse sentido que estou empregando a palavra “observar”. (…) E desse
observar, (…) escutar, ver, vigiar, nasce aquela extraordinária beleza da virtude. Não há
outra virtude, senão aquela que vem com o autoconhecimento.
(O Despertar da Sensibilidade, 1984, p. 72)

Apenas observar, sem que o pensamento reaja ao que está sendo observado. Penso que
isso seja a atenção total; observar com tal sensibilidade que o cérebro todo, que está tão
condicionado, tão consumido pelas próprias conclusões, ideias, prazeres e esperanças,
esteja completamente quieto e, no entanto, vivo para aquilo que está observando.
(Talks and Discussions at Brockwood Park, 1969, p. 10-11)

De forma análoga ao aprendizado que tive na universidade com Peggy Levison Nolan,
entre tantxs professorxs que impactaram positivamente a minha formação acadêmica, o meu
curso estimulava xs participantes a desenvolverem projetos cujo assunto estivesse no cotidiano.
Para tal, precisavam escolher alguma desculpa geográfica, algo de sua rotina já existente ou a
existir, que pudessem fotografar a diário. Para ajudar nessa seleção, eu sugeria um outro
exercício, um autorretrato, o que, diferente de uma selfie tão habitual das redes sociais da
atualidade, comenta sobre os interesses e as coisas/pessoas/paisagens que nos representam. Era
ali, naquela atividade de tentar se olhar, que muitas vezes xs alunxs encontravam o início de seus
projetos, mesmo que mudando de rumo ao longo do percurso, tal qual eu descrevo nas desculpas
geográficas. Enfatizando o caráter de “aprendizado” do curso, eu reforçava a necessidade de
elegerem como tema algo recorrente, de fácil acesso, que desarmasse as escusas para o não fazer;
valorizava também o uso de equipamentos low-tech e alternativos aos que já estivessem
acostumadxs, para que pudessem sair da zona de conforto habitual, re-aprendendo a olhar e a


38
HERRIGEL, Eugen. Zen in the Art of Archery / transl. R.F.C. Hull (1953), s/p. Tradução livre. Disponível em:
<https://academia.edu/resource/work/39030625>
39
Disponível em:
<https://www.krishnamurti.org.br/index.php/fatores-de-descondicionamento-atencao-observacao/>

32
interpretar as cenas e a fotografia através de suas próprias decisões, e não as tomadas pelas
máquinas automáticas, os dispositivos “espertos”; pedia que, se possível, vedassem os monitores
das câmeras para que não vissem as imagens de imediato, para que focassem mais no estar vendo
do que no já visto. Por tudo isso, era notória a insatisfação de muitxs fotógrafxs profissionais que
em geral buscavam as salas de aula para de alguma forma legitimar o que já conheciam e o que
julgavam fazer muito bem. Eram amadorxs, autodidatas e pessoas de outras áreas de interesses
afins, quem mais se entregavam ao exercício e que, por consequência, mais proveito tiravam da
experiência.

Existe um vasto campo, uma área complexa na mente humana que não foi explorada.
Você não precisa ir à Índia ou a um mosteiro zen para aprender sobre si mesmo;
você pode aprender sobre si mesmo onde está, porque esse é o mundo em que vive:
seu vizinho, esposa ou marido e assim por diante. O micro mundo é o mundo grande,
se alguém souber olhar para esse mundo pequeno.40

A cada semana xs alunxs imprimiam entre 7 e 14 imagens e apresentavam ao grupo para


que pudéssemos acompanhar e comentar os processos, estimulando as trocas e as conversas
dentro e fora de aula. Ao final dos três meses, selecionávamos os portfólios com 15 imagens para
uma exposição coletiva de encerramento do programa, quando xs integrantes apresentavam oral e
publicamente o conteúdo dos exercícios, dividindo o que de fato havia mudado na maneira de
observar o entorno. Xs alunxs mostravam, semestre após semestre, serem capazes de articular um
olhar intencionado sobre o assunto observado, construindo um portfólio pertinente, ainda que não
fosse sobre o extraordinário e o espetacular tão cobiçado por uma grande maioria de fotógrafxs,
justamente por pairarem sobre o que mais tinham disponibilidade, os seus próprios cotidianos.
Ali se davam conta do pouco que conheciam sobre o que viam o tempo todo, incluindo muitas
vezes, a si mesmxs. Não é de se estranhar quem entrou e saiu do curso antes do término repetidas
vezes, talvez pela dificuldade em se depararem com certos temas encobertos pela automatização
da rotina.
É curioso notar que o curso antecede a popularização da rede social Instagram, uma
plataforma de compartilhamento online de fotos e vídeos que, em 2013, atingiu a marca de 150


40
Krishnamurti em Public Discussion 1, Ojai, California, 6.04.1976. Tradução livre.
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/B0ITZgTHsip/?igshid=19vsgtmnbuyhe>

33
milhões de usuárixs ativxs e que, em 2019, já ultrapassa um bilhão. O aplicativo para celulares
móveis tem perfis de utilização muito variadas, incentivando tanto a democratização quanto a
banalização da imagem. No entanto, interessa aqui em particular o nicho que utiliza a ferramenta
como uma via de comunicação despretensiosa de suas observações cotidianas, como um diário de
notas visuais. Algo próximo ao que vinha sugerindo em classe.
Exercícios de observação desafiam a nossa capacidade de tédio e solidão. Aquele
momento em que se fumaria um cigarro na falta melhor do que se fazer ou com quem estar, ou
quando se olha qualquer coisa no celular, liga e desliga, conectando-se à tela e desconectando-se
do entorno. Quando nos sentimos entediadxs, nosso cérebro está na verdade trabalhando,
estabelecendo milhões de caminhos neurais. E é justamente nessa ausência de afazeres, entre o
tédio e a solidão, que a observação se potencializa. A médica pediatra húngara Emmi Pickler e o
médico pediatra e psicanalista inglês Donald Winnicott relacionam, de distintas maneiras, o tédio
ao aprendizado, ao desenvolvimento e aos processos maturacionais. Pode-se dizer que, para
Pickler, o aprendizado está fundamentado no respeito ao ritmo individual de cada criança, dando-
lhes espaço, de forma segura e supervisionada, para que tomem suas próprias iniciativas, que
tenham autonomia na movimentação e na prática lúdica, ainda que isso pareça lento e tedioso
para o adulto. Monica Guinle, minha aluna por duas edições do curso do Parque Lage, é
psicóloga. Lembro muito dela dizer que levava o conhecimento gerado pelas nossas trocas na
escola livre de arte, para o seu consultório. Ela afirma que o tipo de observação proposta, por não
dizer tediosa, induz à construção de uma narrativa intuitiva.
Foi por acompanhar o fazer e a formação de Felipe, Elisa, Bárbara, Monica... tantas e
tantas pessoas de distintas origens, escolas e idades, em seus exercícios de observação, que decidi
trazer a prática para a minha tese de doutorado.

O fato de que o discurso não se fecha deixa a linguagem constantemente presente,


porque constantemente ela tem que ser observada, interrogada, trabalhada.
(...) Todos os artistas, de uma forma ou de outra, mental ou concretamente,
passam por fases de elaboração desses materiais relativamente ou muito desconexos.
Elas são consideradas etapas da elaboração da obra, constituiriam momentos de um processo
que tem um fim: a obra. Tomam-se notas para um romance, imaginam-se diálogos
ou uma cena para um roteiro, fazem-se rabiscos, esboços, rascunhos. É uma preparação
a ser superada pela obra concluída. É o processo de elaboração da obra.
Ora, nas "obras" que me inspiram estas reflexões, tendencialmente não há obra.

34
Ou então, a obra é outra coisa. O quê?
A obra não é o resultado de um processo de elaboração
superado por uma finalização, ela é o próprio processo de criação.
(...) Trata-se de "compreender o nascimento das obras" ou o "itinerário de produção".41


41
BERNARDET, Jean-Claude. O processo como obra. Folha de São Paulo: Caderno Mais!. São Paulo, 13 jul. 2003.

35
Capítulo 2. De corpo presente

Sobre vivências

Mesmo com o projeto Becos iniciado no ano 2000, só pude de fato relacionar a minha
prática de exercício de observação às desculpas geográficas em 2009, quando recebi o convite de
Beatriz Lemos e Cristina Ribas para participar de uma residência no Pedregulho (Conjunto
Residencial Prefeito Mendes de Moraes, Benfica, Rio de Janeiro).
Residências nas artes visuais implicam em deslocamento e realocação dx artista nas mais
diversas circunstâncias, seja em ateliês ou laboratórios temporários em cenário estrangeiro.
Atualmente, esses formatos já estão, em grande parte, formalizados e pertencem a um circuito
quase obrigatório na carreira artística globetrotter contemporânea. No entanto, diferente de uma
residência convencional, quando se tem um espaço específico para esta finalidade e x artista
compartilha do alojamento e das experiências com outros pares e interlocutorxs de círculos afins,
ofereciam-me um apartamento duplex de dois quartos em um ícone arquitetônico da década de
1950, mobiliado pela antiga moradora, Dona Leda, recém falecida. Além de mim, participaram
Jarbas Lopes e Katerina Dimitrov (outubro 2009) e os coletivos Kaza Vazia (novembro 2009) e
Frente 3 de Fevereiro (janeiro 2010).
O Pedregulho é um conjunto habitacional carregado de conotações, estudos, notícias de
jornal, imagens turísticas, cinematográficas etc. No entanto, essa imagem narrada nos fornece em
grande parte uma visão genérica, superficial e distante. Mesmo quando fundada sobre
conhecimento teórico, o que pode ser facilmente comprovado se digitarmos “Pedregulho” no
Google Images, as fotografias são praticamente iguais umas às outras e não revelam muito além
da carcaça sinuosa da arquitetura do lugar ou um estereótipo de quem o habita. O Pedregulho
seria então a minha desculpa geográfica, ou seja, o lugar-pretexto totalmente impregnado por
pessoas, histórias, memórias, onde eu faria um exercício de observação in situ. Reforço uma vez
mais o termo desculpa porque a observação tende a escapar das predefinições desses lugares que
pairam de antemão no imaginário coletivo, que são reconhecidos mesmo para quem nunca os
visitou fisicamente; são desculpas porque os lugares difundidos como tal não interessam, mas
sim como situação para desmembrar imaginações para além do documental e questionar a própria
noção de lugar. É deste modo que as desculpas geográficas sofrem um processo de

36
ressignificação, suas camadas semânticas estruturais são alteradas por quem os vivencia, através
do estranhamento, do rechaço e/ou da afetividade das novas relações estabelecidas nele, que o
designam como um lugar híbrido que se sobrepõe aos aspectos factuais; um espaço-entre onde as
memórias e as imagens ressoam e se renovam.
Em 1929, Le Corbusier sobrevoa a cidade do Rio de Janeiro imaginando um edifício-
viaduto que integraria os morros, uma estrutura elevada que ofereceria axs moradorxs a vista para
o mar ou para as montanhas. Em 1947, a engenheira, urbanista e feminista brasileira, Carmen
Velasco Portinho, então diretora do Departamento de Habitação Social, propõe a construção do
Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes. Construído por ela e projetado por seu marido,
o arquiteto Affonso Eduardo Reidy, trata-se do primeiro grande experimento de habitação
coletiva no Brasil. Apelidado como “Pedregulho”, por estar fincado sobre um morro homônimo,
o conjunto é na verdade chamado pelxs habitantes como “Minhocão”, por sua forma sinuosa, e
também porque Pedregulho é o nome dado a um largo nas cercanias da Mangueira, tão só a
alguns quilômetros de distância.

[A partir daqui, as próximas menções ao Pedregulho neste texto aparecerão como Minhocão.]

Constituindo-se uma unidade residencial autônoma, provida dos serviços comuns


necessários à vida diária de seus habitantes, o conjunto residencial Pedregulho, situado
no bairro industrial de São Cristóvão, foi projetado com a finalidade de proporcionar aos
servidores municipais de baixa renda habitação barata e situada próxima aos locais de
trabalho. O terreno (...) está situado na encosta oeste do morro do Pedregulho, sobre
o qual se acham localizados os reservatórios de distribuição de água da cidade. (...)
O programa do conjunto foi estabelecido após minucioso levantamento das condições
existentes e censo dos futuros moradores. (...) Deste censo, resultou a inscrição de 570
famílias (aproximadamente 2.400 pessoas); cujas condições sociais e econômicas foram
analisadas e constituíram a base sobre a qual foi elaborado o projeto. (...) O projeto
compreende quatro blocos de habitação. O bloco "A", com 260 m de extensão, contendo
272 apartamentos de diferentes tipos, está situado na parte mais elevada do terreno
e segue de forma sinuosa a encosta do morro. Duas pontes dão acesso a um pavimento
ocupado parcialmente pelas instalações do serviço social e da administração, assim
como pela escola maternal jardim de infância e teatro infantil. A cada 50 metros
aproximadamente, acham-se localizadas as escadas coletivas de acesso aos diversos
pavimentos. Os dois pavimentos inferiores contêm apartamentos de uma só peça e os
superiores duas ordens de apartamentos duplex de um a quatro dormitórios. A solução
duplex foi adotada por ser aquela que oferecia maior rendimento, pela possibilidade de
atingir sem elevador os quatro pavimentos. (...) Além dos blocos de habitação, o projeto
compreende edifícios e instalações para lavanderia mecânica, mercado, posto de saúde,
creche, jardim de infância, escola primária, ginásio, piscina, clube e campos de jogos
e recreação. A circulação dos pedestres foi estudada de modo a ficar completamente
separada da de veículos, o que permite aos moradores transitar livremente entre todos os
elementos do conjunto sem atravessar ruas. (...) Para segurar uma perfeita ventilação,

37
foram adotadas construções sobre pilotis e diversos dispositivos corretores do excesso de
insolação, tais como: quebra-sol, móvel de eixo vertical ou horizontal, peças terracota de
diferentes tipos e venezianas de madeira. Foram confiados a Anísio Medeiros, Cândido
Portinari e Burle Max, respectivamente, os desenhos dos azulejos que revestem as
paredes dos vestiários e posto de saúde, do ginásio, e o mosaico de vidro da escola,
cabendo, ainda a Burle Max, o paisagismo.
(BONDUKI, 2000)42

Ao ideário que temos de certos lugares como o Minhocão, somam-se as imagens que
esperamos que surjam deles. Lembro da Michelle, minha aluna no curso “Exercício de
Observação com Fotografia” do Parque Lage, residente da Cruzada São Sebastião. A Cruzada é
um conjunto habitacional no Rio de Janeiro projetado para receber famílias desalojadas do
desmanche da favela do Morro do Pinto, no Leblon, e que resiste até hoje, a contragosto das
classes mais abastadas que vivem no m2 mais caro do país. Acho que a nossa turma esperava da
Michelle uma fotografia que nunca chegou, e aprendemos demais com isso. A aluna, que estava
no final da adolescência, nos trazia impressa a tela da sua televisão, as novelas que tanto amava e
assistia quando estava em casa, sem vontade de sair nas ruas por conta do calor. Às vezes ela
também trazia fotos suas com amigxs em passeios pela Lagoa, pelo Shopping Leblon ou pela
praia, onde costumavam jogar vôlei. A menina mostrava o seu cotidiano, assim como o curso
pedia, mas nós idealizávamos uma Cruzada que nunca vimos. De que maneira o imaginário
construído sobre um lugar influencia na nossa maneira de percebê-lo, de ansiá-lo? Eis a premissa
e a tônica da história da fotografia que, desde sempre, narra o ponto de vista tendencioso e
generalizante de quem detém o poder sobre quem tende a ser dominadx, colonizadx, destituídx
do seu próprio lugar na história.
Assim como a Cruzada, o Minhocão não é um lugar de passagem, um não-lugar. Também
não é um patrimônio engessado na história, uma ruína romântica, um monumento ilustrado no
livro. Os apartamentos dificilmente mantêm suas configurações originais, como idealizadas na
prancheta dx arquitetx. Antes de qualquer estereótipo, são casas onde existem vidas que se
renovam e se reinventam diariamente; são casas onde residem pessoas que se relacionam com o
lugar de forma íntima, identitária e duradoura, adaptando-as às suas necessidades. Portanto,
trabalhar com a imagem de um lugar que detém tamanha riqueza de memória e vidas requer
respeito e responsabilidade. Vou além, qualquer vivência ali empreendida requer cuidado. Por


42
Trecho extraído da página:
<http://www.cronologiadourbanismo.ufba.br/apresentacao.php?idVerbete=1211>

38
vivência me refiro tanto ao projeto artístico como ao projeto mesmo de habitar, de tornar-se
moradorx e vizinhx.

A expressão “vivência” indica uma modalidade de relacionamento com o trabalho de


arte que surge com a marca de uma ampliação e expansão sensorial: acredita-se num
campo sensível que ultrapassa os limites da sensorialização puramente estética e invade
as áreas da vida e da existência, que é capaz de agir sobre a totalidade do corpo
(transformando-o), além de implicar numa tomada de posição do artista frente ao
circuito, uma vez que a experiência vivencial jamais pode reduzir-se à pragmática
operacional e promocional de trânsito mercantil do trabalho de arte. (...) Viver, estar
vivo, não é permanecer o mesmo, mas sim saber atualizar-se sempre numa relação direta
com as coisas em torno – sendo a experiência vivencial um importante dispositivo neste
processo. Os artistas atuais apresentam uma consciência hiperaguda de linguagem, que
se estende para muito além do objeto, abrangendo toda uma rede de relações. Sob este
regime, as relações arte/vida tornam-se bastante complexas –algumas vezes, rarefeitas–,
dada a dificuldade em combinar economias e dinâmicas (da arte e da vida)
absolutamente incompatíveis enquanto circuitos autônomos: resta a opção da construção
deliberada de tais encontros (revertendo jogos de linguagem, produzindo dobras), que de
modo natural não ocorreriam. “Vivenciar vivências” é, a seu modo, aprofundar
o caminho aberto pela sensação e fenomenologia do conceito: há um reforço na
dinâmica das relações dentro-fora; incremento da mobilidade da percepção em seu
embate com o campo discursivo; reposicionamento do papel e da imagem do artista em
função de uma consciência de linguagem distendida estrategicamente para muito além
da obra, incorporando o campo de efeitos sobre o outro; a agregação, ao sentir, de um
leque de novas ficções que amplia aquelas possibilidades de ação que têm na palavra
uma ferramenta para a construção de espaços; etc.
(BASBAUM, 2008, p. 38)

Durante o mês de dezembro de 2009, eu vivi no apartamento 613 do Minhocão de


Benfica como se fosse meu. Literalmente, "mudei de mala e cuia" para um bairro da periferia da
mesma cidade onde já morava, preservando poucas atividades funcionais do meu cotidiano
habitual. Morar em outra casa por um tempo pré-determinado me abriu uma lacuna para observar
além e desde outra perspectiva. Tive que atentar para novos códigos de convívio, para me
relacionar com estranhxs, a quem acabei me afeiçoando e com quem mantenho laços que ainda
permanecem, dez anos depois. Procurei conhecer a memória do lugar e das pessoas com quem
residia, deixando-me influenciar por todo tipo de emoção, sem me prender a uma construção
narrativa documental. Não se tratava de falar pelx outrx, mas com x outrx, através daquela
experiência tão cuidadosa e transformadora. Por primeira vez, era nítida a imbricação entre vida e
processo criativo; a indefinição de fronteiras entre realidade, representação, documentação e
fabulação: eu passei a habitar o trabalho.
Dentre as instruções fornecidas pelas organizadoras da residência, eu deveria propor axs
moradorxs alguma "atividade artística"; esperavam de mim resultados concretos, premissa quase

39
contrária ao que vinha desenvolvendo até então, já que os projetos em geral sempre se
estruturaram ao longo da feitura, sem antever ou esperar conclusões, ficando alguns até
inacabados. Antes de começar a residência, talvez pelo receio da situação estrangeira, cheguei a
cogitar me comportar como uma ser urbana contemporânea, que passa os dias sem sequer sair de
casa, sobrevivendo através da internet e do delivery. No entanto, ao abrir a porta de casa, eu
permiti que a vizinhança entrasse, e o convívio foi a legitimação da adaptação naquele contexto,
o que gerou transformações e questionamentos estruturais na minha vida e no meu trabalho como
um todo.
Seguindo as propostas iniciadas por Jarbas, Katerina e o coletivo Kaza Vazia, o princípio
do meu exercício se deu por intermédio da fotografia. Pedi axs vizinhxs próximxs que
escolhessem o seu canto preferido no edifício, de onde tivessem recordações especiais e que
quisessem ser retratadxs por mim, com seu consentimento, de acordo com as suas instruções e
vontades. No boca a boca, outras pessoas foram chegando e expandindo o projeto. Desta forma,
fui levada a conhecer o lugar através de seus protagonistas, contos e memórias, podendo
aproximar-me mais intimamente de quem estava conhecendo. “Porque fotografar não consiste
simplesmente no ato fotográfico em si, muito além, reflete como a cabeça pensa e como o
coração sente.”43
Retratei o Minhocão e as pessoas das mais variadas idades. Também xs incentivei a
experimentarem a minha câmera analógica de médio-formato para fotografarem livremente o que
quisessem. "Todo esse movimento de trocas ironicamente mediado por uma câmera Lubitel: a
velha tecnologia soviética redescobrindo as linhas do internacional-modernismo em um bairro
operário tropical."44 No final da residência, durante a ceia de Natal, presenteei cada participante
com as imagens impressas, sanando uma queixa recorrente de que xs visitantes jamais voltavam
para mostrar as fotografias tiradas no prédio; sinal de que eu já não era uma visita qualquer. Foi
emocionante perceber as feições de encantamento das pessoas pelo lugar onde viviam quando
olharam as fotografias, como se as imagens lhes confirmassem um belo que já não eram capazes
de reconhecer. "Quando os retratos retornam de seu exílio fotoquímico, o Lugar finalmente
reaparece. Pedregulho redescoberto por si mesmo em sua beleza esquecida, pedra porosa diluída


43
BISPO, Vilma Neres. Trajetórias e Olhares não Convexos das (Foto)Escre(Vivências): condições de atuação e
(auto)representação de fotógrafas negras e de fotógrafos negros contemporâneos. Dissertação (Mestrado) Centro
Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, 2016, p. 3.
44
LISSOVSKY, Mauricio. A descoberta da porosidade, 2010. Texto de apoio para a residência no Pedregulho.

40
no habitar. A fotografia, que retorna como objeto, é a membrana-cobogó que restitui o aqui e
agora da distância – esse paradoxo que só o afeto pode preencher e sustentar."45

Ser um estrangeiro é naturalmente uma relação muito positiva: é uma forma específica
de interação. (...) A pessoa fundamentalmente móvel entra ocasionalmente em contato
com todos os elementos do grupo, mas não está organicamente ligada com qualquer
deles por laços estabelecidos de parentesco, localidade e ocupação. O estrangeiro não
está submetido a componentes nem a tendências peculiares do grupo e, em consequência
disso, aproxima-se com a atitude específica de "objetividade". Mas objetividade não
envolve simplesmente passividade e afastamento; é uma estrutura particular composta de
distância e proximidade, indiferença e envolvimento. (...) Objetividade não significa de
maneira alguma não-participação (que geralmente exclui tanto a interação subjetiva
quanto a objetiva), mas um tipo específico e positivo de participação – assim como
a objetividade de uma observação teórica não se refere à mente como uma tabula rasa
passiva onde as coisas inscrevem suas qualidades, mas, ao contrário, refere-se à sua
atividade total que opera segundo suas próprias leis, e à eliminação, através disso, de
ênfases e deslocamentos acidentais, por meio dos quais as diferenças individuais
e subjetivas produziriam retratos diferentes do mesmo objeto.
(SIMMEL, 1983, p. 184)

Durante a estadia no Minhocão, incluí na minha dissertação de mestrado em Linguagens


Visuais (PPGAV/UFRJ, 2010) um último capítulo sobre aquela vivência. Na época, a minha
principal argumentação conceitual pairava sobre as relações entre a memória infantil dos lugares
habitados com os lugares que eu habitava através do trabalho fotográfico. O texto então
começava: "Em 29 anos tive 26 endereços em nove cidades"46. O Minhocão seria o 26º.
Durante a residência realizei o projeto Natal no Minhocão, composto por fotografias,
vídeos e texto, sendo um dos tantos possíveis resultados do meu processo criativo, da observação
duradoura e das reflexões vividas, graças a um tempo próprio que me permitiu coletar
apontamentos das mais diversas fontes: biográficos, documentais e ficcionais. Enquanto as
fotografias de certa forma mantinham um distanciamento, formal e objetivo, e os vídeos eram
uma espécie de fotografia sonora ou plano-fixo com duração e áudio, o texto abriu caminho para
a inclusão de um outro tipo de imagem que eu era incapaz de conceber até então.

A primeira coisa que me vem à mente na idealização de um conto é, pois, uma imagem
que por uma razão qualquer apresenta-se a mim carregada de significado, mesmo que eu não o saiba
formular em termos discursivos ou conceituais. (...) São as próprias imagens que desenvolvem
suas potencialidades implícitas, o conto que trazem dentro de si. Em torno de cada imagem escondem-se


45
Idem.
46
Trecho da dissertação de mestrado intitulada "Lugares que Habitam Lugares" defendida em maio de 2010 no
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ, sob orientação do Dr. Milton Machado.

41
outras, forma-se um campo de analogias, simetrias e contraposições.
Na organização desse material, que não é apenas visível mas igualmente conceitual, chega o momento
em que intervém minha intenção de ordenar e dar um sentido ao desenrolar da história.47

A fotografia sozinha não dava conta de narrar todas as dimensões do exercício de


observação e dos processos implicados de subjetivação, dessubjetivação – o perder-se de si48 – e
corporeidade – conceito proposto por Patrick Baudry para relacionar o desajuste e a inadequação
entre sujeito, si mesmo e a cidade49. Ela era apenas o resquício de algo muito maior. Eu mesma
nunca apareci fisicamente na imagem, apesar de estar presente, atuante e envolvida em todas as
situações. O texto nunca quis ser uma legenda, um subordinado, mas uma via que tornasse a
minha presença mais explícita, mesmo que se tratando de uma sujeita híbrida, embaralhada entre
o eu-autora e as demais vozes que se apresentavam, além de toda sorte de anotação livre e
sampleada. Fica claro para mim que, a partir do Minhocão, o relato escrito com fragmentos e
colagens se torna um elemento crucial do trabalho, uma espécie de autoficção, como nos
descreve Diana Klinger:

O sujeito que "retorna" nessa nova prática da escritura em primeira pessoa, não é mais
aquele que sustenta a autobiografia: a linearidade da trajetória da vida estoura em
benefício de uma rede de possíveis ficcionais. A ficção abre um espaço de exploração
que excede o sujeito biográfico. (...) O que interessa na autoficção não é a relação do
texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um "mito do
escritor", uma figura que se situa no interstício entre a "mentira" e a "confissão".
A noção de relato como criação de subjetividade, a partir de uma manifesta
ambivalência a respeito de uma verdade prévia ao texto, permite pensar a autoficção
como uma performance do autor.
(KLINGER, 2006, p. 53-55)

A escrita aparece então como uma narrativa de caráter performático que quer se
aproximar dos bastidores do exercício de observação em seus aspectos mais diversos, do público
ao privado, da coletividade ao íntimo da memória individual, do burburinho ao silêncio, da
documentação à fabulação. “A obra de autoficção também é comparável à arte da performance na
medida em que ambos se apresentam como textos inacabados, improvisados, work in progress,


47
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 104.
48
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? e outros ensaios ; trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó,
Santa Catarina: Argos, 2009.
49
BAUDRY, Patrick. Violences invisibles: corps, monde urbain, singularité. Paris: Passant, 2004.

42
como se o leitor assistisse ‘ao vivo’ ao processo da escrita.”50 Na autoficção ou escrita de si, eu
busco me relacionar a outros modos de viver, propondo um dos muitos retratos possíveis de um
lugar e do viver junto ali naquele momento. Trato então de não impor uma visão de mundo que é
apenas minha, mas que surge do encontro propiciado pelo projeto, o que me obriga a sair de mim
e do que poderia ser considerado um relato autobiográfico, para ir além. A realidade inerente ao
exercício se inscreve na autoficção, quebrando com a ficcionalidade e apontando para um além.
Esse tipo de escrita, que Klinger chama de autobiografia falsa, seria o que Silviano Santiago
chama de “experiência do corpo-vivo que está por detrás da escrita”51.

O sentido de uma vida não se descobre e depois se narra, mas se constrói na própria narração:
o sujeito cria uma ficção de si. E essa ficção não é nem verdadeira nem falsa, é apenas a ficção
que o sujeito cria para si próprio. Mas, por que ainda essa vontade de verdade?
Por que não, de preferência, a inverdade? Ou a incerteza? Ou mesmo a insciência?52

Aqui também se poderia aplicar o conceito de interdiscursividade, de Michael Bajtin,


que diz que todo relato de experiência é, até certo ponto, expressão de uma época, uma geração,
uma classe53. E Klinger completa com, “não é possível se pensar em um eu solitário, fora de uma
coletividade, uma família, uma humanidade cultural.”54 No meu caso, não posso não reconhecer
meus privilégios por ter nascido em uma família branca, de classe média, em um país racista
como o Brasil. Fui hostilizada muitas vezes por ter sido nômade desde a infância, em muitas
casas e cidades, sem fincar raízes, e tive que me adaptar muitas vezes entre comunidades
culturais diferentes, lançando-me constantemente na aventura de me relacionar com x outrx, no
prazer e na dor de descobrir x outrx, e de certa forma, conhecer a mim mesma; ou por ser,
segundo Guattari, uma falsa nômade das viagens modernas em que estamos sempre no mesmo
lugar.55 Talvez por toda essa bagagem que carrego, não há no trabalho ou na vida pessoal uma


50
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana
contemporânea. Tese de Doutorado em Letras, Literatura Comparada. Rio de Janeiro: UERJ, 2006, p. 61.
51
SANTIAGO, Silviano. "Prosa Literária Atual no Brasil", em Nas Malhas da Letra. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p.
36.
52
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. Paulo Cezar de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2000, p. 9.
53
BAJTIN, Michael. Estética de la creación verbal. México: Siglo XXI, 1982, p. 135.
54
KLINGER, Diana Irene. Escritas de si, escritas do outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana
contemporânea. Tese de Doutorado em Letras, Literatura Comparada. Rio de Janeiro: UERJ, 2006, p. 24.
55
GUATTARI, Felix. Cadernos de Subjetividade / Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de
Estudos Pós-Graduados em Psicología Clínica da PUC-SP. - v. 1, n. 1 (1993). São Paulo, 1993 -, p. 46.

43
distinção entre as Luizas, ou a invenção de uma personagem que não seja eu mesma como sujeita
que se relaciona, que interatua, que se expõe e expõe x outrx, que está presente na biografia real
ou virtual da autoficção ou escrita de si.

O estrangeiro fortifica-se com esse intervalo que o separa dos outros e de si mesmo,
dando-lhe um sentimento altivo, não por estar de posse da verdade, mas por relativizar
a si próprio e aos demais, quando estes encontram-se nas garras da rotina da
monovalência. Os outros talvez possuam coisas, mas o estrangeiro sabe que ele é o único
a ter uma biografia, isto é, uma vida feita de provas. Nada como catástrofes ou aventuras
(embora tanto umas quanto as outras possam acontecer), simplesmente uma vida onde os
atos são acontecimentos, porque implicam escolhas, surpresas, rupturas, adaptações ou
estratagemas, sem rotina ou repouso. (...) Não pertencer a nenhum lugar, nenhum tempo,
nenhum amor. A origem perdida, o enraizamento impossível, a memória imergente,
o presente em suspenso. O espaço do estrangeiro é um trem em marcha, um avião em
pleno ar, a própria transição que exclui a parada. Pontos de referência, nada mais.
(KRISTEVA, 1994, p. 14-15)

Quando aos 17 anos prestei vestibular para Ciências Sociais, eu queria me especializar em
Antropologia Visual. Durante aquele início universitário, tive a oportunidade de trabalhar na TV
Comunitária e com a Mostra Internacional do Filme Etnográfico, o que me provocou uma
urgência por produzir, por me envolver em processos criativos e por dar vazão a uma escrita que
não fosse necessariamente teórica. A Antropologia antiga e essencialmente masculina dos
primeiros períodos acadêmicos prezava pelo distanciamento do “objeto de estudo”, ainda que em
trabalho de campo, e eu sentia o ímpeto contrário, de me contaminar o máximo possível pelas
experiências vividas. Foi assim que, após um ano e meio de UERJ, escolhi mudar de país e de
curso, primeiro Literatura e depois Artes Visuais, quando então comecei a fotografar.
Mesmo reconhecendo na minha escrita uma aproximação à autoficção, ou mesmo à
autoetnografia56, nunca percebi o meu trabalho como antropológico. Pelo contrário, achava que a
contaminação entre as partes envolvidas fazia dele justamente uma espécie de antiantropologia.

Poderíamos dizer que no termo autoetnografia o prefixo auto é consensualmente


associado (...) à noção de multiplicidade do self. Multiplicidade compreendida não como
a sucessiva troca de máscaras para cada situação, mas como complexidade
e singularidade, sobreposições simultâneas e cumulativas de papéis, identificações
e sentimentos de pertença decorrentes dos constantes deslocamentos geográficos,
da contínua interação com outros selves e das atribuições recíprocas de identidades entre
selves.
(VERSIANI, 2005, p. 212)


56
Conceito proposto por Daniela Beccaccia Versiani em Autoetnografias: conceitos alternativos em construção. Rio
de Janeiro: Editora 7Letras, 2005.

44
Foi uma antropóloga e fotógrafa, Barbara Copque, que pela primeira vez me chamou a
atenção para os aspectos etnográficos da minha prática. Lembro-me de como aquela afirmação
me embaralhava a cabeça, porque as indicações que havia recebido na faculdade eram opostas ao
que eu vinha fazendo por instinto. Barbara dizia que o trabalho no Minhocão era antropológico e
demorei para entender o que ela queria dizer com aquilo. “Quando todo mundo olha pro outro,
isso é antropologar”57. De fato, essa relação para mim nunca foi intencional ou consciente.
Nunca tive um vocabulário, uma agenda ou roteiro que não a intuição gerada pelas trocas entre
mim, o lugar e xs habitantes. Como dito antes, o Minhocão, como lugar, era uma desculpa
geográfica, não havendo um interesse particular meu em estudá-lo ou descrevê-lo, mas sim em
desenvolver ali um exercício de observação imbuída de uma vontade enorme de interagir e de
propor um retrato colaborativo de um edifício popularizado historicamente. Eu e xs moradorxs,
em sua maioria crianças e adolescentes, retratamos o edifício juntxs. Como mencionado antes
neste mesmo capítulo, ensinei-xs a usar uma câmera para fotografarem o que quisessem, seus
objetos de desejo, seus amigxs, seus lugares de predileção etc. As incursões fotográficas sempre
foram acompanhadas de conversas. Elxs me levavam a conhecer suas rotinas, caprichos, medos e
alegrias. Sim, de acordo com Barbara, antropologamos.
Em um artigo intitulado Fotografar: expor (e se expor) ou a utilização da fotografia no
contexto da pesquisa antropológica, Barbara trata de um projeto seu realizado com “meninos”58
em situação de rua, no qual são xs próprixs que fotografam o dia-a-dia, “criando trajetórias
individuais de apreensão da realidade”59. Podemos dizer que os “meninos” desenvolveram com
Barbara um exercício de observação. Ela inicia o texto com o seguinte parágrafo:

Durante a minha formação nas Ciências Sociais, a ideia de “distanciamento” como um


conceito necessário para a compreensão dos mundos sociais, como condição para
a análise antropológica foi muito enfatizada (...). Todavia, esse exercício de
distanciamento não é fácil de ser compreendido e muito menos de ser praticado, pois
o que se pede é também a separação da reflexão em relação às demandas “imediatas” da
vida. E como desejava compreender a lógica das coisas, fui levada – por alguns
momentos – a querer viver as razões práticas dos atores que participavam dos
fenômenos que buscava conhecer. Por esse motivo, e desde o início, tentei dar conta de
minhas simpatias, ou não, em relação ao fenômeno que desejava investigar.
(COPQUE, 2015, p. 1)

57
Barbara Copque em entrevista à Revista Habitus | IFCS – UFRJ | V.16 – N. 1 – 2018.
58
Barbara utiliza “meninos”, entre aspas, sempre que se refere na sua pesquisa a crianças e adolescentes em situação
de rua.
59
COPQUE, Barbara. “Fotografar: expor (e se expor). A utilização da fotografia no contexto da pesquisa
antropológica.” In: FERRO, Lígia [et al.]. Expressões artísticas urbanas: Etnografia e criatividade. 1ed. Rio de
Janeiro: Editora Mauad, 2015, v. , p. 1.

45
Marcelo Campos, quando dirigia a Casa França-Brasil, em 2016, convidou a Barbara e a
mim para darmos juntas um curso chamado “Antropologia da Arte: Diálogos Fotográficos”.
Recusei por considerar não ter o conhecimento necessário sobre o assunto na época, mas recebi
xs alunxs para uma conversa na exposição Perabé, no MAM Rio, quando fui finalista do Prêmio
Pipa. Em diversas ocasiões busquei aprender com a Barbara, inclusive sobre o seu próprio
trabalho, mas até hoje a nossa comunicação é falha. Na inquietude por entender um pouco mais
sobre as relações entre a antropologia e a prática dos exercícios de observação, cheguei a um
texto de Tim Ingold chamado Antropologia não é Etnografia, e destaco aqui dois trechos
relevantes para a discussão:

Antropólogos trabalham com pessoas. Imerso com eles em um meio de atividade


conjunta, eles aprendem a ver coisas (ou ouvi-las, ou tocá-las)... Uma educação em
antropologia, portanto, faz mais do que fornecer-nos conhecimento sobre o mundo –
sobre as pessoas e suas sociedades. Ao invés disso, ela educa a nossa percepção do
mundo, e abre nossos olhos e mentes para outras possibilidades de ser. As questões que
nós dirigimos são filosóficas: o que significa ser um ser humano ou uma pessoa, de
conduta moral e senso de liberdade e de constrangimento nas relações das pessoas umas
com as outras, de confiança e responsabilidade, do exercício do poder, das conexões
entre língua e pensamento, entre palavras e coisas, e entre o que as pessoas dizem
e o que fazem, de percepção e representação, de aprendizado e memória, de vida e morte
e de passagem do tempo, e assim por diante. De fato, a lista é infinita. Mas é o fato de
que nós dirigimos essas questões no mundo, e não de um gabinete – que o mundo não é
somente o que imaginamos sobre, mas o que pensamos com, e que em seu pensamento
a mente perambula pelos caminhos muito além do envelope da pele – que faz
o empreendimento antropológico e, por isso mesmo, radicalmente diferentes da ciência
positivista. Nós fazemos nossa filosofia fora de casa. E nisto, o mundo e seus habitantes,
humanos e não-humanos, são nossos professores, mentores e interlocutores.
(INGOLD, 2011, 15)

Na pintura, bem como no desenho, observação e descrição vão lado a lado. Isso é porque
ambos pintura e desenho implicam em um acoplamento direto entre o movimento da
percepção visual do artista, na medida em que segue as formas e os contornos do
terreno, e o movimento gestual da mão que segura o pincel ou o lápis, na medida em que
deixa um traço sobre a superfície. Através do acoplamento da percepção e da ação, o/a
artista desenha no mundo, mesmo se ele ou ela o tira nos gestos da descrição e dos
traços que eles fornecem. (...) há muito em comum entre as práticas da antropologia e da
arte. Ambas são maneiras de conhecer que procedem através dos caminhos
observacionais do ser com, e ambas, assim sendo, exploram o não-familiar no que está
próximo. Mas em geral, etnógrafos não desenham nem pintam.
(IDEM, p. 19)

Mas fotografam.
Barbara não me enviou a sua tese de doutorado e só tive acesso a alguns capítulos
disponibilizados pela internet. Queria ver mais das suas fotografias. Conversamos um pouco por

46
Whatsapp sobre o tema60. Ela disse que a consulta à tese só poderia ser feita na biblioteca da
UERJ porque não tinha autorização para o uso de certas imagens. Na pesquisa concluída em
2010, Uma Etnografia (visual) sobre a maternidade na Penitenciária Talavera Bruce, ela se
aproximou de forma tão intensa das internas grávidas, que até hoje sofre os transtornos físicos e
emocionais consequentes do trabalho de campo, que durou aproximadamente seis anos. Como já
havia feito anteriormente com os “meninos” em situação de rua, ela achou por bem dividir o
olhar e o ato fotográfico, permitindo que as mulheres se fotografassem, algo próximo ao que
havia feito Paulo Sacramento no filme Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), quando distribuiu
câmeras de vídeo entre os detentos para que registrassem o dia-a-dia no Carandiru. Uma outra
estratégia foi permitir que agentes de segurança e detentas vissem as fotos no instante em que
eram feitas, para que elxs próprixs pudessem editar o material. O estudo de Barbara faz um
levantamento sobre a história da criminalidade e questiona as bases do encarceramento feminino,
apontando para o cenário atual no qual muitas mulheres, em sua maioria negras e pobres, são
presas, não por cometerem crimes hediondos, mas por participarem do comércio ilegal de drogas
como meio de ascensão social, operando quase sempre na parte administrativa dos negócios. No
Talavera Bruce existe uma ala especial para as detentas grávidas e xs bebês de até seis meses, por
ser o tempo mínimo necessário para o aleitamento materno exclusivo recomendado pela
Organização Mundial de Saúde. Há mulheres que chegam ao presídio grávidas, mas muitas
engravidam lá mesmo, durante as visitas íntimas permitidas. Barbara conta que conheceu uma
interna que é a terceira geração da família a nascer no presídio, o que indica a falência do sistema
penal brasileiro e de seus métodos punitivos. Um dos pontos que a pesquisa evidencia é
justamente a quebra de vínculo familiar e a fragilidade a que essas crianças são submetidas ao
serem separadas violentamente de suas mães ainda tão pequenas, influenciando de forma direta e
catastrófica seu desenvolvimento e inserção social.
Em um contexto totalmente distinto aos presídios, mas não menos potente, reside talvez o
maior exemplo de aproximação entre arte e etnografia no Brasil: Claudia Andujar, que há 50 anos
vem realizando um permanente exercício de observação e ativismo junto ao povo Yanomami,
luta junto a elxs pela proteção de suas terras, dignidade e sobrevivência. Sem me estender em seu
imenso e importantíssimo trabalho, que extravasa qualquer tentativa de classificação entre
fotojornalismo e etnografia para adentrar o campo do afeto, do sensível em sua definição mais

60
Conversas com Barbara Copque, de 20.12.2019 a 18.01.2020.

47
fundamental, trago aqui um texto de sua autoria publicado no livro Marcados, onde expõe a
relação de proximidade desenvolvida com xs indígenas ao longo dos anos, atravessada por sua
própria memória de amor, dor e trauma, provando uma vez mais a impossibilidade do
distanciamento em um trabalho dessa natureza, ou a necessidade do envolvimento efetivo para
que haja de fato uma transformação nos modos de ver, perceber e sentir. Por mais fascinante que
seja a imagem, por mais que ela insinue as relações de intimidade entre fotógrafx e fotografadx,
por menos invasiva ou imperialista que seja a câmera, continuo duvidando da sua capacidade de
narrar a força desses sentimentos imbricados no convívio entre seres humanxs. Eis, então, as
palavras:

CIRCUNSTÂNCIAS – CLAUDIA ANDUJAR


1944
Aos treze anos tive o primeiro encontro com os "marcados para morrer". Foi na
Transilvânia, Hungria, no fim da Segunda Guerra. Meu pai, meus parentes paternos,
meus amigos de escola, todos com a estrela de Davi, visível, amarela, costurada na
roupa, na altura do peito, para identificá-los como "marcados", para agredi-los,
incomodá-los e, posteriormente, deportá-los aos campos de extermínio. Sentia-se no ar
que algo terrível estava para acontecer. Em meio a esse clima de perplexidade, Gyuri me
convidou para um passeio no parque. Foi uma confissão de amor. Só assim posso
nomear seu desejo de andarmos juntos. Era algo que fazíamos guiados pela intuição.
Tratava-se de um passeio somente para me dizer: "Frequentamos a mesma escola.
Reparei em você. Você é especial. E bonita". Eu também o procurava, dia após dia,
caminhando na rua, sempre na mesma hora. Sabia que o veria en passant. Sinto
a emoção me apertar a garganta. Naquele dia de junho de 1944 decidimos nos encontrar
e confessar nossos sentimentos. O rapaz judeu estava marcado com a estrela amarela,
o mogendovid. Ele tinha quinze anos, e eu, treze. Andamos emocionados, sem falar,
olhando-nos furtivamente. Sabia que algo importante estava acontecendo. Era
o nascimento do amor. Sentia um formigamento na pele. No fim do passeio recebi um
beijo tímido e silencioso, que apenas tocou minha boca. Lembro-me de ter ficado com os
lábios ardendo por horas seguidas. Um amor, em circunstâncias tão especiais, a gente
nunca esquece. Ao sair com Gyuri, publicamente, sabia que estava desafiando o meu
tempo. Nunca mais o revi. Durante anos, guardei um retrato dele no medalhão que usava
pendurado no pescoço.
1980
Quase quarenta anos depois, já vivendo no Brasil como fotografa engajada na questão
indígena, acompanhei alguns médicos em expedições de socorro na área da saúde.
A partir de 1973, durante os anos do "milagre brasileiro", o território Yanomami na
Amazônia brasileira foi invadido com a abertura de uma estrada. Com a mineração,
a procura de ouro, diamantes, cassiterita, garimpos clandestinos, e não tão clandestinos,
floresceram. Muitos índios foram vitimados, marcados por esses tempos negros. Nosso
modesto grupo de salvação - apenas dois médicos e eu - embrenhou-se na selva
amazônica. O intuito era começar a organizar o trabalho na área da saúde. Uma de
minhas atividades era fazer o registro, em fichas, das comunidades Yanomami. Para
isso, pendurávamos uma placa com número no pescoço de cada Índio: "vacinado". Foi
uma tentativa de salvação. Criamos uma nova identidade para eles, sem dúvida, um
sistema alheio a sua cultura. São as circunstâncias desse trabalho que pretendo mostrar
por meio destas imagens feitas na época. Não se trata de justificar a marca colocada em
seu peito, mas de explicitar que ela se refere a um terreno sensível, ambíguo, que pode

48
suscitar constrangimento e dor. A mesma dor que senti por amor ao pisar na grama do
parque, um amor impossível com Gyuri. Ele morreu em Auschwitz naquele mesmo ano
de 1944.
2008
E esse sentimento ambíguo que me leva, sessenta anos mais tarde, a transformar
o simples registro dos Yanomami na condição de "gente" - marcada para viver - em obra
que questiona o método de rotular seres para fins diversos. Vejo hoje esse trabalho,
esforço objetivo de ordenar e identificar uma população sob risco de extinção, como
algo na fronteira de uma obra conceitual.
(ANDUJAR, 2009, p. 4-5)

Em 30 de janeiro de 2020, Davi Kopenawa, xamã e líder Yanomami, diante de Claudia


Andujar, agora com 89 anos, e do público presente na inauguração da exposição A Luta
Yanomami, na Fondation Cartier pour l’art contemporain, diz: “Quando ela morrer, quero o corpo
dela para fazer cremação, pegar ossada, cinza e fazer grande festa. Guardar na aldeia. Ela é uma
mulher muito corajosa e importante. Ela é uma guerreira com a flecha na cabeça.”
O reconhecimento da entrega e do envolvimento entre os Yanomami e Andujar é mútuo.

Sobre urbanos

O Rio de Janeiro foi a capital do Brasil três vezes desde a chegada dos portugueses, o que
não impediu que grande parte do seu patrimônio fosse demolido, alterado, apagado. Triste e
fascinante ao mesmo tempo, muito do que se conhece da história da cidade vem dos livros,
jornais, ilustrações, fotografias, além da história oral, oficial e oficiosa, dos casos contados até
hoje e que marcam o imaginário coletivo. Do trabalho do fotógrafo Marc Ferrez, “Álbum da
Avenida Central: um documento fotográfico da construção da Avenida Rio Branco, Rio de
Janeiro, 1903-1906”, pouca coisa restou. Em mais de 450 anos de sua fundação, são inúmeras e
incansáveis sagas de transformações de grande escala que o Rio de Janeiro atravessou, incluindo
a recente renovação da região do Porto, a retirada da Perimetral, as remoções em série, as
megaconstruções olímpicas e mais uma reconfiguração da Praça XV de Novembro, antiga Praça
do Comércio, que desde sempre se apresentou como marco central da cidade.
Sempre atenta às histórias e aos contos urbanos, não posso deixar de imaginar os
universos poéticos latentes disfarçados entre construções e geografias: o Castelo que foi
derrubado para aterrar o Flamengo; o antigo cemitério dxs escravxs que foi enterrado e
redescoberto anos depois quando preparavam o solo para nele construir novamente sem jamais
preservá-lo; o prédio que desabou e cujo terreno jaz baldio entre as demais empenas-cegas que o

49
circundam e que ainda guardam sua memória em forma de desenho escavado; o edifício que
jamais estremeceu, mas que é chamado de "Balança Mas Não Cai", já que nele gravavam um
programa de rádio com este nome; os clássicos da arquitetura moderna dos Irmãos Roberto
apelidados de "Mictório de Gigante" e "Tem Nego Bebo Aí", além de outras construções que
viraram pérolas populares como a "Gaiola de Ouro", o "Piranhão", o "Buraco do Lume" e o
"Duzentão"; o conjunto de arranha-céus construídos durante a ditadura militar conhecido como
"Triângulo das Bermudas"; a última torre remanescente do antigo mercado que se tornou um
restaurante na praça cujo nome é a data da proclamação da República; a escultura pública que
brota da calçada de pedras portuguesas e que virou uma pedra no trajeto do trem, sendo portanto
transferida para outro lugar; a Praia Formosa que virou Carandiru61 e que agora não existe mais; a
Cruzada encruzilhada no m2 mais caro do Brasil. A ficção está arraigada na tradição oral da
cidade. Sempre há história e sempre há pedra, seja a erguida, a derrubada, a inventada ou as que
fundam um espaço apenas por estarem distanciadas entre si, como no conceito japonês ma, um
ideograma com leituras plurais que, entre tantas possíveis definições, representa o espaço-entre
as coisas, inclusive na arquitetura.
Parte dos projetos de arte que desenvolvi no Rio após o Minhocão nasceu da especial
curiosidade sobre certos endereços. Como parte da metodologia para todos os casos, eu definia a
priori um período de estadia em casas escolhidas por suas desculpas geográficas, ou seja, pelas
características intrínsecas que as ressaltavam como lugar, pelo forte apelo imagético pertencente
ao imaginário coletivo urbano, por suas histórias, arquiteturas, polêmicas, entraves político-
urbanísticos, ou até por terem servido como locações para filmes e novelas. Interessada em
questionar a noção de lugar a partir da experiência de habitar, morei temporariamente nessas
"casas-ateliê", "casas-laboratório", onde desenvolvi projetos atuando sempre como estrangeira
em minha própria cidade, incorporando ao trabalho cada vez mais a prática do caminhar pelas
ruas a fim de conhecê-las e de conhecer-me melhor, inserindo-me como residente das casas e dos
bairros. Assim, as desculpas geográficas sempre me permitiram refletir e questionar sobre a
natureza e o hibridismo dos lugares, e sobre como a cartografia, o deslocamento e o trânsito
podem ser estopins narrativos na experiência urbana sob as mais diversas perspectivas e
disciplinas, como a antropologia, a sociologia, a filosofia, a história, os estudos sobre arquitetura
e urbanismo, a psicanálise, a crítica literária e a história da arte, além da própria prática artística,

61
O Carandiru foi trabalhado por mim em uma série fotográfica de 2009.

50
seja a minha ou a de interlocutorxs e referências.
Dois projetos residenciais realizados no Rio de Janeiro em bairros onde nunca havia
morado, Península/Barra da Tijuca (2010) e Rapozão/Santa Teresa (2011), foram iniciativas
levantadas por mim em todas as fases de preparação e realização, desde a escolha dos endereços
às negociações de empréstimo dos imóveis. Pude me dedicar com exclusividade ao exercício
livre de observação durante as moradias temporárias, sem briefing, supervisão institucional ou
intuito comercial prévio. Então o pretexto para a realização do projeto eram certas
especificidades dos lugares, mas o que de fato iria definir as experiências de cada residência era o
tempo presencial nesses lares efêmeros, ou melhor, a qualidade da duração da observação como
residente/estrangeira que me permitiria editar uma imagem própria e particular daqueles
endereços. Um drone ou qualquer dispositivo/prótese que capture imagens à distância não
poderia fazer o meu trabalho porque as relações de troca que estabeleço com x outrx e o lugar são
fundamentais e constituintes, desde a campanha de adaptação entre a hostilidade e o acolhimento
dx desconhecidx que habita uma zona de vizinhança, que se define neste novo lugar, até a
reflexão via imagem/texto do exercício de olhar para fora e para dentro durante a prática.

A experiência é o que nos relaciona à apresentação do presente: algo se apresenta, temos


a experiência disso. Portanto, desse ponto de vista, a acepção da palavra "experiência" é
totalmente dominada por uma metafísica do presente ou da presença, (...) por um
logocentrismo, ou até mesmo por um fonocentrismo. Mas há outro conceito de
experiência (...) que é justamente não a relação presente com o que está presente, mas
a viagem ou a travessia, o que quer dizer experimentar rumo a, através da ou desde
a vinda do outro na sua heterogeneidade mais imprevisível; trata-se da viagem não
programável, da viagem cuja cartografia não é desenhável, de uma viagem sem design,
de uma viagem sem desígnio, sem meta e sem horizonte. (...) A viagem da qual sabemos
de onde ela parte e para onde nos leva não é uma viagem, está previamente encerrada. Já
chegamos, e nada mais acontece. Não há experiência, no sentido mais perigoso (...) do
termo viagem. Uma viagem que não fosse ameaçadora, uma viagem que não fosse uma
viagem em vista do impossível, em vista do que não está em vista, seria ainda uma
viagem? Ou apenas turismo? (...) A experiência do pensamento é uma experiência sem
carta ou mapa geográfico, uma experiência exposta ao acontecimento (...), à vinda do
outro, do radicalmente outro, do outro não apropriável.
(DERRIDA, 2012, p. 79-80)

Foi durante um grupo semanal que mantive na minha casa para a discussão de projetos
fotográficos em 2010 que encontrei numa edição da revista Piauí62 uma matéria intitulada Volta
ao mundo em 251m2: esplendor e glória das artes plásticas e dos sistemas de segurança num
condomínio fechado. Assinada por João Moreira Salles e Roberto Kaz, a matéria apresentava a

62
Revista Piauí, n.5, 02/2007.

51
Península, um conglomerado de condomínios de luxo construído em uma polêmica área de
proteção ambiental de restinga e manguezais na Barra da Tijuca. Para o meu completo espanto,
de acordo com as descrições fornecidas a partir de uma visita presencial guiada por um corretor
de vendas do empreendimento, o lugar almejava ser uma bolha exclusiva e excludente, exibindo
pelos halls dos edifícios, nos apartamentos decorados e também pelos espaços públicos, parte da
coleção de arte privada de um de seus incorporadores, Carlos Carvalho, o bilionário e único
acionista da construtora Carvalho Hosken. Motivada pelo jornalismo, escolhi a Península como
desculpa geográfica. Queria morar num museu a céu aberto localizado numa área estigmatizada
por abrigar novxs-ricxs e expulsar eternxs pobres, em um modelo de bairro bastante distinto ao
predominante na cidade.

Durante a visita, o corretor descreve os benefícios que aguardam o futuro inquilino:


“A Barra está sempre inovando. Agora eles estão vindo com o conceito de iHouse
[i de innovative]. É uma casa inteligente. Você controla sua banheira pelo celular.
É sexta-feira, você está na rua, estressado, parado no trânsito, então liga para casa,
programa a hora de chegada e tempera a água pelo celular. Se a água está sendo
temperada e você não quer que a empregada use a banheira, você habilita a função de
reconhecimento da porta por impressão digital. Só você entra na suíte”. E se
a empregada estiver limpando o banheiro na hora em que o proprietário habilitar
a função? Todos os apartamentos são monitorados por câmeras. As imagens são
enviadas para o laptop do proprietário. Apertando uma única tecla, será possível
destrancar a doméstica.
(MOREIRA SALLES/KAZ, 2007, s/p)

Naquele mesmo ano fui convidada pela curadora Daniela Name para participar da
exposição coletiva “Mapas Invisíveis” (Caixa Cultural RJ) e para tal eu precisava desenvolver um
trabalho inédito sobre uma zona específica do Rio de Janeiro. Daniela sugeriu a zona norte, São
Cristóvão, dado o meu envolvimento com a região durante a residência no Minhocão no ano
anterior. No entanto, para começar uma pesquisa do zero, sugeri a Península, na zona oeste.
Como os escritores da revista Piauí, também fiz uma visita guiada à Península, com
direito a passeio de carrinho de golf pelas trilhas planejadas que margeiam a lagoa da Tijuca.
Impressionava a quantidade de esculturas e estátuas, réplicas ou originais, que se espalhavam por
todos os lados, até na beira do cais, onde se via uma fonte de água jorrando da boca de um leão.
Aquelas alegorias desconexas, ostentando um luxo bastante questionável, se contrastavam ao
terrível odor do mangue poluído que banha o lugar. Na fugacidade daquela primeira visita era
justamente a sobreposição de figuras e paisagens planejadas que me atraíam. Porém, era certo

52
que, a partir do exercício de observação na residência, outros aspectos se ressaltariam e aquela
desculpa geográfica seria reconfigurada.
Com o XI Prêmio Marc Ferrez de Fotografia da Funarte e a cessão de um apartamento
pela própria construtora Carvalho Hosken, realizei uma residência de um mês na Península. O
apartamento cedido não era como o modelo descrito na matéria da revista e se parecia a uma
garçonnière, mobiliado de maneira impessoal, porém, funcional, com uma vista privilegiada que
começava na área de lazer do edifício, passava por uma ilhota no meio da lagoa, pela Cidade da
Música ainda em construção, até chegar ao mar da Barra. Do exercício desenvolvido in situ,
destaco as caminhadas noturnas e solitárias pelas margens do manguezal, as viagens periódicas
que fiz a bordo de uma pequena embarcação que se encarregava da limpeza e manutenção dos
manguezais da Península e das áreas adjacentes, percorrendo as águas limítrofes/fronteiras
invisíveis entre aqueles territórios, e também a minha permanência na ilhota que avistava desde a
janela de casa e que pertence ao condomínio.

[Os terrenos, glebas e ilhas que constituem a Península em parte já pertenciam a Carlos Carvalho
há muitos anos, porém, por se tratarem de uma reserva ambiental, não lhe dava o direito à
construção. Foi a partir de pressões subsequentes e concessões públicas que a Carvalho Hosken
conseguiu finalmente aprovar o projeto do empreendimento. Uma das justificativas para a
legalização da construção era impedir o crescimento ilegal e desordenado de comunidades
naquelas terras. Na ilhota onde desenvolvi parte do meu exercício se viam os escombros do que
foi a casa de um pescador desalojado, no que virou um terreno baldio à espera da edificação de
um possível restaurante.]

Durante aquele mês, vivi praticamente isolada de todo e qualquer contato com pessoas e a
cidade. O modelo urbano proposto pela Península induz à solidão e ao automóvel. Apesar das
dimensões de um bairro, ali não tinha comércio, nem hospital, nem escola, nem transporte
público de qualidade. Sem carro, restringia a minha locomoção a uma bicicleta, a caminhadas, ao
barco e à única linha de ônibus fretado que o multicondomínio oferecia, destinado especialmente
a prestadorxs de serviço que atendiam o lugar. Naquele período de quase reclusão, desenvolvi um
dos mais potentes exercícios até então, esgarçando limites que nem eu mesma conhecia. Também
usufruí de tudo o que o panfleto de vendas dos imóveis oferecia: sauna, piscina, ginástica, aulas

53
coletivas para míserxs participantes, uma suposta segurança para transitar a qualquer hora do dia
ou da noite. Xs poucxs pedestres que me viam passar, talvez me considerassem uma maluca que
vagava pelas ruas desertas na madrugada. Minhas curtas conversas se davam com xs
trabalhadorxs contratadxs e terceirizadxs, que me contavam as mais mirabolantes histórias de
suas vidas pessoais e profissionais. A relação mais estreita foi com a tripulação do barco, em sua
maioria antigos pescadores que ficaram desempregados com a extinção dos peixes da região, e
que passaram a trabalhar na limpeza do mangue. Por conta dessxs novxs conhecidxs, visitei
outras áreas que abrigariam futuros projetos da mesma construtora, anunciando a expansão da
cidade e a remoção de inúmeras famílias que ocupavam aqueles terrenos. Foram múltiplas
experiências em apenas um mês. Parte delas foi contada em três séries, entre fotografias,
videoinstalação e textos escritos, como uma colagem composta por anotações descompassadas,
nas quais misturei imagens, cheiros e sons.
Quando saí da Península, a sensação temporal era estranhíssima, parecia que havia estado
muito mais do que um mês em residência. Me liberar das grades do condomínio e dos sequenciais
controles de segurança me trouxe insegurança. Tive que reaprender a andar nas ruas. Lembro
com clareza do dia seguinte, um domingo, quando fui pedalar pelo Aterro do Flamengo fechado
para carros. Na velocidade, o vento no rosto, as famílias heterogêneas convivendo no espaço
público, as risadas, as músicas, as bolas, as palmeiras reais em flor. Chorei copiosamente. Havia
felicidade, mas também uma melancolia de mim mesma, da minha cidade, e uma vontade insana
de viver coletivamente.
Ainda com os poros demasiadamente abertos, fui selecionando outras desculpas
geográficas no Rio de Janeiro: o Balança-Mas-Não-Cai (Centro), o Edifício Alaska
(Copacabana), o conjunto residencial da Joatinga (São Conrado) e o Rapozo Lopes (Santa
Teresa), o único que se materializou como exercício até aqui. Em 2011, consegui negociar um
apartamento que funcionava como estúdio de música; um escambo por uma fotografia, que
posteriormente viraria capa de disco. O Rapozão, como é popularmente conhecido, é um marco
arquitetônico de Santa Teresa. Trata-se de um residencial do final da década de 1930 projetado
para ser um hotel. Grande parte das pessoas do bairro têm uma memória afetiva ligada ao local
por terem frequentado especialmente a piscina, onde aconteciam festas e aulas de natação para a
comunidade. A piscina semiolímpica com trampolim estilo art déco pende sobre a montanha, de
onde se avista a zona norte da cidade, incluindo o Maracanã, a Serra dos Órgãos, a ponte Rio-

54
Niterói e os morros vizinhos. No início da década de 2000 ela foi esvaziada para restauração e
permanece inutilizada, arruinada, ao lado de uma outra pequena piscina disponibilizada para xs
moradorxs. Há quem diga que está condenada. Há quem diga que os regulamentos condominiais
já não permitem uma piscina residencial de tamanha profundidade. Há quem diga que foi
desativada por segurança, por estar exposta à rota de tiros entre comunidades em guerra.
Enviei o projeto de residência no Rapozão para a convocatória do Rumos Artes Visuais –
Itaú Cultural, mas realizei o exercício antes da confirmação da seleção. Sem balizas, fui morar
em Santa Teresa, no bairro onde já trabalhava desde 2007. O que antes era contramão, motoboy
ou kombi, passou a ser dominado por mim de forma bastante graciosa: corridas matinais do
prédio até a subida do funicular do Corcovado, explorando a paisagem que ia se desenhando pelo
trilho do bonde / braçadas na piscininha / caminhada até a capela residencial dos fabricantes de
cachaça, onde ofereciam aulas de yoga / caminhada até o trabalho. Eu percorria o edifício de
cima a baixo, e observava de longe os movimentos, luzes e sons do Morro dos Prazeres. Naquele
momento, as chamadas UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), implementadas pelo governo
estadual para restringir o tráfico de drogas nas comunidades cariocas, tinham acabado de ser
instauradas. O clima era de desconfiança total, mas hoje me arrependo por nunca ter me atrevido
a cruzar os limites que separavam o asfalto, do morro.
Por habitar um ambiente vivo, um estúdio de música em atividade por outras pessoas, a
vivência no Rapozão foi singular. Eu era uma visita. Não me sentia de todo à vontade, não sabia
quando haveria ou não gente por perto. Tinha cerimônia para limpar, arrumar, mexer nos móveis
e mudá-los de lugar, apesar de me permitir revirar estantes em busca de livros e objetos. Também
me sentia cerimoniosa em relação à piscina. Sabia que ela era o ponto de atração turística. Todxs
que chegavam ali queriam se assomar para tirar uma foto e eu não precisava estar em residência
para fazer o mesmo. Foi assim que decidi excluí-la como imagem a princípio. O exercício era
trabalhar com tudo o que havia em volta e embaixo dela, na área de lazer construída sob, de onde
se notava parte da estrutura, os canos de deságue, e também as informações visuais e sonoras
vindas do Morro dos Prazeres. Era notório como a história e a memória de infância de muitxs
adultxs que eu conhecia seguiam habitando o dia a dia do lugar: a piscina-ruína contracenando
com os carros antigos e novos, com as crianças jogando bola, com os pratinhos de comida e água
para gatos, tudo embalado pelo som de muitas televisões, rádios e pelo baile funk no morro. Toda
essa confluência de tempos em um só lugar me permitiu criar uma relação afetuosa com o bairro

55
e construir uma narrativa a partir e além dele, mesmo que de maneira menos intensa se
comparada aos exercícios anteriores.
As desculpas geográficas abrem a possibilidade do perder-se, do demorar-se e do fabular
entre uma conversa e outra, entre uma paisagem e outra, entre uma lembrança e outra. Ao
assumir uma posição de agente realizadora, de ouvinte e de espectadora, as sensações vividas são
teletransportadas e as imagens combinam auroras, outroras e agoras, ignorando a noção de
cronologia histórica linear, tal qual falaram Octávio Paz ou Walter Benjamin em sua dialética que
une o passado e o presente de forma repentina e atemporal, enquanto imersxs num tempo
saturado de agoras; descontinuidade, fragmentação e desmembramento de memória em
lembranças desconexas que são validadas ao recontar a história. "A verdadeira imagem do
passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja
63
irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.” A reconhecibilidade dos
acontecimentos se dá no presente através da confluência entre a interrupção e a fugacidade.

Ó imaginação, que tens o poder de te impores às nossas faculdades e à nossa vontade,


extasiando-nos num mundo interior e nos arrebatando ao mundo externo, tanto que
mesmo se mil trombetas estivessem tocando não nos aperceberíamos;
de onde provêm as mensagens visíveis que recebes, quando essas
não são formadas por sensações que se depositaram em nossa memória?64

Depois das residências no Rio de Janeiro, realizei outros exercícios em Valparaíso


(Residência CRAC, Chile, 2012), São Paulo (Pivô/Edifício Copan, 2013) e Paris (projeto
independente/casa Albertine de Galbert, 2014). Com a exceção de São Paulo, que escolhi a casa a
partir de uma desculpa geográfica, os demais projetos foram convites que surgiram em
consequência dos percursos criativos das experiências anteriores. É curioso notar que, mesmo
sem a necessidade da produção de um corpo de trabalho, as residências foram bastante férteis
nesse sentido, sempre resultando em projetos múltiplos que envolviam séries fotográficas, vídeos,
instalações e textos, além de apresentações, prêmios e exposições. No entanto, por melhor
sucedido que possa soar, a insistência forçada de um procedimento eficaz fez com que o
propósito do exercício de observação de alguma forma se perdesse, se automatizasse, passando a


63
Sobre o conceito da história, ed. cit. p. 224.
64
CALVINO, Ítalo. Seis Propostas para o Próximo Milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.98.

56
demandar uma conclusão positiva. Não há nada de errado com conclusões, mas a pressão por
uma certa qualidade de resultado tirou o prazer que eu mais sentia ao desenvolver trabalhos desse
tipo. Em outras palavras, fui cooptada pelo ciclo otimizado da produção. Além da imposição de
regras rígidas que me faziam cumprir com o período fixo pré-determinado de estadia, como uma
espécie de imersão forçada para manter o grau de suspensão e envolvimento com o projeto, notei
que aquele tempo morto que eu tanto prezava tinha se perdido, assim como o seu próprio
processo necessário de maturação e entendimento.
Quando regressei de Paris, resolvi avaliar o rigor quase violento e formatado das
residências. Por quê e para quê manter uma metodologia inflexível de trabalho? A experiência de
Paris foi um tanto traumática e não foi a primeira. No dia em que cheguei na cidade, a casa onde
inicialmente ficaria hospedada e que seria o lugar-assunto da exposição individual numa galeria,
foi assaltada. Levaram meu equipamento e também parte da minha confiança em produzir um
trabalho inédito em menos de um mês. Dois anos antes, durante a residência em Valparaíso,
também sofri um roubo logo no início do projeto, perdendo o equipamento que usava para
fotografar e filmar nas ruas, o que também me levou a mudar da casa original e repensar a minha
estratégia de trabalho como um todo. Olhando com distância ambos casos, só consigo pensar em
impulsividade e em uma vontade quase irresponsável de perseverar uma espécie de missão. Mas
que missão merece nos expor a um grau máximo de fragilidade em nome de um projeto artístico?
Será que o trauma é de fato superado?

Considerando o intenso trânsito de corpos, informações, imagens e produtos de um lado


e a cada vez maior homogeneização e achatamento dos lugares, de outro (que,
a propósito, facilita a suave, desimpedida mobilização e circulação desses corpos,
informações, imagens e produtos), eu continuo a me perguntar sobre o impacto,
duplamente positivo e negativo, das experiências temporais e espaciais que tais
condições engendram não somente em termos de prática cultural, mas mais basicamente
às nossas psiquês, nosso senso de indivíduo, nosso senso de bem-estar, nosso senso de
pertencimento a um lugar ou a uma cultura. (...) Tenho dúvidas a respeito dessa
transposição analógica e do charme sedutor que o nomadismo traz em si, talvez por
minha própria ambivalência em relação à experiência física e psíquica de deslocamento
e desestabilização que tal nomadismo exige. (...) O lugar que instiga um sentimento de
instabilidade e incerteza, onde falta conforto, um lugar pouco familiar e estranho, pode
ser taxado como “errado”. E, por extensão, um lugar no qual nos sentimos “em casa”
pode ser taxado como “certo”. Mas isso está errado. Determinar algo como certo ou
errado nunca deriva de uma qualidade inerente ao objeto. Mais do que isso, certo
e errado são qualidades que um objeto tem em relação a algo fora de si.
(KWON, 2000, p. 147)

57
Sobre tudo

Foi buscando retomar uma prática prazerosa dos exercícios de observação, priorizando a
duração em vez da finalização do trabalho, que me envolvi em jornadas mais amplas, explorando
possibilidades de errância, sem prazo ou obrigatoriedade de término, em detrimento à certidão de
um lugar. A pesquisa, então, passa a se dar de modo mais fluido e orgânico, ao passo que a
preparação é mais reflexiva e intensa. O corpo se torna cada vez mais ativo e vibrátil, como diz
Suely Rolnik, em um exercício intensivo do sensível; a experiência se faz mais silenciosa e o
texto cada vez mais presente. "Novos blocos de sensações pulsam na subjetividade-corpo na
medida em que esta vai sendo afetada por novos universos"65.

O que (o cartógrafo) quer é se colocar, sempre que possível, na adjacência das mutações
das cartografias, posição que lhe permite acolher o caráter finito e ilimitado do processo
de produção da realidade que é o desejo. Para que isso seja possível, ele se utiliza de um
“composto híbrido”, feito do seu olho, é claro, mas também, e simultaneamente, de seu
corpo vibrátil, pois o que quer é aprender o movimento que surge da tensão fecunda
entre fluxo e representação: fluxo de intensidades escapando do plano de organização de
territórios, desorientando suas cartografias, desestabilizando suas representações e, por
sua vez, representações estancando o fluxo, canalizando as intensidades, dando-lhes
sentido. É que o cartógrafo sabe que não tem jeito: esse desafio permanente é o próprio
motor de criação de sentido.
(ROLNIK, 1989, p. 67-68)

As residências requeriam o meu deslocamento, mas sempre mantinham a configuração do


espaço interior, de uma casa passível de proteger e acolher o corpo no cenário estrangeiro.
Quando os projetos passam a lidar mais ativamente com o espaço exterior, público, é como
desproteger e desatrofiar o corpo. Lança-se ao vazio e a incertezas para que a intuição, a
percepção, as impressões e as respostas como um todo, se desprogramem, se desautomatizem. As
sensações se misturam e se completam: ver com os olhos do corpo; ver entre.
Foi durante a residência do Copan (2013) que encontrei a desculpa geográfica para o
projeto que me levaria de volta à prática genuína do exercício de observação, Perabé. São Paulo
foi a primeira cidade em que morei distante do litoral. No início eu não conseguia relacionar a
ausência do oceano com o meu desconforto, até o dia em que visitei o terraço do prédio e perdi

65
ROLNIK, Suely. “Fale com ele” ou como tratar o corpo vibrátil em coma. Conferência proferida nos simpósios:
Corpo, Arte e Clínica (UFRGS, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e
Institucional – Mestrado. Porto Alegre, 11/04/03); A vida nos tempos de cólera (ONG Atua, Rede de
Acompanhamento Terapêutico. Itaú Cultural, São Paulo, 17/05/03) e A clínica em questão: conversações sobre
clínica, política e criação (DA de Psicologia UFF e Universidade Nômade, Niterói, 05/12/03).

58
totalmente o senso de orientação cartográfica, sem a menor perspectiva de encontrar o horizonte.
Seria talvez algo próximo do “lugar errado” a que Miwon Kwon se refere na citação incluída
neste capítulo. Diante do incômodo rotineiro, uma amiga disse: "não sei onde fica, mas tem um
lugar aqui em São Paulo de onde se vê o mar." De repente um lugar utópico me foi descrito e eu
precisava encontrá-lo. Eis a minha desculpa geográfica.
A partir da imagem-disparate, imagem-devaneio, precisava encontrar esse lugar quase
onírico. Parti para o ponto mais alto da cidade, na Serra da Cantareira, e de lá busquei o mar, sem
sucesso. A mancha da metrópole, que se estende a perder de vista até tocar na cadeia montanhosa
da Serra do Mar, me fez rumar a Paranapiacaba, do tupi “lugar de onde se vê o mar”, mas que
ultrapassa o município de São Paulo. Muitas pesquisas e conversas mais tarde, descobri que no
bairro de Engenheiro Marsilac, em meio a uma trilha dentro do Parque Estadual do Curucutu, a
60km de distância do Copan, eu avistaria o mar.
Em fevereiro de 2015 encontrei o mar em meio a muitas nuvens. No entanto, todas as
descobertas paralelas que me levaram até o mirante, impulsionaram-me a atravessar a paisagem
da Serra do Mar para chegar presencialmente ao oceano. Revirar São Paulo em busca de sua
perspectiva marítima mudou a minha relação com a cidade e sua história de fundação. Como
imaginar que uma urbe cinza e concreta foi um dia conectada ao Atlântico através de uma estrada
chamada Caminho do Mar e que, assim como no Rio de Janeiro, esta primitiva rota partia da Rua
da Glória?
Na companhia de um guia, percorri trilhas e caminhos que deram início a um extenso
exercício de observação e de aspiração que durou aproximadamente um ano e envolveu percursos
diversos que saíam do Planalto até a Baixada Santista.

Respirei teu mundo movediço.66

O que a princípio tratava-se apenas de uma visita a um lugar de caráter fictício,


transformou-se em uma série de deslocamentos sem prazo de conclusão que propiciaram uma
profunda imersão subjetiva e geográfica, com um certo gesto etnográfico, já que “abaixo


66
HILST, Hilda. Odes maiores ao pai [série de poemas publicada na coletânea Trajetória Poética do Ser (1963-
1966)].

59
(psicologicamente) e além (geograficamente) da realidade ordinária existia outra realidade”.67
Reflexões dos mais variados tipos me acometiam nas viagens e continuavam no regresso
à casa entre conexões e pensamentos cruzados. Muito do que via, escutava e sentia foi registrado
em fotografias e anotações, gerando um extenso material que posteriormente foi editado em uma
instalação audiovisual apresentada no Centro Cultural São Paulo (CCSP), coincidentemente
localizado na Rua da Glória.
Perabé, do tupi "caminho do mar", era também o nome dado a um bairro da cidade de
Santos, conhecido atualmente como Marapé. Escolhi este título para o projeto e a instalação, não
apenas pela imagem sugerida na tradução, mas porque o bairro foi o destino das minhas
andanças.
Com Perabé, saí de casa para explorar o mundo, o que me devolveu uma sensação de
completude a cada etapa da preparação. Além de abandonar a formatação estrita dos projetos
anteriores, voltei a sentir um prazer há muito inexistente. Meu único compromisso era fazer
viagens periódicas a São Paulo para dar sequência aos trajetos, coletando todo tipo de informação
que parecesse relevante para a pesquisa, ainda que sem fim prático. Fazia passeios, nos que às
vezes vinham amigxs ou fazia novas amizades; caminhadas reflexivas, meditativas, ar puro no
rosto, respiração ofegante. Sentia como o corpo urbano se sentia mais vivo, mais conectado à
terra, menos rígido e controlado, se adaptando aos poucos à paisagem e a intempérie, se
aproximando de uma noção de natureza tão fugidia para quem vive na cidade. Até a proposta de
exposição enviada ao CCSP alguns meses após o início de Perabé dizia "projeto em andamento",
aliviando a pressão sobre um formato final pré-concebido de apresentação. Quase um ano de
trabalho em movimento sem precisar mudar de casa.
Pesquisar sobre a fundação do Brasil me levou a questionar o pouco que sabia sobre as
minhas origens, o Rio de Janeiro, talvez o meu exercício de observação mais extenso, de vida. No
entanto, o berço da cidade, a Baía de Guanabara, talvez sempre tivesse aparecido para mim
apenas como uma grande poça na paisagem, sem qualquer relação significativa.
Foi pensando em uma maneira de conhecer melhor a baía que convidei o artista Jonas
Arrabal para desenvolver comigo o projeto editorial Derivadores. A proposta era fazermos um


67
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1998, p. 136.

60
livro com imagens e textos provenientes da contemplação à deriva por aquelas águas, que seria
registrada por boias oceânicas rastreáveis e adaptadas como câmeras de fotografia pinhole.
A Baía de Guanabara, batizada pelos Tupinambás como "seio de onde brota o mar", é
fruto de uma depressão tectônica da Serra dos Órgãos com outros maciços menores. A bacia que
drena a baía possui 22 ilhas e ilhotas e é integrada pelos municípios de Duque de Caxias, São
João de Meriti, Belford Roxo, Nilópolis, São Gonçalo, Maricá, Magé, Guapimirim, Itaboraí,
Tanguá, e parte dos municípios do Rio de Janeiro, Niterói, Nova Iguaçu, Cachoeiras de Macacu,
Rio Bonito e Petrópolis. Esta região abriga cerca de dez milhões de habitantes, o equivalente a 80
por cento da população do estado do Rio de Janeiro. A perda secular de áreas de manguezal, a
urbanização desordenada ao seu redor, o desembocar de rios poluídos e dejetos domiciliares e
industriais, o grande tráfego de embarcações – umas quantas abandonadas em processo de
desintegração –, o derrame de óleo e a presença de metais pesados, explicam em parte a
degradação sofrida. Em seu aspecto geográfico e paisagístico, a baía foi um tanto reduzida em
tamanho desde a sua descoberta, mas continua sendo o cartão-postal do Rio de Janeiro, além de
ser uma importante referência para as configurações urbanas da cidade.
Desde 2010 foi possível avistar na baía grandes esferas laranjas flutuando sobre as águas.
Tratava-se do monitoramento das águas feito pelo Projeto Baía de Guanabara68 que, a cada
semana, lançava essas esferas chamadas de derivadores para estudar as correntes e seus
parâmetros físicos, como temperatura da água e velocidade de trajetória. Essas bolas laranjas, que
se assemelham às de basquete ou às que pendem de fios elétricos de alta tensão, ficavam à deriva
e quase sempre atracavam em alguma margem interior da baía ou eram atiradas pela corrente
para o oceano Atlântico.
Interessadxs na poética contida em cada bola laranja carregada pelo vento e pelas marés,
Jonas e eu convidamos o também fotógrafo Thiago Barros para adaptar um derivador como uma
câmera fotográfica de orifício, ou pinhole, para que pudéssemos criar uma imagem representativa
do tempo e do espaço do percurso de deriva. Pensávamos que se lançássemos o derivador na
boca da baía em instantes específicos de acordo com a maré entrante, ele percorreria o interior do
estuário até atracar ou ser interceptado por alguém ou alguma coisa. O projeto então se daria em
algumas etapas: lançamento, resgate e interpretação.


68
Disponível em: <http://www.projetobaiadeguanabara.com.br/index.php?lang=pt>

61
Com o apoio da empresa Prooceano e do Projeto Grael, responsáveis por parte dos
estudos do Projeto Baía de Guanabara, Jonas e eu conseguimos embarcar com a equipe que
fazia os informes matinais do deslocamento do lixo flutuante da baía para lançarmos o nosso
derivador. Foram algumas saídas juntxs, muitos testes e algumas imagens. No entanto, fascinada
pela oportunidade de navegar com frequência pela baía, continuei acompanhando a equipe
semanalmente para além de Derivadores, dando início ao exercício de observação Estofo.
Embarquei pela primeira vez na Baía de Guanabara 456 anos depois que o então
governador-geral do Brasil, Mem de Sá, expulsou dali os franceses. Duas vezes por semana, o
mesmo roteiro. Entrar na água que beira tudo desde sempre. Água que banha o Rio. Tamanho
volume, tamanha presença, tamanho descaso. Talvez fossem os olhos já cansados, os narizes
conformados, os pés secos. Restos boiam, gigoga enreda e óleo sufoca. De tudo passa e muita
coisa estanca. A Baía, um gargalo, um fosso, uma fossa. A mesma paisagem sobre águas
movediças. Quase sem oxigênio.
Repeti o mesmo percurso por muitas semanas, por águas que se renovam a cada 14 dias.
A luz muda, o lixo muda e a paisagem recorrente ganha novas nuances. O pressentimento da
chuva, o alvoroço do vento nordeste, o reboliço do mar que surpreende a habitual tranquilidade.
O silêncio das grandes pedras da ilha de Canhanhas. O navio Angra adernado, adernando mais e
mais, uma testemunha imunda. A Baía desorizontada, de onde mal perde-se de vista. Vista boa
que dá na cara. Com uma câmera fotográfica portátil, a mesma que usei em Perabé, e uma
caderneta sempre a postos, registrei o inusitado dos dias. Quem sabe os ponteiros anacrônicos do
relógio da Central do Brasil, uma nova grua no porto semelhante a um centauro, outra televisão à
deriva, ou simplesmente a beleza ritmada do leve movimento do swell. Quanto mais se repete a
viagem, mais se aguçam todos os sentidos.
Durante um ano inteiro, subir e descer marés abordo de um pequeno bote. Na primeira
viagem, aprender a molhar a bunda no estofado da embarcação; na segunda, aprender a viajar em
pé; na terceira, aprender a navegar. Atentar para o vermelho encarnado, porque quem entra
solteiro, sai casado. Ultrapassar os trajetos das barcas públicas e chorar de alegria diante dos
currais de pesca e da desembocadura das águas doces do Macacú no fundo da Baía, mas também
diante dos aberrantes depósitos ilegais de metais pesados na Ilha de Pombeba. Vivenciar as
maiores contradições, absurdos e maravilhas em um só território fluido. Voltar à terra firme e
continuar pensando nessa imensidão aquática de 3 baías em 1, berço-sustento-alento-latrina-

62
cemitério de tantos indivíduos, refém das desmotivações individuais e da falta de senso de
coletividade; na cidade do Rio de Janeiro, em toda a sua vocação e em seu decadente projeto de
urbanidade.
Estofo, título proveniente da linguagem náutica, significando intervalo entre marés, ou
tempo morto, é o resultado de uma sequência de viagens periódicas pela Baía de Guanabara, um
extenso exercício de observação e imaginação composto por anotações e fotografias. Uma
profunda imersão, um mergulho, sem nunca ter enfiado o corpo inteiro n'água.

63
Capítulo 3. Corpo de imagens

A "literatura" (...) se faz sempre com a "vida". Meu problema é


que não creio ter acesso à minha vida passada; ela está na bruma,
isto é, na fraqueza de intensidade (sem a qual não há escritura).
O que é intenso é a vida presente, mesclada estruturalmente (este é o meu dado)
ao desejo de a escrever. A "Preparação" do Romance se refere, portanto,
à captura desse texto paralelo, o texto da vida "contemporânea", concomitante.
(...) Pode-se escrever o Presente anotando-o – à medida que ele "cai"
em cima e embaixo de nós (sob nosso olhar, nossa escuta).69

Bastidores I: corpo de artistas

Acompanho de perto um grupo de artistas que mantem uma estreita relação entre a
observação de seus cotidianos, seus processos criativos e um corpo poético imagético referencial
vindo das mais variadas fontes, sejam eruditas, populares, literatura, cinema, natureza, cidade,
dentre tantas possibilidades. A própria proximidade com a prática de outrxs artistas e o acesso a
seus bastidores, cozinhas, laboratórios, ateliês, fornece um repertório em constante renovação que
se dá pelas trocas, as críticas e a necessidade de se estruturar um pensamento sobre o que se faz,
para se comunicar além das elucubrações íntimas e solitárias, dos devaneios subjetivos. As
referências paralelas ajudam a dar perspectiva, levantam questionamentos, conduzem estados
anímicos, influenciam o modo de ver, sentir e estar no mundo.
Por considerar tão fascinante os bastidores da prática artística, em 2008, idealizei junto
com Amanda Bonan um projeto curatorial que reunia um grupo de amigxs com acesso irrestrito
às informalidades, confidencialidades e riquezas de um convívio próximo. Pensamos em uma
proposta na qual cada artista escolheria a poética de outrx do grupo para produzir um trabalho
inédito, se aproveitando dos dados inacessíveis ao público, dos trabalhos inacabados ou que
sequer saíram das ideias, do acesso à porta dos fundos de suas carreiras, relações fraternais e até
amorosas. A exposição, inicialmente chamada de Suíte, foi depois rebatizada como Travessias
Cariocas pelo curador Adolfo Montejo Navas, que convidamos para capitanear o projeto na
Caixa Cultural do Rio (2008). Nas palavras dele, “não se trata de uma proposta estética a mais,

69
BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra / Texto estabelecido, anotado e apresentado por
Nathalie Léger ; Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 36.

64
que visa a sua razão de ser na generalidade ou na panorâmica, mas de uma mostra coletiva que
potencializa esse aspecto de troca de poéticas, de autorias, e, ao mesmo tempo, reflete uma
declaração de comunhão, de afinidades.”70 As trocas se deram entre Marcos Chaves, Fernanda
Gomes, Livia Flores, Barrão, Raul Mourão, Daisy Xavier, Brígida Baltar, Eduardo Coimbra,
Tatiana Grinberg, Ernesto Neto, Carlos Bevilacqua e João Modé.

Caros, não queria deixar passar a reflexão a posteriori de uma conversa do outro
sábado... “Eu sei fazer arte, mas o difícil é fazer o resto.”
Fernanda Gomes (em conversa com Raul Mourão e Adolfo Montejo Navas, Rio,
2/VIII/2008)

Obs.
Naquela conversa improvisada, Fernanda Gomes falava do resto das coisas da vida, do
que se tem que fazer para que a vida continue andando, cotidianamente, e esteja ligada
à arte pelos caminhos mais sinuosos ou normais que existam. Talvez seja uma
declaração de princípios estéticos, nos quais a vida e a arte se separam tanto quanto se
aproximam – o eterno jogo de distância obrigatória e aproximação necessária. Acho que
é justamente desse resto, que lateja sempre dentro e fora dos trabalhos, do que fala
também Travessias Cariocas.
Adolfo Montejo Navas

“Obs. para uma frase de F. Gomes”


2 Comentários
Raul Mourão disse...
Acho que a frase correta é:
“Fazer arte é fácil, difícil é fazer o resto.” Se eu não me engano...
12 de agosto de 2008 13:23

fernanda disse...
as duas versões da frase me soam estranhas, difícil mesmo é lembrar as palavras certas,
de toda forma vou tentar, mesmo que minha versão também seja falsa.
13 de agosto de 2008 22:10

Trazendo a relevância dos bastidores do processo criativo como um corpo referencial para
a minha pesquisa, elenco três artistas fundamentais do meu convívio profissional e afetivo para
conversar: Lucia Laguna, Marcos Chaves e Gisele Camargo.
Trabalhei como colaboradora da extinta Laura Marsiaj Arte Contemporânea (2000-2016),
de 2005 a 2006, quando tomei como meta estudar a trajetória dxs artistas representadxs, dentre
elxs Lucia Laguna e Marcos Chaves. Influenciada pela admiração por seus trabalhos, me
aproximei e me afeiçoei a ambxs, cada qual à sua maneira, e até hoje alimentamos a amizade e a
troca entre nossas vidas pessoais e profissionais. Foi a partir desses estudos que cheguei com

70
Todo o conteúdo da exposição, inclusive o catálogo, estão disponíveis em:
<http://travessiascariocas.blogspot.com/>

65
Amanda Bonan, também assistente da Laura Marsiaj na época, ao projeto da exposição
Travessias Cariocas, já que uma parte considerável dxs artistas selecionadxs faziam parte da
galeria.
Lucia Laguna nasceu no mesmo ano, na mesma cidade e estudou no mesmo colégio que a
minha mãe, apesar de só terem se conhecido em um jantar comemorativo justamente pelo dia das
mães, ambas com 69 anos na época, junto a Dilma Vieira e Silva, mãe de Gisele Camargo. Lucia
também nasceu no mesmo dia que um dos meus irmãos, e a sua filha no mesmo dia que meu pai.
Tendo trabalhado a vida toda como professora de português, só começou a pintar quando se
aposentou e engrenou nos cursos do Parque Lage. E me conta71:

Eu não sabia nada nada nada de pintura. Eu sabia de literatura.


O que vinha de visual para mim, vinha da literatura, dos romances.
(...) Meu pai era um escriturário, muito esperto em ler, em querer aprender
outra língua. Como a família dele vinha da França, era inglês, francês,
aquele monte de revistas, e eu cresci com essa coisa toda dentro de casa.
(...) Eu sempre adorei literatura mas sofria muito quando o professor me
mandava escrever um conto, fazer um roteiro para um romance. Tinha muita
dificuldade de fazer isso. Eu achava que aquilo nunca estava bom, não
prestava, eu rasgava tudo. Era muito difícil chegar ao final de alguma coisa
que não fosse por obrigação. A pintura é uma maneira de falar as coisas
que eu não consigo escrever.

Visitar Lucia em sua casa é passear por um mundo de experiências vastas que começam
na infância da artista em Campos dos Goytacazes e chegam ao bairro de São Francisco Xavier e
ao Morro da Mangueira, visto com destaque através dos janelões de seu ateliê.

Embora tenha estudado literatura, nunca me senti motivada a escrever.


Mas foi natural o movimento de me expressar por imagens numa tela.
Foi natural também olhar pela janela e interpretar o que havia do outro lado,
buscar uma linguagem contemporânea como ferramenta.
Olhar/observar/retrabalhar a percepção.


71
Conversa com Lucia Laguna, 01.02.2017.

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Em todas as conversas, ela traz alguma referência literária para ilustrar o seu pensamento
e suas lembranças, especialmente as da infância. João Cabral de Melo Neto e Manoel de Barros
sempre são convocados. Do enorme jardim que nos recebe desde o portão de entrada, ela conta
da ligação que tem com tudo o que sai da terra:

Não me interessa se é mato, se é flor, se é planta cultivável ou não.


Eu não deixo arrancar mato. Eu tenho essa relação com tudo o que vem
da natureza. Pedras, barro, palha. (...) Minha infância era muito livre
(...) eu me soltava por aí com os meninos, subindo nas árvores,
entrando nas trilhas pelo mato adentro, colhendo camboim, pitanga
e conversando com o mato quando eu ia sozinha. “Vim ver você hoje,
você cresceu!” Essas bobagens que você fica pensando. Tenho até hoje
uma ligação muito grande com o que sai da terra, seja o que for.

Subindo os andares de sua casa, chegamos ao ateliê e nos deparamos com os janelões de
onde Lucia também avista a favela da Mangueira. Ali começou a sua série de pinturas inaugurais,
Entre a Linha Vermelha e a Linha Amarela, em referência à geometria e às vias expressas que
conectam partes tão longínquas da cidade do Rio de Janeiro. Aquela observação rotineira fez com
que a artista explorasse múltiplas perspectivas, paralelas, horizontais e verticais, das muitas
construções informais, pipas e fios elétricos que se revelam por trás das árvores do seu quintal e
que se assomam em primeiro plano. Dentre as frutíferas, uma mangueira. Para além da vista em
tempo real, ela adiciona as memórias visuais de quando a família tinha uma fábrica de brinquedo
de madeiras na Mangueira, que eu tive a honra de conhecer e levar um grupo de crianças do
Minhocão para visitar durante a residência de 2009. Volta e meia é possível identificar alguma
figuração em meio à geometria predominante dos quadros da artista daquela etapa inicial. Com os
anos, o trabalho de Lucia foi tornando-se mais figurativo, tomando outros caminhos e influências,
sejam as suas próprias ou as de seus assistentes, familiares, e quem mais aparecer para mexer e
modificar as manchas de tinta. É uma estratégia, um desafio. Lucia gosta de ser provocada pela
influência visual dxs outrxs para trabalhar instintivamente a pintura.
Lucia também me influenciou a voltar a trabalhar como artista. Quando nos conhecemos,
eu vinha de um recesso, de uma mudança de país, voltando ao Rio de Janeiro depois de seis anos
ausente. A minha relação com a arte estava canalizada para o trabalho alheio, produzindo para xs
outrxs o que não produzia para mim. Foi quando iniciei uma série chamada “Entre o sono e a

67
vigília” (2006-2012), retratos de um conjunto de mulheres com as quais mantinha uma relação de
afeto maternal, dentre elas, Lucia. Tratava-se sempre de um mesmo procedimento: eu ia para a
casa dela, jantávamos, conversávamos, dormíamos. No dia seguinte pela manhã, eu esperava ser
despertada por ela, para então, sem café nem escova de dentes, fotografá-la em seu lugar de
predileção, sob a sua direção. Buscava ali aumentar a intimidade que tínhamos através da
cumplicidade, do silêncio e do privilégio de compartilhar daquela primeira hora da manhã.
Considerava ser também o privilégio de uma filha, apesar de jamais ter fotografado a minha mãe
daquele jeito. Tanto a série de fotos como esta pesquisa de tese começaram a partir de conversas
com a Lucia Laguna.

Um golpe de dados nunca abolirá o acaso.72

Logo que comecei a trabalhar na Laura Marsiaj, em 2005, tive que produzir a exposição
individual do Marcos Chaves. Eu só o conhecia através do material de pesquisa que havia me
proposto a estudar. No nosso primeiro encontro, ele me olhou ensimesmado e disse: “eu te
conheço”. Como eu acabava de voltar ao Brasil, cheguei a rir da tamanha impossibilidade. Daí
ele se lembrou do episódio de quase incendiar a galeria onde eu trabalhava em Barcelona, quando
tentou apagar o cigarro dentro de uma lixeira repleta de papéis. Corremos juntxs com a lixeira
para a rua, xingando palavrões brasileiros, quando percebemos que éramos conterrânexs. Foi uma
cena tragicômica que ficou esquecida em alguma parte da minha memória, mas que o Marcos
resgatou ao me ver, tempos depois, no Rio de Janeiro. A memória invejável e o poder de
associação entre fatos desconexos são características inerentes a ele.
Tendo formação em arquitetura e trabalhado também como designer gráfico, Marcos
circula pelas ruas, seja caminhando ou de bicicleta, desde sempre e muito antes da fotografia
existir na sua vida, tomando notas de eventos, personagens e objetos que encontra, na maioria das
vezes relacionando-os com graça à paisagem urbana. A fotografia hoje é a sua forma mais usual
de compor o cotidiano, retirando da banalidade as mais improváveis relações entre o popular, o
erudito e as gambiarras (aqui eu também faço referência a Cao Guimarães). Suas imagens
impõem a sua autoria às coisas do mundo e influenciam a nossa maneira de observá-las:


72
Un coup de dés jamais n'abolira le hasard. Poema de Stéphane Mallarmé.

68
Em 1994/1995 eu comecei a fazer uma pesquisa interessado em objetos
e mobiliários espontâneos que eu chamava de “objeto vivo”.
A partir daí eu comecei a observar outras coisas da cidade, foi quando
comecei a prestar atenção nos buracos. Mas o buraco não podia ser recolhido.
A fotografia ainda não existia na minha vida. Ela entrou de uma maneira muito
espontânea e necessária no trabalho quando eu não podia me apropriar do objeto
em si; uma maneira rápida, ágil, de me apropriar de situações urbanas
que me interessavam sem ter que, fisicamente, coletar a coisa.
Mesmo antes da fotografia, eu me lembro de fazer isso muito com o Leonilson,
de andar na rua e ficar observando, olhando as coisas, comentando
e se divertindo, olhando poesia nessas coisas, não só procurando uma coisa
que é absurda ou levemente bizarra. A fotografia começou a aparecer como parte
de série. Tem a série dos buracos, tem a série das próteses.
A série dos buracos é realmente relacionada à escultura e a uma coisa
espontânea, improvisada, solidária, denunciatória em relação ao descaso
das autoridades, mas de certa forma também eu procuro a poesia disso aí,
do quê que é uma pessoa de certa forma se divertir e montar objetos
para sinalizar o buraco, ser solidário para que ninguém caia ali.
Em relação à prótese, que é um trabalho que eu acho que se relaciona
com a pintura, é quando um técnico tenta fazer um trompe l’oeil,
de certa forma tentando copiar aquilo que pode ser restaurado, quando
o material não existe mais ou a falta recurso não permite que aquilo seja
reposto. Então o cara acaba exercendo a sua falta de técnica pictórica.
(...) A partir do final da década de 90, esse interesse por fazer uma crônica
da cidade do Rio de Janeiro, basicamente, me fez me interessar mais pela
fotografia em si. (...) Atualmente o iPhone funciona como uma câmera pra mim,
ela me basta de certa forma. Quando apareceu o Instagram eu pulei dentro logo
no início mesmo, acho que desde 2010. Eu sempre achei que era uma ótima
ferramenta para essa lapidada visual que a gente pode dar.
Eu acho que todo mundo pode se aprimorar na maneira de olhar as coisas,
de olhar com mais atenção.73

Quando saí da galeria, me tornei assistente do Marcos entre 2007 e 2011 e, até hoje,
somos família além de sócixs de CNPJ. Trabalhei na sua casa, no seu espaço particular. Ele
cozinhava para mim. Eu cozinhava só quando ele estava doente. Conversamos muitíssimo sobre
tudo e qualquer coisa. Já rimos, choramos, fomos para a esbórnia, viramos noite. Nunca


73
Conversa com Marcos Chaves, 18.11.2019.

69
brigamos. Foi na sua casa que recebi muitas notícias, tomei muitas decisões, tive revelações e
epifanias. Tinha acesso a todo tipo de material, de cartões de visita a contas, de músicas em mp3
a proibidões, mas minha concentração sempre esteve no fotográfico, tanto no que viria a ser
materializado como obra, como nos arquivos que ficavam adormecidos no HD do seu
computador, alguns que eu mesma recuperei e apresentei para ele como possibilidade de serem
aproveitados em outros trabalhos que estavam surgindo. Colaborei com a edição de livros e
vídeos, na montagem de exposições, sempre atenta para a linha que perpassa toda a sua produção,
sua forma de pensar e interpretar o mundo.
Depois de um dia longo de trabalho, eu saía pelas ruas totalmente influenciada pela forma
do Marcos ver as cenas urbanas: as próteses, os buracos, os banquinhos adaptados nas calçadas,
os galhos que abraçam grades de ferro, a insistência do Pão de Açúcar. Quando fiz a residência
no Rapozão e pude também morar em Santa Teresa, passei a compreender ainda mais o olhar do
Marcos e compartilhar com ele do afeto ao bairro.
Marcos também foi assistente do Antonio Dias quando ambos moraram em Milão na
década de 1980 e sempre me conta dessa influência do olhar e do pensamento do Antonio no seu
processo criativo, mesmo que se tratando de trabalhos totalmente diferentes.

A minha ligação com a fotografia começa a amadurecer de certa forma


através do nosso convívio, eu e você, porque vendo as suas fotos
e trabalhando com você do lado, vendo a gente trabalhando junto,
eu comecei a me interessar mais, não só sobre o que eu estava procurando,
dos objetos, sobre as relações, ou das ações que aconteciam, mas a luz,
as cores, isso foi realmente uma coisa que me acrescentou muito.
Acho que a nossa relação foi uma relação de troca bastante grande em todos
os sentidos, um pouco como foi eu e Antonio também, passando não só
pela relação do fazer a arte, mas também pela relação espiritual, de amizade
e de afeto. O Antonio sabia tudo da minha vida, me aconselhava,
me dava esporro, eu também sabia de certa forma bastante da vida dele,
então isso foi uma coisa muito importante. A maneira do Antonio me ensinar
as coisas nunca foi paternalista, sempre foi mandando eu fazer, conversando,
falando de certa forma de igual pra igual, e ele me botava no fogo às vezes,
claro, pra eu me virar. E eu acho que de certa forma você sempre se virou
sozinha e a gente se deu suporte, como aconteceu com o Antonio também.

70
Há nessas relações uma transmissão de conhecimento muito generoso. Até hoje fotografo
tudo o que vejo que se parece ao Marcos, e lhe mando em seguida pelo telefone-esperto, assim
como o fazem muitxs amigxs. Ele também faz o mesmo para mim, assim como o fazem muitxs
amigxs.
Para além de eficientes, nossas trocas sempre foram e são muito carinhosas e, em mais de
uma ocasião, dividimos nossos bastidores em projetos que abordam a questão. Por exemplo, em
2017, participamos do debate “O Ateliê na Formação do Artista”, na Casa França-Brasil e, em
2016, a crítica e curadora de arte Luisa Duarte nos reuniu em um projeto editorial chamado
“Pacto Visual III”74. Na sinopse do livro, ela diz:

A premissa do livro que temos em mãos é a seguinte: um nome já conhecido, com uma
trajetória madura, indica um artista cujo percurso esteja em maturação ou cuja obra não
possua forte visibilidade no circuito. Assim, Marcos Chaves elegeu Luiza Baldan (...)
Por meio de entrevistas, somos levados a nos aproximar de processos de formação,
influências, trocas com colegas, todo um circuito de experiências que repercute nos
trabalhos tal como os conhecemos. Em comum, entre aqueles que indicam e nos
indicados, um mesmo compromisso com a obra que não está ancorado em parâmetros
externos. Estamos diante de trajetórias tecidas sem atropelos e imbuídas de um rigor que
caminha na contramão de uma postura diletante.

Marcos comenta sobre isso (p. 161): “Eu tenho uma afinidade muito grande com o
trabalho da Luiza, admiro muito sua sensibilidade. Se você pensar, a fotografia (...) é muito
diferente da minha, mas eu acho que teve uma interação aí, eu acho que aprendemos muito um
com o outro. Estamos muito conectados.”
E respondendo a perguntas de Luisa sobre exercício de observação e a relação com o
trabalho do Marcos Chaves, eu digo (p. 189):

Todo semestre quando começo o curso "Exercício de Observação com Fotografia", na


EAV Parque Lage, digo exatamente isso pros alunos. O que eu ensino lá é o que eu
pratico diariamente. Como aprender a ver aquilo que se vê todos os dias? Como deixar
que aquela rotina te ensine alguma coisa nova sobre você mesmo? Em geral as pessoas
não têm tempo nem paciência para olhar; são dependentes de um cartão de memória. Daí
você pega um Marcos Chaves como exemplo. Não existe monotonia na vida desse cara.
A urbe está o tempo todo conversando com ele nos detalhes mais sutis. Ele pode estar a
mil de bicicleta, mas mesmo na velocidade, é capaz de associar os letreiros laterais dos
ônibus ao trabalho do Collares. Inteligência do olhar é ser capaz de relacionar, associar
lé com cré para criar outra coisa, ver poesia nas coisas do dia a dia, nas pequenas
contribuições que as pessoas deixam por aí.
(...)


74
DUARTE, Luisa. Pacto Visual III. Rio de Janeiro: ID Cultural, 2016.

71
Eu não vejo o trabalho, mas através dele. Aliás, você, Lígia e Adolfo escreveram textos
belíssimos sobre a obra do Marcos ressaltando, de diversas maneiras, a sua pluralidade
poética. Eu tenho o enorme prazer de acompanhar a produção do artista há anos e de
vibrar por suas descobertas e conquistas; de rir a gargalhadas dos trocadilhos brilhantes e
das piadas frouxas; de admirar a sua sutileza de percepção, seu fino entendimento de
espaço e sua rápida capacidade de associação entre coisas aparentemente desconexas; e
de vê-lo, com a maior espontaneidade, incorporar a graça da vida ao seu trabalho,
devolvendo-a ao mundo com a mesma generosidade.

[Os retratos dxs artistas presentes no livro foram feitos por outro parceiro, Vicente de Mello,
proprietário de um dos apartamentos onde morei por dois anos no Rio de Janeiro, e que também é
amigo e colaborador de Marcos Chaves, como no trabalho Eu só vendo a vista, de 1998.]

O trabalho total, o trabalho que a gente está fazendo, é o trabalho


da nossa vida. Então o que eu acho também em relação a você ter trabalhado
comigo, eu ter trabalhado com o Antonio, o Antonio ter trabalhado
com o Goeldi, é que talvez esse conhecimento, essa coisa preciosa,
das vivências e das trocas, ela vem vindo assim desde o início da civilização.
Então é claro, o Antonio vai me dando ferramentas, que eu vou me apropriando,
usando delas, de certa forma você também deve ter aprendido comigo algumas
ferramentas que foram passadas pra mim e que eu de certa forma já digeri,
já olhei pra coisa de uma outra forma e é claro que a coisa vai sendo tocada
pra frente. O nosso trabalho é o trabalho da nossa vida, de como a gente
vai se aperfeiçoando como ser humano e isso é o mais importante.

De todas as amizades, talvez quem mais me reconheça nas imagens do cotidiano seja a
Gisele Camargo, e vice-versa. Nascida e criada no Rio de Janeiro, sempre manteve uma relação
com a cidade de “filme clichê” (palavras dela), caminhando pelas ruas e prestando atenção em
tudo, especialmente nas estranhezas relacionadas a espaços pouco habitados, tomando notas,
fazendo desenhos e fotografias, material que depois processa no ateliê.

Na cidade normalmente os espaços são todos muito aproveitados.


Quando você vê uma varanda, um terraço, uma área entre prédios
que não tenha ocupação mas ao mesmo tempo está ali definido como tal,
isso é muito estranho. É como se fosse um minideserto na cidade.75

Esses espaços descritos por Gisele, tão presentes também no meu trabalho de andarilha

75
Conversa com Gisele Camargo, 09.10.2019.

72
pelas cidades e que nos aproximaram em 2008 durante a exposição “Nova Arte Nova” (CCBB
Rio de Janeiro e São Paulo, curadoria de Paulo Venâncio Filho), são como os terrain-vague
descritos por Solà-Morales:

São lugares obsoletos nos que somente certos valores residuais parecem se manter
apesar de sua completa desafeição da atividade da cidade. São, em definitiva, lugares
externos, estranhos, que ficam fora dos circuitos, das estruturas produtivas. (...) São suas
bordas carentes de uma incorporação eficaz, são ilhas interiores esvaziadas de atividade,
são olvidos e restos que permanecem fora da dinâmica urbana. Convertendo-se em áreas
simplesmente des-habitadas, in-seguras, im-produtivas. Em definitiva, lugares estranhos
ao sistema urbano, exteriores mentais no interior físico da que aparecem como
contraimagem da mesma, tanto no sentido de sua crítica como no sentido de sua possível
alternativa.”
(SOLÀ-MORALES, 2002, p. 187-188)

Nesta linha de observação, em 2013, eu fiz o trabalho “Índice”, site-especific no foyer do


MAM Rio, evidenciando um dos minidesertos descritos por Gisele, um espaço invisibilizado no
exterior do museu em consequência da própria arquitetura. Uma parede cega diante de um lago
que cede espaço à ocupação informal por transeuntes que buscam onde se refugiar da chuva e da
própria visibilidade, sem serem incomodadxs. Essa desculpa geográfica se conecta à do projeto
Becos iniciado no ano 2000.

Estrangeiros em nossa própria pátria, estranhos em nossa cidade, o habitante da


metrópole sente os espaços não dominados pela arquitetura como reflexo da sua própria
inseguridade, do seu vago deambular por espaços sem limites que, em sua posição
externa ao sistema urbano, de poder, de atividade, constituem por sua vez uma expressão
física do seu temor e inseguridade, mas também uma expectativa do outro, do
alternativo, do utópico, do porvir.
(IDEM, p. 188)

No início de 2017 Gisele se mudou do Rio de Janeiro para a Serra do Cipó, interior de
Minas Gerais; se afastou da cidade cenário de muitas das suas especulações na pintura sobre as
construções da metrópole e seus embates com a paisagem urbana, para viver numa região
semidesértica datada do período Pré-Cambriano, caracterizada por rochas arenosas, ou
quartzíticas, formadas em ambientes de mares interiores há mais de 1 bilhão de anos76. E
comenta:


76
Rochas quartzíticas, ou quartzitos, são formadas quase somente por grãos de areia (sílica), que deram origem a
arenitos, fundidos e agregados por muitos milhões de anos de compressão e altas temperaturas. Esse processo de
transformação de rochas se chama “metamorfismo”. Disponível em:

73
A cidade te afasta muito da relação com o estar no planeta,
como se a cidade abafasse a sua relação com a natureza, te separasse,
ela te tira o céu, ela te coloca uma praia lotada de gente, ela te transforma
numa máquina de existir enquanto humano. O que me atraía mais na arquitetura
eram os lugares que têm uma relação muito direta
do homem com o seu modo de existir no planeta e ao mesmo tempo
do homem com o planeta em si, com a sua existência solitária.

Para Gisele, não há pintura sem exercício de observação:

Você fica até com o olho ardendo no final do dia,


como se ele trabalhasse muito.

Dos seus principais estudos recentes está a série Erosões, uma pesquisa meticulosa sobre
as quase invisíveis transformações diárias sofridas por uma montanha específica. Como que
afeiçoada a ela, uma musa, Gisele transfere para a tela as percepções daquela metamorfose que
presencia, sem necessariamente querer reproduzi-las em sua figuração, mas em sua ficção.

O mar já foi aqui, você vê essas marcações nas pedras. Geologicamente


é um lugar muito rico, muito antigo, dos mais antigos da América Latina.
Eu me aproximei das erosões muito naturalmente porque tem a ver com
as minhas caminhadas. Comecei a visitar uma erosão especificamente.
Têm vários tipos, passo por várias, entro e saio, mas essa que acabou virando
uma musa pra mim é uma erosão bem profunda na qual você vê muitas situações.
Essa que eu vou é perigosa de entrar, porque está erodindo, então você pisa
numa terra mole. Quando você entra numa erosão, se você vai com um olhar mais
seco, nada mais é do que uma parede com cores. Quando aquilo vira
um interesse, é quase assustador, é um altar, é você entrar em contato
com um profundo que está se mostrando pra você e ao mesmo tempo está
se refazendo. Tem muito a ver com o nosso inconsciente, nossa psicologia,
nosso universo interno. A erosão é extremamente rica pictoricamente falando
porque tem mil faturas, texturas e situações, cores e sobreposições.
São sedimentos de diversos lugares, água escorrendo. Essa erosão específica
tem uma pedra no meio que deve ter sido um pedaço não erodido e ela está lá.


<https://www.webcitation.org/6e2cuhgi7?url=http://circuitoserradocipo.org.br/aserra/geografia/>

74
Quando cai uma primeira chuva, todas as cores aparecem. Nos lugares mais
úmidos, nos mais fundos, é meio verde. A parte mais seca é branca;
tem uma parte ocre. Eu comecei a frequentar aquilo de uma forma muito leve,
deixando a minha sensibilidade absorver aquilo. Tirei muita foto.
Eu vou sempre e cada vez é uma erosão diferente porque está relacionado à
umidade.

Gisele se mudou da cidade para o cerrado. Ela não é mais uma turista, estrangeira naquele
cenário de montanhas que há tanto lhe interessava. Ela tampouco se contenta em olhar a vista de
longe. Sua observação é com o corpo. Há um deslocamento necessário que implica em uma
presença ativa na paisagem. Há um esforço, um cansaço, um suor, um deslumbre. A Gisele
inteira sente, se modifica e modifica a paisagem. Depois traduz, à sua maneira, um pouco de tudo
o que sentiu e interpretou, contaminada pela informação geológica e as histórias populares, para o
quadro que pinta à distância em seu ateliê, não no cavalete em frente ou dentro das montanhas.
As percepções mudam de lugar, de linguagem, em uma re-observação de memórias individuais e
coletivas que foram experimentadas enquanto parte integrante da paisagem.

A erosão é uma paisagem sedimentada de histórias sobrepostas.


É quase o oposto de um Cézzane porque é uma parede plana e enrijecida
com uma densidade histórica. Toda erosão tem uma ficção e aconteceu
por alguma interferência, de animais, de homens, de caminhos de água que
passaram por ali. É o histórico de algum evento mecânico.
Tem uma estrada no meio do nada, que foi construída entre dois prefeitos para
conectar duas cidades. Era para ser uma estrada secundária, mas com o passar
dos anos, foi aumentando a circulação de carros e começou uma erosão.
Como eu trouxe isso pra pintura? Além de trazer isso dentro de mim,
eu tirei muitas fotos, coloquei no chão, preguei algumas na parede,
e comecei a pintar a partir disso. Nesse momento, eu comecei a trabalhar
com um grau de abstração, apesar de não acreditar que essa parte sensível
seja tão abstrata assim. Ela tem um corpo. Eu começo a marcar o trabalho,
um desenho, a partir de uma das fotos, mas sem olhar muito. Eu entro com
camadas de cores mais densas, daí tem que esperar secar pra eu voltar.
Daí tem um segundo momento, que são outras cores, com outra marcação.
No meu processo pictórico vou fazendo uma sobreposição de camadas para só
no final eu começar a tirá-las, como num processo artesanal de pátina.
Na pintura eu vou deixando muitas e muitas camadas de tinta e fui percebendo
que a própria pintura virou um processo de erosão. O meu olhar pras fotos é só

75
uma contaminação para me colocar na erosão de novo, porque o processo
pictórico virou uma erosão em si e eu não preciso mais olhar as fotos.
As referências são pra me colocar lá de novo, pra me transferir de lugar.
A erosão é uma parede que está se abrindo pro sol e construindo uma outra
coisa. Uma cachoeira é uma erosão. A erosão está sempre em transformação
e te coloca em contato com o fundo da terra. Ao mesmo tempo em que você está
na superfície caminhando, você entra naquele buraco e está no fundo da terra.
Pra mim conecta totalmente com o planeta.
“Erosões” é um trabalho sem fim; é uma busca por essa parede paisagem.
Cada erosão me mostra um negócio diferente e eu quero ver se eu consigo
render, pensar, desenvolver por um tempo, pelo menos uns dois anos,
porque são trabalhos muito demorados, para poder desenvolver o máximo
dentro da perspectiva da erosão em si.

Suspender os conhecimentos engessados, retomar o contato primordial do homem com


o mundo, envolve também uma crítica aos modelos corporais tradicionais
e a reformulação da noção de corpo. Expondo-nos o papel de uma consciência que não é
intelectual, mas sim corporal, Merleau-Ponty não só descreve o fenômeno da percepção,
localizando-o entre um mundo natural e um mundo cultural, como também critica os
modelos dicotômicos, que permeiam sobretudo as filosofias tradicionais, modelos que
separam de forma estanque o sujeito do objeto e o corpo do espírito. Ao retomar
o contato que marca nosso vínculo inicial com o mundo, isto é, o fenômeno da
percepção, ele nos mostra que a relação entre sujeito e objeto, aquele que sente
e o sensível, o eu e o outro é ambígua. Em outras palavras, embora seja possível falar de
polos diferentes, não é possível determinar onde um começa e onde o outro acaba. Corpo
e mundo estão inalienavelmente imbricados. Essa conexão é exposta sobremaneira
quando o filósofo retoma o trabalho do pintor e a forma como ele emprega o seu corpo
em sua arte.
(CANDIDO, 2019, p. 4)

Aqui cabe então a pergunta: se as pinturas não derem certo, o resultado improdutivo
invalida a experiência ou extingue o exercício de observação? Será que uma observação de um
fenômeno efêmero e ao mesmo tempo infindável, terminará um dia?
Como que retornando a certas motivações do seu trabalho anterior, Gisele levou as
erosões de Minas Gerais para uma galeria em São Paulo. Criou um minideserto na cidade, e nele
também incluiu brutos e minimundos 77 . Ficcionalizou a paisagem onde vive atualmente,
contrastando-a com uma urbanidade de outrora. Deslocou as montanhas para o centro da
metrópole, para um espaço interior de paredes de concreto, no subsolo do Instituto de Arquitetos
do Brasil. Sergio Martins, em seu texto crítico, coloca outras referências imagéticas em jogo:


77
Títulos dos trabalhos da exposição.

76
(...) As pós-paisagens da série Erosões. Entre a paisagem que ainda não é
e a paisagem que já não se enquadra no que entendemos por paisagem. (...) Antes,
o quadro fazia da parede uma vista ou paisagem; aqui, a paisagem faz do quadro parede.
Quadradas e de proporção humana – um metro e oitenta –, as telas têm um
antropomorfismo de matiz minimalista, um pé fincado no espaço do espectador, uma
presença física algo intrusiva, tanto mais pela espessura acidentada das camadas de tinta.
É como se trouxessem para dentro da sala, ainda que numa dimensão transportável, algo
daquele paredão de pedra submerso no cerrado. (...) Seria plausível ver algo de Monte
Saint-Victoire na descrição que acabo de esboçar, mas outro acidente geográfico talvez
qualifique melhor o que está em jogo. Afinal, como (...) não lembrar do Pico do Cauê,
transformado ele próprio num buraco pela voracidade da exploração do ferro na Itabira
de Drummond, não muito distante da Serra do Cipó? Como qualquer outro signo,
a paisagem refere-se a algo ausente. Daí que ela seja capaz não só de confirmar posses
atuais, mas também de prometer posses virtuais. Mas isso também significa que todas
essas posses são assombradas, em alguma medida, pelo seu oposto: a perda. (...) “Itabira
é apenas uma fotografia na parede / mas como dói”.
(MARTINS, 2019, s/p)

Em 2019, Gisele também trouxe erosões, brutos e minimundos para uma galeria em
Berlim que tive a oportunidade de fotografar. Perto do fantasma do antigo muro, uma temporária
parede erodida emergiu.

Bastidores II: corpo de letras

Além da relevância do contato direto com artistas interlocutorxs, identifico na minha


prática uma relação de bastidores do processo criativo com um corpo literário que provém de
leituras empreendidas ao longo da vida, de livros de cabeceira ou títulos específicos que
acompanharam projetos. Puxando o gancho do Drumond deixado por Sérgio Martins ao falar de
Gisele Camargo, a literatura é um banco poético referencial, talvez mais do que qualquer outra
forma de linguagem. No meu caso, destaco aqui dois autores em particular: João Guimarães Rosa
e Mário de Andrade.
Durante a residência da Península, levei comigo um exemplar de Grande Sertão:
Veredas, de João Guimarães Rosa. O clássico da literatura brasileira era um calhamaço que eu
nunca tinha tido a oportunidade de me debruçar. A imersão proporcionada pela vivência efêmera
do projeto, a solidão inerente àquele modo de vida e o tempo morto ali instaurado convidavam à
leitura, que até aquele momento se configurava como uma companhia mais do que um manancial
de referências. Nunca pensei que o vocabulário e as imagens de Rosa influenciariam diretamente
o trabalho, mas a recorrência do rio como motivo de viagem, alusão cartográfica e mística, fluxo

77
de deslocamento, de vida e morte, fluidez ou vereda propriamente dita, foi um estopim para o
desenvolvimento de De murunduns e fronteiras e o meu embrenhar na lagoa e nos canais que
conectavam a Península a zonas limítrofes.
Em entrevista de 1965 a Günter Lorenz78, Rosa diz:

As aventuras não têm tempo, não têm princípio nem fim. E meus livros são aventuras;
para mim, são minha maior aventura. Escrevendo, descubro sempre um novo pedaço de
infinito. Vivo no infinito; o momento não conta. (...) Quando escrevo, repito o que vivi
antes. (...) gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. O crocodilo vem
ao mundo como um magister da metafísica, pois para ele cada rio é um oceano, um mar
da sabedoria, mesmo que chegue a ter cem anos de idade. Gostaria de ser um crocodilo,
porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem. Na superfície
são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranquilos e escuros como os
sofrimentos dos homens. Amo ainda mais uma coisa de nossos grandes rios:
sua eternidade. Sim, rio é uma palavra mágica para conjugar eternidade.

Rosa transcrevia as suas observações em uma caderneta como que registrando imagens. A
variação de tempo entre os deslocamentos, as anotações e as consequentes produções literárias
era extensa. A imagem no fim. De cada excursão, resultavam muitas histórias, não apenas um
único relato orientado cronológica ou geograficamente. Pelo contrário, o autor construía seus
próprios itinerários, muitos deles na imersão dos cursos dos rios, na grande geografia do sertão,
ainda que em parte tratando-se de um sertão particular, afetivo, não fiel aos mapas. Através dos
cursos fluviais, Rosa fotografava verbalmente passagens, paisagens e introspecções, o que acabou
afetando os meus devaneios na vivência na Península e em trabalho subsequentes.

Mas eu não meditava para trás, não esbarrava. Aquilo era a tristonha travessia,
pois então era preciso. Água de rio que arrasta.79

A residência na Península foi o primeiro projeto em que me relacionei com a água como
meio de transporte, comunicação, psicologia, hidrografia, crítica urbana e memória. Também foi
o primeiro em que tomei consciência da literatura como alicerce de produção de pensamento e
conteúdo.
Anos mais tarde, durante a preparação de Perabé, além das pesquisas fatuais, também
mergulhei em algumas obras literárias e autores como Ítalo Calvino, Paulo Prado, Roberto
Pompeu de Toledo, Edith Porchat, Hernâni Donato, J. Capistrano de Abreu, São João, Hans

78
Entrevista com Guimarães Rosa, conduzida por Günter Lorenz no Congresso de Escritores Latino-Americanos, em
janeiro de 1965 e publicada em seu livro: Diálogo com a América Latina. São Paulo: E.P.U., 1973.
79
ROSA, J. Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 299.

78
Staden, Pero Vaz de Caminha, sem contar as inúmeras fofocas de bar, os contos fantásticos, as
informações turísticas, propagandas, músicas, etc.; frequentei bibliotecas, colecionei palavras,
histórias, memórias, sons e paisagens que, só depois, com certa distância, foram processados
como conteúdo. No entanto, depois de Rosa, a maior influência neste projeto certamente foi O
turista aprendiz, de Mário de Andrade, pelo caráter experimental da escrita proveniente de uma
excursão de corpo presente ao longo dos rios. O autor saiu de São Paulo angustiado com a partida
e rumou pelo interior do Brasil, desfamiliarizado com o que via, para descobrir a si e x outrx,
compatriotas e estrangeirxs em um mesmo projeto de país, em “um jogo permanente e irônico de
similaridade e diferença, do familiar e do estranho, do próximo e do distante.”80 Muito menos
ambiciosa, Perabé me levou a São Paulo mensalmente durante quase um ano sem jamais perder o
frio na barriga de quem se lança ao desconhecido. Ainda que viajante frequente da rota aérea
Santos Dumont/Congonhas, cada sobrevoo pela Baixada Santista gerava uma aflição
incontrolável ao deparar-me com o paredão da Serra do Mar que precederia por alguns instantes a
aterrissagem na capital. Imaginar o cruzamento a pé daquela imensidão úmida e escura era
aterrorizante, ainda mais depois de ler tantos relatos tenebrosos dos primeiros que tentaram
atravessar a "muralha" no sentido oposto, do mar ao Planalto de Piratininga.
Partir e deixar para trás o lugar seguro, conhecido, afável, para empreender viagem por
caminhos nunca vistos, narrados por tantxs como nuviosos, não se tratava de escapismo, porém
de um exercício de autodescoberta, auto-aprendizado e imaginação. Tal ansiedade também estava
presente em Mário quando, em diversas ocasiões, confessou ser um antiviajante: “Mas pro
antiviajante que sou, viajando sempre machucado, alarmado, incompleto, sempre se inventando
malquisto do ambiente estranho que percorre, a releitura dessas notas abre sensações tão
próximas e intensas que não consigo destruir o que preservo aqui.”81 Em homenagem ao autor,
escrevi: “A angústia da pré-viagem, andradiana, e a satisfação de correr mundo, de nadar mundo
(...).”82 Satisfação tal que inibe a angústia, diante do encantamento com as pequenas coisas do
caminho, pelo tempo relentado, pelo silêncio das caminhadas e da observação que, aos poucos,
vai se familiarizando e se infestando da imaginação.
Mário, que de aprendiz tinha pouco, além de turista era fotógrafo e codaquizou várias

80
Clifford, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1998, p. 167.
81
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades, 1976, p. 49.
82
BALDAN, Luiza P. Perabé, 2015.
Disponível em: <https://files.luizabaldan.com/Texto-LuizaBaldan-Perabe.pdf>

79
situações e pessoas durante a sua viagem etnográfica: “Busquei São Paulo no mapa, / Mas tudo,
com cara nova, / Duma tristeza de viagem, / Tirava fotografia...”83 O autor se deixou guiar pelo
fluxo das águas de rios tão grandes quanto o mar, e relatou a viagem embaralhando o vivido e o
inventado. Percebi que eu buscava construir um tipo de relato semelhante, sem me importar com
o repasso fiel dos acontecimentos, privilegiando os intervalos de tempo entre o acontecido e o
narrado, o visto e o rememorado; O turista aprendiz, o etnógrafo amador, a escrita e a fotografia
que buscam registrar o estranho do cotidiano, o estranho dx outrx e o estranho nosso,
contrastados.
Fotografia e texto são dois recursos produtores de imagens. Digamos que em O turista
aprendiz e em Perabé exista uma retroalimentação entre eles. Tratando-se de projetos
empreendidos durante viagens, a princípio o texto é mais imediato da ação do que a fotografia.
Utilizando câmeras analógicas em circunstâncias críticas de temperatura e umidade, sem muita
constância entre a revelação dos negativos e a ampliação fotográfica, é fundamental desapegar-se
da imagem capturada e usufruir da memória visual como alicerce do texto. Nas crônicas/diário de
Mário, as fotografias apareceriam posteriormente para ilustrar o que foi escrito. Telê Ancora
Lopes, pesquisadora e colaboradora sênior do Arquivo Mário de Andrade do IEB-USP, comenta
sobre o processo criativo de Mário:

A análise dos documentos do processo criativo aponta quatro diários. Dois, no decorrer
da excursão. O diário (...), disperso em papéis diversos, do qual poucos fólios restaram,
depois de transferido para as versões que moldam a versão final datilografada, sob
a chancela do “Prefácio” datado de “30-XII-1943”. Ele coexiste com um segundo,
imagético-textual, constituído dos negativos vinculados, ao que se presume, a um
caderninho de bolso, onde o fotógrafo anota de imediato, a lápis preto, os dados relativos
às tomadas que concretiza com sua câmera. Vale dizer, os lugares, as pessoas,
acontecimentos e informações de ordem técnica, sobre a luz – “sol” –, abertura do
diafragma, hora e minutos exatos. Exemplifico: (...) “Casa telada da/ Madeira-Mamoré/
Porto Velho – 11/VI-27/ Obj. 2 Sol 1/ 13 e 10”. As anotações destinam-se a legendar as
imagens, depois dos negativos revelados em São Paulo, quando o caderninho, cumprida
a missão, é descartado. Ao regressar, o escritor e fotógrafo, ainda em 1927, empenha-se
em mais dois diários: o imagético-textual e o textual propriamente dito. O primeiro
prende-se às imagens reveladas em preto/branco e viragens, acopladas às respectivas
legendas no verso, a lápis. Estas, em uma primeira etapa da escritura, geralmente
transpõem as informações presentes no caderninho citado, e em uma segunda −
materializada no traço mais leve −, glosam as mesmas imagens e o exercício fotográfico,
ao construir um texto fragmentário, multifacetado e híbrido, como todos os diários. Nele
viceja tanto o registro que se propõe fidedigno, como a criação literária que exerce
o humor, o lirismo e a metalinguagem.84

83
ANDRADE, Mário de. Troada, em “Mário de Andrade: fotógrafo e turista aprendiz.” São Paulo: IEB, 1993, p. 17.
84
LOPES, T. Ancora. O turista aprendiz na Amazônia: a invenção no texto e na fotografia. Disponível em:
<http://revistacarbono.com/artigos/08-turista-aprendiz-teleancona/>

80
Logo que iniciei Perabé, sabia que, diferente de projetos anteriores, não me importava o
rigor da fotografia profissional. Como os trajetos e caminhadas costumavam ser longos, optei por
não levar equipamentos caros e pesados que demandassem um esforço adicional. Aproveitei para
usar uma câmera portátil semiautomática com filme preto-e-branco 35mm. Por desprender-me da
expectativa do resultado imagético, minha atenção ficou totalmente dirigida ao presente, aos
estímulos sensoriais e às mais sutis aparições de luz. Com o tempo fui fotografando cada vez
menos, ficando mais seletiva com o tipo de registro. Havia um interesse especial por ruídos na
paisagem, qualquer coisa que fugisse ao habitual, reconhecendo "um meio circundante de som e
linguagem para admitir o silêncio"85. Fotografava o excesso ou a ausência de som, principalmente
o silêncio, ou registrava o movimento do caminho, fazendo imagens sequenciais que pudessem
dar conta do meu deslocamento.

O silêncio continua a ser, de modo inelutável, uma forma de discurso (em muitos
exemplos, de protesto ou acusação) e um elemento de diálogo. (...) A arte de nosso
tempo é ruidosa, com apelos ao silêncio. (...) Reconhece-se o imperativo do silêncio,
mas continua-se a falar da mesma forma. Quando se descobre que não se tem nada
a dizer, procura-se uma maneira de dizer isso.
(SONTAG, 1987, 18-19)

Considerem-se as diferenças entre OLHAR (looking) e FITAR (staring). Um olhar é


voluntário e também móvel, crescendo e decrescendo em intensidade à medida em que
os seus focos de interesse são percebidos e não esgotados. O fitar tem, essencialmente,
o caráter de uma compulsão: é estável, não-modulado, "fixo". A arte tradicional convida
a olhar. A arte silenciosa engendra o fitar. A arte silenciosa – ao menos em princípio –
não permite liberar-se da atenção, porque nunca houve nenhuma solicitação dela. O fitar
talvez seja o mais afastado da história e o mais próximo da eternidade que a arte
contemporânea é capaz de atingir.
(IDEM, 23)

Conforme fui ganhando intimidade com a paisagem, domesticando-a de alguma maneira,


tanto o trabalho quanto eu fomos sendo gradualmente transformados. Com o auxílio de um
caderninho ou do telefone-esperto, anotava palavras, sensações e assuntos para pesquisar e
escrever a posteriori. A escrita nascia separada da fotografia, apesar de guardar em si muito da
memória visual.
Os negativos fotográficos foram posteriormente digitalizados e editados de acordo com
um percurso ficcional da viagem que pudesse acompanhar o texto. A instalação audiovisual foi

85
SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos / Trad. João Roberto Martins Filho. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 18.

81
composta por uma sequência de fotografias projetadas, narradas a quatro vozes em off e gravadas
em estúdio. Os narradores foram escolhidos pelo envolvimento afetivo com lugares ou situações
do projeto, sendo a minha a única voz feminina, já que não queria que o relato recaísse errônea e
exclusivamente no autobiográfico. No áudio, não há qualquer incidência do som ambiente das
caminhadas. Os registros sonoros coletados in situ foram transcritos no texto ou nas fotografias.
Acredito que Mário tenha sido uma das mais fortes influências para a concepção de
Perabé por construir uma narrativa em que o viajante se deixa guiar por um curso fluido da
natureza, sem considerar aqui sua possível busca por um aparentemente doméstico, estranho ou
folclórico. Considero x viajante sempre umx estrangeirx, x exóticx a ser descobertx por si mesmx
e pelx outrx: “... tornar estranho o que parece familiar; ... tornar-se observador observando
aqueles outros que são nós mesmos – e, no limite, esse outro que é cada um para si mesmo.”86
Deste modo, Perabé e O turista aprendiz podem ser considerados autorretratos desenvolvidos
durante um intenso exercício de observação em uma longa jornada, ou seja, narrativas de
deslocamento tanto geográfico quanto subjetivo. “Mas todo etnógrafo não é um pouco surrealista,
um reinventor e um ‘recombinador’ de realidades?”87 “O que se precisa, portanto, é de uma
etno(GRÁFICA) poética...”88


86
Jean Jamin em A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX / James Clifford. Rio de Janeiro:
Ed. UFRJ, 1998, p. 164.
87
CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ,
1998, p. 169.
88
Idem, p. 175.

82
Reintrodução
.
.
.
Dia 1. Terça-feira, 10:00h. Não sou aposentada nem desempregada nem tenho pressa. Sou mãe e
preciso levar a minha filha para brincar. Chego com ela a uma praça desconhecida e deixo as nossas
coisas em um banco qualquer. Não demoro em perceber que o lugar não é de todo irreconhecível.
Outras pracinhas me vêm à lembrança, especialmente as da infância, uma época em que frequentá-las
costuma ser um hábito rotineiro e inquestionável, como agora novamente. Se trataria então de um
não-lugar em sua aparição urbana genérica? Ou seria bem um lugar recheado de histórias, ofertando
um senso de pertencimento? Mesmo aqui sendo tão parecido a acolá, o reconhecimento inicial é um
tanto ambíguo. Tudo parece ser igualmente estranho e familiar. Há um certo desconforto talvez pela
praça estar cheia demais. Sem saber muito bem o que fazer ou como me posicionar, acompanho a
minha filha em direção aos brinquedos. Não tenho como sentar em outro lugar que não no balanço
ao lado do dela. Balançamos juntas, em direções opostas, e deixamos que nossas mãos se toquem no
caminho. Olho ao redor, tudo muito rapidamente, até que volto às ações da minha menina.
Sentamos na gangorra, uma frente à outra, sendo que ela olha as montanhas e eu o mar, mas quase
sempre nossas miradas se encontram. Sigo os passos da criança que ainda titubeia para subir sozinha
os degraus do escorregador e vejo a minha própria sombra sobre ela, tentando não interferir em seus
movimentos mas garantindo-lhe segurança. Tento prever as suas ações. O gesto, por si só, configura
uma espera, a conquista ou a queda. Com o passar dos minutos, ambas dominamos de alguma forma
aquele espaço que ocupamos. Sabe quando as luzes se apagam repentinamente e se instaura a
cegueira no breu? As pupilas gradualmente se dilatam no ímpeto de observar além? Como se,
faminta, a visão precisa se expandir, não pode evitar... quer dominar o espaço, sentir que está no
presente e não num sonho; desvelar o fantasma, distinguir contornos e vislumbrar interstícios entre o
aparente vivível. Já os demais sentidos, tão acostumados à insubordinação imposta pela velocidade
da luz, também passam a protagonizar. Bagunçada a ordem humana, o medo da paranoia e da
claustrofobia, o corpo é então capaz de sentir conforto, mesmo quando na escuridão. Somos capazes
de escutar as estranhezas do dentro. Pergunto o que faz a penumbra ser tão temível e fascinante?
Lembro de Blanchot: "Queria ver algo a pleno sol, de dia; estava farto do encanto e do conforto da

83
penumbra; sentia pelo dia um desejo de água e de ar. E se ver era o fogo, exigia a plenitude do fogo;
e se ver era o contágio da loucura, desejava ardentemente essa loucura"89.

Dia 2. Quarta-feira, 16:00h. Retornamos à mesma praça. Sob uma luz totalmente diferente do dia
anterior, ainda não reconheço o lugar, com exceção do banco para o qual regresso para deixar as
nossas coisas e que deixou de ser um banco qualquer para tornar-se aquele banco. Busco me libertar
da aparente igualdade entre o aqui e o acolá. Seria a fundação de um lugar? Como explicar o sentir-se
pertencente a qualquer lugar desde que na presença daquela pessoinha? Sento, talvez confiante
demais nos avanços aventureiros da menina, e contento-me com o conforto do banco e o estar
estando, a duração, enquanto ela desbrava independente os brinquedos. Minha filha sai correndo em
direção ao mesmo balanço de ontem e aponta para que eu me sente ao seu lado. “Mamãããe!” Decido
então sentar na mesma direção que ela, para observar a mesma cena, apesar da leve diferença de
ângulo. Balançamos de mãos dadas e me tenciono para acompanhar a trajetória mais curta do seu
balanço. Volto para o banco e a menina decide sentar-se ao lado dos meus pés, na areia, para brincar
com um baldinho e as folhas secas da amendoeira que nos sombreia. Sinto um pouco de frio e noto
a pele-de-galinha dos nossos braços. Pego logo os casacos para nos agasalhar. Deve ser da sombra da
árvore que ilude o sol por completo. Observo atentamente o que há ao redor, de ruídos a aromas, e
ultrapasso o superficial de um conjunto de coisas que de fato me são desconhecidas. O perfume
esfomeante da pipoca doce, o assovio pendular do balanço, a mão invisível que faz girar o carrossel,
o repouso da gangorra, os anos acumulados ao redor da mesa de dominós, a declaração de amor
inscrita no tronco da amendoeira que nos sombreia. Admiro esses pequenos acontecimentos
cotidianos e nada exclusivos de uma praça qualquer que decidimos frequentar; algo de simplicidade.

Dia 3. Quinta-feira, 11:30h. Retornamos. Um passeio rápido antes do almoço. Já sabemos ao certo
para onde ir. A pracinha mapeada. Eu passo pelo banco para deixar as nossas coisas e me direciono
ao balanço onde a menina já está me esperando. Os corpos cada vez mais ativos. Minha filha ganha
mais confiança nos brinquedos. Eu fico menos receosa. Ela sobe os degraus do escorregador, senta
sozinha no topo da inclinação e desce controlando a sua velocidade usando seus pezinhos como
freios contra as laterais do tobogã. Chega ao fim, repousa os pés no chão e sai andando, orgulhosa de
si mesma. “Bravo!” Ela balbucia algumas palavras desconexas e experimento gravá-las no telefone-

89
BLANCHOT, Maurice. La Folie du jour, Montpelier, Fata Morgana, 1973, p. 21. Extraído do texto de Georges
Didi-Huberman, Quando as imagens tocam o real, traduzido por Patrícia Carmello e Vera Casa Nova, disponível
em: <https://issuu.com/carlosdmedeiros/docs/didihuberman-imagem-toca-o-real>

84
esperto, mas quando consciente do meu gesto, se envergonha, sorri, gagueja. Gravo de qualquer
jeito, aaahhhhnnnn, éééééé, ahhhhhhhhhhh. Uso o mesmo telefone para fotografar um susto: o
derrapar da bicicleta, seu rastro curvilíneo na areia e muita poeira levantada. Felizmente ninguém se
machucou. Após o espanto, a falta de ar, o peito dolorido, um estado pós anestesia, como se o
mundo todo se aquietasse. Movimentos ficam mais lentos, menos barulhentos, tanto que sou capaz
de perceber o estalar discreto das folhas da amendoeira em seu baile suave que lampejam a praça.
Aproveito para filmar com o mesmo telefone os ademanes da árvore e, sem querer, copio seus
trejeitos. A essa altura, já estou sensível a quase tudo o que se passa ao meu redor. A lente do
telefone se funde aos meus olhos. Rostos se diferenciam, vozes se sobressaem. Acabo fitando
novamente a minha garotinha que, sozinha, se entretém com muito pouco. Sem brinquedos, ela se
diverte construindo montinhos, provando a areia, colecionando pedras e folhas. Já inconsciente de
ser gravada, sem vergonha, fala a sua língua própria, gesticula, como se na presença de uma amizade
invisível. Nuno nuno! Toana! Meena!!! Mamãe e Piiar! Toágua! Coto! Tudo! Imamáááiss! Decido anotar o seu
monólogo no bloco de notas do telefone, esse aparato-prótese, definitivamente uma extensão do
meu corpo naquele momento, descrevendo das mais diversas formas a experiência vivida sem se
limitar ao mero registro de acontecimentos visuais. Sento então ao lado da menina e finjo provar a
areia e coleciono pedras e folhas. Ela nota o meu interesse e me mostra a sua coleção. Começamos a
catar juntas de tudo o que sai da terra, até passar o pipoqueiro e nos lembrar da hora do almoço.

Dia 4. Sexta-feira, 15:00h. Retornar. Retornar sem esperar que o ontem se repita, mas reconhecer
quando o ontem se repetir e não se apegar demais às lembranças; reconhecer os avanços dos dias, a
desenvoltura da criança que aprende demais, e da mãe que tenta se desapegar e confiar nas aptidões
da criança. Rever a minha garotinha dos montinhos de terra, mesmo que hoje ela tenha preferido
subir no trepa-trepa para se pendurar como uma morceguinha e que tenha arrumado companhia para
dividir as aventuras. Reconhecer como é bom o que se torna reconhecido. Aprender da repetição e
deixá-la passar. Estar atento ao acaso. Ganhar intimidade com animados e inanimados e se permitir
afetar por eles. Sentir-se em casa.

Dia 5. Segunda-feira, 10:48h. Retornar sozinha. Minha filha está na escola e decido voltar pra praça
mesmo sem ela. Me encaminho para o nosso banco para tomar um pouco de sol. De repente um
grupo de crianças de idade semelhante à da minha se aproxima de mim e começa a se insinuar,
sorrindo, demonstrando suas habilidades nos brinquedos. Uma gira no poste, outra entra e sai da

85
piscina de areia, o outro sobe numa prancha de madeira. Todos me olham, me observam. Sentirão o
cheiro de leite? Reconhecerão no meu rosto, a maternidade? Lembro da gravidez, quando os
cachorros se acercavam a mim, sentavam ao meu lado. O que há no bicho? O somatório de gritos e
risadas e choros é melodia pros meus ouvidos. Há alguns anos esta mesma praça seria um martírio.
Aqui sentada no nosso banco, deixo a pressão do corpo agir sobre ele, sozinha mas nem tanto,
queimo a pele nesse sol de outono, os pés descalços sobre a terra, sinto uma alegria genuína.
Também sinto saudades. Percebo a reconexão comigo mesma, o individual, o meu corpo. De tanto
em tanto, olho pro lado como se a minha filha estivesse no balanço, desviando a minha atenção, daí
lembro que ela está na escola e tudo bem. Reparo novamente na amendoeira quase sem folhas do
outono e seus múltiplos braços dançando com o vento. Copio os seus ademanes e danço também,
primeiro sozinha, depois seguida pelo grupo de crianças que se anima em me imitar. Todxs rimos,
todxs juntxs.

Dia 6, 7, 8... Terça, quarta, quinta... Retornar, e assim sucessivamente, até reconhecer o outro, até que
o outro lhe reconheça, até me reconhecer em mim mesma, na minha filha. Ou até que o lugar não
lhe diga mais nada ou que já não se possa escutar. Até deixar de entender e partir pra outra. Atentar é
distrair.
.
.
.

86
Capítulo 4. Outro corpo presente

Corpo universo

No meio da escrita deste texto nasceu Pilar. Nas gestações anteriores, interrompidas
precocemente por vontade própria ou natural, houve a rejeição do corpo estranho, mas só cheguei
a sentir de fato a estranheza do meu corpo, uma estrangeira para mim mesma, quando gerei a
Pilar. Minha filha foi desejada desde a concepção, o que não me livrou do medo abissal do
desconhecido que se confirmara junto ao Beta hCG e que se reafirmara na primeira
ultrassonografia, ao tentar compreender aquela mancha no televisor como sendo um projeto de
feto. Aquele óvulo, que viria a ser o meu feto, também se confirmou como sendo biologicamente
uma menina. Tal revelação talvez tenha sido a primeira das muitas grandes emoções
incontroláveis e o desejo genuíno e impossível de abraçar a minha própria mãe. Passei a sentir as
mais diversas transformações que pouco a pouco se fizeram notórias, diariamente, de dentro para
fora. Durante aqueles nove meses, dos meus tecidos que não enxergo e que só reconheço por
representações; de todos os alimentos que não rejeitei, não fui proibida de ingerir ou que aprendi
a gostar; das inseguranças, anseios e alegrias involuntárias; do exercício de observação do
Ashtanga yoga90; das conversas com o mar e minhas profundezas, surgiu uma outra pessoa.

A mãe projetava-se como um planeta. Parecia um mundo em si.91

A cabeça de Pilar tentou muitas vezes atravessar o portal da minha vagina contra a
elasticidade de um enorme cordão umbilical que insistia em querer mantê-la dentro de mim. Senti
o medo imenso, de matar a minha filha por falta de forças de expulsá-la para o mundo. Pari uma

90
O Ashtanga Yoga é um sistema integral, que inclui a filosofia do yoga integrada à prática de asanas (posturas
físicas). É uma prática individualizada, aplicada de maneira terapêutica de acordo com a condição de cada um. É
uma ferramenta de auto-observação, que nos conduz a uma limpeza física e mental, processo que nos traz a
consciência do corpo-mente, ajudando-nos a perceber quem somos, “aqui e agora”. A prática tem como conceito
principal o Vinyasa, que é a união da respiração e movimento, como uma só coisa. Desta forma, a todos os asanas
são atribuídos uma quantidade de Vinyasa, e o propósito é a purificação de todo o sistema e órgãos. Vinyasa também
significa uma abordagem gradual passo a passo para aprender algo. Para cada passo, há uma respiração. Assim,
através da prática de Yoga pode-se alcançar um estado mental meditativo.
Disponível em: <http://yogakorunta.com.br/ashtanga-vinyasa-yoga-chile>
91
ANDUJAR, Claudia. Yanomami. São Paulo: Editora Praxis, 1978, s/p. Frase que acompanha a imagem Vila de
Wakatha u (1974).

87
estrangeira e somos duas tentando nos conhecer para sempre. Pari um ser que nasce e segue sob a
minha responsabilidade, possivelmente por muitos anos. Daqui até a morte, nunca mais serei só
eu nesta encarnação. Também pari traumas, sabe-se lá quais. Para mim, não há experiência
comparável, simplesmente não há.

A expressão "corpo estranho" faz sentir a consistência própria do estranho. Não somente a sua diferença,
mas também e sobretudo que essa diferença é feita por um corpo – onde essa palavra adquire
todo o seu valor de concretude resistente, de dureza autônoma e até mesmo reduzida
a uma suficiência que, cedo ou tarde, acaba tendo que declarar hostil a todo outro corpo.
(...) Um corpo só é penetrável segundo uma das duas lógicas opostas, que são a de assimilação
e a da destruição. (...) (Falar de penetração sem designar a ameaça invasiva, militar ou médica,
é falar de amor. No amor, há mistura sem assimilação ou dilaceração. Há corpo um no outro e um para o outro
sem incorporação ou decorporação. "Amor" quer dizer mistura de dois que deixa fora de jogo
todas as armadilhas do um). (...) Todo corpo é estranho para os outros corpos: ser-estranho é inerente
à corporeidade. (...) Um corpo não é somente estranho para os outros. Ele só o é sendo igualmente estranho
para si mesmo. Um corpo se estraneia, se estranha. É a estrangeirice e a estranheza para si
de uma alma jorrada, espelida, do não lugar do espírito. (...) Meu corpo não é somente minha pele
virada para fora: ele já é ele mesmo o fora em relação a mim, o fora em mim e para mim – oposto a mim
por mim mesmo, por me distinguir da unidade. Estranho estrangeiro para os outros e de início a esse outro
que eu me torno graças a ele. (...) Sim, eu-fora. Não "fora de mim" pois, na verdade, dentro não há "eu"
mas a lacuna onde todo o meu corpo se recolhe e pressiona para fazer voz e declarar-"se", se reclamar
e chamar, se desejar desejando o eco que talvez outros corpos emitirão em torno dele. Estranho estrangeiro
para si mesmo em seu apelo de si mesmo, senão, ele não poderia chamar-se, ele não poderia exprimir
em toda a sua extensão o pedido de encontrar esse estranho estrangeiro. (...) Corpo é vinda a si
do desconhecido, irrupção e intrusão de um outro corpo, ingestões, intussuscepções, encarnações,
reconhecimentos e gratidões, repulsa e rejeições.92

Antes de seguir, é importante ressaltar a diferença entre maternidade e maternagem.


Maternidade é o biológico da mãe, é o gerar, o gestar e o parir. Maternagem é a criação do laço
afetivo com a criança, seja pela mãe biológica ou por quem venha a ser o vínculo ativo,
independente de classificação de gênero, em toda a duração desse aprendizado que se inicia no
nascimento e que se estende ao longo do processo eletivo de cuidar, de amar, de proteger.
Pesquisas indicam que xs cuidadorxs realmente envolvidxs estão sujeitxs, assim como ocorre
com a mãe, a um aumento surpreendente dos níveis de ocitocina no organismo, o chamado


92
NANCY, Jean-Luc. Corpo, fora. Trad. Márcia Schuback. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015, p. 42-48.

88
“hormônio do amor”, responsável por grande parte da conexão sensível e de afeto com xs
bebês.93

Nos últimos tempos tenho refletido na forma e na operação da relação


que levo com a minha filha. Um dos aspectos que me resulta mais interessante
pensar é o que poderia considerar a origem primária dos meus atos que, embora
não possa negar a presença de um componente antropológico e biológico nos
instintos “masculinos” que modulam tais atos nas suas origens, carregam algo
que não sei explicar, mas que sei que vem da minha mãe. Quando eu olho meus
atos, reconheço muito mais a minha mãe que o meu pai. Não só no que pode ser
considerado bom, mas também no ruim. Mas acho que tem muito mais de bom
que de ruim nesta situação. Talvez, pelos tempos em que vivemos, pela
sociedade e tipo de vida que nossa família faz parte, existe uma condição
favorável para a manifestação dos instintos maternais que modulam minha
“paternagem”. Tenho certeza de que somos muitos os pais que estamos acordando
a este nível de sensibilidade. Mas, por um lado mais racional e pessoal,
acredito que, ainda nesta sociedade, na que o conceito de pai tem se esticado
ao ponto de incorporar funções que há pouco tempo eram exclusivas da mãe
pela sua condição de mulher, a minha prática de pai não pode nem deve ser
restringida às funções esperadas do ser pai. Porém, se não fosse por este
instinto maternal ou aprendizado no corpo que me movimenta antes de siquiera
pensar, eu não teria condição de praticar minha visão do ser pai
nem de desafiar os meus limites. Limite é uma palavra importante
no meu entendimento de como ser pai e como me relacionar com a minha filha.
Minha prática como pai em parte é tentar achar meus limites como
pai/homem/indivíduo, e da descoberta daqueles limites reconhecer a minha
própria forma para posteriormente atuar sobre essa forma com algum grau
de consciência. Isso não significa necessariamente um câmbio na forma, o ato
consciente também pode ser mantê-la. Mas o reconhecimento desse tipo
de limites só é possível através da relação com o outro, neste particular
caso, com minha filha e a sua mãe. O relacionamento com elas, a operação,
é o que me dá acesso ao meu interior. Quando tenho sucesso, modular
os meus limites tem um efeito milimétrico, mas imediato no outro e,
se eu consigo manter o nível de atenção necessária para o sucesso da operação,
é possível dirigir um câmbio mais significativo no outro, como, por exemplo,

93
Ver artigo de Richard Gray intitulado “New fathers may undergo hormonal, neural and behavioural changes”,
publicado originalmente na revista Horizon, the EU Research and Innovation magazine, de 20.08.2018, disponível
em:
<https://horizon-magazine.eu/article/new-fathers-may-undergo-hormonal-neural-and-behavioural-changes.html#>

89
acalmar e fazer dormir a Pilar em um momento de muita angústia, raiva
ou cansaço. Mas muitas vezes o meu próprio cansaço eclipsa minhas capacidades
emocionais e intelectuais, e não consigo captar o ser pai ou companheiro
na sua totalidade, me limitando às suas funções básicas e esperadas,
muito mais do que eu gostaria.94

Maternagem e paternagem. Entre os animais com os quais mantemos parentesco, só os


humanos têm pais envolvidos e empáticos; pais que não necessariamente são definidos pelo
gênero masculino ou pela relação genética com xs filhxs, mas que paternam. De acordo com
Anna Machin, antropóloga evolutiva e escritora, o apego do pai ax filhx é crucialmente diferente
do apego da mãe. No entanto, em todos os casos, ter uma forte relação de apego funciona como
uma base segura a partir da qual podemos atacar e explorar o mundo, segurxs no conhecimento
de que podemos sempre voltar ao foco do nosso apego por afeto e ajuda. O apego entre mãe e
filhx é melhor descrito como exclusivo, um díade voltado para o futuro, baseado no afeto e no
cuidado. Em contraste, o apego de pai a filhx tem elementos de afeto e cuidado, mas é baseado
em desafio.95

Hoy vi a un papá paseando con su hija en bicicleta. La niña parecía ser,


tal vez, un año mayor que la Pilar. La niña iba llorando, desesperada en su
bici, pero el papá seguía manteniendo una distancia de la hija, alentándola
a seguir de una forma que no entiendo, porque era en alemán. La niña andando
en su bici, protestaba, lloraba, pero seguía. Por un instante, me cuestioné si
no debo ser más frío con mi hija, si no debo dejarla llorar hasta que haga lo
que yo espero que haga en un momento en particular. Cosas como simplemente
caminar o subir una escalera. ¿Será que a largo plazo eso trae algún beneficio
a una individua en desarrollo? Al mismo tiempo, no quiero ser así con mi hija.
Prefiero no forzar este tipo de comportamientos y esperar que surja de una
forma más fluida, sin necesidad de ansias o sufrimiento. Tampoco tengo
estructura emocional para dejarla llorando así. Intento encontrar consuelo
en la idea de que mi posición es un encuentro entre mis capacidades


94
Conversa com Nico Espinoza, 27.02.2020.
95
MACHIN, Anna. The devotion of the human dad separates us from other apes. Artigo publicado na revista online
Aeon Essays (2019). Disponível em: <https://aeon.co/essays/the-devotion-of-the-human-dad-separates-us-from-
other-apes>. Tradução livre.

90
emocionales y los valores éticos que atribuyo a mi práctica como padre,
sin ninguno de estos aspectos estar al servicio del otro.96

Outro ponto essencial é relembrar que esta tese está inserida na comunidade acadêmica
das artes, ou seja, não tenho a pretensão de desenvolver aqui um estudo sobre biologia, medicina,
serviço social, sociologia etc., mas levantar questões que me atravessam no fazer artístico, seja no
teórico ou no prático, e que são comuns a outros pares, reconhecendo de antemão que sou uma
mulher provida de uma série de privilégios sobre uma grande maioria de brasileiras. A minha
aproximação ao assunto da maternidade e da maternagem não pretende dar conta de toda a
complexidade envolvida, mas contribuir, ainda que minimamente, para uma discussão de extrema
relevância para toda a sociedade.
A combinação entre maternidade e maternagem tem sido o maior exercício de observação
de todas as sensações, de dentro e de fora. A maternidade desacelera, é da ordem do tempo morto.
Os sentidos de fato são outros. Aguçadíssimos, hormonais, ocitocina.
Escuto a cria nos mais singelos ruídos enquanto o restante da casa dorme. O peito
automaticamente reage, infla, goteja. Identifico as diferentes intensidades do chorar e o que elas
significam nessa nova linguagem que antecede a linguagem e que também me é estrangeira,
apesar de já tê-la acessado em algum momento na minha própria infância. A casa se traduz em
uma partitura composta por longos períodos de silêncio intercalados por choros, por vezes
ritmados, por vezes descompassados, de volumes e durações variadas. Enquanto isso, para Pilar,
a soma de todos os sons deve ser quase ensurdecedora. Dentro da barriga, tudo era filtrado,
resultando num zunzunzum entrecortado por minha voz, meus movimentos gástricos e as
variações do latido do meu coração.


96
Conversa com Nico Espinoza, 28.02.2020. “Hoje vi um pai andando de bicicleta com a filha. A menina parecia
ser, talvez, um ano mais velha que a Pilar. A menina estava chorando, desesperada em sua bicicleta, mas o pai
continuava mantendo distância da filha, encorajando-a a continuar de uma forma que eu não entendo, porque era em
alemão. A menina andando de bicicleta, protestava, chorava, mas continuava a andar. Por um momento, eu me
perguntei se eu não deveria ser mais frio com a minha filha, se eu não deveria deixá-la chorar até que ela faça o que
eu espero que ela faça em um determinado momento. Coisas como apenas caminhar ou subir uma escada. Será que a
longo prazo isso trará algum benefício a uma indivídua em desenvolvimento? Ao mesmo tempo, eu não quero ser
assim com a minha filha. Eu prefiro não forçar este tipo de comportamento e espero que ele saia mais suave, sem a
necessidade de ansiedade ou sofrimento. Eu também não tenho estrutura emocional para deixá-la chorar assim. Tento
encontrar conforto na ideia de que a minha posição é um encontro entre as minhas capacidades emocionais e os
valores éticos que atribuo à minha prática como pai, sem que nenhum destes aspectos esteja ao serviço do outro.”
Tradução livre.

91
Os cheiros, os perfumes, as catingas. Um cheiro indescritível, gamante. Meu nariz
espremido contra aquele cangote que não consigo parar de cafungar. Por outro lado, um cheiro
indescritível, nauseante. Não sei quem disse que cocô de bebê não fede. Na observação diária de
tantos dejetos, reconhecemos entre quantidades, cores e texturas, os sinais da saúde de uma
criatura que se faz entender pelas funções mais primitivas de seu organismo. Pouco a pouco nos
livramos dos nojos, dos receios, dos pudores do corpo. Pouco a pouco entendo, ou melhor, sinto,
o elo que perpassa toda a nossa comunicação. Um elo instintivo, animal mamífero. O encontro
duradouro entre nossas miradas, sua mão inteira que cabe na palma da minha, nossas respirações
e batimentos cardíacos pulsando entre as nossas barrigas, a boca sedenta que persegue o mamilo.
Mamilo que foi despreparado a amamentar após anos escondidos do sol e esmagados contra
sutiãs. Mamilos que dilaceram, que entopem, que inflamam, que jorram leite. Mamilos
anestesiados para receber a boca que morde mesmo na ausência de dentes. Por vezes dor, por
vezes êxtase, nos muitos minutos, às vezes horas, que essa pessoa diminuta se engata na minha
teta, na sua destreza e voracidade pela comida e seu senso de casa. Depois do exercício exaustivo,
a cabeça satisfeita, rendida, repousa entre os meus dois seios, um sempre mais cheio que o outro.
Pele sobre pele, o acolhimento que familiariza, desestrangeiriza.
A bebê desconhece a espera. Seu tempo é o agora e obriga a adaptação à sua urgência, o
aprendizado da livre demanda. O corpo materno é entregue a essas funções de sobrevivência: é o
alimento, o conforto, a proteção. A corpa estranha materna, meio vácuo por dentro, meio mole
por fora, vai se reconhecendo em sua utilidade, retomando a posição dos órgãos, se aceitando em
suas debilidades e proezas.

Sinto as paredes do meu oco na presença do outro.97

Os aspectos mais básicos do cotidiano também se estranham depois da chegada daquela


outra vida. Perde-se a noção do tempo, do familiar. Lembro-me de uma amiga comentar sobre a
estranheza ao entrar em casa pela primeira vez após a saída da maternidade com a criança no
colo. Lembro-me então da estranheza do caminho da maternidade para casa, no táxi, carregando
sem firmeza nos braços uma estranha, uma bebê que horas antes havia chegado ao hospital
protegida dentro da minha barriga, e que agora cruzava o trânsito do Rio de Janeiro, as ruas


97
Anna Maria Maiolino, no poema Tu + Eu.

92
colapsadas de Laranjeiras. Lembro-me ainda do caminho para o hospital, eu deitada no banco de
trás do carro, pensando naqueles últimos momentos solitários antes de parir, olhando o céu
através da iluminação pública que aparecia de relance num cantinho da janela. Da dor eu esqueci.
Em meio à observação da rotina caseira, a minha pequena estranha vai aos poucos se
revelando. Meus gestos e humores conduzem as suas reações e são os seus mini grandes
movimentos de resposta que me ensinam a conduzir melhor. Já era assim na barriga, tudo ainda
muito estranho, talvez por não visualizar essas dinâmicas. Diariamente, vamos aprendendo com o
exercício de aproximação, intimidade, reconhecimento.

A leitura do mundo precede a leitura da palavra.98

De repente o rosto franze, os olhos saltam, a cabeça mexe, a língua entra e sai da boca.
Parece que o corpo todo quer falar sem pronunciar palavra alguma. Pilar estava no meu colo
quando percebi que ela enxergava além do que via. Seus olhos vidraram diante de uma pintura da
Lucia Laguna. Eu segui caminhando, mas na imobilidade do seu corpo, eram os olhinhos
arregalados que buscavam o quadro. Voltei. Minha filha estava boquiaberta, tão interessada
naquelas linhas vermelhas e amarelas, nas formas de um quadrado pintado, sem saber do meu
envolvimento com aquilo ou com aquela pintora. Minhas lágrimas escorreram de uma emoção
primitiva. Sem mais. Uma das tantas emoções descontroladas, de diferentes intensidades e causas
– algumas inconscientes, desconhecidas – que passei a externalizar com frequência apesar das
convenções impostas por uma sociedade heteropatriarcal que insiste em nos reprimir, ou talvez
acuadas pelo estigma da mulherzinha, ou quiçá pelo fantasma da histeria – que finalmente
desapareceu do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais99 em 1980.

E assim vemos que o místico fez uma revolução inteira: se fez outro, se alienou completamente:
ele realizou a destruição mais frutífera, que é a destruição de si mesmo, para que neste deserto,
neste vazio, venha a habitar por inteiro, outro: pôs em suspenso sua própria existência
para que esse outro resolva existir nele.100


98
FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. São Paulo: Autores Associados:
Cortez, 1989, p. 9.
99
Disponível em: <https://www.mcgill.ca/oss/article/history-quackery/history-hysteria>
100
ZAMBRANO, María. La razón en la sombra: antología crítica. Madrid: Siruela, 2004. Tradução livre.

93
Se os três primeiros meses de vida da criança fora da barriga são considerados uma
“gestação externa”, exterogestação, já que seu cérebro ainda está em formação, esses primeiros
meses também são uma deformação/reformação da mãe, quando ela ainda se reconcilia com si
mesma, com o seu corpo, com o sexo, com o dentro e o fora. Algumas precisam de mais tempo
que outras; algumas se perdem, se esquecem; outras se descobrem, se encontram, se reinventam,
com ou sem o conhecimento do sagrado feminino101.
Uma professora de yoga que tive, Helena Rosenthal, me recomendou o único livro que
me acompanhou durante a gravidez, chamado Yoga Sadhana for Mothers: Shared experiences of
Ashtanga yoga, pregnancy, birth and motherhood, de Sharmila Desai e Anna Wise. O livro,
escrito por e para praticantes do Ashtanga yoga, reúne uma série de relatos de mulheres de
diversas idades e partes do mundo, e suas experiências pré e pós-natais. Nele, se evidencia a
prática de yoga, não como um fim a ser alcançado, mas como uma ferramenta de auto-observação
e auto-indagação. Uma das sugestões é preservar o corpo nos três primeiros meses após o parto,
justamente para que se possa deixar cicatrizar, se reorganizar internamente, equilibrar os
hormônios que alteram tudo, inclusive a flexibilidade. Acredito que esse ponto seja tão reforçado
no livro porque muitas mulheres sentem uma urgência por resumir certos hábitos anteriores,
talvez pelo desejo de seguirem sua integridade física e mental, ou pela inadequação ao tempo
morto. Mas respeitar esse tempo fundamental é também cuidar-se. Helena, que não tinha filhos
até então, acaba de dar à luz. Durante a sua gestação, me fez algumas consultas e foi bonito poder
ajudar a quem se prontificou de forma tão segura a me guiar durante a minha. Recentemente ela
fez o seguinte relato em uma rede social: “Quando na prática do asana enfrentamos um desafio,
uma postura difícil, respiramos e liberamos o ar, sabendo que após cinco respirações profundas
passaremos para outra. Ter um bebê é um asana para a vida toda, não há como voltar atrás ou
fingir que não está ali. Talvez essa seja uma das razões pelas quais muitas mulheres sofrem após
o parto. É desconfortável enfrentar a realidade dessa verdade eterna. E é exatamente por isso que


101
Segundo Morgause Lisetta, psicóloga e guardiã do Sagrado Feminino, este é um movimento que busca honrar a
energia feminina, suas ancestrais e a irmandade entre as mulheres, reconhecer os ciclos femininos e lunares e
despertar a feminilidade e sexualidade sagrada. (…) é um movimento de cura, cura da mulher e de todas as suas
relações. É necessário entender que o Sagrado Feminino é um movimento voltado para dentro, para
autoconhecimento e empoderamento interno. Enquanto o feminismo é um movimento externo e social, pois traz uma
luta de igualdade de direitos, reformula padrões impostos e lida com comportamentos. Em alguns pontos ambos
podem se conectar e com isso a mulher ter uma visão mais ampla, tendo assim consciência do seu poder.
Disponível em: <https://www.terra.com.br/noticias/dino/sagrado-feminino-como-as-mulheres-estao-resgatando-seu-
papel-na-sociedade,4d0e8b81378ed03b27447c6a16d61002gjdk7d4p.html>

94
crescemos. Radicalmente. E nossos corações ficam maiores e mais fortes, e somos capazes de
conhecer o mais doce amor.”102
Cada mulher é única, assim como o são as existências, mães e rebentxs. Buscar enquadrar
qualquer uma dessas partes em teorias generalizantes é excluir uma parte simbólica do todo. Na
psicanálise é possível analisar as primeiras relações materno-infantis a partir da observação caso
a caso. O referencial teórico de Donald W. Winnicott, por exemplo, é o do desenvolvimento
emocional primitivo e do conceito de memória corporal, enfatizando as experiências intrauterinas
sentidas pelo feto e o contato dx bebê com a mãe em termos de fisicalidade dos corpos vivos,
após seu nascimento. Ele conclui que essas primeiras relações pré e pós-natais, constituem em si
mesmas, vias de acesso à saúde psíquica dx indivídux adultx.103 Segundo essa abordagem, a nova
mãe que nasce com a maternidade e atua na maternagem é um produto de sua experiência como
feto e do contato físico que ela teve com a sua mãe após o seu nascimento, em uma outra geração,
com outros referenciais socioculturais.

A mãe, primeiro que tudo o seu seio, é o objeto primordial para os processos introjetivos e projetivos do bebê.
Amor e ódio são, desde o princípio, projetados nela e, ao mesmo tempo, a mãe é internalizada
com ambas essas emoções primordiais e contrastantes, subjacentes no sentimento infantil
de que existem uma mãe boa e uma má (seio). Quanto mais a mãe e o seu seio são catectados
— e a extensão da catexe depende de uma combinação de fatores internos e externos,
entre os quais a capacidade inata para o amor é da máxima importância —
com maior segurança o bom seio internalizado, que é o protótipo dos bons objetos internos,
se estabelecerá na mente infantil. Isso, por sua vez, influencia tanto a força como a natureza das projeções;
em particular, determina se os sentimentos de amor ou os impulsos destrutivos
serão predominantes naquelas.104

Eu diria que meus trabalhos sobre digestão vêm do que minha boca lembra do seio de minha mãe,
o conforto daquela primeira comida. (...) Acho impossível não falar, não poetizar sobre
o que entra e sai do corpo, quando são experiências fundamentais, corporais e vitais para nós.
(...) "dentro e fora", isso implica movimento, trânsito e nos leva a aspectos vitais. E se você pensa na vida,
verá que a natureza se renova nos movimentos de trânsitos contaminados. E existe algo mais contaminado


102
Perfil de helena_rosenthal disponível em:
<https://www.instagram.com/p/B5i9semIZZt/?igshid=1azki6ixn01ra>. Tradução livre.
103
Referências encontradas no artigo “Do feto ao bebê: Winnicott e as primeiras relações materno-infantis”, de
Sergio Gomes da Silva.
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652016000200003>
104
KLEIN, Melanie. Temas da psicanálise aplicada. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1969, p. 8.

95
do que o nascimento de um filho? No sul da Itália, eles se referem a pessoas sortudas como sendo
'nascidas cobertas de merda'. As sementes apodrecem antes de germinarem. Felizmente, a natureza
não 'limpa'. (...) Acho que todos temos uma nostalgia estranha e indefinida pelo vazio. Uma memória anterior
traz de volta algo que achamos que conhecemos. Poderia ser a memória do ventre de nossa mãe?
Eu lembro da nostalgia que sentia quando criança, um desejo incompreensível de voltar,
a nostalgia por um lugar. 105

Acordo num dia sem saber, que horas são? A contagem é do estômago pequeno daquele serzinho iluminado
que ao lado me diz, tenho fome, ou é que foi perturbada por um sonho de monstro, de coruja noturna
como já me disse uma vez. A hora é também equação: contagem das horas de sono, se é hora de acordar
mesmo, ou se é hora de ficar, fazer estender o sono, aumentar a preguiça cair em sonho novamente. Acordar,
posso tentar só eu, posso, preciso trabalhar (aquele tanto de coisas acumulado, a demanda constante),
e arrisco 20 minutos nessa manhã silenciosa, quase segredo, só minha. 20 minutos às vezes me dão tempo
para entrar, de novo, na trama do irresolvível (do que foi deixado na noite anterior, arquivos abertos, anotações
esparsas). Ela acorda logo depois de mim, vem caminhando pessoa pequena, choraminga, mama no peito.
Estamos juntas, colo e chamego. A contagem da hora enquanto olho para ela segue projetiva, planejando o dia
por vir. Dia de quê? Dia de trabalho, dia de creche, dia de entrar na linha do tempo de fora, de um tempo
grande e irresponsável com a nossa temporalidade pequena. I n t e r r o m p e r . Arriscar cortar e acelerar
esse tempo da pessoa pequena, que não sabe das razões, e as quais lhe explico. É hora disso, de creche
e de trabalho, de meias e de roupas, qual é o clima lá fora, de fazer caber o que se precisa na mochila,
de conferir as coisas todas na bolsa, se há bilhete da creche, é fraldas que pedem. Preparar o café, alimentar,
conversas, rimos juntas, nem sempre dá tempo. Não estamos sós, o pai está junto, dividimos tarefas, criamos
um sistema. Temos, afinal, nossa estratégia (temos?). As manhãs são organizadas num tempo conciso,
e tempo de despedida: deixo-a no portãozinho de sua sala catterpillar, abandonada saio eu
para meu playground da vida adulta, vida essa a ser reinventada.106

Ensaio anotações. Sou mulher. Duvido, contudo, da definição de gênero. Por isso digo gênero em passagem.
Tenho uma filha. Mais alguns que não tive. Os filhos não paridos também nos ensinam sobre a sociedade
heteropatriarcal, e sobre os filhos que levamos junto e as mães e mulheres que somos, em processo,
em mutabilidade. E sobre as redes feministas de cuidado. 38 anos. Não posso pensar que é só a partir
da casa que politizo a minha experiência mulher no mundo, mas a partir da casa em conflito e do fato de que
esse conflito não se fecha na casa, mas é uma extensão da realidade social. A partir da mobilização
dos feminismos como potência transformativa, e transversal, que se descola da determinação


105
Anna Maria Maiolino em conversa com Helena Tatay.
Disponível em: <http://d13.documenta.de/research/assets/Uploads/A-Conversation-between-Anna-Maria-Maiolino-
and-Helena-Tatay.pdf>. Tradução livre.
106
Cristina Ribas em “Infraestrutura {Maternidade / paternidade / economia do trabalho / cuidado}”, publicado
originalmente em Vocabulário político para processos estéticos. Ribas, C. (et all) Rio de Janeiro: Editora Aplicação,
2014.

96
da minha própria vida (classe média, em um sentido) para a vida de outres. Coisa que, de novo, os feminismos
vêm romper. Vêm romper a primazia do “pessoal é político”, esgarçando e expondo o binarismo que ela coloca.
Transversalizando, vemos como o feminismo embaralha essa separação – e há muito mais que fazer
para além do pessoal é político.107

Corpo semente

Há alguns anos vivemos uma sequência de acontecimentos nefastos no Brasil que tiveram
início nas manifestações de 2013, mas que se destacam especialmente em 2017, quando a
presidenta Dilma Rousseff é destituída inconstitucionalmente, e logo em 2018, com o brutal
assassinato da vereadora Marielle Franco (1979-2018), por quem votei nas eleições anteriores e
acompanhava de perto o mandato. Tínhamos quase a mesma idade. Militante, acadêmica, mãe,
negra, lésbica, favelada, mulher, ocupava com o seu corpo, sua inteligência e garra uma frente
fundamental de denúncia e defesa da população feminina, negra e das favelas. Mesmo num
mandato tão curto de apenas 15 meses, a vereadora esteve à frente de leis importantíssimas para
as mulheres, como as que estabelecem a criação de mais casas de parto humanizado no Rio de
Janeiro, a prevenção da mortalidade materna, a ampliação do acesso ao aborto legal, as creches
noturnas para crianças de 6 meses a 5 anos, e a campanha de conscientização e prevenção do
assédio a mulheres no transporte público. Marielle também presidiu a Comissão da Mulher na
Câmara Municipal do Rio. A sua presença e atuação incansável, ainda como denunciante da
violência policial e miliciana, incomodou tanto que lhe custou a vida. O fascismo engravatado
não sabia o que fazer com ela, por que não eliminá-la? Pilar tinha apenas 6 meses quando recebi
tarde da noite a mensagem comunicando aquele silenciamento criminoso, até hoje inconcluso.
Minha filha no meu colo, em seu sono profundo, talvez não tenha sentido o meu corpo trêmulo,
as lágrimas que escorriam em cataratas. Perder Marielle foi semelhante ao luto por uma amiga
próxima, mesmo sem conhecê-la pessoalmente. Não foram poucos os que ficaram sem chão.
Muitos protestos seguiram, manifestações, sementes. Eu acompanhava de longe, me refugiando o
quanto pude, ao ponto de não reconhecer mais o meu lugar naquela conjuntura. Tinha medo das
ruas. Sofria diariamente pela impotência que me dominava. Foi em meio àquele choque que
decidimos nos mudar para perto da família do meu companheiro no Chile, na tentativa de


107
RIBAS, Cristina. “Feminismos Bastardos. Feminismos Tardios. Abortar o Estado Heteropatriarcal.” Escovar a
História a Contrapelo (2018): n. pag. Print.

97
encontrar um ambiente de mais amor e amparo, de alguma estabilidade emocional, tão perdida
entre uma sucessão de catástrofes e violências. Em outras ocasiões não teria fugido à luta, mas
naquele momento, a minha luta era outra. Decidimos nos afastar para dar a Pilar a nossa presença
mais íntegra. Foi uma escolha consciente dentre as muitas possíveis.
Quando engravidei, passei a sentir uma ansiedade acerca da integralidade partida que se
anunciava, o medo incipiente de abandonar tudo, a mim mesma, o meu trabalho, o desconhecer-
me por completo. Os dilemas entre a produção e a reprodução.108 No sexto mês de gestação, tive
a oportunidade de conhecer pessoalmente Sharmila Desai, autora do livro que comentei
anteriormente neste capítulo. Ela foi a primeira pessoa a reconhecer no meu discurso a angústia
que eu sentia, especialmente no que tangia o meu trabalho. Sharmila, que é mãe de duas crianças,
me olhou fundo nos olhos e me passou uma tranquilidade que não havia sentido até então. Dentre
tudo o que conversamos, ela contou sobre a sua própria experiência, os projetos que abraçou
depois que xs filhxs nasceram, a sua incapacidade de dar conta de todas as frentes, mas o amplo
espectro que se abriu entre tantas possibilidades que se anunciaram quando ela simplesmente
aceitou as mudanças e as limitações que se apresentaram com as novas vidas que surgiram na
maternidade. Desde então, mesmo na distância, nunca paramos de conversar. Ela sempre foi uma
conselheira ávida para várias questões que me surgiram desde a gestação. Sharmila se mudou de
Nova Iorque e atualmente mora com a sua família em um terreno antigo, herança de
antepassadxs, na praia de Morjim, em Goa, na Índia, onde construiu sua casa e seu shala, do
sânscrito casa, como são chamados os locais dedicados à prática e aos ensinamentos do yoga. No
mesmo terreno, ela desenvolve junto com as crianças um trabalho comunitário com animais
abandonados na região. Em conversa recente, dividi alguns aspectos da minha pesquisa, a
maternidade e a observação incessante do dentro e do fora. Em resposta, ela disse:

Quando eu estava dando à luz em nosso acolhedor apartamento no West Village


de Nova Iorque, lembro-me de perguntar à minha parteira: "o que devo fazer?
Como posso ajudar o que está acontecendo?" Ela respondeu "nada
- os corpos sabem". Foi uma experiência visceral em primeira mão,
em sair do meu próprio caminho e permitir que o processo natural conduzisse,
confiasse e respeitasse este antigo rito de passagem. As sensações,
apressadas, correndo pelo corpo, me pediam para estar plenamente presente


108
Em referência a Silvia Federici em Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva.

98
com concentração, compaixão e, ao mesmo tempo, sem apego. Só mais tarde,
depois de segurar Asha em meus braços, refleti que este momento, este milagre,
era o que os meus onze anos de prática (de yoga) tinham me preparado.
Doze anos desde aquele dia e depois de vinte e três anos de prática diária,
vejo tornar-me mãe e estudante de Ashtanga yoga como um sadhana - inseparável
e singular como um estado de ser. Ambos requerem atenção e autodisciplina.
Ambos perguntam quando surgem dificuldades ou obstáculos para parar e respirar
- para observar e examinar o que é. A solução, o caminho em frente, cultiva
qualidades interiores de perseverança, resiliência, gentileza e honestidade
própria. A realidade do dia-a-dia é, em sua maioria, invisível e mundana.
Ambos me ensinam a ser clara sobre o que é importante, a eliminar samskaras
indesejáveis e a expandir minha capacidade de ver o que está por dentro.
Tornar-me mãe e estar no mundo se apoiam e se informam mutuamente.
À medida em que meus filhos crescem, eu cresço, muitas vezes de forma
inesperada, descobrindo e redescobrindo verdades e incógnitas
ao longo do caminho.109

Quando me vi diante do primeiro convite para a realização de um projeto de arte após o


nascimento da minha filha, o ímpeto da minha resposta foi igual ou superior ao de qualquer outra
época da minha vida. Extremamente entusiasmada, só parei para pensar em como me organizaria,
em qual seria a minha disponibilidade, e mais que tudo, em como não fracassar, após desligar o
telefone. Lembrei de Sharmila e tentei me acalmar. Percebi que de fato teria que entender
novamente como funcionar, como produzir. Adriano Pedrosa e Guilherme Giufrida, curadores do
Museu de Arte de São Paulo, haviam me convidado para participar de uma publicação
comemorativa pelos 50 anos do edifício de Lina Bo Bardi (1914-1992) na Avenida Paulista. Este
seria, além do doméstico, o primeiro trabalho depois da maternidade.
Em outubro de 2018, como era praxe até então, me organizei para frequentar
periodicamente o museu e, a partir da aproximação, desenvolver um exercício de observação.
Mas já não andava só. Eu, companheiro e filha rumamos juntos para São Paulo onde nos
instalamos por um mês. Agora somos um grupo. A indistinção entre a vida pessoal e o trabalho
não me permitiria fazer diferente. Conheci o Nico durante a residência de Valparaíso em 2012.
Ele foi um dxs músicxs colaboradorxs do projeto “El luche”. Mudou-se comigo para o Rio de


109
Conversa com Sharmila Desai, 21/01/2020. Tradução livre.

99
Janeiro em menos de seis meses. Nossa filha nasce desse encontro misturado entre o pessoal e o
profissional. Agora somos três caminhando juntxs.
Para quem vem de uma prática solitária que envolve deslocamentos periódicos, trabalhar
em família dificulta e facilita simultaneamente. A adaptação já tinha começado com o casamento.
O não estar mais consigo mesma a toda e qualquer hora, sem prestar ou demandar satisfações, a
falta de dedicação integral e exclusiva ao trabalho “produtivo”, a redução da disponibilidade em
dar-se por completa a todas as experiências, o desejo de voltar para casa. Então o primeiro
projeto após o nascimento de Pilar foi um divisor de águas, uma redescoberta, uma adequação
para dar seguimento a mim como artista e indivídua, e o afirmar-me como mãe. As concessões se
deram das mais variadas formas, seja no tipo de hospedagem, aos horários de trabalho, na
indisponibilidade até então desconhecida, nas multitarefas e demandas do lar. Outra condição de
estrangeria. Essa nova formatação modifica, mas não impede o desenvolvimento dos projetos,
obrigando a repensar a própria práxis, se aceitando e se respeitando. Apesar do tempo adaptado,
da presença fragmentada e de um cansaço que não era só meu, a amabilidade e o companheirismo
podem flexibilizar as negociações, amenizar a rigidez de certos processos e encorajar nos
momentos necessários, tornando-se uma prática solidária.

Para mim, tudo era importante: ser mulher, mãe de família e artista fez parte de um só repertório
desde o início. Embora a tematização de uma diferença entre produção masculina e produção feminina
seja discutível, acredito que a arte da mulher passou a ser também uma forma de resistência à hegemonia
masculina. Esse é um discurso bastante conhecido, que, no entanto, ainda me toca de perto. Sem dúvida,
essa postura e minha vida peregrina foram decisivas para que meu trabalho se desenvolvesse como é:
uma obra subjetiva, múltipla e híbrida. (...) Queria deixar claro que, em primeiro lugar, nunca hierarquizei
o que vinha antes na minha vida, a arte ou o casamento. E, por outro lado, sempre acreditei no meu trabalho.
Desde muito nova, tinha absoluta certeza de que seria artista. Por isso, não me arrependo de ter vivido
plenamente como a mulher que sou: mãe e avó, apesar de, hoje, ser uma avó mixuruca para meus netos.
Quando me separei do Victor Gripo, um artista maravilhoso, estava com 49 anos. Naquele momento,
tive consciência de que não poderia mais ter outro relacionamento. Depois da separação, meu grande desafio
ficou sendo o meu trabalho, o destino que daria à minha arte, pois já não havia mais desculpas.
Foi uma escolha que fiz e, se você olhar meu currículo, os períodos em que fiquei sem os homens
são os mais produtivos. Homem dá muito trabalho. Lygia Clark dizia que a arte é sempre feminina
e a ação sempre masculina. E eu acho que nós, artistas, somos híbridos, a soma do masculino e do feminino.
Mas observo que, quando estou na ação, sou muito homem; e quando estou no amor, sou muito mulher.
Então, quando estava casada com esses dois artistas, ambos bons produtores, eles, de certa forma,

100
compensavam qualquer necessidade minha de produzir, mesmo que uma parte de mim estivesse muito
angustiada e questionasse minha postura. Não sei se isso acontece com todas as artistas casadas, mas,
no meu caso específico, como fui educada para ser mãe de família, sempre que estou perto de um homem,
sou doméstica. Eu sou realmente uma doméstica artista, por isso eu disse que não quis abrir mão de nenhum
dos meus papéis. Isso é uma coisa que pode ser vista muito claramente no meu trabalho. Estou contente de
ter englobado isso no discurso da minha obra. Os homens se foram, os amores acabaram.110

O projeto no MASP foi o primeiro retorno da nossa família ao Brasil, justamente durante
o período eleitoral mais conturbado e hostil da história recente do país. Tentava me acercar de
quem não conhecia, sem saber ao certo como e sobre o que falar. O clima geral nas ruas não
podia ser mais tenso, mais confuso, mais medroso, mais triste. Uma censura velada pairava. Um
peso trêmulo, pendular. Era nítido o fuzuê fabricado por notícias falsas da extrema direita que se
espalhavam como erva daninha. Mas ali estávamos xs três, tentando simplesmente estar, bastante
unidxs e perdidxs. Com uma mão eu segurava uma criança, tentando observar os fenômenos ao
nosso redor, sem poder colapsar; com a outra, segurava uma câmera fotográfica, buscando
responder ao convite do museu por um resultado.

[Muitas pessoas que não participaram dos fatos não se sentem parte da história.]

O MASP, desde sempre, abriga as mais variadas manifestações públicas, sejam


individuais ou coletivas, independente de orientação política ou partidária. Não demorou para nos
identificarmos entre tantxs. O alívio do reconhecimento entre pares. Olhares consentidos, urros,
vaias, lágrimas e abraços de luto. Espera, esperança. Alguém olhando para o infinito111. Foi
bonito ver crescer o afeto entre desconhecidxs, incluindo a minha família. Afinal, da adversidade
vivemos112.

#ELENÃO


110
MAIOLINO, Anna Maria. In. Cultura brasileira hoje: diálogos / organização, Flora Süssekind e Tânia Dias. Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. 3 v., p. 14.
111
Frase de André Mesquita em seu áudio dirigido a mim em novembro de 2018.
112
Parafraseando Hélio Oiticica (abril de 1967).

101
Ficou claro que o meu projeto não poderia se contentar em retratar a arquitetura. O MASP
era a desculpa geográfica. O que faz dele um ícone não é apenas a sua edificação, mas o seu
corpo ativo na sociedade, composto pelas pessoas que o frequentam, mas especialmente por
aquelas que o habitam e que atualizam a sua história. Como em 2009 no Minhocão, quis
conhecer os bastidores do museu guiada por quem nele trabalha. A história simultânea, a vivida e
a narrada. A história e as estórias. Retratos sem hierarquia feitos pelo prédio. Dentro e fora. Não-
lugares que viram lugares para quem lhes dá sentido. Segredos compartilhados em lugares
públicos113.
Convidei todxs xs trabalhadorxs a participarem voluntariamente da minha proposta. Eu
queria fotografá-lxs em algum lugar próprio, de relevância, para que eu pudesse conhecer o
prédio através de suas escolhas e histórias afetivas. Pedi que cada umx dirigisse o seu retrato,
escolhendo também o enquadramento e o figurino (se houvesse). Eu me contentaria em observar
– ver, ouvir, sentir –, em apertar o disparador da câmera. Assim fui conduzida a cantos e
paisagens, passando a pertencer ao todo.
Era óbvio que estar perto das pessoas reforçava o sentido de esperança, tão necessário
naqueles dias de incerteza e hostilidade. Ainda mais depois da vitória do inominável. Era vital
beijar, abraçar, rir, chorar, interagir, brindar, ter toque de pele, corpo a corpo, ocitocina. Após o
nascimento da minha filha, fica claro que o binômio paisagem-retrato se altera em relevância na
minha observação. Antes, a desculpa geográfica conduzia o início do exercício, mas quase
sempre o meu interesse maior estava nos lugares, na arquitetura, na cidade, na paisagem. As
pessoas, se houvessem, caracterizavam os lugares, lhes davam corpo e dimensão, falavam sobre
eles. Durante o projeto no MASP percebo que a relação se inverte. A desculpa geográfica
continua sendo um lugar, mas o foco da observação se dirige à complexidade e a riqueza dx ser
humanx, aos seus contos a partir e para além daquele lugar, que então coisificam o lugar.

[Talvez as únicas ocasiões anteriores ao MASP em que o retrato se fez predominante no meu
trabalho tenham sido na série “Entre o sono e a vigília” e na residência no Minhocão. Lembro,
então, que a artista Cristina Canale me contou que praticamente não havia figuração em seu
trabalho até o nascimento de sua filha. A artista, que não era nem um pouco fã dos passeios a
pracinhas, mas precisava levar a criança para brincar, começou a desenhar elementos do parque e

113
Parafraseando André Mesquita em seu áudio dirigido a mim em novembro de 2018.

102
transferi-los para a pintura. O que eram espaços vazios, passaram a ser habitados por um
mobiliário de parques infantis, que aos poucos foram dando vazão a um mundo de personagens
imaginários que, de certo modo, permanecem no trabalho até hoje, vinte anos depois do
nascimento de Dora, mesmo que representados de formas diferentes.114]

No MASP, ainda que se tratando de um projeto de livro, a ênfase sempre esteve no ritual,
na preparação, no caráter performático. Escolhi uma câmera analógica porque queria que a
imagem aparecesse apenas no final, após a revelação dos negativos, quando já de regresso ao
Chile. Não queria que as pessoas se preocupassem com o resultado superficial de seus corpos
vistos de relance na pequena tela LCD da câmera, mas que se entregassem àquela experiência por
tudo o que ela significava, muito além da imagem.
Pensando em uma maneira não bidimensional de registrar os encontros pelo museu,
convidei quem participou do projeto para gravar em áudio o que imaginava ser a sua fotografia;
que descrevesse como e quando chegou ao MASP e o porquê do lugar escolhido para o retrato.
Em sessão individual e solitária no auditório, cada pessoa contou a sua história usando um
microfone para gravação binaural. Neste tipo de experiência, quem fala se escuta em tempo real
através de fones inseridos nas orelhas, proporcionando uma audição totalmente atípica, quase
introspectiva, como se falasse para dentro e em voz alta. Para quem escuta o áudio
posteriormente usando fones de ouvido, é como se a experiência daquele som ambiente fosse
reproduzido de maneira análoga à quem o gravou. Hoje, na distância do tempo e do espaço,
escuto suas vozes e posso ver seus rostos e viajar de volta até o museu.
Convencionalmente, algumas fotografias não deram certo, sejam por rolos queimados,
vencidos, arranhados ou mal fotometrados. Mas daí penso o que seria hoje uma imagem que dá
certo. Na fotografia, o que mais me interessa é o estar presente e atenta no fazer; é o estar
sensível ao comportamento da luz, em sua maneira própria de se insinuar e criar ambiência nas
cenas ordinárias; é o estar aberta aos possíveis diálogos entre as pessoas e os lugares. O trabalho
não é sobre a imagem em si, mas sobre o trajeto para se chegar até ela e depois tudo o que
daquele trajeto ela contém. A lembrança da presença. As relações com as pessoas e com os
lugares extrapolam o quadro e perduram. Por isso o projeto como um todo deu muito certo e
incluí na publicação as 96 fotos, o seu percurso completo dentro da limitação de páginas que me

114
Conversa com Cristina Canale, 15.10.2019.

103
cabia, deixando em aberta a sua continuidade em outra ocasião, incluindo as fotografias feitas
pelxs próprixs trabalhadorxs, seus exercícios de observação durante o horário laboral.
Pela primeira vez, a família completa participou do meu trabalho. Pilar cativou
desconhecidxs e caminhava livremente pelos corredores do museu, sem restrição de acesso. Nico
gravou os áudios e dividiu da intimidade e da confiança das pessoas. Sem tempo para leituras
paralelas além dos livros relacionados ao trabalho de Lina Bo Bardi, eu usava toda e qualquer
brecha para escrever. Os momentos de solidão, que sempre me foram tão essenciais na
preparação de um trabalho, foram substituídos por noites mal dormidas, alguns minutos diários
de meditação e momentos valiosos e intensos de trocas com quem participou do projeto. Nunca
me interessou tanto x outrx. Pergunto-me se esse interesse maior no retrato do que na paisagem
vem das alterações hormonais, ou da minha amígdala medial, ou da minha nova capacidade de
acompanhar outra ser, esse exercício de observação de vida e de humanidade que mudou também
a minha maneira de observar o mundo.
Cao Guimarães realizou o projeto “Histórias do Não-Ver” (2001), que já tinha sido
referência para mim no mestrado e se faz tão pertinente no doutorado. Na dissertação, usei como
citação o seu texto de abertura, um ensaio livre com um forte apelo imagético sobre a memória e
os lugares. Agora me detenho no argumento deste mesmo trabalho que me serviu de motivação
para o que realizei no MASP, algo que venho descrevendo como a relevância do procedimento
em detrimento do resultado conclusivo, como descreve o próprio artista:

Convidei algumas pessoas para que me “sequestrassem”. Cada uma executaria o seu
“sequestro” da forma que bem entendesse. Pedi a elas que não me dessem nenhuma
informação sobre os lugares para onde me levariam. Eu ficaria esperando por elas em
algum lugar combinado. Ou então não combinaria nada. Quando chegassem, me
vedariam os olhos e me levariam com uma câmera fotográfica e alguns rolos de filme.
Poderiam fazer o que quisessem comigo, conquanto me deixassem fotografar a tudo,
sem que eu nada visse. Só tiraria minha venda dos olhos quando estivesse de volta ao
lugar de onde saíra. Eu queria sentir o mundo apenas através do que estivesse ouvindo,
cheirando, pegando, pensando. A visão sempre me parecera um sentido tirano com
relação aos outros sentidos. Sem ela o mundo poderia ser então vários mundos;
a realidade, várias realidades. Elas se cruzariam em infinitas possibilidades, que seriam
apenas parcialmente desvendadas quando eu revelasse as fotografias. Na verdade
o aparelho fotográfico seria não mais a extensão de meus olhos. Seria, antes, meus
próprios olhos. Minha única possibilidade de reter a realidade em imagens reais estaria
guardada nesse aparelho e, consequentemente, minha assimilação ou percepção
imagética dessa mesma realidade seria adiada ou deslocada para o futuro: para quando
esses filmes fossem enfim revelados. Imediatamente após cada “sequestro”, eu
escreveria pequenos textos que certamente estariam impregnados de imagens produzidas
pelas impressões de meus outros sentidos. Essa imagística, ou faculdade de imaginação,
estaria livre da muitas vezes tirânica atuação da visão na percepção da realidade. Feita

104
a narrativa, o contraponto interessante seria a justaposição desta às fotografias “cegas”
do “sequestro”, enfim reveladas: o ato de fotografar sem ver através de um aparelho
mecânico e o ato de “fotografar” sem ver através de um texto gerado pela dinâmica dos
outros sentidos.115

Como já comentado, são muitos os trabalhos de Cao que ressonam e me servem de


referência. Decido encontrá-lo pessoalmente em 2019 para conversar. Foi justamente quando
retomei as rédeas desta tese; quando a minha filha, já com 2 anos, pela primeira vez frequentou
uma creche e eu tive mais espaço para me concentrar na escrita. Na verdade, tive enfim a
oportunidade de processar certas informações e sentimentos que vieram à tona desde a gravidez,
entendendo de que maneira tudo isso poderia ou não se relacionar a esta pesquisa. Cada dia é
mais óbvio para mim a impossibilidade de se forçar limites entre o pessoal e o profissional, a
prática e a teoria, então sigo. O corpo intelectual é um só.

Corpo intelectual

A teórica-doméstica é um procedimento contra-pedagógico inventado por mim para criar condições de vida
em meu ambiente de trabalho, tanto em relação às próprias formas pelas quais o trabalho é laborado quanto
ao que diz respeito às relações interpessoais. Após o nascimento de meu primeiro filho, experimentei
uma desorganização das práticas que compunham meus afazeres de professor universitário. Dar aulas,
escrever artigos, participar de eventos acadêmicos etc. Tudo aquilo que eu realizava com prazer
e uma naturalidade absoluta se tornou penoso, árduo, complicado.116

Eu só escrevo porque ela está longe de mim, na creche, outro lado da rua (ou ali dormindo, sono bom
de criança a crescer). Se escrevo junto com ela escrevo outro texto. Fazemos desenhos e desenhos, bolinhas,
pontinhos, perseguimos linhas, e around e around. Se faço carinha, ela já completa com pernas e braços,
e boca, se não tiver. E cabelos, como dizcabêêêlo! Quando escrevo, escrevo junto com ela aqui, como parte
da minha realidade, claro. Quero escrever junto com ela, com ela em mim, mas temo que escrevo
para o mundo adulto, esse mundo estranho, esse mundo cuja seriedade me faz rir. A filha vem
de um hiperíntimo, um hiperjunto, e ajuda a estranhar o mundo, com o qual copulo depois; mundo com o qual
me identifico, e que também desejo. Voltando àquela recomposição, percebo que o cuidado, portanto, não é só
com a filha, mas com a mãe e o pai nessa nova passagem de mundo, com o mundo que se recompõe.
Da mãe se fala bastante da depressão pós-parto, esse mistério que não está nas calçadas, que é calcado
aos espaços íntimos, e ao indizível, visto que se torna indecifrável se não assumimos a dimensão mágica
e espiritual da maternidade. Mas e depois, como cuidamos uns dos outros, pais, mães, crianças? Seguimos...

115
GUIMARÃES, Cao. Histórias do Não-Ver, p. 1-2. Publicação independente.
116
PIMENTEL, Mariana P. Como tornar-se uma teórica-doméstica? (ainda não publicado).

105
A economia do cuidado na luz do dia se torna um diagrama a puxar linhas e linhas de subjetivação,
friccionando superfícies de singularidade, abrindo companheirismos num comum (aquela comunidade
imprevisível de pais e mães, e avós, e tios, e cuidadores, claro).117

Cao e eu fomos tomar um cafezinho. Um café estrangeiro para falar sobre “acaso”,
“atenção”, “exercício de observação”, assuntos pertinentes a nós e à tese. O papo obviamente
descambou para filhxs, trabalho doméstico, nossas relações conjugais, alegrias e dificuldades de
uma vida em família. Cao hoje é pai separado, vivendo entre dois países, Uruguai e Brasil. Ele
me conta que, desde o nascimento de Otto, trabalha basicamente com arquivos e roteiros, que
assim pode passar mais horas em casa, perto das crianças. Falamos um pouco sobre as nossas
práticas perambulantes, de divagantes pelas cidades, e ele comenta sobre a dificuldade de sair
errante pela rua a filmar, por exemplo, a breve existência de uma bolha. Suas crianças são filmes
diários, diz o cineasta. Enquanto conversávamos, ele me mostrava no seu celular um vídeo
caseiro delas brincando numa duna do balneário onde vivem no Uruguai, enquanto eu seguia as
mensagens no meu celular para me certificar de que estava tudo bem em casa. Atenção partida.
Comecei a assistir a “Otto”118 assim que voltei para casa. O longa, que acompanha os nove
meses da primeira gestação da ex-mulher de Cao, é uma sequência poética composta pela
contemplação de um homem apaixonado por uma mulher que está gerindo uma vida criada pelos
dois. A mutação do corpo amado, desconhecido por ambxs, e o nascimento concomitante de
novxs adultxs. Corpos estranhos que surgem enquanto a câmera filma. Logo nos primeiros 20
minutos, Pilar acorda da sua soneca pós-almoço. Se aproxima do computador e decide encostar
em mim para assistir também. Pensei que uma criança de 2 anos se cansaria facilmente de
acompanhar aquelas belas imagens demoradas. Mas ela ficou ali do meu lado, encantada com o
que via, sem pressa nem tédio, até a hora em que Otto nasceu.
Pensando no que originalmente conversaria com Cao, percebo que é justamente a atenção
o que mais mudou em mim desde a gestação. Em um primeiro momento, a falta dela, assim como
de concentração e de memória, que são atribuídas a causas hormonais, à avalanche de estrogênio


117
Cristina Ribas em “Infraestrutura {Maternidade / paternidade / economia do trabalho / cuidado}”, publicado
originalmente em Vocabulário político para processos estéticos. Ribas, C. (et all) Rio de Janeiro: Editora Aplicação,
2014.
118
Filme disponível em: <https://vimeo.com/132380778>

106
que supera a quantidade recebida em toda uma vida, à redução da massa cinzenta do cérebro.119
Mas depois que a criança nasce, é interessante pensar nessa pessoinha como um anteparo entre as
coisas que se observa. Se antes eu via um todo, agora vejo um todo com uma figura que se repete
nas mais variadas cenas, mesmo quando ela não está presente. Como um farol, a filha está lá,
piscando em rotação, um afastamento momentâneo e ilusório, chamando a atenção de tanto em
tanto, norteando, desorientando e balizando contra certos atritos. O farol também é um mirante.
Esse outro foco permite observar aspectos do todo que talvez antes passassem despercebidos.
Uma luneta, um telescópio para observar estrelas, mais planetas e satélites? Essa outra atenção
demanda outra qualidade temporal, mais concentrada para ser melhor aproveitada; uma presença,
por vezes ramificada, mas muito verdadeira, na qual se entrega o que se pode, o que se quer, o
que se sente.
Talvez pela insistente presença dessa serzinha na minha retina e a sua relação com o
mundo à nossa volta, percebo, como já dito antes, a inversão da relevância entre retrato e
paisagem. Em geral, as pessoas e suas histórias ganham protagonismo sobre seus lugares-
cenários; as escuto com mais sensibilidade e me afeiçoo com mais cuidado, sem o julgamento de
ser melhor ou pior que antes, mas reconhecendo que existe uma outra implicação do corpo.
Foram 137 pessoas envolvidas no MASP e, nesta tese, trago um coro de múltiplas vozes que
personifica a teoria. Percebo também a mudança no interesse em mim mesma, na maneira como
me projeto nos exercícios e nos textos, como me coloco diante de sensações e emoções, com
menos pudor ou travas, em um autorretrato mais intensificado e explícito, menos
autoficcionalizado.
Constato, então, que a artista não se torna menos capaz de trabalhar por ter sido mãe. Ela
pode se tornar incapaz por outras razões que a maternidade veio a aflorar, mas não por uma
incompatibilidade entre seres e saberes. Essa artista pode ser que abandone a sua prática, quiçá
por falta de tempo ou apoio, por mudança de ofício e necessidade financeira, mas em geral, o
corpo intelectual regido por processos criativos, não desaparece simplesmente porque a criança
nasceu ou porque sofreu algum tipo de metamorfose, ganho ou perda significativa. A mulher,
quando pode, incorpora à sua prática essas modificações em distintos graus porque é quase


119
Ver artigo intitulado “Gravidez causa mudanças duradouras no cérebro da mulher”, publicado na revista Mente e
Cérebro, edição n. 290 de março de 2017, disponível em: <https://revistamentecerebro.uol.com.br/gravidez-causa-
mudancas-duradouras-no-cerebro-da-mulher/>

107
impossível separar o intelecto, da vida. Não existe um botão que desligue o pensamento, a
sensibilidade, mas talvez exista um para subir e baixar o volume de acordo com a necessidade,
como me disse em conversa recente a artista Lina Kim120, que tenho o imenso prazer de conviver
em Berlim depois de termos exposto juntas, em 2013, no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro
(Lugar nenhum, curadoria Heloísa Espada e Lorenzo Mammì). Ela também usou uma imagem
muito poderosa para relacionar maternagem com o processo criativo: “são experiências que não
seguem a ordem gravitacional.”
Cristina Ribas, uma das curadoras da residência do Minhocão, já foi bastante citada neste
capítulo. Não posso evitar. Enquanto lia os seus textos, sentia como se estivéssemos conversando
na sala de professores da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, junto com a Keyna Eleison,
com quem também conversei nesta pesquisa. Foi a última vez que nos encontramos pessoalmente
no Rio. Em artigo intitulado Femininos bastardos. Femininos tardios, Cris afirma: “não é a
criança que separa a mulher do mundo, é o mundo na ordem patriarcal que não acolhe essa
transformação.”121 Em outro artigo, Infraestrutura {Maternidade / paternidade / economia do
trabalho / cuidado}, segue:

(...) a dúvida se coloca assim: se tomar conta da filha toma meu tempo, como não opor
a filha ao trabalho (aquilo que eu faço para ganhar dinheiro) visto que preciso seguir
trabalhando? Essa oposição é simples demais, contudo, sobretudo porque ela separa em
duas dinâmicas o trabalho e a vida com a filha. A inversão dessa oposição é exatamente
a raiz da mudança... Visto que o tempo do cuidado da filha pode ser intensivamente
lento, prazeroso e imprevisível, posso pensar então que o tempo, no cuidado, é mais de
ordem subjetiva. (...) E o tempo da produtividade do trabalho seria aquele que eu posso
controlar? Mais objetivo? Será? Ou doutra maneira, da produção do tempo. Ou seja,
o tempo atomizado da criança sempre vai contrastar e empurrar a ideia de produtividade
requerida pelo tempo do capital, tempo esse que por sua vez, ao requerer uma
implicação da vida num tempo produtivo, ele mesmo atomizado, por sua vez, com
a precariedade das condições de trabalho e pelas novas condições do trabalho imaterial
que se torna toda uma questão de tempos descontínuos em cooperações virtuais.
Cruzamentos... Ramificações... Desvios... Impossibilidades?
(RIBAS, 2014, p. 2-3)

“Se cuida!”, na linguagem coloquial, equivale a um “tchau”, um “até logo”. Quem de


verdade deseja ou pratica o cuidar em todo o peso de seu significado, não apenas no
esvaziamento do verbo em uma figura de linguagem? O cuidado é um trabalho, seja remunerado


120
Conversa com Lina Kim, 18.10.2019.
121
RIBAS, Cristina. “Feminismos Bastardos. Feminismos Tardios. Abortar o Estado Heteropatriarcal.” Escovar a
História a Contrapelo (2018): n. pag. Print.

108
ou não, que busca atender, de maneira atenciosa, necessidades concretas dos outros, necessidades
que são essencialmente de relações e afetos, bens e serviços122. O cuidado é, portanto, permeado
por emoções, afetos e desafetos, sendo também constituinte do maternar. Nas configurações
familiares em que tanto o pai quanto a mãe trabalham fora, vê-se claramente a distinção do
desígnio do cuidado dxs filhxs, considerando a diferença irrisória no período de licença de
afastamento dado pelas leis brasileiras a ambxs. Os poucos dias de licença-paternidade serviriam
para cobrir as burocracias de registro dx bebê e não para cuidar dx recém-nascidx e da recém-
mãe. Espera-se então que o cuidado seja de responsabilidade integral da mãe e dos possíveis
apoios que ela quiçá consiga. Para as que amamentam, a relação de cuidado com x bebê se torna
ainda mais estrita e exclusiva. Para as de primeira viagem e sem rede de apoio, é na marra que
aprendem a cuidar de si e de suas crias simultaneamente; é na prática que passam a lidar com
tudo o que lhes é estrangeiro nesse processo, especialmente com a nova noção de tempo que se
instaura.
O tempo e a atenção qualitativa que o cuidado exige também são demandas fundamentais
de processos criativos. É nesta divisão de tarefas e multiplicação de forças que a mulher, mãe e
profissional, atua. Para a artista Isabel Löfgren, “a gestação é uma boa metáfora para os
bastidores do processo criativo – começa com um desejo, depois vira semente, e vai crescendo,
crescendo. Uns vingam, outros não. É um processo doloroso, penoso, às vezes solitário, às vezes
solidário, e resulta em algo. Se não resultar em algo, a memória do processo fica impressa no
nosso ser, e dá vazão a outras coisas. No final, trata-se de como manter uma ideia em vida, uma
ideia viva, uma resistência existencial contra a pulsão de morte.” 123
Patricia Gouvêa foi uma das fundadoras do, recentemente extinto, Ateliê da Imagem,
escola com vinte anos de atividade onde comecei a dar aulas em 2008, célula incubadora do
“Exercício de Observação com Fotografia”. Patricia e Isabel são parceiras de trabalho há anos e
se tornaram mães quase que ao mesmo tempo. Lembro aqui da lenda que mulheres de uma
mesma casa, ou que mantêm um convívio próximo, coincidem no ciclo menstrual (uns alegam
ser acaso, outros responsabilizam os feromônios femininos pela sincronização como mecanismo


122
MORENO, Renata Faleiros Camargo. “Entre a família, o Estado e o mercado: mudanças e continuidades na
dinâmica, distribuição e composição do trabalho doméstico e de cuidado”. Tese (Doutorado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de Sociologia. São Paulo, 2019.
123
Conversa com Isabel Löfgren, 17.10.2019.

109
de defesa contra os machos dominantes)124. Ao longo do ano de 2011, antes de engravidarem,
desenvolveram juntas o projeto “Banco de Tempo”, no Palácio do Catete/Museu da República,
no qual refletem sobre fluxos, viagens e desejos relacionando-os à paisagem, a imagem e a
palavra. Em janeiro de 2014, entraram em trabalho de parto juntas, Patricia no Rio e Isabel em
Estocolmo. As crianças nasceram com dois dias de diferença. Patricia, quando engravidou,
decidiu se afastar do Ateliê da Imagem para se dedicar com exclusividade à filha, pelo menos no
seu primeiro ano de vida. No parto, a bebê nasceu saudável, mas Patricia contraiu uma
superbactéria e sofreu maus-tratos no hospital, quase custando-lhe a vida. Mesmo assim, com um
pouco mais de duas semanas do puerpério, as artistas começaram a editar o livro do projeto, no
qual incluíram um retrato das duas juntas, sentadas em um dos “bancos de tempo”, cada qual com
sua cria de quatro meses no colo. Pouco tempo depois, deram início à pesquisa de “Mãe Preta”,
um projeto que esmiúça a violência institucional contra mães no Brasil, expondo principalmente
uma parte extremamente dolorosa da história invisibilizada da maternidade e das amas de leite,
ligada diretamente ao sistema escravocrata no país. Mesmo o trabalho tendo sido premiado e
exposto em diversas ocasiões, as artistas seguem com a pesquisa há quatro anos, seja em
bibliotecas ou em pequenas imersões de campo, amadurecendo com as mudanças no terreno da
discussão sobre o feminismo negro e o racismo, ainda que tratando-se aqui de duas artistas
brancas.

Corpas

Considero pertinente incluir um brevíssimo comentário sobre a história da arte brasileira


feminina entre as décadas de 1960 e 1970. Como a lista de nomes é extensa – cito aqui algumas,
em ordem alfabética, com o intuito de reforçar a expressiva presença de mulheres em uma
publicação do departamento de artes125: Amelia Toledo, Aracy Amaral, Celeida Tostes, Cybéle
Varela, Gilda Vogt, Gretta Sarfatty, Iole de Freitas, Jeannette Priolli, Judith Lauand, Lygia Clark,
Lygia Pape, Maria Lidia Magliani, Maria do Carmo Secco, Mona Gorovitz, Monica Barki, Nelly
Gutmacher, Odila Ferraz, Pietrina Checcacci, Regina Vater, Teresa Nazar, Terezinha Soares,
Theresa Simões, Sônia von Bruschy, Vera Chaves Barcellos, Vilma Pasqualini, Wanda Pimentel,

124
Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-37823200>
125
TRIZOLI, Talita. Atravessamentos feministas: um panorama de mulheres artistas no Brasil dos anos 60/70. São
Paulo: s.n., 2018.

110
Wilma Martins, Yolanda Freire, entre tantas – me detenho sobre quatro artistas que, em plena
ditadura, se voltaram à experimentação com vídeo, por serem pioneiras nesta atividade no país e
caracterizando uma geração: Anna Bella Geiger, Anna Maria Maiolino, Letícia Parente (1930-
1991) e Sonia Andrade. Elas trabalhavam quase que exclusivamente com questões do corpo –
intelectual, social e político – perpassando por detalhes do cotidiano, de suas casas, de suas
famílias, de suas amarras, e de suas visceralidades, para descontruir uma previsível identidade
feminina e seus desígnios sociais no ambiente doméstico.

Nos anos 1970, como forma de resistência, as artistas mulheres reagem produzindo imagens
com carga autobiográfica e subjetiva, em muitos casos utilizando seus próprios corpos.
A produção feminina da arte silenciada nos tempos surge nessa época, colocando em xeque
o modelo hegemônico masculino da produção artística. Finalmente o feminino abre espaço
para as suas práticas que, historicamente, tinham sido vistas como produtos inferiores.126

Nos vídeos, as artistas encenavam em loop, gestos e ademanes que sugerem de maneira
repetitiva, por ora delicada por ora violenta, a monotonia, as ansiedades, a veladura, a
dissimulação, o aprisionamento, a censura e/ou o intolerável dos modelos padrões a que estavam,
de distintos modos, submetidas. Partiam de si para falarem do todo. Nesses primeiríssimos
audiovisuais, as artistas são as protagonistas que atuam, em grande parte, em cenas de baixa
produção gravadas principalmente no interior de suas próprias casas, e não no espaço público,
coletivo (uma exceção seriam os trabalhos Passagens, de Anna Bella Geiger, que acontecem em
ambas esferas). Enfatizavam assim, não apenas a falta de disponibilidade ou acessibilidade à vida
social, mas a casa como sendo até então o espaço feminino por excelência, o controle regido pela
estrutura familiar e a aparente proteção da redoma doméstica. Tratam-se de exercícios de
observação subjetiva e crítica que questionam a automatização de suas rotinas e
condicionamentos em uma sociedade heteropatriarcal, revelando uma “arqueologia do tempo
presente”.127

Escrever sobre a Letícia me coloca muitas dificuldades. Não sou apenas filho da Letícia, sou também
filho de seu trabalho. De fato, muito do que eu faço, seja no plano da criação artística, seja no plano

126
MAIOLINO, Anna Maria. In. Cultura brasileira hoje: diálogos / organização, Flora Süssekind e Tânia Dias. Rio
de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018. 3 v., p. 22.
127
Letícia Parente sendo parafraseada por seu filho no artigo: Parente, André. “Alô, é a Letícia?”. eRevista
Performatus, Inhumas, ano 2, n. 8, jan. 2014. ISSN: 2316-8102.

111
intelectual, me remete de alguma forma ao trabalho dela. Por outro lado, fui não apenas testemunha atenta
de seu trabalho, mas também um colaborador em níveis muito diversos, mas sempre presente e interessado:
fui modelo, fui câmera, fui fotógrafo, fui produtor e fui mesmo coautor.128

[Anna Bella Geiger foi professora de Letícia Parente e também minha, quase 40 anos depois.
Recentemente tive a honra de dividir uma mesa com ABG em um seminário internacional a
convite de Flora Süssekind na Fundação Casa de Rui Barbosa, quando fica evidente para mim a
sua influência em minha prática. Destaco aqui o trabalho Circumambulatio, desenvolvido
coletivamente com seus alunos do MAM Rio em 1972, em ações/exercícios de observação na
Lagoa de Marapendi, que me remetem ao meu projeto de residência na Península (2010),
especialmente aos dias em que permaneci na ilhota, como mencionado anteriormente no capítulo
2. Anna Bella, carinhosamente, me enviou o texto de sua autoria que segue:

Arquivo CIRCUMAMBULATIO

A experiência do homem moderno em desejar viver num mundo dessacralizado, profano, é relativamente
recente no espírito humano. Para o homem arcaico o espaço não era considerado homogêneo,
mas com rupturas. Ele considerava porções do espaço como qualitativamente diversas. Sua percepção
de não homogeneidade do espaço irá constituir sua experiência primordial, e é anterior a toda reflexão
sobre o mundo. E nessa extensão desconhecida, na qual nenhuma orientação pode se efetuar, ele irá escolher
um lugar, determinar um ponto fixo, um centro, encontrando assim um fim para a tensão provocada
pela realidade e ansiedade alimentadas pela desorientação. A escolha ou projeção desse ponto fixo
equivale ao Gênese.

Circumambulatio, palavra do latim, significa o processo de concentração sobre o centro,


que se perpetua no ser humano, consciente ou inconscientemente (M. Eliade)

Alguma coisa dessa concepção do mundo e de suas imagens exemplares sobrevive ainda
no comportamento do homem moderno, contemporâneo, em sua língua e clichés, projetando-se
das formas mais diversas. Envolvida naquela época com o sentido espiritual da arte de modo específico,
nos modelos arquetípicos do simbólico (69-74), percebi a possibilidade de levar essas ideias para um coletivo:
a ideia de, através do simbólico poder revelar e levar a outro modo de agir na arte. Isto resultou
numa forma híbrida, fragmentada, em que se incluía um filme em Super-8, um audiovisual (significando
imagem e som) da qual foram recuperadas essas fotos de arquivo. Nessas imagens, resultado de ações


128
PARENTE, André. “Alô, é a Letícia?” eRevista Performatus, Inhumas, ano 2, n. 8, jan. 2014. ISSN: 2316-8102.

112
sobre o solo, onde a terra é tomada na sua imensidão, como único suporte verdadeiro, a única alternativa
para a Criação, redimensionava-se espacialmente toda minha escala de Ação e Criação
(ações seriam agora consideradas performáticas, apesar de não ser esta, enquanto atitude
a correspondência verdadeira) espiritual em relação ao nosso planeta.

Anna Bella Geiger


Agosto de 2012

A princípio, o objeto de pesquisa desta tese não era a maternidade ou a maternagem.


Como não posso e não quero fugir do que vivencio individual e coletivamente, proponho aqui,
quiçá, uma revisão arqueológica do nosso tempo presente, por parafrasear Leticia Parente. O meu
trabalho não é sobre, porém, relaciono a observação presente na maternagem com o tipo de
observação que emprego nos meus exercícios práticos há anos. Não são equivalentes, mas
relacionáveis. A minha recusa a engravidar se dava porque eu não queria comprometer o meu
trabalho produtivo nas artes que, até então, ocupava todos os vãos de mim; era a prioridade
absoluta. Quando engravidei, tinha a impressão de que eu seria a única mãe do meu grupo de
artistas, ou das que eu me identificava em certos procedimentos da prática, o que me provocava
um temor encoberto por uma atitude audaciosa sob o risco de botar tudo a perder, dada a aparente
incompatibilidade entre o mundo materno e o artístico profissional. Quando realizei o primeiro
projeto pós-maternidade, no MASP, me dei conta de que os mundos eram incomparáveis, mas
totalmente possíveis, orgânicos e compatíveis. O trabalho fotográfico do MASP em nada remete
à maternidade, mas sua preparação foi diretamente influenciada pela sensibilidade e demais
atravessamentos concomitantes, incluindo as multitarefas domésticas. Falar sobre maternidade,
então, passa a ser uma escolha, não necessariamente uma obrigação. Meus vãos foram
reconfigurados e aqui sigo.
Percebo que muitos desses anseios são datados e pouquíssimo falados entre nós, sejamos
mulheres ou não. Em meio à escrita da tese, comecei a questionar quem são as artistas
contemporâneas a mim que também são mães. Conscientemente, eu nunca as havia percebido. Na
conversa que tive com Cao Guimarães, ele me falou sobre a humanidade nascida com a
paternagem, o olhar para o mundo, além de nossos umbigos egoístas e nossas questões
individuais. Claro, as mulheres à minha volta engravidaram, deram à luz, circulavam ao meu

113
redor, mas eu nunca as havia notado, talvez por querer ignorar tudo o que aquilo representava e,
em nível inconsciente, me apavorava.
A mulher mãe e profissional não é uma minoria, mas é taxada como tal, diminuída e por
vezes excluída por uma sociedade heteropatriarcal. Quando falamos em sistema da arte, um nicho
ainda mais restrito e excludente, enfrentamos um preconceito meio velado, envergonhado,
politicamente incorreto. Diante do que venho conversando com tantas artistas cujas vozes vão
aparecendo neste texto, me parece fundamental levantar a discussão, já que muitas são postas de
lado, como se a maternidade fosse uma doença incurável que afeta estruturalmente as suas
faculdades, ou que será o tema predominante de seus trabalhos a partir de então. No caso em
particular das minhas contemporâneas, falamos muito sobre os bastidores de trabalhos realizados
durante e após a gestação de nossxs filhxs, com a participação direta ou indireta delxs, reforçando
que ser mãe, por si só, não impede uma artista. Pelo contrário, é sinônimo de produtividade no
sentido mais amplo da palavra, que assim como indica o assunto desta tese, não necessariamente
implica num produto, num resultado, mas num fazer constante. Não quero de forma alguma
retirar o grau de dificuldade e privação que as mulheres sofrem com a maternidade, mas
tampouco quero tratá-las como vítimas de um processo que pode ser positivamente transformador
e bastante fortuito, mesmo que, infelizmente, a afirmação não seja válida para todas. A minha
escolha é ressaltar com fervor a potência das mulheres que, apesar de qualquer adversidade, se
redescobrem e seguem. Aqui a pesquisa poderia se abrir a uma outra vereda, outra tese, de
observação e aproximação a outras mulheres, cis e trans, das mais distintas procedências e
comunidades, a outros feminismos, mas não tenho o tempo necessário para o aprofundamento
devido. Aqui fica o ponto de contato que não permitirá que a pesquisa cesse. A imagem virá.
Bianca Tomaselli foi a primeira artista que lucidamente acompanhei a gestação antes que
eu sequer pensasse em ser mãe. Entramos juntas no mestrado em Linguagens Visuais no PPGAV
em 2008. Lembro-me perfeitamente de como ela acariciava a barriga e comia uns frutos secos de
tanto em tanto durante os SPA (Seminários de Prática Artística) com o Milton Machado. Na
época, ela estudava a grade modernista e a sua traição, a sua impossibilidade como geradora de
repetição, especialmente a partir do trabalho da Agnes Martin e Robert Morris. Ela foi buscar no
misticismo uma relação entre a repetição e a alquimia, do semelhante gerar o semelhante, e da
integridade das partes. Algo não muito distante das referências de Tunga, por exemplo. No dia
em que ela decidiu expor a sua pesquisa ao grupo da faculdade, muitos se viraram contra ela,

114
algumas mães inclusive, atacando-a verbalmente pelo disparate, alegando o estar grávida, os
hormônios, como justificativa para a colocação descabida. Só agora atento para o grau de
violência que Bianca sofreu naquele dia.
No mesmo ano em que conheci Bianca, conheci Aleta Valente, durante uma apresentação
do meu trabalho a convite do professor Carlos Murad na Escola de Belas Artes da UFRJ. Foi uma
das mais participativas da fala, mas eu não sabia quem ela era, até que anos depois coincidimos
em uma residência de verão no Capacete (RJ). Aleta já era mãe desde os 18 anos. Grávida de oito
meses, prestou o vestibular para Educação Artística. Para o teste de habilidade específica, ficou
de pé e de lado porque, quando sentada, a barriga lhe cobria a prancheta. Entre o humor e o
ressentimento, ela conta a história como sendo apenas um dos empecilhos da maternidade na sua
busca por uma carreira profissional. Diz que não considerou o aborto naquela época por falta de
informação.

Nunca tinha ouvido falar em aborto em primeira pessoa,


(...) fora o fato de certamente envolver um dinheiro que eu não tinha.
De forma que escondi a gravidez até ser impossível. Talvez tenha escondido até
de mim mesma como se diante da sinuca eu tivesse ativado um modo avião
e passado a viver na superfície das coisas sem querer me aprofundar
no problema que não via saída.129

Aleta entrou e saiu da faculdade duas vezes e arrumou trabalhos informais que pudessem
dar sustento a ela e Sophia, hoje com 15 anos. Encontrou nas redes sociais, especialmente no
Instagram, uma ferramenta de trabalho para criar e expor um diário visual no qual mistura
imagens pessoais com as de seu avatar “Ex Miss Febem” (em referência ao seu bairro, Bangu,
periferia do Rio de Janeiro) e memes retirados da internet, provocando sempre alguma questão
pertinente à mulher, seu corpo, sua sexualidade e sua liberdade de escolha (#ex_miss_febem3 já é
o seu terceiro perfil porque os outros foram desativados pela plataforma por infringirem o
regulamento). Nos seus posts, Aleta raramente escreve, mas quando o faz, é de uma voracidade
imensa. Inclui algumas legendas, muitas delas que satirizam o instinto materno como sendo
inerente à mulher. Em uma apresentação recente no CEP 20.000, evento carioca dedicado
majoritariamente à poesia, a artista fez uma espécie de stand-up baseando-se na sua biografia e


129
Conversa com Aleta Valente, 09.10.2019

115
na pressão estandardizada por ser uma “boa mãe”. Em resposta, ela fala de aborto, sexo,
inadequação social, falência múltipla das instituições: família, academia, mercado formal. Em
novembro de 2019, inaugurou a sua primeira exposição individual na Galeria A Gentil Carioca
intitulada SUPEREXPOSIÇÃO. Nela, a sua filha transitava entre os visitantes vestindo uma
camiseta branca, como uma etiqueta ambulante com a ficha técnica da obra, com a inscrição
“Sophia Valente, 2004. Cesariana, dimensões variáveis”. Aleta também foi uma das duas
premiações deste ano da Bolsa Zum de Fotografia do Instituto Moreira Salles, com um projeto
sobre o seu trânsito entre a periferia e o centro do Rio de Janeiro.

Sobre bebês e sanguessugas

Era com certa felicidade que eu a assistia presa pela boca ao meu seio. Quando a boca descolava
do peito eu ainda podia ver sua língua em formato de concha, a boca era feita prioritariamente para isso
e ficava claro que podíamos bem passar a vida sem falar beijar assobiar ou seja lá o que for mas não sem
sugar um outro ser. Somos sanguessugas e não digo isso depreciativamente, é nossa natureza e vamos sugar
de tudo ao longo da vida. Vence quem souber fazer melhor. Ela é boa nisso, tem uma ferocidade congênita,
com as mãos mínimas agarra o seio que é duas vezes maior que sua cabeça e me ordenha, isso mesmo,
como qualquer filhote mamífero, agora não sou diferente de uma cadela ou de uma vaca, a existência dela
me animaliza. Tem uma preferência nítida por um dos seios, só pegava o outro depois que esvaziava
totalmente esse, e ainda assim dava pouca atenção, apenas dois beijinhos, uma mordidinha e caía no sono.
Dormindo ela fica sempre mais bonita. Levantava o mosqueteiro, colocava seu corpinho de lado,
existem muitas teorias pra tudo, mas ao se tratar de criança existem zilhões de teorias para cada coisa,
colocava-a de lado pois caso tivesse um refluxo, um súbito vômito, nessa posição ela não se sufocaria,
essa era a teoria da moda na época, agora passa na TV que a criança tem que dormir de barriga pra cima,
eu tenho outra teoria, se tiver que morrer vai morrer, o mundo não é dos mais fortes, mas de quem sabe
se virar. Abaixo o mosqueteiro, que é uma coisa que só serve pra acumular poeira, mas que persiste como
as tradições suspensas por pregos enferrujados, como não sou eu quem pago as contas, logo também não
decido o que é ou não é necessário. O seio esquerdo e desprezado dói, parece que vai explodir, as veias
verdes urdem desenhos com as estrias vermelhas, é quase bonito o cruzamento das cores, seria ainda mais
bonito se essa beleza não estivesse desenhada a fundo na minha carne. Volto a sentir as dores, o perfume
de leite azedo, sinto até o peso das olheiras sob os olhos vigilantes. Novamente o mesmo quarto, me vejo
andando encurvada ainda, pois que meu corpo se acostumou com o peso da barriga e já não se lembra
da leveza, do vazio, mesmo estando oco já, nunca mais voltaria a se lembrar. Eu ando em direção ao banheiro,
eu me observo atenta, poderia jurar que nunca vivi isso, se não estivesse revendo a cena. Seguro o seio duro
como pedra, endureceu pela falta de atenção, e expurgo todo esse amor acumulado sem vasão, aperto, e jatos
de leite se dispersam em todas as direções, acerto o espelho e no reflexo, bem .. no reflexo é como se eu

116
chorasse lágrimas de leite. O segundo aperto é mais eficiente, miro no ralo da pia, em parte eu acerto, a outra
escorre pelas minhas mãos, pelos cotovelos, penso nas crianças prematuras, no número dos bombeiros,
dizem que é só ligar que eles vão em sua residência para recolher doações de leite materno, mas o pote tem
que ser esterilizado, hermeticamente fechado, eu nem sei bem o que é isso e faço ideia que vai dar trabalho.
No terceiro aperto a marca dos dedos já fica na pele, feito as mãos num molde de gesso, posso ouvir os meus
pensamentos de antes por trás de um sorriso irônico – sou ama de leite de todo o subterrâneo.130

Foi indiretamente através de Aleta que conheci Louise Botkay. Durante a realização do
projeto Derivadores, meu parceiro de projeto Jonas Arrabal foi convidado para participar de uma
outra proposta coletiva na Baía de Guanabara, na ilha de Tapuamas de Dentro, conhecida como
Ilha do Sol, junto a Aleta e outrxs artistas. Tratava-se de uma série de performances durante um
fim de semana naquele lugar. A equipe de produção havia disponibilizado barcos fretados para o
público. Eu viajei com uma amiga na mesma embarcação que Louise e sua filha, uma
embarcação que ajudei a navegar porque o capitão não sabia ler a carta náutica da baía e estava
perdido em busca da tal “Ilha do Sol”. Ao desembarcar, fomos guiadas por María Sabato, nua, até
o local onde Aleta, também nua, havia se instalado para fotografar xs visitantes sem roupa.
Lembro claramente como Louise caminhava descalça sobre as pedras com uma destreza
impressionante. Ela enganchava os dedos dos pés e seguia como que dançando, carregando a sua
pequena filha no colo, que devia ter uns dois anos na época. Eu as observava com graça e
apreensão. Quando chegamos até Aleta, era nítido o quão à vontade Louise se sentia com o seu
corpo e a sua nudez, o quão desconfortável a minha amiga estava naquela mesma situação, e
como eu me encontrava no meio de tudo, consciente entre os dois mundos, porém totalmente
aberta àquela experiência, encantada com tudo o que via. Para mim a questão não era a nudez,
mas como colocar o meu corpo ali, exposto, ainda que para poucos olhos. Decidi me fundir a
uma pedra, mimetizá-la, me relacionando com a silhueta das ilhas ao fundo, enquanto a filha de
Louise comia uma banana diante da mesma Baía de Guanabara. A lembrança daquela cena é
quase dourada e até hoje apenas imaginei as fotografias que nunca tinha visto. Louise me mandou
uma na qual aparece com a filha posando para Aleta, que aparece de costas. Ela me disse que a
naturalidade da nudez veio principalmente com a temporada que passou com os Yanomami,
quando fez “Um filme para Ehuana”. O seu processo de trabalho se assemelha ao que chamo de


130
Perfil de ex_miss_febem3, 02.09.2018.
Disponível em: <https://www.instagram.com/p/B152RxQA1n3/?igshid=1s1frdbxv6vq4>

117
imagem no fim. Ela grava uma série de registros para determinado projeto, mas só monta o
material mais tarde, com um afastamento espaço-temporal significativo, permitindo que os
ânimos se acalmem e que a memória da experiência influencie suas decisões posteriores.
Foi também durante Derivadores que descobri que meu outro parceiro de projeto, Thiago
Barros, seria pai. Entre tantas saídas de barco, perto dos nossos aniversários, sua mulher, Ana
Dalloz, deu à luz Olívia. Lembro dele contar com entusiasmo das visitas médicas e
minuciosamente da magia do parto domiciliar. Eu, até então taxativa sobre não querer ter filhxs,
imaginava a Ana parindo em casa, sem anestesia, e aquilo realmente me parecia mágico e louco.
Eis que, com alguns meses de ouvir esses relatos familiares, fiquei grávida sem querer, por algum
deslize da biologia que manteve óvulos férteis durante o período menstrual. Dentro do meu
desespero, só conseguia pensar que precisaria interromper a minha vida e eu não estava disposta.
Contei para os meus companheiros marujos do barco sobre a gravidez. Maicon, o comandante,
também estava esperando uma filha. André tinha um menino de nove anos. Eles tentaram me
animar para aquela vida que surgia e de certa forma conseguiram. Mas com menos de uma
semana, a biologia talvez tenha recobrado as suas qualidades, e eu sofri um aborto. Dizem que é a
seleção natural que tende a rejeitar o corpo estranho, malformado. Também acredito que foi uma
maneira da seleção natural despertar em mim o desejo de ser mãe. Penso então na violência
engendrada no aborto, o sofrido e o desejado. A dor que se sente, a dor que fica, as dores
exclusivas da mulher. A memória visual daquelx que não chegou a ser. Diante da vida que me
escorria, nasceu a vontade de reter, a consciência de se querer mãe. Depois de muito tempo sem
contato com a Ana, resolvi procurá-la. Ela voltou a se dedicar a seus trabalhos autorais, decidida
a incorporar a maternagem como assunto; diz que ter se tornado mãe mudou não apenas a sua
forma de ver o mundo, mas de se colocar no mundo, e é a partir desse novo olhar que ela
pretende seguir trabalhando. Eu concordo. Contei a ela que só não pari em casa por
recomendação da doula, que tive um parto natural, humanizado, sem anestesia. Foi mágico e
louco. Não heroico como tendem a pensar, como eu também pensava. Um parto respeitado, com
a presença exclusiva do pai, da obstetra e da enfermeira obstétrica. Talvez tenha chegado até ali
influenciada pelos relatos do Thiago sobre a Ana, pela militância sorrateira que aos poucos vai se
ramificando.

118
Na pesquisa militante de nossas próprias vidas já provocamos tanto estranhamento nas referências
de subjetivação que nos foram passadas que vamos nos afastando daquilo que ainda oprime
e assusta – o inconsciente de uma organização social normótica e patriarcal, cujos registros de poder
e exploração são a mão pesada que segue controlando e apartando modos de vida de suas próprias linhas
de invenção. Para pesquisar a si, e colocar a si na linha de invenção, é preciso olhar para o confuso-em-nós,
o inominável-em-nós, a-perda-da-mulher-em-nós, e mais. Essas pulsões-estranhas-em-nós precisam ter
espaço, bastardizando a si… mesmas. Apontar para isso, para a incompletude dessa empreitada,
também é feminismo. Que não está nem pode estar fechado em ‘nossas redes’.131

Três anos depois das fotografias tiradas por Aleta na Ilha do Sol, a minha conversa com
Louise recomeçou a partir de uma publicação no Instagram em que ela dizia: “precisamos falar
de aborto”. Havia uma imagem de um corpo estranho em sua mão, ensanguentado, e ela
descrevia o aborto sofrido e o ritual de entrega à terra de todos os dejetos expelidos de seu corpo,
além dos litros de sangue perdido. Foi justamente após o aborto que sofri em 2016 que comecei a
perceber mais sensivelmente as mulheres, grávidas, mães, e as crianças ao meu redor, no circuito
das artes. São muitas, ovárias. Ainda um tanto presa à minha rede próxima, chamei Louise e mais
algumas mulheres para conversar. As que estavam grávidas comigo: Caroline Valansi, Clara
Cavour e Maria Borba. As que engravidaram depois: Duda Moraes, Glaucia Mayer e Maria
Baigur. As que já eram mães: Amanda Bonan, Ana Dalloz, Bianca Tomaselli, Cecilia Cavalieri,
Chiara Banfi, Lais Myrrha, Laura Erber, Keyna Eleison, Mara Pereira, Natália Quinderé e Paula
Huven. Desde então trocamos correspondências de áudio, que começaram sem eu mesma saber
ao certo a direção. Como eu não queria um formato de entrevista, não preparei roteiro nem
perguntas. Enviei áudios gaguejados nos quais, aos poucos, fui formulando um pensamento, que
a princípio pairava sobre a relação do trabalho profissional quando atravessado pela maternidade.
Conforme fui recebendo as respostas, também fui aprendendo e construindo melhor, não só o
meu pensamento e as réplicas, mas a diretriz para aquelas conversas e para a minha vida como
um todo. Foi inevitável a expansão das falas a outros tantos tópicos relevantes e concomitantes,
como gestação, aborto, parto, morte, puerpério, depressão, cuidado, redes de apoio, feminismos,
intelectualidade, amamentação, corpo, sexo, bebês, e tantos mais que poderão ser lidos a seguir.
Durante três meses, dividimos experiências, memórias e sensações, algumas já muito refletivas e
processadas, outras ainda nem compreendidas e que tiveram lugar durante a gravação de nossas

131
RIBAS, Cristina. “Feminismos Bastardos. Feminismos Tardios. Abortar o Estado Heteropatriarcal.” Escovar a
História a Contrapelo (2018): n. pag. Print.

119
falas. Noto como, em geral, existe uma identificação mútua, uma empatia, uma vontade enorme
de contar, uma necessidade de externalizar, e aqui tenho a oportunidade de contribuir um pouco
com isso, mesmo que me sinta insegura sobre a melhor maneira de fazê-lo. Tudo é tão delicado, a
intimidade, o avassalamento, as transformações. Escolhi, então, transcrever os depoimentos e
agrupá-los de acordo com as tonalidades e conteúdos, construindo uma colagem que suprimiu os
nomes individuais para enfatizar a multiplicidade das subjetividades. Pouquíssimos trechos foram
excluídos, com a tentativa de manter o texto mais coeso em suas tantas aberturas. Quem é
conhecedorx das histórias pessoais será capaz de reconhecê-las de imediato, porque as falas em
nada foram alteradas. É com muito respeito que incluo parte dos relatos em um corpo coletivo,
uníssono, sororo.

Corpo sororo

Afe maria, pouca coisa ein fia! Eu vou começar a falar, não sei assim,
já pensei muito sobre o assunto mas nunca verbalizei tanto. Então vamos ver o
que sai assim, do nada, pra uma coisa que ainda não foi tão processada
verbalmente, sabe? Como essas coisas não estão elaboradas, elas vão surgindo
aos poucos. A primeira tentativa de falar alguma coisa, eu achei tão
desinteressante que eu desisti. Estou há tempos pra gravar porque é uma coisa
que eu sempre penso mas nunca consigo tecer um pensamento mais linear sobre. É
um desafio. Não tinha muito claro que eu queria ser mãe, foi um mega susto, eu
era muito livre até então. Acho que a gente continua sendo, mas é outro tipo
de liberdade agora, talvez até mais gostosa. Quando eu paro para pensar de
fato em tudo o que aconteceu depois que eu fiquei grávida, eu penso: “caramba,
quanto tempo tem isso?!” Quanta coisa eu fiz e não fiz. Isso se torna uma
questão pra mim. Tenho muito o que falar, muito o que dividir, acho que são
vários processos, vários questionamentos, medos, muitas mudanças ao mesmo
tempo. Eu acho que vai ser um pouco longo, é muita coisa pra contar. Quando eu
tava pensando em gravar esse áudio, só me veio à cabeça todos os problemas que
aconteceram, como eu tive que abrir mão, aquela coisa meio cliché. Mas na
verdade, talvez eu quisesse falar de um ponto de vista quase místico que a
gravidez me trouxe. Como botar isso em palavras? Me trouxe uma força e uma
conexão comigo que estava meio guardada, meio perdida, e me trouxe mais
próxima de mim nesse desenvolver um trabalho autoral. É difícil explicar
porque é um sentimento que foi se refazendo dentro de mim de diversas formas,
então cada hora eu sentia uma coisa. Preciso falar mais, mas não sei se é por

120
aí, é que esse assunto está muito me interessando agora. Eu realmente tô
nadando nessa água. Um amigo médico dizia que a gravidez é um milagre. Eu
nunca compartilhei muito dessa opinião científica dele. Pelo contrário, o meu
médico obstetra era uma referência no parto humanizado e sempre me dizia que
as mulheres têm filho há milênios e a medicina obstetrícia tem apenas umas
centenas de anos. As mulheres sabem muito mais do que os obstetras. Mas esse
meu amigo médico dizia que, quem estuda medicina sabe de tantas possibilidades
de não dar certo que, a única resposta para um parto é que é um milagre.
Apesar de não concordar com ele, eu acho isso tão bonito. O semelhante gerar o
semelhante é um dos princípios da alquimia. Essa coisa de transformar o metal
em ouro é só uma desculpa pra se chegar na criação de um ser. Toda a procura
mais oculta da alquimia é a procura pela criação. Como se gera um ser? Como é
possível? Essa é toda a questão da criação do mundo, é uma coisa do mistério
mais absoluto. Tem uma parte de um livro antigo da alquimia, acho que no
“Codex Marciano”, que fala da divindade da mitologia egípcia, Ísis, que
remonta o pai esquartejado, e uma série de coisas que lidam com essa questão
do ser humano, da integridade das partes, dele ser parte e ser todo, que é um
problema do místico, da busca por uma integridade. É muito diferente você
estar grávida do que você ter filho, não são necessariamente continuidades, é
uma continuidade que tem rupturas, mudanças muito intensas. No meu caso, teve
muita mudança ao mesmo tempo, muita novidade, muitos sentimentos e desafios e
conquistas, tudo ao mesmo tempo. Eu morava no Rio, naquele começo de carreira,
finalmente concretizando e assumindo pra mim mesma a carreira de artista que
foi uma questão pra mim, porque eu sempre vi isso como o trabalho da minha
mãe. Mas eu sempre tive a certeza de que queria trabalhar com criação. E aí
foi o momento em que eu realmente assumi, veio pra mim. Daí veio a pintura
também, eu não sou presa à pintura mas foi o meio que eu escolhi porque eu
tenho intimidade, desde pequena eu convivo no ateliê, então foi uma forma de
expressão mais coerente. Tava tudo certo mas eu sentia uma angústia, uma
solidão, um vazio que eu não entendia o porquê, acho que era a falta de viver
um amor. Daí eu conheci o meu companheiro e foi tudo muito rápido. Ele já
morava na França há muito tempo, com dois filhos gêmeos. Eu tava livre e com
um trabalho que dava pra fazer em qualquer lugar do mundo. Então vamo embora,
vamo viver essa história. Em menos de um ano, me organizei e me mudei. Quando
eu cheguei, com uma mala e um cachorro, no mês seguinte eu engravidei. Foi
tudo muito rápido. A primeira sensação foi aquele susto mesmo, um mix de
emoção, felicidade, com muito medo desse novo, do desconhecido. Depois foi:
“eu não tô mais sozinha”. Então toda aquela solidão que eu sentia sei lá
porquê dentro de mim eu não senti mais, mas daí vieram muitas outras

121
sensações. Eu me lembro que quando eu fiquei grávida, eu não planejava, na
verdade eu nem planejava ser mãe, era uma coisa que não fazia muito parte dos
meus planos de vida, mas se eu ficasse grávida, se acontecesse, tudo certo. Eu
também não tinha muito essa ideia na minha cabeça, achava estranho até as
pessoas falarem que tem uma hora em que você começa a sentir essa vontade.
Engraçado é que de fato isso aconteceu comigo e com o meu companheiro. E se a
gente tiver um filho um dia? E quando eu comecei a pensar, me vieram várias
questões, porque ter um filho, na minha cabeça, é você conduzir um ser humano
e isso é uma coisa que te dá muita responsabilidade. Não consigo pensar nisso
de uma forma tão leve, é muito pesado. A vida e o trabalho que eu tenho
parecia não caber isso, a maternidade. Então eu pensei que nunca ia acontecer.
E quando aconteceu, foi um choque nos primeiros meses. Parecia que eu estava
meio vivendo um sonho, não entendia. Ficava assim, “será? o que será que vai
acontecer comigo?” Acabo de descobrir que estou grávida novamente. Um lapso de
novo. Quantos lapsos existem no mundo? (risos)
Quando descobri que estava grávida, todos da minha família falavam em
coro: “você será uma ótima mãe. Você adora crianças!” Eu achava isso bobo,
redutor. Achava o que sempre soube, as pessoas te conhecem pouco. Em doze anos
de casamento nunca quis ser mãe. Achava pesado demais. Ser mãe não era
definição do que é ser mulher. Então eu estava ali grávida e decidindo se
queria ou não um filho. Meu marido me disse: “estou contigo. A escolha é sua.”
Outro clichê, né?! Reconfortante, mas nem tanto. Poxa, estamos casados há
milênios. Você quer ter um bebê comigo ou não? (silêncio) Dormi e acordei
achando que estava perdendo o bebê. Corri para o banheiro e escorreguei no meu
próprio xixi. Foi assim que decidi ter meu primeiro filho. Dali, um mês
depois, sentia meu corpo pesado. Falta de vontade de fazer qualquer coisa. Não
queria sair da cama ou do sofá. Depois começaram as crises de ansiedade, a
angústia, os pensamentos de morte. Comecei a pensar no meu pai que perdi com
um ano de vida. Um infarto fulminante, durante um exame. Minha mãe tinha duas
filhas e estava com 32 anos. Eu estava grávida pela primeira vez com 33. As
crises foram aumentando. Ligava para as pessoas e pedia ajuda. Vem aqui ficar
comigo, quero pular da janela. E as amigas vinham, os amigos também. Minha
família fingia que nada estava acontecendo comigo: mãe, irmã, cunhado, marido
etc. Minha sogra dizia: “sua vida é maravilhosa. Seu marido te ama. Toda
mulher quer ter um filho. Reze, minha filha”. Eu apenas queria jogá-la pela
janela e me jogar depois. Troquei de psiquiatra, troquei de analista, troquei
inclusive de ginecologista, que pedia para eu ler Mindfulness e acreditar que
toda alma que vem, tem que estar na Terra. Ainda acredito que quem nunca teve
depressão não entende. Como não é uma doença como catapora, câncer, febre

122
amarela, e nossa sociedade é regida por esse saber médico do sintoma =
remédio... ninguém queria/quer tentar entender muito, na verdade. E, a meu
ver, nem os próprios psiquiatras.
Foi difícil o início da gravidez. Depois eu fui aceitando e curtindo a
história. Passei a ler várias coisas, a adentrar esse mundo da maternidade, a
ter um pouco mais de entendimento de tudo o que a maternidade traz pras
mulheres e pras famílias por consequência. Me preparei muito pro meu parto,
estudei muito, porque infelizmente no Brasil se você não estuda, não corre
atrás dos seus direitos, você fica refém de uma estrutura que quer mandar em
você, no seu corpo e na sua mente, e não necessariamente faz o que é melhor
pra você. Aí eu comecei a entrar de cabeça até que a minha filha nasceu. De
fato acho que a gente tem que conversar mais sobre esses assuntos porque as
experiências atravessam muito todos os canais da vida. Pra mim, se não for uma
mudança estrutural, ela não serve muito, não serve de nada, fico pensando
muito sobre isso na minha maternagem, no meu cotidiano com a minha filha. Bom,
como que eu começo? Qualquer escrita depois da maternidade é também uma
escrita sobre a maternidade.
Precisamos também falar de aborto, todos os tipos. Vou contar uma parte
do aborto que estou atravessando. No início de dezembro descobri com total
espanto que estava grávida (aqui caberia mais de mil páginas, o corpo,
emoções, toda força, minha compreensão da vida, tudo isso foi multiplicado ao
cubo enquanto fui abduzida por um disco voador desse vasto mundo). No dia 24
começou um sangramento, descobri então que a gestação simplesmente parou há
duas semanas. Na sexta passada quando o sangramento forte começou eu tava na
rua, ainda em comemoração natalina, junto com minha irmã e a família, num
restaurante tradicional de origem húngara. A enxurrada começou, fui correndo
para casa, desci do carro com o vestido branco ensanguentado, o porteiro
reparou, senti o olhar. Passei a noite sangrando litros, fiz questão de
guardar o máximo desse sangue e outras coisas espessas que saíam junto,
sentada no balde deixava descer, foi assim a noite toda. Litros, litros,
quantidade impressionante. No dia seguinte me sentia muito fraca, pressão
baixa, perdi muito muito sangue. Como é bonito o sangue. De tarde, mesmo com a
cabeça rodando fui até a floresta, pela trilha que conheço, fui para um lugar
bem escolhido, no pé de uma árvore que eu adoro, deixei tudo ali por cima da
terra, cobri com folhas, conversei com o mundo daquele hermoso dia de verão
azul. Fui ao rio, lavei o balde, me lavei, tive medo de desmaiar, mas que
nada, deu tudo certo, a luz era de ouro, a floresta toda era amiga, me
recebeu, me amou. Achei bom fazer assim, deixar ir pela privada me parecia
tristonho. Fiquei muito doída por que não pensava em ser mãe de outra criança

123
mas como por magia aceitei a gravidez e comecei a gostar muito da ideia, era
estranho pois, a cabeça, os medos concretos de ter de parar de trabalhar por
um tempo, as questões financeiras, questões do casamento, tudo dizia que era
melhor não ter, mas por dentro uma força mágica, do além, me dava a certeza
que era uma sorte, uma coisa linda acontecendo aqui na minha vida. A
descoberta da gravidez e o aborto foram dois abalos sísmicos consideráveis.
Muitos aprendizados ao mesmo tempo que me pedem atenção e consideração. Eu
voltei da França pra morar no Brasil meio que pra ter a minha filha. Eu estava
namorando há dois anos à distância e queria muito ter filho. Queria já no
casamento anterior. Eu era casada com um cara que eu amo muito, que é muito
amigo, e que não queria ter filhos. Ele é fotógrafo de cinema também, trabalha
viajando pra lá e pra cá. Ele tem uma filha, então acho que ele sacou que não
dava, e não queria ter filhos, era uma coisa dita. Então tinha esse desejo que
eu nem sabia o que significava. A gente ficou um ano liberado, transando
loucamente, plantando bananeira pra engravidar, e nesse ano eu estava me
readaptando no Brasil. Fui procurar as pessoas para trabalhar e não era fácil,
demorou um pouco pra coisa do trabalho (o de alimentar), começar a rolar. Daí
eu tinha tempo, eu tive tempo na gravidez e quando a minha filha nasceu. A
gravidez foi um momento de grande produção de filmes. Eu faço muito isso, eu
vou captando, daí o tempo passa e eu volto nas imagens de um ano, dois anos
atrás, e monto com esse delay. Então eu acho que eu montei dois filmes na
gravidez e quando a minha filha nasceu os filmes começaram a circular, a
aparecer. Eu estava meio brigada com o cinema, com o festival de cinema
clássico, porque eu achava que os meus filmes não se encaixavam. Acho que
antes da minha filha completar um mês, um curta meu ganhou um prêmio no
festival “Semana de Realizadores” e foi muito legal. Eu deixei ela em casa
depois de uma mamada, ela era muito pequena ainda, eu saí correndo, recebi o
prêmio feliz da vida, e voltei. Eu tenho essas duas frentes. Tenho o trabalho
que faz comer, que não é o mesmo trabalho que faz sonhar, que é o meu trabalho
pessoal. Esse tempo do comecinho eu pude usar bastante pra mergulhar nisso,
porque a vida ficou reduzida entre ser mãe e poder fazer meus filmes. Deu pra
juntar essas duas coisas. Em vez de me afastar, na verdade me aproximou. Eu
montei uma exposição, fiz a galeria toda e, 10 dias depois, eu pari. Foi super
legal passar a gestação trabalhando e pensando, seguindo a minha pesquisa.
Antes de eu ficar grávida eu vi o “Renascimento do Parto” e foi um filme
que me tocou muito. Uns 3 anos depois eu engravidei e tive a certeza de que eu
queria parir em casa, um parto respeitoso, que ela pudesse chegar no lugar
onde eu me sinto bem. Na noite anterior, eu já sabia que ela ia nascer. Eu
estava com 38 semanas. Antes de dormir eu senti um ploc dentro de mim, como se

124
fosse uma bolha de ar estourando. Levantei pra verificar e tinha uma aguinha
escorrendo, mas voltei pra cama. Fiquei sentindo a contração, mas não era
ainda o trabalho de parto. De manhã a enfermeira obstétrica chegou, mediu,
avaliou e disse “talvez demore ainda, então vai almoçar, vai dar um passeio, e
a gente vai se falando.” Isso eram 8 horas da manhã. Quando deu umas 10, eu
fui deitar. Levantei logo em seguida porque não estava aguentando de tanta
dor. A partir daí foi um trem descarrilhado, eu comecei a sentir muita dor,
entrei no chuveiro, foi aliviando. Mas as contrações vinham, vinham, e achei
literalmente que eu ia cagar a minha filha, eu sentia tudo atrás, com o
períneo expandindo. Achei que ia nascer antes da parteira chegar. Quando ela
chegou, me senti muito segura. Perguntei pra ela se já ia nascer e ela me
disse: “o quê que você acha?” Eu queria ficar de pé, eu precisava estar
conectada, com o pé no chão. Daí entrei naquela partolândia, desliguei de
tudo. Meu companheiro pegou a câmera pra fotografar, fez dois cliques, eu pedi
pra ele por favor não fotografar. Eu entrei num estado muito de alfa, pé firme
no chão. A contração veio, eu fechei o olho e vi a expansão do universo, foi
muito doido, foi a imagem que eu vi. Eu tomei consciência de que era a hora.
Minha filha nasceu, veio pra mim, foi tipo uma coisa inacreditável. Veio pro
meu colo e ficou mais de uma hora ali, mamando no peito, e eu me senti
totalmente drogada. Realmente estava, era ocitocina pura. Já recuperada, a
parteira me disse que o cordão da minha filha era muito pequeno, por isso a
cabeça tentava sair mas era puxada de volta. Ela teve que cortar o cordão
antes da expulsão porque ele estava enrolado em volta do pescoço. Mas em
nenhum momento eu tive medo, pensei em ir pro hospital, eu estava muito segura
da minha escolha. Meu companheiro e a parteira também. Eu acreditava muito no
meu corpo, na potência e na força, em momento nenhum eu questionei essas
escolhas que eu fiz. Não é uma história romantizada. Depois que eu pari eu
posso fazer qualquer coisa, mover mundos, e isso é muito lindo. Eu tive um
parto orgásmico. Não foi por causa da fadinha, não foi por causa de nada
daquilo, mas também foi de entender como é que o meu corpo estava funcionando.
E aí vem uma questão que eu acho muito importante de colocar dentro da minha
intelectualidade que é a ideia de como a gente desenvolve um corpo
intelectual. Não é à toa que se chama corpo intelectual, porque a gente separa
muito essa ideia de corpo, de alma. Tem uma eurocentralidade que separa muito
isso e é completamente desnecessária. Eu acho que tem uma inteligência que a
gente pode dar nisso, e aí pensar essa maternagem muito mais como uma
linguagem, como um contato com uma linguagem do que qualquer outra coisa. Eu
tava lendo muito sobre parto humanizado, violência obstétrica. Encontrei mais
ou menos alguma literatura sugerida por algumas amigas que tinham acabado de

125
ter filho. Sabia que tinha um puerpério difícil. Tinha visto até alguns vídeos
no Youtube sobre parto sem dor, então eu achei que eu estava um pouco
preparada. Eu fiz um curso com doulas e eram dois dias inteiros. No primeiro
encontro eu fui sozinha e no segundo fui com o meu companheiro. Eu achei que
estava arrasando, que ia ser super fácil. Nesse curso, uma das doulas me
perguntou se eu queria ter parto normal, porque eram aquelas mulheres mais
alternativas, então a maioria queria ter parto normal e algumas queriam ter
parto domiciliar, o que me assustava um pouco. Eu nunca tinha pensado sobre o
assunto. E a resposta que eu dei foi: “eu vou tentar o parto normal no
hospital, mas se o médico disser que precisa, eu não tenho o menor problema em
fazer a cesárea.” Havia mulher lá que dizia que cesárea só no último caso. Eu
estava na casa da minha mãe quando comecei a ter as contrações. Eu senti uma
dor tão absurda que eu disse que queria anestesia imediata. Meu companheiro
estava longe e meu tio me levou pro hospital. Cheguei lá e um médico super
bruto me atendeu. O meu médico demorou pra chegar e eu passei uma madrugada de
horrores. Não tinha banho quente. A anestesia só chegou 6:00 da manhã.
Melhorou um pouco mas eu tive uma dor muscular na perna que não passou. Meu
filho só nasceu 12:45 de cesariana. Eu não aguentava mais depois de 12 horas
de trabalho de parto. Ele nasceu super lindo, foi um pouquinho pro meu peito,
tipo nem um minuto, e já levaram ele embora. Ou seja, tudo aquilo que eu tinha
lido, que tinha que amamentar, não rolou. Fiquei lá sendo costurada, chorando,
bem desesperada, cansada, com medo. Primeiro filho, 4 horas de parto. Ele foi
cuspido, literalmente. Me lembro de ter pensado na minha gatinha que vi
parindo algumas vezes. Ela ia para um cantinho e ficava ali tendo cria por
cria bem quietinha. Depois lambia todas. Pensei, no momento mais crítico da
dor, se ela pode eu posso. Não tinha quarto especial. Tive parto normal em uma
sala cirúrgica. Estava suja de xixi e água. Lembro sempre do cordão umbilical
imenso, batendo forte, tipo um coração, eu pensei. É a imagem que guardo do
meu parto. Ele era de um azul ciano reluzente e vermelho misturados. O bebê
nasceu, eu tinha leite. Meu corpo dava sinais de que estava tudo bem, mas eu
não estava bem. Chorava todos os dias. Minha família fingia que nada
acontecia. Ainda queria me jogar da janela. Agora queria me jogar com ele da
janela. Quando o meu filho nasceu eu trabalhava no MAM, cursava o mestrado em
Artes na UERJ e minha mãe tinha morrido dois meses antes. Tudo o que eu queria
era ser acolhida, abraçada, cuidada. Mas eu que tinha que fazer isso com o meu
filho. Um misto de luto, maior tristeza do mundo, com uma alegria tão grande
quanto. Tudo junto e misturado. Mesmo recebendo esse acolhimento e carinho de
muitas pessoas, eu me sentia órfã ao extremo. Nunca preenchida pelos cuidados.
Eu não tenho como dizer que foi tranquilo o puerpério e os anos seguintes. A

126
vida não parava para eu me cuidar e minha família toda estava em luto.
Aconteceram mais inúmeras situações que fragilizavam a mim e à minha
família. Sempre foi muito evidente para mim como a experiência da maternidade
caminha colada na condição de classe social, contexto territorial e social,
religião e sobretudo de corpo de cada pessoa (idade, raça, gorda/magra,
gênero/sexualidade, traumas, complexos...). Nas tramas geradas a partir dessas
combinações, nas subjetividades, mas que ainda assim pode haver pontos em
comum. As falas, relatos, vão passar sempre por esses caminhos. No dito e no
não dito.
Do que eu me lembro desse primeiro momento... Eu vinha de uma
experiência criativa, de produção, de trabalho intelectual que sempre foi
bastante caótica, sempre consegui produzir muito bem numa certa bagunça,
também porque sempre fiz muitas coisas diferentes. Sempre tive essa questão de
uma certa concomitância de práticas, de estudo. Isso me ajudou muito no
momento em que eu tive os meus filhos porque eu sempre produzi na confusão.
Não foi uma ruptura tão grande. Com os filhos, as práticas mais longas elas
acabam ficando mais interrompidas. Eu já vivia uma vida de muitos
atravessamentos e muitas interrupções entre as várias atividades, os meus
interesses diferentes. Esse momento de ser mãe, pra mim é até meio difícil de
explicar, porque não foi uma coisa assim de tempos concorrentes, e aí que eu
acho que é o grande mistério. Se começar a pensar demais, é, realmente, eu
tive um filho numa época muito louca, mas acho que sempre é. É muito curioso
porque quando o bebê chega em casa, pelo menos pra mim, eu tive muito uma
consciência de que era uma outra pessoa. Eu falei, “cara, essa pessoa tá aqui
agora na minha casa. Qual que é dessa pessoa?” O bebê não é uma página em
branco. Isso definitivamente não é. Então você vai conhecendo aquela pessoinha
né? É muito interessante isso tudo, esse processo de conhecimento dessa outra
pessoa, e é uma relação que, nesses primeiros meses sobretudo, é muito intensa
do ponto de vista corporal, mental. É uma experiência que tudo o que você
passa naquele período está permeado por isso. Eu via muita gente com muitas
questões quando engravidou, perguntas. Eu nunca fiquei me fazendo muitas
perguntas. E é muito louco porque, depois que eu tive filho, parece que sempre
tinha tido filho. Tem gente que fala que fica com dúvida como é que vai fazer.
Não sei. Tanta coisa pra falar. Juro! Minha mãe, quando eu chorava com o bebê
no colo, me perguntava se eu tinha tomado o remédio direitinho. Passei três
meses dizendo para minha psiquiatra que aquele remédio não me fazia bem. Eu
tomava e piorava. Ela me dizia: “impossível.” Minha mãe repetia: “se a
psiquiatra disse...” Até que, certo dia, a mesma psiquiatra me disse, “preciso
rever seus medicamentos, pois em 10% da população, esse remédio causa efeitos

127
reversos.” Hã? Por que ela não acreditou em mim quando eu repetia e repetia e
repetia que aquele remédio piorava meus sintomas? Eu estava morando no Rio na
época. O Rio começou a ficar bastante impossível na minha estrutura familiar,
financeira e tudo, e eu decidi voltar para BH. Eu voltei a conviver com a
minha mãe e foi muito impactante voltar a conviver com ela tendo me tornado
mãe. Quando eu morava no Rio, a gente tinha uma relação distante, se falava e
tudo, mas não era muito próxima, não só por não estar na mesma cidade, mas eu
acho que, intimamente, afetuosamente, não fazia parte de um cotidiano. Quando
eu voltei pra cá, a gente retomou esse contato, até porque a gente morou
provisoriamente numa mesma casa, e isso foi muito visceral. Cometemos aquele
erro básico de pais de primeira viagem e fomos com a criança pra casa dos pais
do meu companheiro. Minha mãe falava que eu ia precisar de ajuda, a gente
morava numa casa com escada, não tinha empregada nem ninguém pra cozinhar, a
gente precisaria de um certo conforto. Foram dez dias de completo horror.
Naqueles primeiros dias que o peito está muito grande, gigante, e a criança
não consegue mamar direito. Meu filho teve dificuldade de pegar a embocadura,
aí ficava aquela tensão em volta, ele não parava de chorar. E quando ele
começava a chorar no meu colo, a minha sogra vinha e tirava ele, pra levar não
sei pra onde, e ficava sacudindo para ele parar de chorar, e a criança berrava
porque tinha fome. Em dez dias, ele tinha que emagrecer o que seria o normal,
mas ele emagreceu um quilo e ficou muito magro. A gente levou no pediatra e o
médico se assustou. A gente entrou com fórmula e com 23 dias ele desmamou,
porque ele preferia a mamadeira. Foi um período péssimo de puerpério. O meu
companheiro e a minha sogra dizendo que eu não tinha leite, que eu não dava
mamá direito, e eu só chorava, só chorava, só chorava. Mas eu tinha um grupo
no Facebook, o “Santas Mães”, e lá eu consegui o contato de uma consultora de
amamentação. Ela foi lá em casa e disse que eu tinha muito leite, que eu só
precisava de um jeitinho de entender melhor a questão toda, e ele voltou a
mamar. E quando ele voltou a mamar, a gente mudou de pediatra, porque ele
achava que era isso mesmo, que tinha que dar o leite em pó. A nova pediatra
mandando tirar esse leite em pó que não fazia sentido. Eu fui voltando a dar o
mamá do peito e depois de um mês e pouquinho ele estava mamando de novo e ele
mamou até 2 anos e 3 meses. A parada foi muito radical. Eu não tinha entendido
o tanto de conhecimento, o tanto de coisas que você precisava entender, mas
acho que é um processo muito particular mesmo. Eu não tava ligada no que eu ia
enfrentar. Eu lembro que o primeiro mês, acho que os três primeiros meses,
foram muito difíceis. Mesmo eu tendo muito apoio em casa, da minha família,
dos meus pais e do meu companheiro, parece que ninguém sabia muito bem o que
fazer. Nem eu. Fui aprendendo ali na raça mesmo. Nesses primeiros meses, bem

128
nesse início mesmo, um pouquinho mais, eu não me entendia como eu. Até outro
dia eu estava lendo alguma coisa nas redes sociais sobre uma exposição que
estava acontecendo que fala sobre o que cria dentro da gente quando a gente
cria alguém. Eu ficava pensando o quê que isso fez comigo. Eu já não conseguia
pensar em mim. Depois do inferno inicial, a gente voltou a morar na nossa
casa, as coisas foram se encaixando e a gente entendendo um pouco mais. Eu e
meu companheiro não queríamos voltar a trabalhar. A gente fazia planos de ir
morar no mato, sair do Rio de Janeiro. Meu filho nasceu em maio de 2013, bem
nas épocas das manifestações em junho, eu amamentando na Lapa e ouvindo
aquelas manifestações loucas ali embaixo, bombas de madrugada. Meu companheiro
acordou um dia dizendo que ia voltar a ditadura, que a gente tinha que ir
embora, que a gente ia ser perseguido. Estávamos panicados, todo mundo na rua,
e a gente amamentando aquele filhotinho, só ouvindo a confusão e as bombas.
Foi tudo um processo. Então fiquei dois anos ali. Indo para análise três
vezes na semana e cuidando do meu bebê. Ainda hoje acho difícil trabalhar. Era
daquelas pessoas que precisava de doze horas seguidas para escrever três
páginas. Quase três anos depois do nascimento do meu primeiro filho tenho em
média quatro horas por dia de escrita, trabalho. Quero fazer mil coisas,
projetos de exposição, trabalhos de publicação, traduções, mas as mil coisas e
os mil planos ficam aqui guardados porque, no final, opto sempre por estar com
ele. Não consigo cortar esse cordão. Quer dizer, às vezes até consigo. Uma
grande amiga me perguntou se eu tinha percebido a transformação dela depois de
ter sido mãe. Eu disse: “não.” Suas neuroses estão todas aí contigo. (risos) A
gente muda e não muda, acho. Não tenho nenhum romantismo em relação à gravidez
e à maternidade, porém, talvez, eu seja uma das mais românticas. Tenho uma
amiga que me dizia que jamais teria parto normal com medo de fazer cocô na
frente da equipe médica. Por que não podemos mostrar vulnerabilidade se
estamos, sim, em um momento vulnerável? Outra me disse que se sentia um bicho
dando de mamar. Ué, mas a gente é um bichinho mesmo, eu pensei. Toda a
morbidez da minha gravidez parece reflexo da morbidez da nossa sociedade
contemporânea. Mas essa morbidez que está nos meios de comunicação, em todo
lado, é paradoxalmente mascarada pela circulação das imagens e das notícias.
Tem uma relação entre vulnerabilidade/morbidez/o não querer pensar em morte.
Da disponibilidade, acho que essa é a palavra, já não é a mesma para se
entrar até o fim. Quando a minha prática virou a minha pesquisa eu realmente
pensei que eu ia produzir muito mais do que eu produzi, porque eu engravidei,
tive filho. A maternidade me fez entender que eu não tenho o controle, que é
puro descontrole; um descontrole das horas, do dia, os primeiros seis meses
pra mim foram um grande mesmo dia que eu estava presa ali naquele dia da

129
marmota. Então encontrar as brechas com ela no colo, amamentando, com uma mão
só, anotando com a mão esquerda, começou a sair, o trabalho começou a fluir
com mais verticalidade porque o tempo fica muito curto e eu precisava fazer
render as horas e, inicialmente, eu só tinha um dia por semana, 3 horas, que
era quando ela ficava com a minha sogra e agora tô conquistando aos poucos o
meu contorno de novo. O tempo é o que eu tenho aprendido, especialmente no meu
fazer artístico, a dominar e a compreender, e como que eu posso me dividir em
várias. Eu tô aprendendo, quando eu estou cansada, a não trabalhar, entender
que o tempo tá estendido e que eu não vou dar conta mesmo. A gente fala disso
na Cooperativa (de Mulheres Artistas). Não damos conta de tudo. Porque a gente
faz várias jornadas: é a jornada em casa, no trabalho, fora de casa, de um
trabalho que se você tem que fazer em outro trabalho, você na universidade, a
jornada de ativista, é o trabalho de ser alguém, então são muitas jornadas
para além de ser mãe. Dar conta de tudo o tempo todo não é saudável. Tem algo
de ser mãe que é muito importante no meu trabalho, de como eu cuido do meu
filho, eu também quero cuidar do meu trabalho, cuidar de mim, então quando eu
falo que eu não dou conta, é também o momento de eu conseguir parar, porque
talvez antes do filho, eu ia no limite, eu ia pelo tempo do mundo, e não pelo
meu tempo, então o filho te obriga a parar e a retomar um contato contigo. Eu
tenho vivido muito isso, de falar, “caraca, tá tranquilo”. Desde então, temos
aí 1 ano e 6 meses, só agora que eu comecei a dar um respiro. Passei a
respirar um pouquinho e pensar um pouco mais em mim de novo. Até então eu não
consegui muito. Isso é muito louco. Eu acho que nos moldes sociais
contemporâneos é muito cruel, porque a gente tem um desejo de desempenhar um
papel, a gente desempenha, só que essa relação química que acontece com a
gente pós-maternidade é muito de cada pessoa mesmo e é muito forte, muito
transformador. Eu entendo que o tempo é muito necessário aí e nem sempre a
gente tem esse tempo. Talvez a maior diferença que eu sinto é uma coisa de
energia, que agora eu sinto estar recuperando, uma energia que eu tava ali com
tudo pra aquilo, sentando, escrevendo, pensando, não que eu não tivesse minhas
dificuldades e inércias, sempre tive uma certa inércia pra começar a
trabalhar, e na hora que vai, vai, como se fosse uma coisa meio assim
intermitente, e isso sempre existiu e não tem nada a ver com o nascimento do
meu filho. Eu sinto é como se o cansaço não fosse só físico, fosse um cansaço
mental também, ou como se o cansaço físico interferisse no espaço mental, ou
não só o cansaço, mas como se a gente não tivesse mais aquele espaço na cabeça
pra poder pensar aquelas coisas, uma energia mesmo, um gás. Eu acho que com a
vinda dele rolou sim uma certa pausa, digamos, no meu processo de pesquisa, eu
acho que mais do que no processo, no ritmo. Eu acho que pra todo mundo quando

130
chega um filho, muda a dinâmica do cotidiano. Eu ficava muito agoniada de não
poder trabalhar. O meu ateliê agora é onde a gente morava, exatamente onde era
o quarto do meu filho, então é um lugar que tem uma estrutura para recebê-lo.
É uma bagunça quando ele vai lá, porque ele também não deixa eu trabalhar
exatamente, mas tem uma estrutura que eu posso, no meio do caminho, chegar lá
e deixar ele dormindo. Tem uma estrutura de casa que facilita muito.
Eu nem sei muito explicar. Eu acho que rola um isolamento, mas eu não
sei nem se é, não é, no meu caso, porque eu acho que é muito particular. Eu
tenho amigas artistas que não mudou, sabe?, o ritmo não mudou tanto assim.
Elas conseguiam trabalhar super bem com o bebê. Consigo pensar em duas assim,
particularmente, que botavam o bebê ali no cantinho de ateliê e ia junto,
sabe? Eu achava que eu ia ser assim também. No meu caso não foi. Eu demorei um
pouco mais. Mas eu realmente acho que é muito particular, como toda
maternidade é. Eu tenho ainda muita dificuldade de criação, eu sinto que o meu
tempo é muito fragmentado. Eu sinto falta de processos nos meus processos
artísticos. Eu nunca consegui juntar o meu trabalho individual com o trabalho
que eu faço fora, apesar de achar que está tudo meio interligado. Eu sinto
falta de poder estar mais presente no meu ateliê. Mas o que pegou pra mim foi
o seguinte: ok, eu preciso de tempo pra mim também, preciso de tempo de
concentração, mas como é que faz? Pra poder ter isso, eu preciso subalternizar
uma pessoa. Então como eu subalternizo alguém pra poder criar condições de
produzir o meu trabalho? E essa pessoa que eu estou subalternizando pra cuidar
da minha filha, essa mulher, quem que ela está subalternizando para cuidar dos
filhos dela? Quando você vê, você está presa numa cadeia de mulheres que estão
se subalternizando, se explorando de uma certa maneira, para dar conta de
entrar num rolo processor produtivista moderno-contemporâneo. Por quê? Essa
pra mim que é a questão.
Eu tenho um trabalho que se chama “Breve cronografia dos desmanches” que
eu comecei a observar quando teve uma grande aceleração do mercado
imobiliário, em 2012, que eu saía de manhã e quando eu via tinham 5 casas
demolidas de uma vez para construir um prédio. Depois passava um pouco e já
tinham mais tantas casas, isso tudo numa área muito pequena, muito próximo de
mim. Eu tinha acabado de ter filho, tinha muito pouco tempo. Começou a ter
notícia das ocupações que pegavam fogo, favela que pegava fogo, de
desabamento. Então eu resolvi fazer esse trabalho que era justamente da
observação da cidade, contemplando essas coisas que estavam acontecendo, com
pequenos textos que eu chamo de cronografia, mas a gente podia chamar de
tipologia em formato de crônica. A escrita tem esse tempo do pensamento. Eu
fiz isso justamente quando a minha filha tinha poucos meses, quando saía para

131
passear com ela. Eu acho até que depois que ela nasceu, parece que foi um
acelerador histórico, digamos assim. Minha gravidez foi muito boa, não tive
nenhum problema, não tive depressão pós-parto e eu era uma mãe bem feliz nesse
momento, apesar desse trabalho, que é uma continuação das minhas questões.
Talvez né, têm alguns textos especificamente que me reenviam à minha infância,
a lugares que eu cresci vendo uma paisagem que de repente mudou, e claro que
isso deve ter alguma reverberação, mas diretamente assim, eu não sei, sabe?
“Devastação” são retratos de mães e filhas. Eu fiz o trabalho quando a minha
filha devia ter 4 anos já. É um trabalho brutalmente atravessado pela
maternidade, por eu ter me tornado mãe e por ter voltado a conviver com a
minha mãe, essa avalanche de sentimentos confusos que a gente tem com tudo
isso, sentimentos fortes e bonitos e calorosos, como também sentimentos
violentos de toda ordem. Eu voltei a trabalhar aos pouquinhos. Meu filho tinha
uns seis meses. Eu ganhei um prêmio da Funarte, Mulheres nas Artes Visuais.
Fiz o livro da Julieta de França. Mas foi uma decisão séria de que eu não
faria mais produção, faria coisas que eu gostasse mais. Foi uma guinada para
começar a escrever. Comecei a fazer projetos que eu estava idealizando,
fazendo curadoria ou pesquisa. Eu não queria um trabalho fixo porque o meu
filho só tinha 2 anos e eu queria continuar amamentando. Eu recusei naquela
época. Eu só comecei a trabalhar fixo no MAR, 40 horas, quando o meu filho já
tinha 3 anos e meio. Acho que a coisa mais forte pra mim é que eu sinto até
hoje, ele fez 3 anos agora, como se eu aos poucos fosse voltando a sentir o
mundo como ele é mesmo, como ele era pra mim, a me sentir no mundo, na
verdade, como eu me sentia antes, muito aos poucos. A sensação que eu tenho é
como se eu estivesse englobada num treco assim, numa nuvem, num é uma nuvem
porque não era nebuloso, mas num universo, que não via fora, sabe? Acho que
talvez seja isso. E eu sinto que eu, aos poucos, desde que ele nasceu, aos
poucos esse lugar vai chegando de volta. Eu vou voltando a ver o mundo e a me
sentir no mundo como uma pessoa que pode ir e vir. Sei lá, que se alegra com
as coisas do mundo. Eu acho que eu fiquei muito absorvida, no bom sentido. Eu
acho que eu queria muito ter filho, então, quando ele nasceu, eu fui com tudo.
Abri mão de tudo com nenhum problema. Hoje eu até repenso isso um pouco porque
às vezes pode ter um certo excesso que a longo prazo não é bom, nem pra gente,
nem pros nossos filhos. Eu sinto como se aos poucos eu fosse voltando,
recuperando uma coisa boa da relação com as coisas e com o mundo,
redescobrindo o se sentir no mundo como era antes. Foi uma coisa que eu pedi
pro pai, que ele tinha que abrir mão de alguma coisa pra minha criação. Ele
não teve resistência nenhuma, ele é bem parceiro, e a gente ficou três meses
em Portugal. Eu fiz muita coisa lá. No primeiro mês eu não conseguia fazer

132
absolutamente nada, porque eu só pensava em amamentar, literatura sobre
infância e todo aquele universo, então foi ali que eu consegui me libertar e
ter tempo pra isso. Meu filho entrou pra uma escola e ficava em tempo
integral. Ele super se adaptou, deu tudo certo, então eu consegui fazer muita
coisa. Mas como eu lido muito com pornografia, erotismo, então isso também era
meio difícil, numa época em que eu não tinha muito o erótico dentro de mim. A
minha pulsão erótica, ligada ao sexo, estava muito baixa. Então ali também foi
uma redescoberta enquanto casal, porque a gente tinha tempo pra transar e era
uma maravilha, e também uma redescoberta do meu próprio trabalho. Meu filho
curtia muito ir lá, ver o que era o trabalho. Acho que porque eu saía de casa
e dizia “vou trabalhar, vou trabalhar”, e isso era uma categoria totalmente
abstrata na vida dele, e eu não me dava conta disso. Na hora em que ele viu o
que era, acho que ele tanto curtiu o que era, como aquilo ganhar uma imagem,
uma coisa concreta, foi muito maneiro. Então sempre que é um trabalho que dá,
eu levo ele, porque eu acho que ele vai curtir e eu também. Ele me ajudou a
arrumar as coisas, ficou com aquilo na cabeça: “ah o seu trabalho”. Eu sinto
um prazer em ir mostrando o mundo mesmo, mostrando as coisas que a gente faz,
as coisas que a gente gosta. A gente não precisa parar de trabalhar, a gente
não precisa parar de ser a gente, é só se adaptar. Tenho aprendido a adaptar
os meus horários, as minhas organizações. Eu sempre fui muito indisciplinada e
isso tem ajudado a organizar a minha rotina, a ser mais disciplinada, a também
não me culpar muito. Não deu pra fazer hoje, tudo bem, não deu pra fazer hoje,
mas de alguma forma eu tô fazendo. Eu posso não estar pintando, mas eu tô
produzindo dentro de mim e isso uma hora vai sair, de alguma forma que eu não
sei, mas vai, porque o trabalho fala muito pra gente. Eu sabia também que
quando eu começasse, o trabalho ia me guiar e é o que tem acontecido. O
trabalho está me mostrando os caminhos que eu tenho que seguir. Eu até tenho
esse projeto que tem um pouco a ver com o seu, que chama “Andar Imaginário”,
que eu pesquiso e tenho essa coisa na mente de como o lugar, e o que a gente
está vivendo, influencia no resultado do trabalho. É uma questão de se
reinventar, de se organizar de uma forma diferente. Tanto que hoje, quando eu
pinto e o meu filho está comigo, ele sempre pega o pincel e põe no meio do
quadro, faz o rabisco dele. Eu podia ficar louca com isso, mas eu deixo. Um,
que eu acho que é maravilhoso ver ele se adaptar, já desde sempre, a estar em
contato com isso, como eu tive. Segundo, é que, hoje, os meus trabalhos têm o
traço dele, porque ele faz parte da minha vida, então eu não ligo. Óbvio que
eu vou dar uma consertada aqui e ali, eu vou mexer, mas é como se fosse um
amuletozinho de sorte. Ele vai lá, dá o toquezinho dele, e eu faço com que ele
seja parte do meu dia-a-dia. A gente não precisa ter medo dessa interferência.

133
É óbvio que vai mudar, mas como você falou, não é negativo, sempre é de forma
positiva, porque é um amor tão grande que a gente vive, é um sentimento tão de
força. O trabalho que eu tô agora bastante focada é um trabalho que começou a
surgir há 3 anos, logo depois que o meu filho nasceu. Não sinto que é uma
coisa diretamente relacionada. Não sei, eu tô aqui pensando. Eu acho que é,
engraçado né, difícil assim, porque, eu acho que ainda é um tanto complicado
no mercado, ou sei lá, no entorno sabe, rola aquele breve apagamento da
pessoa, mas também acho que tem muito de mim, por exemplo, eu também me
isolei, eu também dei uma desaparecida digamos assim, que eu foquei bastante
na coisa toda do filho nos primeiros seis meses. E aí a volta foi um músculo,
sabe, pegando, reativando esse músculo, entendendo essa nova dinâmica, esse
novo ritmo, e essa nova pessoa que eu também tava me tornando. Por que a gente
muda tanto né, não sei de você, mas acho que rola uma mudança, assim, bastante
intensa. Durante o primeiro ano foi 100% ele, eu não tinha energia de pensar
em outra coisa, mas ao mesmo tempo eu ficava com aquela angústia muito forte
sobre o quê que ia ser, quem eu sou. Eu realmente não consegui trabalhar. Mas
eu sempre tinha essa certeza dentro de mim que eu tava ali dentro, alguma
coisa estava mexendo, e alguma coisa ia sair em algum momento e que eu
precisava entender como esse momento iria acontecer. De uma certa forma foi
uma preparação pra hoje eu estar recomeçando e sendo uma nova artista, um novo
propósito. Até o próprio assunto do trabalho, eu tô fazendo um retorno pra
essa foto dentro de casa, nesse espaço doméstico, que é muito ligado à
maternidade. Eu fotografei dentro de casa segurando ela literalmente com uma
mão e a câmera com a outra. Fui fazendo o que dava. Daí surgiu toda essa
pesquisa nova. Eu acho que eu estou muito dentro d’água ainda, dentro desse
aquário, pra falar com muita clareza, mas eu já sinto também muitas mudanças
positivas no meu trabalho, mais confiança e um pouco mais de foda-se. Eu vou
fazer o que eu preciso, no tempo que eu tenho. Eu não senti em nenhum momento
que a coisa da maternidade me completava. Eu ainda sinto a mesma coisa que
sempre me cutucou, me incentivou a pensar no trabalho visual, é totalmente
outro compartimento. Esse lugar do artista, dessas questões, de
questionamentos, de tentar achar um outro ponto de vista, de tentar dar pro
outro um olhar, ele não deixa de existir na hora em que você tem filho, eu
acho que se bobear até aumenta, porque você, não sei, dá uma vontade de
contribuir até mais. Eu fiquei super feliz com esse seu contato porque, de
alguma forma, ele apareceu como um espelho, porque eu tô num momento muito
parecido, eu estou escrevendo a minha qualificação do doutorado. Eu tenho mais
um mês de escrita. Entrei no doutorado grávida. Tive um processo de pesquisa
muito marcado pela gravidez e pelo nascimento da minha filha, que vai fazer

134
dois anos, mais ou menos junto com a qualificação. Eu entendo plenamente essa
impossibilidade de seguir com uma pesquisa ou até mesmo com um trabalho
artístico sem alguma aproximação com a maternidade. Não que a gente vá fazer
trabalhos apenas a partir disso, com essa temática, com essa propulsão, mas
acho impossível não ter nada a ver, porque a gente é literalmente atravessada
por esse acontecimento na vida. Eu acho muito legal você ter feito essa
aderência à pesquisa desse assunto. Minha fala é muito cheia de voltas, até
desculpa, mas tenho muita dificuldade de falar resumidamente, objetivamente,
especialmente sobre esse tema. Hoje tô sozinha em casa e acabei de ouvir a
neném chorando. Já volto.
Na entrevista para o doutorado me perguntaram: “você não pensa em
engravidar não, né?” Eu tive os meus dois filhos durante o meu doutorado. Eu
tive muito medo de como eu ia fazer. Pra mim a questão principal foi o sono.
Eu passei anos sem dormir direito. Essas coisas da maternidade. Nos quatro
primeiros anos, o maior desafio era continuar uma pesquisa com toda a questão
de um trabalho intelectual de leituras nessas condições, de um cansaço muito
grande, de uma falta de sono acumulada que vai minando o corpo, a mente, tudo
pouco a pouco. O maior desafio era inventar outras formas de estar fazendo
pesquisa e escrevendo. Mas o fato de estar fazendo um doutorado naquele
momento, não precisar ter um outro trabalho, eu fazia também exposições, mas
também não era num ritmo intenso, me deu uma possibilidade de encontrar uma
outra maneira. Eu sou muito rápida, eu leio muito rápido, escrevo muito
rápido, e fiquei muito lenta, me lembro dessa lentidão um pouco angustiante.
Será que eu vou ficar assim lerda, não consigo escrever um parágrafo com a
velocidade que eu tinha? Mas pouco a pouco eu voltei a essa velocidade. E a
coisa de não poder dormir. Você engravidou, algumas amigas engravidaram, e eu
falava: “meu deus”. Porque essa coisa de não poder dormir, de mudar
completamente a rotina, de você não ter mais nenhuma liberdade em fazer o seu
horário, ou decidir pra onde você vai. Isso não existe mais, principalmente
quando o bebê é pequeno. Hoje, minha cabeça é um quebra-cabeça temporal. Meu
corpo é cansaço, sempre. Fico calculando quantas horas por dia passei com ele.
Agora, que me descobri grávida de novo, penso: “gente, como vai ser tudo? Vou
dormir de novo?” Só penso que tenho que acabar minha tese. Depois penso no
livro fragmentado que Oiticica nunca terminou. Aí penso em largar tudo e ser
mãe em tempo integral. (risos) Depois da maternidade, o tempo sofre uma
mudança. Primeiro que a nossa disponibilidade, pra gente mesmo, é
absolutamente transformada com essa presença sem negociação que são os filhos.
O ritmo maternal é muito outro. Duas filhas é uma multidão. Isso me coloca num
ritmo de vida turbulenta, o tempo todo você está fazendo coisas ali, você leva

135
e busca na escola, vai fazer um almoço, lava a louça, não tenho ajuda em casa,
tenho uma faxineira que vem ocasionalmente. Agora minha mãe está pagando uma
pessoa para me ajudar todos os dias aqui em casa porque eu preciso escrever.
Esse ritmo de cuidar dos filhos é muito acelerado. Você tem coisas ali pra
fazer e a criança não espera, é aquela hora dela, hora de comer, de dormir, de
trocar a fralda, de brincar, de guardar as coisas, é uma coisa atrás da outra
freneticamente. Ações, ações, ações, uma depois da outra. E daí eu comecei a
estudar e o estudo é lento. Pra você ler um livro, você demora. Você vai lendo
e a leitura associada ao pensamento é lenta. Mas, no princípio, eu não
entendia isso. “O negócio não vai, não anda, eu leio e não saio do lugar. Na
hora de escrever, eu não escrevo nessas duas horas que eu tenho. Nossa, duas
horas que eu tenho pra escrever e não produzo nada.” É uma dificuldade enorme
de conciliar esses ritmos, da vida, da turbulência do cuidar, com o ritmo de
outra natureza e velocidade que é a pesquisa, o trabalho artístico. Mesmo quem
trabalha com fotografia, que é uma fração muito mínima de tempo, pra gente
chegar nessa mínima fração é um tempo enorme. Por ser fotógrafa e por
trabalhar quase que exclusivamente com fotografia, me exige estar num lugar,
um deslocamento e uma presença que é difícil também nesse momento. Então a
produção fotográfica acaba se voltando pra assuntos muito próximos do
cotidiano por uma dificuldade física de também estar um pouco longe. Como é
impossível deixar de pensar, criar, produzir, a gente acaba se lançando a esse
universo mais próximo e mais íntimo. Também por isso. Com a fotografia eu não
posso estar em qualquer lugar do mundo aqui dentro da minha casa cuidando das
minhas filhas. Daí a gente vai lá na Virginia Woolf, quando ela diz que uma
escritora não precisa de piano nem de modelos, nem de Paris, Viena ou Berlim,
nem de mestres ou de amantes; que foi pelo preço baixo do papel que as
mulheres deram certo como escritoras. Eu acho que foi mesmo pela
disponibilidade insistente do papel e da caneta. A perspectiva de estudar, foi
bom pra mim, ter esse lugar como lugar pra voltar, depois que eu me tornei
mãe. Eu nem pensei, já tinha uma data para começar a voltar. A minha escrita
ficou muito contaminada obviamente pela experiência da maternidade porque o
meu olhar para o mundo se tornou outro, e eu coloquei muito a experiência da
maternidade na minha escrita. De alguma maneira, me colocavam a pensar
enquanto mãe, enquanto pessoa que está produzindo agora e como isso amplia e
limita a minha escrita. Foi fundamental ter sido orientada por uma mulher, uma
mulher que é mãe. Eu tive uma coisa de escrever pra mim, sempre que acontecia
uma coisa mais emocionante, eu tenho algumas cartas que eu escrevi pro meu
filho, curtas, bilhetes, mesmo no e-mail ou à mão, poucas, mas de momentos que
foram importantes pra mim, ou que eu senti uma coisa, ou momentos de mudança

136
dele. A maternidade me revira toda sempre. Mudou tudo com o meu filho já na
barriga. Me vejo mais combativa, meu senso de justiça se intensificou
bastante. A pesquisa sobre infâncias e racismo vem daí, junto com as artes
visuais, literatura infantil e políticas públicas. Passamos por incontáveis
situações de racismo, enquanto família inter-racial. O que a gente faz é muito
sinistro, que é dar conta dessa experiência avassaladora que é ser mãe e
produzir alguma coisa. Com o primeiro filho me entendi mais libertária do que
já achava que era. Estamos presos, pelo menos eu, em alguns parâmetros
burgueses. O filho me deu consciência e força para lutar contra modos
tradicionais de estar no mundo e de como eu quero fazer parte do mundo, ao
lado dele. Estou na luta por mim e por ele. Eu vou incluir a minha filha nos
meus processos, portanto eu vou trabalhar com ela. Tive várias conversas com o
meu companheiro sobre isso. O pai, nesse sentido, quando você está numa
relação hétero-cis, fica um pouco ressentido desse mundo ali, porque era uma
coisa só, essa mulher com essa barriga e essa coisa por dentro, depois
continua sendo uma coisa só que virou do avesso. Então ele fica meio de fora,
não entende os processos, fica reativo, e a gente não consegue abrir muito a
mão das coisas porque está acostumado a ser um só, tem um processo de
separação que também é construído. E aí ele me perguntou: por que você está
estetizando a sua relação com a sua filha? E eu achei uma pergunta um pouco
alfinetante assim. Ele estava preocupado que eu transformasse a menina em tudo
o que eu tinha, que era relevante pra mim, tipo a razão do meu viver, segundo
uma impressão dele. Não se trata de estetizar a minha relação com a minha
filha, se trata de incluí-la nos meus processos uma vez que, o me separar dela
em mil instâncias, implica numa interferência complicada do mundo que eu não
dou conta. Eu não dou conta de ter babá, de pagar 3 pau de escola. Não vou, me
recuso. Não dou conta de estar sozinha, eu não consigo, porque ela está o
tempo todo pedindo, junto, mamando, chegando, querendo atenção. Ou eu incluía
ela nos meus processos, ou me separava dela pra ser mais uma artista que faz
um trabalho desvinculado de qualquer experiência materna. Não tô falando que o
meu trabalho virou um trabalho sobre maternidade. Mas a partir da experiência
radical de ter um filho, eu comecei a inserir a radicalidade em todos os
âmbitos da minha existência. Por exemplo, eu faço parte de uma universidade
pública, o meu companheiro é professor de uma universidade pública, qual é o
sentido de eu botar uma criança numa escola particular? Pra mim não faz. É uma
radicalidade que eu adquiri com a experiência da maternidade. Eu não consigo
ter uma mulher preta na minha casa cuidando da minha filha enquanto eu
trabalho. Primeiro que eu nunca tive esse tipo de experiência, minha mãe
sempre trabalhou muito e eu sempre fiquei em escola o dia inteiro, a coisa da

137
babá não era uma cultura, eu fui criada entre a escola e a vizinha. Minha mãe
dava uma grana pra vizinha pra ajudar, mas era isso, a gente se frequentava,
era muito mais próximo de uma experiência de comunidade, que as pessoas se
cuidam, se olham, do que a experiência de mulher branca de centro de cidade,
que fica sozinha em casa chorando com a criança que não larga o peito e
querendo matar a criança e se matar em seguida. Não posso trabalhar sozinha,
tem uma criança comigo, então ela vai trabalhar comigo. A partir da noção que
a minha filha estava infiltrando todos os buracos que eu tinha disponíveis,
todos os espaços mentais, físicos, fisiológicos, eu desenvolvi uma série de
infiltrações, chamando o filho de infiltração, que é uma coisa que você não
contém, vaza e chega e preenche, não deixa espaço. Não acho que toda mãe tem
que incluir filho em trabalho. Acho errado isso de cagar regra, eu tô falando
de uma experiência minha, do que faz sentido pra mim. Tem mulher que tem filho
e se arrepende, e é super legítimo, é normal, a gente foi criado pra
reproduzir sem nem pensar sobre isso. Ou a gente produz novos modos de existir
no mundo, novos aldeamentos, ou a gente vai continuar se fodendo, ainda mais
as mulheres, nessa rede de mulheres em cadeias de subalternização. Acho
escroto esse tipo de feminismo que exclui criança porque, a partir do momento
que você exclui uma criança, você exclui em geral uma mãe. Como harmonizar
essa existência de crianças com adultos numa sociedade que precisa melhorar? A
gente tá vendo que está dando tudo errado, o projeto moderno civilizatório tá
todo cagado. Como pensar com mais fluidez e de um jeito mais feminino, um
pensar outro, pela diferença? Quando passei no ano passado para a bolsa de
curadoria e viajei por mais de um mês, foi um drama. Meu marido disse: “Ele
ainda mama. Falei com mainha e ela me disse que o melhor lugar para um filho é
sempre com a mãe.” Por que é só com a mãe o melhor lugar para o filho? Essa
frase ecoou na minha cabeça durante muito tempo. Banquei a ida pra viagem
sozinha, mas foi pesado para mim. Pesado porque, mais uma vez, estava sozinha
na minha decisão. Tenho aprendido a me encontrar de novo no mundo. Tenho
aprendido também a estar no mundo em outro tempo. Um respeito e uma delicadeza
comigo. Quando meu filho nasceu, todo o peso de criar uma pessoa, aqui,
explodiu com a bolsa. Então, pra mim, o que eu posso dizer é que foi o maior
aprendizado da minha vida. Não foi fácil, vários dias que eu achei que estava
deprimida, mas não, era cansaço mesmo. No meu caso foi essencial toda essa
experiência por um processo meu de amadurecimento como mulher, como pessoa,
como adulta, sair um pouco do estado de filha, para mãe, para mulher. A minha
relação com o trabalho tem sido isso, e eu tô muito feliz com o que está
saindo, eu sei que ainda está em andamento, que tem muita coisa pra botar pra
fora, mas a gente fica com uma força, com uma vontade muito grande, então é

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muito positivo, mas cada um vive de uma forma porque depende muito do momento
que a gente está, pode ser que eu tenha um outro filho e esteja num outro
momento, uma outra relação. A gente passa a se valorizar mais também. A
maternidade só agregou pra mim, por mais que eu tenha ficado quase dois anos
parada, na verdade eu não estava parada, eu estava ali dentro de mim. Como
você falou, pode ser que o trabalho não dê em nada, mas a coisa já está sendo
feita de alguma forma. Os resultados nem sempre saem como a gente espera,
então o grande lance é que a gente aprende a lidar com o inesperado e isso pra
mim foi essencial. É uma relação mesmo com o tempo. Dentro de mim eu pensava,
vai vir, um passo de cada vez. Você vai aprendendo a ser mãe, eu ainda estou
em aprendizado, mas a gente dá o nosso melhor, o que a gente pode.
A Casa Jangada foi criada quando o meu filho nasceu, e a gente fala
muito sobre maternidade, cuidado. Ali é uma casa de cuidado, mas a maternidade
é muito viva, os filhos estão muito presentes na casa. Então isso faz muita
diferença. Se ele estiver doente e não tiver com quem deixar, os próprios
frequentadores da casa cuidam dele também. É um lugar em que existe essa
horizontalidade, essa rede de afeto, de contorno. A Casa Jangada me ajudou
muito a perceber que, estar em lugares que têm uma infra, uma possibilidade
pra criança, ajuda muito. A gente tá inventando a maternidade possível pras
nossas famílias. Eu penso no pai dela, como é difícil pra ele acompanhar esse
mergulhão que a gente tem que dar e eles também, todos os cuidadores
envolvidos. Nesse entrar muito pra dentro, eu tive que sair muito de mim,
porque a gente tem que pedir ajuda, a gente tem que falar, tem que criar
redes, tem que se costurar. Isso que você fez é super bonito, é dobrar isso,
transformar tudo isso que está revolucionando a gente, transformar em alguma
coisa no mundo. Eu tô vivendo várias coisas loucas, boas, selvagens,
maravilhosas e difíceis também. Eu levei a minha filha pra uma fala e o pai
ficou segurando ela do lado de fora. Ela chorava, chorava, chorava. Eu tava
com um canal ligado na fala e o outro ligado nela. E chegou num determinado
momento, pela primeira vez nesses onze meses, que eu também me entreguei ao
descontrole e dividi com todo mundo que tava na fala: “gente, eu não tô
conseguindo, não vai dar pra mim.” Eu fui ficar com ela. E foi uma conquista
falar “eu não vou conseguir”. Eu também me dei conta de como eu não tinha
ajudado as minhas amigas mães, eu também não tinha nenhuma intimidade com a
maternidade. Aquilo me chocou bastante porque acho que a gente vive muito
isolado como comunidade. Quando eu era pequena um monte de gente cuidava de
mim, vários avós, vários tios. Meu filho é criado por mim e pelo meu
companheiro, basicamente. Ele tem finais de semana com os avós e ponto. Eu
acho que isso não é natural. O natural é ter uma comunidade em torno da

139
criança. Isso me deixava muito frustrada. Amigos que somem. Gente que te
chamava pra ir ao cinema e que não conhece o meu filho até hoje. Foi tudo
muito novo e eu tive muito pouco apoio, por estar longe, por não ter meus
amigos, por não ter a família perto. Isso deixa a gente um pouco travada. Eu
não soube pedir muito. Então foi uma coisa muito de construção sozinha, eu e
meu companheiro, a gente muito parceiro, muito junto, ele trabalhando pra
caramba, a gente mudou de casa, tudo ao mesmo tempo. O meu filho nasceu e uma
semana depois a gente estava se mudando, com a casa em obra. Todo o processo
sempre foi tudo ao mesmo tempo.
Pra mim tinha uma coisa muito importante que também me levou pra
universidade. Eu queria muito ficar com os meus filhos, estabelecer uma
rotina, eu tinha uma vida muito sem rotina por conta dos trabalhos de arte,
das residências etc., e pra mim foi decisivo porque eu queria ter uma vida com
uma rotina doméstica. Não tinha mais um interesse em tantas viagens etc. Eu
com 25 anos fiquei muito doente de repente, e era bem num momento em que eu
fazia muitas coisas como artista e aquilo também foi muito decisivo para
entender que eu precisava de ter uma rotina, porque eu acabo ficando muito
mais descuidada, trabalho demais, não consigo medir muito essas questões. Eu
tive meu primeiro filho com 29 anos e a outra 3 anos depois. Eu tive uma
situação muito confortável, de muita ajuda dos meus pais. Quando a minha filha
nasceu, eu estava morando na casa dos meus pais, e aí era ajuda coletiva. O
nosso modelo de família uninuclear é muito difícil quando você tem um bebê.
Naquele momento foi muito bom porque eu estava escrevendo a tese, entrando na
reta final, e acho que sem aquela ajuda de ter uma casa com mais gente, que
podia se revezar muito mais, teria sido muito mais difícil para um trabalho de
maior fôlego. A primeira medida que eu tomei foi não ter babá. Eu vou
experimentar ficar com ela e abrir uma lista de pessoas que se quiserem vir
aqui me ajudar, sei lá, pra eu tomar um banho e tal, me ajudam. O meu
companheiro tinha tirado uma licença. A gente teve sorte porque ele conseguiu
tirar um mês e depois ele tirou mais quatro de greve. Ele é professor. Então a
gente teve um certo conforto nesses cinco primeiros meses. Eu tive uma babá
que chegou na minha casa quanto eu tinha 6 meses de vida e ficou conosco até
os meus 8 anos. Minha mãe a conheceu como empacotadora de um supermercado. Não
sei qual foi a relação que ela encontrou entre uma empacotadora e uma
cuidadora de bebês, mas foi assim que a Bá deixou a casa da irmã em São Pedro
d’Aldeia e foi morar com a gente no Rio de Janeiro. Baiana havia chegado de
Itabuna recentemente, fugindo dos maus-tratos e das repressões sofridas pelo
abuso paterno. Ela jogava futebol, não era casada nem tinha filhos. Foi para o
Rio cuidar de mim e viver a boemia carioca, o Baixo Leblon nos anos 1980.

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Aprendeu a dirigir, a tocar violão, e me ensinou sobre música popular
brasileira. Mais do que tudo, ela preencheu uma lacuna física e emocional
aberta pela ausência da minha própria mãe. Quando ela foi embora da nossa
casa, me levaram para passear no carro conversível de uma amiga rica da minha
irmã. Achavam que a distração deslumbrante minimizaria o meu sofrimento na
hora em que eu chegasse em casa e não encontrasse mais a Bá, nem as suas
coisas, seu quarto esvaziado. Não lembro de ter vivido dor parecida até ali,
mesmo tendo acompanhado a morte de um tio, a separação dos meus pais, as
brigas entre os meus irmãos e a depressão da minha mãe. Assim como meu pai, a
Bá aparecia de vez em quando e me levava para passear. Ao longo da vida, eu
saí e voltei muitas vezes do Rio. Mesmo numa época sem internet, jamais
perdemos o contato, seja por telefone ou por carta. A Bá me acolheu em
diversas ocasiões, como a mãe que sempre foi. Quando eu tinha 13 anos e morava
em Cabo Frio, ela foi me visitar por alguns dias e fazíamos longas caminhadas
pela praia das Dunas até quase Arraial. Antes de ir embora, ela deixou um
recado num caderno meu que só encontrei tempos depois da sua partida. Eram Tom
e Vinícius: “eu sei que vou te amar por toda a minha vida.” Aos 17, eu me
vesti de branco e me fingi de enfermeira para invadir o Hospital Miguel Couto
para encontrá-la após uma cirurgia para a retirada de um rim. Ela levou uma
bolada jogando frescobol. No meu aniversário de 24 anos, eu morava em
Barcelona e estava visitando Berlim pela primeira vez, quando recebi a sua
ligação 6:00 da manhã dizendo: “minha filha, já temos casa!” – ela tinha sido
sorteada pela Caixa Econômica Federal e pode comprar o seu apartamento próprio
no Catete, sua residência até hoje, e onde mantivemos durante anos uma rotina
semanal de jogar baralho e jantar juntas. Nossa relação sempre causou ciúmes
colossais na minha mãe biológica, já que nunca tivemos tal cumplicidade nem
demonstração de afeto comparável. Apresento a Baiana como mãe e ela me
apresenta como filha. Também a apresento como Vó Bá, agora que a minha filha
nasceu. É um dos maiores laços familiares que ainda tenho. A minha filha nunca
precisou de babá, mas eu agradeço até hoje pela sorte de ter tido a minha, por
toda a minha vida. Eu nunca me imaginei criando um filho sozinha. No Brasil a
gente tem muito essa cultura de ter empregada, de ter babá, e eu cresci muito
nesse esquema. Por mais que seja cansativo, tem dias que eu digo “meu deus não
vou dar conta”, mas a gente dá. Como ser humano, é muito verdadeiro, eu estou
muito mais forte, muito mais confiante, muito mais com certeza do que eu
quero. A gente não tem muito tempo pra perder. A maternidade me deu muito mais
força. Quando não dá certo, não vai do jeito que a gente quer, paciência, tudo
bem, vamos fazer de outro jeito. Na maternidade nem sempre vai ser do jeito
que você quer, nem sempre você vai dormir as horas que você quer, nem sempre

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você vai poder fazer aquilo que você quer, e é uma luta constante para você
não esquecer de você mesma, de não deixar de cuidar de si, que é difícil né,
porque a gente fica muito pro nosso filho. Eu dou a minha vida por ele, mas eu
preciso estar bem. Esse é o grande aprendizado, é a grande potência que a
gente encontra dentro da gente, que a gente pode dar conta. E o trabalho vai
junto com você, tudo influencia, então o bebê é mais uma coisa que vai
influenciar na sua vida. Não precisa deixar de fazer o trabalho, ele vai
mostrar pra você o caminho. Assim que eu tô lidando com isso hoje, pode ser
que amanhã seja diferente. Da dedicação mais absoluta a uma privação. Claro
que a gente vai encontrando formas de cuidar de si, de fazer as coisas, mas eu
sinto, na minha experiência, que é sempre a partir de um esforço, de uma
abertura conquistada, não é dada, mesmo tendo um companheiro que é super
parceiro, que realmente divide as tarefas das meninas comigo de uma forma
bastante igualitária, o máximo possível, não digo que é 50%, mas porque também
ele trabalha muito mais. Daí a gente volta pro mesmo tema da produção, porque
quem produz mais dinheiro é ele, então ele precisa trabalhar mais, logo, eu
fico mais com as meninas, então eu trabalho menos. É uma equação que, claro,
estou simplificando toda a complexidade que isso envolve financeiramente,
emocionalmente, tudo. Mas eu acho que é tudo tão junto que é impossível da
gente pensar numa pesquisa sem colocar toda essa experiência em jogo. Então
mesmo tendo esse companheiro que compartilha comigo o cuidado das meninas de
fato, eu me sinto um pouco distante do meu trabalho porque eu sou
absolutamente modificada pelas demandas de ter filhas. Por outro lado, também,
ter as meninas faz com que eu sinta, perceba tudo de uma outra forma, tenha
outros desejos, outros desejos de trabalho, outro ritmo. Eu vivo num casamento
que cada vez eu me dou mais conta de como a estrutura é enraizada nesse
machismo, acho que isso é uma constante pelo menos à minha volta. Eu fiquei um
pouco impressionada porque eu negava isso, eu negava que o meu companheiro
fosse esse cara que só ajuda se a gente pedir. É um intelectual, que precisa
de muito tempo pra pensar, pra escrever. Mas eu não queria acreditar, eu fui
sentir na pele como é isso, como isso é pensado e como tem um jeito meio sonso
de deixar tudo na mão das mães, nas minhas. Isso é muito importante, existe e
atrapalha nessa parte do trabalho, porque podia ser mais dividido. Eu não acho
que por ter menos tempo eu sou mais produtiva, porque eu também não sou uma
pessoa apegada à produtividade, aliás eu acho essa palavra uma armadilha
porque não me interessa produzir muito, mas, ao mesmo tempo, eu sinto que eu
vou ficando às margens do sistema, especialmente o da arte, que me demanda uma
produtividade. Tem a Cooperativa de Mulheres, que me chamou para uma
residência na Serrinha com outras mães pra gente levar os filhos. Meu filho

142
tinha 2 anos, que é uma fase muito de transição, é bom mas é ruim, é difícil
porque você ainda precisa dar muita atenção, as outras crianças eram mais
independentes, mas foi muito importante pra mim porque eu passei uma semana
com artistas, mães ou não, mas mulheres numa residência artística, e eu não
pensei em nenhum momento sobre o meu trabalho artístico, eu só pensei em ser
mãe e cuidar do meu filho naquele ambiente. Lógico que tinha a coisa de arte,
pintura, a gente escreveu uma manifesta, a gente fez coisas, produziu, mas não
fiquei presa à obrigação da produção, que eu acho que é o mundo de hoje, que
pro artista estar vivo ele tem que ter produção. Não adianta só estar nas
ideias. Tem que botar as obras no mundo e tem que mostrar serviço. E a mulher
está sempre também nesse lugar. Então achei muito bom poder relaxar e viver
meu filho 100% mãe, esquecendo um pouco da artista, porque eu estava ali por
ser artista, então eu não precisava estar provando. Então me tirou um pouco
essa agonia. Eu fiz uma residência chamada “Mothers in Arts” que foi meio
catastrófica pra mim. Eu não gostei. A grande crise da pessoa que fundou a
residência, que conseguiu um dinheiro do Estado, que ganhou um edital pra
fazer esse projeto, era: “as mães precisam poder trabalhar.” Então esse
projeto vinha pra produzir tempo para as mulheres artistas trabalharem. Só que
aquilo nunca fez muito sentido pra mim porque, como eu estava muito
atravessada pela experiência materna, não fazia sentido pra mim simplesmente
produzir um espaço sem criança pra poder produzir um espaço de produção de
trabalhos. Eu comecei a questionar muito essas categorias. Por que produzir
trabalho precisa necessariamente me separar de um bebê? Porque o bebê precisa
da mãe, precisa de uma rede, mas por quê que o tipo de trabalho que eu faço,
demanda que eu me ausente da experiência da primeira infância da minha filha?
Como produzir subsistência, sobre-existir num mundo que não quer que você
tenha filho, apesar de que, se você não tem filho, você é cobrada. A criança
atrapalha no final das contas. Você precisa que alguém se ocupe da criança pra
que você possa se ocupar, de produzir sustento, trabalho, para manter a roda
de produção. Pra mim está muito nesse paradigma produtivista. O quê que é
preciso produzir de fato? Então a chegada da minha filha foi muito
desestruturante nesse sentido, eu comecei a questionar todas as categorias
engessadas do mundo, que era o meu mundo. Por exemplo, trabalho, atividade
intelectual, mesmo os feminismos que a gente vinha estudando. Hoje em dia pra
mim está muito claro que feminismo, que exclui criança e bicho, tem sérios
problemas. Eu lembrei de uma situação que me fez pensar bastante e me
decepcionar muito com esse universo das artes. Quando a minha filha era bem
pequenininha, eu fui selecionada pra aquela residência Sacatar, que é num
lugar idílico, na praia de Itaparica, numa casa maravilhosa, mas que é

143
totalmente fechada pra acompanhantes e filhos. Eu fiquei muito angustiada na
época, porque a minha filha era muito pequena, mas como eles fazem uma seleção
bienal, eu tinha dois anos pra poder marcar a minha data de residência. São
dois meses, é longo, e não pode sair, só tipo dias mínimos, senão você é
expulso. Eu marquei então pra última última etapa. Quando chegou o momento de
fazer a residência, a minha filha tinha 2 anos e pouquinho, e eu tinha
situações difíceis na vida pessoal. Mesmo assim eu fui. Tem um sofrimento
considerável, minha filha era muito pequena, tinha parado de mamar há pouco
tempo. Ainda era um bebê. Primeiro eu consegui que o meu companheiro fosse com
a mãe dele, numa primeira etapa, passar uma semana. Mas quase que não queriam
que eles entrassem na residência. Era uma coisa bem estranha. Então a minha
filha não podia dormir lá comigo. Então eu saía para dormir na pousada onde
eles estavam e ficava me desdobrando. Eu também tive que ir pra Alemanha
mostrar um trabalho num festival e tudo isso foi contabilizando naquele máximo
de dias que você pode ficar fora da residência. Nos dias em que eu ia dormir
na pousada, mesmo tendo passado o dia inteiro trabalhando ou vivendo ali na
residência, eram contados como dias fora. Era bem foda. Eram uns americanos
bem duros. Eu comecei a ficar com muita raiva depois de um episódio que a
minha filha estava lá na residência comigo e começou a chover muito forte. Eu,
no meu jeito meio desafiador e implicante com essa proibição com uma menina
tão bebezinha, botei ela pra dormir na minha cama e, como chovia cântaros,
decidi que ela ia ficar dormindo comigo. Quando às 10 da noite me liga o cara
que é o gerente, que é um cara muito legal, mas que me liga dizendo que ia
chamar um taxi para eu levar a minha filha embora. Eu entrei em pânico e
falei: “Não. Ela dormiu e vai ficar aqui porque está chovendo muito.” E ele
disse que eu sabia das regras, que aquilo nunca tinha acontecido nos quase
vinte anos da residência, de ter alguém dormindo ali que não fosse o artista.
“Não pode, não pode.” Ele ficou com medo de estar quebrando as regras e deixou
claro que não era uma regra dele, mas da residência. Eu fiquei muito chateada
e disse que ela não ia sair e que, se eles quisessem, que me expulsassem no
dia seguinte. Daí ele pediu pra eu ligar pro responsável, pro dono da
residência, que estava na Califórnia. Depois disso ficou um gosto amargo. Eu
estava muito apaixonada pelo trabalho que eu estava fazendo lá em Itaparica,
que não era nem dentro da residência, do ateliê, mas que tinha um espaço e um
tempo para ler, para desenhar, para fazer outras coisas que eu não fazia desde
que a minha filha tinha nascido há dois anos. Acabei filmando de montão, me
ligando a um monte de gente, fazendo uma cadeia de amigos e de pessoas que até
hoje está aí. Eu estou montando esse trabalho agora, inclusive. Mas fiquei
implicando com o pessoal da residência, contando os dias para ir embora. Fui

144
me informar um pouco, eu fiquei curiosa, e comecei a olhar outras propostas de
residências, e todas que eu conhecia, salvo muito raras exceções, não aceitam
acompanhantes. Mas quando essas residências são longas é como se descartassem
totalmente as mulheres, mães de crianças pequenas. E afastar a mãe da criança,
não é interessante nem pra mãe, nem pra criança nem pra ninguém. Aí eu comecei
a me dar conta do quanto era machista, do quanto a gente era anulada,
descartada, não existe. As residências, no final de contas, são feitas para
mulheres muito jovens ou que não quiseram ter filhos. Eu lembro da Villa
Médicis, que é uma super residência que você ganha uma fortuna e por cada
criança você ganha 500 euros a mais, o que é incrível mas muito raro. Eu já
saio muito pra poder trabalhar, esse trabalho que me faz viver. Daí juntar as
viagens de filmagem, que eu sou diretora de fotografia, mais as viagens de
residência artística, eu fico muito tempo fora, então é uma coisa meio vetada
pra gente. É bem pesado. Tudo isso tem que mudar. No cinema mesmo, não entendo
até hoje como não tem um esquema de creche parental para os filhos das pessoas
que fazem filme por um mês, dois meses. Acho que na França eles estavam
começando a fazer, a ter uma pessoa paga pela produção que cuida das crianças
enquanto as pessoas têm que trabalhar. Essa rede de apoio mais
institucionalizada, mais organizada pela produção, vai ter que acontecer
porque não dá pra gente ficar sempre à parte. A mulher que tem filho fica meio
num limbo até a criança crescer e poder retomar a sua independência total que
esse mundo exige. Durante a minha vida toda, essa relação entre mulheres, essa
empatia, essa sororidade entre mulheres, pra mim se deu após a gravidez e a
maternidade. Lembro que durante a gravidez eu fui nesse processo de
conhecimento, de entendimento, eu só conseguia aquele olho no olho com outra
mulher, e falar “caraca, tô passando por isso”, “já passei por isso”, “não
passei por isso mas sei o que você está passando.” Mulheres que tiveram
filhos. Eu lembro quando eu e meu companheiro contávamos pras pessoas que eu
estava grávida. Eu achava até engraçado, alguns amigos nossos com uma cara de
decepção, do tipo “ah, um a menos!” e outras pessoas conhecidas com filhos,
numa felicidade, um outro brilho no olhar pra com a gente. Quase como um
abraço. Isso a gente descobriu, porque antes eu não imaginava, sabia que tinha
uma sensibilidade, uma empatia por pessoas que têm filhos, mas não sabia que a
parada era tão radical, de você se reconhecer no outro, num abraço, numa troca
de conversas você conseguir acolher as pessoas. Eu acho que nesse momento é
que eu entendi a relação do feminino, a relação entre mulheres de uma maneira
muito mais potente. Tenho muitos mais amigos homens. Engraçado, nunca tinha
pensado nisso. As amigas mulheres que eu tenho, algumas têm filhos outras não,
mas fui me dando conta do quanto que isso é necessário. Olha quem acordou! Eu

145
estava aqui escondida na cozinha, tomando um café e falando com você, e aí
minha sombrinha veio me resgatar. Eu vivencio isso. O quanto a relação entre
mulheres se fortalece. Durante a gravidez eu passei a só ir a médicas
mulheres. Eu já tinha muitas, mas todas as minha médicas da gestação eram
mulheres. As consultas eram sempre papos incríveis, dicas, coisas bem
diferentes umas das outras, eu achei bem incrível. Me fortaleceu muito
enquanto mulher, de verdade. Fico muito emocionada até em falar sobre isso.
Eu tô muito voltada agora para explorar meu corpo de outras formas.
Nosso corpo fica muito fechado durante os primeiros anos da maternidade, muito
em função do mamá, muito corcunda, fechada em função do colo. Eu tô buscando
experimentar o meu corpo de muitas formas, nem que seja fazendo exercício,
fazendo yoga para abrir o corpo mesmo, queria tanto fazer uma aula de dança
pra movimentar meu corpo de um jeito, usar meu corpo de forma criativa, pra
criar, descobrir movimentos novos pro meu corpo, mas é muito difícil fazer
isso também, fazer tudo, pagar tudo, ocupar mais um dia da semana, isso tem
que ser negociado em casa. O outro caminho nessa experiência do corpo é o
sexo, que eu tenho explorado também de outras formas, inclusive pegando outras
pessoas, experimentando, isso não é fácil de fazer, a gente fez isso no
carnaval e fez agora recentemente tem pouco tempo numa festa, mas isso também
não é simples de fazer nem de ser um acordo, isso é dentro de cada casal, mas
fiquei achando que essa é uma experiência do corpo, da descoberta do corpo, é
importante depois da maternidade. A gente começou a falar sobre o tesão não
ter exclusividade. Porque afinal o casamento é um compromisso de
exclusividade. Aí começamos a conversar sobre a hipocrisia de fingir que isso
não existe. Agora que fico em casa trabalhando quando sai todo mundo, todos os
dias eu tenho um ritual que envolve um pouco de meditação, de yoga, o café, a
masturbação e o banho. Mas ainda é tudo pra dentro. Talvez ainda falte mais
tempo pra sair. Tô começando a ficar comigo de novo depois de 2 anos. O sexo é
parte desse processo totalmente retomada do corpo. E a experiência do corpo,
por exemplo, numa aula de dança, como forma de dar uma expressão a quem eu sou
agora, a isso que a gente vai criando todo dia de si mesma. Mulher artista com
filho bebê não é respeitada, sabe? Ainda mais se você é uma mulher latino-
americana, que está sozinha, crazy latin american woman, você não serve nem
pra ser comida, nem pra flertar com ninguém, você não pode sair, fazer os
rolezinhos. Foi super duro porque eu me dei conta de quanto eu me sentia
nojenta, de como o meu corpo era abjeto, e que eu com a minha filha, a gente
era quase que uma coisa meio lixo, sabe? Só as outras artistas que eram mães é
que eram mais cuidadosas, mas ao mesmo tempo era aquele esquema, precisamos
nos livrar da criança para sermos homens no mercado da arte. Esse feminismo

146
antigo, histórico, Simone de Beauvoir e tal, que acha que mulher tem que
produzir espaço de poder, tem que ser pirocuda igual homem, e que é isso que
vai legitimar você como alguém relevante no mundo do trabalho. Sendo que mais
uma vez, a experiência da amamentação, da exterogestação, dos cuidados na
primeira infância, da vinculação com a criança, estão totalmente excluídos.
Foram vários dias que eu pensei que a minha vida tinha acabado. A minha vida
pessoal e profissional. Vários dias eu senti que eu era só um corpo, que eu
não tinha alma. Mas a gente é mais do que alma, né? Vejo você fazer a sua tese
sobre isso e vejo como é natural. Te vejo postar a criança no Instagram. Não
sei como está aí, você, mas fica esse interesse, esse olhar único da
maternidade, como um filtro que você só vê isso no mundo. E era por isso que
quando as pessoas ficavam grávidas eu falava “se prepara” porque é uma carga
tão grande, eu me sentia corporalmente sobrecarregada de tanto amor. Olha
isso! (risos) Eu acho que é. E não é uma coisa só boa. É maravilhosa por um
lado, mas têm várias questões por outro que as pessoas não falam. É como se a
maternidade fossem só flores e lindezas. São muitas mudanças envolvidas,
especialmente corporal, meu corpo em função de outra pessoa. Nossa, me dá um
cansaço no corpo só de lembrar como é que era. E passou. Até hoje ele fica
botando a mão no meu peito. Eu fico irritada tem hora, mas não consigo cortar
isso completamente, fica um negócio meio vai-e-vem. Essa relação com o peito é
muito doida. Até hoje ele vê o meu peito e fica falando “peito, peito”. Eu
tinha esse mesmo desejo que você, que uma hora ele parasse de mamar assim meio
sem perceber, que a coisa fosse meio espontânea, e aí me falaram uma coisa que
eu achei muito boa. “Mas, vem cá, você quer que seu filho não perceba
transições importantes assim? Você acha que ele é bobo? É importante que ele
perceba que uma coisa como essa vai mudar e que isso poda ser difícil, mas que
também pode ser bom.” Acho que não é regra né, pode ser que tenham crianças
que soltem o peito espontaneamente. Tem uma função nossa aí também de orientar
nessa despedida. No livro “Leo e a Baleia” tem uma frase muito boa: foi muito
difícil pro menino se despedir da baleia, mas foi muito importante que o pai
dele estivesse do lado naquela hora. Pois é, além de fazer xixi e dormir, o
peito é a única coisa que ela tem certeza de que vai acontecer todos os dias
desde que nasceu. Aquele leite, aquele conforto, aquele calor, é uma certeza.
São os primeiros anos da vida. É tudo tão passageiro, tão fugaz. Então é
difícil mesmo sair desse ritual e viver essa transição, esse desligamento, que
pra mim não tem como não ser gradual, sensível, mas isso vai de acordo com
cada relação dual mãe e bebê. E é muito louca a capacidade das pessoas alheias
a essa relação tão particular se meterem, opinarem e julgarem contra o fato de
uma criança continuar mamando, mesmo após os dois anos de idade. As pessoas se

147
sentem no direito e no dever de exporem seus posicionamentos, sem levarem em
consideração as atitudes e decisões daquela mãe. Passam por cima dela com suas
afirmações e exclamações imperativas. De onde tiram essas informações, esse
conhecimento sem causa? A mãe que amamenta tem isso, o sugar a gente. É
maravilhoso, é incrível, mas eu ficava muito sugada e a minha energia ia
embora muito rápido. Eu ficava pensando, poxa, porque eu não pego um caderno e
fico desenhando, escrevendo e produzindo dessa forma, sem ter que produzir
para ir para alguma coisa. E eu não conseguia e isso era frustrante pra mim de
uma certa forma. Mas eu fui entendendo que eu teria que me adaptar e que às
vezes isso leva tempo. Então eu fui construindo, dia após dia, uma segurança
dentro de mim, mas não foi de uma hora pra outra, foi todo um processo de
construção.
Eu, meu companheiro e as meninas fomos passar um mês em Mauá e eu
comecei a fazer fotos de família, a princípio. No meio do caminho, eu percebi
que tinha algo acontecendo na relação da minha filha mais velha com o
ambiente, um certo medo e, ao mesmo tempo, desejo de aproximação, essa coisa
da fantasia da criança que vai se misturando à realidade, e a natureza é um
ambiente muitíssimo propenso pra imaginação porque tudo se movimenta, nada é
estático. Eu comecei a fotografar pensando nisso, nessa relação de desejo e
medo, de afastamento e aproximação com a natureza que ela estava
experimentando ali. Eu percebi a força do que estava acontecendo ali a partir
da fotografia, e isso é muito bonito, essa potência fotográfica de nos mostrar
novamente o que a gente viu, a observação de umas fotos que seriam de família
e que acabaram se transformando. Eu sinto uma enorme potência nas fotos da
família. São tantas as fotógrafas que trabalham nesse universo familiar. Sally
Mann, Nan Goldin com o trabalho das crianças, que ela vem de um tema tão outro
do “The Devil’s Playground”... Tem também esse quê, que eu filmo muito as
crianças desde sempre, desde os primeiros filmes, nesse mundo da infância, com
crianças que atuam comigo, pra mim, pros nossos filmes, a gente escreve junto.
Esse universo materno, mas principalmente feminino, e eu só fui entender isso
depois que a minha filha nasceu, quando eu comecei a ter umas retrospectivas
dos meus filmes e umas propostas de mostrar blocos de vários filmes meus
juntos, eu comecei a entender bobamente que tinha essa tônica, esse olhar pra
infância e pro feminino. Quando eu tava grávida, eu fiz um filme no Morro dos
Prazeres. Um amigo meu estava fazendo uma peça de teatro sobre o Lima Barreto
e me chamou, me pediu encarecidamente, para eu fazer um filme para projetar
durante a peça, essas coisas. Não era pago e tal, então eu falei que ia filmar
o que me interessasse, “vou fazer um filme que eu tô afim de fazer.” Encontrei
umas meninas, todas muito jovens, grávidas que nem eu, então eu grávida

148
filmava essas mulheres grávidas, que estavam adorando ser filmadas, que se
deixaram ser filmadas e que eu pedia pra dançar, enfim, que se chama “Vivo e
Morro dos Prazeres”.
Falei muita coisa que são as bordas da coisa toda. Acho muito bom poder
estabelecer esse lugar de troca de verdade. A escrita é muito solitária.
Quando você me escreveu, eu pensei, “nossa que bom encontrar e ver diante de
mim uma outra mulher, mãe, jovem, artista, com questões parecidas de
produção”. Não sei se é meu, mas eu sinto às vezes um pouco “será que é isso
mesmo?” Quando eu estava escrevendo o texto da qualificação, comecei a falar
muito de questões muito próprias da vida, mas que são essas coisas, essas
experiências, esses sentimentos e situações que me levam pro trabalho. Pra mim
é absolutamente impossível falar de um processo artístico sem falar da vida
porque é como se a vida levasse pra esse lugar da imagem. É nesse lugar muito
de dentro que me movimenta. A vida é tão louca, né? Tem uma força mágica...
Percebi imediatamente, no momento em que ele nasceu que eu iria fazer parte da
sua vida, mas a “vida”, aquela nova vida seria construída por ele. A pulsão, o
desejo de estar no mundo era daquele sujeito, ali, ao meu lado, que eu ainda
não conhecia muito bem. Que coisa estranha ele, aqui, dizendo: “mamãe, eu te
adoro, muito, sabia?” À vida, de arrepiar!

149
Capítulo 5. Notas sobre o fim

fim132
substantivo masculino

1.
momento ou ponto em que se interrompe algo; termo.
"f. de férias"

2.
conjunto dos últimos ou o último elemento de (obra, discurso etc.); epílogo, conclusão.
"o f. do filme"

3.
última instância (de algo); limite.
"a paciência chegou ao f."

4.
parte extrema (de espaço).
"o f. da rua"

5.
último período de um espaço de tempo maior; final (tb. us. no pl.).
"f. de mês"

6.
ponto final; término.
"devem pôr um f. nisto"

7.
cessação da existência de (algo); ruína, queda.
"o f. do império"
o falecimento, morte.

8.
o que se busca atingir; finalidade, propósito.
"o f. não justifica os meios"

9.
explicação ou motivo (para fato, atitude); causa.
"tratar-se é o f. que o traz aqui"

origem
⊙ ETIM lat. fīnis,is (masc. e fem.) 'limite, território, meta, morte, definição etc.'


132
Definição retirada do google.com

150
fim: sinônimos

desenlace marca
limite marco
morte raia
propósito decesso
arremate defunção
conclusão desaparecimento
desenlaçamento exício
desenredo falecimento
desfecho finamento
encerramento libitina
epílogo óbito
fecho parca
final passamento
liquidação perecimento
remate trânsito
resultado alvo
solução desígnio
sucesso destino
término determinação
termo disposição
ultimação finalidade
baliza fito
confinança intenção
confim intento
divisa intuito
estrema meta
extremo objetivo
fronteira plano
linda projeto
linde vontade
escatologia

151
A criança coloca [os pés] na boca, arco do corpo que procura uma unidade sem princípio nem fim,
o engolimos como objeto independente e nesta incorporação nos fundimos numa só peça,
sem começo nem fim, experiência primeira da continuidade.133

É terrível pensar que a morte está não apenas no fim


mas no princípio dos elementos vivos da criação.
Um plano superpõe-se a outro plano.134

aham ātmā guḍākeśha sarva-bhūtāśhaya-sthitaḥ


aham ādiśh cha madhyaṁ cha bhūtānām anta eva cha135

Os pés da criança de Lygia Clark. A fita de Moebius, o dentro e o fora. Os contínuos, as


dobras. O espelho de Murilo Mendes. Sri Krishna. As xifópagas, o toro e o ão, o túnel infindável
de Tunga. O fim do sem fim, de Cao Guimarães. O Jishin-no-ben, o oroboro, a cobra que come o
próprio rabo. O cachorro que persegue o rabo. Os mitos Guarani e o fim renovador, um fim do
mundo onde existe a possibilidade de recomeço. Diferente das recorrentes noções de fim para nós
ocidentais, fim não implica e nem sempre significa término. Agrada aqui a ideia de continuidade,
de versura, termo latino que indica o ponto no qual o arado faz a volta, ao final do sulco, imagem
apresentada por Giorgio Agamben em O Fim do Poema.136

Como se o poema, enquanto estrutura formal, não pudesse, não devesse findar, como se
a possibilidade do fim lhe fosse radicalmente subtraída, já que implicaria esse
impossível poético que é a coincidência exata de som e sentido. No ponto em que o som
está prestes a arruinar-se no abismo do sentido, o poema procura uma saída suspendendo
por assim dizer, o próprio fim, numa declaração de estado de emergência poética.
(...) Tudo transcorre como se o verso que, ao fim do poema, irreparavelmente se
arruinava no sentido se ligasse estreitamente ao seu rhyme-fellow, e assim optasse por se
precipitar com ele no silêncio.
(AGAMBEN, 2002, p. 146-147)

Exercícios de observação, trabalhos em andamento, seriais. Pode-se determinar um prazo


de finalização, um produto acabado, mas não necessariamente um desfecho absoluto, uma

133
CLARK, Lygia. Breviário sobre o corpo, reeditado em Arte&Ensaios n.16, p. 120.
134
MENDES, Murilo. O Espelho. Disponível em: <https://www.tudoepoema.com.br/murilo-mendes-o-espelho/>
135
Bhagavad Gita, capítulo 10, verso 20: “A opulência do absoluto.” Ó Arjuna, estou sentado no coração de todas as
entidades vivas. Eu sou o princípio, o meio e o fim de todos os seres. Tradução livre.
Disponível em: <https://www.holy-bhagavad-gita.org/chapter/10/verse/20>
136
"La fine del poema". In:. Giorgio Agamben. Categorie italiane. Sludi di poetica. Venezia: Marsilio, 1996, p. 113-
119; texto originalmente apresentado no colóquio em homenagem a R. Dragonetti realizado na Universidade de
Genebra, em 10 de novembro de 1995.

152
conclusão total. Se fatores externos à prática demandarem um resultado, nada impede que o
exercício seja desmembrado e desdobrado em outros fins mais adiante. Também pode-se deixar o
processo em aberto, em suspenso, aguardando a retomada da meada e novos possíveis caminhos
a percorrer, outros rabos que surgem a ser engolidos ou simplesmente perseguidos, que adiante
poderão fazer a conexão com o que foi deglutido ou abandonado. Uma cadeia. Ou não. Não se
apaga o percurso do feito.

c) Método = caminho
(Grenier, Tao = Caminho137.
O Tao é,
ao mesmo tempo,
o caminho e o fim do percurso,
o método e a realização.
Mal tomamos o caminho
e já o percorremos).
Tao: o importante é
o caminho, o andar,
não o que se encontra no fim.
(...)
d) Pode bem ser
que o Romance fique em
– seja esgotado e realizado por –
sua Preparação.138

Um dos maiores aprendizados que eu tive com o Antonio foi entender


um pouco essa coisa oriental, um pouco zen, do tempo que ele passou
no Nepal, a coisa da tautologia, circular, que não termina nunca.
O fim é a metade do percurso, não existe fim. Eu não tenho ideia pré-fixada
sobre o que vou fazer, sempre deixo os sinais conduzirem o trabalho.
Trabalhar no espaço e procurar esses sinais, estou sempre
procurando esses sinais.139


137
GRENIER, Jean. L'esprit du Tao. Paris: Flammarion, 1957, p. 14 (citado por Roland Barthes em
A Preparação do Romance v. I).
138
BARTHES, Roland. A preparação do romance I: da vida à obra / Texto estabelecido, anotado e apresentado por
Nathalie Léger ; Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 42-43.
139
Conversa com Marcos Chaves, 18.11.2019.

153
Marcos Chaves aprendeu com o Antonio a procurar no percurso os sinais que o estendem,
que o desenrolam, sem necessariamente concluí-lo. Este também é um dos muitos aprendizados
que tive com o Marcos. Lembro da visita que ele me fez durante a estadia no Minhocão,
encontrando ali, especialmente na arquitetura, muitos sinais que se fizeram presentes no meu
exercício. Passados dez anos daquele encontro, daquelas conversas que ainda se fazem
pertinentes, muitos já foram os desdobramentos e resultados expostos, publicados, apresentados
em palestras. A observação do Minhocão nunca cessou. Até hoje revejo o material, revisito o
lugar e xs amigxs que ainda lá moram. O prédio foi restaurado, para a alegria de muitxs e tristeza
de outrxs, por não se conformarem com alguns aspectos da reforma que desconsiderou certas
adaptações feitas pelxs próprixs habitantes daquela “cidade aberta”. Em 2020140, no mesmo
período da defesa desta tese, me hospedo com a minha filha na casa da Mariana, hoje residente
no apartamento 613, que foi da sua tia Leda e meu em 2009. Aproveito para produzir mais uma
leitura do lugar, desta vez guiada pelas crianças que nasceram nesta década: a minha filha Pilar, o
Leandro Myguel (da Sabrina), a Sofia (da Marcelly). Também em 2020, numa outra leitura
proposta pelo escritório de arquitetura _arquitetos associados, seis fotografias de grande escala
de Natal no Minhocão representarão o Brasil junto a outros três ensaios fotográficos no Pavilhão
da Bienal de Arquitetura de Veneza. Na apresentação do projeto curatorial explicam:

Discutir utopias implica em somar história e imaginação, buscando identificar momentos


em que pensamentos transformadores vislumbraram futuros diferentes para
aprendermos, aqui e agora, a novamente imaginar outros futuros, agora não como um
lugar distante, mas a partir da transformação do que está dado. Pensar nas utopias
brasileiras do passado e do presente permite a um só tempo mapear realizações notáveis
que contribuíram para ampliar as margens de liberdade e conformar suportes
qualificados para o encontro e a vida cotidiana, e vislumbrar outros possíveis caminhos,
[ainda] não plenamente realizados para o desenvolvimento e a convivência humana
e destes com a natureza.
(Alexandre Brasil, André Luiz Prado, Bruno Santa Cecília, Carlos Alberto Maciel e
Paula Zasnicoff)

Discutir utopias parece tão grandioso. Minha aproximação ao Minhocão não tem esse
peso. Fui convidada para fazer a residência porque um artista da lista original desistiu e, alguns
meses antes, uma revista de arquitetura havia me convidado para retratar alguns apartamentos. Xs
editorxs queriam fazer uma espécie de grade, uma montagem com várias unidades, mostrando a


140
Com exceção da Defesa desta tese, todas as previsões para 2020 estão suspensas por conta da pandemia global do
Covid-19.

154
semelhança entre elas. No entanto, quando viram as minhas fotografias, ficaram extremamente
desapontadxs. Falaram-me da simetria do fotógrafo Sugimoto, como se eu não a conhecesse. Na
concepção idealizada e distante de quem nunca havia visitado pessoalmente o lugar, acreditavam
que, mesmo 50 anos depois, os apartamentos manteriam uma composição regular praticamente
idêntica à da construção, que poderiam ser comparados em forma, não em poesia. Estudantes de
uma arquitetura distante do campo, não esperavam que o Pedregulho fosse o Minhocão. Sendo
assim, as minhas imagens nunca foram publicadas na revista.
De Ciudad Abierta a Ventanas é o meu mais recente trabalho “em aberto”; é a desculpa
geográfica de um exercício de observação que ficou em suspenso com a mudança repentina da
minha família para a Alemanha. De Ciudad Abierta a Ventanas é um curto trecho de uma linha
de trem paralela ao Oceano Pacífico no Chile. O percurso é caracterizado por uma paisagem
mutante com três casos peculiares de ocupação contemporânea de território, marcados pela
experimentação, conservação, apagamento, destruição e resistência.
Em entrevista de 2015, o sociólogo americano Richard Sennett descreve uma “cidade
aberta” alinhada ao que chamo de imagem no fim: uma construção que, conforme você a constrói,
pode ser modificada e adaptada e, mesmo após a conclusão, pode ser reajustada pelo seu uso.141 O
Minhocão seria um exemplo. A Ciudad Abierta também.
Um grupo de arquitetos, artistas, filósofos e poetas radicados no Chile, liderado pelo
argentino Godofredo Iommi, realizou em 1965 uma viagem pela América do Sul. Usando como
mapa o desenho América Invertida, do uruguaio Joaquín Torres García, o coletivo propunha um
novo entendimento das orientações geopolíticas estabelecidas no continente, questionando
noções como fronteira e território. Em 1967, a partir da coleta de diversos textos, recortes e
desenhos provenientes daquela que ficou conhecida como primera travesía, o coletivo criou o
livro-poema épico que os denomina até hoje, Amereida, um neologismo entre Eneida e
América.142
Instalados em Viña del Mar como membros do corpo docente interdisciplinar do
departamento de arquitetura da PUC de Valparaíso, os homens do coletivo se destacaram pelo
ímpeto vanguardista em seus métodos educacionais, buscando mudanças junto à reforma
estudantil da década de 1960, algo que se viu refletido também na vida social e política do grupo.

141
Disponível em: <https://www.arquine.com/en-torno-a-la-ciudad-abierta-conversacion-con-richard-sennett/>.
Tradução livre.
142
Referência disponível em: <https://www.ead.pucv.cl/escuela/vision-poetica/amereida/>

155
Vivendo juntos em casas alugadas no Cerro Castillo, integraram "vida, trabalho e estudo" como
filosofia e prática. Fundaram em 1971 a Ciudad Abierta, uma comunidade fincada em um terreno
pantanoso nas dunas de Ritoque (a aproximadamente 30 km ao norte de Valparaíso) adquirido
através da reforma agrária do governo Salvador Allende (1970-1973). O nome surge do filme
“Roma città aperta”, de 1945, fazendo uma alusão a uma cidade sem muros, protegida pela
hospitalidade e pela palavra. Tratava-se de um projeto independente, em parte financiado pela
universidade, onde o coletivo passou a exercer a arquitetura como um evento colaborativo,
efêmero e utópico, existindo fora dos limites da prática profissional convencional, como um
laboratório experimental aberto também às artes e à biodiversidade.
Regidxs por um estatuto rígido de ocupação e comunhão entre usuárixs, habitantes e os
quase 300 hectares de terra de parque costeiro, cultural e recreativo, são xs mesmos ciudadanxs
abiertxs e amigxs quem constroem e mantêm as hospedarias e espaços de convivência ao longo
desses quase cinquenta anos. Nas palavras de Fabio Perez C., um dos arquitetos de Amereida:

Alberto, Godo, Pancho Méndez, Jaime Bellalta (que neste mesmo ano, partiu
a Harvard), Miguel Eyquem, Pepe Vial, Tuto Baeza e eu. (…) No mês de maio, todos -
exceto Jaime Bellalta, que ainda não havia retornado dos EUA - já estávamos instalados
em Viña: alugamos 4 casas de um grupo que estava sendo concluído em Cerro Castillo.
Duas casas para os casados (Godo e Ximena e quatro filhos, eu, minha esposa e um
bebê) e duas casas para "solteiros" e para o Ateliê - Instituto, onde, imediatamente,
formamos uma boa biblioteca com todos os nossos livros pessoais. (...) No decorrer
desses primeiros anos, os solteiros se casaram e os filhos cresceram. Todos nós
continuamos morando no mesmo conjunto de casas (conseguimos alugar 7).
Continuamos indo para a Escola de Arquitetura pela manhã e à tarde para
a sede do Instituto de Arquitetura. Recebemos muitas visitas de todos os tipos
e de diferentes lugares. Conseguimos, assim, estabelecer uma unidade plena de "vida,
trabalho e estudo", sem dicotomias, sobre as quais se baseou nossa ação artística
e acadêmica. Embora possa ser muito íntimo, acho que é o caso neste breve relato,
mencionar a paciência e a abnegação de nossas esposas, que tornaram este tipo de vida
possível, não sem dificuldades. (...) Basicamente, o que transmitimos e ensinamos foi
o reflexo de nossa própria aventura criativa, que foi fundada e iluminada em duas
afirmações: uma: que o homem, por sua própria natureza, é de condição poética, o que
o leva incessantemente a reinventar, cada vez, a figura do mundo; e a segunda
afirmação: que o trabalho de arquitetura se origina da observação ou elogio da realidade
cotidiana, por meio do desenho e da palavra. Essas afirmações fundamentais
continuaram a iluminar nossa aventura e deram frutos no tempo de muitas maneiras.143

Se a Ciudad Abierta é datada de 1971, a tão só 10 km dali, no que foi um complexo de


veraneio popular construído por Allende, surgiu, em 1974, um campo de concentração,
posteriormente chamado de centro de detenção, para ex-líderes opositores à ditadura de Augusto

143
Disponível em: <https://www.ead.pucv.cl/2003/escuela-de-valparaiso-ciudad-abierta/>. Tradução livre.

156
Pinochet (1973-1990). Há ciudadanxs abiertxs que dizem não ter conhecimento deste e de outros
campos que a região abrigava de forma secreta, inclusive de um localizado próximo às casas do
Cerro Castillo. No caso de Ritoque, a particularidade eram seus detentos, dentre eles, atores
profissionais e dramaturgos detidos pelo conteúdo político de suas obras. Alguns influenciados
por Augusto Boal, que havia dado aulas no Chile. Realizaram dentro do presídio uma série de
peças e apresentações teatrais cujo público eram os próprios guardas de segurança. No espetáculo
permanente chamado "El Pueblo de Ritoque", o centro de detenção se transformava em uma
cidade protegida do resto do Chile. Como parte do roteiro, o prefeito fictício recebia os novos
atletas que chegavam para participar de um exitoso campeonato e que, por deficiência dos meios
de transporte, não iam embora jamais. As imagens do lugar que temos conhecimento hoje são
desenhos contrabandeados para fora do acampamento e para fora do Chile feitos por Miguel
Lawner, que foi diretor da Corporação de Melhoria Urbana (CORMU) no governo de Allende, e
também prisioneiro em Ritoque. 144
Uma linha de trem paralela ao mar conecta ambas cidades, a Abierta e o presídio Ritoque,
demolido em 1988 com o plebiscito que marca o fim do período militar no país. Esta mesma
linha férrea, hoje exclusiva para carga, termina a alguns quilômetros mais ao norte, na cidade de
Ventanas, região conhecida como a “Chernobyl Chilena”, uma zona de sacrifício pelo seu
potencial industrial altamente destrutivo onde 17 empresas contaminam simultaneamente.

“Eu moro em Ventanas, na comuna de Puchuncaví. (...) Nós éramos amigos dos
pescadores, as águas eram cristalinas, havia pesca, agricultura e turismo. As dunas
negras que você vê hoje, eram brancas, muito altas. Hoje, da minha casa você pode ver
as chaminés, vejo como funciona Porto Ventanas, tudo", descreve Katta Alonso (65),
fundadora do Movimento Mulher na Zona de Sacrifício Quintero em Resistência.145

Cheguei à Ciudad Abierta pela primeira vez em 2010, sem GPS ou qualquer mapa de
orientação. De carro com um amiga, peguei a estrada de Concón a Ritoque e fui perguntando nos
poucos estabelecimentos do caminho até encontrar alguém que soubesse do que se tratava. Um
único homem disse: “devem ser aquelas casas malucas construídas nas dunas”. Topei com um
recinto isolado, fechado por um grande portão, de onde se viam “casas futuristas” e esculturas à


144
Referências retiradas do artigo de Ana María León, Prisoneros de Ritoque, La Ciudad Abierta y el centro de
detención.
145
Disponível em: <https://www.latercera.com/la-tercera-pm/noticia/lider-de-mujer-en-zona-de-sacrificio-aca-en-
ventanas-tienes-mucho-mas-que-lo-de-erin-brokovich/298363/>. Tradução livre.

157
mercê do vento, intercaladas entre vegetações e dunas, com o mar ao fundo. Felizmente o portão
se abriu. Percorri partes do terreno, entrei em algumas casas que estavam de fato abertas, cruzei
com algumas pessoas que pareciam sair de uma conferência. Nada mais que isso. Quando voltei
ao Chile para a residência de 2012, tentei, sem persistência, me aproximar do lugar. Foram
necessários nove anos desde aquela primeira visita para que, de fato, eu regressasse. Foi passando
novamente de carro pela estrada de Concón a Ritoque que revi as dunas e suas “casas malucas”.
Por intermédio de Fernando Espósito, arquiteto chileno residente no Brasil, ex-morador e
professor da PUCV, atual professor da PUC Rio, que conheci a Andrés Garcés, diretor da
Corporação Cultural Amereida e anfitrião do meu primeiro almoço de quarta-feira na Ciudad
Abierta.
Durante o primeiro semestre de 2019, frequentei muitos almoços de quarta-feira na Sala
de Música, uma das muitas construções daquelas dunas, onde residentes, em sua maioria homens
brancos de classe média, pertencentes ao corpo docente da PUCV, se reúnem semanalmente.
Apesar do desconforto pelo caráter um tanto exclusivo dos encontros, cada semana me aproximei
de quem ainda não tinha sido apresentada, reencontrei quem já conhecia, escutei e procurei
entender um pouco mais a Corporação como um organismo vivo e uma plataforma de
experimentação. Grande parte do colegiado da Escola de Arquitetura e Desenho reside ali, mas
nem todxs xs residentes pertencem à Escola ou à linhagem direta dos primeiros Amereida. Há
pessoas que nasceram ali, somando-se já três gerações.
Iván Ivelic, atual diretor da Escola, é filho de Ana Paz Yanes e Boris Ivelic, ambxs
presentes na Ciudad Abierta desde o início. Ana Paz me contou que chegou grávida aos terrenos
ainda baldios e foi abordada por militares quando acampavam no que viria a ser sua casa.146
Victoria é filha de David Jolly, ex-aluno e professor da PUCV. Arquiteta de formação e artista,
mora com seu companheiro e filhos, sendo um deles nascido na Ciudad Abierta. Jorge Ferrada é
professor da PUCV, morou no Brasil, trabalhou com Niemeyer, era amigo de Tunga e me
apresentou o Tratado de la Gran Hermandad Orquídea147, publicado em 1941 por Godofredo
Iommi, do qual participaram, entre outros, Geraldo Mello Mourão (pai de Tunga) e Abdías do
Nascimento. Ele também me apresentou o seu conceito de não-paisagem, ainda em
desenvolvimento com o suíço Alexandre Schildt, que seria uma interpretação filosófica da visão

146
Conversa com Ana Paz Yanes, 24.07.2019.
147
Informação disponível em:
<https://wiki.ead.pucv.cl/Tratado_de_la_Santa_Hermandad_Orqu%C3%ADdea>

158
de paisagem do poeta Charles-Ferdinand Ramuz. Em breves linhas, a relação da arquitetura da
Ciudad Abierta com a natureza seria a de não-paisagem, porque a Ciudad Abierta seria o lugar
onde a paisagem é construída. Também abriu a sua casa para mim e minha família, nos fez uma
visita guiada ao terreno superior da Ciudad Abierta e nos ofereceu o vinho Hugo Casanova, um
Carmenere/Malbec de 2015. Marcela Chicano vive na Ciudad Abierta, é professora em Quintero
e colabora com os movimentos sociais de Ventanas. Isabel Margarita Reyes, ciudadana abierta
desde o início, quando ainda era estudante de arquitetura, não consta entre os fundadores do
lugar, assim como nenhuma outra mulher, nem mesmo Ana Paz Yanes. É detentora de um sem
fim de histórias e hoje é professora do curso multidisciplinar de poesia sobre a América, “Taller
de Amereida”. Ana María Ruz é a anfitriã do lugar por excelência, recebendo e guiando hóspedes
pelos mais diversos desvios da Ciudad Abierta, especialmente pelos caminhos que chegam ao
mar. No dia do meu primeiro almoço na Corporação, a mãe de Ana María também estava
presente. Foi ali que começamos a conversar.

A cidade, seu enredo (ou não-enredo), sua arquitetura, e até seus laços sociais quase familiares, nascem
da leitura do ecossistema e das condições espaciais do lugar, potencializando-as. Quase como
um trabalho existencialista, a arquitetura desaparece sob uma arena que apaga os rastros,
em uma canção de crescimento, de velhice, de morte, e novamente, de nascimento, na busca
da criação constante. Assim como cada ser vivo é irrepetível, mas parte de uma comunidade,
cada casa na Ciudad Abierta é única, mas formando uma comunidade.148

Na Ciudad Abierta, os encontros e possibilidades de pesquisa são múltiplos. Como em


episódios anteriores do meu trabalho, pedi que me levassem a conhecer seus lugares prediletos,
onde gostariam de ser retratadxs, mesmo que não aparecessem junto à paisagem ou à arquitetura,
por timidez ou preferência. Nessa relação mais direta e intimista, contavam um pouco de suas
histórias pessoais dentro e fora do lugar. Fui aos poucos sendo influenciada por suas memórias e
consequentemente passei a conhecer a Ciudad Abierta através de uma narrativa não
necessariamente oficial, induzida pelas variadas interpretações, que resultaram em paisagens e
retratos totalmente impregnados e comprometidos por informações e sentimentos alheios à


148
ASENSIO, Ana. Ciudad Abierta de Ritoque: paisaje habitado 44 años después. Tradução livre.

159
imagem. Pelo curto tempo de feitura do projeto, fotografei apenas Ana Paz Yanes, Ana María
Ruz e Jorge Ferrada, mas até a presente data, ainda não revelei os negativos.
Além dos retratos faltantes, a outra etapa do meu exercício na Ciudad Abierta seria
realizar caminhadas frequentes até Ventanas. Andei algumas vezes pela linha férrea que cruza a
Ciudad Abierta, que passa pelo terreno que abrigou o presídio de “El Pueblo de Ritoque”, e
chega a Ventanas, mas a minha vontade pendente é de percorrê-la muitas vezes como extensão
geográfica entre essas localidades contemporâneas tão diversas. Pela mesma linha é possível
realizar um exercício de observação visual e sonora, uma reflexão crítica espaço-temporal de uma
paisagem mutante entre formas tão diferentes de se construir cidade, ocupar territórios e
preservar santuários, algo tão recorrente no que conhecemos hoje como América. Pela mesma
linha é possível conhecer histórias e personagens. Pela mesma linha é possível combinar cidade,
hospitalidade, arte, arquitetura, antropologia, poesia, educação, paisagem, história, memória,
apagamento, ditadura militar, indústria, crime ambiental, resistência. Paisagem partida entre o
oceano, as dunas, as construções experimentais de Amereida, os bosques nativos e artificiais de
eucalipto e pino, as chaminés esfumaçadas, o porto de Ventanas, e as mais diversas pessoas que
compõem este curto e heterogêneo espaço. Que lugar essas localidades ocupam no imaginário
coletivo? O que de fato teríamos para aprender de Ritoque?

¿tiene signo nuestro origen? ¿qué origen?

¿quién sino ella dice de un origen pues sólo poéticamente se aparece?


un día nos hablaron las voces en el íntimo destierro
¿qué origen?

aventura de aceptación o rechazo


su presencia
– por rehusar o convenir –
ahueca la persona
la disloca
suspendida
renovadamente
en su primicia o libertad

intacta a través de lenguas


caos

lo inventaron mar
mar
sube a la voz
tal apariencias
el nuevo mar
de nuestra muda interioridad

160
vivir en los contornos de una figura
frente a su mar de dentro
es nuestro modo
huir
o enfrentar
es guardarnos

incursionarlo
o andar por él
desde y para otra parte
que sí mismo
es no aceptarlo

un mar interior se abre


para nuestra consistencia

¿no vivimos acaso


con ausencia o falta o continente
ni querido ni olvidado
pero apagado y mudo?
¿alcanzamos a reconocerlo
en la propia desazón
cuando inquirimos una identidad?

desvelar
rasgar el velo
a través
– la voz nos dice –
travesía
que no descubrimiento o invento
consentir
que el mar propio y gratuito nos atraviese
levante
en gratitud
o reconocimiento
nuestra propia libertad

¿no heredamos
esta capacidad de desconocido
o mar
que nos ahueca para la admiración
y el reconocimiento?
es menester abrir el camino –
y lo que en esto se podría
decir

¿no aparece la historia


donde la tierra y el cielo se unen y se miden?

¿qué otra cosa


significa horizonte?

un mar tiñe su vocación

161
de estrella
y nos lega

¿qué ha sido pues


de nuestro cielo americano?
aún lo desconocemos
y no nos habla

¿no iluminan así las estrellas a los hombres


y esclarecen
para que haya pueblo?

la travesía consigue su cielo


como los ojos

su tierra así transida


¿no expondrá en la carne
un ritmo
que mueva a lenguaje?
porque sin lenguaje
todas las rutas hacia nuestra intimidad
aunque se adueñen
deforman y engañan

¿un lenguaje?

bajo su luz
la carencia se muda en riesgo
de otro significado
o vuelo de un sentido
¿y nuestras raíces?
nuestra raíz
no está preñada de su hoyo
– nuestro apoyo
está en los aires
vasto
como la residencia de los pájaros
así lo desconocido se hace en la pupila
y la historia
queda a merced del consentimiento
como un salto

los viajes enseñan ( entre otras cosas ) que las palabras son como extrañas a las cosas que nombran – de allí
una relación de enajenación bilateral me atrevo a decir entre cosas y palabras de la que el viajero y muy
especialmente el turista es la víctima la cual él mismo expresa en la confesión ingenua de su decepción – él no
puede dejar de estar decepcionado ya que las cosas no se parecen a los nombres ni los nombres a las cosas –
debe refugiarse en el acto de fotografiar que momificando el presente por ese embalsamador instantáneo el
aparato recortando y paralizando lo real dándole mágicamente el estatuto de la imagen lo da por pasado de un
modo fulminante y lo hace así homogéneo a la palabra – el lugar donde estoy puede por fin convertirse en el
título de la foto

162
¿ entonces ?
acaso la obra hic et nunc149 digamos improvisada lo cual quiere decir hecha allí mismo y no sin preparación ni
preparativo y con todo el tiempo que se quiera puede casar a la tierra con el nombre es esta una celebración
local la poesía el acto poético matrimonio de la mar con el dogo la poesía semejante a aquellos franciscanos
joaquinitas150 que partieron a bautizar a todos los hombres para que el mundo y su historia tuvieran
acabamiento para apresurar así el fin del mundo la poesía como acto parte a celebrar las bodas del lugar y de
la fórmula – operación difícil como un sermón que reconoce lo singular nombrándolo operación dos veces
infinita pues es tarea inacabable finalizar el mundo y puesto que todo recién llegado ( sobreviviente ) ha de
recomenzar la nominación por cuenta de su propia vida

claro puedo hablar de continentes sin haber estado en ellos de ciudades sin haber errado por ellas – esto es
sin embargo porque nosotros hemos ido – la leyenda reposa en esta prueba la comunicación con los otros el
lenguaje tiene como mediación la experiencia las verdaderas ciudades imaginarias son aquellas que uno ha
visto supuesto en carne mientras uno iba errante es decir durante la prueba de ese desierto entre la cosa y el
nombre porque la cosa para los hombres aparece largo tiempo después de oído el nombre y casi todos los
esfuerzos que hace para reconocer son vanos es decir dejan intacto y sin inserción el primer nombre – por
excelencia el nombre de la muerte ese nombre de nombres el más fascinante de todos por causa de esta
protección que lo rodea de esta expulsión que lo redobla y lo preserva de todo reconocimiento de todo juicio de
identidad de tal modo que todo poema es acaso una suerte de repetición-simbólica de variación ritual de
danza-transposición de este acercamiento de la muerte ( la muerte acercándose como la desconocida cuyo
ocultamiento es el signo sensible – en todo desvío en todo momento – inminente ) como si sólo escribiéramos
para este minuto de muerte cuál nombre qué palabra se igualaría por fin con ella y todo poema entonces como
las versiones sucesivas cada vez más locas por insinuaciones de analogías de reanudaciones y sorpresas de
rupturas de pasado hasta una versión última agitada furiosa bella todo poema como esfuerzo de anticipar la
muerte figurándola de izarse a su altura de ser capaz de acoger su más intensa suspensión todo poema para
invitar e imitar al último buscando la palabra final especie de ensayo general con vistas al silencio – es decir a
ahuyentar a toda otra palabra el dios – (mi) muerte la incógnita en todo lo conocido el hueco en el centro de
ese huésped extranjero ¿por qué no se les dice a la gente que muere que van a morir? ¿cuál es la verdadera
razón?

y aún más – para poder hablar hay que perder la palabra – lo cual se produce en el simple viaje la entrevista
en un lugar anunciado de hace mucho tiempo (desde siempre) por la gloria vacía de su nombre

de todos modos me pierdo en el lenguaje y es allí que nosotros tratamos de encontrarnos – el medio de este
encuentro es así lugar de una extraña indiferencia de una neutralidad desesperante (lo universal) mientras que
esta pérdida me somete a suplicio

¿cómo cambiar esto?

cuerpos leves en existencias debían ser aquellos que transitaban por estos caminos

él me explica esto con ojos razones y ademanes que conservan las distancias de las viejas fronteras de las
partidas y antipartidas de los caminos y refugios leves

el habitante de la ciudad antaño podía ir a fundar y poblar otra ciudad una ciudad se engendraba así de la
costilla de otra ciudad ese rango y poder detentaba entonces el ciudadano

¿tiene el habitar – simétrico – raíz anterior a estas parejas hombre-mujer padre-hijo mandatario-pueblo
ciudadano-campesino pobre-rico bueno-malo etc de suerte que ofrezca la plenitud de un follaje?

cada nombre contiene sus desconocidos



149
Nota disponível em: <https://wiki.ead.pucv.cl/Amereida#cite_note-61>
150
Nota disponível em: <https://wiki.ead.pucv.cl/Amereida#cite_note-62>

163
sentado y extranjero a mediodía
en mi carne
súbita
sin bordes
hondonada
reúne su pájaro sonoro
¿grito o digo?

– ¡oh mi ciudad
suspensa en su baldío! – de una vez
pero nada se corrompe
si en la aventura
una lengua anuncia la que escucha
y otra palabra
nace

entonces aparece lo abisal ¿cuándo lo abisal? cuando el país de los ojos lo vigente por visible
se separa abruptamente de lo que asientan los pasos y el pasaje

sólo se consuela la tierra sólo se logra suelo cuidando del abismo


sólo es suelo lo que guarda el abismo lo que da cabida a la irrupción y proporción al trance
estar en trance es vivir con asombro un choque de ruptura y un arranque de abismo es ser testigos
de esta contigüidad de la violencia y del gigante

hubo quien supo vivir y construir a partir del abismo

destruyendo la figura del mundo el abismo se ofreció de improviso y por su visaje o vista se hizo presente la
multiplicación y abundancia de la tierra como un tesoro

¿cuál mapa?

¿qué es esta américa retornada e invertida?


¡es américa vista a partir de la tierra!
a partir de lo debajo dicho de otro modo
de donde viene dante y donde están los muertos

todo en américa del sur


se complica cuando se trata de habitar la superficie

¿de qué será donadora amereida?

el camino no es el camino151

Acaso é providência,152 me disse Virginia de Medeiros, artista em residência na Berlin


Biennale 2019-2020. Mais uma coincidência entre acaso e Berlim. Aliás, nossa conversa foi
permeada por coincidências do início ao não fim, conectando aspectos que atravessam as nossas
práticas e vão além. Acompanhada de minha filha Pilar, tivemos um encontro encantado sob a luz
azul que a artista decidiu banhar a sala que correspondia ao seu trabalho na Bienal. Entre

151
Extratos originais retirados do poema Amereida (1967).
152
Conversa com Virginia de Medeiros, 23.01.2020.

164
palavras, fotografias, brinquedos, plantas e as vozes presentes no vídeo Trem em Transe,
coincidimos também no dia de Cosme e Damião, 27 de setembro. Foi neste dia que Virginia,
ainda no Brasil, começou o seu trabalho atual. Enquanto isso, na Alemanha, eu levei a minha
filha para uma festa no Ilê Obá Sileké, casa do rei/Xangô que traz prosperidade153, onde, por
primeira vez, ela presenciou, não só o Candomblé, mas um palhaço e comeu uma cocada. Em um
diário ainda não publicado, Virginia comenta: “Neste dia, nos terreiros, celebra-se a alegria e a
inocência das crianças. A imagem de Cosme e Damião me acompanha (...) o objetivo da
residência aponta para uma força em oferenda, para a espiritualidade, e anuncia três palavras:
África, território e cura.” Ao chegar a Berlim, Virginia foi a um evento no Dia da Consciência
Negra no Ilê Obá Sileké, 20 de novembro. “Nunca poderia imaginar que uma semana depois eu
seria (…) recebida pelo Babalorixá Murah como abíyàn, filha da casa.” Desde então, a artista
vem frequentando e trabalhando em colaboração com as mulheres de lá, algumas que conheci
quando visitei o lugar por primeira vez com Pilar.
No princípio da minha pesquisa de doutorado, Virginia era uma das referências elencadas
justamente por empreender longos exercícios de observação de caráter presencial, em residências
e projetos que requerem o seu deslocamento e envolvimento, mas também por manter uma
prática associada a uma produção textual que muito me interessa. No entanto, talvez pela maneira
como incluí a menção ao seu trabalho na qualificação em 2017, a banca, por unanimidade, me
recomendou excluí-la da minha escrita. Foi numa outra bienal, a de São Paulo de 2014, que vi
por primeira vez um trabalho seu. Era a videoinstalação Sérgio e Simone (#1, 2007-2009). Cinco
anos depois, em sua primeira fala pública em Berlim, Virginia apresenta uma outra versão do
mesmo trabalho (#2, 2007-2014), na qual adiciona mais filmagens e opta por uma montagem
com três projeções (e não duas, como anteriormente). Tudo o que ela disse naquela noite
reafirmava o quão necessária era a sua presença no meu texto: o trabalho de Virginia não tem
fim. A artista acompanha x protagonistx do vídeo, ora Sérgio ora Simone, há doze anos. Ela
conta que x conheceu quando filmava uma fonte de água que abastecia uma comunidade de
Salvador. Na época, Simone era uma mulher trans que se denominava cuidadora da fonte. Então,
da desculpa geográfica fonte, Virginia começou a filmar Simone, em um exercício de observação
sem prazo. Durante o processo, Simone retomou sua identidade de Sérgio, tornando-se um pastor
neopentecostal. O material de vídeo da artista, somado às imagens que sua irmã gravava como

153
Disponível em: <http://candomble-berlin.de/pt/index.php>

165
apoio, só foi editado muito tempo depois, e Sérgio se fez Simone que se fez Sérgio algumas vezes
nesse ínterim. Um dia Virginia foi visitar Sérgio e o encontrou vendendo algumas cópias de seu
DVD. Várias vezes x amigx ligou para ela comentando sobre ideias para novas filmagens. A
observação e a amizade continuam.

Esta é a política dos encontros e é ela que estabelece o caráter dos meus trabalhos. No
encontro com os indivíduos, minha presença é potencializada, torno-me personagem
atuante. Desse modo, posso extrair pela interação, cumplicidade, confiança e afeto,
revelações que façam desaparecer o véu identitário que encobre e neutraliza a presença
viva do sujeito.
(MEDEIROS, 2014, s/p)

Virginia redigiu um relatório por ocasião do projeto Fábula do Olhar (2012) no qual
apresenta várias passagens que atravessam a minha pesquisa teórica e prática. A artista começa o
texto comentando sobre a relação entre tempo e duração na sua observação incessante e as
sensações do corpo quando estrangeiro no contexto de um projeto de residência. Assim como
mencionado em várias partes desta tese, ela nos fala de um tempo heterogêneo e de um corpo
afetado em sua potência criativa:

Quanto tempo durou a residência? Um mês e oito dias. Do dia 12/11/2012 ao dia
20/12/2012, seria a resposta exata. Mas esta resposta é uma redução das qualidades
inerentes a experiência vivida. A residência dura e é incomensurável este tempo.
Um tempo indivisível em que a memória prolonga o passado no presente. (...) A latência
de criar algo que faça sentido num curto espaço de tempo e numa cidade desconhecida,
gera um estado desestabilizador: um outro sotaque, um outro tom, uma outra inflexão
pronunciou-se sobre o meu corpo, sem o habitual cotidiano os movimentos ganharam
um outro ritmo que se assemelhou ao do transe. A sensação é de que parti para o centro
de Fortaleza e para o oco de mim, chegando num ponto equidistante entre
o que falava e o que desconhecia. Neste estado, uma espécie de comunicação sutil me
guiava. Era como se eu pudesse acessar uma outra dimensão ou uma outra qualidade de
interlocução com o mundo.
(MEDEIROS, 2012, p. 3)

Mais adiante, Virginia relaciona a sua prática à autoetnografia, algo que havia escrito
anteriormente em um texto chamado Fraturar-se para o encontro, que já não está disponível na
internet:

No primeiro momento tudo que tinha era o meu diário e a literatura, e foram eles que
asseguraram e harmonizaram a primeira semana. Aberta, trêmula e sedenta por alguma
aventura comecei a inventar uma história; e parece que quando a gente se abre
a invenção uma série de sinais apontam o caminho. Escrevia tudo, tudo que vivia, sentia

166
e imaginava. Não distinguia mais entre a realidade e a mentira, entre o que eram meus
escritos ou do Jean Genet tudo se misturava no texto e em mim. Revendo o filme “Fanny
e Alexander”, do cineasta Bergman, me emocionei profundamente com a última cena, na
qual a avó Helena lê para o neto Alexander um trecho da peça “Sonho” de Strindberg:
Mentira e realidade são uma só.
Tudo pode acontecer.
Tudo é sonho e verdade.
Tempo e espaço não existem.
Sobre a frágil base da realidade a imaginação tece sua
teia e desenha novas formas, novos destinos.
“Fábula do Olhar” foi ganhando sentido na medida de cada ação, o rumo se desenhou
a cada passo dado, o trajeto foi cheio de entradas, encontros, verdades e mentiras. Este
foi o primeiro procedimento artístico, ficcionar meu estado e entendê-lo como arte.
(IDEM, p. 4)

Do trecho de Fraturar-se para o encontro que guardei nos meus arquivos, a artista ainda
menciona a observação das ruas como sendo o seu “laboratório possante de criação”154:

O ato de andar, observar lugares, pessoas, situações e a vontade de me infiltrar num


determinado cotidiano – onde os código e regras sociais, valores morais são outros,
diferentes do lugar onde estou –, e experimentar as conexões e desconexões que estes
universos vão provocar em mim, passou a motivar meu processo criativo. Neste tipo de
convívio cabe contradições, tensões, desafios, desconstruções, desestabilizações –
mutações. O Outro não é apenas o dessemelhante – o estrangeiro, o marginal, o excluído
– é também uma sensação de incompletude que nos mantém em suspenso, como
inacabados, na espera de nós mesmos. Um encontro que requer tempo, cumplicidade e
uma vontade de aproximar o que nos parece distante.
(MEDEIROS, s/d, p. 1)

Virginia reafirma o meu pensamento de que o exercício de observar começa no abrir-se ao


inesperado, às sensações e aos sentidos; no uso de um lápis, um papel, uma câmera fotográfica,
um telefone-esperto, qualquer meio de registro daquilo que se presencia estando. É todo o
contrário de idealizar um magnífico, forjar um espetáculo. É ser capaz de compor o mundo
recortando as imagens disponíveis no mundo, assim como fazem xs demais interlocutorxs desta
tese. Virginia e eu chegamos à conclusão de que as narrativas que estamos desenvolvendo há
anos podem ser consideradas imagens abertas, editáveis, dilatadas, compostas por fragmentos-
projetos-exercícios-de-observação em desenvolvimento. A imagem que se apresenta no agora é
um episódio do todo e carrega o percurso, a duração, o empirismo de uma prática presencial que
guarda em si a possibilidade de se reinventar em múltiplas leituras, espaços e tempos, de acordo
com as tantas imagináveis montagens e maneiras de se contar uma mesma história. Rever uma
trajetória em construção, fuçar entre imagens e textos nunca trabalhados, olhar um material de

154
MEDEIROS, Virginia de. Fraturar-se para o encontro, s/d.

167
arquivo como quem olha um álbum de família, propor-se a refazer caminhos para torná-los
novos, aprender constantemente... talvez seja disso que estou a falar aqui.
Sempre gostei de bagunça. Não de ordem nem desordem. Bagunça. O que tenho a mão vou mexendo
até perder, prá depois achar de novo. Achando o que perdi acho o novo de novo, reencontro o novo
no velho – é como a luz, a velha luz, descansada e sempre nova de novo.155

Esta pesquisa me deu a oportunidade de rever procedimentos e a preparação dos


exercícios de observação que levo tanto tempo praticando. Na escrita iniciada no ano 2000, se
insinua o caminho que venho trilhando até aqui. As escolhas, os lugares e as alianças me
prepararam, para além da artista, a ser humana, mulher e mãe que sou hoje.
A tese me permitiu registrar conversas, tanto as reincidentes, que sempre quiseram
extrapolar o campo afetivo, como as que foram geradas especialmente para esta ocasião. Virginia
de Medeiros abriu espaço para receber a mim e a minha filha durante a sua residência, ainda em
atividade, para falar sobre o que está sendo processando em tempo real. Gisele Camargo,
enquanto caminhava dentro e fora das erosões da Serra do Cipó, esboçou um novo conceito de
grade na pintura. Gravou em um áudio, ofegante entre o subir e descer das montanhas, seu
pensamento ainda em construção. Chiara Banfi, titubeando, me enviou em um áudio a sua
primeira formulação verbal de certas questões íntimas sobre a maternidade. Já Cecilia Cavalieri
gravou seis, com a firmeza e a assertividade de quem já tinha dado muitas voltas ao tema. As
mães deste texto nos confirmam a urgência em se multiplicar as diversas experiências sobre
maternidade e maternagem com tal de revermos questões, especialmente de gênero, que se
perpetuam e afetam a todas, sendo, portanto, um assunto que deveria ser tomado a sério por toda
a sociedade, já que, até inventarem algo novo, são as mães e as suas crianças quem detêm o poder
de prosperar e reinventar a nossa espécie. É necessário e político. Assim como é necessário e
político garantir o direito de escolha das mulheres de quererem engravidar ou não, de abortar ou
não, com segurança e dignidade. Divido com xs leitorxs, pesquisadorxs, o privilégio dessas
informações público-privadas, dos bastidores de artistas vivxs da contemporaneidade, em pleno
exercício, que ainda estão por descobrir ou inventar suas formas de fazer e sentir o mundo;
artistas que estão a produzir, a cada instante, arte e vida sem distinção, renovando todo e qualquer
sentido de mundo. Nos atuais anos de retrocesso que estamos testemunhando, quando a cultura e


155
TUNGA. Barroco de Lírios. São Paulo : Cosac & Naify, 1997, p. 7.

168
a educação se veem acuadas em um projeto de governo aniquilador das sensibilidades, faz-se
fundamental a resistência exercida pelas vozes presentes neste texto. Seguimos.

A arte é sempre a invenção de um possível, um exercício de autoconhecimento e transformação.


Vivemos num regime que faz gerir o medo, a insegurança e a falta de confiança generalizada
como uma prática de governo. A maneira como vemos as coisas é afetada pelo que sabemos
ou pelo que acreditamos, nesse sentido muitas representações contribuíram para sustentar
certas verdades intimamente ligadas ao controle e ao poder. Precisamos encontrar novos modos de ler
a realidade e estar atentos para as representações descuidadas que criamos a respeito dela.
Para isso precisamos desafiar e questionar as tradicionais e conhecidas mediações entre nós e o mundo,
nos recompondo com outros corpos e conhecendo outras pulsações. Acredito que as relações
que devemos estabelecer com nós mesmos não sejam relações de identidade, mas antes
de diferenciação. Quando nos desprendemos de nós como sujeito e do mundo como objeto
estaremos no movimento da vida e, não mais, nas formas como o pensamos para fazê-lo fixo e permanente.
(...) Percebi a importância de levar em conta nossos laços afetivos como elemento dotado de significado vital
para a história da arte contemporânea. É o conjunto dos afetos criadores que nos liga à vida,
somos transformados por tudo que nos aproximamos com paixão. A diversidade humana talvez seja
uma das questões mais difíceis de serem compreendidas, nesta investida corro o risco de acentuar
para o espectador o exotismo, o estigma ou a própria descriminação.
Este é o maior desafio que enfrento ao transpor a experiência vivida para o espaço expositivo,
mas de alguma forma os envolvimentos emocionais que fazem parte do processo de produção
engendram novas formas de percepção da arte. A recepção tem sido coberta de interesse,
simpatia, gratidão e vontade de saber mais.156


156
Virginia em resposta ao MASP.

169
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176
A n e x o A . T e x t o s a u t o r a i s

177
Alleys, 2000-2002

When everything seems to go fine, a bird falls and damages the view. When you finally believe you
are ready, there is something holding you back. The cycle goes on, life and death.
It is good to think that after the chaos comes the boom of enthusiasm. So you keep on waiting and
dreaming on enthusiasm. And when your dreams become real, there is nothing left to wait for.

My American life begins in an alley and ends in a dead end. Even though I roam in circles, my
everyday routine forces me to search for alternative exits. This alley is the greatest metaphor of an
outsider inside an ongoing superficiality. It is better to pretend you haven't seen it. You shouldn't go
there.

Anyways, life goes on behind the expensive labels of international fashion stores. Between Collins
and Washington avenues, there is a backstage, which should be kept hidden from the tourist's eyes;
where they won't find colorful flamingos to photograph. If by any chance you have the opportunity
to walk around here, even if you are just coming to pee, you do not need to worry about an attitude
to come up with, or a doll-like way of walking to impress someone. Be just who you are. And if you
get scared or feel threaten by the real dwellers of the alleys, be sure they are also scared of you.

Dirty asphalt, broken windows, trash, rats, backdoors, cigarette breaks, valets racing with the
luxurious cars they get paid to park, drunkards, homeless. I don't need to be someone I am not in
order to be accepted by this "social life", this god-dammed social life. So I keep on walking and
learning from these walls that seems to fall over my head.

There is art deco in the alleys but it is not shown in the magazines.157


157
Quando tudo parece correr bem, um pássaro cai e arruina a vista. Quando finalmente se acredita estar pronto,
existe alguma coisa para impedir. O ciclo continua, vida e morte. É bom pensar que, depois do caos, surge o boom do
entusiasmo. Então você continua esperando e sonhando com o entusiasmo. E quando seus sonhos se tornam reais,
não há mais o que esperar.

Minha vida americana começa em um beco e termina em uma rua sem saída. Mesmo andando em círculos, minha
rotina diária me obriga a procurar saídas alternativas. Esse beco é a maior metáfora do estrangeiro inserido em uma
superficialidade contínua. É melhor fingir que você não viu. Você não deveria ir lá.

178

Enfim, a vida continua por trás das caras etiquetas das grifes internacionais. Entre as avenidas Collins e Washington,
há um bastidor que deve ser mantido escondido dos olhos do turista; aqui não encontrarão flamingos coloridos para
fotografar.

Se por acaso você tiver a oportunidade de andar por aqui, mesmo que seja apenas para mijar, não precisa se
preocupar com a atitude ou com a maneira de andar para impressionar alguém. Seja apenas quem você é. E se você
se assustar ou se sentir ameaçado pelos moradores reais dos becos, verifique se não são eles quem têm medo de você.

Asfalto sujo, janelas quebradas, lixo, ratos, portas dos fundos, pausa para um cigarro, manobristas acelerando os
carros luxuosos que são pagos para estacionar, bêbados, sem-teto. Não preciso ser outro alguém para ser aceito nessa
"vida social", essa maldita vida social. Então, continuo andando e aprendendo com essas paredes que parecem cair
sobre minha cabeça.

Existe art déco nos becos, mas isso não mostram nas revistas.

Tradução livre.

179
Natal no Minhocão, 2009

8h desocupo meu apartamento na Rua Paulino Fernandes. A mudança vai em direção à casa nova, na
Rua Dona Mariana. Sinto uma dor terrível, choro compulsivamente, tenho medo de todo o
desconhecido. Um cansaço sobrenatural toma conta e a fragilidade é inevitável. 15h encontro, sem
programar, a minha família. Almoçamos juntos, como não acontecia há tempos. 18h chego no
Minhocão, local da residência artística, atual moradia permanente até o dia 20 de dezembro. O medo
vira alívio. O desconhecido vira vizinho. O apartamento 613, da Dona Leda, vira minha casa. Isto
aqui não é um hotel, é a minha casa.

Hoje faz 17 anos que meu pai morreu e fui obrigada a me mudar pela 8ª vez. Hoje fiz minha
mudança de número 26. Encontrei minha família e despedi-me dela. Conheci uma família nova.
Senti-me recebida com calor, carinho e atenção. O medo do desconhecido terminou na amabilidade
do outro. Muitas são as janelas neste prédio de muitos. Sensação de que tudo ficou para trás. Sinto-
me tão longe do presente próximo e tão perto de um passado qualquer, de cidade pequena e vizinhos
queridos. O apartamento tem vista de torre e ar de casa. Estou acolhida em meio aos pertences da
Dona Leda. Faz três meses que ela partiu. Os objetos ainda quentes, cachorros de porcelana que
latem calados na estante. Imagino como seria a sua vida, junto à família com a qual agora convivo.

Faço retratos a fim de homenagear os que aqui vivem. Vejo nos seus olhos uma ternura de
agradecimento por meu gesto simples e afável. Participei da alegria do corredor – parte rua, parte
pátio, parte sala –, local onde crianças deitam, eu deito, comida se apronta, comparte-se cerveja,
música e conversas. Respeito esta casa como se fosse minha. Ela agora me pertence. Vejo as
manchas das infiltrações no teto, mas não me abalo. Desvio o olhar para o Jesus emoldurado, com
um tercinho pendurado nele, e sinto-me feliz. Fogos de artifício, hino de futebol e tantos outros sons
embalam a minha noite. É bom estar sozinha e ter silêncio. Existe um momento de paz em que o
descanso é necessário. Não mais me pressiono com decisões. Vivo cada instante com intensidade,
nem muita nem pouca, mas de forma genuína. Quero estar aqui e todo o resto me importa de
menos. Não me atinge a precariedade do lugar. Isso não sobressai na minha experiência romantizada
desta casa. Vivo outra década em 15 dias do ano de 2009.

Hoje faltou água. A mãe da Ilka morreu. O pai das crianças bateu na esposa e apontou uma arma na
frente da menina. Eu chorei e brinquei com a criançada ao mesmo tempo, já que me pareceu mais
sensato tentar distrair. Há seis anos o D. bate na M. Tiveram dois filhos e ela é mãe desde os 14.
Hoje ela tem 21 e dormirá fora de casa.

A molecada pega a câmera russa de antigamente e brinca estarrecida. Querem apertar o disparador
mesmo antes de escolher a foto. A curiosidade é linda e anima o processo de convívio. Tinha um
menino especialmente interessado. Sério, arisco, ele pegava a câmera decidido. Cada criança com seu
encanto. Um somatório de mini-personalidades que fazem deste lugar único. Desenharam até
dormir. suco de goiaba + suco de uva + guaraná + canetinha + lápis de cera + papel + guaraná +
papel + caneta + guaraná + TV + chave de casa + sono.

Gosto de dormir cheirando o pé da mamãe. O chulé dela é bom. Ela namorava o dono da mercearia
que morreu. Hoje em dia quem toma conta, de favor, é o tio. Ele traz o pão fresco de manhã e viaja
para Campo Grande no fim de semana. Aqui no corredor somos todos uma família. Havia até o
plano de juntarmos os apartamentos, abrindo uma janela entre as salas, para as conversas mais

180
privadas. Mas ficaram com medo da tia do outro lado, que era muito encrenqueira. Já somos a quarta
geração de mulheres. As famílias cresceram juntas, se multiplicaram. A do 614 é madrinha da do 612,
que é madrinha da do 614, e assim vai. Acharam um filhote de cachorro abandonado e ninguém
podia ficar com ela. A menina chorou muito porque queria a cadelinha. Os outros cachorros do
corredor sentiram o cheiro e ficaram alvoroçados. Todos pro banho para tirar a murrinha.

Faz muito calor e muita preguiça. O ventilador toca uma musiquinha que dá sono. Ventinho quente,
abafado, de tarde morta. Nem café dá jeito. Chego na janela para ver a paisagem de longe, mas o sol
da tarde castiga. Dou a volta para a outra vista e o pessoal lá embaixo está queimando cobre. Mais
calor, mais fumaça. As crianças não sentem nada disso e brincam eufóricas na beira da laje. Os mais
sortudos foram para a piscina de algum parente. Espero alguém bater na porta, mas me lembro de
que já está aberta. É só entrar. A buzina do padeiro toca alto, a manicure trabalha no corredor. A
cachorra Madona dorme feliz de barriga na cerâmica fria. O perfume do recém-banhado invade a
sala. Vai chover. As nuvens se aproximam.

De pequena eu batia muito nela e também batia nos outros que queriam bater nela. Só eu podia
bater. Minha filha bate na filha dela. Sempre fomos melhores amigas. Eu bato o bolo para ela, para
você e para a vizinha, e assim não dá ciúme. É melhor comer ainda quentinho, com o brigadeiro
mole.

Passos, cachorros, pássaros, Makita, chuva, carros, buzinas, crianças, vassoura raspando o chão, bola,
motor de caminhão. Tiros. Parece que são dentro de casa, no corredor. São no morro. Algumas
pessoas continuam tomando cerveja na mureta. No mesmo minuto meu telefone toca. Coração
aperta. Mudo de canal. Pânico. Xurupita.

Estranho receber visita numa casa que não é mesmo minha. Os amigos viraram turistas,
observadores passivos da minha vida. Os assuntos são restritos e só falamos do pertinente a este
lugar. Ninguém quer saber como estou, mas sim como estou vivendo. Pela primeira vez tive vontade
de ir embora. Só senti o cheiro de xixi de gato porque me contaram que estava forte.
Não gostei de ser vista como numa experiência exótica. Não tem exotismo aqui. O que se vive é
puro e bastante verdadeiro. Me incomodo com o olhar de reprovação e questionamento. E mesmo
eu sendo uma estrangeira, também me incomoda o olhar estrangeiro do outro. Prefiro ficar só com
os meus botões e meus filhos postiços.

O quarto é rosa. Ao abrir a porta de manhã, vejo um corredor iluminado de verde e amarelo, com
rasgos de sol pelo chão, pelas portas, pelos livros na estante. A penumbra matinal é filtrada por
cortinas e toalhas, aquecendo os objetos com uma luz fraquinha. O Snoopy de porcelana recebe um
facho especial, quase um holofote. À noite o vão da escada é lilás, cintilando pequenos quadrinhos na
parede.

Meu tio ganhou este apartamento quando trabalhava para o governo, mas como preferia morar perto
do jardim, cedeu-o para os meus pais. Eu tinha 5 anos. Um dia um funcionário do CEHAB veio
investigar e regularizar os moradores. Pelo sobrenome da família ele reconheceu que era sobrinho da
minha mãe. Não se viam há pelo menos 30 anos. Vivo com minhas filhas, netas e meu novo marido.
Não penso em sair daqui até morrer. Muitos já vi chegar e passar, e hoje tomo cerveja sozinha por
falta de companhia.

181
Desta vez pensei que fossem fogos, mas eram tiros de verdade. O motoqueiro não caiu e a polícia foi
atrás dele. Rapidamente o pancadão deixou de ser funk e virou pow-pow com sirene. Aqui tudo ainda
em paz. Strogonoff com arroz. A água voltou, a chuva parou. O telefone tocou e boas notícias
chegaram. Desde que moro nesta casa, toda vez que o telefone toca, recebo uma boa notícia.

Hoje me disseram que faço família em todo lugar. No início da residência eu não podia imaginar que
isto de fato aconteceria. Sentir-se acolhido não necessariamente significa ter afinidade. Hoje deixei a
casa que me devolveu um tanto de coisa que havia perdido por aí. Tive que sair e abraçar e chorar e
doer. Tive que prometer para mim mesma que aquele amor inventado em tão pouco tempo não
cessaria naquela partida. Volto para o Natal. Volto para aquele corredor que foi tão casa quanto a
minha casa. Volto para o calor das histórias embaladas a risos e gritos. Ontem vi um álbum de
fotografias antigas. Ri das caretas das crianças que hoje são adultos. Vi a semelhança genética das
pessoas e a permanência grifada daquele cobogó, daquele corredor. Agora eu estou sem casa, mas de
volta a um cômodo fechado, sem comunicação externa além do barulho da rua movimentada e
urbana do bairro de Botafogo. De volta a braços confortáveis que estavam adormecidos aqui. Fecho
o olho e um rostinho de criança vem na lembrança. Sorrio. Eles ficaram de me ligar para saber se eu
tinha chegado bem. Difícil responder a uma pergunta dessas num momento em que conquisto tanto,
me emociono tanto, mas deixo algo muito potente para trás. Não existe mágica que faça com que
aqueles dias se prolonguem. As fotografias que eu fiz servirão de álbum para alguma outra conversa
daqui a 20 anos, seja deles, minha ou nossa. Servirão de mapa para me levar de volta àquele lugar e
adoçar a memória. Toda bala Juquinha me levará ao esconderijo, ao pote verde em forma de maçã,
onde reencontrarei aquela felicidade.

Muitos fogos. Uns de artifício, outros de verdade. Queimaram o mato todinho. Em vez de verde,
agora é preto. Uma pipa voa bem alto e, depois que avisto a primeira, já são dezenas dançando no
céu. Hoje é dia de festa. Bolinho de bacalhau em muitas casas. As famílias trabalham e celebram ao
mesmo tempo. Voltei ao corredor encantado e reencontrei os amigos. Até o de 5 aprendeu a
escrever "afeto" com pauzinhos de madeira. Os sofás e a cortina novos chegaram. A sala se ilumina
das tonalidades recentes. Um lugar é inaugurado. As crianças ajudam a limpar, mas sem querer
molham a flanela. A chave esquecida no portão dá entrada a outros menos presentes. Hoje é dia de
festa. Roupas são estreadas. A geladeira de um guarda a cerveja do outro. Eu trouxe pudim. Latinha,
latinha! É a hora do gato comer. Vai e vem, entra e sai. Sandálias novas. Feliz-da-vidá.

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Carandiru, 2009 (revisitado em março de 2013)
É raro associar Carandiru a qualquer outro lugar que não à penitenciária em São Paulo.
Neste ano de 2009, pouco se sabe e pouco se vê do Carandiru carioca, um terreno construído pela
RFFSA, ligado diretamente à Estação da Leopoldina, que hoje abriga alguns barracões de escola de
samba. Localizado próximo à Rodoviária Novo Rio, o complexo passa despercebido pela maioria
dos que circulam por ali.
Na entrada principal, pessoas tomam Coca-Cola e jogam dominó em meio a carrinhos de comida
estacionados. O mato alto cobre a linha férrea e é preciso andar um pouco para achar os barracões.
O primeiro que identifico é uma nave sem cobertura. É a estrutura restante de uma enorme oficina
de trens, que dá morada também a uma família e a pelo menos oito cachorros. Dizem que Pretinha
comeu o coelho.
A intempérie desbota os adereços do carnaval passado, que agora parecem ser de 1985.
Tecidos em cores vivas se tornam pastéis e, rasgados, revelam a carcaça de isopor.
Mesmo decadente, a ideia de folia ainda está presente no que restou de folia, não porque
o cenário é particularmente bonito, mas porque incita a imaginação. A sucata do ano passado serve
de matéria bruta para as produções do próximo, fazendo com que a diversão nunca
se acabe. Pelo contrário, o somatório e acúmulo num mesmo ornamento traz enriquecimento, pelo
menos de história e memória.
Tento me desvencilhar do lado negativo de qualquer definhamento. Estou interessada
na temporalidade da ocupação daqueles galpões, tanto no tempo histórico linear do lugar,
como no movimento latente e frenético durante o processo de trabalho pré-carnaval,
o que implica em arruinamento e empilhamento. Penso na oficina de trem e seus funcionários que
foram substituídos por barracões de escola de samba e seus carnavalescos. Penso no chão de terra
que se recicla diariamente sem nunca perder uma parte de sua composição original. Penso na
intensidade dos quatro meses em que todos os esforços se concentram na árdua tarefa de produzir
um espetáculo com carros e fantasias complexas que serão exibidas em um só dia, ou no máximo
dois, numa cerimônia que dura menos de uma hora. Penso na concentração e na dissipação da
presença humana. Penso nos enfeites que ficam, e no lixo que se revela quando o carro sai, deixando
um desenho no chão. Penso num espaço que se contrai e que se dilata.
Detenho-me nas camadas temporais e arquitetônicas que se sobrepõem. O galpão principal
é monumental, assim como a maioria dos carros e alegorias espalhados pelo interior. Parece uma
fábrica de bonecos gigantes. Um mundo de ficção onde portas falsas conectam nada a lugar nenhum.
A área externa é um descampado onde plásticos, borrachas e paitês se amontoam e constroem
cantos. Objetos de grande porte abandonados se destacam como esculturas no vazio. Navios
naufragados e anjos. Vagões enferrujados e cobertos por mato se camuflam na paisagem. A paisagem
transforma-os em colinas. Uma trilha comprida leva a uma civilização distante.
Carandiru é um lugar habitado, marcado pela presença e pela acumulação de tempos, impregnado de
resíduos. Busquei fotografá-lo no recesso do carnaval, concentrando-me nos resquícios encontrados
que poderiam contar histórias sobre o lugar. A fotografia, em sua capacidade de combinar outroras e
agoras, encarna um instante, um relâmpago, apresentando uma cena onde o tempo fica em suspenso.

Carandiru deixou de existir para dar lugar ao Porto Maravilha.

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De murunduns e fronteiras, 2010

Caminho de volta. A sombra é invertida. Agora já são mais de 60 borboletas. Parei de contar quando
uma estava para morrer. Não tive coragem de guardá-la.
Estou numa porção de terra cercada de água por todos os lados, menos um, ligado ao continente.
Quase ilha.
O cheiro de mangue ativa alguma parte da memória e me joga para longe. Precisamente dez anos
atrás. A incompatibilidade entre o tempo corrido, o vivido, o lembrado, o esquecido, o sonhado.
Pessoas e lugares que não posso resgatar. Pequenos falecimentos coletivos.
De volta ao suposto tempo presente, torres de concreto e vidro. Piscinas privadas diante de águas
poluídas. Espaços de silêncio entre burburinhos condominiais. Direito de propriedade exercido em
comum.
Avisto uma ilhota em meio a águas, prédios e shoppings. Um território neutro, silencioso,
observador, passivo, tímido, úmido, como muitos dos que já passei.
Pisei no sol. Demora um tempo para o olho se acostumar e enxergar através do regurgito. Espinha
de peixe, conchas e formigas se camuflam pela fuligem e a capa branca e ácida do vômito dos
pássaros. Penas de todos os tamanhos. Coco verde e coco seco. O balanço das folhas e galhos
lembram passos, apesar de eu estar sozinha.
Rizófora, casuarina, gigoga, pneumatóforo, jacaré, capivara, gambá, frango d'água, mutuca, jaçanã,
garça-rosa, biguatinga, socó-boi, gavião-carcará, martim-pescador, maçarico.
Terra solar, de corpos lentos, de quebra-molas e redutores de velocidade, de querer cochilar na tarde
tépida, de preguiça, de dormência.
Na solidão se vê o espaço e o tempo, fazendo estender o instante ou fazendo-o parar.
De murunduns e fronteiras.

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Insulares e marginais, 2010

A promessa de qualidade de vida e o habitual modo de vida. O prometido e o usufruído.


Vastas áreas a serem compartilhadas. Dimensão de solidão, lentidão e duração.
É estar na varanda e ver o casal que fuma cigarros e lê e-mails no laptop, e a faxineira
que penteia a planta ensolarada. O som é realmente estranho. Helicópteros e marretas
(muitas marretas em distâncias variadas) e ventos e apitos de rádio. O som não condiz
com a imagem tranquila que se tem daqui de cima. Não vejo alma viva circulando pela área.
28 espreguiçadeiras ao sol. Conforme as manhãs chegam, o cheiro ruim se ameniza, o barulho
diminui. O estar faz. À noite as ruas estão vazias porque todos correm. Sinto-me um ser humano
pleno até sair pelas muitas grades que me separam das vias realmente públicas e perceber como é
bom caminhar até a padaria e pegar o metrô para ir ao centro da cidade, ver um filme, tomar uma
cerveja com os amigos que encontrei sem querer pelo bairro. Eles vivem na água porque querem
viver para sempre. A sensação de distância é muito superior aos quilômetros percorridos. Conforme
avanço pela linha dos postes, detectores de ausência, ouço vozes e gritos vindos dos apartamentos
mais avantajados. Festas e jantares íntimos. Que lugar mais estranho onde durmo por onze horas
ininterruptas. Já não estou entre as grades e, curiosamente, sinto-me desprotegida. Tenho a sensação
de que alguém pode saltar do meio do mato para me atacar. A bolha faz isso com a gente. Vejo um
prédio em construção e um canteiro em sondagem. Vivo a promessa de um bairro. Do alto, entre os
vergalhões que se empenham transversais ao horizonte, avisto os terrenos preparados como tanques
de grama, que um dia terão mais de 500 pessoas morando em verticais. Entro num futuro duplex,
com seu fosso que um dia será piscina, enquanto tudo é cinza-cimento, cinza-concreto, cinza-poeira.
É a ruína do que ainda não é. Sobre piscinas. Pequenos territórios aquáticos em cima do mangue. A
lagoa e os milhões gastos em poças artificiais, de azul reluzente, cloro e salva-vidas. As águas do
Camorim se reúnem às do Anil, mas não se misturam. O verde e o preto se encostam, mas não se
alteram, limítrofes. Na paisagem da minha varanda, a perspectiva é dada por linhas sobrepostas e
rasgos verticais como anteparos. Tudo o que vejo está na altura dos meus olhos, até o guarda-corpo
da varanda, do qual preciso me desvencilhar para então ver o horizonte. As plantas estão bem mais
verdes.
Os tons se separam e é bonito de ver como o bosque fica incrível depois da chuva. Difícil separar o
que se molda do que rui, porque na verdade o que rui também está se moldando com o tempo.
Margarida é de Passa e Fica, é passifiquense. Não é o nome de um rio, mas de uma bodega que deu
início à cidade. Pense numa birosca no meio da estrada que começa a agregar gente, que faz casa, que
faz povoado, que faz cidade. É o contrário daqui, onde se faz casa para agregar gente e para só então
fazer a birosca.

185
Petricor, 2011

Cercada de Daniéis, Virgínias, Tânias e Esmeraldas, e tantos que adentraram a minha vida
da noite para o dia, na companhia dos mais deliciosos autores e de uma breve cortina. Uma cama na
qual mal caibo, adornada com peças de azulejo com motivo infantil,
que me abarca nos mais profundos sonhos de expectativa sem fim. Ocupo um quarto ensolarado
com mancha de armário no taco já surrado. Três portas e uma janela: muitas escapatórias para o meu
medo incipiente, tão comum em momentos assim. Como o primeiro dia de aula em outra escola em
outra cidade, com aquele sorriso gentil para conquistar possíveis amizades. Um frio estranho porque
me arranquei de casa para me entregar ao desconhecido. A ânsia que se transforma em prazer,
gratidão e adrenalina. Cá estou outra vez na montanha russa das novas paisagens.

Ganhei uma manta rosa choque porque sou menina? A que se deve tal confiança? Corro ao longo
dos trilhos do bonde até chegar à entrada das Paineiras. Nado sobre a paisagem da Zona Norte.
Adormeço com o ruído brusco de uma bateria. Cozinho para ganhar intimidade com a casa. E volto
a me sentir fora do lugar...

O infinito é o horizonte. De súbito, súbito, súbito.

Vou parar essa história. Vou ligar para ele agora. Eu preciso disso. Obrigada Zé.

Saí da zona de conforto. Percorro a cidade com fome para me lembrar de como ela é grande.
Avisto a casa a partir dos mais diversos pontos. O sol lasca as janelas, criando um farol
na montanha. A casa é de ninguém e é de todo mundo. A casa é do outro. O quarto é meu.

Ouço um porco pela janela. Um gato sobe no meu ombro. Libélulas. O tiritar das gotas do ar
condicionado do vizinho. Obrigada Isaías.

O silêncio é tal que ouço a maquinaria do elevador. Cachorros perdidos ao vento. O tiritar das gotas
do ar condicionado do vizinho.

E pensar que este lugar foi construído dois anos antes do meu pai nascer. E que todas os adultos que
conheço, que moraram no bairro, frequentaram a piscina quando eram crianças. As histórias se
multiplicam entre residentes e convidados. Aqui na casa posso dizer o mesmo, já que todos
residimos e todos somos convidados.

O motor do ar condicionado do vizinho. A caixa d'água no térreo.

Ainda estou processando as mil coisas que estão acontecendo em ritmo muito devagar.
Os quilômetros que percorro até as Paineiras, as braçadas na piscina. A capelinha dos donos
da cachaça. A van que parte da portaria e me leva a muitos lugares possíveis e que não havia
imaginado. Casa 1, 102. Casa 2, 202.

O antropólogo, que mora em Paquetá, viveu muitos anos ali, quando havia aulas de natação abertas à
comunidade. O garoto fumava no terraço olhando a vista de 360º. A senhora portuguesa namorava o
porteiro, mas mantinha sua casa separada. A menina matava aula com
os coleguinhas do colégio para tomarem banho de piscina. O músico tocava bateria vendo
o relógio da Central. A moça dava banho no cachorro todas as manhãs na garagem. O outro cão
186
morava no mato por debaixo da piscina, com seus potinhos de comida e água, diferente dos gatos
que não eram de ninguém. O menino sentava nos degraus da portaria para esperar a carona da tia
para a escola. O rapaz pulava do trampolim esperando mergulhar na cidade. Era um dos prédios
mais luxuosos do bairro.

E se me dizem que o vazio está cheio de potencialidade? Que ali não pode não existir alguma coisa?
Por quê existe alguma coisa e não nada? O cérebro é mais vasto que o céu. Quando existe luz, existe
memória. Luz é corpo, corpo é luz. Dentre as coisas que ouço, a luz é o primeiro animal visível do
invisível. São ornamentações do vazio, transfigurações do vazio. Subitamente há muito lugar.

A geografia não importa. O mapa não é o território. De história vivemos mais que de imagens.
Passos largos rumo ao crescente.

Do barulho do corredor, me recolho aos pequenos objetos do lugar. A simplicidade das formas e a
imposição das cores. Da impessoalidade do corredor, me entrego à paisagem erma. A imensidão do
vazio escuro e a companhia discreta dos que não posso avistar. Da confusão do corredor, me resumo
a mero observador da hierarquia dos jogos infantis e de suas regras inventadas e obedecidas.

Trovoadas e sirenes. E eu aqui sozinha no topo da cidade.

Moraria em todos os lugares em que morei. Passo por gringa em todos eles, mas rapidamente sou
incorporada. Meu sotaque não tem direção.

O vento assovia alto por entre as frestas. Todas as janelas tremem. Subserviência.

Pingando pelas paredes e pelo céu. Pingos d'água, de ferrugem, de morcegos. A água de baixo foi pra
cima, e torna a cair, ciclicamente. Mas a piscina não volta a encher.

Deitada na cama, por uma brecha da cortina, vejo o Cristo Redentor.

O marimbondo é uma vespa, parente da abelha e da formiga. Ele se protege construindo sua casa em
lugar abrigado de predadores.

Construção do lar
1. A primeira etapa da construção de uma casa é a aquisição da matéria-prima. Para isso o
marimbondo raspa com sua mandíbula a fibra de madeiras mortas, como galhos de árvores e
troncos caídos. Em seguida, ele mastiga essa fibra e a mistura com água e com a própria
saliva.
2. A fibra amolecida é regurgitada pelo marimbondo no local onde ele pretende construir a
casa. A modelagem dos favos e do invólucro do ninho é feita com as patas dianteiras e com
as mandíbulas. Normalmente, a construção leva apenas alguns dias para ficar pronta.
3. As casas de marimbondos são semelhantes às das abelhas. Elas são divididas em favos, que
servem como depósito de uma substância feita a partir de larvas de pequenos insetos. Esse
mel meio nojento é produzido para consumo interno dos marimbondos. A rainha do grupo
vive no centro da construção.
(http://www.idealdicas.com/casa-do-marimbondo/)

Casa na janela, casa no banheiro.


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Casa de Marimbondo
Composição : João Bosco & Aldir Blanc
Meu samba é casa de marimbondo:
Tem sempre enxame pra quem mexer
Não sabe com quem está falando
Nem quer saber, nem quer saber, nem quer saber
Tem gente aí que acha
Que samba é contravenção
Eu saco bem o tipo
E sou de opinião
Que é nego acredita
Que sempre tá com a razão
Meu samba sempre diz:
Essa Não! Essa Não! Essa Não!
Se o morro fica fazendo média
E aceitando a situação
Meu samba chega e, de cara feia
Dá decisão, dá decisão, dá decisão.

Começo do fim. A sensação é irreparável. A dúvida se desfaz e a mala fica pronta. Sinto umas
saudades bestiais.

O espaço-entre se dispõe uma vez mais. Um intervalo composto de colunas e um bebedouro. Uma
caixa de máquinas. Requinte do século passado em meio ao trânsito. Limite escalonado entre acessos.
Um andar-entre. Andar-através.

Pressentimento, melancolia, medo. A insegurança mora ao lado. Já invadiram assim outras vezes,
outras casas. Vulnerabilidade irrestrita. Sentimento de perda, de abuso, de opressão. Revolta e
preconceito se misturam afim de justificar a náusea. Fragilidade, frio. Voltar pra casa em meioa
cascas de ovos. Lamúria, lamentação. Encontro o aviso de recebimento da carta que enviei no dia em
que saí daqui. Término e recomeço.

188
El luche, 2012158

|
O pistoleiro Maicol Poblete, olhos verdes e aproximadamente 30 anos, anda sempre
acompanhado de quatro comparsas, entre eles, o famoso Chano Maricón. Com seu bando, o
malandro circula pela zona plana da cidade de Valparaíso, mais precisamente no entorno da aduana e
da Igreja Matriz, aterrorizando moradores e transeuntes. Contam que roubou um caminhão de gás
no Caminho Cintura, além de muitos outros delitos envolvendo violência. Digamos que o prontuário
do rapaz é extenso. Não se sabe se foi detido no passado, mas a denúncia anônima que recebemos
em um papelzinho escrito por mãos trêmulas à esferográfica azul é um sinal de que precisa ser
capturado de uma vez.
Quando sucedeu o roubo, os xingamentos saíram em todos os idiomas, mas ninguém
interceptou o Poblete nem a sua gangue, que rapidamente se dispersou entre a multidão que
transitava pela Rua Cochrane às 15:00h. Comerciantes observaram atônitos desde janelas e calçadas,
murmurando em silêncio "lá se vai mais uma vítima del cabrón, hijoeputa, conchatumadre". O mal-parido
correu justamente o necessário para subir a rua Cajilla e se perder nos meandros do seu bairro,
próximo à delegacia de investigações, a chamada P.D.I..
Foi justamente neste distrito que um policial registrou o ocorrido e recebeu dois dias mais
tarde a acusação sem remetente. O oficial, que carrega o mesmo sobrenome Poblete, quando não
está engomado em um terno negro despachando no interior da chefatura, usa farda camuflada sobre
uma motoca alviverde numa versão guerrilheira de funcionário burocrata. Diante do bilhete
amassado, se limitou a esboçar um sorriso condescendente, ambíguo, sem indicar qualquer espanto,
porque além de conhecer a quadrilha, sabe o lugar exato onde os cinco pilantras se escondem. Caso
não esteja mancomunado com eles, pode ser que faça uma batida em busca dos bens furtados,
dando-lhes uma prensa para descobrir o paradeiro final da câmera fotográfica.
Após a ocorrência, viaturas de distintos portes se anunciaram em todos os cantos da praça,
mas foram abafadas pela sirene do navio que atracava no porto ao cair da tarde. É quase impossível
não se deter nestes roncos periódicos, muito mais poderosos que as campanadas da igreja, mas não
menos ensurdecedores que o canto das gaivotas que, sempre em bando, tumultuam o que há pelo
caminho. Passado o frisson, foram os assovios e os alarmes dos automóveis que tomaram conta,
enquanto Poblete desaparecia pelos confins da cidade.
Sem maiores novidades sobre o caso, alguns moradores se reuniam na praça para comentar o
ocorrido, todos anônimos falando em código. Um batizado se celebrava na Igreja, entre familiares e
fotografias, e a paz reinava até outra moça ser atacada por dissidentes de Poblete e Chano. Muitos
correram pela rua da Matriz em vão.
A partir de agora, todos os que passam pela rua Santo Domingo parecem suspeitos. Busca-se
um infrator que não tem medo da lei nem da língua afiada dos seus vizinhos. O cidadão se esquece
que vive em uma comunidade latino-americana, seguidora das telenovelas e dos finais felizes, em um
bairro onde a igreja alimenta seus fiéis menos abastados e os cachorros tomam sol diariamente em
praça pública. Se aos olhos de Deus somos todos iguais, aos olhos do próximo, Maicol Poblete é o
demônio.
A caçada ao bandido começa na Matriz e evolui em direção a Viña del Mar. A velocidade da
fuga contrasta com o ritmo pacato da cidade, em particular com o do trem mais lento do mundo,
estacionado no Paseo Weelright, um pouco depois do Muelle Barón. Suas carcaças, que algum dia
foram vagões, são vistas de longe, abandonadas em forma de ferro-velho. As três composições,

158
El luche é o nome que se dá no Chile para jogo de amarelinha.

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sucumbidas à maresia, guardam histórias de todos os tipos, dos viajantes que ali passaram aos mortos
que ainda se homenageiam com animitas floridas. Retratos 3x4 de personagens inominados decoram
paredes e seus rostos desconhecidos ganham títulos e frases de amor. Até algum parente do Poblete
poderia estar figurado naquele mosaico de fantasmas anônimos.

||
Encontrei o trem mais lento do mundo quando corria pelo Paseo Weelright na tarde do
domingo 22 de julho. Daquilo que parecia um pesadelo, entre pichações e vidros quebrados, se ouvia
Clair de Lune, de Debussy. Uma placa anunciava a venda de café e chá, o que me encorajou a subir
as escadas enferrujadas. Lá de cima, o mar se via, se ouvia e se sentia por todas as janelas, enquanto o
metrô que ainda parte rumo a Limache buzinava veloz nos trilhos ativos da ferrovia. Em um canto
iluminado pelo sol filtrado por cortinas vermelhas, notas musicais saíam de um piano vertical alemão
pelas mãos de um filósofo colombiano. Não era para menos a internacionalidade do momento,
considerando um comboio que jaz diante de um dos portos mais importantes da História da América
do Sul. O trem é o mais lento do mundo porque está ancorado no tempo. Ao embarcar, fui
transportada a um passado impossível de localizar, em suspensão, distanciando-me quase que de
imediato da realidade em que estava imersa. Não percebi a noite chegar nem a aproximação de
outros curiosos como eu. Só acabou o feitiço quando o piano calou.
Um chileno de descendência basca, Carlos Albarracín, mora no trem e oferece aulas de
música, ali mesmo, na ferrovia em frente ao mar, entre as histórias que só alguns poderiam contar. O
único piano com que tive contato na vida foi o do meu pai, que também se chamava Carlos, e
circulava entre pescadores. Nunca aprendi o instrumento, mas naquele vagão, sem referências claras
do tempo local e protegida dos contraventores que me afligiam, comecei a tocar. No piano, que em
italiano significa "suave", as recordações brotavam em turbilhão e as imagens jorravam pelos dedos
incapazes de reproduzi-las corretamente. Sem métrica certa, a lógica não era a da completude da
ação, mas a do gesto, a da aprendizagem pouco didática conduzida por um senhor de nome Carlos,
que pouco a pouco me apresentou uma nova possibilidade de viver Valparaíso.
Da rotina fez-se um ritual, de caminhadas extensas pelo cais, percorrendo dia após dia um
mesmo caminho com cheiro de peixe e canto de gaivota, que de ensurdecedor fez-se melódico.
Centenas de passos em silêncio para deixar-me arrebatar pela experiência. A contínua contemplação
de uma paisagem repetida que permite admirar o corriqueiro como extraordinário. Mas o decorrer da
prática musical carecia de sensibilidade semelhante à que me levava ao piano diariamente. Faltava
disciplina e entendimento entre as partes. O instrumento ficou curto e congelado, anunciando a
chuva e atualizando o tempo, de modo a reassentar tudo em seu devido lugar. De algum modo, as
cortinas do comboio se fecharam e as luzes se acenderam para que eu pudesse desembarcar.
Quando acabou o temporal, senti um enorme vazio por reconhecer a perda. Minhas histórias
foram somadas a tantas outras que estavam esquecidas no trem e não mais me pertenciam. Mas
percebi que os acordes que aprendi não eram apenas melancolia e que através deles poderia inventar
e recontar histórias com notas que dispensam tradução. Consegui registrar imagens mesmo sem
minutá-las visualmente. Se me roubaram um olho, me deixaram os ouvidos. E a partir deste
entendimento a prática ganhou força novamente, sem grandes devaneios ou atmosferas oníricas, se
expandindo pelas ruas da cidade que haviam se perdido no princípio da viagem.
Em cada cruzamento de Valparaíso encontrei tons, do popular ao erudito, em vozes, alto-
falantes, pregoeiros e instrumentos de todos os tipos, provenientes de distintas partes do mundo, que
chegaram até aqui pelas mãos de residentes e turistas, modificando por completo a paisagem urbana.
Mariposa e Alejandro, Milca e Mauro, Fernando e Soledad, Gonzalo e Juan Carlos, Jorge e Claudio,
Mati e Nico, Pablo e Carlos, Rosario e Daniel são apenas alguns dos muitos personagens que
constituem o extenso mapa sonoro que ilustra e indica caminhos na cidade.
190
Dos músicos que conheci, me apeguei especialmente a Catalina Jiménez Torres, pianista de
personalidade ímpar, que eu jamais poderia descrever na bidimensionalidade de uma fotografia. Nos
conhecemos no Café Passeo, na Plaza Anibal Pinto. Entre um chá, uma cerveja e alguns cigarros,
falamos um pouco das nossas vidas ou o suficiente para que eu confiasse nela como parceira na
empreitada de aprender a tocar piano em um mês. Foi ela quem me ensinou, sem paternalismos, a
me apoderar do instrumento, fazê-lo meu, senti-lo, tocá-lo. Pus de lado o universo colorido das artes
visuais para mergulhar em teclas pretas e brancas onde não mais podia controlar o tempo e sim
respeitar o que me era determinado. Com as mãos ainda tensas e tímidas, aprendi a relaxar para que
os dedos fluíssem com mais destreza e pudessem adquirir a firmeza característica para o soar das
notas.
Aos poucos, entre caminhadas e encontros, comecei a colecionar, através do som, paisagens
e retratos. Gravei o ruído das ruas e pedi a músicos que compusessem cinco segundos em compassos
de quatro quartos para que eu pudesse tocar. Como um jogo de amarelinha, que aqui chamam de “el
luche”, fui recolhendo a cada passo um fragmento que, quando reunidos em uma só partitura,
representariam uma das muitas possíveis leituras de Valparaíso.
Na dinâmica de ser guiada através da sonoridade dos habitantes daqui, conheci todo tipo de
gente, lugar, história e nostalgia. Esses registros, quando transcritos à música, foram distanciados dos
pormenores subjetivos de ressentidos, positivistas, esquerdas ou direitas, mantendo a imagem
descritiva do instante em que foram gravados. Certa vez, na esquina de Templeman e Almirante
Montt, fui obrigada a girar o pescoço e segurar o passo porque Claudio tocava um realejo com seu
papagaio Pepe, desacelerando pedestres e atribuindo rosto às pessoas. Em outra ocasião, pela janela
de casa, vi Jorge tocar o violino na sua sala a apenas 5 metros de distância da minha. Em todos os
casos, a música proporcionou a percepção visual do momento e agora faz questão de recordá-lo a
cada vez que é tocada novamente. A canção estimulou os sentidos, disfarçou a vergonha e promoveu
a reunião entre desconhecidos. O som antecedeu o encontro e faz permanecer a imagem.
Com a transferência da visualidade ao som, criei El luche, que é uma obra composta não
apenas por timbres, mas também pela ausência dos mesmos, pelos silêncios e pelas tantas notas
prometidas que nem sequer foram escritas. Na peça estão pessoas e lugares que conheci, entre
amigos e amores, fracassos e alegrias, mirantes e paisagens, reunidos em fragmentos dissonantes, que
desrespeitam a lógica harmônica de uma canção, em pulsos variados dispostos lado a lado,
privilegiando a ordem da lembrança para recontar a mim mesma as experiências que tive nesta
cidade. As partes se organizam praticamente sozinhas, evidenciando rupturas e encadeamentos
felizes no encontro entre as notas. Cada grupo de compassos me leva ao dia em que conheci aquele
que soa no piano. Com a colaboração de Catalina, existe hoje uma partitura produzida em Valparaíso
que pode ser tocada a qualquer momento, por qualquer pessoa, em qualquer lugar, e que é o único
registro imagético físico do projeto para além destas palavras.
Compor uma partitura reunindo imagens é como juntar partes de uma história inacabada,
impossível de ser reconstituída linearmente. Como em “el luche”, de casa a casa joga-se a pedrinha
para chegar ao céu, sabendo que é preciso voltar para buscar a mesma pedrinha e continuar jogando.
Tocar a obra diante do público, em um teatro com 100 anos de existência, é uma maneira de contar
essa história inacabada, reverberando-a no seu lugar de origem, para que passe também a pertencer à
história da cidade.
Lembro-me da melancolia ao deixar o trem e reconheço o luto naquele ato, a partir do qual,
felizmente, pude dar sequência aos capítulos desta viagem, que transcende a geografia e se
imaterializa através da obra.

191
Corta Luz, 2013 (revisitado em outubro de 2018)
Morei por um curto período em São Paulo e nunca entrei no Louvre, apenas o avistava da janela.
Morei por um curto período em Paris e nunca entrei no Louvre, apenas o avistava da janela.

Conheci o Copan através de uma fotografia alemã. Todos estrangeiros, tentando falar alguma coisa
sobre a arquitetura moderna brasileira, ou não. Morando ali eu não tinha a noção da imagem famosa
do populoso complexo que reúne em 6 blocos 1610 apartamentos porque eu me havia tornado uma
unidade autônoma contida na imensidão. Vivi ali por mais tempo que o então dono daquela casa de
veraneio invernal no centro novo da capital, que a vendeu logo em seguida da minha partida. Eu mal
conhecia o Ricardo e não fazia ideia de quem eram Keila, Alice, Camila e sabe-se lá quem mais havia
passado por ali. Pagava as contas que iam vencer e pronto.

Entrar na casa vazia dos outros me faz especular sobre tudo, duvidar da sujeira, questionar o
conteúdo da garrafa de saquê, ter nojo do sabonete em barra. Pelos de desconhecidos, tábua do vaso
sanitário de desconhecidos. Tomar banho de chinelo mesmo depois de deixar tudo de molho em
cloro. A faxina nunca é profunda demais para tirar os resquícios das vidas passadas. As paredes não
deixam esquecer: o reboco em forma de bandeira, pregos e furos por todos os lados. O desenho no
chão deixado pelos móveis que há muito não eram movidos do lugar. Redistribuo tudo a meu modo,
brinco de casinha como no tempo das bonecas. Invento proveito para objetos que foram deixados
no fundo do armário. Dou importância a tudo o que encontro pela frente e guardo novamente no
armário o que não me faz falta, para quem sabe, o próximo inquilino redescobrir a sua utilidade.

Por mais habituada, cada dia o ato de me mudar se torna mais violento. Então a solução é ocupar aos
poucos pequenas áreas delimitadas que se expandem com o uso. Ocupar o vacante.

A luz entrava pela sala mas o sol jamais. Ele apenas se insinuava para além da malemolente curva. O
amarelo que me chegava vinha refletido pelo edifício-garagem-arranha-céu de 31 andares que
bloqueava o horizonte. 290 vagas para automóveis bloqueiam um horizonte. No Copan são 221, mas
estão no subsolo e não obstruem a vista de ninguém.

Meu horizonte eram verticais de prédios; janelas que se multiplicavam sem cessar, já que umas se
refletiam nas outras entre transparências e interpenetrações. Avistava um coração na vidraça vizinha.
A leitura é a mesma para quem está dentro ou fora, uma maneira eficaz de comunicação entre
milhares de pessoas que dividem a mesma quadra triangular. O coração no Louvre e eu no Copan.

Minha Copancabana inscrita no Guiness Book.

Do hall de elevadores viam-se os cobertores de lã que improvisavam cortinas. Também viam-se


quilômetros de tubulações que transportam gases, águas e sons de um lado para outro.

Cortinas cortam a luz, edifícios cortam a luz. Um rebatimento de sol engana a cortina, atravessa a
nesga e filtra a parede de azul.

Quando chovia e ventava forte, as pastilhas da fachada caíam como granizo.

É expressamente vedado a qualquer condômino ou titular de direito, ou a quem que, por qualquer
título, esteja na posse ou no uso de qualquer unidade autônoma, usar, alugar, ceder, emprestar, no

192
todo ou em parte, para pessoa de vida ou ocupação duvidosa. É expressamente vedado o
atendimento de público nas galerias. Estas são medidas que visam garantir a segurança e a
valorização das propriedades, bem como a saúde o sossego e a convivência harmoniosa da
comunidade residente.

Garantir a segurança e a valorização das propriedades.

Ao lado da Consolação, Sinatra dizia para voar longe sem contar para a minha mãe. 9 de julho na
Nove de Julho em 2013. A greve geral me tirava o sono e me embalava num ruído branco que se
somava aos tão recorrentes da geladeira, do registro de água, do vento pela janela, das infinitas obras,
do caminhão de lixo, do gerador, do ônibus, do alarme dos carros, dos helicópteros sobrevoando a
minha cabeça... Um zumbido longínquo, intermitente. Da janela tentei seguir a passeata, mas não
podia avistar a rua, apenas moças limpando os vidros, penduradas na fachada sem qualquer proteção,
e a bandeira do Brasil, imóvel, sobre a veneziana vizinha.

A bandeira do Brasil em julho de 2013 e em outubro de 2018. A quem representa?

Tirei o colchão do chão e improvisei uma cama. O frio impregnado por falta de sol se amenizava
com uma colcha felpuda e os lençóis amarelos que foram dos meus pais. Transitei entre o Invierno en
Lisboa e o inverno em São Paulo. Transito novamente.

Percebo então que não se tratava de uma nova residência, mas de uma internação extrema por tempo
determinado. Mesmo estando em uma cidade-mundo que conhecia há tanto tempo, sentia-me
desconhecida e estranha, como se fosse a minha primeira visita à cidade grande. A fragilidade de ser
alguém pequeno entre torres de concreto distribuídas ao acaso, em um mosaico arquitetônico que faz
do céu uma aparição.

Expandia e contraía os caminhos a percorrer, protegida na metrópole da Companhia Panamericana,


onde espaço público e privado se misturam harmonicamente. Do meu apartamento no bloco B ao
escritório do Pivô, bastava pegar um elevador e subir uma escada. O ateliê era uma continuação
orgânica da casa habitada, reproduzida em ambientes distintos, mas em escala semelhante. Os pregos
reapareciam nas paredes e o sofá-cama ficava à disposição dos visitantes.

Deixei o trabalho invadir o espaço.

Rememoro as dificuldades e alegrias das casas que tive até chegar mais uma vez à conclusão de que
sou minha própria casa, autônoma do lugar onde me encontro. Para a pauliceia delirante, além de
casa, levei afeto. Afeto este que independe da geografia e que atravessa paisagens.

No percurso do elevador até a minha casa, a vizinha do 317 deixava a porta aberta bem na hora do
solzão de meio-dia. Tamanha gentileza brilhava sobre o corredor já amarelo e rebatia pelas paredes,
cintilando e fazendo a poeira dançar.

Reconhecia o cheiro da casa e não me assustava mais com os barulhos perdidos, com a buzina de
navio que era a descarga da vizinha ou com o baticum repetitivo de um apartamento próximo, nem
com o porteiro empurrando as contas por debaixo da porta. Gostava até do sabonete em barra. Tive
que me registrar na administração do edifício. Acho que até hoje tenho um cadastro de moradora
para que, segundo o síndico, todos saibam que eu exista e que, assim, possam me proteger.
193
Todas as manhãs a rotina se repetia. Ao abrir ligeiramente a cortina, sempre à mesma hora, um
senhor baixinho de meia-idade, uniformizado e de boné, estava de pé bem em frente da minha
janela, sobre a cobertura daquilo que foi um cinema para 3500 pessoas e que virou uma igreja
abandonada. A distância era tão mínima que o funcionário podia praticamente me olhar nos olhos.
Eu lhe acenava discretamente com a cabeça e tornava a fechar a cortina.

Em 2013 a Recopa foi do Corinthians. Via as pessoas agasalhadas no manto do Coringão ou vestidas
com camisetas oficiais sob os uniformes de trabalho. Tarde da noite e o povo jogando bombas em
comemoração à vitória sobre o São Paulo. Meu pai era corintiano, mas nunca simpatizei com o time.
Prefiro o Santos e a sua história, talvez por ser alvinegra. Botafoguense e botafogana que sou, recebia
no Copan o sinal de uma rede wi-fi chamada Botafogo. A estrela solitária sempre me conduz.

Sambão na República e guerra no Leblon. O som de Se acaso você chegasse entrava pela janela enquanto
eu lia as notícias aterrorizantes vindas da minha antiga rua, a Rainha Guilhermina. Ainda imagino o
cafofo, a voz de Elza Soares, as pernas de Mané Garrincha, o Botafogo, uma tropa de choque em
frente à banca de jornal do Sr. Fernando, o querido alvinegro Cecílio fugindo das bombas de gás pela
cozinha do Jobi, a marcha, o golpe, o silêncio.

Sonho feliz de cidade? Cidade de sonho feliz? Feliz cidade de sonho? E Caetano sempre soa tão
pertinente. Ele vindo do nordeste e eu do mesmo sudeste, também não entendi nada quando cheguei
por aqui. O papo reto sinuoso, dos anos 70 para cá, mudou pouco. Talvez já me sinta menos
estranha do que os versos da canção, mas continuo sem entender o que acontece. Se estamos longe
da ditadura pela mudança dos tempos, ainda vivemos dias tenebrosos regidos por arbitrariedades,
intolerâncias e truculências; policiais militarizados e todo tipo de gentinha que pensa pequeno, mas é
protegida pelo legítimo poder, e que engorda cofres privados e fulanos internacionais.

Cercada pelo Louvre, Investimento, Hotel Boulevard, Conjunto Zarvos, Ambassador, San Siro e São
Luis Plaza, sentia o tiritar da chuva sobre a cobertura do cinema, no mesmo ponto onde via o
fantasma do funcionário que me observava pelas manhãs. O vento que chacoalhava tudo, os
plásticos que chiavam, as plantas que dançavam e algumas que tombavam. E quanto mais tempo
admirava o arraial de quintais, mais vasos randômicos apareciam. Eram pequenos jardins
improvisados, ilhas verdes no meio do cimento, que tentavam levar um pouco de vida para aquela
seca selva de pedra atlântica.

Lembro que usava um binóculo emprestado para encarnar o voyeur, mas as lentes de aumento me
mareavam, o aparato me incomodava. Minha contemplação da vizinhança não era pessoal, não era
invasiva ou intrusa das particularidades alheias. Fazia percursos visuais genéricos, incapazes de
descrever os pormenores da vida do outro. Existia qualquer coisa de respeito em mim que me
censurava, ou simplesmente o meu interesse estava no monumental coletivo. A minha janela era um
orifício da câmara da minha casa, sensível às variações luminosas externas. Só do Louvre eram 368
janelas. Na verdade, o Louvre se chama Pedro Américo, como meu padrinho, o botafoguense.
Então, só do Pedro Américo eram 368 janelas. Faltavam 8 que não conseguia enxergar por conta de
um ponto cego. Ver esses retângulos se acenderem ou piscarem com o azul da televisão sempre me
pareceu fascinante. Pouco me importava o que os vizinhos faziam no interior de suas casas, mas me
alegrava de estarem tão perto, como uma grande família anônima morando em uma caixa única,
dividida em caixinhas unitárias, em um quarteirão da grande cidade. Cercada por pessoas de todos os
gêneros, cores e classes sociais, me sentia parte de um todo.
194
Na época, li uma nota com dizeres de Ravi Shankar: "No dia em que você sentir que o mundo todo é
a sua casa, que o céu é seu teto, que a terra é seu piso e que cada árvore é seu jardim, então você
realmente estará em casa.". Eu jurava que havia chegado lá.

Decidi buscar na internet os antigos inquilinos da casa que constavam nas contas pagas. Tempos
depois só encontrei a Keila, com quem mantive um breve contato à distância após mensagens no
Facebook e no Instagram. Sem conhecê-la, sentia um apreço pelo fato de termos morado na mesma
casa, por termos cuidado um pouco daquele lar de tantos donos. Keila sem saber virou minha
cúmplice, minha comadre.

Incrível era ver que na fachada do Pedro Américo só haviam dois buracos de ar-condicionado.
Taparam meio mal e porcamente os outros onze. Sempre apreciei a conformidade das janelas com
fundo rosa. Os demais edifícios ao redor também eram bastante homogêneos, porém cinzas
tristonhos, janelas retas e secas, ou os pequenos furos de ventilação do San Siro. Já não diria o
mesmo dos meus vizinhos copanenses, que faziam da parte dos fundos do prédio um carnaval de
adaptações. São poucos os condôminos que prezam pela parte traseira ou pela empena lateral dos
edifícios, talvez por pensarem que "ninguém está vendo, então dane-se". E assim, pessoas como eu,
vivendo cercadas por partes traseiras e laterais, somos obrigadas a conviver com a feiúra ou com a
originalidade, dependendo do gosto ou do juízo de cada um. É também aquele momento em que
patrimônio tombado esbarra nas necessidades cotidianas de uma vivenda.

Na cidadetetris, poucos são os que têm profundidade ou um horizonte possível da Serra da Cantareira.

Arquitetura para uma cidade nova, sem ruína. A mudança do olhar de quem trafega pelas ruas com o
afã de mirar para cima para escapar dos prédios, não das montanhas. Penso em Nova Iorque no
início do século XX e as imagens que vieram de lá, paisagens verticais, marcos da história da
fotografia. Lembro do Copan de Andreas Gursky no início dos anos 2000 e em outras tantas fotos,
não só do edifício retratado em demasia, mas de toda a urbanidade de São Paulo.

Vivi temporariamente em um emblema da arquitetura nacional, assinado por quem participou


ativamente da construção moderna do país, ora aclamado, ora alfinetado pela crítica; homem público
com afinidades socialistas, ainda que muitas vezes projetando obras faraônicas pouco condizentes
com o popular, com o funcional ou com o igualitário do discurso, mas certamente destaques
publicitários das cidades que as abrigam. Vivi em um complexo de vivendas pensado para diferentes
estruturas e padrões familiares, no qual a hierarquia se dá na mesma construção, que levando em
consideração a posição do sol, o clima e os ventos, deixa os menos favorecidos com a parte mais
escura e fria.

Na casa-obra do arquiteto, eu criei a minha. Obra e vida se misturaram em uma performance


dilatada, que começava em casa e se alastrava pelo prédio em reflexões sobre um cotidiano
aparentemente bastante conhecido. A obra como um todo não tem um fim em si mesma, é uma
experiência recorrente que vai mudando de endereço de tanto em tanto, extraindo matéria de suas
próprias dobras. Obra dobra.

Ao atravessar o bequinho do Investimento em direção à São Luis, enfrentando a ventania canalizada


na rua de pedestres, olhava ao redor e imaginava o que um dia foi a Vila Normanda. Sentia o Copan
pelas costas e imaginava o posto de gasolina. Carros, sempre carros. Em pleno domingo à tarde,
195
grande parte das ruas desertas, com exceção dos carros que jamais deixarão de circular na cidademobil
que sempre implora por estacionamentos e garagens automáticas. E quanto mais caminhava, mais
percebia as transformações do lugar, seja pelas placas de vende-se, pelos imóveis (re)abandonados ou
pelos anúncios dos novos empreendimentos na tentativa de uma outra ocupação residencial e
comercial seletiva do centro. Perto dos puticlubs, a Primeira Igreja Presbiteriana Independente tinha
apenas um fiel e uma banda que se escutava alto pelo lado de fora. A antiga boate Kilt virou um
terreno baldio. A cimentada Praça Roosevelt virou o parque de diversão ilegal dos skatistas
insistentes.

A República continua fragmentada entre a graça e o temor do heterogêneo, reunindo o melhor e o


pior dos mundos, das diferenças e indiferenças sociais. A recentralização traz gente como eu para um
centro de todos que pode vir a ser um centro só de alguns.
O inóspito só existe para quem quer.

196
Build Up, 2014

First of all there is Blue


A caneta preta de tinta azul
Ó mundo fantástico de viagens repetidas
O dia seguinte
As costas leves
Le panda géant
Parpadeo
On how to invent stories
Otro cuaderno de Lorena
Bolígrafo comprado en Colombia y robado en París
Percorrer o Pacífico, atravessar o Atlântico
Nouvelles façons d'aimer
Fusos
Paisagens
Terroir
Terror
A fotografia que nunca existiu
Habituando-se a desabituar
La maison ratée
A torre-farol
Lugar valioso es aquel que despierta encantamiento y te acompaña para siempre
No hay nostalgia porque no hay pérdida
Superposition de toutes les options possibles
Yellowless
Redes de afeto
O subir da escada
Obscena
Photo exhibits
Coisificar o estranho
L'inventaire
Complicado dobrado
Mémoire temporaire
A inversão do fluxo e a transformação do tempo
Change de change
Só eu existia para mim mesmo. O resto era paisagem.
Le tournament
O agora dilatado
Le élargi
Na brevidade da bolha, a imagem invertida
Dos mais banais dos verdes
Pagode
Emaranhado de linhas de tempo
Ressonância
Scopophilie
Calibre
Idem
197
Yo soy el camino que busca viajeros
Sol na quarta-feira de cinzas em Paris
O inferno estava muito rigoroso naquele ano
Tudo acaba em pizza
I wonder
Le titre dit tout

[06.02.2014
E de longe vejo os passos que se aproximam, mas se detêm. Não posso imaginar a motivação do
passo ou da interrupção do mesmo. Olho ao redor em vão. Nada faz sentido.

Whatever brought me here, it just doesn't make sense. Who is this guy staring at me? There is no one
else around… He scares the shit out of me. I keep some distance. I try to focus. I picture myself in
purple. Marcos' taught me it is a good colour for protection. Outside is snowing. A child screams out
loud. So I am not alone with the weirdo in this hallway. The boy is not in pain, not in fear, he is
smiling at someone I cannot see from the point I am standing right now. So I figure the kid is
smiling at the weirdo. Than I change perspective and the weirdo is no longer scary. If the kid is
enjoying his company, why am I afraid of the man?

So I am the one hiding, running away from people, creating all these ghosts out of nowhere. I am the
one who scares regular folks. I am the weirdo.

Comes that time of the day when the sun in going down. The light is gold and the snow sparks. In a
few minutes your eyes cannot see very clear. Traffic lights burn your sight and you get dizzy.159

Pai e filho idênticos. Mocassim e calça bege. Lá em casa também é assim.]


159
Seja lá o que me trouxe aqui, isso não faz sentido. Quem é esse cara me encarando? Não há mais ninguém por
perto... Estou me cagando de medo. Mantenho alguma distância. Tento me concentrar. Me imagino coberta pela cor
púrpura. O Marcos me ensinou que é uma boa cor para proteção. Lá fora está nevando. Uma criança grita forte.
Então não estou sozinha com o cara esquisito nesse corredor. O menino não está com dor, não está com medo, está
sorrindo para alguém que eu não consigo ver desde o ponto em que estou parada. Então imagino que o menino esteja
sorrindo para o cara esquisito. Mudo de perspectiva e percebo que o cara esquisito já não é assustador. Se o menino
está gostando da companhia dele, porque tenho medo do homem?

Então sou eu que estou me escondendo, fugindo das pessoas, criando todos estes fantasmas do nada. Sou eu que
assusto as pessoas normais. Eu é que sou o cara esquisito.

Vem aquele momento do dia em que o sol se põe. A luz é dourada e a neve cintila. Em poucos minutos os olhos já
não conseguem ver bem. Os semáforos queimam a sua vista e você fica tonto.

Tradução livre.

198
Perabé, 2014-2015

Uma cidade ajuda a ler outra cidade. Cidade é lugar de memória. Para os viajantes, a cidade natal é a
casa que se carrega na mala para facilitar a chegada em um lugar desconhecido.
A minha cidade natal é o mar. Em qualquer saudade, em qualquer sonho, em qualquer pesadelo, o
azul é o que se vê e a maresia é o que se sente. Onde eu nasci tem mar. Para onde eu mudei tem mar.
E em cada porto que atraquei, deixei um pouco do porto de partida.

Então a casa é mar, em sua maleabilidade e insistência. As águas se contaminam, se comunicam,


levam e trazem. Ainda crianças, quando mal sabemos ler a cidade, a escala das avenidas e prédios
assusta. O mar intimida. Somos seres diminutos cercados por grandes massas e volumes que desde
cedo nos ensinam sobre hierarquia e o viver em sociedade. Conforme crescemos, a cidade também
cresce, mas a percebemos menor. O mar é o único que não muda com o tempo.

Todas as cidades em que morei têm mar, menos uma. A cidade sem mar é a única que não para de se
agigantar. Andar na cidade sem mar é se perder e se achar no labirinto urbano, é chocar-se contra
torres e morros e se esvair na poluição. Sobrevoar a cidade sem mar é se perder de vista, é chocar-se
contra torres e morros e se esvair na poluição. É ser persistente e olhar através para encontrar o mar.
O horizonte da cidade sem mar é o tiritar das lâmpadas incandescentes que se sobrepõem à distância.

Da cidade sem mar procuro o mar. Remonto as rotas daqueles que subiram do mar. Encosto na
muralha. Encosta na costa. Por que virar as costas para o mar? De costas para a costa na capital da
solidão e sua perfeita sanidade. Da cidade sem mar avisto o mar.

O Planalto de Piratininga, Inhapuambuçu e seus heróis providenciais, embrenhados e destros. A


Itaecerá partida. A promessa do Peabiru e os Tupiniquins. Não é serra, é escarpa. Tudo será
construído no caminho, entre aroeiras, vias e desvios.

A angústia da pré-viagem, andradiana, e a satisfação de correr mundo, de nadar mundo.


Nas leis do mar, o maior tem sempre a vez.

Via a água na foto e perguntava....será a baía perto do aeroporto?....melhor rir. E meu orgulho
aumenta por sua garra e determinação....num hotel de luxo trabalhando quando há uns anos atrás
estávamos humildemente pedindo guarida num hotel em Ipanema. Não posso deixar de contar que
quando corria do Leblon até o Arpoador, era justo aí que tomava um banho maravilhoso...na volta
tomava o último já no Leblon. Voltava revigorada... Ah sim, fiz tudo novamente depois. Bate
saudade.... fico a divagar. Mas são lembranças boas.

O seu mar eu sei de cor. A caminhada matinal também, ainda que você não se lembre que eu
perseguia a sua sombra, firmando a minha pegada sobre a sua antes do mar apagar. Você apertando a
minha mão, beliscando meus dedos com a aliança, depois que o pivete arrancou a correntinha de
ouro do seu pescoço. O seu céu e o meu fotografados da mesma varanda com algum tempo de
diferença. Imagem temporã como eu. Imagem daquilo que é imutável desde o princípio das horas.

dizia , meu mar !...diante de tanto azul!

Na falta do mar há céu. Quando os azuis se sobrepõem e já não faz mais sentido saber quem está por
cima ou por baixo da discreta linha do horizonte.
199
O meu mapa é uma grande recorrência sua, Atlântico. Ainda feto nadava na barriga da mãe. Sou
marmífera. Eu queria mesmo era ter nascido na sua beira, no algodoal mais branco do mundo, mas
isso seria suicídio. Eu bem que tentei. Em solavancos, sigo o seu rastro em viagens partidas, como
tantos tamoios, tijucos, tropeiros e piratas o fizeram de Cabo Frio a Santos.

Travessia de silêncio profundo, onde a luz cega e as plantas estalam com o vento cortante. Brisa
uivante, transversal, que dá dor de ouvido. O quentinho do meio-dia assolando o cucuruco branco.
Agachar e rolar na areia esvoaçante que espeta a pele e se transfere para outro lugar. Divagar entre as
dunas. Ser duna.

Em 21 de janeiro deram à vela e se aproximaram mais da terra, das praias abafadiças e tristonhas.
Piaçaba. Naus, um galeão e duas caravelas, uma delas chamada Rosa.

Essas ilhas têm uma ilhota entre elas e também há cobras e dragão. Ilha que virou península.
Em 21 de janeiro a fragata de caiçaras se perdeu no mar.

Lugar de secar peixe. Lugar de ver o mar. Lugar de desembarcar. Lugar que se vê de longe

De todos os caminhos possíveis, escolho o meu. Tantos trajetos refeitos, pé ante pé sem a menor
pista. Rotas automáticas impulsionadas por um fluxo qualquer imposto não sei por quem. E de tanta
repetição algo se faz presente. Um canto alto e monótono que interrompe inesperadamente a solidão
muda do caminhar frequente. A pedra em que se tropeça e faz despertar para o que há ao redor. O
alarde e o reconhecimento.

Território mediado. Não há terra prometida. O Tietê corre para longe do mar. Elevatória de traição.

Qual o fim de tudo o que entra no seu olho? Poeira, cílios, imagens... Chorar é chover. É alagar.
Vereda limosa e escorregadia.

A margem elástica, a ondinha mole. O lugar limite entre o seco e o molhado. O espaço-entre. O
instante que antecede o arrepio da pele. Sentir a areia dura derreter. A terra vista, o porto, o pouso.
Ponto de encontro entre o que chega, o que parte e o que espera. Pangeia repartida em oceanos que
margeiam ínvios territórios.

Marinheiros, náufragos e degredados atracam na ponta da praia e seguem a linha do trem, pelo
caminho seguro que afasta do mar. Pouco a pouco, um a um se aparta. Como os ascendentes que
chegaram em buques e rumaram na Inglesa pela Serra Velha até Jundiaí.

De ser subterrâneo a ser subcutâneo, procurando nas vísceras o saber da memória mais profunda.
Antepassados estendidos no coração.

Gamboa. Delongas. Mirongas. Milongas. Mar tão largo.

Uma história como essa só é possível construir com excelência, liderança e trabalho em equipe.

Pessoas sobem e descem, despreocupadas dos sacrifícios. Rosa dos ventos embaralha tudo de poeira
e areia, bagunçando início e fim. As garatujas do saci me levam do sertão ao mar. Letargia e cateretê.
200
Persigo o cinza que será lançado ao mar quando por fim encontrá-lo. Morrer no mar ou longe do
mar. Marrer-de-si.

Penetro o mistério da alta muralha que fecha os mangues do litoral. Afasto-me do cenário de
costume. Montanha nebulosa, gigante pela própria natureza hostil. Sertão ignoto estendido pelo
curso dos rios sombrios.

O cheiro do mar vem não sei de onde, mas entorpece. Nada além de matagal. As pegadas da maresia
são o líquen nos troncos e sinalizam para o céu. O sal poliniza. Mais adiante, pela biquinha d'água,
nascente do mar evaporado, tudo flui e Iara me lava. No caeté, o curupira guardião fantasma,
sussurro de sábio e sabiá. A coruja curucutu disfarçada de assombração, de velho do saco, mareada
pelo canto da mati-taperê.

A breve pausa para sentir o gosto do araçá e perceber a cor do sanhaço. Águas são muitas, infinitas.

O som telúrico repetitivo do caminho contra o pé. O chocalho da pegada que chacoalha o mato
onde a cobra chocalha. Tudo se repete. Oxumaré.

De um caminho que começa no verão e termina na primavera, na molícia do clima. Passar de um


lado a outro entrecruzando as estações. Rios e mangues. Caminhar no ar, semicerrar os olhos para os
verdes da serra, das sendas. Melancólica colina isolada sobre a maresia, sobre as saudades marítimas.
Sal-dades. A floresta vem de encontro e os saçurás aquecem a pança roliça com aguardente de
cambuci.

A maçaneta pegajosa e o cadeado enferrujado. Barril com água salobra. A geladeira carcomida e a
porta emperrada. O espelho embaçado e as toalhas cheirando a mofo. A fruta sumarenta e a
venenosa que parece pitanga. Arapucas e gaiolas. A janela e o vento em forças opostas. O anjo-caído
e as bolinhas laranjas dos fios elétricos. Lá longe a calmaria das águas de Iemanjá, mãe da vastidão e
das revoltas líquidas.

Levantar vôo na curiosidade do desconhecido. Nômade e estrangeiro na própria terra. Primeira


estrada a ter calçamento, a ser pavimentada. As famosas curvas da música do Rei.
Piaçaguera Velha • Caminho do Padre José • Itutinga-Pilões • Calçada do Lorena • Estrada da
Maioridade • Estrada do Vergueiro • Estrada Caminhos do Mar • Estrada Velha de Santos • Via
Anchieta • Rodovia Imigrantes • Rua da Glória, primitivo caminho do mar

Sempre empreendendo longas viagens e ignorando prazos de ausência.

O caminho do mar daqui era um obstáculo, uma muralha íngreme que subiam engatinhando ou
agarrando no mato. Era o centro do trampolim para mergulhar no sertão e correr do mar.
A serra isola.
O caminho do mar de lá era uma picadinha no meio da restinga, com vento rasteiro, que sugava até o
topo da duna. Correr pro mar.
A praia junta.
O caminho do mar do além-mar era uma vastidão de possibilidades. Correr com o mar.
O oceano leva.
O mar tão perto, mas tão longe...

201
Turva curva da morte. O barco no topo da montanha. Água de escorregador. A cidade opaca sob a
cerração.

Sonhar com cobra pode ser um monte de coisa. Sonhar com teia de aranha é indício de viagem
próxima. Aranhas descendem de aracnídeos aquáticos. A teia é um caminho que ziguezagueia e gira
em torno de si mesmo como uma cobra. Tear um sonho circular de fios úmidos e cruzados. Sonho
que morde o próprio rabo. Armadilha de baixa isolação. Circo lar. A seda da arquitetura reflete
ultravioleta. Presa e predador. Frágil e flexível. Autorreflexiva.

Do lugar de onde se vê o mar sempre há névoa, um algodão-doce acinzentado de friagem e garoa. É


do fundo do céu que vem o martírio de água salgada com uma pitada de doce. Doce de cana, soro
caseiro.

Paisagem encharcada. Avesso do sonho das coisas voltadas para o mar. Mar-si-lac. Mar-apé. Nomes
próprios.

Do vale ao clímax à depressão ao nível do mar. Onda topográfica.

O marrano e a índia. Mar e terra. Adão e Eva da baixada. Duas ruas paralelas.

Há mares que não chegam ao oceano. O daqui é mar mutante acorrentado a luas contra o oceano
estável de horizonte eterno. Maré que enche e vaza. Ondas transversais que propagam energia.
Objetos que boiam, sobem e descem sem sair do lugar. O que muda lá longe a gente não vê. De
perto, o que muda, arrebenta.

O oceano é a vastidão por excelência. Abissal. Rota de fuga.

Será que foi por ali que você escapou? Nunca soube nadar, mas todos os dias boiava na beirinha
daquela água transparente exibindo o esmalte vermelho das unhas dos pés submersos.

Do passado anfíbio, mãos e pés que rastejam, que enrugam. Anticorpos que sobrevivem em solução
marinha. Memória do que um dia foi nossa vida no mar.

O que é puramente visível, é insuficiente. Esse monte de azul inventado. Maravilham-me as


coincidências.

Em um fluxo desancorado, aprendendo a se desapegar aos poucos, discorrendo sobre pedras para
desanuviar os pensamentos turvos. Largar a ostra para ser vento. Tatuí que não se deixa aprisionar
em garrafas pet. Desejos que não seguem as correntes do mar.

Hei de ficar comovida, contemplando, contemporizando como você me ensinou. Por vezes
codaquizando a paisagem em movimento, inventariando intervalos daquilo que vi e me pareceu.

Omnia vincit amor subditorum

A cordilheira vista do mar. Eis a fortaleza. O planalto, terra de promissão, caminho de Sísifo. A
cidade da memória e a memória da cidade. A memória que empresta identidade e nostalgia.
Piaçaguera Velha, última aldeia Tupi-Guarani do Atlântico, gentrificada.
202
Paisagem muda. Paisagem que não muda. Paisagem que ensurdece.

Dos pesadelos adolescentes, a onda gigante que surge no mar tranquilo. Taquicardia. Mergulhar,
agarrar na areia mais profunda e ser arrebatada pela tremenda espuma que destrói tudo a
quilômetros. Soluçar intensamente por cada desaparecido. Dos pesadelos adultos, a onda gigante que
surge no mar tranquilo. Taquicardia. Mergulhar, suavemente agarrar na areia mais profunda e deixar
a tremenda espuma passar. Emergir e perceber que tudo continua como era antes.

Esperar e jogar linha. Lugarejos pioneiros que se amiudaram com o tempo. Tão diferentes da cidade
sem mar. O mar das gaivotas que amam.

O repertório de cidades desestranha tudo. Piratininga • Ipanema • Humaitá • Paquetá


Nilo Peçanha, Jair e Tito, Marlene e Ivo. A paisagem torna-se amável.

A cidade com mar e suas lendas de fantasma, vulcão e dragão d’água. Monstro marinho diabólico.
Ipupiara. A cidade com mar tem suas miudezas e seus superlativos. O cemitério onde os cadáveres
repousam sobre o mar. Os prédios que inclinam pela maresia. Tantos mais e tantos menos. Tanto
mar.

Lagamar, ubás, pirogas, canoas de troncos de árvores, loides e brasileiros.

De caminho ao mar, encontro sem querer o lugar dos sonhos da dona do caderno que achei no lixo
quando era criança. Passear pelas ruas sem entender o que era tão especial ali para aquela menina.
Entender o quão relativo é o espacial.

Holiday é o Balança Mas Não Cai da primeira cidade do Brasil.

Impossível haver um caminho que ninguém caminha. Pisar o caminho de tantos. O que vem depois
de mim passou adiante de mim, porque existia antes de mim. Milenar trilha de pé posto.

Pedra de macadame sob a serra de paliteiro. Manacá-da-serra é branco quando nasce, rosa quando
cresce e violeta quando morre. Travessa das Violetas número 100 casa 8. Endereço que não existe
mais. Quaresmeira da neblina densa.

A mata do oceano sufocada pelas turbinas da cidade grande. Aspérrima. Sai nativa, entra embaúba. O
quilombo rio e o corredor dos escravos fugitivos, resistentes. Caminho de Cazuza. O cheiro da onça
é o refogado da hora do almoço. Memória de zoológico para se familiarizar com a mata.

Tudo o que gira em torno da pedra, que vive e existe porque há pedra, que cala porque há perda.
Desentupir as ventas com água marinha, mesmo não sendo mais possível respirar dentro d'água.

É março. O farol e o belvedere. O pontal e o atalaia. Onde o rio encontra o mar.

Na orelha da praia, o presságio, o soluço. Ouvido labirinto absoluto. Quando silêncio, as batidas do
coração. A respiração prolongada que se mistura ao ronronar das ondas. O alento úmido, cíclico,
sincronizado, ressonante. Pele russa de sal seco. A superfície molenga da água. Nado e mar nada.

203
Citações, adaptações e referências:
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: Uma história de São Paulo das origens a
1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
PRADO, Paulo. Paulística, etc. / 4. ed. rev. e ampl. Por Carlos Augusto Calil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
PORCHAT, Edith. Informações históricas sobre São Paulo no século de sua fundação. São
Paulo: Ed. Iluminuras, 1993.
DONATO, Hernâni. Pateo do Collegio: Coração de São Paulo. São Paulo: Ed. Loyola, 2008.
Jo 1, 1-18.
DE ABREU, J. Capistrano. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. São Paulo: Livraria
Briguiet, 1960.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: arrojadas aventuras no século XVI entre os
antropófagos do novo mundo. São Paulo: Publicações Sociedade Hans Staden, 1942.
Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel I. São Paulo: Dominus, 1963.
Disponível em: <http://www.novomilenio.inf.br/santos/h0100b40a.htm>

204
Estofo, 2016-2017

Sabe-se lá de onde vem o fascínio pelo mar. Pérolas, conchas, sambaqui.


De idos tempos, de quando a Guanabara foi savana e o Pão de Açúcar, ilha.
O silêncio das Canhanhas. Sempre ouço da baía
um vozerão de mulher. É o seio de onde brota o mar.
Rainha dos anjos. A maré que baixa e o fedor que sobe.
Quase sem oxigênio. Cada vão da ponte é um fotograma. Plataformas
de petróleo competem com as montanhas, se somam às estrelas.
Gélidos dutos submarinos afugentam os peixes.
O que pensará o marujo que durante anos foi fiel àquela
embarcação fundeada, que agora, esquecida no nada, quer arrolar no mar?
A baía sitiada. Somos todos pescadores.
Muitas ilhas se desprenderam das montanhas em busca da solidão salina.
O rosto esculpido na pedra. O maciço com o perfil de Noel.
Os sentidos sensíveis se atentam aos cheiros, aos sons, aos desenhos
das nuvens rabo-de-galo. Navegar por horas a fio por uma mesma paisagem
em águas movediças. A fuga oceânica e as línguas sanitárias. Línguas
estriadas, geográficas. Manchas esparsas, redes abandonadas, pesca fantasma.
A água perto do ouvido, o olho n’água. As bolhas
de metano que salpicam na pele. Gás sulfídrico, cortinas acústicas.
A letra cambaleante com o movimento do barco. O limite do que fica fora
e dentro do barco. A bolha de metano que salpica na pele.
Se abrir ao silêncio. Macacu é quase pau-brasil.

205
Monumentalidade como coletividade, 2018
O prédio de meia-idade, meio século. Nem faz tanto tempo assim. O desmanche do antigo
belvedere, ainda vivo na lembrança das crianças de ontem160, e o levante da caixa flutuante. O índice
e o ícone. O monumento carrega a história que parte do povo rapidamente esqueceu. A escada em L
na arquitetura moderna, com vocação a púlpito. Dela se vê o vão magistral, intervalo pulsante entre
avenida e infinitos edifícios, onde repousa a pedra. O fluxo, as pessoas, os burburinhos e a pedra.
Um monolito insólito, improvável, silhueta gorda, testemunha vertical de um sem fim de coisas.
Com pedrinhas ao redor que parecem presentes de natal. O vão palco, cenário, plateia das
frequências ritmadas que fazem da laje um lençol. Estrutura dinâmica que abriga esquerdas e direitas.
Dos registros de sua construção, homens, sempre eles, devidamente identificados, até aqueles que
mal se veem as canelas. Já a mulher de corpo inteiro no canteiro da obra, anônima. A exceção é a
Dona Lina, que mesmo assim se chamava e era chamada de “o arquiteto”.
O belvedere é o vão. 50 anos depois. Muitas pessoas que não participaram dos fatos não se sentem
parte da história. Dentro e fora do museu, personagens e ameaças se repetem, ou quem sabe nunca
saíram daqui. Mais um golpe, velho discurso de ódio. O prédio de colunas vermelhas deve ser
chamado de comunista outra vez. A pedra amanheceu pixada com uma foice e um martelo. Ela e as
paredes daqui certamente se lembram do que parte do povo rapidamente se esqueceu. Povo que
desce na estação Trianon sem notar que ali é o lugar para onde a Dona Lina queria que o povo fosse.
Arquitetura para abrigar e fabricar história. Corpo presente no espaço da cidade. Monumento quer
dizer advertência! Monumentalidade como coletividade, disse o engenheiro Suzuki após Lina Bo
Bardi161. Corpo vibrante de concreto, vidro, obras de arte e gente, muita gente.
A pedra repousa na palma da mão da arquiteta. Tal fotografia indica a porta do banheiro das
funcionárias e vigia o corredor estreito. A intensidade da mirada da autora daquele lugar é uma
presença penetrante que transcende tempos e materialidades. Ainda bem, porque o anacronismo é
grande. 50 anos que vão e vêm numa velocidade estrondosa.


160
BO BARDI, Lina. O novo Trianon, 1957|67, In GRINOVER, Marina, RUBINO, Silvana (org.), Lina por
escrito: textos escolhidos de Lina Bo Bardi. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 122.
161
Fala de Marcelo Suzuki durante o Seminário Internacional “O MASP de Lina: 50 anos do edifício na Avenida
Paulista”, MASP, 05.11.2018.

206
Quarentena / Defesa da Tese, 2020
Poderia jurar que esses passarinhos são os sabiás da Dona Mariana no início da primavera. Perdida
entre os dias da semana, acabo de lembrar que amanhã começa a primavera aqui no hemisfério norte.
Estamos trancafiados desde a sexta-feira 13, dia em que minha filha completou 2 anos e 6 meses.
Estamos saltando quanticamente o ano de 2020. A quarentena coincidiu com a quaresma no ano em
que completo 40 anos. Nem no puerpério me senti enjaulada. Pelo menos temos os passarinhos.
O vírus veio acirrar ainda mais as diferenças. Todas elas, pequenas e grandes, individuais e coletivas,
históricas, sociais, raciais, culturais, políticas. Cada um confinado onde o capitalismo lhe permite.
Uns no conforto do lar abastecido, outros na escassez de tudo, até de lar, até de água.
Testemunhamos a falência de sistemas econômicos que não priorizam os sistemas sociais,
ambientais.
A vizinhança, que se isolava diante de suas televisões, emanando um tiritar colorido pelas janelas,
agora se comunica acendendo e apagando as luzes, piscando os olhos da casa, improvisando um
código Morse. Também cantam e dançam, em concertos privado-coletivos. Como reagirão as janelas
quando a vizinhança ri, chora, goza? As minhas janelas apontam para o céu e não vejo a vizinhança.
Acompanho o passar dos dias pelo movimento das nuvens. Quando está nublado, os dias não
passam. A vizinhança foi aplaudir pela janela o empenho dos médicos. Nós também fomos.
Estendemos as mãos aos céus, em louvor às janelas do teto.
Vivendo nos últimos meses em um país onde não falo a língua, tendo uma filha pequena e uma tese
para terminar, o isolamento já era um tanto natural. Podia facilmente passar o dia todo sem sair de
casa e, quando saía, podia também facilmente não me comunicar com ninguém. Nas últimas
semanas, fazendo tudo de bicicleta, percorri caminhos lindos, tropecei em patos e gansos, e comecei
a me afeiçoar silenciosamente a uma cidade ainda um tanto fria para mim. Talvez tenha sido uma
maneira de me abastecer emocionalmente para a reclusão definitiva que estava por vir. Eu estava
mesmo era preparada para pegar um avião e ficar perto novamente das minhas pessoas queridas. Eu
queria falar alto e em bom tom, a minha língua materna. Queria redescobrir as minhas paisagens,
também as internas.
Meu cabelo não para de cair. Minha menstruação parou no segundo dia. No dia seis do
confinamento, o meu leite secou. A criança deu um beijo no meu seio e depois acenou com um
adeus. É uma separação, a primeira de relevância das nossas vidas desde o parto. Também é a nossa
estreia em uma pandemia. Agora o leite secou. Assim como muitas pessoas desejam morrer durante
o sono, eu desejei terminar o aleitamento dessa forma, com a minha filha dando um beijo e um adeus
para o meu seio. Não sei bem se estou feliz ou triste. Não consigo acessar completamente os meus
sentimentos. Sei que estamos juntas, como sempre, e isso me basta por agora. A convivência é, em
sua maior parte, prazerosa. Precisamos, apenas, atualizar os nossos rituais e nos desapegar daquele
diário que nos acompanha desde o nosso primeiro contato de pele.
Foi a primavera chegar e, com ela, os dias de sol, para que o vírus se consolidasse e nos impusesse a
quarentena. E foi justamente na ociosidade da quarentena que eu cheguei ao texto maravilhoso de
Milton Santos, no qual menciona o tempo lento.
Tendo uma criança em casa, as escapadas são escassas, porém necessárias. Só não são periódicas
como as dos cães. Depois de uma das escapulidas até o parque, quando por fim sentimos a gostosa
queimação do sol sobre a pele fina que recém se insinua para fora do casaco, voltamos pra casa e
tomamos um banho para nos livrarmos das ameaças invisíveis. Que privilégio o nosso. Almoçamos
207
com muito mais fome a comida que estava muito mais deliciosa. Depois deitamos com as janelas do
teto abertas, o vento fresco acariciando o corpo, aquela leve sensação na face e no peito de quem
mergulhou por muitas horas no mar gelado. Me lembro das tardes mornas de Cabo Frio, mesmo
aqui não tendo mar; me lembro da novela repetida que assistíamos deitadas, lado a lado, de mãos
dadas, mamãe e eu.
Eu não tenho nada com isso, mas minha filha acorda de manhã e o primeiro que faz é abrir a gaveta,
pegar um chapéu e um maiô, e cantar “vamos a la playa oh oh oh oh oh”. Então abro a janela do
teto, encho a banheira d’água, e deixo que ela nade sozinha, que ponha o óculos de natação, que
espirre água para todos os lados. Quando a banheira está seca, deixo que a menina pinte dentro dela,
assim o trabalho para limpar depois é um só.
A nossa rotina é muito menos previsível do que parece. Estar em um único ambiente praticamente
24 horas do dia com as mesmas pessoas, driblando o espaço e o tempo para fazer o que se precisa, é
um desafio. Acompanho as taxas de violência doméstica aumentarem consideravelmente com a
quarentena. Os divórcios também. Muitas famílias quase não passavam tempo junto. As que podiam,
certamente no Brasil, contratavam cuidadoras para as crianças, além de ter escola funcionando,
cursinho, dancinha. Atividades de ocupação e “otimização” máxima do tempo. A lógica capitalista
que abomina o “tempo morto”. De repente fecharam tudo, todxs numa mesma casa, sem auxílio das
contratadas que se encarregavam dos afazeres do lar, crianças incluídas. Crianças que precisam seguir
com programas pedagógicos de ensino à distância, instruídas por novxs tutorxs familiares sem o
menor conhecimento ou contato com a metodologia, e que ainda precisam continuar trabalhando
home office enquanto as crianças não entendem que não estão de férias. Por que não? Outras crianças,
muitas delas filhas das cuidadoras de outras crianças, ficaram sem a merenda e o almoço oferecido
pela escola. As mães, cuidadoras de outras crianças, talvez não recebam mais o salário e, enquanto o
governo não decide se pagar ou não um auxílio para esses tempos difíceis, veem a renda da casa
minguar. Quem seguirá comendo? Todxs agora precisam ficar em casa, mesmo que o presidente diga
o contrário. Muitxs confinadxs em um só cômodo, recebendo e repassando notícias verdadeiras e
falsas pelas redes sociais. Relaxando, panicando, amando, brigando, enlouquecendo, fabricando
novxs filhxs. E quem não tem família, quem vive só, quem não tem internet e não pode sair às ruas,
como lidam com tudo isso? Estamos isolados em respeito à vida, disse Krenak.
Não é fácil. Não estar só de vez em quando faz uma falta danada. Mas, de certa forma, já estávamos
habituadxs ao convívio intenso. Desde que nos mudamos do Rio de Janeiro, intencionalmente
diminuímos o ritmo do trabalho para estarmos presentes no crescimento da nossa filha de forma
integral. Por um período, contamos com a ajuda milagrosa da minha sogra, mais no carinho, no
cuidado, do que nos afazeres. Agora tudo é diferente. Como a menina já tem dois anos e meio, e
frequentava a creche, observá-la de perto a todo instante tem sido um novo exercício surpreendente.
São muitas conversas, línguas inventadas, adaptadas. Percebo o crescimento do seu corpo quando a
vejo dormir, tomando como parâmetro o que resta de colchão. As brincadeiras nascem
instintivamente quando ela ressignifica objetos e suas funções. Como ela descobriu que poderia
entrar numa sacola e fazer uma corrida, saltando pela casa? Que os almofadões são potenciais camas-
elásticas? Que nos buracos do armário da cozinha cabem biscoitos? Que o armário de roupas serve
como esconderijo? Que arrastando a tela do celular pro lado, ela pode tirar uma foto? E quantas
fotos...
[PAUSA PARA REPRODUZIR AUDIO RECEBIDO POR WHATSAPP]
Escrevi uma tese que não é bem uma tese, mas um álbum de histórias. Quando entrei no doutorado,

208
sabia que queria escrever com o corpo, sobre o corpo, com o corpo em movimento, em
deslocamento pela paisagem. Eu queria que os meus anos de pesquisa abastecessem minha
curiosidade, impulsionassem novos projetos e reflexões sobre o que eu vinha praticando e o que viria
a ser após a conclusão da tese. Sabia que a pesquisa precisava me apaixonar, que seria impossível
falar de qualquer assunto que não fosse minimamente visceral. Decidi, então, começar pelas
motivações mais entranhadas.
Durante a graduação em Artes Visuais no início da década de 2000, quando me especializei em
fotografia e time-based media, comecei a praticar exercícios de observação de assuntos que fossem ou
pudessem ser parte do meu cotidiano. Esses exercícios experimentais são uma construção de
conteúdo a partir de uma vivência presencial e atenta, de corpo inteiro e de modo imersivo, que se
revela como um tecido de citações; uma interseção entre vozes que se manifestam através de
fotografias, textos, vídeos e registros sonoros. Para que os projetos se desenvolvam é necessário
alterar o ritmo imposto pelos afazeres diários, em um movimento voluntário de desaceleração para
criar duração; para observar além da visão exclusivamente visual para que o corpo como um todo
seja também capaz de ver, interagir e se afetar. Quase sempre o assunto escolhido decorre do que
chamo desculpa geográfica, ou seja, uma localização-pretexto que carrega alguma particularidade
instigante, servindo objetivamente como ponto de partida para as observações. Esses exercícios
podem ter ou não um resultado, podendo até mesmo ficar inacabados.
Nesses dias de quarentena em casa, me pus a pensar nos projetos de residência que já fiz por escolha
própria e das tantas vezes que escolhi me confinar como maneira de realizar exercícios de
observação, sem jamais ter vivido um temor suspenso e indefinido como o de agora. Curiosamente a
pesquisa do doutorado fala de tudo isso, inclusive de como precisei me afastar de certa rigidez dos
exercícios em busca de mais prazer e liberdade. Nesses dias também me lembro da qualificação do
doutorado, grávida de 38 semanas, recebendo em casa xs membrxs da banca, com direito a pão de
queijo e cafezinho. Dessas generosidades que poucxs conhecem no mundo. Hoje a defesa seria no
Parque Lage, escola que acolheu o curso que virou tese. Seria uma Defesa aberta e cheia de pessoas
que colaboraram com a pesquisa até aqui. Era hora de abraçar, de comemorar, de estar junto. Dessas
coisas que a nossa cultura sabe fazer tão bem. É até paradoxal que a conclusão de um ciclo tão
importante não possa ser presencial por conta de uma pandemia global que nos obriga a repensar
nossas práticas diárias, nossa maneira de nos relacionar com x outrx, com as distâncias, com os
corpos, com o tempo. Que nos faz desacelerar, estar em casa em contato intensivo com nós mesmxs,
nossos silêncios, nossos barulhos. Todo o assunto que me debrucei na tese, o exercício de observar a
mesmice de um cotidiano, sem fim prático, sem pressa, sem obrigação de resultado, está neste
preciso momento sendo praticado em escala mundial. Muitas pessoas que não são acostumadas a
lidar com seus próprios fantasmas e com o ócio improdutivo, ou melhor dizendo, produtivo em
demasia, simplesmente não sabem o que fazer com o excesso de tempo. Jamais poderia imaginar um
desfecho assim.
Voltando à construção do assunto da tese, acho importante destacar cinco pontos chaves que me
conduziram até aqui:
1. Apresentação da artista Gabriela Mureb no Seminário de Práticas Artísticas no PPGAV UFRJ,
conduzido pelo Milton Machado, em 2016. Depois de duas horas para conseguir chegar ao Fundão
num dia de dilúvio, assisti a uma Gabriela, arrebatada, comentar sobre as suas inquietações com a
pesquisa e o seu trabalho. A sua exposição me mostrou que eu precisava me apaixonar novamente
pelo meu tema de estudo e, portanto, pelo meu trabalho. Era encantamento e pesquisa viva, em
construção.
209
2. Aulas na Literatura da PUC Rio, com Ana Kiffer, Marília Rothier Cardoso e Helena Franco
Martins, entre 2016 e 2017. Professoras e pesquisadoras apaixonadas, lecionando e contagiando um
grupo heterogêneo de pessoas, de perfis e pesquisas diversas. Foram encontros riquíssimos que me
influenciaram a mudar definitivamente o rumo de tudo. Era encantamento e pesquisa viva, em
construção.
3. Aulas no Parque Lage, o curso Exercício de Observação com Fotografia, entre 2011 e 2017, e a
relação de troca e aprendizado com o processo criativo meu e dxs alunxs. A minha fonte inesgotável
de energia. Era encantamento e pesquisa viva, em construção.
4. Conversas com Frederico Coelho, em 2016, quando, então, falamos em enfatizar a preparação e o
desenrolar do processo criativo, reforçando a ideia de imagem no fim. Era encantamento e pesquisa
viva, em construção.
5. Gestação e nascimento de Pilar, em 2017. Encantamento e pesquisa viva, em construção.
Inicialmente, também foram cinco os pontos que considerei fundamental trabalhar na tese:
1. Entender de onde surgiram e de que modo operam os exercícios de observação que pratico e que
por alguns anos incentivei que fossem praticados em um curso livre numa escola de arte. Para isso,
repassei a curta trajetória dos últimos dez anos de projetos, que começaram com as residências
artísticas, até chegarem aos projetos abertos, longos, errantes.
2. Conceituar desculpa geográfica, termo tão recorrente nas minhas explanações como artista e
professora, que é o ponto de partida para os exercícios de observação.
3. Refletir sobre a relevância do processo criativo, dos bastidores dos exercícios, e da escrita, o que
dispensa a obrigatoriedade de um resultado produtivo e um fim resolutivo, já que é, justamente, no
processo, na duração, onde residem o encantamento e a pesquisa viva, em construção.
4. Conversar com artistas contemporânexs a mim, com quem mantenho relações profissionais e
afetivas há alguns anos, e com quem identifico similaridades na construção de pensamento. Destaco
aqui o trio Gisele Camargo, Lucia Laguna e Marcos Chaves. Destaco, também, Cao Guimarães e
Virginia de Medeiros.
5. Refletir sobre os possíveis significados para o termo “fim” e de que forma se aplicam no meu
trabalho, especialmente para pensar o fim aberto, múltiplo, e também o fim como afinidade.
A pesquisa, que sempre quis tratar de uma prática associada a um tempo particular de suspensão
sobre a lógica de produção incessante, foi interceptada pelo nascimento da minha filha. Fez-se
fundamental adaptar a escrita às transformações que ainda seguem em observação, sem prazo, sem
fim – em todas as suas possíveis definições. Acrescentei questões e demandas políticas acerca de ser
mulher, mãe e artista. A tese, então, ganhou um outro objeto, a maternagem, que também é um
exercício de observação. Nos últimos meses da escrita, mantive conversas com outras mulheres,
mães e artistas, e dividimos experiências, algumas já muito refletivas e processadas, outras ainda nem
compreendidas e que tiveram lugar durante a gravação de nossas falas. Construímos juntas um coro,
um corpo uníssono, sororo, que tenta abraçar diversas questões, comuns ou não, que nossos corpos
intelectuais atravessam quando aceitam a maternidade e a maternagem, e as implicações nas nossas
vidas pessoais e profissionais. Conversar significou me aproximar de pares e reforçar muito do que
me habitava numa esfera cotidiana quase inconsciente, e que, agora, se apresenta no texto também

210
como um posicionamento político. O que poderia soar como uma ruptura no ritmo do texto é para
mim um salto importantíssimo, seja na pesquisa, seja na minha vida como um todo. Não há
separação possível entre esses campos. Trato de evidenciar as tantas metamorfoses que sofrem um
mesmo corpo intelectual, antes e depois do tornar-se mãe. Poderia aqui tomar uma outra vereda,
uma outra tese, já que a observação e a escuta seguem alertas e desviantes sempre. A pesquisa faz-se,
então, metalinguística, se desdobrando e se mantendo aberta, como a tese já enunciava desde o
princípio.
O exercício de observar começa no abrir-se ao inesperado, às sensações e aos sentidos; no uso de um
lápis, um papel, uma câmera fotográfica, um telefone-esperto, qualquer meio de registro daquilo que
se presencia estando. É todo o contrário de idealizar um magnífico, forjar um espetáculo. É ser capaz
de compor o mundo recortando as imagens disponíveis no mundo, assim como fazem xs
interlocutorxs da tese. As narrativas que estamos construindo podem ser consideradas imagens
abertas, editáveis, dilatadas, compostas por fragmentos-projetos-exercícios-de-observação em
desenvolvimento. A imagem que se apresenta no agora é um episódio do todo e carrega o percurso,
a duração, o empirismo de uma prática presencial que guarda em si a possibilidade de se reinventar
em múltiplas leituras, espaços e tempos, de acordo com as tantas imagináveis montagens e maneiras
de se contar uma mesma história. Rever uma trajetória em construção, fuçar entre imagens e textos
nunca trabalhados, olhar um material de arquivo como quem olha um álbum de família, propor-se a
refazer caminhos para torná-los novos, aprender constantemente... talvez seja disso que estou a falar.
A pesquisa me deu a oportunidade de rever procedimentos e a preparação dos exercícios de
observação que levo tanto tempo praticando. Também me permitiu registrar conversas, tanto as
reincidentes, que sempre quiseram extrapolar o campo afetivo, como as que foram geradas
especialmente para esta ocasião. Virginia de Medeiros abriu espaço para receber a mim e a minha
filha durante a sua residência na Bienal de Berlim, ainda em atividade, para falar sobre o que estava
sendo processando em tempo real. Gisele Camargo, enquanto caminhava dentro e fora das erosões
da Serra do Cipó, esboçou um novo conceito de grade na pintura. Gravou em um áudio, ofegante
entre o subir e descer das montanhas, seu pensamento ainda em construção. Chiara Banfi,
titubeando, me enviou em um áudio a sua primeira formulação verbal de certas questões íntimas
sobre a maternidade. Já Cecilia Cavalieri gravou seis, com a firmeza e a assertividade de quem já tinha
dado muitas voltas ao tema. As mães deste texto nos confirmam a urgência em se multiplicar as
diversas experiências sobre maternidade e maternagem com tal de revermos questões, especialmente
de gênero, que se perpetuam e afetam a todas, sendo, portanto, um assunto que deveria ser tomado a
sério por toda a sociedade. É necessário e político. Assim como é necessário e político garantir o
direito de escolha das mulheres de quererem engravidar ou não, de abortar ou não, com segurança e
dignidade.
Divido com xs leitorxs, pesquisadorxs, o privilégio dessas informações público-privadas, dos
bastidores de artistas vivxs da contemporaneidade, em pleno exercício, que ainda estão por descobrir
ou inventar suas formas de fazer e sentir o mundo; artistas que estão a produzir, a cada instante, arte
e vida sem distinção, renovando todo e qualquer sentido de mundo. Nos atuais anos de retrocesso
que estamos testemunhando, quando a cultura e a educação se veem acuadas em um projeto de
governo aniquilador das sensibilidades, faz-se fundamental a resistência exercida pelas vozes
presentes neste texto. Seguimos.
[LEITURA DOS TRECHOS INICIAIS DE CORPO SORORO]

211
A n e x o B . R e p r o d u ç õ e s f o t o g r á f i c a s

( A i m a g e m , q u a n d o e x i s t e , s ó a p a r e c e n o f i m )

212
Lista de imagens
B_1
1. Luiza Baldan. Sem título (Sobre umbrais e afins), 2005.
2. Manuel Álvarez Bravo. El Soñador, 1931. Disponível em:
<https://www.artic.edu/artworks/48891/the-dreamer-el-sonador>
3. Luiza Baldan. Sem título (Becos), 2000.
4. Luiza Baldan. Sem título (Becos), 2000.
5. Luiza Baldan. Sem título (Becos), 2001.
6. Luiza Baldan. Sem título (Becos), 2001.

7. Francis Alÿs. A Story of Deception / Historia de un desengaño, Patagonia, 2003 (Still do


vídeo). Disponível em: < https://coleccion.malba.org.ar/a-story-of-deception-historia-de-un-
desengano-patagonia/>
8. Cao Guimarães. Da Janela do Meu Quarto, 2004 (Still do vídeo). Disponível em:
<http://www.caoguimaraes.com/obra/da-janela-do-meu-quarto/>
9. Harun Farocki. Inextinguishable Fire, 1969 (Still do vídeo). Disponível em:
<https://www.harunfarocki.de/films/1960s/1969/inextinguishable-fire.html>
B_2

10. Exercício de observação com fotografia, Curso EAV Parque Lage, 2013. Crédito: Felipe
Paiva.
11. Daniele Cavalcante. O Segredo do Jardim, 2013.
12. Eduardo Freire. Linha de Chegada, 2013.
13. Elisa Freitas. Quarta Parede, 2013.
14. Felipe Paiva. Tempo da Delicadeza, 2011.
15. Juliana Gueiros. A Performance de Helena, 2011.
16. Monica Guinle. Bilu, 2013.

17. Referência método educacional Pikler. Disponível em:


<https://pikler.org/2020/01/29/engaging-with-infants-and-toddlers-through-respectful-and-
peaceful-care-2/>
18. Jarbas Lopes e Katerina Dimitrov. Festa da Janaína, Minhocão, 2009. Disponível em:
<https://pedregulhoresidenciaartistica.wordpress.com/artistas-e-grupos/jarbas-lopes/festa-da-
janaina-fotos-por-analu-cunha/>

213
B_3

19. Kaza Vazia. Cinekaza, Minhocão, 2009. Disponível em:


<https://pedregulhoresidenciaartistica.wordpress.com/artistas-e-grupos/kaza-vazia-
613/cinekaza/>
20. Luiza Baldan. 1º dia no Minhocão, 2009 (Mariana Baptista de Carvalho fotografando).
Crédito: Rafael Borelli.

21. Frente 3 de Fevereiro. Minhocão, 2009. Disponível em:


<http://www.frente3defevereiro.com.br/blog/>
22. Primeira imagem para a busca de “Pedregulho Rio de Janeiro” no Google Images. Disponível
em: <https://www.archdaily.com.br/br/01-12832/classicos-da-arquitetura-conjunto-residencial-
prefeito-mendes-de-moraes-pedregulho-affonso-eduardo-reidy>
23. Le Corbusier. Plano urbano para o Rio de Janeiro, 1929. Crédito: Fondation Le
Corbusier/ARS/ADAGP/FLC. Disponível em: <https://www.newyorker.com/culture/culture-
desk/le-corbusier-at-moma#slide_ss_0=1>
24. Largo do Pedregulho x Minhocão, Rio de Janeiro. Caminho sugerido pelo Google Maps.
25. Cruzada São Sebastião, Rio de Janeiro. Disponível em:
<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/07/destoantes-dez-predios-populares-resistem-
no-coracao-do-leblon.shtml>
26. Luiza Baldan. Sem título (Pinturinhas), 2009.
27. Yasmin Ialuny. Pátio, Minhocão, 2009.
B_4
28. Mariana Baptista de Carvalho. Flamboyant, Minhocão, 2009.
29. Didi. Amigos, Minhocão, 2009.
30. Luiza Baldan. Sem título (Natal no Minhocão), 2009.
31. Luiza Baldan. Sem título (Natal no Minhocão), 2009.
32. Luiza Baldan. Sem título (Natal no Minhocão), 2009.
33. Luiza Baldan. Sem título (Natal no Minhocão), 2009.
34. Meu caderno de notas (imagem usada no catálogo Pedregulho: Residência Artística no
Minhocão), 2009.
35. Bárbara Copque. Detalhe do convite para defesa de tese de doutorado “Uma etnografia
(visual) da maternidade na Penitenciária Talavera Bruce”, UERJ, 17.12.2010. Disponível em:
<https://www.flickr.com/photos/edmilsonsilva/5269888176>
36. Claudia Andujar. Detalhe de Vertical 7 (Marcados), 1981-1983. Crédito: Galeria Vermelho.

214
B_5
37. Marc Ferrez. Capa do livro O Álbum da Avenida Central: um documento fotográfico da
construção da Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, 1903-1906 / introdução de Gilberto Ferrez
e estudo de Paulo F. Santos. Rio de Janeiro: João Fortes engenharia / Editora Ex-Libris, 1982.
38. Luiza Baldan. Retirada da Perimetral, 2014.
39. Augusto Malta. Ruínas do morro do Castelo; à esquerda, parte do aterro feito com a terra
retirada do morro; à direta, Biblioteca Nacional, 1922/10/09. Disponível em:
<http://201.73.128.131:8080/portals/#/detailpage/6845>
40. Luiza Baldan. Aterro do Flamengo / MAM Rio (Vista da casa de Marcos Chaves), 2017.
41. Nota no jornal O Globo, 16.05.2015: “Escultura de Waltercio Caldas no Centro do Rio vai
abaixo para dar passagem aos trilhos do VLT.” Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/rio/escultura-de-waltercio-caldas-no-centro-do-rio-vai-abaixo-para-
dar-passagem-aos-trilhos-do-vlt-16180910>
42. Carlos Vergara. Poder, 1972/1976 (Edifício “Balança Mas Não Cai” ao fundo). Disponível
em: <https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/as-viradas-na-trajetoria-de-carlos-vergara-
19134085>
43. Leonel Brayner. Praia Formosa, s/d. Disponível em:
<http://www.conexaojornalismo.com.br/blog/milton-teixeira-fala-sobre-as-praias-que-foram-
destruidas-no-rio-de-janeiro-4-4001>
44. Luiza Baldan. Sem título (Carandiru), 2009.
45. Luiza Baldan. Sem título (Carandiru), 2009.
B_6
46. Luiza Baldan. Península/Barra da Tijuca – 1ª visita, 2010.
47. Luiza Baldan. Triangulação Península entre casa, deck e ilhota. Vista do Google Earth.
48. Luiza Baldan. Sem título (De murunduns e fronteiras), 2010.
49. Luiza Baldan. Sem título (Insulares), 2010.
50. Luiza Baldan. Sem título (Marginais), 2010.
51. Primeira imagem para “Edifício Raposo Lopes Santa Teresa Rio de Janeiro” no Google
Images. Disponível em: <http://wikimapia.org/3650189/pt/Edif%C3%ADcio-Raposo-Lopes-
Rapos%C3%A3o#/photo/2563687>
52. Luiza Baldan. Sem título (Serrinha), 2011.
53. Luiza Baldan. Beira, 2011 (Still da videoinstalação).
54. Luiza Baldan. Sem título (Serrinha), 2011.
215
B_7
55. Luiza Baldan. El luche, 2012 (Detalhe da partitura).
56. Luiza Baldan. María José (Leituras de um lugar valioso), 2012.
57. Luiza Baldan. Sem título (Leituras de um lugar valioso), 2016.
58. Andreas Gursky. Copan, 2002. Disponível em:
<https://www.andreasgursky.com/en/works/2002/copan>
59. Luiza Baldan. Sem título (Corta Luz), 2013.
60. Luiza Baldan. Sem título (Corta Luz), 2013.
61. Luiza Baldan. Sem título (Corta Luz), 2013.
62. Luiza Baldan. Sem título (Pivô), 2013.
63. Luiza Baldan. Sem título (Build Up), 2014.
B_8
64. Luiza Baldan. Sem título (Build Up), 2014.
65. Luiza Baldan. Sem título (Perabé), 2015.
66. Luiza Baldan. Sem título (Perabé), 2015.
67. Luiza Baldan. Sem título (Perabé), 2015.
68. Luiza Baldan. Sem título (Perabé), 2015.
69. Domingos Guimaraens gravando a voz em Perabé, 2015.
70. Luiza Baldan. Caderno de notas Derivadores/Estofo, 2016 (Com bilhete de Ana Kiffer).
71. Jonas Arrabal e Luiza Baldan. Derivadores, 2016 (Capa).
72. Jonas Arrabal e Luiza Baldan. Derivadores, 2016 (Detalhe do negativo).
B_9
73. Luiza Baldan. Derivador, 2016.
74. Luiza Baldan. Sem título (Estofo), 2016.
75. Luiza Baldan. Sem título (Estofo), 2016.
76. Luiza Baldan. Sem título (Estofo), 2016.
77. Tripulação Derivadores/Estofo: André Ribeiro de Rezende, Luiza Baldan e Maycon Monteiro
Quintanilha, 2016. Crédito: David Pacheco.

216
78. Luiza Baldan. Imagens publicadas no livro Onde o Rio Encontra o Mar / org. Maria Correa
do Lago. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2016.
79. Luiza Baldan. Travessias Cariocas, 2008 (Vista da exposição na Caixa Cultural Rio de
Janeiro).
80. Galeria Laura Marsiaj, 2005. Crédito: Vicente de Mello. Disponível em: <https://loop-
barcelona.com/gallery/laura-marsiaj/>
81. Luiza Baldan. Laura (Entre o sono e a vigília), 2006.
B_10
82. Luiza Baldan. Lucia (Entre o sono e a vigília), 2006.
83. Lucia Laguna e Luiza Baldan, Galeria Virgílio, 2009. Crédito: Ni da Costa.
84. Rosa Baldan (minha mãe), Lucia Laguna e Dilma Vieira e Silva (mãe de Gisele Camargo),
2010. Crédito: Gisele Camargo.
85. Lucia Laguna. Entre a linha vermelha e a linha amarela #50, 2006.
86. Lucia Laguna. Paisagem #4, 2007. Crédito: Ni da Costa.
87. Luiza Baldan. Sem título (Pinturinhas), 2009.
88. Lucia Laguna. Jardim #35, 2016. Disponível em: <http://fdag.com.br/en/artists/lucia-
laguna/artworks/>
89. Lucia Laguna. Vista da janela do ateliê, 2018. Crédito: Mario Grisolli.
90. Lucia Laguna. Relato escrito de 21.01.2010.
B_11
91. Marcos Chaves. Lugar de Sobra, 2002 (Montagem no Paço Imperial Rio de Janeiro).
92. Marcos Chaves. Série Buracos, 1996-2020.
93. Marcos Chaves. Série Próteses, 2005-2020.
94. Luiza Baldan. Fotografia para Marcos Chaves: Lugar de Sobra, 2014.
95. Luiza Baldan. Fotografia para Marcos Chaves: Buraco, 2013.
96. Luiza Baldan. Fotografia para Marcos Chaves: Prótese, 2013.
97. Marcos Chaves. Obrigado Senhor pelo Espaço, 2005.
98. Marcos Chaves. Eu só vendo a vista, 1998 (Fotocolaboração Vicente de Mello).
99. Retratos de Marcos Chaves e Luiza Baldan para livro Pacto Visual III / Luisa Duarte. Rio de
Janeiro: ID Cultural, 2016. Crédito: Vicente de Mello.

217
B_12
100. Luiza Baldan. Sem título (Sobre umbrais e afins), 2005.
101. Gisele Camargo. Série Panavision, 2009.
102. Gisele Camargo. Para Tarkovski, 2010 (Detalhe do políptico).
103. Luiza Baldan. Sem título (Serrinha), 2011.
104. Gisele Camargo. Falsa Espera, 2012 (Detalhe da instalação).
105. Luiza Baldan. Índice, 2013 (Vista da videoinstalação no foyer do MAM Rio).
106. Gisele Camargo. Cápsula C, 2013.
107. Gisele Camargo. Série Noite Americana, 2014.
108. Gisele Camargo. Gisele Camargo. Casa da Urca, Rio de Janeiro, 2017.
B_13
109. Luiza Baldan e Gisele Camargo. Terreno da futura residência Serra Morena, Serra do Cipó,
MG, 2017.
110. Gisele Camargo. Erosão, 2019.
111. Gisele Camargo. Buraco ao fundo da terra, 2019.
112. Gisele Camargo. Processo de pintura “Erosão”, 2019.
113. Gisele Camargo. Processo: parede do ateliê com referências fotográficas, 2019.
114. Gisele Camargo. Processo: chão do ateliê com restos de tinta e fotografia, 2019.
115. Gisele Camargo. Erosões #1, 2019.
116. Gisele Camargo. Erosões #3, 2019 (Vista da parede da Central Galeria).
117. Gisele Camargo. Série Erosões, 2019 (Detalhe da pintura na Kang Galeria, Berlim). Crédito:
Luiza Baldan.
B_14
118. Luiza Baldan. Sem título (De murunduns e fronteiras), 2010.
119. Luiza Baldan. Sem título (Perabé), 2015.
120. Mário de Andrade. Brasão, 1937. Retirado do livro Mário de Andrade: fotógrafo e turista
aprendiz. São Paulo: IEB, 1993.
121. Luiza Baldan. Pracinha, 2019.

218
122. Pilar Baldan. Ultrassonografia Pilar, 2017.
123. Claudia Andujar. Vila de Wakatha u (1974). Imagem acompanhada da frase “A mãe
projetava-se como um planeta. Parecia um mundo em si.”, no livro Yanomami / Claudia
Andujar. São Paulo: Editora Praxis, 1978, s/p. Crédito: Galeria Vermelho.
124. Luiza Baldan, Ashtanga yoga, Florianópolis, 2017. Crédito: Karim Rojas.
125. Luiza Baldan e Sharmila Desai, Florianópolis, 2017.
126. Dedicatória de Sharmila Desai no livro Yoga Sadhana for Mothers: Shared experiences
of Ashtanga yoga, pregnancy, birth and motherhood / Sharmila Desai and Anna Wise.
Londres: Pinter & Martin, 2014.
B_15

127. Luiza Baldan. Qualificação de doutorado (com Felipe Scovino, Helena Martins, Michelle
Sommer), Agosto 2017.
128. Luiza Baldan. 1 dia antes do parto, 39/40 semanas de gestação, Setembro 2017.
129. Nicolás Espinoza e Luiza Baldan. Parto, 40 semanas de gestação, Setembro 2017.
130. Nicolás Espinoza, Luiza Baldan, Pilar Espinoza Baldan, Setembro 2017.
131. Luiza Baldan. Pilar mamando, Outubro 2017.
132. Luiza Baldan. Pilar mamando, Fevereiro 2020. Crédito: Nico Espinoza.
133. Luiza Baldan. Praticando Ashtanga 7ª série, Dezembro 2017.
134. Luiza Baldan. Praticando Ashtanga 7ª série, Março 2019.
135. Pilar Baldan. Brincando de Yoga, Janeiro 2020.
B_16
136. Nico e Pilar. Paternagem, Setembro 2017.
137. Nico e Pilar. Paternagem, Maio 2019.
138. Fragmento da carta de mamãe para a minha avó.
139. Anna Maria Maiolino. O bebê, 1966. Crédito: Acervo da artista. Imagem retirada da
publicação Cultura brasileira hoje: diálogos / org. Flora Süssekind e Tânia Dias. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, v.1, 2018.

140. Marielle Franco, 2017. Crédito: AFP. Disponível em:


<https://theglobepost.com/2019/03/12/police-arrested-over-marielle-franco/>
141. Luiza Baldan. Grávida de 3 meses na exposição “Estofo”, 2017. Crédito: Mariana Kaufman.
142. Luiza e Pilar. “Emerging artist”, 2018.
219
143. Luiza, Pilar e Lenora de Barros. Performance Há Mulheres, Abril 2018.
144. Nico, Pilar e Luiza, MASP de persianas abertas, 07.11.2018.
B_17
145. Diário de São Paulo, 05/10/1960. Construção do MASP, Av. Paulista. "Prosseguem com
ritmo acelerado as obras de construção da nova sede do Museu de Arte de São Paulo, no Trianon:
o clichê mostra os realizadores do projeto, o arquiteto Lina Bo Bardi, o engenheiro Figueiredo
Ferraz, e o sr. João Cupoloni, circundados de seus assisetentes. Foto Luiz Hossaka." Crédito:
Biblioteca MASP.
146. Construção do MASP, Av. Paulista, Vão em obras. Crédito: Biblioteca MASP.
147. Inauguração MASP, 1968 (Vista do vão). Crédito: Biblioteca MASP.
148. Luiza Baldan. Vão do MASP, 42ª Mostra Internacional de Cinema de SP, 23.10.2018.
149. Luiza Baldan. Manifestação MASP contra o presidente eleito, 30.10.2018 (Vista do vão).
150. Luiza Baldan. Manifestação MASP contra o presidente eleito, 30.10.2018 (Vista da Av.
Paulista).
151. Luiza Baldan. Banheiro feminino de funcionárias, Subsolo MASP.

152. Luiza e Pilar, Subsolo MASP, Novembro 2018.


153. Livro O MASP de Lina, 2019.

B_18
154. Luiza Baldan. Gilberto de Sousa Bezerra, Aurélio Saraiva de Matos, Abmario Eunilio da
Silva (Monumentalidade como coletividade), 2018.
155. Luiza Baldan. Victor Kenji Ortenblad, Juliana Costa Bitelli, Amanda Carneiro Santos, João
Antônio Perim Prata Tibery Garcia Lopes, Amanda Goes Negri, Artur Renato Teixeira Santoro
(Monumentalidade como coletividade), 2018.

156. Luiza Baldan. Jussara de Moraes Lima, Bruno Cesar Mesquita Esteves, Adriana Villela
Carneiro, Lucineia Pereira Ribeiro, Carla Barreto Bononi, Pamella da Silva Mazucatto, Alice
Reis Silva, Julia Klein de Miranda, Mylena Santos Pereira, (Monumentalidade como
coletividade), 2018.
157. Luiza Baldan. Matheus Araújo de Andrade Costa (Monumentalidade como coletividade),
2018.
158. Luiza Baldan. Keila Clei Ribeiro da Silva (Monumentalidade como coletividade), 2018.
159. Luiza Baldan. Ronaldo Domingos da Silva (RD) (Monumentalidade como coletividade),
2018.

220
160. Luiza Baldan. Dannyele Cavalcante de Pádua Luis de Melo (Monumentalidade como
coletividade), 2018.
161. Luiza Baldan. Adriano Estrella Pedrosa (Monumentalidade como coletividade), 2018.
162. Luiza Baldan. Adriana Ferreira da Silva, Maria Lucilene Ângela da Macena
(Monumentalidade como coletividade), 2018.
B_19
163. Cristina Canale. Anjo, 2013 (Perfil de Dora, sua filha). Disponível em:
<https://nararoesler.art/exhibitions/34/>
164. Luiza Baldan. Retrato de Cristina Canale no ateliê em Berlim, 2020.
165. Luiza Baldan. Claudia (Entre o sono e a vigília), 2006.
166. Luiza Baldan. Yasmin (Natal no Minhocão), 2009.
167. Cao Guimarães. Histórias do Não-Ver, 2001. Disponível em:
<http://www.caoguimaraes.com/obra/historias-do-nao-ver/>
168. Cao Guimarães. Histórias do Não-Ver, 2001. Disponível em:
<http://www.caoguimaraes.com/obra/historias-do-nao-ver/>
169. Pilar Baldan. KiTa (creche) Berlim, Dezembro 2020.
170. Autoria coletiva. Imagem realizada pela turma de Seminário de Teoria e História da Arte,
UERJ, 2016.2. Ação de limpeza do corredor proposta e realizada pelos participantes da
disciplina. Aqui em ação a professora, Mariana Pimentel.
171. Luiza Baldan. Retrato de Lina Kim na janela durante a quarentena em Berlim, 2020.
B_20
172. Lina Kim. Sem título (Rooms), 2003-2006. Disponível em: <https://blogdoims.com.br/os-
artistas-de-lugar-nenhum/>
173. Cao Guimarães. Otto, 2012. Disponível em: <http://www.caoguimaraes.com/obra/otto/>
174. Isabel Löfgren, Theo, Patricia Gouvêa, Diana, Banco de Tempo, 2014. Crédito: Marian
Starosta.
175. Isabel Löfgren e Patricia Gouvêa. Mãe Preta. Modos de Olhar, 2018 (Detalhe da
interferência sobre a fotografia Negras, c. 1884, Salvador - BA | Marc Ferrez/Coleção Gilberto
Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles)

176. Anna Bella Geiger. Passagens, 1974. Disponível em:


<https://www.researchgate.net/figure/Figura-44-Stills-do-video-Passagens-1974-de-Anna-Bella-
Geiger-Os-videos-de-Leticia_fig16_327623999>
177. Anna Maria Maiolino. In-out (antropofagia), da série Fotopoemação, 1973–1974, making of

221
do vídeo super-8. Coleção da artista. Crédito: Max Nauenberg/acervo da artista. Imagem retirada
da publicação Cultura brasileira hoje: diálogos / org. Flora Süssekind e Tânia Dias. Rio de
Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, v.1, 2018.

178. Anna Maria Maiolino. Por um fio (Fotopoemação), 1976. Disponível em:
<https://www.artsy.net/artwork/anna-maria-maiolino-por-um-fio-serie-fotopoemacao-from-
photo-poem-action-series>
179. Letícia Parente. In, 1975. Disponível em: <https://www.researchgate.net/figure/Figura-6-
Stills-do-video-In-1975-de-Leticia-Parente_fig3_327623999>
180. Letícia Parente. Especular, 1978 (video protagonizado pelxs filhxs Angela e André).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Oh4wjBhXvY0>
B_21
181. Letícia Parente. Tarefa I, 1982. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=acrnGHOa0pM>
182. Sonia Andrade. Sem título, 1977. Disponível em: <https://galeriaathena.com/artista/sonia-
andrade/#1>
183. Sonia Andrade. A Morte do Horror, 1981. Disponível em:
<https://galeriaathena.com/artista/sonia-andrade/#1>
184. Anna Bella Geiger. Circumambulatio, 1972-2013. Disponível em:
<https://zedosbois.org/programa/conversa-com-cristiana-tejo-giulia-lamoni-margarida-brito-
alves-e-marta-mestre/>
185. Luiza Baldan. Sem título (De murunduns e fronteiras), 2010.
186. Bianca Tomaselli. Desenhos parasitas, 2008. Disponível em:
<https://mapa.pacodasartes.org.br/page.php?name=curadores&op=detalhe&id=82>
187. Aleta Valente. Barbara, 2015. Disponível em: <https://www.select.art.br/aleta-valente-
suburbana-mae-solteira-feminista-artista/>
188. Aleta Valente. Breastfeeding all over the world, 2016. Disponível em:
<https://www.select.art.br/aleta-valente-suburbana-mae-solteira-feminista-artista/>
189. Aleta Valente. Sophia Valente, 2004 / Cesariana, dimensões variadas, 2019 (Performance na
AGentil Carioca). Crédito: Adriana Varejão. Disponível em:
<https://www.instagram.com/p/B4sKRXplgLF/?igshid=n437qfylhy4>
B_22
190. Aleta Valente. Ilha do Sol Photo Studio / Venha se despir de suas vergonhas, 2016.
Disponível em: <https://www.select.art.br/aleta-valente-suburbana-mae-solteira-feminista-
artista/>

222
191. Aleta Valente / Luiza Baldan. Ilha do Sol Photo Studio / Venha se despir de suas vergonhas,
2016.
192. Elisa, Louise Botkay e Aleta Valente. Ilha do Sol Photo Studio / Venha se despir de suas
vergonhas, 2016.
193. No bote, chegando na Ilha do Sol, com Louise e Elisa Botkay, 2016. Crédito: Alejandro
Pérez.
194. Pilar vendo Um filme para Ehuana, de Louise Botkay, 2020.
195. Luiza Baldan. Thiago Barros em Derivadores, Junho 2016.
196. Ana Dalloz. Gota de leite, 2018.
197. Cecília Cavalieri. Língua láctea e lunar [ovelha, vaca, cabra, monika] (Via Lactea – uma
especulação cosmopoética), 2019-2020.
198. Cecília Cavalieri. Fragmento do livro da artista The abyss of the other. Londres: A3 Press,
2019.
B_23
199. Louise Botkay. Precisamos falar de aborto, Instagram 31.12.2019. Disponível em:
<https://www.instagram.com/p/B6vMNGSJcYn8Z73SJcISmnv6qIe0rmhPyr7UsQ0/?igshid=16fa
3t7g6futt>
200. Clara Cavour. Defesa de mestrado, PUC Rio,
201. Duda Moraes. Sem título, 2019.
203. Luiza Baldan. Zilda (Entre o sono e a vigília), 2006.
204. Mara Pereira. Odoya Yemanja, 18.01.2020, de @senegambia81. Disponível em:
<https://www.instagram.com/p/B7dnj8xJ75X/?igshid=12v4qcm85z181>
205. Maria Baigur. Livre Demanda, 2019. Crédito: Rafael Mollica.
206. Paula Huven. Claudia e Patricia (Devastação), 2013.
207. Paula Huven. Thamara e Zena (Devastação), 2013.
208. Paula Huven. Água Viva, 2019.
B_24
209. Lygia Clark. Caminhando, 1963. Montagem com imagens retiradas e disponíveis em:
<https://pt.slideshare.net/RaphaelLanzillotte/lygiaclarkobjetorelacional> e <http://www.bauhaus-
imaginista.org/articles/3822/walking-on-a-mobius-
strip?0bbf55ceffc3073699d40c945ada9faf=2b959c7a4ece717611a2af04d07a6895>

223
210. Lygia Clark. O dentro e o fora, 1963. Disponível em:
<https://pt.slideshare.net/RaphaelLanzillotte/lygiaclarkobjetorelacional>
211. Lygia Clark e Hélio Oiticica. Diálogo de mãos, 1966 (imagem retirada do filme O Mundo de
Lygia Clark, 1973, dirigido por Eduardo Clark). Disponível em: <http://www.bauhaus-
imaginista.org/articles/3822/walking-on-a-mobius-
strip?0bbf55ceffc3073699d40c945ada9faf=2b959c7a4ece717611a2af04d07a6895>
212. Tunga. Ão, 1981. Disponível em: <https://www.tungaoficial.com.br/pt/trabalhos/ao/>
213. Tunga. Toro, 1983. Disponível em: <https://www.tungaoficial.com.br/en/trabalhos/toro/>
214. Tunga. Xifópagas Capilares, 1984. Disponível em:
<https://www.tungaoficial.com.br/pt/trabalhos/xifopagas-capilares/>
215. Autor desconhecido. Diálogo entre Arjuna e Sri Krishna. Disponível em:
<http://vedantaprov.org/bhagavad-gita/>
216. Autor desconhecido. Jishin-no-ben / Oroboro, 1855. Disponível em:
<https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/a/a0/Jishinnoben1855.jpg>
217. Antonio Dias. Papéis do Nepal, 1977-1986. Disponível em:
<https://nararoesler.art/exhibitions/64/>
B_25
218. Cao Guimarães. O fim do sem fim, 2011. Disponível em:
<http://www.caoguimaraes.com/obra/o-fim-do-sem-fim/>
219. Luiza Baldan. Sem título, 2019.
220. Luiza Baldan. Sem título, 2019.
221. Fragmentos do programa Olhar – episódio Luiza Baldan/Eduardo Berliner gravado no
Minhocão, Canal Arte1, 2015.
222. Luiza Baldan. Sem título (Natal no Minhocão), 2016.
223. Luiza Baldan. Pilar, Leandro Myguel, Mariah e Didi no Minhocão, 2018.
224. Luiza Baldan. Imagens selecionadas de Natal no Minhocão para a Bienal de Arquitetura de
Veneza 2020.
225. Hiroshi Sugimoto. Galvez House, 2002. Hiroshi Sugimoto: Architecture. Bologna:
Damiani and MW Editions, 2019. Disponível em:
<https://issuu.com/damianiflip/docs/hiroshi_sugimoto_architecture_issuu>
226. Luiza Baldan. Sem título, 2009 (Pré-residência no Minhocão).
B_26
227. Luiza Baldan. Ciudad Abierta (Fernando Espósito), 2010.
224
228. Luiza Baldan. Ciudad Abierta (Ana Paz), 2010.
229. Luiza Baldan. Ciudad Abierta (Fernando Espósito), 2019.
230. Palacio del Alba y del Ocaso, 1982. Crédito: Escuela de Arquitectura y Diseño PUCV/
Archivo Histórico José Vial. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/archivo-
escuela/3079841549/in/photolist-5G9ZAn-5Ga1MV-5Geh2w-89ASaG-89xAbP-5Ga23D-
5Ga31t-89xwkP-89xBDr-89AUyN-89ATtL-FhRhHQ-89xwAz-89xwKX-89xwYt-89AU1U-
89AUMh-89xDVV-89AVhh-89AUZf-89AThG-89xDMx-87ufGS-7f4DRF-72fDYR-72fDXM-
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87rmsM-f1z2z1>
231. Luiza Baldan. Pilar e Nico, Palacio del Alba y del Ocaso, Ciudad Abierta, 2019.
232. De Ciudad Abierta a Ventanas. Google Earth.
233. Campo de Concentração Ritoque, “El Evangelio Según Nosotros”, desenhado por Miguel
Lawner em 30.03.1975. Crédito: Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos, Fondo
Miguel Lawner. Disponível em:
<https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0717-
69962016000100009&lng=p&nrm=iso&tlng=en>
234. Campo de Concentração Ritoque, planta aproximada do local desenhada por Miguel
Lawner, 2005. Crédito: Arquivo privado de Miguel Lawner. Disponível em:
<https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0717-
69962016000100009&lng=p&nrm=iso&tlng=en>
235. Campo de concentração de Ritoque, terreno baldio em 13 de outubro de 2012. Crédito: Ana
María León. Disponível em: <https://scielo.conicyt.cl/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0717-
69962016000100009&lng=p&nrm=iso&tlng=en>
B_27
236. Vista do parque industrial a partir da praia de Ventanas, 2018. Crédito: Michelle Carrere.
Disponível em: <https://www.biobiochile.cl/noticias/nacional/region-de-
valparaiso/2018/09/23/nos-vieron-como-el-basurero-nadie-quiere-comer-mariscos-el-drama-de-
los-pescadores-de-ventanas.shtml>
237. Marcha de protesto organizada por MUZOSARE (Mujeres de Zona de Sacrificio Quintero-
Puchuncaví en Resistencia), 2018. Crédito: Ana Peña Saavedra. Disponível em:
<https://www.opendemocracy.net/es/democraciaabierta-es/historic-victory-for-citizens-of-chiles-
sacrifice-zone/>
238. Luiza Baldan. Sem título (De Ciudad Abierta a Ventanas), 2019.
239. Virginia de Medeiros em conversa com Lisette Lagnado, ExRotaprint, Bienal de Berlim,
2019.

225
240. Virginia de Medeiros. Sergio e Simone #1, 2007-2009. Disponível em:
<http://virginiademedeiros.com.br/obras/sergio-simone/>
241. Virginia de Medeiros. Sergio e Simone #2, 2007-2014. Disponível em:
<http://virginiademedeiros.com.br/obras/sergio-simone/>
242. Luiza Baldan. Pilar desenhando na sala de Virginia de Medeiros na ExRotaprint, Berlim,
2020.
242. Virginia de Medeiros. Livro-companhia-pesquisa do projeto Bienal de Berlim. Fogo no
Mato: A Ciência Encantada das Macumbas / Luiz Antonio Simas, Luiz Rufino. Rio de
Janeiro: Mórula Editorial, 2018.
243. Mãe Beata e seu filho Babalorixá Muralesimbe, do Ilê Obá Sileké, Berlim.
.
.
.
[Mais imagens e textos complementares podem ser encontrados em luizabaldan.com]

226
Luiza Baldan Manuel Álvarez Bravo Luiza Baldan
Sem título El Soñador Sem título
(Sobre umbrais e afins) 1931 (Becos)
2005 2000

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Sem título Sem título Three Bullets
(Becos) (Becos) (Becos)
2000 2001 2001

Francis Alÿs Cao Guimarães Harun Farocki


Historia de um Desengaño: Patagonia Da Janela do Meu Quarto Inextinguishable Fire
2003 2004 1969
(Still do vídeo) (Still do vídeo) (Still do vídeo)
B1
Exercício de observação Daniele Cavalcante Eduardo Freire
com fotografia O Segredo do Jardim Linha de Chegada
Curso EAV, 2013 2013 2013

Elisa Freitas Felipe Paiva Juliana Gueiros


Quarta Parede Tempo da Delicadeza A Performance de Helena
2013 2011 2011

Monica Guinle Referência Pikler Jarbas Lopes e Katerina Dimitrov


Bilu Festa da Janaína
2013 Minhocão
2009
B2
Kaza Vazia Luiza Baldan Frente 3 de Fevereiro
Cinekaza Mariana fotografando Minhocão
Minhocão 1º dia no Minhocão 2009
2009 2009

Primeira imagem para Le Corbusier Largo do Pedregulho x Minhocão


“Pedregulho Rio de Janeiro” Plano urbano para o Rio de Janeiro Rio de Janeiro
(Google Images) 1929 (Google Maps)

Cruzada São Sebastião Luiza Baldan Yasmin Ialuny


Rio de Janeiro Sem título Pátio
(vista aérea) (Pinturinhas) Minhocão
2009 2009
B3
Mariana Baptista de Carvalho Didi Luiza Baldan
Flamboyant Amigos Sem título
Minhocão Minhocão (Natal no Minhocão)
2009 2009 2009

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Sem título Sem título Sem título
(Natal no Minhocão) (Natal no Minhocão) (Natal no Minhocão)
2009 2009 2009

Luiza Baldan Barbara Copque Claudia Andujar


Caderno de notas Minhocão Detalhe do convite para defesa Detalhe Vertical 7
2009 de tese de doutorado na UERJ (Marcados)
1981-1983
B4
Marc Ferrez Luiza Baldan Augusto Malta
Capa do livro “Álbum da Avenida Retirada da Perimetral Ruínas do morro do Castelo
Central ... 1903-1906” 2014 1922

Luiza Baldan “Escultura de Waltercio Caldas Carlos Vergara


Aterro do Flamengo / MAM Rio no Centro do Rio vai abaixo para Poder
2017 dar passagem aos trilhos do VLT.” 1972/1976
(Vista da casa de Marcos Chaves) O Globo, 16.05.2015 (Balança Mas Não Cai ao fundo)

Leonel Brayner Luiza Baldan Luiza Baldan


Praia Formosa Sem título Sem título
s/d (Carandiru) (Carandiru)
2009 2009
B5
Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan
Península / 1ª visita Triangulação Península Sem título
2010 casa - deck - ilhota (De murunduns e fronteiras)
2010 2010

Luiza Baldan Luiza Baldan Primeira imagem para


Sem título Sem título “Edifício Raposo Lopes Santa
(Insulares) (Marginais) Teresa Rio de Janeiro”
2010 2010 (Google Images)

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Sem título Beira Sem título
(Serrinha) 2011 (Serrinha)
2011 (Still da videoinstalação) 2011
B6
Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan
El luche María José Sem título
2012 (Leituras de um lugar valioso) (Leituras de um lugar valioso)
(Detalhe da partitura) 2012 2016

Andreas Gursky Luiza Baldan Luiza Baldan


Copan Sem título Sem título
2002 (Corta Luz) (Corta Luz)
2013 2013

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Sem título Sem título Sem título
(Corta Luz) (Pivô) (Build Up)
2013 2013 2014
B7
Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan
Sem título Sem título Sem título
(Build Up) (Perabé) (Perabé)
2014 2015 2015

Luiza Baldan Luiza Baldan Domingos Guimaraens


Sem título Sem título gravando a voz em Perabé
(Perabé) (Perabé) 2015
2015 2015

Luiza Baldan Jonas Arrabal e Luiza Baldan Jonas Arrabal e Luiza Baldan
Caderno notas Derivadores Derivadores
Derivadores/Estofo 2016 2016
2016 (Capa do livro) (Detalhe de negativo)
B8
Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan
Derivador Sem título Sem título
2016 (Estofo) (Estofo)
2016 2016

Luiza Baldan Tripulação Luiza Baldan


Sem título André Ribeiro de Rezende Livro Onde o Rio Encontra o Mar
(Estofo) Luiza Baldan
2016 Maycon Monteiro Quintanilha

Travessias Cariocas Laura Marsiaj Arte Contemporânea Luiza Baldan


2008 2005 Laura
(Vista da exposição Caixa RJ) (Entre o sono e a vigília)
2006
B9
Luiza Baldan Ni da Costa Rosa Baldan, Lucia Laguna,
Lucia Lucia Laguna e Luiza Baldan Dilma Vieira e Silva
(Entre o sono e a vigília) Inauguração na Galeria Virgílio Dia das mães
2006 2009 2010

Lucia Laguna Lucia Laguna Luiza Baldan


Entre a linha vermelha Paisagem #4 Sem título
e a linha amarela #50 2007 (Pinturinhas)
2006 2009

Lucia Laguna Lucia Laguna Lucia Laguna


Jardim #35 Vista da janela do ateliê Relato escrito
2016 2018 21.01.2020

B10
Marcos Chaves Marcos Chaves Marcos Chaves
Lugar de Sobra Série Buracos Série Próteses
2002 1996-2020 2005-2020
(Montagem no Paço Imperial RJ)

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Lugar de Sobra para Buraco para Prótese para
Marcos Chaves Marcos Chaves Marcos Chaves
2014 2007 2013

Marcos Chaves Marcos Chaves Marcos Chaves e Luiza Baldan


Obrigado Senhor pelo Espaço Eu só vendo a vista Livro Pacto Visual III
2005 1998 (Fotos de Vicente de Mello)
(Fotocolaboração Vicente de Mello)
B11
Luiza Baldan Gisele Camargo Gisele Camargo
Sem título Série Panavision Para Tarkovski
(Sobre umbrais e afins) 2009 2010
2005 (Detalhe do políptico)

Luiza Baldan Gisele Camargo Luiza Baldan


Sem título Falsa Espera Índice
(Serrinha) 2012 MAM Rio
2011 (Detalhe da instalação) 2013

Gisele Camargo Gisele Camargo Gisele Camargo


Cápsula C Série Noite Americana Casa Urca, RJ
2013 2014 2017

B12
Luiza Baldan e Gisele Camargo Gisele Camargo Buraco ao fundo da terra
no terreno da futura residência na erosão 2019
Serra Morena 2019
2017

Processo Processo Processo


Erosão Parede do ateliê com Chão do ateliê, restos de tinta
2019 referências fotográficas e fotografia
2019 2019

Gisele Camargo Gisele Camargo Gisele Camargo


Erosões #1 Erosões #3 Série Erosões
2019 2019 2019
(Vista da parede da galeria) (Detalhe da pintura)
B13
Luiza Baldan Luiza Baldan Mário de Andrade
Sem título Sem título Eu sou aquele que veio
(De murunduns e fronteiras) (Perabé) do imenso rio.
2010 2015 Brasão, 1937

Luiza Baldan Ultrassonografia Pilar Baldan Claudia Andujar


Pracinha 2017 Vila de Wakatha u
2019 1974

Luiza Baldan Luiza Baldan e Sharmila Desai Dedicatória de Sharmila Desai


Ashtanga yoga Florianópolis “Yoga Sadhana for Mothers”
Florianópolis 2017 2017
2017
B14
Luiza Baldan Luiza Baldan Nico Espinoza e Luiza Baldan
Qualificação doutorado 1 dia antes do parto Parto
38 semanas de gestação 39/40 semanas de gestação 40 semanas de gestação
Agosto 2017 Setembro 2017 Setembro 2017

Nico Espinoza, Luiza Baldan Luiza com Pilar mamando Luiza com Pilar mamando
Pilar Espinoza Baldan Outubro 2017 Fevereiro 2020
Setembro 2017

Luiza e Pilar Luiza e Pilar Pilar


Praticando Ashtanga 7ª série Praticando Ashtanga 7ª série Brincando de Yoga
Dezembro 2017 Março 2019 Janeiro 2020

B15
Nico e Pilar Nico e Pilar Fragmento da carta de mamãe
Paternagem Paternagem para a minha avó
Setembro 2017 Maio 2019

Anna Maria Maiolino Marielle Franco Luiza Baldan


O bebê 2017 Grávida de 3 meses
1966 Exposição Estofo
2017

Luiza e Pilar Luiza, Pilar e Lenora de Barros Nico, Pilar e Luiza


2018 Performance Há Mulheres MASP de persianas abertas
Abril 2018 07.11.2018

B16
Diário de São Paulo Construção do MASP Av. Paulista Inauguração MASP Av. Paulista
Construção do MASP Av. Paulista Vão em obras Vão
05/10/1960 1960 1968

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


42ª Mostra Internacional Manifestação MASP Manifestação MASP
de Cinema de SP contra o presidente eleito contra o presidente eleito
23.10.2018 30.10.2018 30.10.2018

Luiza Baldan Pilar e Luiza Livro O MASP de Lina


Banheiro feminino de funcionárias Subsolo MASP 2019
subsolo MASP Novembro 2018

B17
Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan
Monumentalidade como coletividade Monumentalidade como coletividade Monumentalidade como coletividade
2018 2018 2018

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Monumentalidade como coletividade Monumentalidade como coletividade Monumentalidade como coletividade
2018 2018 2018

Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan


Monumentalidade como coletividade Monumentalidade como coletividade Monumentalidade como coletividade
2018 2018 2018

B18
Cristina Canale Luiza Baldan Luiza Baldan
Anjo Retrato de Cristina Canale Claudia
2013 em seu ateliê em Berlim (Entre o sono e a vigília)
2020 2006

Luiza Baldan Cao Guimarães Cao Guimarães


Yasmin Histórias do Não-Ver Histórias do Não-Ver
(Natal no Minhocão) 2001 2001
2009

Pilar Baldan Mariana Pimentel Luiza Baldan


KiTa (creche) Berlim Seminário de Teoria e História Retrato de Lina Kim durante
Dezembro 2019 da Arte, UERJ a quarentena em Berlim
2016 2020
B19
Lina Kim Cao Guimarães Isabel Löfgren, Theo
Sem título Otto Patricia Gouvêa, Diana
Rooms 2012 Banco de Tempo
2003-2006 (Still do filme) 2014

Isabel Löfgren e Patricia Gouvêa Anna Bella Geiger Anna Maria Maiolino
Mãe Preta Passagens Por um Fio
Detalhe de Modos de Olhar 1974 Fotopoemação
2018 (Still do vídeo) 1976

Anna Maria Maiolino Letícia Parente Letícia Parente


In-out (antropofagia) In Especular
1973-1974 1975 1978
(Still do vídeo) (Still do vídeo) (Still do vídeo)
B20
Letícia Parente Sonia Andrade Sonia Andrade
Tarefa I Sem título A Morte do Horror
1981 1977 1981
(Still do vídeo) (Still do vídeo) (Still do vídeo)

Anna Bella Geiger Luiza Baldan Bianca Tomaselli


Circumambulatio Sem título Desenhos parasitas
1972-2013 De murunduns e fronteiras 2008
2010

Aleta Valente Aleta Valente Aleta Valente


Barbara Breastfeeding all over the world Sophia Valente, 2004
2015 2016 Performance na AGentil Carioca
2019
B21
Aleta Valente Aleta Valente / Luiza Baldan Elisa, Louise Botkay e Aleta Valente
Ilha do Sol Photo Studio Ilha do Sol Photo Studio Ilha do Sol Photo Studio
Venha se despir de suas vergonhas Venha se despir de suas vergonhas Venha se despir de suas vergonhas
2016 2016 2016

No barco, chegando na Ilha do Sol, Pilar vendo Um filme para Ehuana Luiza Baldan
com Louise e Elisa Botkay de Louise Botkay Thiago Barros em Derivadores
2016 2020 Junho 2016

Ana Dalloz Cecília Cavalieri Cecília Cavalieri


Gota de Leite Língua láctea e lunar Fragmento de “Abyss of the other”
2018 [ovelha, vaca, cabra, monika] 2019
2019-2020
B22
Louise Botkay Clara Cavour Duda Moraes
Precisamos falar de aborto Defesa de mestrado Sem título
Instagram 31.12.2019 PUC Rio 2019
2018

Luiza Baldan Mara Pereira Maria Baigur


Zilda Odoya Yemanja Livre Demanda
(Entre o sono e a vigília) 18.01.2020 2019
2006 @senegambia81

Paula Huven Paula Huven Paula Huven


Claudia e Patricia Thamara e Zena Água viva
Devastação Devastação 2019
2013 2013
B23
Lygia Clark Lygia Clark Lygia Clark e Hélio Oiticica
Caminhando O dentro e o fora Diálogo de mãos
1963 1963 1966

Tunga Tunga Tunga


Ão Toro Xifópagas Capilares
1981 1983 1984

Diálogo entre Arjuna e Sri Krishna Jishin-no-ben / Oroboro Antonio Dias


1855 Papéis do Nepal
1977-1986

B24
Cao Guimarães Luiza Baldan Luiza Baldan
O fim do sem fim Sem título Sem título
2011 2019 2019

Fragmentos do programa Luiza Baldan Luiza Baldan


Olhar – episódio Luiza Baldan/ Sem título Pilar, Leandro Myguel,
Eduardo Berliner no Minhocão, Natal no Minhocão Mariah e Didi no Minhocão
Canal Arte1, 2015 2016 2018

Luiza Baldan Hiroshi Sugimoto Luiza Baldan


Imagens de Natal no Minhocão Galvez House Sem título
selecionadas para a Bienal de 2002 2009
Arquitetura de Veneza 2020 (pré-residência no Minhocão)
B25
Luiza Baldan Luiza Baldan Luiza Baldan
Ciudad Abierta (Ana Paz) Ciudad Abierta (Fernando Espósito) Ciudad Abierta (Fernando Espósito)
2010 2010 2019

Palácio del Alba y del Ocaso Nico e Pilar De Ciudad Abierta a Ventanas
Ciudad Abierta Palácio del Alba y del Ocaso Google Earth
1982 Ciudad Abierta
2019

Campo de concentração Ritoque Campo de concentração Ritoque Campo de concentração Ritoque


“El Evangelio Según Nosotros” planta aproximada do local terreno baldio
desenhado por Miguel Lawner desenhada por Miguel Lawner 2012
1975 2005
B26
Vista do parque industrial Marcha de protesto MUZOSARE Luiza Baldan
a partir da praia de Ventanas (Mujeres de Zona de Sacrificio De Ciudad Abierta a Ventanas
2018 Quintero-Puchuncaví 2019
en Resistencia), 2018

Virginia de Medeiros em conversa Virginia de Medeiros Virginia de Medeiros


com Lisette Lagnado Sergio e Simone #1 Sergio e Simone #2
ExRotaprint, Bienal de Berlim 2007-2009 2007-2014
2019

Pilar desenhando no espaço de Virginia de Medeiros Mãe Beata e seu filho


Virginia de Medeiros Livro-companhia-pesquisa Babalorixá Muralesimbe
ExRotaprint, Bienal de Berlim projeto Bienal de Berlim do Ilê Obá Sileké, Berlim
2020
B27

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