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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

RAQUEL DE OLIVEIRA GUERREIRO

CARTOGRAFIA, DEFICIÊNCIA VISUAL E ARTE:


Acompanhando o processo da acessibilidade no
Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro

RIO DE JANEIRO
2016
RAQUEL DE OLIVEIRA GUERREIRO

CARTOGRAFIA, DEFICIÊNCIA VISUAL E ARTE:


Acompanhando o processo da acessibilidade no
Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Psicologia, linha de pesquisa Cognição e
Subjetividade.

Orientadora: Prof.ª D.ra Virgínia Kastrup.

Rio de Janeiro
2016
RAQUEL DE OLIVEIRA GUERREIRO

CARTOGRAFIA, DEFICIÊNCIA VISUAL E ARTE:


Acompanhando o processo da acessibilidade no
Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em Psicologia.
Aprovada em: ____/____/___________

Banca Examinadora:

_______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Virgínia Kastrup
Orientador
Universidade Federal do Rio de Janeiro

_______________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Márcia Moraes
Membro
Universidade Federal Fluminense

_______________________________________________________
Dr.ª Viviane Panelli Sarraf
Membro
Universidade de São Paulo

Leitora Convidada:

_______________________________________________________
Dr.ª Dannyelle Valente
Membro
Université de Genève

Examinada a dissertação.
Conceito: ____________
Rio de Janeiro, 6 de maio de 2016.
Para Kiki,
com muito amor.
AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, primeiramente, à minha orientadora Virgínia Kastrup. Agradeço


por sua generosidade com seu conhecimento e disponibilidade na construção deste grande
trabalho. Agradeço pela aposta e confiança, por me ajudar mesmo sem saber que estava
ajudando, com café, leituras e boas risadas. Com presença. Obrigada pelo gosto pelo saber
que contagia, que gerou em mim o desejo de aprender mais. Aprendi contigo que deixar-se
afetar pelas experiências pode delinear-se como um caminho possível, mesclado ao rigor
teórico-conceitual e à artesania que marca o processo de escrita. Sou muito grata por ter
trabalhado contigo, experiência que com certeza me transformou. Seus efeitos estão aí...
Como este trabalho é coletivo, agradeço muito a todos os que participaram desse
processo e contribuíram de modo singular para que ele ficasse ainda mais bonito. Agradeço
àqueles que foram bolsistas junto comigo em 2012: Carolina Estrela, Aline Freitas, Dandara
Mota e Paulo Quérette; àqueles que vieram em seguida: Laura Bloch, Laura Mumic, Débora
Navarro, Nina Rosa e Caio Melo; e a última turma com quem eu tive o prazer de conviver
mais e trocar muito: Cecília Athias, Ana Saad, Caio Herlanin, Luiza Pontes, Júlia Werneck e
Isabela Nick. Desejo aos que chegam agora, abertura aos Encontros e boa viagem!
Um agradecimento especial ao Paulo, meu Chérizinho, e à Cecília, pelo resumo em
inglês. Também à Laura Pozzana, pela sua grande presença e inspiração na escrita.
Agradeço muito à Ana e ao Giancarlo, da secretaria da Pós, por serem sempre muito
prestativos e simpáticos!
Agradeço muito à Camila Alves e a todos que estão e que já passaram pela equipe do
Educativo do CCBB, que fizeram e fazem este trabalho de acessibilidade cada vez mais
bonito: Luan Castelucci, Camila Oliveira, Carol Lucena, Fabiana Martelotte, Wallace Berto,
Angélica Liaño e Fernando Codeço.
Agradeço a todas as pessoas com deficiência visual que participaram das visitas,
avaliando e ensinando-nos outras formas de ver: Ismael, Eronides, Lira, D2, Rafael, Waldir,
Marlene, Rita, Manoel dos Anjos, Luis, Rosângela e, especialmente, à Rachel Maria, pela
entrevista, e à Lúcia Telles, com quem tive a sorte de encontrar e de quem me tornei amiga.
Agradeço à Clara e à Luciana, da Oficina de cerâmica do IBC, pela parceria. Agradeço
também a todos os porteiros do IBC, que sempre me deixaram entrar de bicicleta.
Agradeço ao Filipe Carijó, Clara Almeida, Verônica Gurgel, Fábio Soares, Willy Rulff
e Bárbara Saddy pelos encontros de orientação, sempre animados e muito enriquecedores.
Agradeço muito ao Marcelo Thunder pela ótima revisão e boa companhia sempre, e ao
Daniel King, por me preparar para falar em inglês no congresso e por suas ótimas questões.
Merci beaucoup à querida Nathalie Joncour: em cada encontro, muita troca e
intensidade!
Agradeço, desde lá do fundo de mim, aos meus pais, que cartografam meu processo
pela vida, com muitas doses de amor sempre. Obrigada pelo olhar atento e pelo calor, pela
compreensão e pelo nosso tempo juntos, que regamos com bons papos e boas histórias.
Gostaria também de agradecer ao meu namorido Ricardo, que se despencou lá do sul
do país em cima de uma moto 125 com a casa nas costas, para resgatar seu nariz roubado em
2007. Obrigada por me deixar roubar todo o resto, por me acolher em seus braços e gostar da
minha loucura. Obrigada por tornar meus dias mais doces.
Agradeço a toda a minha família, aos meus tios e primas, pela força, carinho e pela
curiosidade que o tema da dissertação desperta. Agradeço a todos, inclusive os agregados, que
são muito queridos por mim! Agradeço à pequena família da França, com quem mantenho um
contato gostoso, mesmo que não tão frequente quanto gostaríamos. Agradeço também à
minha nova família gaúcha, que me recebe com muitos sorrisos e polenta a cada encontro.
Agradeço à minha irmã Paula e meu cunhado Rogério, pela confiança nas palavras
num momento tão importante da vida deles. Há amor em SP!
Muito obrigada à Katia Amaral, Fabiana Lemertz, Ana Bevilaqua e Ernani Trotta por
acompanharem meu processo e me ajudarem a ter corpo para seguir.
Obrigada aos amigos, especialmente à Lanzilda, Cabrita, Namu, Adrineuza, Fabi,
Xará, Corn Flakes, My Names, Gle e ao Buça. Aos novos amigos do sul, com quem as trocas
são muito potentes. Aos amigos da psico e do PPGP, por organizarmos aquele ótimo Encontro
dos Estudantes em 2015.
Um obrigada especial ao querido César Pessoa, o Zito, meu amigo querido e grande
entusiasta intelectual, por tudo! Obrigada também ao amigo Arthur Arruda!

“Gracias à la vida, que me ha dado tanto!”


DEITO-ME ao comprido na erva
E esqueço tudo quanto me ensinaram.
O que me ensinaram nunca me deu mais calor nem mais frio.
O que me disseram que havia nunca me alterou a forma de uma coisa.
O que me aprenderam a ver nunca tocou nos meus olhos.
O que me apontaram nunca estava ali: estava ali só o que ali estava.

Alberto Caeiro
GUERREIRO, Raquel. Cartografia, deficiência visual e arte: acompanhando o processo da
acessibilidade no Centro Cultural do Banco do Brasil do Rio de Janeiro. 2016. 152f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia)- Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, 2016.

RESUMO

No Brasil, a discussão acerca de estratégias para a acessibilidade de pessoas com


deficiência visual em instituições de arte é relativamente recente. As primeiras iniciativas
nesse sentido datam da década de 90, tomando mais força a partir dos anos 2000. Atualmente,
na cidade do Rio de Janeiro, o Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) é a única
instituição cultural que possui um programa regular de acessibilidade para pessoas cegas e
com baixa visão. Esta dissertação tem como objetivo apresentar a cartografia da
acessibilidade a pessoas com deficiência visual no CCBB, de abril de 2012 a março de 2015.
Nesse período, acompanhamos visitas acessíveis a exposições, avaliando as estratégias e
dispositivos quanto à sua possibilidade de gerar experiência estética no encontro com obras de
arte. Esse tipo de experiência, cujas dimensões cognitiva, prática e emocional são
indissociáveis, vai além do simples reconhecimento de formas. Trabalhamos com o conceito
de acessibilidade estética, que designa o acesso à experiência estética em detrimento da
acessibilidade física ou informacional. Utilizamos o Método da Cartografia que, enquanto
pesquisa-intervenção, envolve o acompanhamento de processos, a emergência de problemas
de pesquisa e a devolução dos resultados à instituição participante. Realizamos também uma
pesquisa bibliográfica acerca da psicologia cognitiva da deficiência visual, especificamos as
propriedades da visão e do tato e discutimos o desenvolvimento de imagens táteis em livros e
em museus. Discutimos também os conceitos de transmodalidade e felt meaning, e sua relação
com a acessibilidade. Foram descritas e analisadas oito visitas a exposições com propostas de
acessibilidade no CCBB. Os dados da pesquisa de campo foram os relatos de experiência
elaborados a partir das visitas e duas entrevistas com pessoas com deficiência visual. O
acompanhamento desse processo nos leva a perceber avanços na qualidade das estratégias
propostas pelo CCBB no que diz respeito à criação de condições para a experiência estética. A
audiodescrição e os dispositivos táteis e multimodais aparecem como possibilidades, mas não
caracterizam as melhores condições para que a experiência estética aconteça. Já a
sensibilização por meio de proposições corporais, conceituais e multissensoriais tem se
mostrado um caminho fértil para a acessibilidade estética, gerando o desejo nas pessoas com
deficiência visual de frequentar instituições culturais.

Palavras-chave: Cartografia. Deficiência visual. Arte. Acessibilidade estética.


GUERREIRO, Raquel. Cartography, visual disability and art: following the accessibility
process in Banco do Brazil's Cultural Center (CCBB) of Rio de Janeiro 2016. 152f.
Dissertação (Mestrado em Psicologia)- Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro-RJ, 2016.

ABSTRACT

In Brazil, the discussion concerning accessibility strategies for visual disabled people in
art institutions is relatively recent. The early initiatives towards this matter were first brought
to light in the 90´s, developing more and more as of the years 2000´s. Nowadays, Centro
Cultural do Banco do Brasil (CCBB) is the only institution in Rio de Janeiro which has a
regular accessibility program for visual disabled people. This dissertation aims to present the
cartography of the accessibility for blind people in CCBB from April, 2012 until March,
2015. During this period, accessible guided tours to art exhibitions were accompanied and
analyzed, evaluating the strategies and devices in the condition of possible creators of
aesthetic experience in the contact with works of art. This kind of experience, in which the
cognitive, practical and emotional dimensions are inseparable, goes beyond the simple
recognition of forms. We work with the concept of aesthetic experience, which points towards
the access to aesthetic experience instead of physical or informative accessibility. We utilize
the Cartography Method which, while being an intervention-research, involves the following
up processes, the emergence of research issues and the devolution of outcomes to the involved
institution. We also realized a bibliographic research regarding the cognitive psychology of
visual disability, we especified the properties of touch and sight and discussed the
development of tactile images in books and in museums. In addition, we discussed the
concepts of transmodality and felt meaning, and their relation to accessibility. Eight guided
tours with accessible proposals at CCBB were described and analyzed. The data from field
research consists of experience reports elaborated from the tours and two interviews with
blind people. The following up of this process leads us to realize advances in the quality of
strategies offered by CCBB concerning the creation of conditions to aesthetic experience.
Audiodescription and tactile and multimodal devices appear as possibilities, but don´t qualify
the best conditions for the aesthetic experience to happen. The awareness through body,
conceptual and multissensorial propositions, however, have shown to be a fertile way to
aesthetic experience, creating the desire of blind people to attend cultural institutions.

Keywords: Cartography. Visual disability. Art. Aesthetic accessibility.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABNT Associação Brasileira de Normas Técnicas


CCBB Centro Cultural do Banco do Brasil
CNAN Conservatoire National des Arts et Métiers
CONEX Congresso de Extensão
IBC Instituto Benjamim Constant
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
JIC Jornada de Iniciação Científica da UFRJ
MAC USP Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
MAM Rio Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
NUCC Núcleo de Cognição e Coletivos
PIBIC Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro
USP Universidade de São Paulo
LISTA DE FIGURAS1

Figura 1 - Urutu, de Tarsila do Amaral, 1928, (60 x 72 cm) .................................................... 71


Figura 2 - A negra, de Tarsila do Amaral, 1923, (100 x 80 cm) ............................................... 72
Figura 3 - Antropofagia, de Tarsila do Amaral, 1929 (126 x 142 cm) ..................................... 73
Figura 4 - Caixa e maquete: dispositivos táteis utilizados para acessibilidade da obra
Antropofagia ............................................................................................................ 73
Figura 5 - São Paulo, de Tarsila do Amaral 1924, (67 x 90 cm) .............................................. 75
Figura 6 - Placa em alto-relevo da pintura São Paulo .............................................................. 76
Figura 7 - Cartão postal, de Tarsila do Amaral, 1924 (127,5 x 142,5 cm) .............................. 78
Figura 8 - Placa com texturas referente à pintura Cartão-postal ............................................. 78
Figura 9 - Placa com linhas da obra A negra, de Tarsila do Amaral ........................................ 80
Figura 10 - Esculturas da exposição Corpos Presentes espalhadas pelo saguão do CCBB-RJ 85
Figura 11 - O tocador de pífaro de Edouard Manet, 1866 (161 x 97 cm) ................................ 90
Figura 12 - Placa tátil em alto relevo da obra O tocador de pífaro .......................................... 90
Figura 13 - Natureza morta com jarro branco, de Adolphe Monticelli, 1878 (48,2 x 59,7 cm)
.................................................................................................................................. 90
Figura 14 - Dispositivo tátil da obra Natureza morta com jarro branco .................................. 90
Figura 15 - Madame Darras de Auguste Renoir, 1868 (47,5 x 39 cm) .................................... 90
Figura 16 - Dispositivo tátil da obra Madame Darras ............................................................. 90
Figura 17 - Potinhos com ervas e fumo, para exploração olfativa ........................................... 91
Figura 18 – Ilustração do vídeo Art must be beautiful; Artist must be beautiful, de Marina
Abramovic, 1975 ...................................................................................................... 93
Figura 19 - Sem título, nº 4, de Valérie Belin, 2003 (160,7 x 128,6 cm) .................................. 94
Figura 20 - Caranguejo, da série Bichos, de Lygia Clark, 1960 (20,5 x 27 cm) ...................... 94
Figura 21 - No centro da rotunda o ponto da coluna sonora e as bolas de vinil. ...................... 97
Figura 22 - A Separação, de Yayoi Kusama, 1952 (45 x 53 cm) ............................................. 98
Figura 23 - Redes Infinitas, de Yayoi Kusama, 1953 (35,6 x 32,4 cm) .................................... 98
Figura 24 - Ruinas, de Roy Lichtenstein, 1965 (170 x 200 cm) ............................................ 105
Figura 25 - Sem título, de Basquiat e Andy Warhol, 1984 (194,3 x 226,7 cm) ...................... 106
Figura 26 - Tríptico Nº 14. Autorretrato (Dedicado ao meu pai), de Vladimir Yankilevisky,
1987 (190,5 x 363 x 35 cm) ................................................................................... 107
Figura 27 - Banana-splits com glacê em degustação, de Claes Oldenburg, 1964 (39,1 x 84,6 x
48,1 cm) ................................................................................................................. 107
Figura 28 - O agachado, de Tatiana Blass, 2013 (aprox. 50 x 200 x 200 cm) ....................... 115

1
As fontes das figuras estão indicadas ao final da nas referências desta dissertação.
Figura 29 - São Jorge, de Wassaly Kandinsky, 1911 (107 x 95,2 cm) .................................. 123
Figura 30 - Eclipse total em Nova Zembla, de Alexander Borisov, 1904 (201,5 x 357,5 cm)
............................................................................................................................... 124
Figura 31 - Dança popular de roda, de Nikolai Milioti, 1906 (71 x 75,5 cm) ...................... 125
Figura 32 - No Branco, de Kandinsky, 1920 (95 x 138 cm) .................................................. 126
Figura 33 - Triunfo do céu – Estudo de pintura afresco, de Kazimir Malevich, 1907 (71,5 x 70
cm) ......................................................................................................................... 129
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 21
ANÁLISE DE IMPLICAÇÃO COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA ................ 29
CARTOGRAFIA: SER “INTERVIDA” .............................................................................. 29
VER OU NÃO-VER: DA DICOTOMIA À PERSPECTIVA .............................................. 31
VER E NÃO VER: ABERTURA AOS ENCONTROS - COM-FIAR ................................ 32
OUTROS MODOS DE VER ............................................................................................... 34
CAPÍTULO I .......................................................................................................................... 35
1 ACESSIBILIDADES E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O QUE DESEJAMOS
PRODUZIR COM O ACESSO ÀS OBRAS DE ARTE? ............................................... 35
1.1 ACESSIBILIDADE E DEFICIÊNCIA VISUAL EM MUSEUS DE ARTE E
CENTROS CULTURAIS ...................................................................................... 37
1.1.1 A acessibilidade física .......................................................................................... 38
1.1.2 A acessibilidade informacional ou comunicacional .......................................... 38
1.1.3 A acessibilidade estética ...................................................................................... 39
1.1.3.1 Sobre a proibição do toque em obras de arte ......................................................... 41
1.1.3.2 Projeto Encontros Multissensoriais ....................................................................... 43
1.2 INFORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: LINHAS CRUZADAS ........... 45
CAPÍTULO II ......................................................................................................................... 49
2 ACERCA DA COGNIÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL ............... 49
2.1 A HETEROGENEIDADE DA DEFICIÊNCIA VISUAL ..................................... 49
2.2 O TATO E A VISÃO .............................................................................................. 50
2.2.1 A percepção háptica como modo de conhecimento de mundo ........................ 52
2.2.2 Propriedades específicas ..................................................................................... 54
2.3 QUESTÕES EMERGENTES ............................................................................... 59
2.3.1 A noção de perspectiva e imagens táteis bidimensionais.................................. 59
2.3.2 Imagens táteis em livros e museus ...................................................................... 62
2.3.3 Felt meaning, transmodalidade e acessibilidade ............................................... 64
CAPÍTULO III ....................................................................................................................... 68
3 O PROJETO DE ACESSIBILIDADE DO CENTRO CULTURAL DO BANCO DO
BRASIL: ACOMPANHANDO UM PROCESSO ........................................................... 68
3.1 TARSILA DO AMARAL: UM PERCURSO AFETIVO ...................................... 68
3.1.1 Estratégias e dispositivos táteis: visita em três tempos .................................... 69
3.1.1.1 Primeiro tempo: audiodescrição das obras na galeria............................................ 70
3.1.1.2 Segundo tempo: dispositivos táteis na Estação Sensorial...................................... 72
3.1.1.2.1 Maquetes e caixas .................................................................................................. 72
3.1.1.2.2 Placas táteis : alto-relevo e texturas ....................................................................... 74
3.1.1.3 Terceiro tempo: placas e desenho com linhas........................................................ 79
“Entre-exposições”: 1ª reunião de devolução da pesquisa-intervenção ................ 82
3.2 ANTONY GORMLEY: CORPOS PRESENTES.................................................. 84
3.2.1 Uma performance: “Com quantos cegos se faz uma cegueira?” .................... 85
3.2.2 A performance como intervenção político-poética: experimentando uma
acessibilidade ampliada ...................................................................................... 87
Bifurcação 1 - IMPRESSIONISMO: PARIS E A MODERNIDADE: o
caminho do multimodal ...................................................................................... 89
Bifurcação 2 – ELLES: MULHERES ARTISTAS DA COLEÇÃO DO
CENTRE POMPIDOU: o trabalho com o conceito ......................................... 92
3.3 YAYOI KUSAMA: OBSESSÃO INFINITA ........................................................ 95
3.3.1 Entre colunas, bambolês e parangolés: estratégias multissensoriais para a
acessibilidade estética.......................................................................................... 96
3.3.2 Uma mediação experimental ............................................................................ 100
3.3.3 Um sopro de Hélio Oiticica ............................................................................... 103
Bifurcação 3 – VISÕES NA COLEÇÃO LUDWIG: o problema da
audiodescrição ................................................................................................... 104
Um toque de recalcitrância.................................................................................. 108
Duas entrevistas sobre a audiodescrição ............................................................. 109
3.4 OURO: O FIO QUE COSTURA A ARTE DO BRASIL .....................................113
3.4.1 Uma visita para guardar ...................................................................................113
3.4.2 Baú de tesouros: nossas histórias ......................................................................117
3.4.3 Amadurecimento da mediação ..........................................................................119
“Entre-exposições”: 2ª reunião de devolução da pesquisa-intervenção .............. 120
3.5 KANDINSKY: TUDO COMEÇA NUM PONTO .............................................. 121
3.5.1 Imaginando obras de arte ................................................................................. 122
3.5.2 Aproximação entre cegos e videntes a partir da arte abstrata...................... 127
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TOCANDO EM FRENTE .......................................... 131
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 139
CATÁLOGOS DE EXPOSIÇÃO ..................................................................................... 143
FONTES DAS IMAGENS................................................................................................ 144
21

INTRODUÇÃO

Esta dissertação tem por objetivo apresentar uma cartografia do projeto de


acessibilidade para pessoas com deficiência visual desenvolvido no Centro Cultural do Banco
do Brasil do Rio de Janeiro (CCBB), do período de abril de 2012 a março de 2015.
Acompanhamos este processo durante três anos, buscando avaliar a potência das estratégias e
dispositivos desenvolvidos no que diz respeito à criação de condições de possibilidade para a
experiência estética de pessoas cegas e com baixa visão no encontro com a arte.
A metodologia utilizada foi o Método da Cartografia, proposto por Deleuze e Guattari
(1995) e desenvolvido por Rolnik (2011) e por Passos, Kastrup e Escóssia (2010). A
cartografia é uma pesquisa-intervenção que envolve o acompanhamento de processos, a
emergência de problemas de pesquisa em campo e trata o conhecimento como algo que é
produzido coletivamente. Além disso, inclui o compromisso com a devolução dos resultados à
instituição participante da pesquisa. Pensando nossas práticas em pesquisa voltada para o
campo da deficiência visual, baseamo-nos também na metodologia PesquisarCOM,
apresentada na coletânea intitulada Exercícios de Ver e Não Ver: Arte e Pesquisa COM
Pessoas com Deficiência Visual (MORAES; KASTRUP, 2010). Essa metodologia, que aposta
no caráter performativo das práticas, coloca a pessoa com deficiência visual como sujeito
ativo com o qual e não sobre o qual fazemos pesquisa.
Desde abril de 2012 acompanhamos as visitas a exposições acessíveis a pessoas com
deficiência visual no Centro Cultural do Banco do Brasil (CCBB) da cidade do Rio de
Janeiro. Esse percurso teve início quando eu era ainda estudante de graduação e bolsista no
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) no projeto de pesquisa
Experiência estética e transmodalidade: fundamentos cognitivos para museus acessíveis a
pessoas com deficiência visual, sob coordenação da Professora Virgínia Kastrup do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Núcleo
de Cognição e Coletivos (NUCC), em parceria com o Instituto Benjamim Constant (IBC).
Nesse projeto, buscávamos iniciativas de acessibilidade a obras de arte para pessoas com
deficiência visual em museus e centros culturais da cidade do Rio de Janeiro.
Acompanhávamos visitas de grupos de pessoas cegas e com baixa visão às exposições em que
estratégias acessíveis eram oferecidas. Experimentávamos com elas os dispositivos e
atividades para acessibilidade e avaliávamos sua eficácia na criação de condições para que
uma experiência estética no encontro com a arte fosse alcançada. A pesquisa de campo foi
acompanhada de um estudo teórico acerca do funcionamento cognitivo das pessoas com
22

deficiência visual, baseado na abordagem da cognição inventiva e nos estudos de produção de


subjetividade. Após o estágio em pesquisa e o fim da graduação, ingressei no mestrado, com o
intuito de continuar a pesquisa acerca da acessibilidade estética para as pessoas com
deficiência visual em museus de arte e centros culturais.
Estratégias para a acessibilidade de pessoas cegas e com baixa-visão vêm sendo
desenvolvidas em museus e centros culturais de diversos países do mundo desde a década de
80. Programas especiais de mediação, o toque em obras e reproduções táteis das obras
expostas são alguns dos exemplos do que vem sendo feito. No Brasil, as primeiras iniciativas
datam da década de 90, como é o caso do trabalho de Amanda Tojal desenvolvido em 1991,
“Museu e Público Especial”, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo
(MAC USP) (TOJAL, 1999). O movimento tomou mais força a partir da primeira normativa
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), que prevê que os bens e
acervos devem ser acessíveis a todo público que deseja usufruir (SARRAF, 2008, 2013).
Apesar disso, a questão da implementação de medidas acessíveis a pessoas com deficiência
visual mostra-se ainda incipiente, complexa e controversa quanto a seus objetivos, fazendo
com que o próprio conceito de acessibilidade permaneça um tanto obscuro.
Na cidade do Rio de Janeiro, o projeto Experiência estética e transmodalidade:
fundamentos cognitivos para museus acessíveis a pessoas com deficiência visual acompanha
alguns grupos de pessoas com deficiência visual a exposições acessíveis na cidade do Rio de
Janeiro. No ano de 2012, visitamos a exposição Hercules Barsotti – Além do olhar, na Caixa
Cultural, que contava com dispositivos táteis para a acessibilidade desenvolvidos por Viviane
Sarraf. Contudo, não houve avaliação das placas por pessoas cegas. Também participamos
ativamente do projeto de Extensão Encontros Multissensoriais, desenvolvido pelo Núcleo de
Cognição e Coletivos (NUCC), Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ e pelo
Núcleo Experimental de Educação e Arte do Museu de Arte Moderna, em parceria com o
Instituto Benjamin Constant. De 2011 a 2013, todo último sábado de cada mês, realizávamos
encontros de grupos heterogêneos de pessoas cegas e videntes no Museu de Arte Moderna do
Rio de Janeiro (MAM Rio). Nos Encontros Multissensoriais, a aposta era no toque nas obras
de arte, estratégias multissensoriais, mediação distribuída e trocas entre cegos e videntes
como medidas de acessibilidade. Os Encontros que acompanhamos naquele ano foram
Construindo a paisagem da minha casa na exposição Novas Aquisições, de Gilberto
Chateaubriand; Eco do meu corpo no mundo, em que foram exploradas outras obras da
mesma exposição; O que é uma cabeça?, percurso criado para a exploração das obras de
Alberto Giacometti; De outras formas, em que exploramos as obras da retrospectiva de
23

Ângelo Venosa; O museu vivo, em que tocamos as obras dos jardins do MAM; Paro-penso-
olho-movimento, em que tocamos as obras da exposição Tração Animal, de Raul Mourão; e
Universos plurais, em que exploramos as obras da exposição Humúsica e contamos com a
participação do artista Cabelo. A participação nos Encontros Multissensoriais foi marcante.
Nos encontros, contamos com a participação de profissionais de diferentes museus do Rio de
Janeiro e do Brasil. Voltaremos à experiência no MAM mais a frente.
Atualmente, o Centro Cultural do Banco do Brasil é a única instituição cultural que
possui um projeto regular de acessibilidade a pessoas com deficiência visual. O setor
responsável pela acessibilidade é o CCBB Educativo, que é composto por mediadores com
formações diferentes, o que favorece propostas interdisciplinares no trabalho com a arte. Na
busca pela inclusão da diversidade, o grupo Educativo acolhe pessoas com diferentes tipos de
deficiências, seja por meio de agendamento ou público espontâneo. Para eles, as ações
inclusivas devem abarcar diferentes maneiras de construir o conhecimento e de aproximar o
público das obras. Há uma mediadora interprete em LIBRAS e uma mediadora com
deficiência visual. Além disso, para toda grande exposição que passa pelo CCBB há a
elaboração de uma Estação Sensorial, que conta com dispositivos que estimulam diferentes
sentidos, aberta ao público em geral que deseja sentir a arte de maneiras outras para além da
visual2.
Neste mergulho na pesquisa sobre acessibilidade, exploramos com as pessoas cegas e
com baixa visão os dispositivos oferecidos pelas diferentes instituições culturais, avaliando
seu potencial. Após cada visita, a equipe de pesquisa produzia relatos de experiência de
campo, que eram compartilhados e discutidos. Alguns dispositivos explorados nas visitas
chamaram muito a atenção, como foi o caso das placas táteis que visavam reproduzir obras de
arte bidimensionais, como pinturas.
As placas táteis foram experimentadas por nós junto com as pessoas cegas pela
primeira vez na exposição Tarsila do Amaral: um percurso afetivo, e colocaram um problema
que investigamos ao longo do ano de 2012. As placas em alto relevo apresentaram grandes
dificuldades quanto à compreensão do que era tocado, principalmente para as pessoas cegas
congênitas. As imagens das placas não pareciam fazer sentido e nem corresponder à
audiodescrição da obra, que em geral acompanhava a exploração tátil. Tampouco eram
efetivas as placas com aplicação de diferentes texturas, que se apresentavam em um mesmo
plano, lado a lado. Essa experiência nos levou investigação de problemas cognitivos

2
Baseado no texto do site do CCBB Educativo. Disponível em: <http://www.ccbbeducativo.com.br/>. Acesso
em: 20 set. 2015.
24

específicos, como a formação de imagens mentais a partir da exploração tátil, as qualidades


das imagens mentais de pessoas cegas, e acerca das diferenças das imagens produzidas por
pessoas cegas congênitas e pessoas de cegueira adquirida.
Na tentativa de investigar as características cognitivas das imagens mentais de pessoas
cegas e sua relação com a exploração de dispositivos táteis para acessibilidade, elaboramos
um trabalho para a Jornada de Iniciação Científica (JIC) da UFRJ – Imagens mentais e
dispositivos táteis para a acessibilidade de pessoas cegas em museus e centros culturais – e
outro para o Congresso de Extensão (CONEX) da UFRJ – Construindo dispositivos táteis
para a acessibilidade de pessoas com deficiência visual em museus de arte e centros
culturais” – no ano de 2012. Para isso, realizamos estudos teóricos sobre os conceitos de
experiência estética (DEWEY, 2010) e de acessibilidade estética (ALMEIDA; CARIJÓ;
KASTRUP, 2010; KASTRUP, 2011; KASTRUP; VERGARA, 2012), sobre as diferenças
entre a percepção visual e tátil e sobre o processo de construção de imagens mentais por
pessoas cegas precoces e cegas tardias (VILLEY, 1914; HATWELL; STRERI; GENTAZ,
2000; HATWELL, 2003; KASTRUP, 2007, 2010; KASTRUP; CARIJÓ; ALMEIDA, 2012;
SACKS, 2010). Analisamos os relatos de campo produzidos pela equipe de pesquisa e
fotografias das placas táteis da exposição de Tarsila do Amaral. Ambos os trabalhos foram
produzidos em coautoria com o colega Paulo Alain Quérette. Minha monografia de Conclusão
de Curso em Psicologia – Imagens mentais e dispositivos táteis para a acessibilidade de
pessoas cegas em museus e centros culturais – consistiu em um desdobramento desses dois
trabalhos.
Com base nos estudos realizados, percebemos que para construir dispositivos táteis de
acessibilidade para pessoas com deficiência visual é importante atentar para as propriedades
específicas do tato e da visão, bem como para as diferenças cognitivas entre cegos congênitos
e tardios, no que concerne à construção de imagens mentais. A constatação do caráter
multissensorial destas imagens, bem como na articulação com processos cognitivos como
linguagem, atenção e memória visual, conduziu-nos a concluir que limitar a experiência com
a arte ao contato com dispositivos bidimensionais que utilizam apenas a experiência tátil não
seria a melhor proposta. O conceito de experiência estética iluminou a discussão sobre
acessibilidade e mostrou que dispositivos táteis bidimensionais de obras de arte visual podem
não consistir o melhor caminho para a criação de condições de possibilidade de experiência
estética, ou seja, para um verdadeiro acesso à dinâmica das forças que compõe a obra de arte.
25

As placas táteis nos pareciam pautadas na possibilidade na experiência de recognição3.


As experiências com outras estratégias, que levavam em conta a experimentação
corporal, a exploração de diferentes sentidos e a dimensão afetiva, como acontecia nos
Encontros Multissensoriais, apontavam outros caminhos. Nesses encontros, a questão da
acessibilidade estética parecia ser ampliada em relação ao tato e levada para o corpo todo, o
que acabava por mobilizar uma dimensão mais profunda da experiência. Esses primeiros
resultados foram apresentados para a equipe responsável pela acessibilidade do CCBB na
primeira reunião de devolução da pesquisa, em 2012.
O conhecimento de outros programas de acessibilidade no Brasil e no exterior, e o
contato direto com as pessoas com deficiência visual proporcionaram encontros muito
potentes, que me afetaram e ampliaram minha forma de pensar. A amizade que nasceu com
uma moça francesa com baixa-visão, Nathalie Joncour, que conheci no contexto da pesquisa,
me ajudou a descobrir e refletir sobre outras propostas para a relação entre deficiência visual e
arte. Em viagem à Paris, no início de 2013, encontrei com Nathalie, que me apresentou o
programa de acessibilidade para pessoas com deficiência visual no museu de ciências de
Paris, a Cité des Sciences et de l‟Industrie, no qual ela trabalha. Acompanhei durante um dia
um grupo de professores de crianças cegas que vinham de várias partes da França aprender
sobre o trabalho em acessibilidade realizado no museu. Visitamos a exposição permanente,
explorando os recursos sonoros e táteis-cinestésicos oferecidos para todos os públicos,
inclusive o público deficiente visual. Lá é desenvolvido também um trabalho com réplicas
táteis em resina, além de edições táteis de livros explicativos sobre exposições temporárias e
temas diversos, como astronomia e arquitetura.
Nesta mesma ocasião, Nathalie me levou a uma oficina de dança contemporânea
oferecida a pessoas com deficiência visual em uma escola de dança de Paris, ministrada por
dois bailarinos que desenvolviam um programa em acessibilidade a pessoas cegas e com
baixa visão no Centre Georges Pompidou. Esta experiência foi muito marcante. Ali eu pude
experimentar o corpo em movimento de olhos fechados, que curiosamente pareceu mudar de
forma. A localização e deslocamento no espaço, o contato com seus elementos e com o outro
se deu de maneira muito diferente do habitual, causando-me estranhamento. A sensação era de
estar criando um novo corpo, mais espalhado, atento e receptivo, mas também menos
equilibrado, de estrutura instável.
A dança de olhos fechados também me levou à recordação de um dos Encontros

3
Segundo Kastrup (2007) as experiências de recognição são aquelas que permitem o reconhecimento de um
objeto. Caracterizam-se por sua utilidade na vida prática e por assegurar nossa adaptação no mundo.
26

Multissensoriais que participei, em que fui de braços dados com quatro pessoas cegas do
MAM até o metro da Cinelândia. Isto me fez sentir a dilatação do meu corpo, onde cada uma
das pessoas parecia uma parte desse grande corpo criado com nossa união, contribuindo com
suas percepções para evitar o choque com os possíveis obstáculos do percurso. Houve ainda
outro, durante o qual tive a experiência de utilizar a venda para experimentar o lugar do não
ver, sentindo seus efeitos na perda do equilíbrio e mudanças na noção da estrutura corporal.
Todas essas experiências aguçaram o meu desejo de seguir explorando as conexões entre
acessibilidade, deficiência visual e arte, e a pensar modos de acessar a experiência estética
com arte por meio de outros recursos, para além da exploração de imagens táteis.
Em 2013, passamos a organizar os grupos de pessoas do Instituto Benjamim Constant
para a ida às exposições. O agendamento do CCBB passou a ser com o nosso grupo da
pesquisa, que divulgava a visita na Oficina de Corpo e Movimento, coordenada por Laura
Pozzana e na Oficina de Fotografia, coordenada por Willy Rulff, que fazem parte do projeto
de pesquisa e acontecem no IBC, bem como na Oficina de Cerâmica. Também convidávamos
por telefone pessoas que eram parceiras desde os Encontros Multissensoriais. Marcávamos o
encontro no IBC e seguíamos juntos para o CCBB.
Em 2015, publicamos o artigo Aesthetic Accessibility and Tactile Images of Works of
Art (GUERREIRO; KASTRUP, 2015), no periódico Terra Haptica Revue, apresentando uma
crítica à utilização de placas táteis como dispositivos de acessibilidade. Esse artigo também
foi apresentado na Blind Creations Conference, na Royal Holloway University, em Londres,
em junho de 2015. Ainda em 2015, coorientei o trabalho das bolsistas de pesquisa Ana Saad e
Cecília Athias – Aproximação entre cegos e videntes a partir da arte abstrata – para a JIC da
UFRJ, que foi indicado para publicação de resumo expandido na Revista do CFCH em 2016.
Esse trabalho versa sobre a última exposição que visitamos no CCBB, em que foi trabalhado
com as pessoas com deficiência visual o tema da arte abstrata.
Percebendo o processo – ainda em curso – do projeto de acessibilidade a pessoas com
deficiência visual do CCBB, que começou com as placas táteis e segue mudando, cada vez
mais na direção da criação de condições para o acesso à experiência estética com arte,
desenvolvemos este trabalho de mestrado. Para nós, é importante dar visibilidade ao que vem
sendo feito nesse sentido da acessibilidade no Rio de Janeiro, apresentando os passos dessa
cartografia, que muito se transformou ao longo de três anos.
A dissertação apresenta a seguinte estrutura: para começar, apresentamos uma breve
análise de implicação, onde verso sobre os múltiplos processos que emergiram e se
desenrolaram no decorrer do trabalho, tornando-o possível. Como um método para ser
27

experimentado e não somente aplicado, a cartografia nos convida a colocar em questão o


lugar dos participantes de uma pesquisa - pesquisadores e pesquisados – e os afetos que nos
atravessam no próprio pesquisar. Em uma pesquisa-intervenção, os pesquisadores não
somente intervêm, mas também são mobilizados, afetados e transformados ao longo do
trabalho. Narro alguns dos efeitos da pesquisa sobre meu próprio corpo.
No primeiro capítulo, fazemos uma breve apresentação da questão da acessibilidade a
pessoas com deficiência visual em museus de arte e centros culturais no Brasil. Para isso,
recorremos aos trabalhos de Regina Cohen, Cristiane Duarte e Alice Brasileiro (2012),
Viviane Sarraf (2008, 2012, 2013), Amanda Tojal (1999, 2010) e Virgínia Kastrup (2007,
2011). Discutimos o conceito de acessibilidade para pessoas cegas e com baixa visão às obras
de arte e especificamos três tipos de acessibilidade – acessibilidade física, acessibilidade à
informação e acessibilidade estética (ALMEIDA; CARIJÓ; KASTRUP, 2010; CARIJÓ;
MAGALHÃES; ALMEIDA, 2010). Focalizamos nosso interesse no conceito de
acessibilidade estética (KASTRUP, 2011; KASTRUP; VERGARA, 2012; VERGARA;
KASTRUP, 2013). Também discutimos os estudos de Fiona Candlin (2003, 2004) acerca da
proibição do toque em obras de arte, que analisam a dimensão política da acessibilidade em
instituições artísticas. Apresentamos também o projeto Encontros Multissensoriais, uma
iniciativa no campo da acessibilidade a pessoas cegas e com baixa-visão que aconteceu no
Museu de Arte Moderna do Rio, destacando seu caráter experimental, potente e inovador. Em
seguida, aprofundamos a diferença entre informação e experiência (LARROSA, 2014),
lançando mão do conceito de experiência estética proposto pelo filósofo John Dewey (2010)
para a reflexão sobre o que desejamos produzir no encontro com a arte.
No segundo capítulo levantamos algumas especificidades cognitivas das pessoas com
deficiência visual, destacando sua heterogeneidade. Apontamos a importância da percepção
háptica, ou seja, a modalidade tátil aliada aos movimentos exploratórios (HATWELL, 2000,
2003), como o modo predominante de conhecer das pessoas com deficiência visual, e
discorremos acerca das propriedades específicas dos sentidos tátil e visual (VILLEY, 1914,
GIBSON, 1962, HATWELL; STRERI; GENTAZ, 2000; HELLER; GENTAZ, 2014;
KASTRUP, 2007, 2011, 2012). Discutimos também algumas questões que emergiram durante
o estudo bibliográfico, como a relação da noção de perspectiva com as imagens táteis
bidimensionais (HELLER; GENTAZ, 2014, HATWELL; MARTINEZ-SAROCCHI, 2000).
Recorremos aos textos de Dannyelle Valente e Bernard Darras (2010), Dannyelle Valente
(2012), Phillipe Claudet (2011), Virgínia Kastrup (2007, 2013) e Raquel Guerreiro e Virgínia
Kastrup (2015) para discutir acerca das imagens táteis. Baseamo-nos também no trabalho de
28

Claire Petitmengin (2007) para explorarmos os conceitos de felt meaning e transmodalidade e


relacioná-los ao trabalho de tradução das obras de arte com vistas à acessibilidade estética.
O terceiro capítulo é dedicado à descrição e análise das estratégias utilizadas para a
acessibilidade estética nas visitas às exposições no CCBB de março de 2012 a março de 2015.
O capítulo é dividido em oito exposições, das quais cinco são analisadas detalhadamente e
outras três são indicadas enquanto bifurcações no trabalho em acessibilidade do CCBB. A
apresentação de cada exposição é dividida em subitens que envolvem uma breve descrição da
exposição, dos artistas ou movimentos artísticos; a descrição da visita com o grupo com
pessoas com deficiência visual e as estratégias e dispositivos utilizados; fotos de algumas
obras e dispositivos; e análise dos dispositivos e seus efeitos. Apresentamos também neste
capítulo breves relatos das duas reuniões de devolução da pesquisa para o grupo Educativo
CCBB.
As considerações finais destacam as transformações no modo de fazer acessibilidade
no Centro Cultural do Banco do Brasil que apontam a busca de novos caminhos no campo da
acessibilidade estética para pessoas cegas e com baixa visão.
29

ANÁLISE DE IMPLICAÇÃO COMO FERRAMENTA METODOLÓGICA

CARTOGRAFIA: SER “INTERVIDA”

não se escreve impunemente: a escrita nos transforma


Cristovão Tezza

Em determinado momento da escrita deste trabalho, senti um incômodo. Não sabia


precisamente do que se tratava, mas o texto que produzia – minha dissertação – não me
agradava. Poderia ser apenas insegurança. Talvez. Mas tinha a impressão de que era algo para
além disso. Sentia que o que eu escrevia não me tocava, não parecia ter vindo de mim: um
modo de escrever distanciado, objetivo e asséptico, que não tinha a ver com o modo como a
pesquisa havia sido feita.
Essa percepção fez emergir questões metodológicas, dentre outras, do meu trabalho:
como poderia ser o meu texto cartográfico se todos os afetos constituintes e emergentes no e
do campo estavam sendo invisibilizados? Se foi mergulhando na experiência de estar em
campo que aprendi a fazer pesquisa, onde estavam seus efeitos? Estariam claros na escrita? E
a questão que havia produzido o desejo de pesquisar, de onde ela veio e para onde estava
indo? Perdida no meu próprio processo, resolvi voltar o olhar para ele de modo mais atento.
Seguindo as pistas do método cartográfico (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2010;
PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2014), as coordenadas de Rolnik (2011) e do
PesquisarCOM (MORAES; KASTRUP, 2010), fui tentando me encontrar. Essas direções
serão também encontradas ao longo de todo o texto desta dissertação.
Pozzana e Kastrup (2010) advertem para a distinção entre as ideias de processamento
e processualidade que podem advir da noção de processo. As autoras comentam que a ideia de
processamento está atrelada à pesquisa enquanto prática de coleta e análise de informações de
objetos já dados, o que embasa a pesquisa científica cognitivista. Já a processualidade, noção
na qual se calca o método da cartografia, propõe a produção de dados e análise da
investigação de um processo em curso, com o desafio de “começar pelo meio, entre
pulsações” (p. 58). Esta seria uma sina do cartógrafo. Com esta mudança conceitual, que
propõe o deslocamento do modo como se concebe a pesquisa científica para uma nova forma,
não somente de pesquisar, mas também de ser e fazer mundo, surge a questão: nesse processo,
que pulsações seriam essas? O que pulsava e o que pulsa? Houve produção de algo novo?
Na busca por clarear essas questões e, consequentemente, o processo e a escrita do
trabalho de pesquisa, vi como caminho possível a utilização da ferramenta da análise de
30

implicação4. A análise de implicação, na busca de colocar em questão o nosso lugar na


produção de um saber e os efeitos de nossas práticas, “traz para o campo da análise
sentimentos, percepções, ações, acontecimentos até então considerados negativos, estranhos,
como desvios e erros que impediriam uma pesquisa/intervenção de ser bem sucedida”
(COIMBRA; NASCIMENTO, s/d, p. 3). Por ser a cartografia um método de pesquisa-
intervenção, ou seja, que considera os pesquisados, pesquisador(es) e resultados como efeitos
coemergentes do processo de pesquisar (PASSOS; BARROS, 2010), procuro agora fazer um
mergulho nas intensidades que inundam a minha experiência de pesquisar. Uma abertura aos
acontecimentos e elementos muitas vezes invisibilizados mas que, como no caso desse
incômodo no processo de escrita, pode abrir novas questões e forçar-nos a pensar. Sinto que a
escrita me convoca a dar voz a estas intensidades e fluxos que, ao invés de invalidarem,
compõem com o trabalho desta pesquisa, nesse caminho que traça no próprio caminhar.
Aqui neste “espaço-entre” – entre a introdução e o primeiro capítulo, espaço de pausa
e respiro – descubro e disponho meu “inter-esse” (STENGERS, 1993; DESPRET 2004 apud
SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014) para a pesquisa com pessoas com deficiência visual. A
zona de “inter-esse”, seria uma zona de novidade, criada a partir da multiplicação dos pontos
articulados de conexão de diferenças. No caso de uma pesquisa, o “inter-esse” é o que dá a
liga entre seus participantes – pesquisadores e pesquisados. “O que se busca é a constituição
de um plano de experiência compartilhada, em que as singularidades dos encontros que se
fazem presentes no campo concorram para multiplicar as possibilidades de conexões entre
sujeitos e mundos” (SADE; FERRAZ; ROCHA, 2014, p. 68). Sinto que neste trabalho, relatar
como esta zona se recheou (e ainda recheia) merece destaque.
Procurei fazer com que minhas intensidades e as das pessoas com deficiência visual
com as quais trabalhei passassem a expressar-se juntas. Por isso, narro aqui o processo desse
encontro, não somente com as pessoas, mas também com os temas da deficiência, cegueira,
acessibilidade e arte. Um encontro importante, pois encarnado. Descubro e disponho à vista
aqui também o meu corpo, que ao abrir-se para a experiência do PesquisarCOM abriu também
outros processos e produziu novos corpos. Não só intervim, mas também fui “intervida”.
Inter-vida.

4
A noção de implicação foi criada por René Loureau e Georges Lapassade no campo da Análise Institucional,
uma abordagem teórica vinda da França nos anos 60 e 70, surgida a partir do movimento da psicoterapia
institucional na década de 50. Com a ampliação dos conceitos psicanalíticos de transferência e
contratransferência para o campo institucional, a análise de implicação colocaria em questão o saber produzido
por especialistas, calcado nos conceitos de objetividade e neutralidade cientificas. Na contramão do
“intelectual neutro-positivista”, os autores propõem a noção de “intelectual implicado”, que analisa o lugar que
ocupa na produção de conhecimento, relações e a legitimidade de suas práticas (COIMBRA; NASCIMENTO, s/d).
31

VER OU NÃO-VER: DA DICOTOMIA À PERSPECTIVA

Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos


que pedem passagem, dele se espera basicamente que
esteja mergulhado nas intensidades de seu tempo e que,
atento às linguagens que encontra, devore as que lhe parecerem
elementos possíveis para a composição das cartografias que
se fazem necessárias. O cartógrafo é, antes de tudo,
um antropófago.

Suely Rolnik

Quando falamos em deficiência visual, em um primeiro momento podemos pensar em


dois tipos de pessoas: as que veem e as que não veem. Ao explorar um pouco mais esse
campo, percebemos ainda um terceiro: as que possuem baixa-visão, ou seja, que veem pouco.
Contudo, dentro do grupo dos que não veem, há os que nunca viram, os que já viram, aqueles
que perderam a visão quando crianças, aqueles que ficaram cegos já adultos, de forma
gradual, de modo abrupto etc. Dentre as pessoas que têm baixa visão, há aquelas que possuem
baixa acuidade visual5. Há a acuidade que varia de acordo com a luminosidade, as pessoas
que têm pouco alcance de campo visual, aquelas que percebem cores, vultos, as que possuem
visão central, as que preservam a visão periférica... Enfim, por esses exemplos nos damos
conta da grande heterogeneidade do grupo de pessoas com deficiência visual, e essa
multiplicidade nos leva a um importante redirecionamento: do ver ou não-ver passamos ao ver
e não ver.
É possível, então, ver e não ver ao mesmo tempo? O filósofo Jacques Derrida (2012)
aponta para o “enceguecimento”, ou seja, o não-ver, como condição de ver. A perspectiva, que
seria o movimento de oscilação entre ver e não-ver, é tanto cega quanto vidente, o que faz
com que a cegueira seja condição da organização do campo do visível. Para o autor, a
perspectiva deve cegar-se para tudo o que não faz parte da zona que ela seleciona para ver,
criando ao seu redor toda uma zona de enceguecimento. Ele afirma que “um ser finito só pode
ver em perspectiva e, portanto, de maneira seletiva, excludente, enquadrada, no interior de
uma moldura, de uma borda que exclui” (DERRIDA, 2012, p. 73). Sim, para recortarmos
imagens segundo algum interesse, é preciso colocar o que se vê em perspectiva, abrir mão de
ver o que não foi selecionado para poder ver o que nos parece ser mais interessante e/ou
importante.
Mesclando a ideia desse ver e não ver ao pesquisar, esbarramos em um ponto que, por
muito tempo, esteve situado na minha zona de enceguecimento. Contudo, em um determinado

5
Acuidade visual consiste no grau de aptidão do olho para discriminar os detalhes espaciais, a forma, contorno e
detalhes dos objetos.
32

momento da vida, esta questão me saltou aos olhos: a deficiência. Ou melhor: a deficiência
me fez tremer as mãos, hesitar ao caminhar, sentir meu equilíbrio abalado e as pernas fracas.
Insistindo em pintar meus joelhos de vermelho, em muitas das vezes em que saía na rua, a
deficiência passou, cada vez mais, a atrair olhares alheios e fez-me sentir vergonha. Alguns
me dizem que ela sempre me acompanhou, que sempre foi visível. Mas parece que eu sempre
me recusei a ver, a releguei e a mantive restrita à minha zona de enceguecimento.
A partir de uma piora, os sintomas tornaram-se “ininvisibilizáveis”, tão visíveis aos
olhos dos outros que acabaram por transbordar minha zona do enceguecimento e escorrer à
minha própria zona de visibilidade. Assim, minha deficiência instalou-se bem no centro da
minha visão. De tão grande que se tornou, fui forçada a vê-la e, por algum tempo, tornei-me
inteira essa deficiência. Vesti sua camisa. De tão enquadrada na visão da deficiência enquanto
falta, enquanto déficit, acabei por transformá-la em uma camisa de força: sou deficiente e
nada posso fazer quanto a isso. E a pessoa que existia para além dos gestos e movimentos
doentes, acabou por se recolher à zona do invisível.

VER E NÃO VER: ABERTURA AOS ENCONTROS - COM-FIAR

A razão é a arte de organizar bons encontros


Spinoza

A minha deficiência – que é motora e degenerativa – fez com que eu mesma reduzisse
a muito pouco as minhas possibilidades. O medo do que poderia acontecer comigo fez com
que não conseguisse ver mais nada. Presa na camisa de força de um determinado modo de ver
– o da deficiência enquanto incapacidade – eu passei também a me sentir assim: incapaz.
Incapaz de andar sozinha sem cair – e um dia, talvez, incapaz de andar – incapaz de terminar
a faculdade e atuar profissionalmente, incapaz de ser vista enquanto qualquer coisa para além
de uma deficiente física, alguém estranha e digna de pena (“Coitada, nessa idade já tá
assim?”; “O que será que aconteceu, foi atropelada por um caminhão?”; “Por que sua perna é
assim, meio tan-tan?”).
Na época em que eu recebi o diagnóstico de ataxia cerebelar (ainda em aberto), estava
chegando de uma temporada de intercâmbio em Paris (França). Já me sentindo estranha por
voltar ao Brasil depois de um ano fora, fui devastada por essa sentença e sentimentos. Estava
já no final da faculdade, mas a maioria dos meus amigos já estava formada e eu me sentia
muito só. Também por já estar no final do curso de Psicologia, chegava o momento da escrita
do Trabalho de Conclusão de Curso, o que me fazia gelar por não saber se conseguiria
33

escrever. O interesse por arte me levou até a professora Virgínia Kastrup, a quem perguntei se
me orientaria. “Sim, podemos ver isso sim. Mas sabe, abri seleção para estágio em pesquisa,
por que você não se inscreve? É sobre arte e deficiência visual. Assim você já pode ir
estudando pra definir melhor seu tema...” E foi mais ou menos desse modo que se deu o
convite para uma virada.
Passei na seleção e passei também a frequentar o IBC, um dos campos da nossa
pesquisa e onde temos uma sala de estudos. Curiosamente, desviando dos locais aos quais
havia me limitado – Universidade e casa – o IBC foi, durante muito tempo, o lugar onde eu
mais me sentia à vontade para circular. Lá eu passava grande parte do meu tempo, lá onde as
pessoas não me viam. Vi no não-ver uma vantagem, pois me sentia protegida dos olhares que
me faziam ter vergonha do meu corpo e dos meus movimentos, ou seja, dos olhares que me
faziam envergonhar-me de ser. Lá eu era, e sendo, eu resgatava a pessoa que existia por trás
da deficiência. O não-ver, que atravessava de algum modo a maioria das pessoas daquele
lugar, não era por mim visto como deficiência. Não apenas uma eficiência, o não-ver tornou-
se uma potência, que me acolhia, libertava-me e permitia-me não me esconder.
Parar de me esconder deu-me a possibilidade de encontrar: conhecer, trocar com as
pessoas que circulavam naquele grande instituto e também em outros espaços que
compunham o campo de nossa pesquisa em acessibilidade à arte, como museus e centros
culturais (onde eu também não ousava mais circular). Ao longo do estágio em pesquisa,
muitos bons encontros6 foram acontecendo. Encontros com pessoas, com autores, com
histórias, com obras de arte, com a diferença. Encontros que nos transformam, e que abrem
para novas possibilidades: outros modos de ver e perceber – o outro, a arte, a si e o mundo –
de ser. Nesse processo, fui notando que a deficiência pode ficar muito pequena quando nos
propomos a deixar que outras coisas – interessantes e tantas vezes esquecidas – também
apareçam, que se desloquem da zona de enceguecimento para a visibilidade. Afinal, somos
pessoas com deficiência, mas não nos reduzimos a isso e, nesse caso, o não-ver das pessoas
cegas fez com que eu pudesse resgatar a mim mesma e enxergar-me de outra forma.
O fazer-pesquisa se mostrou como um caminho possível, quando eu não conseguia
caminhar bem, quando pensava que eu nunca mais poderia caminhar sem cair. Perdida e sem
saber o que fazer, confiei. Confiei na abertura a uma nova forma de ver – o mundo, a
deficiência, os cegos e a mim mesma – pois a visão de antes já não se sustentava mais. Era
uma escolha: ou me afundaria no lugar de deficiente, enquanto alguém a quem falta uma

6
Bons encontros no sentido Spinoziano, aqueles que aumentam nossa potência de agir.
34

capacidade, um ser limitado, ou escolhia me despir desta ótica e criar algum outro lugar pra
mim. E entre todas estas linhas, escolhi as linhas de fuga7, passando dos movimentos doentes
aos movimentos instituintes. “A aposta é de que a confiança na experiência implica a
promoção de uma experiência compartilhada que amplia nossa potência de agir‟‟ (SADE;
FERRAZ; ROCHA, 2014, p. 70). Confiei: fiei COM os cegos novos caminhos.

OUTROS MODOS DE VER

Assim como os cegos, eu sou marcada no corpo. Assim como eles, não via, mas era
vista. Assim, como muitas pessoas cegas, eu tive que me despedir de muita coisa que
acreditava fazerem parte de mim, como hábitos e antigos amigos. A deficiência não sai de
nós. Ela insiste e, por mais que tentemos esquecer, há sempre algo para nos lembrar que ela
está ali, conosco, em nós. Mas, seria o caso de invisibilizá-la?
Creio que ela pode se tornar mais ou menos visível, para nós e para os outros, e pode
aparecer de modo mais leve, a partir do momento em que outras coisas também aparecem.
Sinto que todo esse caminho de descoberta (da pesquisa, da cartografia, de outros possíveis)
foi importante também por isso: há pessoas cegas, mas que também são ceramistas,
musicistas, mães, mediadoras em museus... e uma pessoa atáxica que faz pesquisa, que anda
de bicicleta, que viaja. Aqui, a deficiência passa a ser somente um algo a mais ou a menos,
mais uma das infinitas coisas que se pode ser ou não ser. Contudo, se ela vier na frente de
tudo (que foi o modo como escrevi acima, o que se faz sutil, mas presente), a situamos em
primeiro plano, no centro da nossa visão, fazendo com que todo o resto fique escondido atrás.
Mas se embaralharmos um pouco as qualidades, é possível que outras coisas ganhem mais
visibilidade. Isso é viver com a deficiência, e não apesar dela: aceitar o que ela traz e compor
com isso, ao invés de ser subtraído. Olhar para ela com carinho, se apropriar. Inventar linhas
de fuga, produzir novos corpos, outros modos de perceber, afirmando a diferença. E, é nesse
sentido que o trabalho de acessibilidade à arte tem se mostrado um importante caminho. Mais
do que uma escolha, sinto-me convocada: afirmar a diferença e outros modos de ser em um
mundo tão homogeneizante é um ato político.

7
“Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia” (DELEUZE, 1997 apud ZOURABICHVILI, 2004, p.
29). Fugir como movimento, fazer fugir – não mais aceitar o lugar da falta, instaurar novos movimentos
instituintes, de resistência.
35

CAPÍTULO I

1 ACESSIBILIDADES E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: O QUE DESEJAMOS


PRODUZIR COM O ACESSO ÀS OBRAS DE ARTE?

A elaboração de estratégias de acessibilidade em museus e instituições culturais para


pessoas com deficiência é um acontecimento relativamente recente. Em alguns países da
Europa, essas iniciativas começaram em meados dos anos 80, muitas vezes pautadas pelo
Movimento de Inclusão Social, liderado por pessoas com deficiência (SARRAF, 2008). No
Brasil, apesar da discussão e desenvolvimento de programas, como o Museu e Público
Especial, no MAC USP nos anos 90, iniciativas nesse campo tomaram força mais
tardiamente, com a edição da primeira instrução normativa feita pelo IPHAN, em 2003. A
normativa estabelecia os critérios, métodos e instrumentos para a análise de condições de
acessibilidade de bens culturais em museus do país, bem como projetos e programas de
intervenção para a acessibilidade de pessoas com deficiência nessas instituições (COHEN;
DUARTE; BRASILEIRO, 2012).

As soluções adotadas para a eliminação, redução ou superação de barreiras na


promoção da acessibilidade aos bens culturais imóveis devem compatibilizar-se com
sua preservação e, em cada caso específico, assegurar condições de acesso, de
trânsito, de orientação e de comunicação, facilitando a utilização destes bens e a
compreensão de seus acervos para todo o público. (IPHAN, Instrução Normativa nº
1, 2003).

Essa normativa, além de estar presente no Estatuto de Museus (Lei nº 11904, de 14 de


janeiro de 2009), fez com que o tema da acessibilidade ganhasse relevância em diversos
eventos posteriores, como no 4º Fórum Nacional de Museus, no 1º Encontro de Educadores
do Instituto Brasileiro de Museus (ambos no ano de 2010), e no 1º Seminário Estadual de
Acessibilidade em Museus e Instituições Culturais, realizado no Rio de Janeiro em 2011. Com
o intuito de nortear as práticas em acessibilidade, foi publicado o 2º Caderno Museológico,
intitulado Acessibilidade a museus, em 2012. Esse material busca apresentar um olhar
específico sobre esse tema, com informações sobre as diferentes deficiências e orientações
para o trabalho multidisciplinar nas questões da acessibilidade em espaços museais e
democratização do acesso à cultura (COHEN; DUARTE; BRASILEIRO, 2012).
As primeiras mudanças de acessibilidade incidiram sobre barreiras físicas, que
impossibilitavam o acesso do público deficiente a esses espaços. Essas medidas foram
baseadas no Desenho Universal (ABNT – NBR 9050/2004). Porém, pensando o conceito de
acessibilidade de modo ampliado, vemos que o trabalho da acessibilidade deve se expandir
36

para além do acesso físico, abarcando também dimensões sensoriais e cognitivas, já que
“além da deficiência física (motora ou neuromotora), há também as pessoas portadoras de
deficiência sensorial (auditiva e visual), intelectual ou transtornos mentais” (TOJAL, 2010).
Sobre isso, Cohen, Duarte e Brasileiro (2012, p. 21) pontuam que:

Se pensarmos nos museus como lugares de cultura aos quais todos devem ter acesso,
neles encontraremos de forma mais marcante a premência de uma
polissensorialidade. As cenas de uma exposição colocam-se à disposição do público
visitante através de percursos que podem ou não se concretizar satisfatoriamente por
meio da visão, do tato, da audição e da mobilidade.

Contudo, apesar da discussão desse tema estar na agenda das instituições culturais
brasileiras, sabemos que a livre circulação de pessoas com deficiência nestes espaços está
longe de ser uma realidade. A complexidade do conceito de acessibilidade exige mudanças em
mais de um setor do museu ou espaço cultural, o que muitas vezes pode aparecer como um
obstáculo à sua própria implementação. Na tentativa de atender às diferenças, “esse conceito
trabalha com uma forma de concepção de ambientes, produtos e serviços que considerem o
uso de todos os indivíduos, independente de suas limitações físicas e sensoriais” (SARRAF,
2010, p. 156). A entrada de um público não convencional nesses espaços também pode causar
estranhamento, tanto em quem frequenta quanto em quem trabalha nestas instituições.
Nos anos 80, a museóloga Waldisa Rússio, diretora do extinto Museu da Indústria,
Comércio e Tecnologia de São Paulo, teceu um comentário acerca da exposição Percepção e
criação, que abordava a questão da participação de pessoas com deficiência na economia do
país. Nesta ocasião, ela comentou a reação da equipe do museu ao receber pessoas que não
enxergavam: “A maioria das pessoas que trabalham em museu, [...], parecia refratária à ideia
de cegos frequentando tais estabelecimentos porque „museu foi feito para videntes‟. O que é
verdade, mas não toda a verdade.” (CARDOSO, 2012, p. 43).
Assim, a elaboração de estratégias para acolher e também promover o acesso às obras
de arte a pessoas cegas e com baixa visão em instituições artísticas passou a ser cada vez mais
discutida por profissionais que atuam na esfera cultural do Brasil. Para além das mudanças no
espaço físico das instituições e no modo como os conteúdos das exposições são difundidos, há
outro tipo de acessibilidade que precisa ser levado em consideração. Pelo caráter quase
exclusivamente visual das obras de arte em geral, como tornar acessível a uma pessoa que não
vê uma pintura ou uma fotografia? Ou mesmo uma escultura, se há, na grande maioria das
vezes, a proibição do toque em obras? Carijó, Magalhães e Almeida (2010, p. 175) discutem
essa questão e afirmam que:
37

[...] receber pessoas que apresentam perda parcial ou total do sentido


visual requer não somente uma reorganização do espaço físico do museu – algo já
custoso – mas, o que é um desafio ainda maior, requer também a invenção de
estratégias que viabilizem a apreciação, por pessoas sem visão, de obras de artes
plásticas e visuais.

Para isso, programas especiais de mediação e reproduções táteis de obras de arte visual
são alguns dos exemplos do que vem sendo criado para acessibilidade ao público cego e com
baixa visão nos museus e centros culturais. O toque a obras de arte como esculturas, objetos e
instalações também tem sido discutido, mas ainda apresenta resistência por parte dos
curadores responsáveis pelos acervos e exposições temporárias. Além disto, um grande
desafio nesse campo é a criação de estratégias e dispositivos capazes de traduzir, para aqueles
que não veem, a expressividade estética de obras como pinturas, desenhos, gravuras,
fotografias e esculturas.
Em C de cultura, de seu abecedário, Deleuze (1997) comenta que quando vai a uma
exposição de arte ou ao cinema, não está interessado em cultura, mas em encontros. E estes
encontros, mais do que com pessoas, são com obras. Kastrup (2010) comenta a fala do
filósofo, pontuando que quando vamos a uma exposição de arte, estamos em busca “de
experiências e de aprendizagem, e não de informação e de um saber pronto para ser absorvido
e consumido” (KASTRUP, 2010, p. 39). Ou seja, quando vamos ao encontro da arte,
procuramos experiências que nos surpreendam, que nos tirem do lugar e “que desencadeiem
em nós mesmos processos de criação” (KASTRUP, 2010, p. 39). Essa reflexão nos leva a
recolocar a questão da acessibilidade e, apoiados no conceito de experiência estética do
filósofo John Dewey (1934), buscamos trabalhar com o conceito de acessibilidade estética.
Segundo Guerreiro e Kastrup (2015), ao falarmos de acessibilidade estética, apontamos na
direção do desejo de sermos afetados pela força das obras e interrogados por seus enigmas, o
que pode levar a uma experiência que tenha potência e intensidade para nos surpreender e
fazer pensar. Com a pessoa com deficiência visual não é diferente.

1.1 ACESSIBILIDADE E DEFICIÊNCIA VISUAL EM MUSEUS DE ARTE E


CENTROS CULTURAIS

Tendo em vista que diferentes estratégias devem ser implementadas para que os
museus de arte e centros culturais se tornem acessíveis a pessoas com deficiência visual, e a
ausência de uma forma definida que indique como fazê-lo, o termo acessibilidade tende a ser
usado de modo amplo e indiferenciado. Carijó, Magalhães e Almeida (2010) propõem duas
38

direções que nos auxiliariam nesta discussão: o acesso ao espaço físico e o acesso às obras de
arte. O segundo ponto proposto pelos autores – o acesso às obras – é ainda problematizado e
dividido em dois níveis. O primeiro nível diz respeito ao acesso à informação do que está
sendo exposto e o segundo nível apontaria para o acesso direto à obra de arte.
Almeida, Carijó e Kastrup (2010) enumeram três tipos de acessibilidade para o
público deficiente visual em instituições de arte: a) a acessibilidade física; b) a acessibilidade
informacional ou comunicacional; c) a acessibilidade estética, que seria o acesso à experiência
de encontro com a arte. Ao adotarmos a divisão proposta pelos autores, discorremos
brevemente sobre cada tipo de acessibilidade, apresentamos a discussão sobre as diferenças
entre o acesso à informação e o acesso à experiência estética, a fim de clarear as condições
que desejamos produzir para o acesso a um verdadeiro encontro com a arte.

1.1.1 A acessibilidade física

No que concerne às estratégias de acessibilidade física para deficientes visuais em


museus e centros culturais, Sarraf (2012), aponta para a necessidade de um projeto
arquitetônico e expográfico livre de barreiras de acesso, circulação e fruição. Para isso, podem
ser adotadas medidas de sinalização com informação multimodal (sonora, gráfica, tátil e
símbolos), que possua contraste e tamanhos que proporcionem acuidade adequada para leitura
de pessoas com baixa visão. Para um bom deslocamento por esses espaços das pessoas que
não enxergam, uma alternativa é a instalação de pisos táteis, que consistem em rotas
desenhadas no chão em alto relevo, por onde os cegos se guiam pela sensação dos pés. O piso
tátil acompanha todo o trajeto de um espaço a outro, construindo um caminho a ser seguido.
Segundo Lopes e Lopes (2010, p. 24), “o projeto do piso tátil deve considerar um ponto de
partida para cada uma das rotas desenhadas, que serão construídas preferencialmente por
linhas retas e ângulos para facilitar o deslocamento e permitir a volta ao ponto inicial”. Nesse
caso, trajetos em curvas devem ser evitados. Maquetes e mapas táteis dos estabelecimentos
também têm se mostrado estratégicos no que diz respeito à localização espacial e ao
deslocamento autônomo das pessoas com deficiência visual.

1.1.2 A acessibilidade informacional ou comunicacional

Esse tipo de acessibilidade diz respeito ao acesso à informação e às questões


comunicacionais e prevê a disponibilização de um site acessível às pessoas com deficiência
39

visual que contenha alternativas de tamanho de fonte; contraste de luz e cores; opção de
áudio; e orientações e informações sobre os espaços e serviços existentes nessas instituições.
Também sugere-se o uso do Braille em etiquetas indicativas, folders e textos referentes às
exposições, além de outros recursos como audioguias e audiodescrição do espaço e obras
expostas.
Quando falamos de acesso à informação, referimo-nos também às informações sobre a
história da edificação do museu ou centro cultural, história da arte, dos movimentos artísticos
e da vida do artista da exposição em questão. Isso pode ser atingido em visitas guiadas, por
meio de descrições verbais das obras, explicações de seu contexto histórico, técnicas artísticas
empregadas, dentre outros aspectos. Carijó, Magalhães e Almeida (2010, p. 179) afirmam que
“tudo isso concorre para produzir um visitante mais bem informado, melhor conhecedor da
arte após a visita do que era antes dela”. Além disto, é importante que todos os funcionários
das instituições artísticas, dos responsáveis pela recepção até a mediação, estejam
familiarizados com as necessidades dessas pessoas, principalmente no que tange às estratégias
expositivas e atividades artísticas propostas.

1.1.3 A acessibilidade estética

Considerando que os museus e centros culturais são mais que um espaço físico, são
um lugar de encontros e experiências de produção de novos sentidos por meio da arte, alguns
aspectos devem ser considerados. Para isso, nos munimos do conceito de experiência estética
de John Dewey (2010), que considera que tal experiência vai além das experiências de
reconhecimento de formas já antes conhecidas por meio da percepção (visual ou tátil), que
tem inegável importância na vida prática. Contudo, para pensarmos a acessibilidade estética,
que seria de uma política diferente daquela que prioriza a informação ou o reconhecimento,
devemos levar em conta o acesso a uma experiência no contato com a expressividade de uma
obra, que nos gera o desejo de ir além (NANCY, 2009). Para nós, é isso o que torna a
experiência de ir ao museu mais significativa.
Esse desejo de ir além seria fruto de um encontro que pode produzir algo novo, de
uma abertura, que não se limita à reprodução de algo dado. A acessibilidade estética
“preocupa-se menos com o conhecimento formal que o público vai adquirir sobre as obras,
movimentos e artistas, e mais com a emoção estética que a experiência com as obras pode
despertar” (CARIJÓ, MAGALHÃES E ALMEIDA, 2010, p. 179-180). Mais do que formas,
as obras de arte são compostas por forças, que podem nos tocar e atravessar por diferentes
40

fontes perceptivas. As obras de arte, que para Deleuze (1992) seriam blocos de sensações
compostos por perceptos e afectos que transcendem as percepções e afecções do percebedor,
teriam a potência de transbordar a vivência, levando a experiências que podem ser
transformadoras.
Alguns museus e centros culturais, visando promover acessibilidade ao conteúdo das
obras a pessoas que não possuem visão, oferecem dispositivos que levam em conta o sentido
tátil como principal meio de acesso. Como exemplos desse tipo de dispositivo, temos placas
táteis de obras em duas dimensões, adaptações de pinturas para três dimensões, com a
elaboração de maquetes e caixas, além do uso de “kits táteis”. As placas táteis são propostas
como representações táteis de obras bidimensionais, tais como pinturas, fotografias, gravuras
e desenhos. Segundo Carijó, Magalhães e Almeida (2010, p. 183), “o intuito deste tipo de
dispositivo é fazer dos contornos visuais [das obras] contornos tangíveis [nas placas],
mantendo-se, assim, com um aparente alto grau de fidelidade, a bidimensionalidade do
original”. As maquetes e as caixas também são representações táteis de obras bidimensionais.
Entretanto, seus elementos são tridimensionais e móveis, para uma melhor exploração. Já os
“kits” contêm todo o material adaptado para o público com deficiência visual, ou seja, das
reproduções de obras do acervo do museu, incluindo tanto as réplicas bi ou tridimensionais,
quanto recursos que exploram outros sentidos, como audição e olfato.
O toque em obras, no caso de esculturas, objetos e instalações, também seria um
recurso possível para a promoção de acessibilidade estética de cegos e pessoas com baixa
visão em museus. Contudo, algumas questões, como a conservação das obras de arte e saberes
advindos da História da Arte, ainda permeiam esse campo e impõem dificuldades para sua
implementação.
Estratégias de mediação também estão sendo pensadas para condução do público cego
ao acesso às obras da arte. Contudo, devemos lembrar que a mediação tradicional é pautada
nos saberes sobre história da arte, do artista e suas obras, indo na direção da apresentação de
informações ao visitante baseadas em um discurso curatorial (KASTRUP; VERGARA,
2012). Desse modo, a figura do mediado pode acabar por protagonizar a visita no lugar do
detentor de um saber que o público não tem, e que lhe é passado de modo vertical e unilateral.
Isso afastaria a prática da mediação da possibilidade de promoção de uma experiência
estética.
41

1.1.3.1 Sobre a proibição do toque em obras de arte

Esse tema foi discutido por Fiona Candlin (2003, 2004), que defende que a proibição
do toque em obras de arte nos museus é uma questão acima de tudo política. Ao se opor à
estrutura do museu como a conhecemos, a militância pelo tato como modo de acesso à arte,
iria de encontro a dois pontos: à conservação das obras de arte e à ideia do toque não fazer
parte da experiência estética, com base na História da Arte. Isto sustentaria um determinado
saber/poder (expertise) dos profissionais de museus, que definem o modo como a arte deve
ser apreendida: visualmente. Nesse caso, “olfato, paladar, audição e tato não contam como
competências necessárias sendo, na verdade, compreendidos como desviantes do estudo da
arte” (CANDLIN, 2004, p. 23). Assim, questionar a regra da proibição do toque em obras de
arte em museus seria desconstruir a base do pensamento que sustentaria as práticas e a política
de funcionamento destas instituições.
Candlin, em seu artigo Don‟t Touch! Hands off! Art, blindness and the conservation of
expertise (2004), aponta o tato como outro modo de apreensão do conhecimento (não
separado do corpo), e destaca que a experiência sensorial e a aprendizagem encarnada não
servem somente para aqueles que não veem. Ressaltando as particularidades do tato, é
marcado que o toque não necessariamente substitui a visão, já que cada um destes sentidos é
capaz de revelar informações particulares dos objetos. Assim, esse tipo de acessibilidade – por
meio do toque em obras – não seria restrita às pessoas com deficiência visual, mas poderia
promover a aproximação com a arte a todos que visitam o museu.
Segundo Candlin (2004), são duas as principais formas de acesso para as pessoas com
deficiência visual às coleções que têm sido apresentadas por instituições artísticas: visitas
táteis, que variam de tema a cada sessão; e os touch tours permanentes8. Para ambos, há
negociação com a curadoria para a escolha de obras nas quais o toque seria permitido; há o
acompanhamento dos visitantes por mediadores e, algumas vezes, é exigido o uso de luvas
para o toque e manuseio das obras. Em alguns casos, disponibiliza-se um pedaço do material
da obra para o toque. Aqui, o toque se mostraria como uma prática inclusiva das pessoas
cegas em instituições de arte, por poderem começar ou voltar a frequentar os espaços de arte
sem sentirem-se marginalizadas frente à cultura visual, fazendo com que conservação e
acessibilidade não pareçam opostas (CANDLIN, 2003).

8
Victoria & Albert Museum, Tate Modern e o British Museum são alguns exemplos citados pela autora onde há
visitas e touch tours.
42

Entretanto, segundo a crítica da autora, estas práticas se apresentam ainda como


paliativas, já que não oferecem ao público a escolha do que tocar, por desencorajar o toque em
obras fora dos touch tours, em prol da conservação das coleções e obras mais frágeis (por
mais delicado que o toque das pessoas cegas possa ser), e porque tocar em um pedaço do
material da obra não equivale à experiência de tocar à uma obra de arte inteira. Além disso,
muitos dos tours são organizados sem conhecimento acerca da cognição das pessoas com
baixa visão e apreciação tátil – que é uma linguagem muito diferente da visual. Para Candlin
“a oportunidade de pessoas cegas poderem aprender por meio do tato está ostensivamente em
tensão com a preservação dos objetos artísticos” (2004, 4, p. 7). Essas práticas conferem ao
museu o status de acessível ao público com deficiência visual, mesmo que o acesso ao toque
esteja mais afinado com as regras da conservação do que com as necessidades destas pessoas.
Outro fator que afasta a prática do toque como acesso à experiência estética em
museus se deve aos ditames da História da Arte, segundo a qual a relação entre cegueira,
toque e corpo se opõe à estética e à transcendência. Candlin (2004) marca que o pensamento
da tradição filosófica ocidental considera que a aquisição de conhecimento e prazer estético
estariam associados às faculdades superiores do julgamento, estando assim separadas do
corpo, que produz ilusões. Nesse caso, os cegos seriam considerados pessoas muito arraigadas
a seus corpos e, incapazes de separarem-se dele, não poderiam exercer o julgamento
puramente intelectual. Além disso, na história da arte, o toque estaria relacionado mais ao
desejo sexual e à falta de pudor do que a um prazer sublime, atingido pela apreciação visual
de uma obra de arte. Seguindo essa linha, concluiríamos que, para acessar a experiência
estética, o toque deveria ser reprimido, pois o desejo carnal relacionado a ele ameaçaria o
prazer estético e a contemplação intelectual.
Esse saber, baseado no visuocêntrismo9, acaba por encaixar as belas artes e artes
plásticas no território das “artes visuais”, relegando ao tato o papel do contrário da conjuntura
da visão, da estética e do conhecimento. Isso contribui para que o número de cegos que tem
contato com arte em museus e instituições culturais ainda seja muito pequeno se comparado
ao tamanho das coleções, acervos e exposições oferecidos nesses espaços, que acabam por
não serem realmente acessíveis a esse público. Segundo Candlin (2004, p. 26), “a noção de
prazer estético e conhecimento em museus é predicada sobre o funcionamento da visão
isolada do tato, apesar do tato ser ainda ativamente desejado, alcançado, reprimido e
deslocado dentro da instituição”.

9
Modos de agir e conhecer baseados no sentido da visão. (MORAES, 2010 apud BELARMINO, 2004).
43

Desse modo, vemos que há ainda muita resistência por parte dos museus em ouvir e
atender a demandas específicas de alguns de seus frequentadores. Dotados desse tipo de
expertise – da visão como meio único de acesso às obras de arte – a abertura para uma
concepção de conhecimento que inclui o tato e não o separa do pensamento implica em uma
desconstrução destes saberes e no desenvolvimento de novas competências por parte dos
profissionais dessas instituições. “A demanda das pessoas cegas por acesso por meio do tato
não seria o a troca de um paradigma para outro, háptico versus ótico, acesso versus
conservação, conhecimento corporificado versus intelectual. Ela questiona a
afirmação/reconhecimento da autoridade por si” (CANDLIN, 2004, p. 26). Conceber o tato
como outro modo legítimo de conhecimento, que pode aos poucos adentrar os museus e
centros culturais, poderia relativizar o peso da visão e expandir os modos de acesso à arte.
Isto, consequentemente, aumentaria e diversificaria a frequência de visitação a essas
instituições.

1.1.3.2 Projeto Encontros Multissensoriais

Ao pensarmos sobre acessibilidade multissensorial, cabe sublinhar a importância do


projeto Encontros Multissensoriais. Desenvolvido de 2011 a 2013 no MAM, Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, o projeto foi concebido pelo Núcleo Experimental de Educação e
Arte do MAM e NUCC do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, em parceria
com o IBC. A experiência nesse projeto, do qual participamos ativamente ao longo de seus
dois anos de existência, é uma inevitável referência para a análise das estratégias de
acessibilidade desenvolvidas pelo CCBB. O modo de mediar, que destoava de uma mediação
tradicional por ser distribuída, as propostas de experimentação por meio de diferentes
sentidos, e a aposta nas trocas entre pessoas cegas e pessoas videntes frente à experimentação
de obras de arte foram marcantes, reforçando a questão do acesso à experiência estética no
encontro com a arte.

[...] avançar na política de acessibilidade em museus é promover encontros


heterogêneos e criar condições para a troca de experiências entre cegos e videntes.
Troca de sensações, afetos, pensamentos, idéias, vôos da imaginação, narrativas e
desejos de criação, suscitados pelas obras percebidas por diferentes sentidos. [...] A
visita a um museu ganha então o sentido de um processo de aprendizagem coletiva
na direção da abertura da experiência à diferença, à alteridade e a novas formas de
perceber e habitar o mundo. (KASTRUP, 2011, p. 88).
44

Os Encontros Multissensoriais ocorriam todo último sábado de cada mês e traziam


propostas experimentais, como a exploração multissensorial de obras de arte por grupos
heterogêneos compostos por pessoas com deficiência visual e pessoas videntes, mediação
distribuída, e participação dos artistas nas visitas às exposições. Debruçados nas ideias da
nova museologia e nas proposições artísticas da arte contemporânea que surgia na mesma
época (anos 60), os realizadores do projeto visavam dar aos visitantes/percebedores o lugar de
experimentadores da arte de forma ativa e criadora, o que conferia seu caráter experimental.
Desse modo, não havia uma fórmula a ser aplicada para a elaboração das visitas.
O projeto fora batizado de Encontros Multissensoriais pelo conceito de multissensorial
estar “na base das passagens e das rupturas que atingem o primado das artes visuais, [...]
implicando em mudanças no sistema que rege as atitudes do percebedor e do próprio conceito
de educação estética” (KASTRUP; VERGARA, 2012, p. 63). Assim, os encontros propunham
o deslocamento da percepção visual da arte para o corpo todo, engajando os corpos de
múltiplas sensações no contato com a arte, com o intuito de promover uma expansão
perceptiva. Esse processo abarcava diferentes modos de perceber, que poderiam ser visuais ou
táteis, onde todos que participavam das visitas podiam contribuir com suas deficiências e
eficiências na produção de novos sentidos.
Essa prática se mostrava interessante não somente para as pessoas com deficiência
visual, que descobriam novos territórios existenciais ou reviviam conexões culturais
existentes antes da perda da visão, mas sobretudo para as pessoas videntes (KASTRUP, 2011).
Segundo Kastrup (2011), “pra quem é vidente, entrar em contato com uma pessoa cega num
museu pode ser uma experiência instigante, no sentido em que pode levá-la a problematizar
ideias pré-concebidas e mesmo pensar sobre o ver e o não ver”. O lugar da visão como
principal modo de perceber o mundo é colocado em questão, o que nos leva à reflexão acerca
dos limites da visão e de nossa própria experiência enquanto pessoas que veem. Em um
mundo de sobrecarga visual, ao tentarmos ver tudo, muitas vezes nos tornamos, em certa
medida, cegos.
Para cada encontro, o grupo responsável criava o que chamavam de coreografia, que
consistia em uma espécie de roteiro que guiava a visita, funcionando como os passos de uma
dança (KASTRUP, 2011). Em um primeiro momento, eram propostos exercícios de
sensibilização do corpo e modulação da atenção, com o objetivo de promover a desaceleração
cognitiva, aumentando a disponibilidade para o mergulho na experiência sensorial com as
obras. Em seguida, experimentávamos e/ou realizávamos atividades sobre as obras de arte
escolhidas para a visita do dia. A permissão do toque em obras era negociada com os
45

museólogos e curadores das exposições. Era possível tocar algumas obras selecionadas
previamente por esses profissionais ou pelos próprios artistas. Outras estratégias também
eram criadas, como convidar o artista para participar da visita e a exploração da arquitetura do
museu ou das esculturas que ficam em seus jardins. A mediação era o que chamamos de
mediação distribuída, ou seja, a função de mediar se descentrava do lugar do mediador e
distribuía-se pelos participantes, que contribuíam com seus saberes advindos por outros
caminhos perceptivos. Assim, no lugar da transmissão de um saber, informação ou
interpretação das obras, abria-se espaço para a multiplicação de vozes e tempo para uma
exploração sensorial e sensível de qualidade. Ao final, havia sempre uma roda de conversa, no
intuito de partilhar percepções e sensações – com ou sem visão – e coletivizar a experiência.

1.2 INFORMAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: LINHAS CRUZADAS

Vimos anteriormente que, após uma visita a uma exposição de arte, o visitante pode
sair mais bem informado e aprender coisas novas com a descrição das obras, do artista e do
movimento artístico referente a ele. Enfim, pode-se obter informação em uma visita que conte
com serviço de acessibilidade. Contudo, sabemos “que receber informação sobre uma obra
não equivale a contemplá-la. Afinal, a experiência estética de uma obra de arte é algo que não
se reduz à aquisição de informação” (CARIJÓ; MAGALHÃES; ALMEIDA, 2010, p. 179).
Assim, é importante insistir na diferença entre acessibilidade informacional e acessibilidade
estética, que têm objetivos específicos. Enquanto a informação nos auxilia na compreensão do
conteúdo das obras, a acessibilidade estética vai mais além, indo ao encontro de nossas
dimensões afetivo-emocionais, o que pode configurar uma experiência transformadora. Para
entendermos melhor a diferença entre esses dois tipos de acessibilidade, que muitas vezes
podem se confundir, propomos a seguir uma breve reflexão sobre a diferença entre
informação e experiência na visita a um museu ou centro de arte, aprofundando o conceito de
experiência estética (DEWEY, 1934/2010).
Em uma conferência em 2001, Jorge Larrosa (2014) chamou a atenção para a
importância da escolha de palavras como uma atitude ética. Para além da questão
terminológica, é também pelo uso delas que damos sentido ao que somos, ao que acontece e
ao que nos acontece, o que aparece no modo como nos posicionamos no mundo. Pensando a
palavra “experiência”, o autor pontua que experiência é aquilo “que nos passa, o que nos
acontece, o que nos toca” (LARROSA, 2014, p. 18). Ou seja, se a experiência se passa em
nós, ela não é separada de nós. Pelo contrário, sendo esta a condição para a própria
46

experiência ser concebida enquanto tal, podemos dizer que ela é viva, por pulsar no corpo e
também, fazê-lo pulsar.
Larrosa (2014) trabalha também o termo informação. Enfatizando que a informação
não é experiência, mas que funcionaria como quase o contrário da experiência, uma espécie
de antiexperiência, o autor defende que o excesso de informação na sociedade contemporânea
aparece como um dos fatores que contribui para a pobreza ou escassez de experiências. Para o
autor, a busca excessiva pelo acúmulo e processamento de informação (que muitas vezes se
confunde com aquisição de conhecimento ou com aprendizagem) faz com que nos
mantenhamos sempre em atividade. E assim, sem a possibilidade de pararmos, não nos damos
a possibilidade para a abertura e receptividade para que algo realmente possa acontecer em
nós.
Em consonância com o pensamento de Larrosa, Dewey (2010) comenta que a ânsia
pela ação nos leva a viver de modo apressado e precipitado, na tentativa de fazer o máximo de
coisas no prazo mais curto possível. Isto pode ser atingido também por um excesso de
receptividade, que faz com que o percurso de nossas experiências não chegue a se concluir,
havendo a interrupção de uma para o início de outra e assim sucessivamente, o que as
empobrece e as torna superficiais. Para ele, ao sermos levados pela correnteza dos
acontecimentos, passamos automaticamente de algo a algo por substituição, o que não confere
consistência ao que se passa e não permite que nada se passe em nós. Assim, “o que é
chamado de experiência fica tão disperso e misturado que mal chega a merecer esse nome”
(DEWEY, 2010, p. 123). Ele pontua que a experiência é o resultado da interação entre uma
criatura viva e algum aspecto do mundo em que ela vive, sendo a estética uma qualidade da
experiência.
Esta qualidade da experiência, que a singulariza e a diferencia de outras experiências
comuns e triviais, aparece quando o que é vivido segue seu percurso até sua consecução, sem
dispersão. A experiência estética possui caráter de completude, ou seja, um início, meio e fim
que culminam na sensação de totalidade da experiência vivida. Segundo Dewey (2010, p. 112,
grifo do autor), “a existência dessa unidade é constituída por uma qualidade ímpar que
perpassa a experiência inteira, a despeito da variação das partes que a compõem”. Como um
nó que une as duas extremidades de um fio, essa amarração representa a consumação e não
cessação de um percurso. “Essa experiência é um todo e carrega em si um caráter
individualizador e sua autossuficiência. Trata-se de uma experiência” (DEWEY, 2010, p. 110,
grifo do autor).
47

A experiência estética envolve uma incorporação vital, que muda as nossas referências
anteriores, provoca uma reconfiguração ligada à emoção, que transforma reações automáticas
em estados emocionais. Um exemplo disso é um rubor transformar-se em vergonha, ou um
pulo desencadeado por um susto transformar-se em medo a partir de um evento marcante, ou
seja, de uma experiência de caráter estético. Além de sua dimensão emocional, a experiência
também possui as dimensões prática e intelectual. A dimensão prática da experiência está
relacionada à interação que o organismo estabelece com o seu entorno, sendo a responsável
por conectar partes de vivências na formação de uma experiência integral, em detrimento de
sua mera sucessividade. Já a dimensão intelectual é aquela que nos permite organizar a
experiência, nomeando-a e conferindo-lhe sentido.
Nesse sentido, Dewey (2010) comenta que vivenciar a experiência é como respirar, ou
seja, é ser conduzido por um ritmo de inspirações e expulsões. Esse pulsar pode nos apontar
duas direções, que no fim acabam por se encontrar na composição da própria experiência:
uma que diz respeito à relação entre o agir e o sofrer na criação da experiência estética, e
outra que marca a necessidade dos intervalos, respiros entre as fases da experiência. Para ele,
é necessário um equilíbrio entre o agir e o perceber, para que a experiência estética possa
acontecer, além de tempo para se absorver e incorporar o que é vivido nela.
Por meio desse equilíbrio dinâmico, o autor discorre sobre o ato de perceber que, ao
mesmo tempo que envolve uma receptividade (que não deve ser confundida com
passividade), é composto por atos de absorção e recriação, que substituem o mero
reconhecimento. Para Dewey (2010, p. 134-135, grifo do autor), a diferença entre esses dois
processos é enorme:

O reconhecimento é a percepção refreada antes de ter a possibilidade


de se desenvolver livremente. No reconhecimento, existe o começo de um ato de
percepção. Mas esse começo não é autorizado a servir ao
desenvolvimento de uma percepção plena da coisa reconhecida. É detido no ponto
em que serve a uma outra finalidade, como ao reconhecermos um homem na rua
para cumprimentá-lo ou evitá-lo, e não para ver o que há nele. No reconhecimento,
tal como no estereótipo, recaímos em um esquema previamente formado. Um
detalhe ou arranjo de detalhes serve de pista para a simples identificação. No
reconhecimento, basta aplicar esse contorno ao objeto presente, como um estêncil.

Apesar do lugar de rendição em que a percepção nos coloca, é o seu caráter criador
que permite que a novidade apareça. Enquanto o reconhecimento afixa algo previamente
conhecido em uma categoria, a percepção presente não é imediatamente encaixada em uma
categoria pré-existente, mas bifurca em relação a ela, instalando uma experiência que se
caracteriza pela tensão e pela instabilidade, forçando a pensar.
48

Assim, quando falamos de acessibilidade estética, é nesta direção que apontamos.


Queremos ir além da leitura dos textos dos curadores e da descrição verbal. Ainda que as
informações sobre as obras e os artistas tenham sua importância e, em certa medida, nos
preparem para o que virá a seguir, o encontro com as obras de arte é geralmente o ponto alto
da visita. É a experiência que temos no encontro com as obras que justifica, em última análise,
a ida a um museu de arte. Queremos mais do que informação, queremos experiência direta
com as obras, sendo afetados por suas forças e interrogados por seus enigmas. Queremos ter
uma experiência!
49

CAPÍTULO II

2 ACERCA DA COGNIÇÃO DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

Existem alguns aspectos aos quais devemos estar atentos para que possamos pensar
estratégias realmente acessíveis e possibilitadoras de experiência estética às pessoas com
deficiência visual no contato com a arte. Enumeramos alguns deles neste trabalho.

2.1 A HETEROGENEIDADE DA DEFICIÊNCIA VISUAL

O primeiro aspecto é reconhecermos a heterogeneidade que marca o grupo de pessoas


com deficiência visual. Para isso, partimos da observação de que não existe a figura
identitária “o cego”. Existem pessoas cegas e pessoas com baixa-visão. Existem também
profundas diferenças entre quem nasceu cego e quem perdeu a visão ao longo da vida.
Os cegos congênitos ou precoces são as pessoas que nunca viram, ou seja, que já
nasceram cegas ou que perderam a visão entre seis meses e um ano de idade (HATWELL,
2003). Segundo Kastrup (2007, p. 70), “seu sistema cognitivo é, desde o nascimento,
constituído com base nos demais sentidos e sem referência a elementos visuais”. Por não
haver registro de memória visual em nenhum dos dois casos, eles são considerados similares
do ponto de vista cognitivo. Já os cegos tardios ou adquiridos são as pessoas que perderam a
visão em diferentes períodos da vida. A deficiência visual total pode se dar de maneira abrupta
ou gradual, ou seja, a perda da visão pode acontecer repentinamente, em decorrência de algum
acidente ou patologia aguda, ou pode ir se dando com o decorrer do tempo. A idade, nesse
caso, faz bastante diferença. As pessoas que perderam a visão tardiamente possuem
referências visuais, podendo ou não conservar e fazer uso das informações da cultura visual
(SACKS, 2010; VALENTE; DARRAS, 2010).
Há também as pessoas que possuem baixa-visão. Nesse caso, as alterações de visão,
que podem ser resultado de fatores congênitos ou adquiridos, não chegam a ser corrigidas por
lentes, o que interfere em suas atividades cotidianas. A baixa-visão pode variar segundo a
acuidade visual, podendo ser classificada em diferentes níveis, como baixa-visão moderada,
grave ou profunda, e segundo o campo visual, que diz respeito à amplitude da área alcançada
pela visão. Por exemplo, há as pessoas que têm a visão periférica preservada, o que lhes
permite ter um deslocamento especial melhor do que daqueles que possuem somente a visão
central.
50

Para além dos aspectos biológicos, há também outros aspectos relevantes, como
fatores sociais, culturais, econômicos e o acesso à educação, saúde e tecnologias assistivas. A
separação entre dois modelos de deficiência, o modelo médico e o modelo social, foi
sistematizada nos anos 80 pelos autores dos Disability Studies, campo de pesquisas
interdisciplinar acerca da construção da noção de deficiência.

2.2 O TATO E A VISÃO

Temos aqui um segundo aspecto importante. A visão e o tato possuem algumas


propriedades específicas, que merecem destaque quando pensamos a transposição de um
sentido para o outro, como no caso da tradução tátil uma obra de arte visual bidimensional,
como pinturas ou desenhos. Há diferenças significativas entre a percepção visual e tátil, bem
como conexões neurais entre os dois sentidos. Questões dessa natureza ocuparam alguns
filósofos desde o século XVII e também instigaram e ainda instigam pesquisadores.
Uma importante questão acerca da visão e do tato foi apresentada no século XVII pelo
filósofo William Molyneux, que era casado com uma mulher cega, ao filósofo John Locke
(SACKS, 1995). Denis Diderot, em Carta sobre os cegos para uso dos que vêem (1749), faz
também menção a esse problema:

Supõe-se um cego de nascença que se tenha tornado homem feito, e a quem se


ensina a distinguir, pelo contato, um cubo e um globo de mesmo metal e quase de
mesma grandeza, de modo que, ao tocar em um ou em outro, possa dizer qual é o
cubo e qual é o globo. Supõe-se que, estando o cubo e o globo colocados sobre uma
mesa, o referido cego venha a usufruir da vista; e se lhe pergunta se, vendo-os sem
tocá-los, poderá discerni-los e dizer qual é o cubo e qual é o globo. (DIDEROT,
1749-1979, p. 66).

Segundo Diderot (1979, p. 72), reflexões e interlocuções de outros filósofos, como o


próprio Locke, constataram que era preciso tempo para que o olho aprendesse a ver, assim
como a língua a falar. Seria preciso auxílio do tato, em um primeiro momento, para que
percebêssemos pela visão a existência de objetos que se encontrassem diante, mas distantes de
nós, e para que descobríssemos suas formas e modificações. Para experimentar o que é ver,
seria preciso olhos e mãos vivos que explorassem juntos os objetos.
Assim como Diderot, Locke compartilhava da posição de que o homem que é cego de
nascença e que recupera a visão deve aprender a ver. Já Condillac posicionava-se de modo
contrário, afirmando que a experiência de ver do cego de nascença se daria diante dos corpos
51

de metal por apenas um segundo de contato, ou seja, que não é preciso experiência para
conseguir enxergar. Contudo, Diderot pontua que, apesar destes dois pareceres diferentes
sobre a mesma questão, há ainda muitos outros caminhos pelos quais o problema de
Molyneux é investigado (DIDEROT, 1979). Essa é uma questão que ainda não se esgotou e
que continua sendo estudada.
Morton Heller e Edouard Gentaz (2014) e Dannyelle Valente (2015) citam um caso
apresentado por Gregory and Wallace (1963), em que um homem que perdeu a visão com
menos de um ano de idade passou a ver após uma operação feita na idade adulta. Sacks
(1995) também escreveu sobre um caso parecido, de um homem praticamente cego desde a
infância que passou por uma cirurgia para recobrar a visão nas vésperas de seu casamento. Os
casos se assemelham também no ponto em que os dois homens, enquanto cegos, eram pessoas
hábeis e conviviam bem com o fato de não enxergarem. Mas, ao serem convocados a
responder por meio da visão após a operação, ambos encontraram grandes dificuldades. Para
reconhecer os objetos que viam, era preciso fechar os olhos e tocá-los. Isto se deve às
diferenças entre os dois sentidos. “Assim como perder a visão tarde na vida pode ser difícil, o
inverso também pode sê-lo” (HELLER; GENTAZ, 2014, p. 6).
Os trabalhos de Weber (1830-1850), Katz (1925), Revesz (1934, 1950) e Gibson
(1962, 1966) também tiveram grande importância no estudo da relação entre o tato e a visão.
Segundo Heller e Gentaz (2014, p. 7), “Weber apontou que o tato era muito mais efetivo
quando engajado em uma ação intencional, e fazia a distinção entre tato e o sentido
muscular”. Além disso, ele percebeu que as mãos poderiam ajudar na percepção de peso e
localizou no corpo áreas mais sensíveis ao toque do que outras. Já Katz, que era um psicólogo
vinculado ao movimento da Gestalt, opunha-se à ideia de limitar as pesquisas do tato ao
domínio da psicofísica, defendendo que um estímulo isolado na pele não existe senão nos
laboratórios. Katz afirmava o importante papel de uma “mão inteligente” e ativa para os
movimentos do tato, já que esse sentido seria o responsável por fornecer a informação das
propriedades materiais dos objetos.
Revesz (1934, 1950) identificou as mãos como órgãos do tato, apontando as diferenças
entre o tato passivo e o tato ativo e intencional. Para ele, tocar seria mais uma atividade
cognitiva (já que para conhecer uma forma ou objeto, é preciso exercer alguma atividade
sobre ele, uma ação com intenção) do que perceptiva (no sentido de que se pode perceber um
objeto ao sermos tocados passivamente por eles).
Revesz também estudou o tato em pessoas videntes e em pessoas cegas, aprofundando
as diferenças entre as percepções tátil e visual. Tais estudos foram de grande importância para
52

a investigação das habilidades de apreciação gráfica e formas por pessoas com deficiência
visual. Heller e Gentaz (2014) comentam que Revesz chegou a questionar-se quanto à arte,
afirmando que esta caberia apenas ao domínio visual, pois o tato seria muito limitado para
apreciá-la. Segundo esse autor, “os cegos demonstram muito pouco interesse pela forma”
(REVESZ, 1950, p. 75 apud HELLER; GENTAZ, 2014, p. 9). Além disso, para ele, os cegos
adquiridos são um pouco mais interessados por arte do que os cegos congênitos. Contudo,
esta afirmação não nos parece adequada. Notamos, em nosso trabalho com pessoas cegas, que
o tato, tão utilizado por pessoas cegas quotidianamente para o desempenho de tarefas pode,
por meio do encontro com as artes plásticas, revelar propriedades estéticas, apresentando uma
gama de possíveis sensações e sentidos para quem não vê. A prática artística também pode
contribuir para que o tato saia do lugar de modalidade estritamente funcional e para um meio
de acesso à sensibilidade criadora. Para cegos tardios, principalmente aqueles que são cegos
recentes, o contato com obras de arte por meio do tato pode corresponder a uma redescoberta,
uma nova aprendizagem, do que antes se percebia por meio da visão.
Gibson (1962, 1966) foi outro importante autor nas pesquisas acerca do tato. Sua
perspectiva ecológica se preocupava em pesquisar os sentidos em um contexto cotidiano.
Examinava o tato em movimento e intenção, rejeitando as condições artificiais de controle
experimental em laboratório, que produziam sujeitos constrangidos e inativos (HELLER;
GENTAZ, 2014). Influenciado por Katz e Revesz, Gibson trabalhava com a distinção entre
tato passivo e tato ativo. Para ele, o tato passivo possuía uma natureza mais subjetiva e
emocional. Já o tato ativo, seria mais importante para a vida prática, por seu caráter funcional
e objetivo. Ele também explorou a sensibilidade da ponta dos dedos e da palma da mão, o que
foi muito importante para o estudo da comunicação entre pessoas surdo-cegas, que se dá pelo
desenho de letras ou da linguagem de sinais na palma da mão. Além disso, Gibson (1966)
enfatizou a natureza multimodal da percepção, que seria a relação de estímulos de diferentes
sentidos, em detrimento do estímulo de um único sentido, que seria possível somente em um
laboratório (HELLER; GENTAZ, 2014). Assim, o papel do corpo na experiência com objetos
no mundo ganha destaque. Atualmente, alguns pesquisadores adotam a perspectiva gibsoniana
para embasar suas pesquisas acerca da multimodalidade da percepção.

2.2.1 A percepção háptica como modo de conhecimento de mundo

O tato é o sentido mais apropriado para substituir a visão quando há a privação visual,
seja ela congênita ou tardia. Ele pode fornecer informações precisas acerca dos objetos, além
53

de possuir uma dupla função, perceptiva e motora (HATWELL, 2003; VALENTE, 2015). As
sensações da pele aliadas aos movimentos dos órgãos do tato, como dedos, mãos, braços e
ombros, resultam na percepção tátil-cinestésica, também chamada de tato ativo ou percepção
háptica (REVESZ, 1950; GIBSON, 1962; HATWELL, 2000). A percepção háptica é uma
percepção por fragmentos, aos pedaços, sempre sucessiva e às vezes parcial, o que lhe confere
um ritmo mais lento se comparado à visão.
Para que se construa a totalidade do que é percebido, a memória de trabalho
desempenha um papel fundamental. Segundo Hatwell (2000), se explorarmos analiticamente
um objeto, é preciso ativar essa memória para que todas as sensações táteis percebidas possam
se unir em uma forma única que corresponda ao que foi tocado. Além de ser muito importante
para a identificação das propriedades geométricas, como tamanho e forma, a percepção
háptica se mostra igualmente importante para a exploração das características materiais dos
objetos, como a textura, temperatura, dureza. Já o peso seria uma propriedade híbrida, pois diz
da densidade e do tamanho de um objeto, ou seja, de seu material e geometria (KLATZKY;
LEDERMAN, 1993, 2000). Há alguns movimentos específicos para cada propriedade tátil,
como a fricção lateral para texturas, pressão para dureza, contato estático para temperatura,
levantamento para o peso, envolvimento do objeto para forma global e volume,
acompanhamento de contornos para forma global e forma exata (HATWELL, 2000, p. 72).
Porém, ao contrário do que pode se pensar, os movimentos sistemáticos do tato não
são um modo espontâneo de se conhecer o mundo. Em Le monde des aveugles: un essay de
psychologie, Pierre Villey (1914), que era professor universitário e cego congênito, discorre
sobre o que ele chama de “o mundo dos cegos”, afirmando a importância de dar visibilidade
às questões de quem é privado do sentido visual. Nessa obra, ele narra peculiaridades,
desafios e conquistas de pessoas cegas, além de apresentar suas intuições e fazer relatos em
primeira pessoa da experiência de não ver em um mundo de videntes.
Villey (1914) comenta que crianças cegas devem ser estimuladas e ensinadas sobre os
movimentos táteis desde muito cedo, para que possam desenvolver tais habilidades ao longo
de seu desenvolvimento. Colocar um objeto na mão de uma pessoa cega não é o suficiente
para que esta o perceba de modo a reconhecê-lo ou significá-lo. Para isso, é preciso tornar a
mão um órgão sensorial, ensinar a explorar e coordenar seus movimentos, seja somente os dos
dedos, seja pelo uso de uma ou das duas mãos para envolver um objeto. No caso de um objeto
maior, mais pesado ou uma extensão, a utilização dos braços, articulações dos cotovelos e
ombros têm papel importante na exploração. O autor também nos lembra da função do
polegar como instrumento relevante na percepção háptica. A ponta do dedo indicador ganha
54

destaque pela sua grande sensibilidade, porém, o polegar, por sua posição em oposição aos
outros dedos, serve para medir as dimensões ou porções de objetos envolvidos pelas mãos ou
por meio da construção de um compasso, ao se opor ao dedo médio esticado.
No que diz respeito à qualidade dos movimentos realizados pelas mãos, os cegos não
estão restritos a uma única maneira de manipular os objetos. Os movimentos variam muito de
pessoa para pessoa, porém o objetivo é sempre explorar o objeto a fim de perceber, de
maneira prática e ágil, o maior número de detalhes possível. A exploração é geralmente
marcada pela distribuição do trabalho entre a palma da mão e as extremidades dos dedos,
sobretudo na tentativa de aumentar a precisão do toque e a habilidade para dirigir seus
movimentos. O autor ressalta que “as pontas dos dedos são tão sensíveis que muito
frequentemente, mesmo para explorar objetos que ultrapassem muito a superfície formada por
elas, os cegos se contentam com as pontas dos dedos e não chegam a recrutar a palma da
mão” (VILLEY, 1914, p. 210).

2.2.2 Propriedades específicas

Quando consideramos o tato e a visão como meros canais de recepção de informações


sensoriais puras e sem significado, podemos pensar que esses dois sentidos não possuem nada
em comum. Entretanto, quando são considerados como sentidos ativos e exploratórios,
notamos que eles podem apresentar algumas semelhanças (GIBSON, 1962). Um exemplo
disso é que, para ambos os sentidos, é necessário um aprendizado para a compreensão do que
é percebido. A percepção do espaço e de objetos em três dimensões depende principalmente
da realização de movimentos exploratórios, seja dos olhos, seja dos dedos, mãos e braços. É
apenas quando variamos as direções do olhar e/ou manipulamos o objeto com as mãos que
podemos estimar o número de faces, curvas e linhas que o compõem, além de identificar sua
altura, comprimento e largura. Além disso, a exploração de um objeto pelo tato por uma
pessoa cega não se limita a alisar apenas uma de suas faces, mas sim a sentir todas elas, seus
limites e pontas, a fim de atribuir contorno e unidade ao que é percebido. Klatzky e Lederman
(2000) nomeiam de “seguimento dos contornos” o movimento exploratório específico
realizado com as duas mãos, que é o de seguir o contorno do objeto com uma mão, enquanto a
outra o segura e gira ao mesmo tempo.
Há também profundas diferenças entre o tato e a visão que merecem destaque para que
possamos pensar dispositivos realmente acessíveis às pessoas com deficiência visual à arte.
55

Quadro 1 – Diferenças entre o tato e a visão


TATO VISÃO
Proximal Distal
Analítico Sintético
Lento Rápido
Peso, dureza, temperatura Cor, figura e fundo, perspectiva
Forma e tamanho
Textura
Fonte: Elaborado pela autora

O tato possui caráter proximal, ou seja, é necessário estar perto do objeto para tocar
(tato ativo ou percepção háptica) ou ser tocado (tato passivo) por ele. Por outro lado, a visão é
considerada um sentido distal, pelo fato de não precisar estar em contato direto com o
estímulo ou objeto para que esse seja percebido. “O cego, sem dúvida, ignora o que é ver.
Porém, ele sabe que a diferença essencial existente entre o ver e o tocar é que se pode ver de
longe, ao passo que o tocar, só pode se dar de perto” (VILLEY, 1914, p. 172).
O poder de alcance a longas distâncias é próprio do sentido visual e também contribui
para que a percepção espacial dos videntes aconteça de forma distinta daquela do cego. Sem o
recurso da visão, as pessoas cegas precisam se localizar no espaço, reconhecê-lo e identificar
os elementos que o compõem, e o tato se mostra como o principal sentido para desempenhar
tal papel. Gibson (1962, p. 488) pontua que “enquanto as superfícies visíveis se estendem por
grandes distâncias, o que é tangível alcança apenas o comprimento do braço humano. Mas, se
as superfícies são o que determina a percepção espacial ambos, tato e visão, seriam sentidos
espaciais.”.
O espaço percebido pelo cego não se limita somente ao que está próximo do seu
corpo, mas sim a tudo o que ele pode sentir. Para que ele construa a noção de
extensão/distância, pode também lançar mão de outras capacidades perceptivas, como a
audição (que marca a distância do corpo em relação a uma fonte sonora ou entre a fonte de
som e uma barreira) ou o olfato. Além disso, esticar dos braços, contar o número de passos de
um lado ao outro do ambiente e a utilização da bengala como forma de extensão do corpo
auxiliam na ampliação do campo perceptivo do cego.
Quando adentramos um espaço, ao percorrê-lo com os olhos, formamos
imediatamente a totalidade de sua configuração. A rapidez é uma característica marcante do
sentido visual, que permite antecipar ações. O reconhecimento mais amplo do espaço, levando
em conta seus elementos, como móveis dispostos em determinado ambiente, dá-se de maneira
sintética para ambos os sentidos. Villey (1914, p. 176) afirma que “o espaço para o cego
56

congênito é, sem dúvida, representável na forma de imagens, possuindo o mesmo caráter


sintético pelo toque, porém de forma totalmente diferente do vidente”. Assim, deduzimos que
essa diferença aparece no tempo do processo de construção dessa síntese. Para o cego, o
caminho até a formação da noção de espaço ou a exploração de um objeto total se dá de
maneira mais lenta, já que ele precisa encontrar os limites desse ambiente, buscando as
barreiras ao redor e precisando sentir os contornos e arestas dos objetos passo a passo. Isso
confere o caráter analítico ao processo de percepção espacial ou de objetos. Em outras
palavras, “a visão nos dá o espaço já elaborado, enquanto que o tato nos fornece os elementos
para elaborá-lo.” (VILLEY, 1914, p. 183).
A memória de trabalho mostra-se fundamental para que se construa a totalidade do que
é percebido. Contudo, na vida prática, tal exploração é muito custosa ao cego, exigindo muito
tempo para reconhecer os objetos. E, quanto mais complexo é o objeto tocado, ou seja, mais
rico em detalhes, mais dificuldade a pessoa apresentará para percebê-lo e identificá-lo. Desse
modo, ele conta com as propriedades materiais, como a dureza, temperatura e textura, que
auxiliam no reconhecimento de objetos familiares. Segundo Villey (1914, p. 195), “os cegos
percebem assim quase constantemente, através de seus recursos mentais. Eles vivem do
passado de suas imagens iniciais e podem passar anos seguindo-as, apenas associando
segundo seu arcabouço mnésico”. Ainda segundo o autor:

As associações parecem se formar entre as diferentes impressões táteis que


apresentam um objeto por um lado e, por outro lado, entre suas impressões e as
outras qualidades e propriedades do mesmo objeto, a tal ponto que, quando uma de
suas qualidades é dada, as outras são evocadas. (VILLEY, 1914, p. 196).

A cor é uma propriedade essencialmente visual que, portanto, escapa ao tato. Segundo
Gibson (1962, p. 488), “enquanto a cor é intangível, a temperatura é invisível”. Para os
videntes, pode parecer difícil descrever ou imaginar objetos sem cores. Villey (1914) e Sacks
(2010) citam casos de pessoas cegas tardias que colorem suas imagens mentais táteis por meio
dos registros visuais que conservam das cores. Enquanto Sacks (2010) conta de uma senhora
cega tardia que combina suas peças de roupa a partir da memória viva que mantém das cores,
Villey (1914) relata a história de um homem cego tardio que pinta os pontos do alfabeto
Braille em sua mente. Isso se dá de maneira tão espontânea para ele que, mesmo ao tentar
evitar, não consegue se livrar das cores. Contudo, no caso dos cegos congênitos, em que a cor
nunca pôde ser acessada a partir da percepção visual, pode-se criar uma ideia de cor a partir
da linguagem dos videntes.
57

Um exemplo disso aconteceu na primeira visita com o grupo de pessoas com


deficiência visual ao CCBB, na exposição Tarsila do Amaral, um percurso afetivo. Uma moça
cega congênita comentou em uma roda de conversa que gostava muito quando os videntes
descreviam as cores a ela: “Gosto muito quando vocês me falam as cores: gramado, céu,
vermelho...”10. Nesta fala aparece a associação existente entre elementos que ela já conhecia
por meio da percepção ou descrição com as cores que lhes correspondem, como verde para o
gramado e azul para o céu. Outro exemplo da ideia de cor em cegos congênitos é relatado por
Kastrup (2013) em um artigo sobre sonhos de pessoas cegas, no qual ela relata que uma moça
cega congênita descreve um vestido de noiva, enfatizando que ele “é branco, é branquinho!”
(KASTRUP, 2013, p. 438). A autora comenta que a presença da linguagem dos videntes é
notável na construção de imagens mentais de pessoas cegas congênitas, e a própria moça
entrevistada comenta que quando se fala em vestido de noiva, logo o associamos à cor branca,
mesmo que não seja possível vê-lo.
As noções de figura, fundo e perspectiva completam o quadro das características
visuais, mostrando-se de difícil apreensão por meio do tato, principalmente para os cegos
congênitos. O princípio de figura e fundo é um dos princípios da teoria da percepção
formulada pelo gestaltismo. Esse princípio fala da percepção de um elemento que emerge
como figura em relação a um fundo, segundo algumas condições de organização perceptiva,
como o contraste entre formas com organizações mais ou menos privilegiadas. Nesse sentido,
o princípio de figura e fundo organiza a percepção visual. Em suas investigações acerca das
relações entre a visão e o tato, Gibson (1962, p. 488) comenta que:

[...] a unidade da percepção visual é baseada no fenômeno “figura e fundo”, que


seria o registro simultâneo de todo o contorno, enquanto que a unidade da percepção
tátil tem de se basear em impressões cutâneas separadas ou em impressões
sucessivas.

Um importante comentador da teoria da Gestalt, Paul Guillaume, afirma que “todo


objeto é sensível, portanto, não existe senão em relação a um certo fundo; esta expressão
aplica-se não somente às coisas visíveis, mas a toda espécie de objeto ou de fato sensível”
(s/d, p. 44). Contudo, assim como apontado por Gibson, o caráter proximal e sequencial do
tato faz com que o princípio de figura e fundo pareça não se aplicar à organização do tato.
Gentaz e Hatwell (2000, p. 130) também afirmam que, “devido ao caráter sequencial de
exploração tátil e à sua possibilidade de modificar a vontade o tamanho do campo perceptivo,

10
Retirado do diário de campo de 24 de abril de 2012.
58

o toque é menos sensível que a visão às leis gestaltistas de organização da configuração


espacial”. A noção de perspectiva em pessoas cegas também pode parecer controversa e será
analisada mais à frente neste capítulo.
No que diz respeito às propriedades de textura e forma, vemos que ambas são bem
apreendidas tanto pelo sentido tátil quanto pelo visual. Entretanto, as características
distal/proximal e sintética/analítica marcam a diferença de percepção destas propriedades pela
visão e tato.
Enquanto a forma global é rapidamente apreendida pela visão, o tato demanda
proximidade do objeto e um tempo maior para tal. Levando em conta que a forma seria o
atributo de base para a categorização de objetos em seu nível mais abstrato, Klatzky e
Lederman (2000) realizaram experimentos para compreender as diferenças entre o tato e a
visão no reconhecimento de objetos. Para isto, foi utilizada, além da forma, uma grande
variedade de qualidades materiais para a investigação e as autoras concluíram que, para o tato,
a ênfase para o reconhecimento de objetos não está na forma ou em sua disposição espacial,
mas sim no material dos objetos. A forma, apesar de ser uma propriedade importante para esse
processo, não é a única a nos fornecer informações sobre os objetos. Segundo as autoras, “a
informação háptica sobre a forma, que é grosseira, pode ser melhorada pelos dados de
qualidades materiais, que aumentam a velocidade e a precisão com a qual o objeto é
identificado” (KLATZKY; LEDERMAN, 2000, p. 122). Nessa mesmo direção, citamos uma
ressalva de Gibson (1962, p. 489):

Se tanto a visão quanto o tato podem registar forma é uma questão ambígua [...]. A
resposta depende do que se entende por forma. Desenhos e imagens sobre uma
superfície plana são “sentidas” apenas pela visão. A conformação das arestas de um
objeto, no entanto, é detectado por ambos, visão e tato ativo. Os recursos tangíveis e
visíveis de coisas abstraídas pela geometria sólida (inclinação, curvatura, borda,
canto) não parecem mais complexas à introspecção do que os recursos unicamente
visíveis das coisas abstraídas da geometria plana (triângulo, quadrado, círculo).

O termo textura engloba todas as características físicas da superfície de um objeto,


como a rugosidade, dureza, elasticidade, dentre outras. Gentaz e Hatwell (2000) afirmam que
a percepção da textura pelo tato é tão bem apreendida quanto pela visão e, por vezes, para
texturas extremamente finas, como a de papéis abrasivos (que arranham, como lixa), o tato
pode mesmo ultrapassar a visão. Experimentos realizados por Heller (1989) com videntes
trabalhando sem ver, cegos congênitos e cegos tardios mostram que a condição visual não
influencia no desempenho do percebedor. Pelo contrário, em vez de comparar os sentidos na
percepção de textura, os autores indicam a complementariedade dos dois sentidos. Pela visão,
59

podemos identificar as texturas presentes em uma superfície, mas é somente ao tocá-las que
essas impressões ganham materialidade. A modalidade háptica parece, portanto, bem
especializada na apreensão das propriedades materiais dos objetos, enquanto que a visão o é
no domínio espacial (GENTAZ; HATWELL, 2000). Segundo os mesmos autores, a textura se
mostra para o tato de forma similar à cor para a visão, por ser acessível por meio de uma
exploração simples do objeto e por não necessitar de nenhuma referência exterior.

2.3 QUESTÕES EMERGENTES

2.3.1 A noção de perspectiva e imagens táteis bidimensionais

Durante a pesquisa bibliográfica sobre o funcionamento cognitivo de pessoas com


deficiência visual, houve o surgimento do problema da relação entre a representação gráfica
da perspectiva e as imagens táteis bidimensionais. Trata-se de uma questão fundamental para
pensarmos a acessibilidade estética à arte. Em visitas às exposições acessíveis no CCBB,
observamos que, muitas vezes, as pessoas com deficiência visual não conseguiam entender o
conteúdo das imagens táteis que buscavam reproduzir obras de arte visual. Ao longo de nosso
estudo vimos que não existe uma única justificativa, mas sim diferentes posicionamentos de
pesquisadores frente a essa questão. Buscamos apresentar uma discussão sobre estas
diferentes posições acerca da noção de perspectiva em cegos congênitos e imagens táteis, e,
por fim relacionamos o tema à acessibilidade estética tátil.
A perspectiva é um modo de representação de objetos tridimensionais em um plano
bidimensional, que pode ser percebido a partir de um determinado ponto de vista. A
perspectiva organiza as proximidades e distâncias de objetos em relação ao observador. Esse
afastamento dos objetos do observador geralmente é representado graficamente por uma
alteração em suas cores, tamanhos e nitidez. Uma diminuição constante e graduada de objetos
e espaços intermitentes dá a ideia de profundidade de campo, onde o que está mais próximo se
destaca como figura, enquanto o fundo se mostra mais distante. Para uma pessoa que nunca
viu, a noção de perspectiva não parece evidente. O caráter proximal do tato faz com que a
distância de um objeto em relação ao percebedor seja limitada, se comparada à visão. Com a
distância, a pessoa cega não teria a impressão da diminuição ou alteração do objeto tocado,
como acontece quando utilizamos da visão.
Contudo, Heller e Gentaz (2014) comentam que os estudos de Kennedy (1993) e de
Kennedy e Juricevik (2006a, 2006b) apontaram que a perspectiva linear seria tão acessível ao
60

tato quanto o é para a visão. Citando o caso de um pintor cego congênito que pintava quadros
onde apareciam casas e estradas em proporções que diminuíam em função da distância, o
autor afirmava que essa seria uma possível prova de que a ideia de perspectiva existe para a
percepção háptica em pessoas cegas congênitas. Mas esse argumento, um tanto complexo e
controverso, exigiu o desenvolvimento de outros estudos.
Heller et al. (1995) realizaram uma pesquisa com pessoas cegas congênitas, cegas
tardias e pessoas videntes vendadas, em que foi pedido que desenhassem modelos de casas
por diferentes pontos de vista. Apesar da baixa performance dos sujeitos nos desenhos das
vistas em três dimensões, como vistas aéreas ou laterais que envolviam perspectiva, os
pesquisadores notaram que os participantes cegos, inclusive os congênitos, pareciam
representar a perspectiva em seus desenhos. Isso os motivou a investigar se pessoas cegas
congênitas usam espontaneamente as regras da perspectiva visual em seus desenhos e se há a
influência da experiência visual na produção e interpretação de desenhos onde aparecem
objetos em perspectiva. Para tal, Heller, Calcaterra, Burson e Tyler (1996) pediram a pessoas
cegas congênitas, tardias, baixa-visão e pessoas videntes usando vendas para realizarem
desenhos em alto-relevo de um quadro posicionado em angulações diferentes. Os
pesquisadores perceberam que para os sujeitos que eram cegos congênitos, apesar de eles
variarem as inclinações das linhas em seus desenhos, eles mantiveram o quadro do mesmo
tamanho, o que os levou a concluir que a “experiência visual contribui claramente para o uso
do escorço [representação gráfica de objetos em proporções menores para efeitos de
perspectiva] em desenhos de perspectiva” (HELLER; GENTAZ, 2014, p. 137).
Em seguida, um terceiro experimento foi realizado com os mesmos sujeitos. Eles
deveriam relacionar os desenhos em perspectiva com o quadro posicionado nos mesmos
ângulos que eles haviam experimentado anteriormente, sem receber nenhum feedback sobre
suas performances. Nesse caso, os cegos congênitos atingiram níveis de performance
parecidos com os videntes usando vendas, enquanto que os cegos tardios atingiram os maiores
escores. Os pesquisadores cogitaram que estes resultados poderiam apontar mais para uma
possível vantagem da experiência com imagens táteis aliadas à habilidade háptica do que para
a necessidade de experiência visual prévia, que não pareceu necessária para que as pessoas
cegas aprendessem sobre perspectiva, já que o contato com seus elementos representacionais
pareceu fornecer informações suficientes para que resolvessem os problemas colocados pelas
imagens em perspectiva. Isto os levou a crer que uma experiência com as regras gráficas da
perspectiva poderia capacitar pessoas cegas congênitas para compreendê-las.
61

Outros estudos foram realizados por Heller et al. (2002, 2006, 2009) na tentativa de
entender melhor o problema da perspectiva no reconhecimento, compreensão e na prática de
desenhos por pessoas cegas. O quarto experimento de Heller et al. (2009) foi o de apresentar
desenhos (imagens táteis em alto-relevo ou papel inflado) de diferentes pontos de vista sobre
uma casa: a vista lateral, uma vista elevada a três quartos da altura da casa, a vista do “olho de
um pássaro” e uma imagem feita ao acaso. Nesse experimento, além de participarem sujeitos
cegos congênitos, cegos tardios e videntes vendados, participaram também pessoas com baixa
visão. Ao ser pedido para que se identificasse as representações da vista do “olho do pássaro”,
o grupo com baixa-visão se destacou. Heller e Gentaz (2014, p. 140) pontuam que:

Claramente a experiência com representações foi importante para auxiliar o grupo


baixa visão a obter melhor performance do que o grupo cego congênito, e a
compreensão do impacto da elevação em desenhos talvez se dê pela falta de
experiência com perspectiva em duas dimensões. Contudo, os resultados não
indicaram que esta experiência deveria ser especificamente visual em natureza. É
provável que a experiência háptica possa ser suficiente. É a experiência com as
figuras (imagens) táteis que é deficiente nas bases educacionais de indivíduos cegos
congênitos em muitas partes do mundo.

Aqui os autores apontam, portanto, que para além da falta de experiência visual, a
baixa performance de grupos de pessoas cegas congênitas em relação aos outros grupos em
tarefas que envolvem identificação da perspectiva em imagens táteis tem a ver com o pouco
ou nenhum contato deles com esse tipo de material. Ou seja, os autores parecem defender a
posição de que pessoas cegas congênitas, por mais que nunca tenham percebido por meio da
visão objetos em perspectiva, podem aprender suas regras de representação por meio das
imagens táteis. Heller e Gentaz (2014, p. 149) comentam que os domínios da psicologia
educacional e da educação, ao afirmarem que pessoas cegas pensam de forma diferente das
pessoas videntes, colocam limites no acesso às imagens táteis. Isso faria com que a
experiência com imagens em alto relevo precisasse sempre de mediação vidente, ou que
crianças cegas fossem privadas do contato com elas e com a prática do desenho, o que
restringiria sua educação. Ao contrário, os pesquisadores encorajam o uso de imagens táteis e
refutam o argumento de que imagens seriam apenas visuais, o que levaria à conclusão
equivocada de que imagens táteis não seriam adequadas.
Apesar do posicionamento dos autores supramencionados, o uso de imagens táteis por
pessoas cegas é ainda uma questão controversa. Também pela via da apreensão da perspectiva
por pessoas cegas, Hatwell e Martinez-Sarocchi (2000) discutem a utilização de imagens
táteis e afirmam que “a reprodução do real pelo desenho é sempre custosa para os cegos
62

congênitos, o que explicaria porque eles muito raramente o utilizam espontaneamente” (2000,
p. 277). As autoras comentam os mesmos estudos realizados, em 1996, por Heller, Calcaterra,
Tyler e Burson com cegos congênitos, tardios e pessoas com baixa-visão sobre a
representação gráfica da perspectiva. Segundo Hatwell e Martinez-Sarocchi, esses estudos
mostram que o reconhecimento da perspectiva parece uma tarefa difícil para as pessoas cegas
congênitas devido ao fato de serem privadas desde sempre do sentido visual. Para essas
autoras, “os cegos precoces podem compreendê-la, porém em situações simplificadas em
laboratório, pois se a representação gráfica apresentar certo grau de complexidade,
dificuldades consideráveis aparecem” (2000, p. 277). Ou seja, as autoras parecem também
considerar que estas pessoas são capazes de aprender as regras da representação de
perspectiva. Contudo, esse não seria um trabalho simples. Apontam também que tal
aprendizado poderia ser positivo para cegos congênitos devido ao desafio cognitivo que lhes
coloca, justamente por não possuírem experiência visual anterior. Hatwell e Martinez-
Sarocchi (2000) comentam ainda que, no meio da deficiência visual, há significativa
resistência à utilização destas imagens, que representariam uma “colonização do visual”.

2.3.2 Imagens táteis em livros e museus

Imagens táteis bidimensionais foram amplamente estudadas por Ivonne Eriksson


(2007, 2008) e Philippe Claudet (2011), esse último que dirige a editora que desenvolve livros
com imagens táteis para crianças na França, a Les Doigts Qui Rêvent. Dannyelle Valente
(2015) também apresenta uma investigação acerca desse tema, por meio de estudos sobre a
prática de leitura e de produção de desenhos táteis por pessoas cegas. Esta autora comenta
que, por mais que a disseminação dessas imagens nos domínios educacional e cultural seja
recente, seu surgimento data do final do século XIX (VALENTE, 2015 apud ERIKSSON,
2008).
Baseada na ideia de que todo conhecimento conceitual deve se construir a partir de
experiências sensoriais, a produção inicial principal de imagens táteis foi em função da
representação de conteúdos das ciências naturais. Assim, as imagens táteis poderiam auxiliar
na compreensão de conceitos difíceis para quem não enxerga, como monumentos históricos e
objetos à distância. Para isto, muitas elas vinham acompanhadas por um texto descritivo
(VALENTE, 2015, p. 40).
Atualmente, as imagens táteis permeiam três campos principais: o pedagógico, o
campo artístico/cultural, e dos livros táteis infantis que passaram a se desenvolver nos anos
63

90. Claudet (2011) pontua que, por mais que muitas crianças cegas que frequentam
instituições especializadas estejam mais familiarizadas com imagens táteis em livros
escolares, o alto custo de sua produção faz com que muitas delas fiquem ainda muito
limitadas ao domínio pedagógico, tais como mapas de geografia e figuras da biologia, como
animais e plantas. Para o autor, “ler uma imagem visual ou uma imagem tátil é uma
aprendizagem que se deve ter cedo na vida. A escassez de imagens táteis não permitiu que se
criasse a cultura da imagem tátil” (CLAUDET, 2011). Assim, apenas uma minoria, como
crianças de alguns países ocidentais, pode se beneficiar da profusão de imagens táteis em
livros.
Para o autor, as imagens táteis se pretendem bimodais, ou seja, podem ser apreendidas
tanto pela visão quanto pelo tato. Contudo, por se tratarem da tradução de imagens percebidas
visualmente, as imagens táteis são ainda extremamente marcadas pela cultura visual,
produzidas por pessoas videntes para pessoas com deficiência visual. Segundo Dannyelle
Valente e Bernard Darras (2010), esse processo faz referência à “Teoria da Mente”, que
consiste em imaginar como o outro (no caso, as pessoas cegas) pensa e representa o mundo.
Ao serem construídas, na maioria das vezes, por profissionais que não possuem um
conhecimento especializado acerca da cognição de pessoas com deficiência visual, as imagens
táteis costumam carregar aspectos essencialmente visuais, deixando de lado aspectos
importantes que não são conhecidos por quem vê, mesmo com os olhos fechados.
Assim, voltando à observação de Hatwell e Martinez-Sarocchi, as imagens táteis,
sendo oriundas da cultura visual, não poderiam representar uma colonização da visão? E o
que isso teria a ver com nossa pesquisa com acessibilidade à arte? Consideramos a questão
importante para pensarmos a eficácia das placas táteis bidimensionais para acessibilidade
estética de pessoas cegas ou com baixa-visão. Vimos que as imagens táteis podem ser úteis
em alguns domínios, como o da educação, mas seriam elas bons recursos para a promoção da
experiência estética? Obras de arte como a pintura, a fotografia, o desenho e a gravura são
bidimensionais e, geralmente, operam com projeções que são aprendidas pelos videntes desde
a infância.
Nos últimos anos, tem havido um investimento crescente na produção de imagens
táteis por museus para a acessibilidade de pessoas com deficiência visual. Claudet (2011) e
Valente (2015) citam a Cité des Sciences & de l‟Industrie em Paris, França, que desde os anos
90 publica edições limitadas de livros com imagens em alto relevo de monumentos, mapas
geográficos, arquitetura, astronomia, arte, além de edições acerca dos conteúdos de
exposições temporárias. Valente (2015) comenta um artigo publicado por Michel Bris e Jean-
64

Claude Morice em 1995, que ressalta o fato de o contato das pessoas com deficiência visual
com esse tipo de imagem resultar em ganhos comunicacionais importantes, que as incluem
nos mesmos registros gráficos que as pessoas videntes. Mas, devido à grande dificuldade de
compreensão destas imagens pelas pessoas com deficiência visual, o museu oferece cursos
que explicam os códigos gráficos utilizados para produzi-las e ensina a explorá-las.
Assim, é visto que existem iniciativas no intuito de uma aprendizagem para o acesso
de pessoas cegas a conteúdos informacionais, artísticos e figurativos da cultura visual,
traduzidos em imagens para tocar. Mas esta aprendizagem é uma tarefa difícil exigindo
grande esforço, principalmente de quem as encontra pela primeira vez. Na França, além da
Cité des Sciences, o Museu do Louvre, o Museu da Idade Média e o Centre Georges
Pompidou disponibilizam imagens táteis de algumas obras de seus acervos (VALENTE,
2015).
Sobre o acesso ao prazer e à emoção estética obtidas por meio de representações em
alto relevo de obras de arte bidimensionais, Hatwell e Martinez-Sarocchi (2000) pontuam que,
muitas vezes, a elaboração desse material não leva em conta a heterogeneidade de modos de
perceber das pessoas com deficiência visual. Outras vezes, as propostas museológicas ou
editoriais podem privilegiar a eficácia informativa do tato, indo em uma direção mais
educativa do que estética. Já as imagens que priorizam a intenção do artista e a promoção da
partilha da emoção estética são, muitas vezes, incompreensíveis.
Desse modo, pensamos que mesmo que a utilização de imagens táteis comece a se
disseminar e as pessoas cegas adquiram maior familiaridade com elas, é preciso ousar na
criação de outros tipos de dispositivos capazes de criar condições para uma experiência que
ultrapasse o nível da informação e recognição. O modo como são desenvolvidas essas
imagens, que não priorizam as propriedades específicas do tato, ao nosso ver, pode reforçar a
ideia da colonização da visão. Veremos alguns exemplos da utilização de imagens táteis para
tradução de obras de arte visual no capítulo seguinte.

2.3.3 Felt meaning, transmodalidade e acessibilidade

Pensamos com todas as fibras


do nosso corpo11

Outra importante questão que surgiu na escrita deste trabalho foi a relação dos
conceitos de felt meaning e transmodalidade com as estratégias para a acessibilidade estética a
11
(JOUSSE, 1938 apud PETITMENGIN, 2007).
65

pessoas com deficiência visual. Como dito anteriormente, quando falamos de acessibilidade
estética dizemos do acesso a uma certa qualidade da experiência que, no contato com a arte,
seria capaz de nos fazer experimentar sensações intensas e marcantes. Mas, se o uso de
imagens táteis pode não ser a opção mais adequada para promover o acesso a uma obra de
arte visual a quem não vê, como seria possível “traduzir” essas obras?
Para pensar esta questão, recorremos ao texto de Claire Petitmengin (2007), que trata
de uma profunda dimensão da experiência subjetiva, que Willian James chamava de “franja
da consciência”. Essa dimensão, chamada source dimension, seria a dimensão originária da
experiência, uma fonte de onde emergem elementos da cognição, tais como pensamentos,
compreensões e memórias. Antes mesmo de esses aspectos aparecerem por meio de formas
precisas, como imagens, emoções e sons, podendo ser identificados e nomeados, somos
permeados por uma sensação, um feeling, que os anuncia. Essa profunda dimensão da
experiência, primitiva por ser anterior à separação entre modalidades sensoriais distintas
como a visão, o tato etc., e também à dimensão emocional, é difusa, sem delimitação precisa,
de difícil localização.
Seu caráter pré-conceitual e pré-discursivo faz com que ela não seja nem consciente
nem inconsciente. Assim, para acessarmos a source dimension é necessária certa modulação
da qualidade da atenção para uma posição atencional específica, como abertura e
descentramento de um local específico para o corpo todo. Além disso, é importante certa
estabilização e concentração da atenção em um “objeto” interno, vivo e movente: o felt
meaning.
O felt meaning é o material da experiência, que é evocado como uma impressão
global, uma linha de coerência que confere sentido ao que é vivido, percebido e sentido. Ele é
a base de nossos processos cognitivos. No caso de uma nova ideia, por exemplo, antes dessa
chegar a uma forma precisa e comunicável, antes que possamos dizer “tive uma ideia!”, essa
aparece na superfície da consciência como uma sensação turva e vaga, como um
pressentimento ou uma direção do pensamento com uma linha de força interior
(PETITMENGIN, 2007). O felt meaning, apesar de vago, é intenso e não necessariamente
transitório, sendo específico a determinadas situações. O encontro com uma obra de arte,
como uma pintura, um poema ou uma música, pode levar a esse tipo de experiência, de captar
um sentido que não está dado, que não compreendemos intelectualmente mas que é intuído e
que persiste.
Petitmengin (2007) também nos apresenta a relação entre esse material da experiência
e as modalidades sensoriais. A autora pontua que o felt meaning possui caráter
66

multissensorial, ou seja, que se pode acessar, simultaneamente, não somente registros


sensoriais, mas também sensações internas mais sutis a eles relacionadas. Assim, o felt
meaning não estaria associado a uma modalidade sensorial específica. Antes de ser
considerado multimodal (ativação ao mesmo tempo de todos os sentidos), ele é transmodal,
ou seja, leva-se em conta submodalidades comuns a todos os sentidos, que constituem nossa
percepção e estão aquém de sua divisão em modalidades distintas. Poderíamos mencionar,
portanto, dois níveis da experiência: modal e transmodal. Segundo Petitmengin (2007, p. 64):

Uma observação precisa mostra que um felt meaning tem submodalidades sensoriais
precisas – essencialmente forma, intensidade, ritmo e movimento – que possuem em
comum a característica de serem “transmodais”, i.e. eles não são específicos de um
sentido particular, mas podem ser transpostos de um sentido para o outro (ao
contrário, por exemplo, da temperatura e textura, que são específicos do tato, ou
volume que é específico da audição).

Essas submodalidades – forma, intensidade, ritmo e movimento – foram chamadas por


Daniel Stern (1985, 1989) de afetos de vitalidade e possuem uma dinâmica própria. O autor
considera que os afetos de vitalidade constituem a experiência subjetiva dos bebês, mas não se
trataria de uma fase do desenvolvimento. Pelo contrário, esses afetos continuariam embasando
nossa experiência subjetiva ao longo da vida. De acordo com Petitmengin (2007), esses afetos
de vitalidade compõem a dimensão dinâmica sutil da experiência e, por serem transmodais,
são sentidos de modo mais profundo, compondo um processo interno. Assim, poderíamos
dizer que eles compõem nossos processos cognitivos e, por serem afetos, seriam uma
ancoragem no corpo de processos perceptivos.
Seriamos, desse modo, ativados internamente por movimentos do nosso entorno, que
não somente incorporaríamos, mas recriamos, pois sentimos e criamos sentido para o que nos
atravessa. A autora pontua que, até mesmo pessoas cegas, que não têm acesso aos movimentos
do mundo por meio da visão, podem senti-los por meio de outros modos corporais: “[...] é
nesse gestual, pré-discursivo, em estruturas corporificadas da nossa experiência que o sentido
é encontrado, não somente o sentido linguístico, mas sentido nesse sentido mais amplo”
(PETITMENGIN, 2007, p. 67). Assim chegamos ao caráter corporal do felt meaning, que é
um “sentido sentido” ou “sentido intuído”, produzido no corpo. Mas, como esses afetos e o
felt meaning se relacionam com o tema da acessibilidade à arte?
Pensando a arte, Petitmengin (2007) comenta que o que é expresso por artistas em
suas obras, mais do que os chamados afetos categóricos, como tristeza, alegria, medo, seriam
os afetos de vitalidade. Ou seja, o caráter transmodal da experiência seria fundamental para se
67

criar e\ou acessar uma obra de arte. No encontro com a arte, nossa permeabilidade
(conseguida por uma determinada disponibilidade atencional) pode nos levar à sensação de
expansão de si e conexão com o entorno, a uma experiência que dilata o individual e
disponibiliza o corpo para ser atravessado pelas forças da obra. Tocados no corpo, esse seria
muito mais um processo afetivo de criação de sentido do que um processo intelectual de
compreensão de uma informação. Nesta linha, para que possamos ser tocados por algo que
não vemos, como no caso das forças de uma obra de arte visual e pessoas cegas, passamos a
precisar de uma boa tradução.
De acordo com Petitmengin, (2007, p. 72), o bom tradutor não necessariamente traduz
com palavras, mas “faz um desvio” via sentido não verbal que as embasa. Nas artes visuais
esse desvio em direção à sensação seria fundamental, pois as sutis variações do que se sente
ao se ver uma paisagem, por exemplo, são traduzidas em cores e formas, que remetem a uma
referência interior do artista. “Quando o Cézanne pinta a paisagem, ele não tenta reproduzir o
que ele vê pela visão, [...] mas sugere a experiência primordial e transmodal de encontro com
aquela paisagem” (PETITMENGIN, 2007, p. 73). Assim, nem sempre a descrição de uma
obra aparece como o melhor caminho para um encontro com ela. Na descrição, o mais
essencial parece estar faltando.
A boa tradução da obra também não precisa se ater à exploração de seu conteúdo
formal, como vimos no problema das imagens táteis. O encontro com o que a sustenta,
enquanto obra de arte é sua força, o que nos atravessaria em um nível muito mais profundo da
experiência do que o nível intelectual. De acordo com a autora, o encontro com a arte é um
acesso àquela dimensão originária da experiência, que ativa o felt meaning, não somente pela
percepção. É importante que na acessibilidade sejamos bons tradutores, não de informações
sobre o artista ou sobre o conteúdo formal de uma obra, mas sim no sentido transmodal, para
que o sentido seja sentido e crie sentido, a partir do percurso de suas forças no corpo.
68

CAPÍTULO III

3 O PROJETO DE ACESSIBILIDADE DO CENTRO CULTURAL DO BANCO DO


BRASIL: ACOMPANHANDO UM PROCESSO

Neste capítulo, apresentamos em ordem cronológica as oito exposições que visitamos


no CCBB, de abril de 2012 a março de 2015, em que diferentes estratégias e dispositivos para
acessibilidade estética foram oferecidos. Cinco destas exposições são integralmente
analisadas, por apresentarem quebras e mudanças no modo de fazer acessibilidade. As outras
três exposições, que denominamos “bifurcações” são referidas de modo mais breve, em
subitens. Apresentar tais exposições faz-se importante por serem também parte do processo, e
por apresentarem pequenos desvios no modo de pensar/fazer/inventar novas estratégias.
As exposições analisadas são Tarsila do Amaral: um percurso afetivo; Antony
Gormley: corpos presentes; Yayoi Kusama: obsessão infinita; Ouro: um fio que costura a arte
no Brasil e Kandinsky: tudo começa num ponto. Discorremos acerca do tema das exposições,
do artista ou movimento artístico e, em seguida, descrevemos a visita, as estratégias e os
dispositivos utilizados para a mediação das pessoas com deficiência visual, ressaltando seus
analisadores. A proposta da análise dos mesmos tem como objetivo avaliar os efeitos e
possível eficácia das estratégias utilizadas para a acessibilidade à arte enquanto produtoras de
experiências estéticas de pessoas cegas e com baixa visão.
A análise é baseada em relatos dos diários de campo produzidos por todos os membros
da equipe do projeto que participam das visitas. A produção de dados é coletiva, já que
escrevemos o que foi experienciado por cada um em campo; e discutimos os diários de campo
em grupo para ressaltarmos o que é passível de análise.
Os relatos são ferramentas essenciais para a pesquisa cartográfica, desse modo, extraio
e apresento, ao longo dos itens das exposições, pequenos trechos dos diários de campo, que
dizem respeito às experiências dos participantes e às dos membros da equipe.

3.1 TARSILA DO AMARAL: UM PERCURSO AFETIVO

A exposição Tarsila do Amaral: um percurso afetivo, teve lugar no CCBB de fevereiro


a abril de 2012 e foi composta por 85 obras das diferentes fases de sua carreira. Tarsila do
Amaral foi uma artista plástica ligada ao Movimento Modernista Brasileiro, um movimento
de amplo espectro cultural que trazia como proposta artística a ruptura com a estética
69

delimitada pelas normas da arte clássica. No Brasil, o Modernismo, que teve seu ápice na
Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, trazia elementos das vanguardas
europeias como o cubismo, o futurismo e o surrealismo. As pinturas de Tarsila do Amaral são
marcadas pelo desprendimento da semelhança com a realidade, buscando simplificação e
geometrização das formas e volumes para retratar paisagens e objetos. Situando três planos
em um único e mesmo plano, as obras da artista ignoram as leis da perspectiva. O Movimento
Modernista Brasileiro foi composto por duas fases: a Pau-brasil e a Antropofágica.
A fase Pau-Brasil das obras de Tarsila teve início em 1924 e caracteriza-se por cores e
temas tropicais, pela riqueza da fauna e da flora brasileira e pelo maquinário que marca a
modernidade, principalmente em São Paulo. Uma das obras importantes desse período é São
Paulo, onde se destaca a predominância de sinalizações urbanas e ferrovias, pouca vegetação
cortada por uma árvore “balão” – marca da artista – e ausência de figuras humanas. O
Manifesto da Poesia Pau Brasil, escrito por Oswald de Andrade e publicado no Correio da
Manhã em 18 de março de 1924 veio a corroborar o estilo de Tarsila. Esse manifesto pregava
um novo paradigma estético para a arte no país, que propunha a valorização da cultura
nacional e outros modos de retratá-la, apontando para a invenção e surpresa pela criação de
novas perspectivas e escalas, em que “os objetos distantes não diminuíam”. A obra Abaporu,
de 1928, marca o início do Movimento Antropofágico, que propunha a deglutição e digestão
da cultura estrangeira, a fim de promover a incorporação de suas qualidades para transformar
a arte brasileira, valorizando-a.

3.1.1 Estratégias e dispositivos táteis: visita em três tempos

Em nossa pesquisa, acompanhamos três grupos heterogêneos compostos de pessoas


com deficiência visual e pessoas videntes na exposição de Tarsila. O primeiro grupo era
formado por uma menina cega congênita e duas videntes, o segundo por um cego congênito,
duas pessoas baixa visão e cinco pessoas videntes, e o terceiro grupo contava com quatro
pessoas com baixa-visão e uma pessoa cega congênita. Ao todo, participaram dessa primeira
exposição nove pessoas com deficiência visual. Algumas delas nunca haviam estado em um
centro cultural. Estas visitas foram mediadas pela equipe do Educativo do CCBB e divididas
em três momentos.
70

3.1.1.1 Primeiro tempo: audiodescrição das obras na galeria

O primeiro momento se dava dentro da galeria de exposição, junto às obras


previamente selecionadas pela equipe para o trabalho de mediação. Em companhia de
mediadores munidos de um rádio gravador portátil, os visitantes eram guiados pelas salas de
exposição, detendo-se diante de algumas obras para que pudessem escutar gravações que
continham descrições visuais destas pinturas. As audiodescrições eram feitas por três pessoas
diferentes: um menino de 6 anos, um engenheiro de 27 anos e uma bailarina de 35. Esse
procedimento tinha como objetivo mostrar diferentes pontos de vista sobre a mesma pintura,
para que as pessoas cegas pudessem construir suas próprias imagens mentais das obras.
A gravação de descrições das obras feitas por diferentes pontos de vista parecia ser
uma proposta interessante para iniciar a visita à exposição de Tarsila. Por acontecer dentro da
galeria, em frente às pinturas da artista, o público deficiente visual podia experimentar o
ambiente expositivo mesmo sem ver, podendo estar presente por meio da audição e das trocas
de impressões com o grupo. O grupo de pessoas com deficiência visual ficava junto com o
público espontâneo que visitava a exposição naquele momento, causando estranhamento em
quem passava.
Contudo, tal estratégia ficou comprometida devido à má qualidade da gravação e do
equipamento de som, que tinha volume muito baixo em relação ao barulho dentro das galerias
no instante da visita. Os ruídos ao fundo nos impediam de ouvir o áudio com clareza, apesar
do interesse que muitos dos visitantes com deficiência visual demonstravam pelas descrições
das obras. A alternativa proposta pelos mediadores para driblar essas dificuldades foi sugerir
naquele momento que as pessoas videntes (acompanhantes, familiares, os bolsistas da
pesquisa) descrevessem o que viam para quem não via. Em seguida, os mediadores faziam
perguntas para as pessoas com deficiência visual para que tentassem “adivinhar” o que eram
as figuras que compunham das obras, contextualizando as respostas com informações sobre a
artista ou sobre o movimento modernista.
Implicar todos na visita despertou o interesse do público em participar, fosse
descrevendo, comentando, colocando questões ou inventando histórias sobre as imagens. Uma
das obras que mais instigou os visitantes, tanto as pessoas videntes quanto as cegas e aquelas
com baixa-visão, foi a pintura Urutu (1928).
71

Figura 1 - Urutu, de Tarsila do Amaral, 1928, (60 x 72 cm)

Uma das pessoas videntes a descreveu como “um carretel com a linha enrolada na
agulha”. Um senhor cego contou a história de ter se deparado com uma cobra urutu na estrada
antes de perder a visão, quando ainda era caminhoneiro12. Outro senhor, que tinha baixa visão,
comparou a cobra urutu da pintura de Tarsila a uma sucuri gigante, como a do filme
estadunidense Anaconda (1997), que se arrastava pelo mato em busca de alimento.13 Algo foi
produzido ali.
Além das descrições das obras, perguntas eram feitas sobre cada uma delas, para
enriquecer a visita. Porém, as questões colocadas pelos mediadores referindo-se às obras,
como “o que pode ser uma senhora careca, de pele escura, lábios carnudos e de seio de fora?”
para A negra (1923)14, parecia um jogo de adivinhações de possíveis, o que se aproxima mais
da experiência de recognição dos elementos de uma obra do que da abertura a uma
experiência estética.

12
Retirado do diário de campo de 12 de abril de 2012.
13
Retirado do diário de campo de 24 de abril de 2012.
14
Retirado do diário de campo de 12 de abril de 2012.
72

Figura 2 - A negra, de Tarsila do Amaral, 1923, (100 x 80 cm)

3.1.1.2 Segundo tempo: dispositivos táteis na Estação Sensorial

O segundo momento da visita aconteceu no saguão do CCBB, onde havia sido


montada uma Estação Sensorial aberta ao público em geral. Essa contava com dispositivos
para exploração tátil, como maquetes, caixas e diferentes tipos de placas táteis que buscavam
reproduzir de modo tátil as pinturas de Tarsila. Na estação também eram disponibilizadas
vendas para que as pessoas videntes pudessem explorar os dispositivos pelo tato,
experimentando momentaneamente o lugar de não-ver.

3.1.1.2.1 Maquetes e caixas

As maquetes continham elementos com formas e cores idênticas às da obra original e


que eram dispostos exatamente como na pintura. Esses elementos eram feitos de isopor e
podiam ser manipulados. Eles ficavam encaixados de modo que, mesmo sendo retirados do
lugar, era possível recolocá-los em suas posições originais. As caixas também eram compostas
por elementos móveis, que eram feitos de materiais diversos e possuíam diferentes texturas,
73

pesos e durezas. A caixa da pintura Urutu era composta por um ovo de avestruz, uma cobra
feita de cetim e um cone fino e longo, feito de plástico. A caixa da obra Antropofagia possuía
bonecos de pano que ficavam sobre uma superfície de feltro, no fundo da caixa. Segue abaixo
a fotografia da maquete e das caixa feitas para a obra Antropofagia.

Figura 3 - Antropofagia, de Tarsila do Amaral, 1929 (126 x 142 cm)

Figura 4 - Caixa e maquete: dispositivos táteis utilizados para acessibilidade da obra Antropofagia
74

Esses dois tipos de dispositivos pareciam, em um primeiro momento, propícios para a


acessibilidade das pessoas com deficiência visual, por possuírem como característica principal
a tridimensionalidade. Ao convocarem a percepção háptica, que consiste nos movimentos dos
dedos, mãos e braços (HATWELL, 2000), esses dispositivos permitiam uma exploração mais
completa de seus elementos, já que é desse modo que estas pessoas normalmente exploram os
objetos em seu cotidiano.
O fato de os elementos serem móveis, permitia manipular e explorar não somente suas
formas, mas também as propriedades que o tato oferecia daqueles objetos, como o volume, o
peso e a dureza de seus materiais. Além disso, as pessoas com baixa-visão podiam aproximar
os objetos do rosto, para tentar ver melhor os elementos que compunham as imagens que
haviam sido descritas dentro da galeria. As caixas, em especial por serem compostas por
elementos com diferentes materiais e texturas, favoreciam o reconhecimento dos elementos.
Já o reconhecimento dos elementos das maquetes, que eram feitos de isopor, pareceu um
pouco mais difícil.

3.1.1.2.2 Placas táteis

Os outros dispositivos – as placas táteis – eram de três tipos: com imagem em alto-
relevo, com aplicação de texturas e as placas com linhas de contorno. As duas primeiras foram
anteriormente discutidas por nós no artigo Aesthetic Accessibility and Tactile Images of Works
of Art (GUERREIRO; KASTRUP, 2015), servindo-nos de base para a análise aqui
apresentada. Já as placas com linhas de contorno são analisadas no terceiro tempo da visita,
juntamente com a atividade de desenho com linhas.

Placas em alto-relevo

As placas em alto-relevo eram feitas em madeira e possuíam as mesmas dimensões e


disposição dos elementos da pintura original. As formas presentes na placa se pretendiam
iguais às da obra e eram destacadas pela diferenciação do relevo. As formas que pareciam ter
mais valor pictórico possuíam relevo mais alto, sendo esse gradualmente mais baixo para as
demais formas. Assim como os dispositivos tridimensionais, as placas em alto-relevo exigem
para sua exploração que as pessoas com deficiência visual utilizem a percepção háptica.
O ato de seguir os contornos dos objetos, por suas linhas e curvas, é importante para a
construção da imagem mental do que foi percebido. No entanto, apresentar a uma pessoa cega
75

a tradução de objetos para duas dimensões, limita estes movimentos exploratórios. Segundo
Almeida, Carijó e Kastrup (2012), na exploração manual livre de um objeto, busca-se sempre
sua geometria tridimensional, ou seja, seus vértices, arestas, curvaturas e volume. Porém,
devido ao caráter bidimensional de uma figura em alto relevo, os movimentos exploratórios
ficam restritos ao alisamento da superfície, o que limita o funcionamento do sistema háptico
visto que, de cada objeto representado, apresentamos apenas uma face.
Valente e Darras (2010) apontam para essa dificuldade já que, na elaboração de
dispositivos desta natureza, espera-se que os dedos dos cegos sejam correspondentes aos
olhos dos videntes, não levando em consideração as diferenças de experiência decorrentes da
utilização da visão ou tato como meio de conhecer o mundo. Por serem representações
bidimensionais de objetos conhecidos em sua tridimensionalidade e de maneira
multissensorial na vida cotidiana, os desenhos ou pinturas em alto-relevo são difíceis de
serem identificados por serem pouco específicos, abarcando a possibilidade de representarem
muitas coisas diferentes (HATWELL, 2000).

Figura 5 - São Paulo, de Tarsila do Amaral 1924, (67 x 90 cm)


76

Figura 6 - Placa em alto-relevo da pintura São Paulo

A proposta de transpor para uma placa tátil uma pintura modernista, que opera a
simplificação de formas por meio de sua geometrização, pode parecer uma decisão acertada.
Assim, a tradução seria de formas menos complexas, o que facilitaria sua identificação e não
imporia características visuais, o que também poderia facilitar a compreensão da imagem a
ser explorada de modo tátil. No entanto, observamos que o problema não é apenas a
complexidade da imagem, mas diz respeito, sobretudo, a seu achatamento em duas dimensões
(GUERREIRO, KASTRUP, 2015).
A transposição da forma de um objeto de três dimensões para duas dimensões pode
causar confusão para quem não conhece ou não domina as regras da linguagem gráfica
bidimensional. Em uma das visitas que acompanhamos, uma moça cega congênita, ao ouvir
da mediadora que a árvore representada na placa em alto-relevo, referente à pintura São
Paulo, era redonda, comentou imediatamente que ela deveria se parecer com um poste. A
palavra “redonda”, pela qual a mediadora se referia à apreensão visual da copa da árvore de
Tarsila, foi compreendida pela menina como referente a um poste, tal como um tronco de
árvore pode ser apreendido pela percepção háptica. Abraçando um tronco de árvore ou um
poste, braços e mãos o circundam, acompanhando sua curvatura. A imagem mental, derivada
da percepção háptica é de algo circular que pode ser nomeado como redondo, o que
provavelmente provocou uma transposição dessa experiência, e que acabou conduzindo a um
equívoco.
77

Em seguida, a mediadora convidou a moça a tocar na placa em alto relevo, e esta


última disse então que a forma daquela árvore se assemelhava a uma raquete. A jovem tocou
algo redondo, achatado e plano e logo evocou a imagem de uma raquete, que é um objeto
praticamente destituído de uma terceira dimensão e feito de madeira, assim como a placa. A
imagem que ela toca não é reconhecida como uma árvore. Provavelmente o que prevalece em
suas imagens de árvore não é a forma, mas elementos e composições multissensoriais: a
rugosidade do tronco, o farfalhar das folhas, o perfume das flores, o frescor da sombra que
cobre o corpo. A árvore modernista não visa produzir uma imagem pictórica que reproduza
uma árvore tal como ela existe na natureza ou na arte clássica. As árvores com copa em forma
de balão, assim como palmeiras infladas são marcas do estilo de Tarsila (AMARAL, 1998).
Assim, a árvore modernista faz sentido estético quando opera um deslocamento visual de
outra imagem visual, anteriormente conhecida. Para a jovem cega, ela não fez sentido, pois
estava muito distante da sua imagem tridimensional e multissensorial de árvore. No caso, a
placa em alto-relevo limitou-se a representar sua dimensão formal em duas dimensões,
eliminando propriedades materiais táteis como as texturas, bem como deixou de fora a
dimensão multissensorial da experiência. Além dessa jovem, outras pessoas cegas também
tiveram dificuldade em associar as imagens que tocaram com as descrições que ouviram.

Placas com texturas

O segundo tipo de placas – as placas de textura – eram placas em madeira pintadas


com as mesmas formas da obra original, preservando seu conteúdo. Alguns objetos eram
destacados pela aplicação de texturas que se assemelhavam às dos objetos aos quais se
pretendia remeter. No caso da placa tátil da pintura Cartão Postal, por exemplo, temos pelúcia
para o animal, lixa para os cactos, papel rugoso e duro para o tronco da árvore e tecidos como
o feltro para representar suas folhas. Nesse tipo de dispositivo, também encontramos o
problema da projeção bidimensional e a prevalência de aspectos visuais, como a forma. Por
outro lado, esse tipo de imagem pode parecer mais adequado ao toque, já que usa como base
uma propriedade material muito importante para o tato: a textura.
78

Figura 7 - Cartão postal, de Tarsila do Amaral, 1924 (127,5 x 142,5 cm)

Figura 8 - Placa com texturas referente à pintura Cartão-postal

A placa de textura é uma placa em madeira pintada com as mesmas formas da obra
original, preservando seu conteúdo. Alguns objetos são destacados pela aplicação de texturas
que se assemelhem às de alguns dos objetos representados. Segundo Katz (1925/1989), os
movimentos exploratórios do tato se mostram essenciais para a apreensão das características
de textura de superfícies. A pressão exercida pelos dedos ou o ato de esfregar um objeto nos
dão informações precisas sobre ele.
79

Com a ajuda dos mediadores da exposição na exploração háptica, uma jovem cega
pôde identificar a presença de um animal no galho de uma árvore. O animal foi reconhecido
pela textura de pelúcia. No caso em questão, a jovem não demonstrou sinais de surpresa ou
encantamento estético, o que nos levou a pensar que a experiência havia ficado limitada ao
nível da recognição. Pierre Villey (1914) aponta que, quando uma pessoa cega identifica uma
propriedade material do objeto já conhecido, sua tendência é evocá-lo de modo automático.
Um detalhe ou um arranjo deles serve de pista para a identificação de um significado já
conhecido, e não para a percepção de algo cujo sentido pode ser novo, surpreendente e
inusitado. O reconhecimento do animal por meio da textura manteve a percepção háptica em
seu lugar de instrumento funcional, dotada de grande utilidade na vida quotidiana.

3.1.1.3 Terceiro tempo: placas e desenho com linhas

O terceiro momento da visita se passava dentro da sala do Educativo do CCBB, onde


era proposta uma atividade aos visitantes. O grupo era dividido em duplas, para que cada um
da dupla pudesse explorar com o tato o rosto do outro. Após o tateio, era pedido para que cada
um “desenhasse o que viu com as mãos”, com linhas de diferentes cores e materiais a
escolher, em uma prancha autocolante. A ideia era propor à pessoa com deficiência visual que
ela tivesse a experiência de desenhar. Embora não pudesse ver o traçado, a aplicação de linhas
possibilitaria que as formas produzidas fossem acompanhadas com os dedos. O desenho com
linhas em uma placa autocolante viraria uma placa de linha como aquelas usadas como
dispositivo. As placas feitas com aplicação de linhas eram lisas, com linhas grossas que
formavam desenhos que representavam os contornos das figuras de algumas das obras de
Tarsila (obras mais simples, com menos elementos e detalhes), como o Abaporu15 e A negra.
Um senhor baixa-visão divertiu-se ao explorar a placa produzida para a pintura A
Negra, dizendo tratar-se de “um negão sentado”. Depois, desenhou junto com sua dupla o
rosto desta na placa autocolante. Ele pedia ajuda para posicionar simetricamente os olhos e
centralizar a boca e o nariz.

A imagem era de um negão por causa da boca grossa e, me mostrando com os


dedos as formas que delineavam as partes do corpo deste, como a mão e o pé, foi
descrevendo o desenho. Riu, achou divertido aquele desenho, aquela boca grossa, o
seio, o mamilo... ficou apreensivo. Não sabia mais se se tratava de uma mulher ou
de um homem16.

15
A obra Abaporu não estava exposta, mas devido a sua relevância na carreira de Tarsila, havia um dispositivo
tátil que a representava.
16
Retirado do diário de campo de 24 de abril de 2012.
80

Figura 9 - Placa com linhas da obra A negra, de Tarsila do Amaral

Contudo, algumas pessoas mostraram bastante resistência a realizar a proposta. Uma


pessoa se recusou a desenhar e, por ser cega congênita, parecia desconfortável com a proposta
pois traduzir algo que se percebe em três dimensões, como um rosto, para duas dimensões,
não parecia ser uma tarefa simples. Já outra pessoa cega congênita topou o desafio, e o
desenho que produziu não se assemelhava em nada os desenhos das outras pessoas, cegas
tardias ou com baixa-visão. “Ela não fez um contorno redondo do meu rosto, mas sim foi
desdobrando-o. Era como se estivessem representadas todas as minhas partes ligadas”17.
A prática do desenho e do reconhecimento de desenhos em alto relevo por pessoas
cegas foi apresentada por Dannyelle Valente (2012), com base nos estudos de Kennedy (2006-
1993), Lederman e colaboradores (1990, 2000), Heller (1989, 2000) e outros. A autora pontua
que a base para a discussão desses dois processos reside na capacidade ou não da obtenção de
informações espaciais dos objetos que compõem o ambiente por meio da percepção tátil, já
que pessoas cegas apresentam dificuldades para praticar e reconhecer conteúdos figurativos
de desenhos. Valente (2012) aponta as divergências dos autores acerca da produção e
compreensão de conteúdos gráficos em duas dimensões por pessoas cegas.
Pesquisando desenhos de crianças cegas e videntes, Kennedy (2006-1993) afirma a
equivalência dos sentidos visual e tátil na percepção do contorno de objetos, o que levaria
tanto pessoas videntes quanto pessoas cegas a produzir e compreender representações de
objetos em um desenho. Isto se deve à simplicidade dos traços e da composição geométrica
dos desenhos para exploração tátil, fazendo deles acessíveis a ambos os sentidos. Contudo,
essa mesma simplicidade dos desenhos pode tanto auxiliar quanto apresentar problemas para
as pessoas cegas, já que a pouca precisão representativa dos contornos dos objetos pode levar
17
Retirado do diário de campo de 24 de abril de 2012.
81

a uma infinidade de possíveis. O autor defende ainda que para que pessoas cegas desenhem
com a mesma desenvoltura de uma pessoa vidente é importante que pratiquem o desenho
continuamente e de preferência de maneira livre. Kennedy aponta ainda que propostas
educativas são bem vindas para o auxílio de seu desenvolvimento. Já para Millar (1991), a
dificuldade das crianças cegas incide na falta de familiaridade com os códigos gráficos, já que
os cegos desenham segundo a percepção tátil de objetos, o que leva seus desenhos a serem
diferentes dos videntes.
Lederman e seus colaboradores (1990, 2000) defendem outra posição no que diz
respeito às habilidades do sistema de percepção tátil, apontando que a dificuldade de
compreensão de um desenho em duas dimensões por pessoas cegas se deve à falta de aptidão
do sistema sensorial tátil na compreensão de informações gráficas, que seriam visuais. Heller
(2000) considera que a metodologia da educação adaptada não fornece ferramentas o
suficiente para que pessoas cegas possam compreender conteúdos figurativos por meio da
percepção tátil.
Yvette Hatwell (2000) cita estudos sobre a diferença na identificação de desenhos
representados em alto-relevo por cegos congênitos e cegos tardios. Segundo a autora, o papel
da experiência visual anterior foi evidenciado por Heller (1989) que, ao comparar grupos de
videntes trabalhando sem ver, cegos tardios e cegos congênitos, apontou que “cegos tardios se
beneficiam, por um lado devido à sua experiência visual anterior, que os permite acessar
códigos gráficos e, por outro lado, pelo exercício da modalidade háptica, pouco usada pelos
videntes” (HATWELL, 2000, p. 275).
Se pensarmos no caso da recusa em participar da atividade do desenho por parte da
moça cega congênita, supomos que talvez a falta de experiência com essa prática tenha
deixado a moça desconfortável. Essa também apresentou dificuldades na compreensão dos
dispositivos em bidimensão, como placas com linhas e em alto relevo, o que nos leva a supor
a falta de familiaridade com códigos gráficos bidimensionais. Já a moça, também cega
congênita, que se aventurou no desenho com linhas, produziu algo que apresentava uma
diferença importante em relação às pessoas com baixa visão ou cegas tardias. Isto corrobora a
hipótese de Millar, de que aqueles que nunca tiveram uma experiência visual baseiam-se
principalmente no sentido tátil para a percepção de objetos, o que levaria a produção de uma
imagem que diverge daquela que seria baseada na percepção da visão (VALENTE, 2012).
No caso do senhor baixa-visão que se divertiu experimentando a placa e que,
posteriormente, esboçou o desenho do meu rosto, ele parecia desenhar com o tato, mas
utilizando-se de referências da visão. Assim, a proposta do desenho com linhas pode
82

apresentar-se de maneira ambígua para as pessoas com deficiência visual: para os que nunca
viram pode parecer um grande desafio e para as pessoas que perderam ou possuem baixa
visão pode parecer uma redescoberta, de algo que se fazia com visão e que agora, pode ser
feito de outro modo.

“Entre-exposições”: 1ª reunião de devolução da pesquisa-intervenção

Aqui aparecem combinados dois importantes movimentos da pesquisa cartográfica: a


devolução de resultados e a intervenção. Para Passos e Barros (2010, p. 17), “a intervenção
sempre se realiza por um mergulho na experiência que agencia sujeito e objeto, teoria e
prática, num mesmo plano de produção ou de coemergência”. Por meio da devolução de
resultados de estudos e análises do material produzido coletivamente em campo18, buscamos
contribuir para a criação de novos movimentos instituintes para a acessibilidade estética de
pessoas com deficiência visual no CCBB.
Três meses após a primeira visita à exposição Tarsila do Amaral: um percurso afetivo
no CCBB, realizamos a primeira reunião de devolução dos resultados de pesquisa a esse
centro cultural. Dela fizeram parte os mediadores do Educativo (não apenas os responsáveis
pelo grupo da Acessibilidade), a professora Virgínia Kastrup e os estagiários que participaram
das visitas. Ao percebermos, ao longo das visitas, a falta de conhecimento acerca das
especificidades cognitivas dos deficientes visuais, preparamos uma apresentação de slides que
abordava alguns temas que considerávamos importantes a serem comentados e aprofundados
para a elaboração de dispositivos e atividades mais adequadamente acessíveis para os
visitantes cegos.
Nesta reunião com a equipe do CCBB, contextualizamos o tema da acessibilidade,
comentando o desafio torná-lo parte da política geral do museu, que ainda é baseada na
proibição do toque e nos saberes de curadores de exposições e conservadores de obras;
apresentamos o problema de criar condições para uma experiência estética tátil (CANDLIN,
2003, 2004); versamos sobre os signos e efeitos da experiência estética; e apontamos a
importância de se atentar à heterogeneidade do grupo de pessoas com deficiência visual;
falamos também das particularidades de cegos congênitos, tardios e pessoas com baixa-visão;
e aprofundamos o conhecimento acerca das propriedades cognitivas específicas da deficiência
visual, apresentando um estudo acerca das diferenças entre a percepção tátil e a visual, a

18
Passos e Barros (2010) pensam campo de pesquisa como um plano, composto por múltiplas forças que se
atravessam e agenciam, levando a novas produções.
83

percepção háptica e a diferença entre o tato funcional e o toque na exploração de uma obra de
arte.
Com base nos dados que produzimos ao experimentar junto com as pessoas com
deficiência visual os dispositivos e propostas da mediação nas visitas à exposição de Tarsila
do Amaral, levantamos as dificuldades que algumas das pessoas dos grupos que
acompanhamos sentiram ao explorar os dispositivos táteis. Discutimos os problemas dos
dispositivos táteis, os problemas específicos das placas táteis e da atividade de desenho para
pessoas cegas. Ressaltamos que as placas táteis não devem ser entendidas como únicas ou as
melhores estratégias para acessibilidade, e que a apreciação de obras de arte pode demandar
tempo. Além disso, pontuamos que o resultado de uma visita depende em grande parte das
práticas de mediação, que podem apenas transmitir informações ou gerar afetos e sensação de
acolhimento.
Os educadores pareciam muito atentos ao que estava sendo dito e abertos a críticas e
sugestões. Eles fizeram algumas perguntas, tiraram dúvidas sobre a cognição de pessoas cegas
e comentaram a importância de ter uma pessoa cega na equipe, que avaliava as invenções
deles para a acessibilidade. Explicaram que as caixas, maquetes e placas táteis utilizadas na
exposição de Tarsila haviam vindo junto com a exposição, que era uma exposição temporária.
A parte que utilizava o gravador havia sido criada por eles para que as pessoas cegas tivessem
contato com diferentes pontos de vista para formar suas próprias imagens das obras. A
atividade de desenho com linhas também havia sido criada por um dos educadores, um artista
plástico que, em uma das visitas, nos mostrou uma placa autocolante com o desenho em
linhas do próprio rosto – estava realmente parecido – feito por Camila. Pontuamos que
Camila (a mediadora com deficiência visual do CCBB) é uma pessoa que perdeu a visão, e
que a proposta dessa atividade para uma pessoa que nunca viu poderia soar diferente.
Sugerimos também algumas diretrizes. Incentivamos proposições multissensoriais que
explorassem, a dimensão de transmodalidade19 da experiência, que antecede a diferenciação
dos sentidos da percepção. Pontuamos que o caráter fragmentar da percepção háptica pode ser
positivado por meio da exploração de uma parte da obra que toque seu conceito. A exploração
do conceito e da expressividade da obra, ou seja, do felt meaning20, viria em detrimento à
representação de sua totalidade, de seu conteúdo, o que favorece a experiência de recognição.
Apontamos a exploração de obras de arte contemporânea como um caminho fecundo para a
experiência estética, devido à ênfase na multissensorialidade e na produção de deslocamentos

19
cf. capítulo 2.
20
Idem.
84

na percepção do visitante, em detrimento de uma suposta interpretação correta das obras.


Como exemplos, citamos os trabalhos de Hélio Oiticica e Lygia Clark.
Ao final, o grupo de educadores pareceu animado com as ideias para as próximas
exposições e vimos os efeitos de nossa intervenção nas visitas seguintes.

3.2 ANTONY GORMLEY: CORPOS PRESENTES

A exposição Corpos Presentes, do artista Antony Gormley, ocupou as galerias do


CCBB-RJ de agosto a setembro de 2012. Além de espalharem-se pelos espaços do CCBB, os
corpos de Gormley também podiam ser vistos pelas ruas e topos dos prédios do centro da
cidade do Rio de Janeiro. Conhecido por suas obras em larga escala, Gormley trabalha a
relação entre corpo e espaço, mesclando esses dois conceitos em suas obras, que agem como
corpos que expandem seus espaços para além das salas de exposição do CCBB. Esta seria
uma tentativa de unir objeto, público e lugar em um momento único: o presente.
O artista, em entrevista com o curador da exposição, Marcello Dantas, relata que foi a
partir de sua viagem à Índia que ele resolveu tornar-se escultor. A experiência com a
meditação Vipassana o abriu para questões que embasam sua produção artística ao longo de
sua carreira. A palavra Vipassana significa estado de atenção pura, disciplina de ser e
observar-se sem qualquer imposição. Ao reviver, durante a meditação experiências de sua
infância, Gormley passou a repensar o corpo, descobrindo-o também como lugar da
imaginação e fonte de energia. Segundo o artista, “a Vipassana me deu uma chave para o
espaço sem dimensão do corpo interno” (2012, p. 23). E, pelo desejo de “materializar corpos”,
Gormley decidiu tornar-se escultor. O artista utiliza seu próprio corpo como molde para os
corpos que produz, de bronze ou ferro fundido, como os de Critical Mass, de 1995.
Ao conceber os corpos como espaços, que contém, ocupam e também produzem
outros espaços, vieram à tona os questionamentos acerca de suas formas, expressões e limites.
O artista apresenta suas obras como propostas à exploração de inúmeras formas de articular a
experiência do corpo no espaço, confrontando a imobilidade da escultura com formas que
sugerem movimento e deslocamento. Gormley convida o público a experimentar as diferentes
sensações e sentimentos produzidos pelas diferentes posturas que nosso corpo pode formar.
Tomar ciência do modo como habitamos o espaço do corpo e colocamos o corpo no espaço
surge como um caminho para a reflexão acerca do nosso posicionamento no mundo. Assim,
brincando com as formas e posições que suas esculturas podem assumir, o artista nos convida
a ativamos também nossos corpos que, nesse processo, transformam-se em obras.
85

Figura 10 - Esculturas da exposição Corpos Presentes espalhadas pelo saguão do CCBB-RJ

3.2.1 Uma performance: “Com quantos cegos se faz uma cegueira?”

Na sala do Educativo, luz baixa e som alto produziam certo incômodo. Ao fundo, uma
mesa com um notebook. Os lugares para o público eram organizados como em um teatro de
arena. Neles, estavam dispostas pessoas videntes e três pessoas com baixa visão, convidadas
por nós da pesquisa. No chão, ao centro, uma moça de collant preto fazia movimentos com o
corpo, que remetiam aos escuros corpos de ferro fundido de Gormley. Movimentos intensos,
que exploravam o espaço, levando-a da posição deitada à vertical. A sensação era de angústia.

Ela estava fazendo uns movimentos com o corpo, ora deitada no chão, ora em pé.
Movimentos com o corpo todo. Esses movimentos não acompanhavam
necessariamente a música, mas juntos pareciam fazer sentido: provocaram uma
angústia muito grande. Parecia que ela queria dizer algo com aqueles movimentos,
mas que estava presa, sem voz. 21

Essa cena marcava o início da performance de Camila Alves, mediadora da equipe do


Educativo do CCBB e pessoa com deficiência visual. Ela protagonizava a atividade chamada
Contação de Histórias, já que nesse momento experimentava outros setores do Educativo,
além do grupo da Acessibilidade. Para essa atividade o grupo criou uma performance, que
misturaria trechos do conto A menina sem estrela: memórias, de Nelson Rodrigues, frases do

21
Retirado do Caderno de Pesquisa PIBIC 2012 (diário de campo de 15 de setembro de 2012).
86

texto Como criar para si um corpo sem órgãos, de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2007), e
partes da história de vida da própria Camila. Assim como Gormley, que usa o próprio corpo
como molde para suas esculturas, a mediadora fez de seu corpo obra de arte, ao narrar/encenar
acerca do tema da deficiência visual.
O som estranho que preenchia a sala cessou e passamos a ouvir algumas frases soltas
do texto de Deleuze e Guattari, que vinham da caixa de som ligada ao notebook. Camila as
repetia. Mas a que órgãos estava ela se referindo? No momento seguinte, Camila passou à
narração do conto de Nelson Rodrigues. Era a história de um grupo de cegos portugueses que
cantava sob a janela da casa onde morava um menino. Para ele, era como se aqueles cegos
viessem com um presságio, como se anunciassem algo que estava para acontecer: que ele
ficaria cego, assim como eles. O menino chorava assustado e temia que algum dia ele pudesse
experimentar a cegueira.
A performance era marcada pelo som de diferentes vozes que vinham da caixa de som
do notebook, que continuavam a lançar frases, repetindo, por vezes, algumas das falas da
própria Camila. A composição de todas aquelas vozes ia tecendo um enredo polifônico. Ela
andava pelo espaço com desenvoltura, consultava o notebook sobre a mesa ao fundo da sala e
voltava ao centro. “Desde criança, tenho medo de ficar cego. Mas se isso acontecesse, eu...
[...] eu meteria uma bala na cabeça”22. Pausa. E o espaço foi engolido pelo silêncio.
Após ocorridos alguns minutos, houve um momento de suspensão. As luzes se
acenderam e Camila ofereceu pequenos papeis dobrados às pessoas da plateia. Ela pediu
então para que alguém lesse em voz alta o papel que havia tirado. “Com quantos cegos se faz
uma cegueira?” – foi a pergunta sorteada. O rapaz que leu o papel disse, timidamente, que não
sabia responder. E o silêncio voltou a tomar conta do lugar. Ninguém fez perguntas e nem
comentários. Desse modo, da ausência de palavras ela seguiu nos convidando a pensar sobre
questões da ausência da visão. A narrativa recomeçou. A luz voltou a diminuir e outros
elementos começaram a fazer parte da narrativa. As diferentes vozes, que antes surgiam das
caixas de som, pareciam ter se unificado na voz de Camila, que passou a falar, de uma só vez,
histórias misturadas. O conto de Nelson não era a única história que estava sendo contada.
Ouvimos partes mais ou menos fragmentadas que narravam a vinda de Minas Gerais para o
Rio de Janeiro, a chegada à faculdade, a experiência de pegar a barca Rio – Niterói com “um
mar de gente”. Eram elementos de um emaranhado de histórias. Nesse processo de mescla de
tempos, personagens, lugares e situações, fomos entendendo aos poucos sua origem: eram

22
Trecho retirado do livro A menina sem estrela: memórias (1993, p. 48), de Nelson Rodrigues.
87

relatos que incluíam a experiência da própria Camila. Uma fusão que acabou por criar uma
nova história, uma trama de falas, onde a conexão delas encarnada e expressa pelo mesmo
corpo – de uma pessoa cega – apontava para outros lados, expandindo a percepção sobre a
cegueira e destacando sua multiplicidade.

3.2.2 A performance como intervenção político-poética: experimentando uma


acessibilidade ampliada

A performance criada para a articulação com a exposição Corpos Presentes de


Gormley aproximou-se da proposta de acessibilidade estética e incluiu também a ideia de que
a necessidade de acessibilidade não se restringe às pessoas com deficiência visual.
Expandindo-se para além das pessoas com baixa-visão, que faziam parte do público, a criação
artística performada por Camila pareceu um convite a uma acessibilidade ampliada. Por levar
a problematização do lugar da deficiência visual também às pessoas videntes, fez pensar e
provocou um deslocamento da percepção acerca do conceito de deficiência.
Articulando-se com a proposição de Gormley, a qual traz a reflexão sobre nosso
posicionamento no mundo por meio do corpo no e como espaço, além de produtor de espaços,
Camila apresentou a questão da deficiência visual por meio de seu próprio corpo: além do
corpo como organismo, vimos em ação o corpo-criação. Utilizando a arte como dispositivo de
intervenção, foi produzida uma inversão: uma pessoa cega que fez um espetáculo para ser
visto, ou seja, uma pessoa com deficiência que apresenta uma performance para pessoas,
supostamente, com eficiência.
Em Exercícios de Ver e Não Ver: Arte e Pesquisa COM Pessoas com Deficiência
Visual, Márcia Moraes (2010) aponta para a necessidade de se refletir acerca das distribuições
de eficiência e deficiência, defendendo que estas não são realidades dadas em si mesmas,
sendo sempre produzidas. Assim como Gormley (2012), que trata o corpo como espaço vazio,
o que nos permite ver e sentir o espaço como um molde do que somos, a autora defende que
“ser deficiente não é algo que uma pessoa é em si mesma, mas algo que ela se torna, quando
articulada em certas práticas” (2010, p. 31). A distribuição da eficiência e da deficiência não é
dada, e a autora pergunta: de que modo a deficiência é produzida e colocada em ação? Como
poderíamos subvertê-la e colocá-la em questão?
... se isso acontecesse [ficar cego] [...]
eu meteria uma bala na cabeça.23

23
Nelson Rodrigues, A menina sem estrela: memórias.
88

A performance trazia uma polifonia criada por meio de fragmentos de histórias – ora
da mediadora, ora do conto de Nelson Rodrigues, ora as frases do texto de Deleuze e Guattari
sobre o Corpo sem órgãos. Esse emaranhado de falas se apresentava como um agenciamento
coletivo de enunciação, que seria a articulação de diferentes discursos, tanto de primeira
quanto de terceira pessoa, que são expressos por um veículo único, onde não se pode mais
separar as vozes (DELEUZE; GUATTARI, 1977). Em uma performance, o artista é apenas
um modo de singularizar enunciações que são produzidas coletivamente. Assim, mesmo a
enunciação individual é um caso particular de enunciação coletiva, sendo ambas peças do
agenciamento coletivo. Segundo Guattari e Rolnik (1986), a produção de sentido não se dá de
modo individual e nem grupal. Os agenciamentos coletivos de enunciação podem conectar
diferentes instâncias, embaralhando suas enunciações, o que leva à emergência de novos
enunciados, também coletivos e polívocos.
Esse agenciamento coletivo de enunciação, por comportar pontas de
desterritorialização e linhas de fuga pelas quais ele mesmo foge, pode levar à deformação ou
transformação de seus conteúdos, nos fazendo dissolver concepções prévias e conduzindo a
um campo de novos possíveis (DELEUZE; GUATTARI, 1977). Vimos nas palavras de
Nelson Rodrigues o desespero causado pela ideia de perda de visão, nas partes da história de
Camila, sensações e experiências de quem não vê e, nos fragmentos do texto sobre o Corpo
sem Órgãos, a possibilidade de reinvenção a partir da afirmação do desejo, por meio de uma
luta contra o organismo (DELEUZE; GUATTARI, 2007, p. 21). A noção de organismo se
apresenta com estes autores como um padrão de produção de vida hierárquico e
homogeneizante, que aniquilaria aquilo que escapa a essa organização, impedindo a
multiplicidade. Eles defendem a criação de um Corpo sem Órgãos pra si como conexão de
desejos e potência de variação, como modos de estruturação temporárias e limites mais
fluidos; produção de derivas e fugas no sentido da afirmação da diferença, e, nesse caso,
estremecendo os lugares instituídos e rígidos da deficiência e eficiência, embaralhando-os.
E foi desse modo que apontamos esta performance como a criação de possibilidade
para o surgimento de novas visões acerca da deficiência visual, permitindo-nos abrir mão do
lugar da deficiência enquanto déficit ou falta, legitimando-a como uma outra forma de estar
no mundo. Essa experiência de contágio pela arte, que afeta e leva a pensar, permite a
instauração de um plano que produz ressonância e conectividade entre múltiplas dimensões da
realidade.
89

[...] a partir de sua cegueira, Camila inventou um mundo, cheio de movimentos,


vozes e arte. Ela dançou com o tema, com as palavras e os sentidos atribuídos à
questão da ausência de visão, mobilizando olhares e permitindo a transformação de
quem estava ali com ela.24

Compondo com a deficiência visual, Camila criou não somente um novo corpo, mas
abriu para a possibilidade de emergência de novos modos de ver a deficiência visual e,
consequentemente, para produção de novos corpos e novos sentidos. Ao fazer oscilar o
agenciamento, novos contornos para a noção de deficiência ganharam destaque. Nesse caso, a
ausência da visão nos fez expandir o olhar. Por isso chamamos a atenção para a intervenção
político-poética desta performance, que como uma acessibilidade ampliada, proporcionou,
mesmo a quem vê, outros sentidos da cegueira.

Bifurcação 1 - IMPRESSIONISMO: PARIS E A MODERNIDADE: o caminho do


multimodal

A mostra dos artistas impressionistas, que contava com 85 obras vindas do acervo do
Musée d‟Orsay, de Paris, França, foi exposta no CCBB de outubro de 2012 a janeiro de 2013.
Para a acessibilidade a esta exposição, foi construída uma Estação Sensorial composta por
diferentes dispositivos. Dentre estes, encontrávamos novamente placas táteis em alto-relevo,
de algumas obras importantes como O tocador de pífaro, de Edouard Manet, e Ponte das
ninfeias, de Claude Monet, além de alguns dispositivos tridimensionais, cujos elementos
buscavam reproduzir a forma e a disposição exatas das pinturas originais.
Assim como na exposição de Tarsila do Amaral, os objetos que compunham os
dispositivos tridimensionais eram móveis para que pudessem ser manuseados e/ou vistos de
perto. Esses dispositivos foram propostos para obras como, Natureza morta com jarro branco,
de Monticelli, Madame Darras, de Auguste Renoir, e Rosas em um vaso, de Henri Fantin-
Latour. No caso do dispositivo para a obra de Monticelli, os lados dos elementos eram
pintados de formas diferentes – um lado de forma suave e o outro lado com textura mais
acentuada – para representar a diferença entre o modo de pintar da arte clássica e as fortes
pinceladas dos pintores impressionistas.

24
Retirado do diário de campo de 15 de setembro de 2012.
90

Figura 11 - O tocador de pífaro de Edouard Manet, Figura 12 - Placa tátil em alto relevo da obra O
1866 (161 x 97 cm) tocador de pífaro

Figura 13 - Natureza morta com jarro branco, de Figura 14 - Dispositivo tátil da obra Natureza morta
Adolphe Monticelli, 1878 (48,2 x 59,7 cm) com jarro branco

Figura 15 - Madame Darras de Auguste Renoir, Figura 16 - Dispositivo tátil da obra Madame
1868 (47,5 x 39 cm) Darras
91

Figura 17 - Potinhos com ervas e fumo, para exploração olfativa

A novidade da Estação Sensorial montada para esta exposição foi a inclusão de


elementos olfativos e sonoros para complementar a experiência tátil oferecida pelos
dispositivos. Potinhos contendo ervas como alecrim e erva doce, outro com fumo, um
vidrinho com perfume, fones de ouvido acoplados às placas táteis e um rádio que tocava
músicas da época do movimento impressionista na França foram algumas das novas
estratégias utilizadas. Além disso, foram disponibilizadas vendas – óculos de sol grandes e
totalmente negros – para os videntes que quisessem pudessem explorar os dispositivos sem
ver.
Em uma das visitas que realizamos com um grupo de pessoas Surdocegas do IBC e
seus acompanhantes e guia-intérpretes, uma moça fez um comentário curioso. Junto à
reprodução da obra O banho, de Alfred Stevens, na Estação Sensorial, ao sentir o aroma do
perfume de um mediador que passou na sua frente sem que ela percebesse, exclamou: “então
era esse perfume que ela usava? Perfume francês é bom mesmo, dura até hoje!”25. O grupo riu
e o mediador explicou que aquele era apenas um dispositivo olfativo para representar o banho.
Em outra visita acessível a esta exposição, com um jovem cego de 23 anos também
presenciamos uma situação curiosa. Como dispositivo tátil da pintura Bailarinas subindo a
escada, de Degas, a Estação Sensorial disponibilizou um manequim com roupa de bailarina e
sapatilhas. Ele explorou o dispositivo e pode sentir algo diferente, parecendo que o toque na
roupa da bailarina proporcionou ao jovem a descoberta de algo novo.

25
Retirado do diário de campo de 30 de outubro de 2012.
92

Ele sabia que bailarinas dançavam, mas nunca havia tocado em uma roupa de
bailarina. Passou um tempo alisando, disse ter gostado da textura da saia e se
surpreendeu com a dureza das sapatilhas, dando batidas nas pontas delas com as
pontas dos dedos. 26

Percebemos, nas visitas de acessibilidade a esta exposição, uma grande atenção por
parte da equipe do Educativo para um trabalho diferenciado para a promoção de experiências
multimodais (que estimulam os diferentes sentidos). Apesar de ainda conferirem grande
importância à exploração do conteúdo formal das obras, como o fato de terem mantido as
placas táteis em alto-relevo, notamos o investimento em um modo de mediar mais afetivo e
menos informativo. A utilização de recursos multimodais, como as músicas nos rádios e os
potinhos com aromas, contribuíram para tornar a experimentação dos dispositivos táteis mais
interessante, por fornecer mais elementos sobre as obras para serem explorados. Contudo, esta
estratégia nos parece ainda limitada. Apesar da exploração multimodal convocar os diferentes
sentidos, ficamos ainda presos à experiência de recognição. Esse tipo de estratégia pode nos
fornecer mais informação acerca do movimento impressionista, mas não chega ao felt
meaning, não vamos além. É multimodal, mas não multissensorial.

Bifurcação 2 – ELLES: MULHERES ARTISTAS DA COLEÇÃO DO CENTRE


POMPIDOU: o trabalho com o conceito

De maio a julho de 2013, as salas de exposição do CCBB- RJ receberam as obras da


mostra ELLES: Mulheres artistas da coleção do Centre Pompidou, vindas do acervo de arte
moderna do Musée National d'Art Moderne du Centre Pompidou. Esta exposição reuniu obras
importantes de mulheres artistas, dentre elas Frida Kahlo, Lygia Clark e Marina Abramovich.
O fato de ser uma exposição de obras de artistas mulheres causou um grande mal
entendido na organização do grupo do IBC para a visita ao CCBB. A exposição foi divulgada
no instituto como sendo „somente para mulheres‟ e não „somente de mulheres‟, o que fez com
que os homens interessados não pudessem participar. Contudo, apesar de apresentarmos aqui
um paradoxo causado por esse mal entendido – uma atividade que visa à inclusão acabar por
promover uma exclusão – esse pode ser encarado como o “mal entendido promissor”, de
Vinciane Despret (1999). Segundo a autora, o mal entendido é promissor por ser “uma
proposição que, da maneira pela qual se propõe, cria a ocasião para uma nova versão possível
do acontecimento” (DESPRET, 1999, p. 330). Nesse caso, o mal entendido fez com que o
grupo que visitava a exposição fosse composto „somente por mulheres‟, o que pareceu

26
Retirado do diário de campo de 06 de novembro de 2012.
93

contribuir para a abertura à troca de experiências no trabalho com um conceito proposto pelos
mediadores: ser „mulher‟.
Ainda que tenha sido ruim para os alunos que quiseram vir e não puderam, foi
interessante ter um grupo só de mulheres, que se abriram para discutir as
dificuldades de ser mulher. 27

Para o trabalho com o conceito “mulher”, as estratégias utilizadas pelos mediadores do


grupo da Acessibilidade foram bastante variadas. A visita começou no laboratório de
atividades do Educativo, com uma contação de histórias repleta de efeitos sonoros cujos
personagem podiam ser identificados por seus sons específicos28. Em seguida, houve uma
conversa e foi proposto que as participantes da visita imaginassem a princesa da história, que
era muito bonita. Como seria ela? Alta ou baixa? Como seriam seus cabelos e corpo?
Na entrada da galeria, houve uma conversa sobre a exposição e sobre o que é ser
mulher. Ao mesmo tempo, foi passada de mão em mão uma prótese de crânio humano feita de
gesso. Os mediadores instigavam as visitantes, pedindo para que, ao explorarem aquele
crânio, definissem se se tratava de uma cabeça feminina ou masculina, e se havia diferença
entre as duas.
Uma vez na galeria, o grupo se deteve frente ao vídeo de Marina Abramovic, Art must
be beautiful; Artist must be beautiful”, em que se ouvia o barulho de uma escova de cabelo
passar com força por entre os fios de cabelo da artista. Ali os mediadores continuaram a
trabalhar o conceito de mulher, desta vez relacionado às exigências de beleza. As participantes
citaram algumas situações desconfortáveis necessárias para atender às demandas da beleza,
como o uso da maquiagem, de roupas apertadas e de sapatos de bico fino.

Figura 18 – Ilustração do vídeo Art must be beautiful; Artist must be beautiful, de Marina Abramovic, 1975

27
Retirado do diário de campo de 8 de julho de 2013.
28
A mediadora sacudia uma chaleira de alumínio com miçangas para Ojo, que representava a água, e fazia
batidas altas e secas da alça de um lampião em suas paredes para evocar Iná, personagem que representava o
fogo.
94

Em seguida, houve a exploração tátil da réplica de uma cabeça feminina feita de


isopor, para o trabalho com uma fotografia da série Manequins, de Valérie Belin. Seguindo o
trabalho do tema, o grupo conversou sobre as características de aparências estereotipadas,
como é o caso das manequins.

Figura 19 - Sem título, nº 4, de Valérie Belin, 2003 (160,7 x 128,6 cm)

A última obra explorada nesta visita foi Caranguejo, da série Bichos, de Lygia Clark.
Como essa obra estava protegida por um vidro, a equipe do Educativo havia construído uma
grande réplica da obra, de aproximadamente um metro de altura, que ficou posicionada no
centro da sala de exposição. Eles explicaram que Lygia deixou um manual para que
pudéssemos construir os bichos. Foram distribuídas outras réplicas menores, também
construídas por eles, para manuseio individual.

Figura 20 - Caranguejo, da série Bichos, de Lygia Clark, 1960 (20,5 x 27 cm)


95

Percebemos, na visita a essa exposição, o avanço nas estratégias para acessibilidade no


sentido do trabalho acerca de um conceito, que guiava a visita com a exploração de
dispositivos criados a partir das obras. O conceito de “mulher” funcionou como o fio condutor
da mediação à exposição ELLES, instigando e fazendo-nos refletir. A partir dessa estratégia,
percebemos, no processo da acessibilidade no CCBB, uma segunda bifurcação. Na exposição
anterior, a adoção de estratégias multimodais fora importante para retirar o enfoque das placas
táteis (apesar de ainda utilizá-las), marcando um primeiro desvio. Nessa exposição, o trabalho
da mediação ao redor de um tema, juntamente com dispositivos, eliminou a utilização das
placas táteis e pôde tocar as visitantes de outro modo.

3.3 YAYOI KUSAMA: OBSESSÃO INFINITA

A obras de Yayoi Kusama foram expostas no CCBB do Rio de Janeiro de outubro de


2013 a janeiro de 2014. A mostra trazia cerca de 100 obras da artista, dentre elas pinturas,
esculturas, vídeos de suas performances e instalações, de mais de 50 anos de trabalho.
Yayoi Kusama nasceu no Japão e já na adolescência começou a desenhar e expor em
mostras de arte regional, até entrar para a Escola Municipal de Artes e Ofícios. Movida por
um desejo de experimentações artísticas mais intensas, ela passou à pintura a óleo com tintas
e suportes que ela mesma produzia. Suas técnicas passaram pela pintura tradicional japonesa,
paisagens expressionistas, cubismo e pelo diálogo com o surrealismo, abstração e figuração
fantástica. Além disto, Kusama adotou um ritmo de produção bastante intenso e implicado em
uma prática exaustiva, quase obsessiva.
Em busca de novos espaços e diálogos com artistas, Kusama partiu para Nova York,
nos EUA, e passou a pintar em grandes formatos, propondo um envolvimento físico do
expectador com suas obras, que exigiam afastamentos e aproximações para serem percebidas,
além da realização de performances, como body paintings, esculturas e happenings. O contato
com a cultura americana levou a artista desenvolver o que ela denomina obsessões, como uma
obsessão sexual e uma obsessão alimentar, a partir das quais desenvolveu o conceito de auto-
obliteração (MORRIS, 2013). Despois de algumas tentativas de suicídio e internações
psiquiátricas, Yayoi Kusama recebeu o diagnóstico de transtorno obsessivo compulsivo.
Interessada em sua doença, passou a usar seu sofrimento como tema para suas obras e a
explica-lo como produto de suas experiências e alucinações da infância. Ela identifica o
surgimento de uma obsessão infinita por bolinhas nestas experiências infantis, o que acabou
se tornando a marca de seu trabalho. Segundo a artista:
96

Minhas performances são um tipo de filosofia simbólica com bolinhas. A bolinha


tem a forma do sol, que é um símbolo da energia do mundo inteiro e de nossa vida, e
também a forma da lua, que é calma. Redonda, suave, colorida, ignara e sem
sentido. As bolinhas não podem ficar sós; como a vida comunicativa das pessoas,
duas, três ou mais bolinhas entram em movimento. Nosso planeta é apenas uma
bolinha entre milhões de estrelas no cosmos. As bolinhas são um caminho para o
infinito. (KUSAMA apud MORRIS, 2013, p. 53).

3.3.1 Entre colunas, bambolês e parangolés: estratégias multissensoriais para a


acessibilidade estética

Esta foi a primeira vez que nós, da equipe de pesquisa, participamos da organização do
encontro. Fomos convidados pelos mediadores do CCBB para a visita acessível já com uma
data definida, e ficamos encarregados de entrar em contato com as pessoas do IBC para
marcamos de irmos juntos. Algumas delas decidiram por nos encontrar diretamente no CCBB.
Formamos um grupo bastante heterogêneo, que contava com cinco pessoas com deficiência
visual, dentre elas um cego congênito, dois cegos adquiridos e duas pessoas com baixa visão,
além de dois acompanhantes e nossa equipe.
A visita começou no saguão, onde nos encontramos com os mediadores. Nesse
momento inicial formamos uma roda, apresentamo-nos e os mediadores (um vidente e um
cego, Luan e Camila) descreveram aquele espaço para nós. Eles propuseram que
explorássemos, em pequenos grupos mistos de cegos e videntes, as pilastras que o circulavam.
Os mediadores nos disseram que ao todo eram nove pilastras. Contudo, encontramos apenas
oito delas.
Ao final da exploração, compartilhamos impressões e levantamos a questão da
quantidade de pilastras. Foi nesse momento que eles informaram a qualidade da nona pilastra.
Estávamos posicionados em volta dela, porém não podíamos vê-la e nem tocá-la: era uma
pilastra sonora. Para que passasse a existir de fato, para que pudesse ser percebida, seria
necessário que fizéssemos com o corpo a dinâmica do som. Deveríamos nos posicionar em
um determinado ponto da rotunda – exatamente no centro da abóboda que havia acima de nós
– e emitir um som bem alto com a cabeça projetada para cima, para escutar a reverberação da
coluna. Desse modo era possível ouvir o percurso da voz, que ia em direção ao cume e
retornava para nós, o que formava, por meio do corpo, uma coluna de som.
Em seguida, antes de subirmos às salas de exposição, passeamos por uma obra de
Yayoi Kusama, que estava no térreo, como um chamado para a exposição. Esta obra era
composta por grandes bolas infladas e de vinil cor de rosa, repletas de bolinhas pretas
menores coladas à sua superfície. Por um lado, essas bolas acompanhavam a circularidade da
97

rotunda. Por outro, contrastavam com a arquitetura clássica do prédio. Os mediadores


comentaram brevemente sobre a obsessão infinita de Yayoi Kusama, que são bolinhas que
compõem quase todas as suas obras. Uma associação livre em relação ao formato circular se
seguiu: „ponto‟, „esfera‟, „Terra‟, „Sol‟, „célula‟, „óvulo‟, „fecundação‟, „zigoto‟ foram
algumas das palavras que apareceram. Por fim, eles propuseram que guardássemos a ideia de
que “somos todos um ponto”.

Figura 21 - No centro da rotunda o ponto da coluna sonora e as bolas de vinil.

Na primeira sala da exposição, os mediadores contextualizaram brevemente a pintura


A separação (The Parting, 1952), e passaram de mão em mão uma tela com quatro símbolos
japoneses feitos em cola em alto relevo. Cada um foi dizendo o que aquilo parecia ser:
algumas pessoas disseram que devia ser o nome da artista, outra comentou que aqueles traços
em alto relevo pareciam veias, mas outra descobriu que eram ideogramas japoneses. Refletiu-
se então que para nós aqueles símbolos não pareciam ter significado algum, assim como as
palavras em português para os japoneses, indicando a separação das culturas oriental e
ocidental.
98

Figura 22 - A Separação, de Yayoi Kusama, 1952 (45 x 53 cm)

Na sala seguinte, encontramos Redes Infinitas (Infinity Nets, 1953), uma série de
pinturas na qual a artista transpunha os limites da moldura ao expandir as redes para o próprio
contorno da tela e, por vezes, também para as paredes. Trabalhando o conceito de rede,
Camila retomou a ideia de que “somos todos um ponto”, e acrescentou ainda que somos
pontos interligados. Em seguida, Luan distribuiu bambolês coloridos e pedaços de barbante e
pediu para que adentrássemos nossos bambolês. Camila propôs que cada um escolhesse
alguém, fosse por alguma semelhança ou diferença, e amarrasse seu bambolê ao da pessoa
escolhida, dizendo em voz alta o motivo da escolha. A pessoa que tivesse sido escolhida
escolheria outra pessoa e faria o mesmo. Assim os bambolês iam sendo amarrados uns nos
outros, nos conectando, compondo uma espécie de rede.

Figura 23 - Redes Infinitas, de Yayoi Kusama, 1953 (35,6 x 32,4 cm)


99

Fomos convidados a pensar a relação da rede que formávamos com a obra de Kusama.
Haveria ali um centro? Haveria um ponto de partida? Começamos a experimentar
movimentos. Caminhamos em diferentes direções, sentindo os elos da rede formada por nós,
suas resistências e os efeitos dos movimentos de uns sobre os outros. Essa brincadeira nos
levou a perceber que cada ação individual repercutia no coletivo, composto pelas ligações
entre os elos. Em um dado momento, alguém do grupo perguntou: “Quem está andando com a
gente?”, e outra pessoa respondeu: “O MAM está aqui com a gente!”. O participante cego
fazia referência ao projeto Encontros Multissensoriais, do qual ele era participante assíduo.
Percebeu nos tipos de estratégias que experimentávamos no CCBB, que fazia uso do corpo e
exploração do espaço, possíveis ressonâncias com o trabalho que fazíamos nos Encontros
Multissensoriais, no MAM.
Camila perguntou com o que esta experiência se parecia, e foram lançadas diversas
respostas, dentre elas “células agitadas no ar!”, “hemoglobinas na corrente sanguínea!”, “linha
2 do metrô!”. Muitas pessoas que visitavam a exposição pararam para observar de perto o
grupo. Esta atividade com os bambolês parecia uma espécie de performance, que funcionou
como uma intervenção na galeria.
Para fechar a visita, experimentamos os dispositivos da Estação Sensorial criada para a
exposição de Kusama. O primeiro deles era acerca do conceito de “auto-obliteração”
trabalhado pela artista. Obliteração significa desmanchamento, perda da forma, dos limites
individuais. Segundo a artista, “quando obliteramos a natureza e nossos corpos com bolinhas,
nos tornamos parte da unidade de nosso ambiente. Eu me torno parte do eterno e nós nos
obliteramos no amor” (KUSAMA apud MORRIS, 2013, p. 53). Assim, para trabalhar a auto-
obliteração do corpo, esse dispositivo contava com capas feitas com três tipos diferentes de
materiais: chita, lã e plástico bolha. As capas eram grandes o suficiente para cobrir todo corpo
e com um buraco no meio para colocarmos a cabeça. Essas capas ficavam penduradas na
parede, que também havia sido coberta pelos mesmos tipos de materiais. Assim, havia uma
parte da parede revestida de chita, outra com a lã, e outra com plástico bolha. Ao vestirmos
uma das capas e nos posicionarmos frente à parte da parede coberta com o mesmo material,
tínhamos a impressão da diluição do contorno da pessoa que o vestia, que se misturava com a
parede.
O segundo dispositivo da Estação Sensorial era uma caixa de madeira de cerca de 2
metros de altura e dimensões aproximadas de 1,5m x 1,5m. Entrava-se por uma porta e dentro
havia apenas um microfone e uma caixa de som. Após fechar a porta, não havia luz,
ficávamos no escuro. A caixa isolava o som que vinha de fora e o microfone reproduzia o som
100

da nossa voz como uma espécie de eco, que parecia fazer a voz se propagar até sumir no
infinito. Esse dispositivo parecia remeter às obras Sala espelhada ao infinito - cheia de brilho
da vida (Infinity Mirrored Room - Filled with the Brilliance of Life, 2011) e Sala de espelhos
infinitos-campo de falos (ou mostra no chão) (Infinity Mirror Room-Phalli´s Field (or Floor
Show), 1965/2013), por contarem com paredes e teto espelhados, que davam a impressão de
“infinitude”. Como o tato não permite que tenhamos a noção de longas distâncias, devido ao
seu caráter proximal, sentimos que a noção de extensão ao infinito foi recriada por meio do
som do eco produzido pelo microfone na caixa de madeira.
O terceiro dispositivo, era um balcão onde haviam quatro canos para colocarmos a
mão e dentro de cada um, havia bolinhas de materiais diferentes. Funcionou como uma
brincadeira com a “obsessão infinita” das bolinhas de Kusama. O primeiro dos canos continha
bolinhas de gude, o segundo, bolinhas de isopor, o terceiro, bolinhas de ping pong e o quarto,
bolinhas de gel, que surpreendiam pela textura gosmenta.
Ao final, nos reunimos em roda e trocamos impressões da visita.

3.3.2 Uma mediação experimental

Desejei prever e avaliar a infinitude de nosso vasto universo com a acumulação de


unidades de rede, uma negativa de pontos. [...] Minha vida, um ponto, ou seja, uma
em meio a milhões de partículas. Foi em 1959 que me manifestei sobre obliterar a
mim e aos outros com o vazio de uma rede tecida com uma acumulação astronômica
de pontos.
Yayoi Kusama

Percebemos, nessa visita, uma grande mudança no modo de fazer acessibilidade para
as pessoas com deficiência visual no CCBB. Mesmo com o desafio da proibição do toque em
obras e desta ser uma exposição principalmente visual – pelo uso de espelhos, luzes, além da
presença de diversas obras em duas dimensões, como pinturas e vídeos das performances – as
placas táteis, dessa vez, não foram o principal meio de fazer a acessibilidade. Elas realmente
saíram do lugar de protagonistas, de pretensas traduções acessíveis das obras. Em seu lugar,
foram utilizados como ferramentas alguns dispositivos simples, que levavam à
problematização, à colocação de questões e à abertura ao sentir, criando condições para que a
experiência estética pudesse acontecer. A adoção de estratégias multissensoriais – que
mobilizam além dos sentidos, uma camada sutil da experiência – para acessar a obra de Yayoi
Kusama, serviu de convite para trazer a experiência do corpo à cena. Este foi o protagonista
da visita – o corpo – capaz de sentir e criar sentido, em detrimento de dispositivos que visam
um significado previamente estabelecido e que podem ser de difícil acesso.
101

Como procuramos descrever no percurso elaborado para a visita, começamos pela


exploração da arquitetura do CCBB. Como atividade inicial, a busca e o encontro com a nona
pilastra – a pilastra sonora – foi importante para nos localizarmos e conhecermos melhor o
espaço do CCBB. Essa chegada também nos permitiu uma mudança na qualidade da atenção,
para operarmos um desvio da atenção funcional, que é objetiva e virada para o exterior, para
uma atenção mais aberta e voltada para o interior, além de receptiva à experiência com a arte.
Lembrando Henri Bergson (2006a), Kastrup (2012) aponta para a conversão, que é o
movimento da atenção funcional para a atenção suplementar. Essa se caracteriza por uma
abertura, qualidade mais próxima à percepção do artista, que nos torna disponíveis para
sermos tocados pelas forças de uma obra de arte.

A atenção é tocada nesse nível – das forças, da dinâmica, das intensidades, dos
ritmos -, havendo um acionamento no nível das sensações, e não no nível da
recognição ou representação de objetos. O gesto do pouso da atenção indica uma
parada. Um novo território se forma, o campo de observação se reconfigura.
Dizemos que a atenção muda de qualidade, há a conversão numa atenção diferente.
(KASTRUP, 2012, p. 27).

Kastrup evoca também Depraz, Varela e Vermersch (2006), que falam do ciclo da
époché ou redução fenomenológica, que é um movimento ativo da atenção, composto por três
etapas: a suspensão, a reversão e o deixar-vir. A primeira etapa, a suspensão, caracteriza-se
por uma mudança na chamada atitude natural da atenção. Ela pode se desenrolar por meio de
exercícios e aprendizagem, por uma questão, injunção ou mesmo por uma surpresa, num
encontro com alguém ou com uma obra de arte. A suspensão da atenção permite o segundo
movimento do ciclo, a reversão atencional, que vai na mesma direção da conversão
bergsoniana. Esta seria uma mudança de atitude em relação ao mundo, uma dobra da atenção,
do mundo externo em direção aos atos mentais e sentidos (sensações cinestésicas e
proprioceptivas). Essa dobra da atenção chama uma segunda dobra, que toca a qualidade
atencional: a atenção, que busca, transforma-se numa atenção receptiva, que deixa-vir. Esse
movimento de deixar-vir não deve ser confundido com passividade, pelo contrário, ele diz da
atividade de ficar à espreita, que supõe uma espera presente e uma abertura ao encontro.
Quando isto acontece, é ativada novamente a suspensão, e o ciclo da atenção recomeça.
Assim, a experiência da coluna sonora no momento inicial da visita contribuiu para
que pudéssemos sensibilizar nossos corpos para, então, nos lançarmos mais disponíveis e
porosos à experiência da arte pela via multissensorial. O pouso da atenção em uma camada
mais profunda da experiência vai além dos modos sensoriais, atingindo o que Claire
102

Petitmengin (2007) chama de felt meaning29. A proposta de fazer do corpo o caminho do som,
foi apenas um primeiro passo em direção a este outro modo de experimentação em um espaço
artístico.
Para as obras A separação e Redes infinitas, exploradas já nas salas de exposição, um
dispositivo tátil foi utilizado para a acessibilidade à primeira pintura e, para a segunda, houve
a proposição outra atividade coletiva. Ambas as obras escolhidas eram bidimensionais, mas
não foram utilizadas imagens táteis, tampouco a audiodescrição de seus aspectos visuais,
como formas e cores. Desta vez, os mediadores optaram por traduzi-las e não reproduzi-las.
Para Petitmengin (2007), uma boa tradução não é necessariamente a descrição de uma
imagem, mas sim o acesso ao felt meaning que a sustenta, o fio condutor que lhe confere
sentido. Desse modo, A separação e Redes infinitas puderam ser experimentadas por meio da
própria experiência do corpo e não somente como uma informação teórica ou pela recognição
de um objeto.
A dinâmica com os bambolês nos fez sentir, assim como as pinturas que ultrapassavam
os limites das molduras dos quadros, os efeitos das ações de nossos corpos para além deles,
afetando também outros pontos que compunham a rede da qual fazíamos parte. Assim,
sentimos a rede como um grande corpo comum. Comum no sentido de plano comum da
experiência, amplo e inclusivo, e que comporta a heterogeneidade (KASTRUP, 2011;
PASSOS; KASTRUP; TEDESCO, 2014). Frente àquela obra, pudemos partilhar a sensação
de sermos todos pontos, interconectados em um corpo-rede (fazendo menção à ideia proposta
pela mediação). “Corpontos” em um corpo-rede. Além disso, a infinitude da rede pôde ser
sentida pelos afetos emanados daquele grande corpo comum, que se mexia em frente à obra.
Seu movimento se expandiu para toda a sala de exposição, afetando e instigando quem
passava por aquele espaço. Foi uma intervenção na sala de exposição do CCBB, que foi
transformada em um local não somente de contemplação, mas também de afetação, criação e
alegria.
Todas as pessoas com deficiência visual que participaram desse encontro no CCBB
eram frequentadoras dos Encontros Multissensoriais no MAM, e uma delas chegou a
mencioná-lo na atividade com os bambolês. Conforme apontamos no primeiro capítulo, nos
Encontros no Museu de Arte Moderna do Rio havia uma grande aposta em um modo de fazer
mediação que respeitasse a temporalidade do tato e o uso de estratégias multissensoriais e
transmodais para o acesso à força das obras de arte. “No lugar de transmissão do saber pelo

29
cf. capítulo 2.
103

mediador, a aposta é na multiplicação das vozes e da abertura de espaço e de tempo para a


experiência e partilha de sensações, pensamentos e afetos entre os participantes” (KASTRUP,
2011, p. 8). Nesse sentido, chamamos de mediação distribuída quando destituímos a figura do
mediador do centro do saber e o distribuímos entre todos os presentes, legitimando outros
saberes, os da experiência. Afirmar esse outro modo de fazer mediação, é apontar a mudança
de postura para uma mediação experimental, no sentido de Hélio Oiticica:

[...] então a palavra “experimental” é apropriada, não para ser entendida como
descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso ou fracasso,
mas como um ato cujo resultado é desconhecido. O que foi determinado?/ em suma,
o experimental não é “arte experimental”/ os fios soltos do experimental são
energias q brotam para um número aberto de possibilidades [...] (OITICICA, 2008,
p. 223).

Percebemos um movimento em direção à transmodalidade no trabalho da mediação


na exposição de Kusama. Tal direção foi evidenciada pelo estímulo ao caráter estético da
experiência, mais do que a ênfase no pedagógico ou aspecto informativo. Os dispositivos
foram importantes ferramentas conceito-experienciais que os mediadores lançaram mão para
criar possibilidades de ir além. A mediação experimental leva em conta o caráter de
imprevisibilidade da experiência na emergência de afetos no encontro com a obra, oferecendo
condições a uma experiência de qualidade estética. A fala do participante das visitas do MAM
e do CCBB dá indícios de que experiências inovadoras e bem sucedidas podem produzir
desejo de frequentar exposições e de ter contato com a arte. Evidencia-se, talvez, o início da
formação de um público de museus composto por pessoas com deficiência visual, que podem
expressar sua efetiva avaliação dos programas oferecidos pelas instituições culturais.

3.3.3 Um sopro de Hélio Oiticica

Na Estação Sensorial, o primeiro dispositivo trabalhava o conceito de “auto-


obliteração”. A estratégia era brincar com a fusão entre figura e fundo. Vimos, no capítulo
dois, que a noção de figura e fundo é importante para a organização da percepção visual. No
tato, devido à proximidade do objeto, esse princípio não se aplica de modo tão direto.
Ao vestir uma das capas (de chita, de lã ou de plástico bolha), era possível sentir o
corpo envolvido por um tipo de textura, que buscava ressonância com a textura da parede,
revestida pelos mesmos materiais. A parede serviria de fundo, frente ao qual poderíamos nos
destacar enquanto figura. Mas, ao vestirmos a capa de mesmo material, nos dissolvíamos no
fundo, criando a “auto-obliteração”.
104

Ele estava concentrado. Virou de costas para a sala, encostando o nariz no cobertor
estendido na parede. Ao mesmo tempo, levou com as mãos o tecido que o cobria
para unir-se com o tecido da parede, dando a impressão de que era tudo uma coisa
só. Afirmou: “Sou um tapete”, me disse, “e o tapete não fala”. Ficou ali alguns
minutos, curtindo o personagem, e depois desvencilhou-se da roupa improvisada
para dar vez a outra pessoa.30

O dispositivo lembra um pouco os Parangolés de Hélio Oiticica, apesar disso não ter
sido intencional. Guy Brett (2005, p. 51) pontua que o parangolé, para o artista, era “uma
emanação do individual por intermédio do corpo, bem como algo carregado, vestido pelo
corpo”. Essas espécies de capas possuíam um caráter de conexão, de certa duplicidade entre a
extroversão – a performance, o ser visto – e a introversão, que diria respeito à exploração pelo
viés da sensação das convulsões dos materiais pela própria pessoa que o vestia. Hélio pensava
estas capas sem começo nem fim definidos. Essa era também a intenção de Kusama ao falar
de dissolução no todo pelo conceito de auto-obliteração. Além de interior/exterior, os
parangolés de Hélio Oiticica eram dotados de outra dualidade: ao mesmo tempo que eram um
dispositivo de liberdade e expressão, provocavam também a privação de sensações e um
sentimento de opressão. Isso aparecia, uma vez que o parangolé poderia vir a ser,
simultaneamente, a bolsa amniótica que envolve o corpo antes do nascimento e a mortalha
que o envolve após a morte (BRETT, 2005, p. 66). Assim, o uso de parangolés com fins de
efeitos de figura e fundo apareceu como uma boa opção para a tradução do conceito de “auto-
obliteração” para ser sentido com o corpo. Por meio desse dispositivo, foi possível sentir
(captar pela via proprioceptiva o felt meaning) mais do que compreender mentalmente o
movimento de fusão no todo/dissolução de si presente no trabalho de Kusama.

Bifurcação 3 – VISÕES NA COLEÇÃO LUDWIG: o problema da audiodescrição

As obras da mostra Visões na coleção Ludwig, ficaram expostas no CCBB do Rio de


Janeiro de maio a julho de 2014. Cerca de 80 obras de arte do século XX, vindas do Museu
russo de São Petersburgo, são apenas um recorte da grande coleção do casal Irene e Peter
Ludwig. Os Ludwig, que eram historiadores da arte, reuniam obras de arte que ilustrassem seu
tempo, de artistas de diversas origens e, muitas vezes, ainda desconhecidos. Em 1995
fundaram o Museu Ludwig no Museu Russo, em São Petersburgo, com mais de 100 obras
para que o público russo pudesse conhecer obras de arte moderna e contemporânea do mundo
todo.

30
Retirado do diário de campo de 15 de janeiro de 2014.
105

Nossa visita a essa exposição ocorreu no contexto do curso de Extensão “Cognição e


deficiência visual: acessibilidade e tecnologias”, oferecido pelo Programa de Pós-graduação
em Psicologia do Instituto de Psicologia da UFRJ, e ministrado pelas professoras Virgínia
Kastrup e Eliana Sampaio (CNAN/FR) no primeiro semestre de 2014. Esse curso abordava o
tema da deficiência visual e sua articulação com os temas da acessibilidade, arte e tecnologia.
Os alunos do curso eram funcionários do IBC, alunos da Pós-graduação da UFRJ e de outras
Universidades, funcionários de museus, profissionais de acessibilidade e alunos de graduação
em Psicologia. Nesse grupo heterogêneo, havia duas pessoas com deficiência visual: uma que
era cega congênita e a outra, tinha baixa visão. A visita teve como intuito experimentarmos
juntos o projeto de acessibilidade para pessoas com deficiência visual do CCBB e discutirmos
as estratégias utilizadas com base no que aprendemos nas aulas.
No início da visita, reunimo-nos com os mediadores (um deles era Camila) em frente à
entrada da galeria. Apresentamo-nos e conversamos um pouco sobre a exposição: quem eram
os donos daquela coleção, os critérios para a escolha daquelas obras etc. Adentrando a sala de
exposições, paramos em frente à pintura Ruinas, de Roy Lichtenstein. Para o acesso a essa
obra, foram oferecidas miniaturas de duas colunas diferentes: uma no estilo grego, e outra
menor e mais leve, com textura. Enquanto as pessoas com deficiência visual exploravam as
colunas, a mediação propôs uma conversa sobre a relação daqueles diferentes tipos de coluna
com a pintura e a arte contemporânea.

Figura 24 - Ruinas, de Roy Lichtenstein, 1965 (170 x 200 cm)


106

A segunda obra da visita estava em uma segunda sala, onde havia muitas peças de arte
contemporânea, e dentre elas alguns objetos e esculturas. Contudo, como não se podia tocá-
los, detemo-nos frente à pintura Sem título, de Basquiat e Andy Warhol. Discutimos sobre a
técnica do grafitti, que aparecia na obra. Para termos acesso à diferença entre uma pintura e o
grafitti, os mediadores colocaram duas músicas para tocar em um radinho de pilha. Uma era
um rap, outra uma balada. Depois de escutarmos as duas, percebemos que eram duas versões
da mesma música.

Figura 25 - Sem título, de Basquiat e Andy Warhol, 1984 (194,3 x 226,7 cm)

A terceira obra da visita era Tríptico Nº 14. Autorretrato (Dedicado ao meu pai), de
Vladimir Yankilevisky. Para essa obra foi produzida uma réplica tátil em miniatura, que foi
tocada pelas pessoas com deficiência visual e, durante a exploração, discutimos sobre o nome
da obra e o que ela nos fazia pensar. Além disso, ao adentrar a sala, podíamos ouvir o som de
um metrônomo.
107

Figura 26 - Tríptico Nº 14. Autorretrato (Dedicado ao meu pai), de Vladimir Yankilevisky, 1987 (190,5 x 363 x
35 cm)

A quarta e última obra que fez parte do percurso da visita foi a obra Banana-splits com
glacê em degustação, de Oldenburg. Esse trabalho é um exemplo de Pop Art e, para
discutirmos esse conceito, os mediadores lançaram mão de falsas maçãs do amor construídas
por eles, com um palito enfiado numa bola de isopor pintada, caramelada e embalada como se
fosse uma maçã do amor de festa junina.

Figura 27 - Banana-splits com glacê em degustação, de Claes Oldenburg, 1964 (39,1 x 84,6 x 48,1 cm)

Algumas pessoas logo perceberam que não se tratava de maçãs de verdade, devido ao
peso e à temperatura, outras foram mais além e experimentaram o cheiro e o sabor da calda.
Após esse momento, reunimo-nos na sala do Educativo para discutirmos a visita e trocarmos
impressões.
108

Um toque de recalcitrância

No bate-papo ao final da visita, algumas questões importantes sobre a acessibilidade


vieram à tona. Comentou-se sobre o site e os folders das exposições do CCBB, que não são
acessíveis, e uma pessoa perguntou como o Educativo trabalha com o público espontâneo de
pessoas com deficiência visual que chega às exposições. Os mediadores comentaram que
quando isto acontece, eles se organizam para atender àquela pessoa e realizar uma visita
acessível, mas que a demanda ainda é pequena. Apontamos também para a importância de se
ter uma mediadora cega na equipe do Educativo, como é o caso de Camila. Sua presença na
equipe não só representa uma intervenção no CCBB, mas também mostra-se importante no
processo de elaboração de uma visita que seja realmente acessível a quem não vê.
A visitante com baixa-visão comentou que sentiu falta da descrição das obras. A moça
cega congênita concordou. Isso causou certo estranhamento na equipe do Educativo e até
mesmo em nós. O comentário das moças com deficiência visual parecia colocar em xeque o
que vinha sendo discutido e trabalhado na parceria da nossa equipe de pesquisa com o
Educativo do CCBB até então: uma mediação e estratégias que iriam em direção à
experiência estética com a arte. Houve, nesta visita, uma clara aposta em estratégias
multissensoriais e, para nós, isso era um avanço. Defendíamos a posição de que a
audiodescrição parece funcionar mais como uma estratégia de acessibilidade à informação do
que de acessibilidade estética, privilegiando, muitas vezes, os aspectos visuais das obras de
arte. Isto iria de encontro ao objetivo do nosso trabalho. Qual seria, então, o sentido da
demanda de audiodescrição pelas duas visitantes com deficiência visual?
Em nossa pesquisa, tomamos a demanda de audiodescrição como uma recalcitrância
das pessoas com deficiência visual. Em Pistas do Método da Cartografia, Sade, Ferraz e
Rocha (2014, p. 74) citam Latour (2000), que define o termo recalcitrância ou resistência
como “a capacidade que os objetos têm de discordar a respeito daquilo que é dito deles,
levantando novas questões, tensionando os saberes e as práticas”. Acolher essa tensão entre o
saber, a prática e a demanda do pesquisado é um modo de legitimar um outro saber, o saber
sobre si, bem como o engajamento da pessoa nas questões da pesquisa. Para que esta
recalcitrância não tome o lugar de uma mera desobediência, mas seja afirmada como lugar de
potência capaz de ramificar o saber e apontar para outros nortes, é preciso confiar em sua
avaliação. O fazer/saber com e não sobre permite um reposicionamento dos lugares dos atores
envolvidos na pesquisa, abrindo o campo da experiência comum (SADE; FERRAZ; ROCHA,
2014). É nesta dissolução de fronteiras entre pesquisadores e pesquisados que notamos a
109

apropriação de outro lugar na pesquisa, que vai além da avaliação da experiência dos cegos
com os dispositivos. Nesse caso, as pessoas com deficiência visual tomam a palavra e tornam-
se eles mesmos os avaliadores dos dispositivos.
Portanto esta questão, que é também metodologia, levou-nos a uma investigação mais
profunda acerca da demanda por audiodescrição nos encontros de acessibilidade para as
pessoas com deficiência visual. Desse modo, decidimos realizar entrevistas de manejo
cartográfico com as duas pessoas com deficiência visual que colocaram esta questão para nós.
O manejo cartográfico se caracteriza pela busca da “experiência na fala, e não a fala sobre a
experiência, pela abertura à experiência do processo do dizer, e uma busca pela pluralidade de
vozes” (TEDESCO; SADE; CALIMAN, 2014, p. 99). Além disto, esse manejo porta uma
abertura, que privilegia certa flexibilidade na condução da entrevista pelo entrevistador, o que
permite a livre expressão do entrevistado por meio da linguagem que lhe for própria, fazendo
suas ressalvas e ênfases.

Duas entrevistas sobre a audiodescrição

A primeira entrevista foi realizada com a moça cega congênita, Rachel Maria, que é
professora no IBC, um pouco mais de uma semana depois da visita ao CCBB. A segunda
entrevista foi feita com a moça de baixa visão, Lúcia, que acompanha nosso trabalho desde
2012, frequentando tanto as visitas do CCBB quanto os Encontros Multissensoriais, no
MAM. Aqui apresento trechos das falas e uma análise das entrevistas sobre o problema da
audiodescrição.
Para Rachel Maria, a audiodescrição seria um dos modos de fazer acessibilidade. Ao
fornecer informações sobre o artista e o momento histórico em que a obra foi criada, além de
algumas características gerais dessa, Rachel acha que o acesso a esses elementos torna
possível que a pessoa se situe e compreenda o que está sendo apresentado. Contudo, ela
pontua que a acessibilidade não pode se restringir à audiodescrição:

[...] por mais que alguém descreva as obras, às vezes [a visita] fica meio vazia
ainda, entendeu? Só com a descrição. Ainda mais se for uma pessoa que, às vezes,
não sabe direito, às vezes, não entendeu direito o que a obra quis dizer, o que que o
pintor tentou representar. Aí fica complicado, aí fica um monte de, como se fossem
um monte de pedacinhos que não dizem nada, um monte de informação.31

Todavia, referindo-se à obra de Lichtenstein, Rachel comentou que a audiodescrição

31
Retirado da entrevista realizada por mim em 11 de junho de 2014.
110

da pintura foi importante para que ela compreendesse os dispositivos (colunas) que explorava
por meio do tato. Ao descreverem para ela que uma das colunas era antiga e outra
contemporânea, ela pôde identificar as características de cada uma e contextualizar-se,
formando uma imagem mental com os elementos que apreendia pelo tato, juntamente com os
que lhe descreviam.
Rachel comentou ainda que os elementos fornecidos pela linguagem dos videntes são
importantes para que ela possa produzir uma imagem mental mais detalhada das obras. Ela
considera que saber de alguns detalhes da obra é essencial para que ela possa imaginá-la,
contudo, é preciso estar atento à quantidade deles no momento de descrever, para que não
sejam excessivos e acabem por confundir a pessoa cega. No entanto, ela pontua que isto não
acontece com todos os cegos, pois o fato de serem tardios ou congênitos influencia no
processo formação de imagens mentais a partir de uma audiodescrição. No seu caso, por ser
cega congênita e não ter memória visual, ela pensa que as imagens mentais que produz são
menos complexas e possuem menos detalhes do que as imagens visuais.
Raquel considera os aspectos visuais que lhe são descritos, como formas e cores,
elementos importantes pra ela, pois as formas e cores estão no mundo e lidamos o tempo todo
com elas. Por mais que a cor lhe pareça algo abstrato, já que ela não consegue imaginá-la por
nunca a ter visto, ela gosta de saber das cores, já que vive em um mundo de videntes.
Para que a acessibilidade seja mais completa, Rachel Maria aponta como positiva a
composição de estratégias multimodais com a audiodescrição. Ela comenta que alguns
aspectos de obras em duas dimensões, como paisagens em pinturas e fotografias, são difíceis
de serem trabalhadas por meio da audiodescrição, porém, se alguns elementos, como no caso
das colunas na pintura Ruinas, são transpostos para o tato e discutidos, a obra torna-se mais
acessível:

Ah, tem obras que você... que não têm... só tem no quadro e não tem como fazer de
outra forma. Por exemplo, uma natureza com... não sei, duas pessoas em cima de
um rochedo numa paisagem de grama num céu azul, sei lá, to imaginando. Como é
que vou fazer isso pra um cego? Tem que ser descrito. Agora, naquela das colunas
já dá pra fazer as colunas, mas a descrição do quadro ajuda pra gente ver como é
que as colunas estão colocadas, ver de que período são essas colunas, pra não ficar
solto.32

Assim, Rachel Maria aponta a complementariedade da audiodescrição com


dispositivos que lancem mão da multimodalidade (exploração de diferentes sentidos) para o

32
Retirado da entrevista realizada pela autora em 11 de junho de 2014.
111

acesso a obras de arte. Fazendo menção à pintura de Andy Warhol e Basquiat – que
exploramos por meio de duas versões diferentes de uma mesma música – e à obra do “homem
no metrô”33, para a qual havia um metrônomo e um dispositivo tátil, Rachel comentou que a
mediadora estimulava que os visitantes não só ouvissem a música e o som, ou tocassem no
dispositivo tátil, mas que os sentissem para além da audição e do tato.
No caso da obra Tríptico Nº 14. Autorretrato (Dedicado ao meu pai), o barulho do
metrônomo afetou a moça, evocando a lembrança do som que se escuta na UTI. O tema da
obra também a mobilizou – de que aquele homem era “qualquer um, que poderia ser eu, ou
poderia ser você” – sendo ambos indícios de uma experiência de qualidade estética.
Vimos aqui que, para além da audiodescrição e do dispositivo multimodal (dispositivo
tátil e estímulo auditivo do metrônomo), a mediação nos convidava a irmos além destes
sentidos. Ao chegarmos a esta dimensão da experiência, mais profunda do que a percepção,
chegamos ao multissensorial, a uma experiência transmodal. Desse modo, a audiodescrição de
uma obra e a explicação de sua intenção e contexto, apresentaram-se como uma das etapas no
caminho de uma experiência estética. Por meio delas, uma postura atencional aberta e
disponibilidade, foi possível ir mais além.

[...] por causa da música, por causa do bip da obra do metrô; o tato, por causa dos
bonecos que eu vi da representação do homem no metrô. É, mais ou menos, uma
mistura de sentidos, né, que não é só tato, não é só audição, na verdade, é uma
mistura de sentidos na questão da música, do que a música passava. Eu lembro que,
acho que foi a Camila que explorou isso, ela perguntou: “Ah, o que que a música
passa? Que que vocês estão sentindo?” – Isso não é propriamente audição. É tipo,
não sei, uma sinestesia34, né? Uma coisa que engloba o corpo como um todo, tem a
questão do movimento, qual o movimento a música sugere.

No caso de Lúcia, a moça com baixa visão que entrevistamos, ela deu bastante ênfase
ao seu desejo de audiodescrição das obras na conversa final no dia do encontro. Ela comenta
que, por ainda enxergar um pouco, tem curiosidade de saber sobre as outras obras que
compõem a sala de exposição, para além daquelas escolhidas para serem discutidas e
exploradas pelo grupo da visita. Ela comenta que sabe que o tempo de uma visita não é
grande e que por isso não daria para audiodescrever todas as obras, além desse não ser o
objetivo do Educativo, mas insistiu:

Ao menos as principais obras que a gente não pode tocar. Entendeu? Entrando
numa sala você poderia falar: “- Olha, aqui estão presentes a maioria de quadros,

33
Modo como Rachel se referiu à obra Tríptico Nº 14. Autorretrato (Dedicado ao meu pai).
34
Uso não-teórico do termo. Claire Petitmengin aponta para a diferença entre sinestesia e transmodalidade em
Towards the Source of Thoughts, 2007.
112

sei lá, surrealistas”, por exemplo. Os de mais destaque são esses, a figura que é
retratada é essa, essa e essa. Eu acho que caberia [audiodescrição]. E aí não vou
dizer que todo cego se interessaria por isso [...]. Mas, entrando numa sala que tem,
vamos dizer, uns quinze vinte quadros e que estão me falando de um, quero saber ao
menos um pouquinho dos outros, né?

Para Lúcia, uma boa audiodescrição fornece informações do ambiente como um todo
– o que há nele, quem está nele e o que fazem – além das expressões das pessoas, que são
indícios do que sentem, o que afeta sua própria experiência. Por possuir apenas resquícios de
visão, seu modo de ver seria, segundo suas palavras, “uma visão expressionista do mundo”, o
que ela julga afastar-lhe da realidade. Ela pensa que, por mais que uma audiodescrição não
seja igual à realidade, esta seria como uma parte dela, “o melhor que pode ter”. Como uma
pessoa com baixa-visão, que fica em um lugar entre o ver e o não ver, Lúcia consegue
perceber por meio da visão figuras grandes, se houver muita iluminação. Para que veja os
detalhes do que lhe interessa, pede sempre para que alguém descreva pra ela.
Assim como Rachel, Lúcia também ressalta a importância do corpo para o encontro
com as obras de arte. Ao ser perguntada sobre o que mais lhe marcou no encontro, ela afirmou
que tem sido, ao longo de uma sequência de visitas, a sensibilização para a arte. Ela faz uma
avaliação do trabalho do educativo do CCBB, tomando também como referência as visitas
dos Encontros Multissensoriais, no Museu de Arte Moderna:

Eles sensibilizam a pessoa pra arte. Isso eu achei que lá no MAM também
faziam, isso de você aprender a ver, né? Tem gente que enxerga, entra num
museu só olhando tudo e vai embora. Olhou assim, „ih, legal isso aqui, né?‟,
e passou. E aprender a ver é você tentar ver o que o cara tentou colocar ali,
tentou transmitir, como é que você entendeu aquilo, não é isso? Acho que
eles ajudam nessa coisa de aprender a ver, aprender a perceber. [...] Então,
eles sensibilizam você pra perceber a obra de arte. Isso eu acho legal do
Educativo. Devem fazer de maneiras diferentes pra cada grupo, né?

Para que isso aconteça, Lucia também aponta para a importância de haver uma
mediadora cega no grupo do Educativo, o que legitima outras formas de ver. Em sua
avaliação, é um aprendizado para todo mundo, tanto para os que trabalham com ela quanto
para os que visitam o CCBB. Ela comenta ser essencial a presença de um cego na equipe, não
somente para elaborar e avaliar as estratégias de acessibilidade, mas também para colocar em
xeque os lugares de deficiência e eficiência. Isto mostra para as próprias pessoas com
deficiência que há a possibilidade de se posicionar de modo diferente, que elas não
necessariamente precisam se engessar e aceitar o lugar da incapacidade. Ela que percebe esse
outro posicionamento da mediadora do CCBB, por seu tom de voz, que é firme.
113

[...] as pessoas têm realmente preconceito contra quem tem deficiência, né? E aí
tem uma deficiente que tá lá, que consegue fazer um trabalho legal. Eu acho que
abre a porta, abre portas pra outras pessoas também, entendeu? Para um grupo de
deficientes, eu acho que deve ter. [...] Porque, então, pra um grupo de deficientes eu
acho legal eles perceberem uma pessoa que é cega que tá executando um trabalho
desses. Que tá se posicionando dessa maneira, entendeu?

Portanto, vemos que tanto Rachel Maria quanto Lúcia apontam para a importância da
audiodescrição como um recurso para acessibilidade à arte. Contudo, a acessibilidade não
poderia ser reduzida à audiodescrição, já que uma visita apenas com audiodescrição poderia
ser vazia. Rachel Maria, que é cega congênita, pôde elucidar alguns pontos em sua entrevista.
Falou do cuidado que se deve ter ao descrever detalhes, que devem ser precisos e não
excessivos, e a importância que estes elementos têm para a formação de suas imagens
mentais. Ela afirma ainda a importância de saber sobre alguns aspectos visuais, para poder se
situar no mundo onde todos veem. Já Lúcia afirma a importância da audiodescrição, não
somente para informação, mas também como algo que afeta a sua experiência. Indo para além
da audiodescrição, ela ressalta a importância da sensibilização do corpo para o encontro com a
arte e da presença uma pessoa com deficiência visual na equipe do Educativo.

3.4 OURO: O FIO QUE COSTURA A ARTE DO BRASIL

Os trabalhos desta mostra, que reunia obras de arte e joias em ouro da H. Stern,
ficaram em exposição no CCBB do Rio de Janeiro de 12 de outubro de 2014 a 5 de janeiro de
2015. Ao tecer a relação entre o ouro a história brasileira, designers de joias artistas brasileiros
trabalharam com esse material, ressaltando, por meio da arte, a multiplicidade do Brasil.

3.4.1 Uma visita para guardar

A visita desse dia foi, de algum modo, especial. A começar pelo número de
participantes: 16 pessoas com deficiência visual e alguns acompanhantes. Esse grande número
foi possível devido a uma parceria com a Oficina de Cerâmica do IBC na divulgação. O
momento da saída do instituto foi marcado por uma grande tensão: um problema de
comunicação interna no CCBB fez com que não nos enviassem o ônibus, o que só foi
descoberto em cima da hora, quando todos os participantes já se encontravam prontos para
partir. Chegamos a duvidar se a visita aconteceria mesmo ou não, mas conseguimos o ônibus
escolar do IBC emprestado. Resolvido isso, a descontração voltou, e conseguimos chegar ao
CCBB, um pouco agitados devido à confusão. Logo fomos calorosamente recebidos no hall
114

do CCBB pelos mediadores, que nos conduziram para o laboratório do Educativo.


No laboratório, arrumamos as cadeiras em roda em volta de uma grande mesa, onde
estavam dispostos pequenos potes contendo alguns objetos, como cravos-da-índia, botões,
anéis, tufos de algodão, penas, pedacinhos de madeira, conchas do mar, bolinhas de gude e
pregadores de roupa. Camila se apresentou, comentou que também era cega, descreveu o
ambiente e abriu uma conversa sobre a exposição que iriamos visitar: qual era o nome da
exposição? Ouro - O que é o ouro? Qual o valor do ouro? Como pode ser o ouro? O ouro é
um tesouro... Estas perguntas foram disparadoras de comentários e histórias envolvendo o
ouro, que iam sendo compartilhadas pelo grupo. Uma das pessoas cegas disse que tinha um
tio que era ourives e outra nos relatou que seu pai era garimpeiro. Quando criança, ela
costumava acompanha-lo à beira dos rios para observá-lo com aquelas grandes peneiras, a
separar o pó de ouro do cascalho.
Dando seguimento, os mediadores nos propuseram explorar os conteúdos daqueles
potinhos e escolher apenas um objeto, que representasse algo de muito valor para nós, assim
como o ouro. Depois, compartilharíamos com o grupo o motivo de nossas escolhas. Muitos
escolheram as bolinhas de gude, que remetiam às brincadeiras da infância. Uma das
acompanhantes contou que vibrou ao ver as bolinhas de gude como uma das opções, já que
era a única mulher de sua família que jogava bolinhas de gude e sempre ganhava, por ser a
mais velha dos sete irmãos. As conchas também foram bastante comentadas, lembrando
momentos passados em ambientes de praia, geralmente de férias, em viagens e em família. Os
tufos de algodão evocaram, a alguns, as nuvens do céu. Mas apenas uma pessoa escolheu uma
pena, e contou-nos a seguinte história:

[...] havia ganhado uma galinha de sua avó, certa vez. A partir desta única galinha,
decidiu criar mais galinhas e construiu um galinheiro, que chegou a cento e
cinquenta galinhas. Ao chegar a esse número, ele vendeu suas galinhas e comprou
uma casa para sua mãezinha, que está viva e até hoje mora nessa casa, lá no
nordeste.35

Ao nos contar essa história, não somente o homem parecia bastante emocionado, mas
também várias das pessoas da roda. Fomos afetados por esta história. Após as mais de vinte
histórias, já que os mediadores também participaram da atividade relatando histórias de si
mesmos, parecíamos mais conectados, mais próximos. Esse foi um momento de suspiros,
silêncio e saudade.
Antes de rumarmos para a galeria, os mediadores pontuaram que infelizmente não
35
Retirado do diário de campo de 13 de novembro de 2014.
115

poderíamos tocar nas obras mas que, se alguém tivesse alguma questão ou se quisesse saber
mais sobre algo da galeria, eles estavam disponíveis para responder, explicar e pensar junto.
Além disso, propuseram-nos guardarmos conosco nossos tesouros e a seguirmos para a
exposição com a ideia de “valor” em mente.
A primeira obra que exploramos foi O agachado, de Tatiana Blass, uma escultura de
um homem de cera sobre uma placa de cobre que, ligada à tomada, esquentava a cera, levando
o homem a derreter aos poucos. Os mediadores descreveram a obra e comentaram que
algumas partes já haviam derretido. Enquanto isso, passávamos de mão em mão a miniatura
da escultura O pensador, de Rodin, e discutíamos acerca das provocações dos mediadores: o
que é uma escultura? Estátuas, homenagens a pessoas importantes e menções à oficina de
cerâmica foram algumas das respostas. Conversamos sobre a diferença na duração dos
materiais das duas esculturas, e pensamos a cera como um meio de evocar as ideias de
maleabilidade e transformação, assim como o barro na oficina de cerâmica, que se transforma
e também transforma quem tem a experiência de moldá-lo.

Figura 28 - O agachado, de Tatiana Blass, 2013 (aprox. 50 x 200 x 200 cm)

Seguimos para a segunda obra, Projeto Cegueira #Pulso, de Paloma Bosquê. Essa
obra estava dentro de um cofre da própria estrutura do CCBB. Seu interior estava revestido de
dourado e no centro uma luz muito forte acendia e apagava num pulsar, a ponto de nos cegar
por alguns segundos. Detivemo-nos à porta do cofre e a exploramos, na tentativa de
desvendar do que se tratava. As pessoas iam tateando e confabulando o porquê daquelas
enormes dobradiças e da maçaneta giratória. Um dos participantes lembrou-se dos trilhos de
trem, devido à temperatura do ferro, e chamou de “volante da máquina” a válvula de abertura
do cofre. Esse foi um momento bem descontraído, que chamou a atenção dos passantes,
como na exposição de Yayoi Kusama. Para fechar esse momento, uma mediadora recitou o
poema Guardar, de Antônio Cícero, e comentamos que o que se guarda em cofres são coisas
de valor.
116

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.


Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda o vôo de um pássaro
Do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar”.

Guardar, de Antônio Cícero

Chegamos à sala seguinte, cujas paredes eram revestidas pelo mesmo material dos
capachos que usamos na frente de casa, onde havia joias da H. Stern. Era uma sala escura,
onde havia também uma tela com projeção de dança contemporânea do Grupo Corpo. As joias
expostas haviam sido criadas inspiradas nos movimentos da dança daquele grupo. Assim os
mediadores nos questionavam como deveriam ser aquelas joias, quais seriam suas formas.
Seguimos para o penúltimo espaço de nossa visita: uma sala onde uma das paredes era
de concreto e outra revestida de palha. Na primeira, havia um grande desenho de vidro,
através do qual víamos joias expostas, criadas com base na obra de Oscar Niemeyer. Na
segunda, havia caixas com joias inspiradas nas músicas de Carlinhos Brown, e cocares de
índios. Uma das mediadoras leu a letra da música Brasis, de Seu Jorge, que fala dos múltiplos
brasis que compõem o Brasil. A partir disso, fomos enumerando diferenças e similaridades
entre eles e o espaço em que estávamos, como o concreto da parede, que lembrava São Paulo,
Brasília; e a palha da outra, que remetia aos indígenas, ao país pobre economicamente, mas
tão rico em recursos naturais36.

Tem um Brasil que é próspero


Outro não muda
Um Brasil que investe
Outro que suga

Um de sunga
Outro de gravata
Tem um que faz amor

36
No final tocaram um pau-de-chuva, e relacionamos seu som com a parede de palha.
117

E tem o outro que mata


Brasil do ouro, Brasil da prata
Brasil do balacochê
Da mulata

Tem um Brasil que é lindo


Outro que fede
O Brasil que dá
É igualzinho ao que pede

Pede paz, saúde


Trabalho e dinheiro
Pede pelas crianças
Do país inteiro

Tem um Brasil que soca


Outro que apanha
Um Brasil que saca
Outro que chuta
Perde, ganha, sobe, desce
Vai à luta bate bola
Porém não vai à escola

Brasil de cobre
Brasil de lata
É negro, é branco, é nissei
É verde, é índio peladão
É mameluco, é cafuso
É confusão

Oh pindorama eu quero
Seu porto seguro
Suas palmeiras
Suas feiras, seu café
Suas riquezas
Praias, cachoeiras
Quero ver o seu povo
De cabeça em pé”

Brasis, Seu Jorge

Após esse momento, sinalizaram-nos que havia um fio de ouro, preso na parede, que
começava na primeira sala da galeria e conduzia até a última sala. Esse fio condutor nos
levaria até um ourives, que poderia tirar nossas dúvidas sobre os processos do ouro. Tocamos
o fio e nos deixamos guiar, passamos por mais uma sala até chegarmos ao final da exposição.

3.4.2 Baú de tesouros: nossas histórias

A sensibilização, ponto destacado pela moça com baixa visão na entrevista realizada a
partir da visita à exposição Visões na coleção Ludwig, apareceu como uma atividade chave
nesse encontro no CCBB. Esse foi um importante momento de introdução do tema e
suspensão da atenção, para que pudéssemos desacelerar e voltarmos a atenção, do mundo
118

externo para o ambiente interno de nós mesmos, proporcionando maior disponibilidade


afetiva para o encontro com a arte. Enquanto explorávamos os conteúdos dos potinhos em
busca do nosso tesouro, íamos tocando e descobrindo os pequenos objetos, até a escolha
daquele que nos tocava mais profundamente.
Assim como propõe a exposição, que coloca o ouro como o fio que costura a arte do
Brasil, o Educativo trabalhou com o tema do valor, como sendo o fio que costura as nossas
histórias de vida e ajudou-nos a formarmos, naquele momento, um grupo. A proposta desse
tema pareceu acertada, já que o ouro pode remeter a outros temas, como dinheiro, capital e
riqueza, que apontam para outros caminhos. Já o valor, que pode ser afetivo, moral e ético,
dentre outros, parece um tema mais aberto à produção de sentidos. Valor como algo que
escolhemos e cuidamos, como algo que diz de nós.
O valor afetivo de cada elemento dos potinhos promoveu a ativação da nossa
memória, que ganhou ainda mais força ao ser compartilhada. Esse seria um dos indicadores
de uma experiência estética coletiva. Os mediadores, ao contarem também histórias de si
mesmos, dissolveram no grupo o lugar central do mediador como um detentor de saber,
distribuindo-o e dando espaço para emergência de múltiplas vozes, que contribuíram para a
fluidez do encontro. Lembrando Suely Rolnik (2011), podemos dizer que demos língua aos
afetos que pediam passagem.
A vontade de partilhar histórias transcendeu o momento da sensibilização e permeou
todo o percurso pelas obras e joias da exposição. Além das histórias que compartilhamos na
atividade dos potinhos, como a das bolas de gude e a emocionante história das galinhas, a
história da filha do garimpeiro não parou por aí. Ao tocar a porta do cofre e descobrir do que
se tratava, ela cochichou no meu ouvido que tinha uma história muito boa sobre cofres, e que
gostaria de me contar. Enquanto íamos acompanhando o grupo pelos espaços das salas de
exposição, ela ia me contando sobre seu pai, que trabalhava com ouro e dinheiro, e que
possuía um cofre em casa:

Somente ele conhecia a senha. Um dia um dos meus irmãos descobriu a senha e
passou a pegar dinheiro do pai, para comprar guaraná na vendinha que ficava ao
lado de casa. O dono do bar, achando aquilo curioso, perguntou ao meu pai de
onde meu irmão estava tirando tanto dinheiro, pois comprava guaraná para os
amigos quase todos os dias.37

E seguiu me contando a história até chegarmos à ultima sala, onde estava a ourives.
Achei muito generoso da parte dela em compartilhar comigo uma história que fazia parte de
37
Retirado do diário de campo de 13 de novembro de 2014.
119

sua vida, que habita sua memória, e notei como a visita àquela exposição a tocou, fazendo vir
à tona sua infância e a lembrança de sua família, de seus pais que já não estão mais vivos.

3.4.3 Amadurecimento da mediação

Além da mediação distribuída, percebemos, no posicionamento da equipe do


Educativo, os efeitos da conversa que fizemos após a visita à exposição anterior (Visões na
coleção Ludwig). Camila pontuou o fato de também ser cega, o que provavelmente aproximou
os mediadores e os participantes da visita, visto que partilhavam um comum, colocando em
questão as deficiências e eficiências. Eles descreveram o ambiente e mostraram
disponibilidade para descrever e esclarecer quaisquer dúvidas dos participantes sobre as
obras. Apesar desta não ser a ênfase do trabalho de acessibilidade, pode ser um aspecto
importante para a experiência estética.
Foi colocada a questão da proibição do toque em obras de arte antes da entrada na
galeria, explicitando os desafios que a equipe da acessibilidade ainda tem que enfrentar
naquela instituição. Contudo, os mediadores souberam inventar outros modos de tornar aquela
visita interessante, mesmo sem tocar as obras. Como na exposição de Kusama, explorar as
paredes das salas e, principalmente, a estrutura física do próprio CCBB, que coincidentemente
tinha muita relação com o tema da exposição, foi outro ponto alto da visita. Muitos tocavam
juntos a porta do cofre, esbarrando seus corpos e trocando impressões. Foi uma intervenção
na galeria, por deslocar o lugar do CCBB (ou museu, instituição artística) de um espaço
meramente expositivo de objetos visuais para “um lugar de intervenção-acontecimento, de
criação, de mediação e de fruição” (KASTRUP; VERGARA, 2012, p. 62).
Algo curioso que aconteceu durante a visita foi que, ao passar acompanhada por um
dos mediadores ao lado de uma das obras da exposição, ele comentou que, na tentativa de
negociar com a curadoria a liberação de algumas obras ao toque, aquela havia sido liberada.
Contudo o artista, ao saber disto, proibiu o toque novamente. Nesse momento, ficamos
pensando em estratégias para sensibilizar os artistas para essa abertura a outros modos de
perceber as obras: convidá-los para encontros acessíveis, quando possível, foi uma das saídas
que encontramos.
Notamos que a mediação promoveu muito mais questionamentos do que informações
sobre as obras que exploramos: questões sobre o tempo, duração de materiais ou da própria
obra de arte, sobre formas que movimentos ou sons podem sugerir. Relações e conexões entre
algo que se toca, como as paredes de diferentes texturas de uma sala, com algo que se ouve,
120

como a letra de uma música, um poema ou o som de um instrumento. O fio de ouro que
levava até a sala do ourives apareceu como um fio que conectava nosso ponto de partida – a
escolha do tesouro – e o de chegada – o trabalho com esse material de valor. Assim, vemos
que é nítido o amadurecimento do programa de acessibilidade do CCBB, tanto na qualidade
da mediação quanto na ampliação de estratégias e dispositivos utilizados, que, indo muito
além das placas táteis, suas propostas envolvem o corpo, práticas coletivas e experiências
compartilhadas, o que gera afetos de alegria e o desejo de mais.

“Entre-exposições”: 2ª reunião de devolução da pesquisa-intervenção

Na segunda reunião de devolução para a equipe do CCBB, realizada no final de 2014,


dois anos após a primeira, retomamos o tema dos diferentes tipos de acessibilidade para
pessoas com deficiência visual em museus, além dos desafios de torná-la uma política da
instituição. Discutimos novamente o conceito de experiência estética, a heterogeneidade do
grupo de pessoas com deficiência visual e a importância de se atentar a isso no momento de
elaborar estratégias acessíveis. Marcamos também a diferença entre o tato utilitário e o toque
afetivo.
Para essa reunião, preparamos uma apresentação de slides, na qual expusemos,
sistematicamente, um breve relato de cada visita, com descrição das estratégias e dispositivos
utilizados para a acessibilidade, e uma análise de seus efeitos. Todo o material utilizado para
as análises haviam sido colhidos e produzidos por nós, durante as visitas ao CCBB com as
pessoas cegas.
Começamos pela exposição Tarsila do Amaral: um percurso afetivo, debruçando-nos
sobre o problema das placas táteis. Comentamos também a performance de Camila para
Antony Gormley: corpos presentes e sobre os avanços na mediação e da Estação Sensorial –
que passou a ser multimodal e também para os videntes – na exposição Impressionismo: Paris
e a Modernidade. Apontamos que a exposição ELLES: Mulheres artistas na coleção Centre
Pompidou trouxe mudanças, com um trabalho mais conceitual a partir do tema da mulher, e
Yaioy Kusama: Obsessão Infinita, que inaugurou o modo multissensorial e experimental de
fazer mediação.
Relembramos também a conversa, ao final da visita, à mostra Visões na coleção
Ludwig e demos a devolutiva das entrevistas realizadas por nós com as duas pessoas com
deficiência visual, a partir da demanda por audiodescrição. Destacamos esse recurso como
uma das estratégias que podem fazer parte da acessibilidade, mas essa não deve se limitar a
121

ela. Por fim, comentamos o trabalho dos mediadores na exposição Ouro: um fio que costura a
arte do Brasil, que incluiu a audiodescrição, mencionando abertamente a utilização desse
recurso em função da proibição do toque em obras, além do belo trabalho realizado para a
sensibilização. Fizemos também uma avaliação geral e apontamos algumas diretrizes para a
acessibilidade estética, como ter pessoas com deficiência e artistas na equipe e a possibilidade
do toque em uma parte da obra que toque seu conceito, como um pedaço da coluna ou uma
vestimenta de balé.
Nossa apresentação na reunião mostrou-se como um breve resumo desta dissertação,
que aprofunda as referidas análises e aponta para novos problemas. Vimos nessa reunião de
devolução a importância da nossa intervenção no processo do trabalho em acessibilidade do
Educativo. Com base na Pista de Pozzana e Kastrup, “Cartografar é acompanhar processos”
(2010, p. 52), nosso trabalho se faz na investigação e avaliação desse objeto-processo, sempre
em vias de transformação. Sua processualidade é marcada por grandes avanços no sentido da
acessibilidade à experiência estética. Percebemos então o caráter de produção coletiva do
trabalho: do Educativo do CCBB, das pessoas cegas que frequentam as exposições e também
da nossa pesquisa. Os próprios mediadores não haviam se dado conta dos avanços e ficaram
surpresos com a mudança na qualidade de sua mediação ao longo desse processo e, também,
com seus efeitos. E o processo continua.

3.5 KANDINSKY: TUDO COMEÇA NUM PONTO

A exposição ocorreu no CCBB de janeiro a março de 2015. A mostra contava com


obras do Museu Estatal Russo de São Petersburgo, que trazia algumas pinturas de Wassaly
Kandinsky e de artistas contemporâneos, além de indumentárias e utensílios do folclore russo
e objetos de rituais xamânicos encontradas no interior do país.
O artista passou a se dedicar à pintura por volta dos 30 anos de idade, por crer que
para o povo russo a arte seria “um luxo inadmissível”. Antes, ele realizou pesquisas científicas
na província de Vologda, no noroeste da Rússia, onde estudou a vida, a economia e a arte
popular da região, que misturavam raízes russas e finlandesas. Ficou impressionado com os
rituais e as crenças dos povos nórdicos, o que influenciou seu trabalho. Quando ele começou a
pintar, suas obras contemplavam temas folclóricos e a antiga história russa. Esses trabalhos
são menos conhecidos do que suas pinturas abstratas (PETROVA, 2014).
Foi no contato com a cultura desses povos que Kandinsky passou a perceber as
dimensões emocional e espiritual da arte. O artista passou a conceber a obra de arte como algo
122

vivo: para ser vivido de dentro e não somente visto de fora. A partir disso, o pintor passou a
introduzir a imagem abstrata em suas obras. Segundo Kandinsky, “o artista pode influenciar a
alma somente com seus meios tradicionais: a tinta (cores), a forma (isto é, com a distribuição
dos planos e das linhas) e a relação entre eles (o movimento)” (PETROVA, 2014, p. 19 apud
KANDINSKY, 2001, p. 94). Assim, o artista foi abandonando a arte figurativa e atribuindo às
cores e formas abstratas o protagonismo de suas imagens.
Kandinsky foi também bastante influenciado pela vanguarda musical do início do
século XX. Para ele, a natureza imaterial da música permitiu que se diluísse o espaço do
quadro e a fragmentação de objetos, atribuindo à pintura a dimensão do tempo. “O ritmo, a
velocidade, a dinâmica, a simultaneidade, que correspondem à dissonância e à polifonia na
terminologia musical [...] atestavam uma ligação profunda entre as técnicas usadas nas artes
plásticas e na música” (PETROVA, 2014, p. 20). Essa relação da pintura com a música foi
chamada pelo artista de síntese das artes.

3.5.1 Imaginando obras de arte

A organização dessa visita começou duas semanas antes e teve como ponto marcante a
confusão institucional. Novamente atravessando nosso trabalho, que de certo modo realiza a
ponte entre CCBB e IBC, problemas de comunicação do CCBB conosco em relação à data da
visita fizeram com que as negociações dentro do IBC fossem prejudicadas. Havíamos
convidado os alunos da Oficina de Cerâmica e, por estarmos cientes de que o CCBB não
poderia mandar um ônibus desta vez, solicitamos o ônibus do IBC. A troca de datas acabou
impossibilitando o ônibus e prejudicou a permissão para a saída dos reabilitandos. Tivemos
que cancelar e remarcar a visita, definindo o ponto de encontro fora do IBC. Isto confundiu as
pessoas interessadas, o que contribuiu para o número reduzido de participantes. Desta vez,
nosso grupo foi composto por duas pessoas cegas congênitas e uma pessoa com baixa-visão,
além de nós da equipe.
Ao chegamos ao CCBB, fomos calorosamente recebidos pelos mediadores e subimos
para a sala do Educativo, onde nos sentamos em roda. Apresentamo-nos e começamos uma
conversa sobre a exposição que iríamos visitar, para desacelerar. Os mediadores procuraram
saber o que cada um sabia ou imaginava a respeito de Kandinsky, fazendo perguntas e
provocando a nossa fala: Em que época ele viveu? De onde ele era? O que fazia? Como será
que ele se vestia? Aos poucos íamos reunindo pistas do que vinha adiante.
Seguimos para a galeria e passamos por algumas salas com obras e utensílios que
123

revelavam a influência do folclore russo na sua arte. Paramos em uma parte da sala na qual
estavam expostas algumas pinturas que traziam São Jorge como tema, que é o padroeiro da
Rússia. Nos detivemos frente a uma grande foto de Kandinsky, onde os mediadores nos
contaram um pouco mais sobre a trajetória do artista. Aos poucos, eles foram introduzindo o
tema da abstração. Para isto, eles pediram para ativarmos nossa percepção, comentando sobre
os sons da sala cheia até chegar ao que estava mais próximo de nós: os quadros e objetos
expostos.
Começamos a falar sobre São Jorge, e a imaginar como seria a pintura de uma cena em
que São Jorge aparecesse sentado em seu cavalo e empunhando sua lança. Enumeramos
diversos elementos que a comporiam: cores quentes e vibrantes, talvez traços fortes e formas
pontudas. Nesse momento foram disponibilizados para o toque dois cavalos de brinquedo: um
era uma miniatura de cavalo de corpo inteiro, de borracha. O outro era um cavalo de pau
semelhante àqueles brinquedos infantis: tinha a cabeça de pelúcia, e o corpo era uma espécie
de cabo de vassoura. Começamos a discutir as diferenças e semelhanças entre eles, pensando
se algo estaria faltando para que parecessem cavalos de verdade. Se os dois cavalos eram tão
diferentes, como os dois podiam ser reconhecidos como cavalos? Os mediadores pareciam
propor, nesse momento, um exercício de abstração. Nós, da equipe, achamos a proposta
curiosa e difícil. Talvez o exercício da abstração de imagens não seja tão evidente a uma
pessoa que vê.

Figura 29 - São Jorge, de Wassaly Kandinsky, 1911 (107 x 95,2 cm)

Seguimos para a próxima sala e detivemo-nos frente à pintura de Alexander Borisov,


chamada Eclipse total de 1896 em Nova Zembla. Os videntes começaram a descrever o
124

quadro, suas cores e formas. Era uma montanha azul, plana em cima, e o céu parecia de um
amanhecer de inverno. Falamos de montanha, de eclipse, e imaginamos como seria morar
naquela montanha: surgiram casas, casas frias de montanha, solidão, casacos e pessoas que
levaríamos para as montanhas conosco.

Figura 30 - Eclipse total em Nova Zembla, de Alexander Borisov, 1904 (201,5 x 357,5 cm)

Em seguida, os mediadores distribuíram papeis com nomes de algumas das obras da


sala escritas em Braille, e pediram para que as pessoas com deficiência visual sorteassem um
e lessem o que estava escrito. Ficamos imaginando como seriam as pinturas segundo os
nomes, até que propuseram que nos dividíssemos em grupos e que os videntes de cada grupo
procurassem na galeria uma pintura chamada Dança popular de roda. Antes, fizemos uma
pequena discussão sobre sua imagem, que imaginamos conter pessoas, saias rodadas,
movimento. Sem ler os nomes das obras, deveríamos ser guiados pelas imagens para
encontrar a obra proposta.
Ao nos reunirmos frente a ela, continuamos a exploração sobre a abstração e
imaginação. Os videntes descreviam o que viam: pontos e borrões. A moça com baixa-visão
comentou sobre uma mancha azul. A princípio, a imagem da pintura poderia se resumir a
apenas uma mancha azul mesmo. Mas conforme pousávamos nosso olhar e variávamos a
distância entre nós e o quadro, algumas formas começaram a se insinuar – uma mulher
sorrindo, um músico, talvez um casal, flores penduradas. Os mediadores comentaram que
nossa imaginação poderia ser um elemento forte da composição da imagem que estávamos
vendo.
125

Figura 31 - Dança popular de roda, de Nikolai Milioti, 1906 (71 x 75,5 cm)

A obra seguinte foi a pintura No Branco, de Kandinsky. A sala em que estávamos


expunha obras que exploravam o que o pintor chamava de síntese das artes, mais
especificamente a relação da pintura com a música. Os mediadores comentaram que as obras
daquela sala haviam sido pintadas ao som de música clássica e, como recurso, serviram-se de
uma caixinha de som para tocar uma parte de Four Elise, de Beethoven. Como éramos muitos
para ouvir o som de um rádio pequeno, fizemos uma roda e aproximamo-nos para ouvir
melhor. Alguns cantarolavam, outros silenciaram. O contato corporal dava a sensação de
proximidade, e ficamos juntos imaginando como deveria ser o quadro pintado ao som daquela
música. Provocações: o que a música desperta em nós? As músicas despertam as mesmas
coisas? Algumas alegres têm bastante movimento, enquanto outras são tristes e mais lentas,
assim como a dinâmica das formas nos quadros.
126

Figura 32 - No Branco, de Kandinsky, 1920 (95 x 138 cm)

Os últimos momentos da visita aconteceram na Estação Sensorial. Exploramos uma


estrutura de metal vasado em forma de cubo, onde podíamos entrar e compor com algumas
formas, feitas de materiais e cores diferentes. Essas eram flutuadores de piscina, tiras de
borracha, pedaços de tela, entre outros, presos à estrutura. Havia também alguns cabos de aço
atravessados, dos quais devíamos nos desviar na nossa exploração. A proposta era sentir-se
dentro de uma pintura de Kandinsky, com a possibilidade modificar a posição dos materiais
da maneira que cada um quisesse, de modo a criar novas imagens. Ao fim dessa atividade,
reunimo-nos para um bate-papo e fechamos a visita cantando juntos a canção “Tocando em
frente” de Almir Sater.
127

3.5.2 Aproximação entre cegos e videntes a partir da arte abstrata38

Diante da obra São Jorge (1911), de Kandinsky, a mediadora com deficiência visual
que acompanhava nosso grupo comentou que pessoas com deficiência visual fazem abstração
a todo momento. Essa colocação nos soou estranha e fez emergir uma questão que nos forçou
a pensar: em que medida o que os videntes experimentam frente a uma obra de arte abstrata se
assemelha ao funcionamento cognitivo das pessoas com deficiência visual? A partir desse
problema, começamos a investigar possíveis aproximações entre a imagem visual produzida
por videntes frente a uma obra de arte abstrata e a construção de imagens mentais a partir da
percepção tátil, que é muito presente em pessoas com deficiência visual. Para isto, estudamos
sobre a arte abstrata e o conceito de abstração e as características de imagens mentais de
pessoas com deficiência visual, e recorremos aos escritos de Kandinsky para compreendermos
suas obras. É importante ressaltar que, mais uma vez, o modo como a mediação foi feita
tornou a visita mais interessante: em vez de apenas informar, os mediadores nos colocavam
questões e nos instigavam a pensar, oferecendo ferramentas para elaboração. Trazendo
questões próprias à deficiência visual, os mediadores envolveram a todos na exploração da
arte abstrata.
A arte abstrata surge no século XVI em um contexto de oposição à arte figurativa ou
clássica do Renascimento, que buscava semelhança fotográfica e proximidade com a imagem
retiniana. Já a arte abstrata trabalha com a simplicidade das formas, tendo relação com os
desenhos de crianças ou arte primitiva. Segundo Rudolf Arnheim (1997, p. 38) “o termo
abstração serve para descrever qualquer interpretação simplificada de uma configuração
estimular (concreta)”. O autor utiliza o exemplo da redondeza da cabeça, que é uma
característica que pertence a todos que têm uma cabeça humana e, ao mesmo tempo, não diz
respeito a nenhuma cabeça humana específica.
No momento da visita em que trabalhávamos a obra São Jorge com os dois cavalos de
brinquedo, chegamos à ideia de que os cavalos de pau, de borracha e o da imagem da pintura
possuíam alguns elementos comuns. Ao explorá-los e abstrair seus detalhes e as diferenças
entre eles, chegamos à estrutura mais simples possível de um cavalo: uma certa “cavalice”,
composta de elementos abstratos que eram, simultaneamente, comuns a todos os cavalos, mas
não se referiam a nenhum cavalo em particular. Seguindo essa ideia, fomos trabalhando a

38
O problema e análise que apresentamos neste subitem foram desenvolvidos com base no trabalhado
apresentado na Jornada de Iniciação Científica da UFRJ em 2015 sob o título Aproximação entre cegos e
videntes a partir da arte abstrata. O resumo expandido foi indicado para publicação na Revista do CFCH em
2016.
128

percepção da obra, pensando que os cavalos em miniatura não oferecem uma reprodução fiel
da forma de um cavalo, mas possuem elementos – quem compõem a “cavalice” – que nos
permitem reconhecê-los enquanto cavalos. Pedindo para que as pessoas videntes
descrevessem a pintura de Kandynsky, os mediadores apontavam para essa característica de
sua obra: de que é preciso ir além da forma. Somente quando nos deixamos tocar pelas forças
da pintura, presentes em suas cores e formas pontudas, podemos passar a ver o que há na
imagem.
Kandinsky (1996) foi um artista que escreveu muito sobre seu estilo e produziu
conhecimento sobre a arte abstrata, sendo seu pensamento alvo de muitas críticas na época em
que surgiu. Para ele, a arte abstrata é constituída por forças que vivem nas formas. Seria um
modo de apresentar uma arte viva, criada por elementos de tensão que imprimem movimento,
instabilidade e dissolução de formas rígidas. Foi nessa medida que o quadro São Jorge afetou
a nós da pesquisa, enquanto videntes. Em um primeiro momento, só enxergávamos na pintura
vultos e borrões. Mas após um tempo de apreciação, passamos a perceber elementos simples
que nos remetiam a um cavalo, um cavaleiro e uma lança, aproximando-se do que
imaginamos ser São Jorge. O interessante é que a cada vez que apreciávamos a pintura, era
possível ver elementos diferentes, mostrando exatamente a ideia de arte viva e dinâmica.
Para analisar possíveis proximidades entre o funcionamento cognitivo de pessoas
cegas e videntes frente à arte abstrata, é preciso entender as características da percepção visual
e tátil, além de seus modos respectivos de formação de imagens mentais. Tanto a visão quanto
o tato formam imagens, mas por processos diferentes, devido às particularidades específicas
de cada um desses sentidos.
Como visto no capítulo 2, a visão é caracterizada como uma percepção distal, uma vez
que apreende os objetos ou estímulos à distância e não requer contato direto (KASTRUP,
2013). É também sintética e rápida, pois forma a totalidade percebida quase que
imediatamente. Contudo, as pessoas com deficiência visual constroem imagens a partir de
outras capacidades perceptivas, principalmente pelo sentido tátil. Mesmo as pessoas com
cegueira tardia, que preservam memória visual, utilizam o tato para o reconhecimento de
formas. O tato possui caráter proximal, sendo também analítico e mais lento que a visão. Ele
se dá por partes e a exploração vai aos poucos reunindo os elementos necessários para a
apreensão da totalidade dos objetos. Em razão dessas qualidades, a imagem tátil, quando
comparada à imagem visual, é menos complexa e mais fragmentada (VILLEY, 1914). E é
nessa medida que a imagem tátil se assemelha a uma imagem da arte abstrata.
As imagens da arte abstrata são constituídas por elementos de força, tensão e
129

movimento, além de requererem uma temporalidade mais lenta para sua apreciação.
Colocando em questão a síntese totalizante e rapidez da visão, obras de arte abstrata podem
aparecer como um convite à experimentação de outras formas de perceber, em que a atenção
aos detalhes e o tempo de apreciação ampliam certas limitações e dificuldades da cognição
visual contemporânea.
Outro exemplo disto foi uma situação curiosa que aconteceu no momento em que os
grupos formados por cegos e videntes procuravam pela sala a pintura Dança popular de roda.
Um dos grupos – que tinha uma pessoa vidente e duas pessoas cegas – enganou-se e seguiu ao
encontro da obra Triunfo do céu – Estudo de pintura afresco, de Kazimir Malevich.

Figura 33 - Triunfo do céu – Estudo de pintura afresco, de Kazimir Malevich, 1907 (71,5 x 70 cm)

Esse equívoco parece ter acontecido devido ao fato de a imagem da pintura ser
formada pela união de algumas pessoas, o que poderia configurar uma dança. Por se tratar de
uma obra de arte figurativa e não abstrata, a pessoa vidente não precisou abstrair e organizar
os elementos que compunham a imagem para que visse a dança. A imagem figurativa, que é
estável e possui contornos bem definidos, foi apresentada de pronto, o que acabou por
confundir a pessoa vidente.
Contudo, assim como a pintura São Jorge, a obra Dança popular de roda também se
tratava de uma obra abstrata, que nos exige uma temporalidade mais lenta para que as forças
da “mancha azul” se organizem em formas mais ou menos estáveis. A relação de elementos
simples, como pontos e pequenos traços que variam em cores e espessura, aos poucos vão
sugerindo movimento e formas, que se assemelham a um conjunto de pessoas. Assim,
130

podemos dizer que essas duas obras parecem nos convidar à experimentação de uma outra
forma de visão, a um tateio visual.
A visita à exposição de Kandinsky com pessoas com deficiência visual e o trabalho
acerca do conceito de abstração nos fez notar que a experiência de apreciação de obras de arte
abstrata pode se dar por modos diferentes de perceber, dotando a visão de elementos táteis,
que a fazem variar. Para que as forças da imagem possam se estabilizar em formas, é preciso
um modo de ver mais lento e analítico, parecido com o tato. Assim, por mais que o
funcionamento do tato e da visão sejam muito distintos, eles podem, por vezes, se aproximar.
Nesse caso, o desafio que a mediação colocou aos videntes foi o de tatear as obras com os
olhos.
131

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TOCANDO EM FRENTE

Ando devagar porque já tive pressa


e levo esse sorriso porque já chorei demais.
Cada um de nós compõe a sua história,
cada ser em si carrega o dom de ser capaz.
E ser feliz.

Almir Salter

Nos últimos dias de escrita desta dissertação, fomos avisados pelo grupo da
Acessibilidade de que havia disponibilidade de ônibus do CCBB para uma visita do Benjamin
Constant à exposição Guilherme Vaz: uma fração do infinito. A mostra reunia 41 obras desse
artista brasileiro, que é um dos pioneiros da arte sonora no país. Pensei que participar da visita
poderia ser interessante no sentido de mostrar a continuidade do processo de construção de
um projeto consistente de acessibilidade no CCBB. Entretanto, a visita não aconteceu. O
Educativo do CCBB se comunicou diretamente com Oficina de cerâmica, que pediu
autorização à Divisão de Reabilitação do IBC para a saída dos alunos. Todavia, a visita não
foi autorizada pela nova diretoria, sob a justificativa de que os alunos da turma de cerâmica
eram novos e deveriam conhecer os espaços do Instituto antes de fazerem um “passeio”. Tal
fato se apresenta como um analisador, já que expõe a existência de obstáculos institucionais
que podem comprometer a consolidação das atuais parcerias.
Por certo o convite do CCBB atesta a parceria criada entre nossa pesquisa, o IBC e o
grupo de Acessibilidade do Educativo. Contudo, uma mudança na gestão do IBC acabou por
afetar diretamente as visitas propostas. O setor de Reabilitação parece considerar a ida a uma
exposição de arte, no contexto de uma visita acessível e de qualidade, como como um mero
“passeio”. Em nosso entendimento, a prioridade dada ao conhecimento do espaço interno do
Benjamin Constant evidencia também a fragilidade das relações que o Instituto estabelece
com o mundo externo - o CCBB e outras instituições, que poderiam expandir o território
existencial das pessoas cegas. Sentimos que o IBC ainda não compreende bem o sentido da
acessibilidade a museus, considerando-o mera recreação. Enfim, o cancelamento da visita
sinaliza que o engajamento institucional nas visitas de acessibilidade pode vir a gorar a
qualquer momento.
Nesta dissertação, explicitamos, ao longo do primeiro e segundo capítulos, conceitos
que consideramos significativos no desenvolvimento do trabalho em acessibilidade.
Distinguimos três tipos de acessibilidade: a física, a informacional e a estética e assumimos a
direção da acessibilidade estética. Discutimos a diferenças entre o acesso à informação e à
132

experiência de caráter estético no encontro com a arte (DEWEY, 2010; LARROSA, 2014)
que, muitas vezes, podem se confundir. Buscamos expor suas distinções quanto aos objetivos
e efeitos de cada uma o que, para nós, não é um detalhe. Enquanto a informação pode ser um
aspecto interessante de uma visita a um museu, por possibilitar a aprendizagem de algo
específico, útil e curioso, a experiência vai além, produzindo algo novo. Lembrando Larrosa
(2014), por ser algo que nos passa, que acontece em nós, a experiência pode não somente nos
acrescentar algo, mas nos transformar, criando uma diferença qualitativa entre o antes e o
depois dela. Acreditamos que o encontro com a arte nos toca nesta dimensão, de uma
experiência profunda e transformadora, capaz de criar novos sentidos para a arte e para a vida.
Conforme visto no segundo capítulo, a questão da utilização de imagens táteis vem
sendo debatida por pesquisadores, que adotam diferentes posições. Há autores, como Heller e
Gentaz (2014), que defendem que a dificuldade de pessoas cegas, principalmente congênitas,
na compreensão das imagens táteis, deve-se ao acesso limitado a elas, e incentivam sua
disseminação no meio educacional e cultural. Já outros autores, como Hatwell e Martinez-
Sarocchi (2000), posicionam-se de maneira oposta, afirmando que, por mais que pessoas
cegas sejam capazes de aprender as regras de representação visual por meio do tato, como as
leis da perspectiva, esse aprendizado pode ser muito difícil. Assim, por mais que a
compreensão de imagens táteis de tipo visual possa aparecer como um desafio cognitivo
interessante, vimos que tato e visão possuem características que lhes são próprias, o que
dificulta a transposição de um sentido para o outro. Além disso, as imagens táteis que buscam
reproduzir o que é apreendido pela visão podem representar uma forma da chamada
“colonização do visual”, o que justifica a resistência à sua utilização.
Em nossa dissertação fazemos diversas objeções de ordem cognitiva ao uso de placas
táteis nos projetos de acessibilidade estética em museus e centros culturais. Cabe aqui
ressaltar que nem todas as imagens táteis são de tipo visual, como a maioria das placas táteis e
das imagens utilizadas em livros didáticos. A editora francesa de livros infantis ilustrados e
acessíveis a pessoas com deficiência visual, a Les Doigts Qui Rêvent, vem buscando o
desenvolvimento de outro tipo de imagens táteis. Nessa direção, além das imagens com
texturas juntamente com a simplificação de seu conteúdo (VALENTE, 2015, p. 58), sua
combinação com recursos multissensoriais vem ganhando destaque. Há algumas histórias que
colocam os dedos como protagonistas que, como duas pernas, realizam movimentos
específicos. Para a elaboração das imagens táteis, pesquisadores como Dannyelle Valente
investem na parceria com universidades para pesquisa nas áreas de psicologia cognitiva,
semiótica do design e ciências da educação. Oficinas para as crianças com deficiência visual,
133

que exploram e criam seus próprios projetos de imagens táteis são também indicadas como
um caminho fecundo.
Nossa crítica às placas táteis surgiu na primeira visita de acessibilidade ao CCBB. Na
exposição, Tarsila do Amaral: um percurso afetivo, foi possível observar a dificuldade de
compreensão das imagens táteis pela exploração de placas em alto relevo e placas com
texturas e com linhas de contorno. A atividade de realização de desenhos também apareceu
como um desafio para as pessoas com deficiência visual que acompanhamos. Em nossa
análise, destacamos que as imagens das placas, por se pretenderem reproduções
bidimensionais de objetos tridimensionais, são difíceis de serem apreendidas. Além disto, ao
limitarem a percepção háptica, mantendo-a em seu papel funcional, as placas não oferecem
condições para a emergência de uma experiência estética. Já a proposta de desenhar se
apresenta de modo ambíguo para as pessoas com deficiência visual: para quem nunca viu,
desenhar poderia ser um desafio, uma descoberta. Para quem já viu ou vê pouco, esta pode se
apresentar como uma atividade possível, com a utilização de referências visuais.
Após a devolução dos resultados parciais da pesquisa à equipe do Educativo do
CCBB, vimos que novos caminhos para a acessibilidade começaram a se delinear, com a
adoção de novas estratégias. Por exemplo, a performance realizada para a exposição de
Antony Gormley: corpos presentes, surpreendeu-nos muito positivamente. Além do convite a
uma acessibilidade ampliada, que coloca a questão da deficiência visual também para as
pessoas videntes, o modo como esta proposta foi feita – uma apresentação artística – tocou a
dimensão afetivo-emocional da experiência dos expectadores, aproximando-se da proposta de
uma acessibilidade estética. Lembrando Dewey (2010), assistir àquela performance foi uma
experiência!
As exposições Impressionismo: Paris e a Modernidade e ELLES: mulheres do Centre
Pompidou apareceram como bifurcações no processo, apontando diferenças sutis. Na mostra
dos artistas impressionistas, algumas novidades começaram a se esboçar como um modo mais
atento e afetivo de fazer acessibilidade, além de ter havido a utilização de dispositivos
multimodais. Já na exposição das mulheres artistas do Centre Pompidou, houve a exploração
do conceito “mulher”, que guiou a visita e proporcionou momentos de troca entre os
participantes. Dispositivos táteis foram utilizados para o acesso a algumas obras e para abrir
discussões, sem consistir o caminho hegemônico.
Uma ruptura importante no processo apareceu na exposição seguinte, Yayoi Kusama:
obsessão infinita. As estratégias adotadas para a acessibilidade à exposição da artista japonesa
apontaram para uma reviravolta no modo de fazer mediação. Convocar o corpo para a
134

experiência com a arte na exploração de elementos arquitetônicos do CCBB e as propostas de


explorar as obras multissensorialmente proporcionaram o acesso ao felt meaning do trabalho
de Kusama. A sensibilização da atenção e do corpo, bem como a mediação experimental
remeteram aos Encontros Multissensoriais que aconteciam no MAM, o que foi mencionado
por um dos participantes da visita. A direção para a experiência de transmodalidade, que
também marcava o trabalho no projeto do MAM, apareceu no CCBB, o que nos leva a crer
que essas estratégias podem ser potentes no sentido da criação de desejo de pessoas com
deficiência visual de frequentarem espaços de arte.
Na exposição seguinte, Visões na coleção Ludwig, percebemos e fomos tocados por
uma nova bifurcação: a demanda de duas pessoas com deficiência visual para audiodescrição
de obras de arte. Para uma melhor investigação desse problema, já que nossa aposta era evitar
recursos que buscam apenas o acesso a elementos visuais, realizamos duas entrevistas com
manejo cartográfico. Com a análise das entrevistas, reconhecemos a audiodescrição como um
recurso de acessibilidade que pode desempenhar um papel interessante, no sentido de situar a
pessoa cega no contexto da exposição e fornecer alguns detalhes das obras, podendo auxiliar
na formação de suas imagens mentais. Contudo, consideramos que a acessibilidade não deve
jamais se resumir à audiodescrição. Concordamos com Petitmenging (2007) que a boa
tradução de uma obra não precisa ser necessariamente pela via verbal e pela descrição de seu
conteúdo. Essa pode ser feita de outros modos, como pela via do corpo e das sensações. Na
audiodescrição, tais elementos raramente aparecem, o que a torna uma tradução que fica
aquém da experiência direta com a obra. Estratégias como a sensibilização do corpo e a
presença de uma mediadora cega na equipe foram citadas pelas pessoas entrevistadas como
potentes para o acesso à experiência e ao encontro com a arte.
Essas considerações apareceram no trabalho dos mediadores na exposição seguinte,
Ouro: um fio que costura a arte do Brasil. O trabalho criado para essa exposição revelou o
amadurecimento da equipe quanto à acessibilidade estética. O momento da sensibilização
levou em consideração o tato para além de sua funcionalidade, levando-nos a tocar e escolher
o que nos tocava, segundo seu valor afetivo. O tema do valor afetivo abriu para a partilha de
histórias caras para todos nós, inclusive para os mediadores. Além disso, os mediadores
anunciaram a disponibilidade para audiodescrever qualquer obra da galeria, e falaram
abertamente sobre a proibição do toque em obras. Sem a possibilidade de tocar nas obras,
fomos guiados pelo tema do valor e pela exploração de elementos arquitetônicos e
expositivos, o que nos levou a outras possibilidades: o encontro com a arte, com nossas
lembranças e também com o outro.
135

Na última exposição que analisamos, fomos levados, cegos e videntes, a experimentar


juntos o exercício da abstração. Frente a obras de arte visual da exposição Kandinsky: tudo
começa num ponto, fomos conduzidos pelos mediadores a ensaiar a abstração de formas e a
conexão com as forças e tensões das imagens. Isso se mostrou um desafio também para as
pessoas videntes, que tiveram que usar a visão de modo quase tátil – lento e por partes – o que
acabou por aproximar aquele grupo heterogêneo que participavam da visita.
Em resumo, o processo da acessibilidade para pessoas com deficiência visual no
CCBB tem realizado muitos avanços no sentido da promoção de condições para uma
experiência estética no encontro com a arte. No início, havia a utilização das placas táteis, que
reproduzem o conteúdo de obras por meio da transposição de suas formas do sentido visual
para o tátil; em seguida, houve a exploração de recursos multimodais e de conceitos que
guiavam o percurso da visita. Na exposição de Yayoi Kusama, notamos o surgimento de uma
mediação experimental, distribuída e inventiva, onde o corpo desempenhava o papel central
por ser a fonte das sensações e processos cognitivos desencadeados pela experiência de
encontro com a arte. Isto mostra um processo que partiu da reprodução de informação visual
em direção à abertura aos afetos, inaugurando novos meios de fazer acessibilidade no CCBB.
Na escrita dessa dissertação, percebo que conforme narro a sequência das visitas,
quando ela foram ficando mais abertas à experimentação, com dispositivos e estratégias que
apontavam cada vez mais na direção da invenção, a escrita também ganhou certa fluidez. Ao
longo do processo da escrita, lembranças e sensações das experiências vividas nas exposições
puderam vir à tona, levando a escrita sobre a experiência parecer mais encarnada e sentida,
surgindo como uma escrita da experiência. Fomos todos afetados, não somente as pessoas
com deficiência visual, mas também a equipe do Educativo do CCBB e a equipe da pesquisa,
onde me incluo. Imersos no processo, fomos tocados por essa acessibilidade ampliada, que
reverbera também em quem vê. Interviemos e sofremos a intervenção do trabalho em nossos
corpos.
Assim, a dissertação procurou trazer a distinção entre os diferentes objetivos que
podem estar contidos no conceito de acessibilidade, além de uma contribuição sobre a questão
cognitiva envolvida na exploração das placas táteis, questionando sua utilização como
estratégia maior da acessibilidade estética. Ainda hoje as placas táteis vêm sendo utilizadas
em espaços culturais como dispositivos cuja eficácia é pressuposta, não sendo
problematizada. Em 2015, o Museu do Prado, em Madri, na Espanha, divulgou amplamente
na Internet a oferecimento de placas táteis de algumas de suas obras como uma grande
novidade para a acessibilidade de pessoas com deficiência visual. As obras escolhidas para
136

reprodução em placas em alto relevo são as pinturas mais importantes do acervo do museu.
Vemos que este ainda é um recurso muito comum, apesar dos estudos críticos que pontuam
que talvez essa não seja a melhor opção para a acessibilidade de pessoas com deficiência
visual, nem mesmo quando o objetivo é a pura e simples apresentação de informação.

A dissertação pretende ter contribuído para o esclarecimento da distinção entre os


conceitos de multimodalidade, multissensorialidade e transmodalidade. A experiência
multimodal se caracteriza pela mobilização de diferentes modalidades perceptivas, mas pode
ficar restrita ao nível funcional e recognitivo. O conceito de multissensorialidade já leva em
consideração uma experiência que está para além da percepção funcional e utilitária. A
expansão da experiência perceptiva por meio de estratégias multissensoriais nos leva ao
encontro de sensações, conferindo à experiência o caráter afetivo-emocional, como acontece
em uma experiência estética. O conceito de transmodalidade aponta de modo mais claro a
existência de uma dimensão profunda da experiência, que é anterior à clivagem dos modos
perceptivos. Nossa aposta para a acessibilidade estética é em estratégias que privilegiem uma
tradução das obras de arte pela via da experiência transmodal de ser atravessado por suas
forças no nível da source dimension (PETITMENGIN, 2007). O contato com esta dimensão
fonte da experiência subjetiva nos dá o acesso ao felt meaning, o sentido intuído que é o
material da experiência estética. Nesse sentido, importa menos a compreensão intelectual de
informações sobre o conteúdo de uma obra e mais a experiência de estarmos mergulhados em
suas forças, em sensações um tanto turvas, mas que desencadeiam em nós processos
cognitivos, abrindo para a criação de sentido.
Em relação ao programa de acessibilidade do CCBB, consideramos importante
ampliar sua divulgação entre pessoas cegas. Foi apontado pelos mediadores que a demanda do
público espontâneo com deficiência visual ainda é muito pequena, apesar de a equipe estar
sempre a postos para recebê-lo. Como os recursos de acessibilidade em instituições de arte
são raros, as pessoas cegas podem não buscar estes espaços por suporem que não existem
meios para usufruir de uma exposição. Além disso, a ciência da proibição quase universal do
toque em obras de arte, que ficam como algo a ser contemplado à distância por certo afasta as
pessoas cegas e com baixa-visão. Por isso, faz-se mister a divulgação e o convite direto de
pessoas cegas para participarem dos encontros nesses espaços, o que promoveria a ampliação
de seus territórios existenciais, transformando os museus e centros culturais em lugares de
trocas e de encontros, entre pessoas e com a arte. Algumas das pessoas cegas que participaram
de visitas no CCBB puderam experimentar conosco a ida a um centro cultural pela primeira
137

vez. Assim, a oportunidade de usufruir de um encontro de acessibilidade em uma exposição


de arte pode ser uma descoberta de um novo lugar, de um novo gosto, de novos encontros.
O convite a uma acessibilidade ampliada, como apareceu na performance realizada na
exposição de Antony Gormley: corpos presentes, pareceu muito relevante ao tocar também as
pessoas videntes, desconstruindo o lugar da deficiência e afirmando-a enquanto diferença.
Nesse sentido, entendemos que propostas de acessibilidade estética não precisam se limitar às
pessoas com deficiência visual, podendo transformar a todos que se mostram abertos a
usufrui-las. Ao convidar todos a experimentarem outras formas de perceber, como aconteceu
também na exposição de Kandinsky, é possível que cegos e videntes possam trocar
impressões, aprender e inventar juntos novos sentidos para a obra de arte, expandindo suas
percepções e indo além.
Contudo, percebemos ao longo do processo que acompanhamos no CCBB, a
dificuldade de incluir a discussão da acessibilidade na política do centro cultural. O avanço
notável do projeto de acessibilidade resta ainda circunscrito ao setor Educativo, não tendo
sido abraçado como uma política clara do CCBB. Isto faz com que as estratégias de
acessibilidade ainda dependam muito do engajamento e da capacidade inventiva dos
mediadores. Reconhecemos que esta é uma situação presente em quase todos os museus e
centros culturais do Brasil e do mundo. A preocupação com a acessibilidade a públicos com
deficiências visuais ou outras deficiências fica restrita ao Educativo, interferindo pouco ou
quase nada na política das instituições. A questão da acessibilidade não parece ser levada em
consideração no momento da montagem das exposições e o diálogo com os curadores e
conservadores das obras de arte ainda costuma ser raro. No caso dos centros culturais, que não
possuem acervo, isto é ainda mais notável. Quando há alguma abertura para a negociação do
Educativo com a curadoria para o toque a alguma obra específica, este ainda pode ser
proibido pelo artista, como aconteceu na exposição Ouro, um fio que costura a arte no Brasil.
Ao discutir a proibição do toque às obras em museus, Fiona Candlin (2003, 2004)
aponta para este impasse. A autora afirma que o saber/poder dos profissionais destas
instituições, como curadores e conservadores, parece mais fiel à conservação e à visão como
sentido hegemônico para o acesso à experiência estética do que às necessidades do público.
Candlin menciona as visitas táteis e os touch tours como as medidas mais comuns para
contornar este problema. Contudo, por mais que pareçam tornar a instituição acessível às
pessoas com deficiência visual, a escolha das obras e o modo como seriam tocadas é muitas
vezes arbitrária. Na ocasião da Blind Creation Conference, em Londres, em 2015, tivemos a
oportunidade de acompanhar pessoas com deficiência visual a um touch tour, no Victoria and
138

Albert Museum. Nesta visita, percebemos que as obras escolhidas para o toque ficavam
localizadas em salas muito pouco frequentadas pelo público, além de parecerem secundárias e
mesmo irrelevantes frente ao grande acervo do museu. O tempo de exploração das obras era
curto, parecendo mais afinado com a visão do que com o tempo necessário para uma
exploração tátil, e o excesso de informações fornecidas acerca das obras tocadas acabava por
impedir um encontro com elas e a própria experiência estética.
Mesmo frente às dificuldades apresentadas, consideramos o projeto de acessibilidade
desenvolvido pelo grupo Educativo do CCBB consistente e uma importante iniciativa no
campo da acessibilidade. Ao longo destes três anos em que acompanhamos o trabalho do
Educativo junto às pessoas com deficiência visual, pudemos notar o engajamento dos
mediadores e seu posicionamento político para proporcionar o acesso a uma experiência
estética no encontro com a arte. Para além de atenderem a demanda de pessoas com o
funcionamento cognitivo diferente do visual, a mediação vem trabalhando no sentido da
criação de desejo de pessoas que não veem a frequentarem instituições culturais. As pessoas
cegas e com baixa visão eram convidadas a assumir o papel de avaliadores das propostas em
acessibilidade, o que também era estimulado pela presença da própria equipe da pesquisa. Tal
sintonia certamente contribuiu para o aprimoramento do modo de fazer acessibilidade no
CCBB.
Para terminar, insistimos que as propostas de acessibilidade estética devem ser para
todos - para as pessoas que veem e as que não veem - e podem aparecer como um convite a
perceber com o corpo todo. A experimentar uma temporalidade mais lenta, degustar
sensações, tocando e trocando com os outros nossas impressões, inventando novos sentidos
para a arte e para a vida, como aconteceu comigo. Criar saídas e linhas de fuga para o
visuocentrismo é um ato de resistência e afirmação da diferença. A verdadeira acessibilidade
está na mistura, na composição das diferenças. Esperamos que a experiência no CCBB possa
inspirar outras instituições de arte a ousarem na criação de novas estratégias, que visem uma
real inclusão e a formação de um público com deficiência visual que frequente seus espaços e
possa usufruir do prazer estético do encontro com a arte.

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139

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Figura 9 - Placa com linhas da obra A negra, de Tarsila do Amaral. Acervo da pesquisa.

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