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A Compra do Latão:
um diálogo sobre a arte de conhecer

Thereza de Jesus Santos Junqueira


Universidade Federal da Bahia - UFBA
Email: therezajunqueira@yahoo.com.br

Resumo Abstract
“A compra do latão”, de Bertolt Brecht, é “The Messingkauf dialogues” by Bertolt
um texto limite entre arte dramática e teoria. Brecht is a boundary between dramatic art and
Pode-se dizer que a peça, ao “representar” theory. It can be said that the play, by “repre-
as “realidades” do fazer teatral, apresenta, senting” the “realities” of the theatrical per-
sugestiva e exemplarmente, a habilidade da formance, presents, suggestively and exem-
arte em promover conhecimento, destacando plarily, the art’s ability to promote knowledge,
ainda o saber diferenciado que propicia. Não highlighting the differentiated knowledge it
se está a observar o cotidiano do teatro, mas provides. One is not observing the daily of the
uma apresentação desse cotidiano; não temos theater, but a presentation of this daily life; We
um observador que nos relata o que vê, mas do not have an observer who tells us what he
sim personagens que falam a partir dos luga- sees but rather characters who speak from the
res (pontos de vista) construídos para elas. Em places (points of view) built for them. In his the-
seu diálogo teatral, Brecht propõe um diálogo atrical dialogue, Brecht proposes a philosoph-
filosófico. ical dialogue.

Palavras-chave Keywords
Arte Dramática. Teoria. Conhecimento. Dramatic Art. Theory. Knowledge.
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Ao estudar a obra de Brecht percebe-se que nos relata o que vê, mas sim personagens
como era importante, para o autor, iluminar os que falam a partir dos lugares (pontos de vista)
entendimentos teóricos que subsidiavam seu construídos para elas.
fazer teatral. Paralelamente à escritura e mon-
tagem de suas peças eram registrados, em
seus relatos de trabalho, bem como em seus Sobre a peça
textos teóricos, as teorias criticadas e aquelas
deduzidas para orientar sua arte. “A compra do latão” é uma peça inacabada,
Essa inquietação brechtiana pode ser es- escrita ao longo de 16 (dezesseis) anos, entre
pecialmente percebida na peça “A compra do 1939 e 1955, composta por fragmentos de di-
latão”, em que personagens conversam sobre álogos, discursos, poemas e peças de exercí-
o teatro, seus princípios e funções, e sobre cio, nos quais Brecht coloca em discussão sua
como seria possível conseguir melhores repro- proposta de um novo teatro não aristotélico.1
duções da vida em sociedade. Nesse diálogo, A peça conta a história dos participantes de
são recuperadas as principais teorias com as uma companhia de teatro, a saber, um “drama-
quais autor dialoga para construir o que cha- turgista” (conforme consta da tradução), um
mou de teatro épico - de Aristóteles às peças ator, uma atriz e o maquinista, que recebem
e autores naturalistas. a visita de um filósofo, interessado na prática
Trata-se de um texto limite entre arte dramá- teatral. A conversa se passa em um palco que
tica e teoria. Está claro seu propósito drama- está sendo desmontado, e se prolonga duran-
túrgico, tendo em vista a sua forma de diálogo, te quatro noites, cada uma compondo um ato.
a caracterização das personagens através de As falas refletem os diferentes interesses
suas falas e as rubricas que delimitam o espa- dos participantes e mostram, em seu conjunto,
ço cênico e oferecem orientações para os ato- os contornos dos “novos meios da arte dra-
res. Mas também está claro seu viés teórico, mática”. Cada personagem contribui distinta-
uma vez que as falas das personagens, reche- mente para sua construção. Não há um posi-
adas de intertextualidades explícitas e implíci- cionamento idealmente correto ou condizente
tas, refletem sobre temas filosóficos e técnicos com o teorizar de Brecht. Da crítica do filósofo,
acerca do fazer teatral. Em seu diálogo teatral, que não é completamente aceita, pois acaba-
Brecht propõe um diálogo filosófico. ria por desnaturar o teatro, acaba surgindo a
Nesse trabalho, pretende-se refletir sobre
a maneira como Brecht trata a representação,
1 O texto analisado consta de uma edição portuguesa da edi-
em crítica à matriz aristotélica. Pode-se dizer tora Vega, traduzido por Urs Zuber com a colaboração de Pe-
ggy Berndt, publicada em 1999. A peça é apresentada confor-
que a peça, ao “representar” as “realidades”
me concebida em seu processo criativo, fracionada em quatro
do fazer teatral, apresenta, sugestiva e exem- fases de trabalho, a primeira de 1939-1941, a segunda de
1942 a 1943, a terceira em 1945, e a quarta de 1948 a 1955.
plarmente, a habilidade da arte em promover As falas das personagens em cada fase e em cada noite é
conhecimento, destacando ainda o saber dife- precedida de anotações esquemáticas do autor, que parecem
preparar a escrita, e seguida de textos que não se associam
renciado que propicia. Não se está a observar às noites, das peças de exercício, de poemas e dos anexos
ao texto. O texto em alemão constante do quinto volume da
o cotidiano do teatro, mas uma apresentação obra Schriften zum Theater, publicado pela editora Suhrkamp
desse cotidiano; não temos um observador em 1963, serviu de referência e auxiliou a compreender a pro-
posta da edição portuguesa.

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nova maneira de fazer teatro (Hecht, Gellert, teus desejos. Para falar francamente,
representando como queres e com as
1999, p. 171). finalidades que queres, ainda continu-
O filósofo deseja utilizar o teatro, que define amos a fazer arte (Brecht, 1999, p. 61).
como a “arte de imitação dos homens”, como
um meio para a representação ou demonstra- O ator defende a autonomia da arte, que
ção plástica de problemas e acontecimentos não deveria servir às práticas sociais, é a per-
que necessitam explicação: sonagem que enfrenta o filósofo, chegando a
discussões conflituosas:
FILÓSOFO. Em todas as áreas, a ci-
ência procura possibilidades de ex-
ACTOR. Detesto todas estas conver-
perimentação ou de representação
sas sobre a arte como servidora da
plástica dos problemas. Fazem-se
sociedade. Temos aí a sociedade to-
modelos que mostram os movimentos
da-poderosa, e a arte não faz parte
dos astros, com aparelhos engenho-
dela, só lhe pertence, é a sua criada
sos demonstra-se o comportamento
de mesa. Temos mesmo de ser todos
dos gases. Experimenta-se também
criados? Não podemos ser todos se-
com homens, mas aqui as possibilida-
nhores? A arte não pode ser uma se-
des da demonstração são muito limi-
nhora? Acabemos com os criados,
tadas. A minha ideia era então utilizar
também na arte (Brecht, 1999, p. 62).
para tais demonstrações a vossa arte
da imitação dos homens. Aconteci-
mentos da vida em comunidade dos Sobre a atriz e o maquinista pode-se dizer
homens que necessitam de explica-
ção poderiam ser imitados, de modo pouco, tendo em vista que são poucas e bre-
que seria possível, face a estas de- ves suas aparições. A atriz parece compro-
monstrações plásticas, ganhar certos
conhecimentos de utilidade prática metida com um novo teatro, o que pode ser
(Brecht, 1999, p. 29). percebido em críticas que menosprezam a arte
dramática tradicional.
O dramaturgista é um defensor da arte dra-
Os atores representam o que seria uma
mática. Mas, embora afaste a iniciativa do fi-
conversa em uma companhia de teatro e, as-
lósofo, em favor das peculiaridades do teatro,
sim, oferecem um objeto artístico para o es-
reconhece possibilidade de fruição artística
pectador, na medida em que este não é um
com sua proposta. Mesmo fazendo arte com
participante daquela conversa cênica, ele ex-
fins instrutivos e convidando o espectador a
perimenta aquela conversa da plateia ou como
pensar, além de sentir, entende o dramaturgis-
leitor do texto. Eles não estão meramente con-
ta, convencido, ao final da quarta noite, que a
versando, eles estão encenando uma conver-
companhia estaria desempenhando uma ativi-
sa!
dade artística.
A postura que o texto e o espetáculo pedem
DRAMATURGISTA. Estudamos até é inteiramente crítica. Embora o que esteja em
agora da melhor maneira possível as discussão sejam questões teóricas a respei-
muitas directivas através das quais
queres tornar o teatro tão instrutivo to da arte e do fazer teatral, o que lemos são
como a ciência. Tinhas-nos convida- pontos de vista diferentes, cada qual defende
do a trabalhar no seu teatro, que de-
e critica aquela arte a partir de seus interesses,
veria ser um instituto científico. Fazer
arte não deveria ser o nosso objetivo. de modo que o texto não entrega um conceito
Mas na verdade tivemos de mobilizar acabado que represente o ponto de vista do
toda a nossa arte para satisfazer os

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autor. O que se lê são pontos de vista diferen- culto antigo.


DRAMATURGISTA. Isso são maneiras
tes, em direção à construção de um fazer dife-
de falar! Só quer dizer que levamos as
renciado. coisas a sério.
ACTOR. Isso distingue-nos do teatro
comercial. Do divertimento vulgar, etc.
FILÓSOFO. Com certeza. Não me
Um teatro não aristotélico teria deixado enganar se não tivesse
mesmo visto espectadores ‘cativados’
nos vossos teatros. Toma a noite de
O problema da prática teatral naturalista, de hoje por exemplo! Quando o teu Lear
amaldiçoou as filhas, um senhor care-
matriz aristotélica, para Brecht, tem a ver com ca que estava ao meu lado começou
o ilusionismo, pelo qual o espectador é levado a ofegar de maneira tão pouco natural
que perguntei porque não começava
passivamente a identificar-se com os persona- já a espumar pela boca, ao identificar-
gens e com a cena, crendo que está diante da -se tão completamente com a tua ma-
ravilhosa representação da fúria.
realidade. O autor entende que essa postura ACTRIZ. Ele já teve noites melhores!
não é condizente com o homem de sua época,
“o homem da época científica”, pautado pela Os participantes da companhia, salvo a
atitude crítica. A ilusão impede a atitude crítica atriz, sentem-se ofendidos com a postura críti-
por parte do espectador (Brecht, 2005), pro- ca do filósofo, pois parecem concordar com o
movendo um conhecimento falso, impositivo. teatro que praticam. E o filósofo os chama de
A primeira noite de A compra do latão de- “servidores da palavra”, pontua negativamen-
nuncia justamente o ilusionismo, conforme se te a representação pautada pela identificação,
pode ler na crítica do filósofo ao espetáculo bem como o efeito catártico percebido no es-
que assistira (Brecht, 1999, p. 23): pectador vizinho, traços esses condizentes
com uma arte dramática de matriz aristotélica.
DRAMATURGISTA. Parece que aos
teus olhos realizamos aqui danças de Os princípios da arte dramática clássica
guerras bárbaras ao serviço de cultos estão traçados na “Poética” de Artistóteles
obscuros e obscenos, intrujice, magia,
missas negras? (1966), dentre os quais, a mimesis, como atitu-
ACTOR. A representação da Nora uma de fundamental: “Poesia é imitação” (Aristóte-
missa negra! A nobre Antígona uma
dança de guerra bárbara! A de Hamlet les, 1966, p.241); a verossimilhança: “[...] não é
uma intrujice! Estou a gostar disto! ofício do poeta narrar o que aconteceu; é, sim,
FILÓSOFO. Devo ter-vos compreendi-
do mal. Admito. o de representar o que poderia acontecer, quer
ACTOR. Profundamente, meu amigo. dizer o que é possível segundo a verossimi-
FILÓSOFO. Deve ser por ter tomado
os vossos discursos a sério, e não me lhança e a necessidade [...]” (Aristóteles, 1966,
ter apercebido que a vossa maneira de p.249); e os efeitos catárticos, que constam da
falar era uma brincadeira.
definição de tragédia:
DRAMATURGISTA. Que estás a querer
dizer com isso? Qual maneira de falar?
FILÓSOFO. De serem ‘servidores da É, pois, a tragédia imitação de uma
palavra’, de a vossa arte ser um ‘tem- ação de caráter elevado, completa e
plo’, de que o espectador tenha de de certa extensão, em linguagem or-
estar ‘cativado’, de que haja ‘qualquer namentada e com as várias espécies
coisa de divino’ nas vossas represen- de ornamentos distribuídos pelas di-
tações, etc, etc. Pensei mesmo que versas partes do drama, imitação que
vocês quisessem manter de pé um se efetua não por narrativa, mas me-

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diante atores, e que, suscitando ‘terror representada: “(...) tal é o motivo por que se
e piedade, tem por efeito a purificação
deleitam perante as imagens: olhando-as,
dessas emoções. (Aristóteles, 1966 p.
28) aprendem e discorrem sobre o que seja cada
uma delas, e dirão, por exemplo, ‘esse é tal’”
Pelos princípios da verossimilhança e da ne- (Aristóteles, 1966, p. 243). A mimesis praticada
cessidade a obra alcança a coerência interna, e observada seria assim um ato de conheci-
passando a fazer sentido por si só, como um mento (Lima, 2008). O que deleita é reconhe-
produto autônomo desvinculado da natureza. cer a vida na imagem.
A obra supõe a imitação, mas a sequência de Para a produção de efeitos, também é in-
ações mostradas precisa ser encadeada como dispensável o ato de identificação, ou empa-
se realidade fosse (o que “poderia ter aconteci- tia do espectador com o que é representado
do”), sem visar o realismo e sem compromisso no palco. A identificação supõe a imitação e
com o deveras acontecido, de modo que cada a verossimilhança. Identificar-se significa apro-
uma suceda necessariamente a antecessora, ximar-se e enquadrar-se naqueles contornos
com vistas a alcançar essa autonomia de algo mostrados, supondo assim uma possibilidade
completo em si mesmo. de modelação dos comportamentos humanos.
Roubine (2003, p.15) destaca a ausência de Trata-se de uma atitude passiva, o espectador
clareza de Aristóteles no que diz respeito às de- se deixa conduzir.
finições de verossímil e necessário, recorrendo Segundo Brecht, em síntese,
a outras obras para elucidá-las. Segundo o au-
tor, “O verossímil procede da experiência co- [...] a representação e a fábula do tea-
tro aristotélico não se destinam a dar
mum. É o que se produz commais frequência
retratos de processos da vida, mas
(Retórica) e, portanto, o que corresponde ao sim a conseguir a experiência teatral
horizonte de expectativa do espectador.” (com certos efeitos de catarse) intei-
ramente determinada. São, no en-
A mimesis visa à catarse. A catarse é o tanto, necessárias ações que façam
“efeito” a ser provocado com a representa- lembrar a vida real, e estas devem ser
suficientemente prováveis para que se
ção, consistindo na purificação dos sentimen- crie a ilusão, sem a qual a identifica-
tos através das emoções, do terror e piedade ção não se consegue. No entanto não
é de modo algum necessário que, por
que são despertados no espectador. O papel exemplo, também a causalidade dos
da arte não seria a mera produção de imagens processos se evidencie; é de todo su-
ficiente que não tenha de ser posta em
da realidade, mas sim a produção de efeitos dúvida. (Brecht, 1999, p. 13)
com essas imagens (realização da experiência
teatral). Há muita discussão a respeito do sen- O teatro proposto pelo autor de A compra
tido da catarse. Alguns autores concebem em do latão, em outro sentido, pesquisa a possibi-
seus efeitos a “clarificação intelectual” (Perei- lidade de mostrar a realidade, de tomar como
ra, 2004). tarefa da arte não a produção de efeitos pre-
As imagens produzidas representam a rea- determinados, mas sim a produção de retratos
lidade (natureza) que miram. E os efeitos de- dos processos vividos pelas pessoas, com o
sencadeados decorrem, segundo Aristóteles, destaque de sua causalidade. O autor entende
do (re)conhecimento pelo espectador da vida que a representação da realidade deixa de ser

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um meio, manipulável e adaptável, destinado Os atores, ao interpretar a personagem, e o


à produção da catarse, para se tornar o objeto espectador, ao assistir ao ator, não se deixam
da prática artística (Brecht, 1999, p. 14). conduzir pela representação. Eles (re)conec-
tam-se constantemente com a vida.
A questão é agora saber se é de todo
impossível fazer da retração dos pro-
cessos reais a tarefa da arte, e assim
fazer da atitude crítica do espectador Um teatro pós-naturalista
face aos processos reais uma atitude
adequada à arte. (Brecht, 1999, p. 14)
Brecht também dialoga criticamente com o
Para fomentar esse novo modo de fazer ar- Naturalismo, que parecia pretender se aproxi-
tístico, o autor entende que o ato de identifica- mar da vida, em crítica ao princípio da veros-
ção deveria ser mitigado em favor do efeito V similhança aristotélico, com o aprimoramento
(Verfremdungsefekt), efeito de distanciamento das descrições. Mas o que promoveu foi o
ou estranhamento. aprimoramento da ilusão de se estar perante
a realidade, sem desconsiderar a importância
No novo exercício da arte, a identifica- das descrições. A realidade mostrada é, na
ção perderia sua posição dominante.
Por outro lado, seria agora criado o verdade, um olhar sobre uma realidade.
efeito de distanciação (efeito V), que é
igualmente um efeito artístico condu- DRAMATURGISTA. As representações
cente a uma experiência teatral. Con- naturalistas despertavam a ilusão que
siste na retratação dos processos da se estava em um sítio real.
vida real no palco de forma tal que a ACTOR. Olhando para dentro de um
sua causalidade seja particularmente quarto, os espectadores pensavam
evidenciada e envolva o espectador. sentir o cheiro dos cereais por trás da
(Brecht, 1999, p. 14) casa, olhando para o interior de um
barco pensavam sentir a força da tem-
A atitude que fomenta a identificação é a pestade.
DRAMATURGISTA. Que se tratava
de tornar habitual o acontecimento particular. somente de uma ilusão era mais evi-
Pelo efeito de distanciamento, torna-se parti- dente nas peças naturalistas do que
nas encenações naturalistas. É claro
cular o acontecimento habitual. O desafio é de que os autores das peças arranjavam
contrastar o acontecimento com outros, des- os acontecimentos tão afincadamente
com os não naturalistas. Combinavam,
tacando assim o que o torna diferente. deixavam de fora, arranjavam encon-
As emoções decorreriam do envolvimento tros de pessoas em lugares imprová-
do espectador com a realidade propriamente veis, generalizavam acontecimentos,
pormenorizavam outros, etc. Paravam
dita. A representação poderia sim deslocar o quando a ilusão de que se estava a li-
espectador, mas não em direção à “realidade dar com a realidade corria perigo de
ser ferida.
da cena”, e sim para fora do teatro, para as re- ACTOR. Queres dizer que se trata me-
lações e processos do cotidiano de cada um. ramente de uma diferença gradual, de
representações mais ou menos realis-
tas? Mas a diferença gradual é deci-
Toda a força dessa forma de represen- siva.
tação nasce continuamente da com- DRAMATURGISTA. Penso que se trata
paração com a realidade, ou seja ela de uma diferença no grau da ilusão de
dirige o olhar permanentemente para a se estar perante a realidade. E acho
causalidade dos processos represen- que é mais proveitoso sacrificar esta
tados. (Brecht, 1999, p. 16)

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ilusão, quando esta pode ser trocada panhar os interesses do público da época. Os
por uma representação que dá mais
espectadores queriam ver a história recente no
da própria realidade.
ACTOR. Uma representação que ar- palco, era esse o conteúdo que promoveria a
ranja, combina, deixa de lado, contrai identificação.
sem se preocupar com a manutenção
da ilusão de se estar perante a reali- A crítica de Brecht desenvolve-se no senti-
dade? do de apontar como o realismo naturalista, que
FILÓSOFO. Bacon diz: ‘A natureza re-
vela-se mais quando é acossada pela critica a estética (neo)clássica, acaba por re-
arte do que quando é deixada a si pró- produzi-la, em seu fundamento aristotélico da
pria’.
ACTOR. Já devem ter percebido que identificação, como mecanismo que promove
então já só se está perante as opiniões a ilusão. É a veracidade da cena que permite
dos autores de peças sobre a nature-
za, e não perante a natureza? que os espectadores se identifiquem com os
DRAMATURGISTA. Já deves ter per- personagens. São os efeitos predeterminados
cebido que nas peças naturalistas só
se estava perante as opiniões dos au- que são relevantes. A maneira de representar
tores das peças. A primeira dramatur- serve às emoções que se quer promover.
gia naturalista (dos Hauptmann, Ibsen,
Tolstoi, Strindberg) foi acusada justa-
mente de ser uma arte tendenciosa.
ACTOR. É este intelectualismo que A representação artística e a
corrói tudo. O teatro como escola in-
fantil! Última atração: o salto quântico! realidade: mas qual realidade?
Acrobacia cerebral (Brecht, 1999, p.
55). FILÓSOFO. Ora, então por que os imi-
tam [os acontecimentos?
ACTOR. Para enchermos as pessoas
O realismo moderno pode ser mais bem de paixões e emoções, para as arran-
compreendido se confrontado com a estética carmos dos pequenos acontecimen-
tos da sua vida quotidiana. Os acon-
anterior contra a qual insurge, a saber, aquela tecimentos são, por assim dizer, o
divulgada pelos autores neoclássicos. Roubi- suporte para o exercício da nossa arte,
ne (2003, p. 100) discorre sobre esse desafio a prancha de salto que utilizamos.
FILÓSOFO. É isso mesmo.
de romper com as convenções neoclássicas, DRAMATURGISTA. Não gosto nada
assumido pelos autores franceses do século do teu ‘é isso mesmo’. Posso imaginar
que dificilmente te contentarás com as
XIX, em favor de uma representação verídica paixões e emoções com as quais te
da história. Segundo o autor, a intenção da es- querem encher. Não tinhas dito nada
disto quando nos explicastes as ra-
tética neoclássica consistia em fazer “prevale- zões para vires ao nosso teatro.
cer o reino das convenções sobre o império da FILÓSOFO. Tenho de admitir isso.
Peço desculpa. À vossa saúde!
verdade”, ou seja, considerava mais importan- DRAMATURGISTA. Eu, para dizer a
te a fidelidade às normas do que o desenvol- verdade, prefiro brindar à tua saúde.
Pois no fundo tratava-se de saber
vimento de temas compatíveis com a época. como o teatro te pode dar satisfação
O realismo pretendia, com a “representação a ti, e não como nos pode satisfazer
a nós.
verídica da história”, atingir a ilusão teatral. En-
ACTOR. Mas ele não vai querer dizer
tendia-se que seria necessário romper com as que tem alguma coisa contra quando
convenções aristotélicas, das três unidades, fazemos mexer um pouco a sua men-
te preguiçosa? Bem, ele interessa-se
por exemplo, para que fosse possível retratar mais por aquilo que nós imitamos, os
os acontecimentos históricos e, assim, acom- acontecimentos, já sei, e menos por

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nós, mas como podemos fazer-lhe as Acabo de afirmar que o conceito de


imitações sem mobilizar os nossos imitação entra em crise no decurso da
sentimentos e as nossas paixões? Ele cultura burguesa. O asserto nos leva
próprio iria simplesmente embora se a uma nova problemática, a da cópia.
fizéssemos uma representação fria. Talvez seja até lícito afirmar que o feito
De resto não existe representação fria. maior da arte e da estética burguesas
Todos os acontecimentos nos emocio- reside num duplo processo, através
nam, a não ser que fossemos insensí- do qual, de um lado, leva-se à crise o
veis (Brecht, 1999, p. 85-86). conceito de imitação, e, de outro, rea-
bilita-se aos poucos o de cópia. E por
cópia entende-se precisamente aque-
As personagens falam indistintamente em le plano da realidade que a definia se-
representação, reprodução da vida, imitação, gundo os padrões do platonismo, com
a decisiva diferença de que ela perde
mas destacando o papel mediador da arte. a sua conotação pejorativa e passa a
Nesse ponto, pode-se perceber uma falta de assumir o estatuto da realidade pro-
priamente dita. (Bornheim, 1992, p.
precisão conceitual acerca da diferenciação 351-352).
entre imitação e cópia, se confrontado o tex-
to estudado com a análise de Bornheim (1992) Assim, o problema é que embora o mundo
em Brecht. “A estética do teatro”, pois, segun- das ideias perca sua ascendência, a realida-
do esse autor a imitação seria um conceito de continua a ser vista como se estivesse nele
próprio da metafísica, incompatível com o tea- ancorada, com pretensões de unicidade. E a
tro de Brecht. construção artística, por conseguinte, enquan-
O aristotelismo supõe a ideia de “imitação”, to uma imitação desse “mundo das cópias”.
conforme construída pelo platonismo, assim, Exatamente nesse ponto estaria a ilusão,
a natureza seria uma imitação, ou uma cópia dizer que a representação, o teatro, é toma-
perfeita, da ideia, e a arte seria uma cópia da do por realidade, implica dizer que existe uma
natureza, uma cópia da imitação, portanto. O realidade una, implica desconsiderar que todo
platonismo pregava uma menor valia da arte, olhar supõe um ponto de vista, e que, na ver-
tendo em vista a distância em relação à ideia, dade, qualquer “representação” oferece é uma
tendo em vista que o artista, ao contrário do cópia - imperfeita, e não uma imitação. Não se
filósofo, não teria acesso à ideia, mas tão so- pode tomar um olhar por uma realidade unívo-
mente a uma imitação ou cópia dela, da qual ca, pois essa sequer existe. As representações
faria apenas mais uma versão, o que não seria artísticas da realidade são cópias de cópias,
útil para o conhecimento. cada qual dependente dos sucessivos pontos
Segundo Bornheim (1992, p. 351), a noção de vistas incorporados.
de referência muda do aristotelismo à cultura Ao final da quarta noite, conclui o filósofo:
burguesa. A cultura burguesa descola-se pro-
gressivamente do mundo das ideias, admitin- FILÓSOFO. Já falamos o suficiente
sobre qual a utilidade da arte, como
do o “mundo das cópias” como ponto de par- pode ser feita e de que depende a
tida para o conhecimento. A realidade deixa de prática da arte, e também fizemos arte
nestas quatro noites, de modo que
ser constituída por imitações de universais, as podemos arriscar algumas afirmações
cópias ganham autonomia: prudentes de natureza abstracta acer-
ca desta capacidade singular do ho-
mem, na esperança de que estas não
sejam tomadas isoladamente e só por

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si, de maneira abstrata. Portanto, po- pois entende que as iniciativas nela ancoradas
deria talvez dizer-se que a arte é a ha-
produzem cenas enganosas, que fazem pas-
bilidade de confeccionar reproduções
da vida dos homens em comunidade, sar a representação por realidade, e promo-
capazes de suscitar uma certa maneira vem um conhecimento acrítico, pautado me-
de sentir, pensar e agir, diferentemente
e mais intensamente do que aconte- ramente na assimilação de conteúdos dados.
ceria pela observação ou experiência As representações que não deixem claro o
a realidade representada. A partir da
observação e da experiência da rea- tratamento que conferem ao assunto apresen-
lidade o artista faz uma representação tado contribuem para a promoção de um falso
para ser observada e experimentada
que reproduz a sua sensibilidade e o conhecimento, pois o que se está a conhecer
seu pensamento (Brecht, 1999, p. 68). em qualquer representação não é a realidade,
mas sim pontos de vista.
O ilusionismo faz passar a representação,
Brecht destaca o lugar do sujeito especta-
que é uma construção artística, por realidade,
dor, e a função do espetáculo em despertá-
como se existissem universais ou uma nature-
-lo para olhar o mundo a partir do seu próprio
za una a serem imitados. Brecht quer que os
ponto de vista.
espectadores percebam que não existe uma
realidade dada por trás das construções que a
arte oferece. A construção artística já incorpo-
ra o olhar do observador, e o produto ofereci- Referências
do contém um ponto de vista que precisa ser
reconhecido. ARISTÓTELES. Poética. Tradução, prefácio,
O desafio do teatro épico é favorecer um introdução, comentário e apêndices de Eudo-
ro de Souza. Porto Alegre: Globo, 1966.
acesso diferenciado ao assunto apresentado.
Para tanto é preciso romper com a ilusão, mo- BRECHT, Bertolt. A compra do latão. Tra-
vida pela identificação, de que a representa- dução de Urs Zuber com a colaboração de
ção é uma cópia perfeita da realidade, ou que Peggy Berndt. Lisboa: Vega, 1999.
é a própria realidade. É preciso mostrar ao es-
______. Pequeno Organon para o Teatro.
pectador algo com o que ele não se identifi- Estudos sobre Teatro. Tradução de Fiama
que passivamente, para que ele não se deixe Pais Brandão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
conduzir pelo ponto de vista alheio, e sim olhe 2005.
para si, para as particularidades e contingên-
BORNHEIM, Gerd. Brecht. A estética do tea-
cias que constituem o seu próprio ponto de
tro. Rio de Janeiro: Graal, 1992.
vista.
HECHT, Werner; GELLERT, Inge. Notas e co-
mentários sobre A compra do latão. In: BRE-
CHT, Bertolt. A compra do latão. Tradução
Conclusões
de Urs Zuber com a colaboração de Peggy
Berndt. Lisboa: Vega, 1999.
Brecht supõe o teatro, e a arte, como um
meio para o conhecimento. O autor constrói LIMA, Paulo Butti. Arte e conhecimento em
Aristóteles. In: Letras Clásicas, n. 12, p.169-
sua prática em crítica à poética aristotélica,
185, 2008.

213 Junqueira // A Compra do Latão: um diálogo sobre a arte de conhecer


Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 205-214, set./out. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 23

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Prefácio.


In: ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004.

ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às gran-


des teorias do teatro. Tradução André Teles.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

Recebido: 15/05/2017
Aprovado: 25/08/2017

214 Junqueira // A Compra do Latão: um diálogo sobre a arte de conhecer


Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 205-214, set./out. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

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