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Demonstraremos que Kronstadt foi um levante popular que surgiu de baixo para cima
dos mesmos marinheiros, dos mesmos soldados e dos mesmos trabalhadores que
fizeram a revolução de outubro de 1917. A repressão bloshevike à revolta pode ser
justificada somente em termos de defesa do poder do estado bolshevike mas jamais
pode ser defendida nos termos da teoria socialista. Na verdade, ela indica que o
bolshevismo é um monumental engodo enquanto teoria política e que jamais poderia
desaguar em uma sociedade socialista mas apenas e tão somente em um regime
capitalista de estado baseado num partido ditatorial. É isto que Kronstadt mostra acima
de tudo: optar entre o poder dos trabalhadores ou o poder do partido, o bolshevismo
destruirá o primeiro para implementar o segundo. Nesse aspecto, Kronstadt não é um
evento isolado (conforme indicaremos na seção H.5.13).
Existem muitas importantes fontes históricas disponíveis sobre a revolta. O que existe
de melhor para estudos sobre a revolta é o trabalho de Paul Avrich e Israel Getzler,
Kronstadt 1921. As obras anarquistas incluem Ida Mett em seu livro The Kronstadt
Uprising (o melhor trabalho político sobre o tema), Alexander Berkman escreveu The
Kronstadt Rebellion (também consta uma boa introdução na obra A Tragédia Russa),
Voline em The Unknown Revolution dedica todo um excelente capítulo sobre Kronstadt
(onde apresenta uma grande quantidade de citações retiradas de documentos de
Kronstad) o volume dois de No Gods, No Masters de Daniel Guerin apresenta uma
excelente seção sobre a rebelião (incluindo um detalhado relato de Emma Goldman
extraído de sua autobiografia Living my Life sobre os eventos extraídos dos documentos
de Kronstadt). Anton Ciliga (um libertário socialista/marxista) em seu livro Kronstadt
Revolt também apresenta uma boa introdução aos temas relacionados com o levante.
Os eventos de Kronstadt não devem ser observados isoladamente, mas como parte de
uma luta geral do povo trabalhador russo contra seu governo. Na verdade, conforme
indicaremos na próxima seção, esta repressão após o fim da Guerra Civil seguiu o
mesmo modelo da implementada antes dela. Os bolshevikes reprimiram a democracia
soviete em Kronstadt em 1921 em favor da ditadura do partido, como vinham fazendo
regularmente desde o princípio de 1918.
"Mas o ‘triunfo’ dos bolshevikes sobre Kronstadt trouxe consigo a derrota do próprio
bolshevismo. Colocou à mostra o verdadeiro caráter da ditadura comunista. Os
comunistas demonstraram por si próprios sua disposição em sacrificar o Comunismo,
em troca de aproximações e compromissos com o capitalismo internacional, ao mesmo
tempo que recusavam as justas exigências de seu próprio povo — exigências que
ecoaram nos slogans de outubro entre os próprios bolshevikes: sovietes eleitos por voto
direto e secreto, de acordo com a Constituição da R.S.F.S.R.; e liberdade de expressão
e de imprensa aos partidos revolucionários". [Op. Cit.]
Com efeito, Kronstadt foi o choque da realidade do leninismo com sua imágem e
retórica. Trouxe à tona temas importantes relativos ao bolshevismo e os "argumentos"
que produziam para justificar certas ações. "A experiência de Kronstadt", conforme os
argumentos de Berkman, "provou mais uma vez que o governo, o Estado — seja lá qual
for seu nome ou forma de atuação — é sempre inimigo mortal da liberdade e da auto-
determinação popular. O estado não tem alma, nem princípios. E possui apenas um
objetivo — assegurar poder e mantê-lo a qualquer custo. Esta foi a lição política de
Kronstadt." [Op. Cit.]
É necessário que fique bem claro nessa nossa discussão que os trotskistas se doutoraram
na versão acadêmica que confirma sua versão ideológica do levante. A razão para isso é
clara. Em termos simples, os defensores do bolshevismo não podem fazer outra coisa a
não ser mentir sobre a revolta de Kronstadt uma vez que ela expõe claramente a real
natureza da ideologia bolshevike. Em vez de apoiar o clamor de Kronstadt pela
democracia soviete, os bolshevikes esmagaram a revolta, argumentando que fazendo
isso estavam defendendo o "poder soviete". Seus seguidores vez após vez repetem
sempre esses mesmos argumentos.
Por exemplo, Trotsky argumentou em 1921 que "o proletariado estava com o poder
político nas mãos" enquanto que mais adiante os trotskystas passaram a argumentar que
o proletariado estava muito exaurido, atomizado e dizimado. [Lenin e Trotsky,
Kronstadt, p. 81]. Da mesma forma o trotskista Pierre Frank afirma que para os
bolshevikes, "o dilema estava colocado nos seguintes termos: ou manter os
trabalhadores sob controle, ou a contra-revolução se ergueria, tanto o primeiro quanto
o segundo disfarce político, teriam ao cabo o contra-revolucionário reino do terror
bem longe da democracia". [Op. Cit., p. 15] Naturalmente que aquela "democracia" sob
Lenin não é mencionada nem tampouco o reino do terror que se desenvolveu sob Stalin
através da repressão e da ditadura praticada em 1921.
Este duplo pensar bolshevista é claramente visto nos eventos de Kronstadt. Por
exemplo, os defensores do bolshevismo argumentam que Kronstadt foi reprimida para
defender o poder soviete ao mesmo tempo que argumentam que as exigencias de
Kronstadt reivindicando eleições livres no soviete eram "contra-revolucionárias",
"retrógradas", "pequeno-burguesas" e daí por diante. O que é que o poder soviete
poderia fazer sem eleições livres nunca foi explicado. Similarmente, eles argumentavam
que era necessário defender o "estado dos trabalhadores" assassinando aqueles que
chamavam os trabalhadores porque tinham algo a dizer a eles, como por exemplo como
é que o estado funciona. O papel dos trabalhadores em um estado de trabalhadores seria
simplesmente obedecer órdens sem questioná-las (na verdade, Trotsky argumentou em
1930 que a classe trabalhadora na Rússia era a classe governante sob Stalin—"Todas as
formas de propriedade que foram criadas pela Revolução de Outubro não foram
subvertidas, o proletariado continua sendo a classe governante". [_The Class Nature
of the Soviet State_]).
Diante disso, elaboramos pequeno sumário das atividades bolshevikes antes dos eventos
de Kronstadt (veja seção H.4 para mais detalhes). Complementando, apresentamos um
quadro de como se desenvolveu o fenômeno da estratificação social sob Lênin e os
eventos imediatos antes da revolta e que serviram de estopim (especialmente a onda de
greves em Petrogrado). Analisando tudo isso com cuidado veremos que Kronstadt não
foi um evento isolado mas uma tentativa de salvar a Revolução Russa da ditadura e da
burocracia comunista.
A oposição bolshevike à democracia soviete revelada pela revolta de Kronstadt teve
uma longa linhagem. Iniciou alguns meses após a tomada do poder em nome dos
sovietes. Após uma manifestação favorável à Assembléia Constituinte ser reprimida
pelos bolshevikes em meados de janeiro de 1918, muitas fábricas foram convocadas
para novas eleições no soviete. "A despeito dos esforços dos bolshevikes e dos Comitês
de Fábrica por eles controlados, o movimento por novas eleições no soviete se
espalhou por mais de vinte fábricas no princípio de fevereiro e resultou na eleição de
cincoenta delegados: trinta e seis RSs, sete Mensheviks e sete delegados sem partido".
Não obstante, o bolshevikes, "relutaram reconhecer as eleições e indicaram novos
delegados pressionado um grupo de socialistas para . . . articular um fórum alternativo
de trabalhadores". [Scott Smith, "The Social-Revolutionaries and the Dilemma of
Civil War", _The Bolsheviks in Russian Society_, pp. 83-104, Vladimir N. Brovkin
(Ed.), pp. 85-86]
Estes são apenas alguns poucos exemplos daquilo que acontecia na Rússia no início do
ano de 1918. É importante destacar que a Guerra Civil Russa começou em maio de
1918. O efeito imediato disto foi, naturalmente, levar muitos trabalhadores dissidentes
apoiar os bolshevikes durante a guerra. Por exemplo, os menshevikes "possuiam uma
política consistente de oposição pacífica ao regime bolshevike, uma política conduzida
por meios estritamente legítimos" e "menshevikes que se juntassem a organizações
almejando derrotar o Governo Soviete" eram expulsos do Partido Menshevike".
[George Leggett, The Cheka: Lenin’s Political Police, pp. 318-9 e p. 332]. Isto,
contudo, não estancou a repressão bolshevike sobre eles.
Esse fato, incidentalmente, responde à questão retórica de Brian Bambery "por que será
que a maioria dos militantes da classe trabalhadora no mundo, detentores de um
poderoso coquetel de ideias revolucionárias, tendo já efetuado duas revoluções (em
1905 e em fevereiro de 1917), permite a um punhado de pessoas alçar ao poder às suas
custas em outubro de 1917?" ["Leninism in the 21st Century", [_Socialist Review_, no.
248, January 2001]. Mais uma vez os trabalhadores russos perceberam que um punhado
de pessoas tinha tomado o poder e eles passaram a se manifestar contra a usurpação de
seu poder e de seus direitos, contra a destruição da democracia soviética pelos
bolshevikes. Os bolshevikes os reprimiram. Com o início da Guerra Civil, os
bolshevikes jogaram sua carta mais alta — "Nós ou os Brancos". Isto significava que
para os bolshevikes o poder dos trabalhadores se restringia em escolher entre um ou
outro. Na verdade, isso explica porque os bolshevikes finalmente acabaram eliminando
os partidos e grupos de oposição somente após o fim da Guerra Civil, limitando-se a
apenas reprimi-los enquanto ela durou. Com os brancos fora da parada, a oposição
passaria a exercer sua influencia novamente.
Essas considerações foram escritas como uma política a ser seguida agora quando a
"guerra civil interna chegava a seu fim". Isto não foi tido como uma política temporária
imposta pelos bolshevikes em função da guerra, pelo contrário, tanto quanto se pode
perceber, foi uma expressão de "princípio" (será que isto tem relação com o que Marx e
Engels escreveram sobre o "estabelecimento de exércitos industriais" no Manifesto
Comunista? [Selected Writings, p. 53]).
Assim, antes do início da Guerra Civil, o povo russo passou a ser, de fato,
paulatinamente eliminado de qualquer processo participativo no que diz respeito ao
desenvolvimento da revolução. Os bolshevikes debilitaram (quando não aboliram) a
democracia dos trabalhadores, a liberdade e os direitos onde trabalhavam, nos sovietes,
nos sindicatos, no exército e na marinha. Previsivelmente, a ausência de qualquer
controle real a partir da base desencadeava os efeitos corruptores oriundos do poder.
Desigualdade, privilégios e abusos proliferavam por toda parte onde estava o partido e a
burocracia governante.
Com o fim da Guerra Civil em novembro de 1920, muitos trabalhadores esperavam uma
mudança de política. Todavia, os meses se passaram e a política continuou a mesma.
Finalmente, em meados de fevereiro de 1921, desencadeou-se "uma febre de encontros
espontâneos dentro das fábricas" em Moscou. Os trabalhadores passaram a ser
convocados para uma imediata avaliação do arocho provocado pelo Comunismo de
Guerra. Tais encontros foram "sucedidos por greves e manifestações". Os trabalhadores
tomaram as ruas reivindicando "livre comércio", mais rações e "a abolição do confisco
de grãos". Alguns exigiam a restauração dos direitos políticos e das liberdades civís.
Foi aí que as tropas foram chamadas para restaurar a órdem. [Paul Avrich, Op. Cit., pp.
35-6]
As mais sérias ondas de greves e manifestações ocorreram em Petrogrado. A revolta de
Kronstadt foi o pavio dos protestos. Como em Moscou, aquelas "manifestações nas
ruas anunciavam a proliferação de encontros e manifestações em muitas fábricas e
lojas em Petrogrado". Como em Moscou, oradores "exigiam o fim do confisco de
grãos, a remoção dos bloqueios nas estradas, a abolição de rações privilegiadas, e
permissão para a troca de possessões de caráter pessoal por alimento. Em 24 de
fevereiro, um dia após um encontro no local de trabalho, os trabalhadores da fábrica
Trubochny abandonaram as máquinas e sairam para fora da fábrica. Outros
trabalhadores das fábricas adjacentes se juntaram a eles. Uma aglomeração de 2.000
trabalhadores foi dispersa por cadetes militares armados. No dia seguinte, os
trabalhadores da Trubochny novamente tomaram as ruas e visitaram outros pontos de
trabalho, conclamando-os para que também se juntassem à greve. [Avrich, Op. Cit., pp.
37-8]
O governo nomeou um Comitê de Defesa e Zinoviev composto por três pessoas que
"proclamou lei marcial" em 24 de fevereiro. [Avrich, Op. Cit., p. 39]. Foi proclamado
toque de recolher às 23 horas e todos os encontros e reuniões (internos e externos)
foram proibidos exceto se aprovados pelo Comitê de Defesa e todos aqueles que
desobedecessem às órdens "seriam punidos de acordo com a leis militares". [Ida Mett,
The Kronstadt Uprising, p. 37]
Aos trabalhadores "foi ordenado retornar para suas fábricas, sob a ameaça de que
seriam retiradas suas rações. Embora estas ameaças não provocassem nenhum
impacto nos trabalhadores, alguns sindicados se dispersaram e seus líderes e grevistas
que insistiam em permanecer em greve foram lançados em prisões". [Emma Goldman,
No Gods, No Masters, vol. 2, p. 168]
Isto indica o contexto imediato da rebelião de Kronstadt. Por seu turno o trotskista J. G.
Wright escreveu sobre o papel de Kronstad, "mentiram desde o primeiro momento . . . e
inseriram uma manchete sensacional: ‘Insurreição Geral em Petrogrado’" e prossegue
afirmando que as pessoas "espalhavam . . . mentiras sobre uma insurreição em
Petrogrado". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p. 109]. Sim, é normal que a eminência de
uma greve geral seja acompanhada de encontros de massa e manifestações, e que sejam
reprimidas pela força e por lei marcial, isto é uma ocorrência corriqueira que nada tem a
ver com uma "insurreição"! Mas se tais eventos tivessem acontecido em um estado que
não fosse dirigido por Lenin e Trotsky é improvável que o Sr. Wright teria alguma
dificuldade em reconhecer o significado de Kronstadt (quatro anos antes, protestos
semelhantes foram reprimidos pelo Czar).
A delegação retornou no outro dia e fizeram o relato do que viram na reunião geral dos
marinheiros do navio. Nessa reunião foram adotadas as resoluções que serviram de base
à revolta (veja a próxima seção). Começava a revolta de Kronstadt.
Assim, temos um levante que foi camponês em sua natureza, mas cujas exigências não
possuiam nada de comum com outras revoltas camponesas. Que aparentemente exigia
liberdade de comércio mas não a reivindicava. Era semelhante ao NPE, mas o decreto
do NPE não satisfazia. Produziu uma plataforma de exigências políticas e econômicas
mas, aparentemente, não tinha um "programa consciente". As contradições são
abundantes. Essas contradições se tornam ainda mais evidentes quando observamos a
relação das 15 exigências (coisa que os trotskystas nunca revelam).
"1. Novas e imediatas eleições para os Sovietes. Os atuais Sovietes não mais expressam
a vontade dos trabalhadores e camponeses. As novas eleições devem ser efetuadas pelo
voto secreto, e precedidas por propaganda eleitoral livre.
6. Eleição de uma comissão para observar os dossiês de todos aqueles que estão
detidos em prisões e campos de concentração.
7. Abolição de todas as seções políticas das forças armadas. Nenhum partido político
poderá ter privilégios para a propagação de suas idéias, ou receber subsídios estatais
para esse fim. Essas seções políticas serão substituídas por vários grupos culturais,
subsidiados com recursos do estado.
11. Garantia de liberdade de ação aos camponeses em suas próprias terras, e direito
ao seu próprio rebanho, desde que eles mesmos se encarreguem disso e não
empreguem trabalho assalariado.
12. Exigimos que todas as unidades militares e associações grupos treinados de oficiais
acatem essa resolução.
15. Exigimos que a produção artesanal seja autorizada desde que não utilize trabalho
assalariado". [citado por Ida Mett, _The Kronstadt Revolt_, pp. 37-8]
Este foi o programa descrito pelo governo Soviete como sendo uma "resolução dos
Centenas Negras RS"! Este foi o programa que Trotsky sustentou como impregnado por
"um punhado de camponeses e soldados reacionários". [Lenin e Trotsky, Kronstadt, p.
65 e p. 98]. Conforme pode ser visto, não existe nada disso. Na verdade, esta resolução
está integralmente dentro do espírito dos slogans políticos dos bolshevikes antes deles
subirem ao poder em nome dos sovietes. Além do mais, ela reflete os ideais delineados
em 1917 e formalizados na Constituição do Estado Soviete em 1918. Nas palavras de
Paul Avrich, "Com efeito, a resolução petropavlovsk foi um apelo ao governo Soviete
para que cumprisse sua própria constituição, uma clara manifestação daqueles justos
direitos e liberdade que o próprio Lenin professou em 1917. Em espírito, ela foi uma
ressonância de outubro, evocando o velho lema leninista de 'Todo poder aos sovietes'".
[Op. Cit., pp. 75-6]
Até que ponto isso é verdade? Basta uma análise ligeira dos eventos ligados à revolta e
à resolução Petropavlovsk (veja a última seção) para desmentir esta afirmação de
Trotsky. Primeiramente, de acordo com a definição de "kulak" fornecida pelos próprios
trotskystas, descobrimos que Kulak se refere ao "camponês abastado dono de terra e
que contrata camponseses pobres para trabalhar para ele". [Op. Cit., p. 146]. Ora, o
ponto 11 das reivindicações de Kronstadt explicita claramente sua oposição ao trabalho
rural assalariado. Como poderia Kronstadt representar o "kulak" proclamando a
abolição do trabalho contratado na terra? Claramente, a revolta não representava "o
pequeno especulador, o kulak". Ela representava o camponês dono da terra?
Retornaremos a esse assunto mais abaixo. Em segundo lugar, os revoltosos do
Kronstadt enviaram delegados para investigar a condição dos trabalhadores em greve
em Petrogrado. Suas ações foram inspiradas pela solidariedade para com aqueles
trabalhadores e civis. Isto mostrava claramente que a afirmação de Trotsky de que ela
"refletia a hostilidade do camponês obtuso para com o trabalhador, a auto-valorização
do soldado e marinheiro em relação aos 'civís' em Petrogrado" é integralmente um total
nonsense.
Até que ponto aquelas aspirações representavam os interesses dos camponeses? Para
responder isso precisamos verificar se elas representavam os interesses dos
trabalhadores industriais ou não. Se as exigências estavam, de fato, em harmonia com as
aspirações dos trabalhadores em greve e outros setores do proletariado então podemos
facilmente descartar essa afirmação. Além do mais, se as reivindicações da rebelião de
Kronstadt refletiram as aspirações dos proletários então é impossível dizer que elas
refletiam simplesmente as necessidades dos camponeses (naturalmente, os trotskystas
argumentarão que aqueles proletários eram também "obtusos" mas, com efeito, o que
eles queriam dizer mesmo é que qualquer trabalhador que não obedecesse cegamente às
ordens bolshevikes não passava de "obtuso"!).
Basta uma passada de olhos para perceber que aquelas exigências já vinham ecoando
desde Moscou e Petrogrado nas greves que precederam a revolta de Kronstadt. Por
exemplo, Paul Avrich destaca que as exigências apresentadas nas greves de fevereiro
incluiam "remoção dos bloqueios, permissão para efetuar colheitas no campo e para
comercializar livremente nos vilarejos, [e] eliminação das rações privilegiadas para
categorias especiais de homens trabalhadores". Os trabalhadores também "pediam que
a guarda especial armada Bolshevique, restringisse suas atividades à função
meramente policial, saindo fora das fábricas" e "apelando pela restauração dos
direitos civis e políticos". Um certo manifesto que surgiu (anônimo mas com marcas de
orígem menshevike) argumentava, "os trabalhadores e camponeses necessitam de
liberdade. Eles não querem decretos dos bolshevikes. Querem controlar seus próprios
destinos". Coisas assim levaram os grevistas a exigir libertação de todos os presos
socialistas e trabalhadores apartidários, abolição da lei marcial, liberdade de expressão,
de imprensa, de assembléia para todos os trabalhadores, eleições livres dos comitês de
fábricas, sindicatos, sovietes. [Op. Cit., pp. 42-3]
Conforme pode ser visto, a maioria dessas exigências estão relacionadas diretamente
com os pontos 1, 2, 3, 5, 8, 9, 10, 11 e 15 das reivindicações de Kronstadt. Conforme
Paul Avrich argumenta, as exigências de Kronstadt "ecoam não apenas o
descontentamento da Frota Báltica mas também o descontentamento das massas russas
nas vilas e cidades através do país. Da mesma forma que o povo comum, os
marinheiros estavam preocupados com a situação dos seus parentes camponeses e
trabalhadores. Na verdade, daqueles 15 pontos da resolução, apenas um — a abolição
dos departamentos políticos na frota — tinha uma aplicação específica à sua própria
condição. As demais . . . eram reclamações visando a política de Guerra Comunista, a
justificação de que, aos olhos dos marinheiros e da população como um todo, [todas
aquelas restrições à liberdade] tinham que desaparecer imediatamente". Avrich
argumenta que muitos dos marinheiros que retornando para casa e vendo as más
condições dos vilarejos pelos seus próprios olhos resolveram tomar a iniciativa
formalizando uma resolução (particularmente no ponto 11, o único que menciona
específicamente as exigências dos camponeses) mas "nessa mesma direção, a viágem
de inspeção dos marinheiros nas fábricas de Petrogrado resultou na inclusão de suas
principais exigências no programa — a abolição dos bloqueios nas estradas, o fim das
rações privilegiadas, e dos esquadrões armados dentro das fábricas". [Op. Cit., pp. 74-
5]
Ida Mett observa que a rebelião de Kronstadt não clamava simplesmente por "livre
comércio" da forma como os trotskystas argumentam:
"O levante de Kronstadt em 14 de março foi marcado pelo seu principal objetivo. Os
rebeldes proclamaram que Kronstadt não estava pedindo simplesmente por liberdade
de comércio mas pelo genuíno poder dos sovietes. Os grevistas de Petrogrado exigiam
a reabertura dos mercados e a abolição dos bloqueios nas estradas implementados
pelas milícias armadas. Suas exigências deixaram claro que a liberdade de comércio
por si só não resolveria seus problemas". [Op. Cit., p. 77]
"Muitas pessoas acreditaram que foi Kronstadt que forçou a introdução da Nova
Política Econômica (NPE) — um profundo erro. A resolução de Kronstadt pronunciou-
se em favor da defesa dos trabalhadores, não apenas contra o capitalismo burocrático
do Estado, mas também contra a restauração do capitalismo privado. Esta restauração
foi exigida — com a oposição de Kronstadt — pelos sociais democratas, que
combinavam esta aspiração com um regime político democrático. Tanto Lenin quanto
Trotsky em grande parte realizaram isso (mas sem a política democrática) na forma da
NPE. A resolução de Kronstadt [por sua vez] declarou-se inteiramente oposta ao
emprego de trabalho assalariado na agricultura e na pequena indústria. Esta
resolução, e os movimentos subjacentes, procuravam estabelecer uma aliança
revolucionária entre os trabalhadores proletários e os camponeses, os setores mais
pobres entre os trabalhadores do país, de modo que a revolução pudesse se
desenvolver em direção ao socialismo. O NPE, por outro lado, representava a união
dos burocratas com os mandatários dos povoados contra o proletariado; o NPE
representou a aliança do capitalismo de Estado com o capitalismo privado contra o
socialismo. O NPE em muito se opõe às exigências de Kronstadt da mesma forma que,
por exemplo, o programa socialista de vanguarda dos trabalhadores europeus pela
abolição do sistema de Versalhes se opunha à anulação do Tratado de Versalhes
desenvolvido por Hitler". [Op. Cit., pp. 334-5]
Com relação ao ponto 11, Ida Mett destacou, "ele reflete as exigências dos camponeses
com os quais os marinheiros de Kronstadt tinham estreitas ligações — da mesma forma
que tinham, e isso é um fato, com todo o proletariado russo . . . Em sua grande maioria,
os trabalhadores russos tiveram uma orígem camponesa. E isso precisa ser levado em
consideração. Os marinheiros do Báltico no ano de 1921 estavam, sem sombra de
dúvida, estreitamente ligados com os camponeses. Eles eram, nada mais nada menos,
os mesmos marinheiros de1917". Ignorar os camponeses em um país onde a vasta
maioria veio do campo é uma atitude insana (como os bolshevikes provaram). Mett
destaca isto quando argumenta que "[o bolshevismo] foi um regime baseado
exclusivamente na mentira e no terror e que nunca levou em conta as aspirações dos
trabalhadores e dos camponeses". [Op. Cit., p. 40]
Uma vez que a classe trabalhadora industrial russa estava também exigindo liberdade de
comércio (e sem as cláusuras políticas, anti-capitalistas acrescentados por Kronstadt)
sôa desonesto afirmar que os marinheiros expressavam puramente os interesse dos
camponeses. Talvez isso explique porque os 11 pontos acabaram resumidos em
"restauração do livre comércio" pelos trotskystas no "Prefácio Editorial" de Lenin e
Trotsky. [Kronstadt, p. 6]. John Rees não menciona sequer uma das reivindicações (o
que é surpreendente em uma obra que, em parte, tenta analizar a rebelião).
A natureza dessa resolução passou pelo crivo da classe trabalhadora para que pudesse
concordar com ela. Passou pelos marinheiros nos navios de guerra, pelos encontros de
massa, pelo encontro de delegados de trabalhadores, soldados e marinheiros. Em outras
palavras, pelos trabalhadores e peloscamponeses.
J.G. Wright, acompanhando seu guru Trotsky (utilizando-o como única referência para
seus "fatos", como um cego guiado por outro), mencionou "o fato incontestável" dos
"marinheiros engrossando as forças insurgentes" enquanto que "a guarnição e a
população civil permaneciam passivos". [Op. Cit., p. 123]. Dessa forma estaria
caracterizada, aparentemente, a natureza camponesa da revolta. Vamos pois contestar
esse "fato incontestavel" (i.e. as afirmativas de Trotsky).
O primeiro fato que é necessário mencionar é que afluiram ao encontro de 1o. de março
"entre cincoenta e sessenta mil marinheiros, soldados e civis". [Getzler, Op. Cit., p.
215]. Isto representava mais de 30% da população total de Kronstadt. O que
dificilmente indica uma atitude "passiva" por parte dos civis e soldados.
O segundo fato
é que a conferência de delegados teve uma "participação em cerca de duas ou tres
centenas de marinheiros, soldados, e trabalhadores". Esta composição permaneceu
existindo durante toda a revolta da mesma maneira que seu equivalente soviete de 1917,
inclusive com delegados sovietes de Kronstadt representando "unidades militares e
fabris". Na verdade, tudo aquilo representava, com efeito, um "protótipo dos 'sovietes
livres' pelos quais os insurgentes se levantaram em revolta". Além disso, um novo
Conselho Sindical acabara de ser formado, livre da dominação comunista. [Avrich, Op.
Cit., p. 159, p. 157 e p. 157]. Será que Trotsky esperava que acreditassemos que os
soldados e civis que elegeram estes delegados fossem "passivos"? O simples ato de
eleger tais delegados envolveu discussão, tomada de decisão, além de uma ativa
participação. Como é possível qualificar soldados e civis revoltosos de "apáticos e
apolíticos"?
Isto foi confirmado posteriormente pelos historiadores. Baseado em tais fatos, Paul
Avrich destaca que a população da cidade "ofereceu suporte ativo" e que as tropas do
Exército Vermelho "logo se posicionou em linha". [Op. Cit., p. 159]. Getzler por sua
vez, destaca que as eleições foram defendidas também pelo Conselho de Sindicatos em
7 e 8 de março e que "o comitê do conselho era formado por representantes de todos os
sindicatos". Ele confirmou que a Conferência de Delegados "havia sido eleita pelos
grupos políticos de Kronstadt para que pudesse funcionar em unidades armadas,
fábricas, lojas e instituições sovietes". Além disso, destaca que os revolucionarios
troikas (equivalente às comissões do Comitê Executivo do Soviete em 1917) foram
também "eleitos pela base das organizações". O mesmo aconteceu com, "o
secretariado dos sindicatos e o recém fundado Conselho de Sindicatos, ambos eleitos
pelo conjunto dos membros dos sindicatos". [Op. Cit., pp. 238-9 e p. 240]. É muita
atividade para ser implementada por pessoas "passivas".
Victor Serge, um anarquista francês que se tornou bolshevike, lembrou que ele foi a
primeira pessoa a receber a notícia de que "Kronstadt estava nas mãos dos brancos" e
que "pequenos cartazes pregados nos muros nas ruas proclamavam que o contra-
revolucionário general Kozlovsky submetera Kronstadt através de conspiração e
traição". Com o passar dos dias, a "verdade pouco a pouco começou a aparecer,
diluindo a cortina de fumaça vinculada pela imprensa, um amontoado de mentiras". (na
verdade, ele afirmou que a imprensa bolshevike "mentia sistematicamente"). Ele
descobriu que a versão oficial bolshevique era "uma mentira atroz" e que, na verdade,
"tratava-se de um motim de marinheiros, uma revolta naval dirigida pelo soviete".
Contudo, o "pior de tudo foi a paralização provocada pela fraude oficial. Isso nunca
havia acontecido antes, o Partido mentindo assim para nós. ‘Isto é necessário para o
benefício do público' alguém disse . . . a greve [em Petrogrado] agora é praticamente
geral" (importante destacar que Serge, nas páginas anteriores, referindo-se a Nestor
Makhno, menciona "a extrema calúnia vinculada pela imprensa comunista" sobre ele,
"insistindo em acusá-lo de assinar pactos com os brancos num momento em que ele
estava engajado em uma luta de vida ou morte contra eles", sugerindo que Kronstadt
foi desgraçadamente a primeira vez que o Partido mentiu para ele). [_Memoirs of a
Revolutionary_, pp. 124-6 e p. 122]
Se você concordar com o marxista italiano Antonio Gramsci quando ele diz que "falar
a verdade é um ato comunista e revolucionário" então fica claro que os bolshevikes em
1921 (e previamente) não foram nem comunistas nem revolucionários.
Esta mesma obra estabelece que aquilo que Lenin realmente queria dizer em 8 de março
de 1921 era que, "a imagem familiar dos generais da guarda branca" veio
"rapidamente à tona", e que "os generais brancos eram muito ativos" alí, e que era
"totalmente claro que aquilo era obra de Revolucionários Sociais (RSs) e emigrantes
da guarda branca" e que Kronstadt tinha "ligações" com "a guarda branca". [Op. Cit.,
pp. 44-5]. Isto foi declarado a despeito da presença das declarações governamentais que
mencionamos acima em que o governo bolshevike claramente se refere à prisão de dois
líderes comunistas sob o "comando" de Kozlovsky que, por sua vez, "demonstrava"
apoio à direita-RSs cujas movimentações originaram à revolta (de acordo com os
bolshevikes).
Todas as versões não-leninistas concordam com isso. Paul Avrich destacou que quando
surgiu o nome de Kozlovsky "os bolshevikes passaram a denunciá-lo como o genio do
mal do movimento" transformaram-no num "proscrito" e passaram a hostilizar seus
familiares. Ele confirmou que peritos militares "recebiam incumbencias na tarefa de
planejar operações militares em favor da insurreição". Embora se recusando assumir o
comando da fortaleza depois da fuga do oficial mais graduado para o continente, "os
oficiais o consideravam um competente conselheiro para a rebelião. . . [mas no que diz
respeito ao] início ou à direção da revolta, à construção de seu programa político,
[todas estas coisas] estavam alienadas de sua maneira de pensar". Sua função "se
restringia em prover considerações técnicas, da mesma forma que procedera com os
bolshevikes". É necessário mencionar também, que "diante de todas as acusações de
que Kronstadt era uma conspiração de generais de guardas brancos, os oficiais ex-
tzaristas exerceram uma importancia maior no ataque do que na defesa da fortaleza".
[Op. Cit., p. 99, p. 100, p. 101 e p. 203]
Contudo, nada disso é suficiente para os trotskystas. Wright, por exemplo, não toca
nesse assunto. Ele apenas menciona a declaração de Alexander Berkman, sobre "um
general, Kozlovsky, em Kronstadt. Nomeado por Trotsky como perito em artilharia. E
que não exerceu nenhum papel nos eventos de Kronstadt". [_The Kronstadt
Rebellion_]. Diante disso, Wright protesta dizendo não corresponder à verdade e, como
prova, apela para a entrevista de Kozlovsky afirmando que "dos próprios lábios do
general contra-revolucionário . . . adquirimos uma declaração clara de que desde o
primeiro dia, ele e seus colegas haviam se associado abertamente com os amotinados,
tinham elaborado os 'melhores' planos para capturar Petrogrado . . . Se o plano
falhasse teria sido apenas porque Kozlovsky e seus colegas foram incapazes de
convencer os 'líderes políticos', i.e. seus aliados SR [!], e de que o momento era
propicio para expor os verdadeiros aspectos de seu programa". [Lenin e Trotsky,
Kronstadt, p. 119].
Na medida em que as óbvias falsificações em torno desse tema tornaram-se mais e mais
conhecidas, Trotsky e seus seguidores apelaram para outros argumentos num contínuo
processo de calúnia e difamação dos rebeldes. O mais famoso foi afirmar que os
"marinheiros de Kronstadt eram completamente diferentes dos heróicos grupos
revolucionários de 1917". [Wright, Op. Cit., p. 129]. Retornaremos a esta questão na
seção H.5.8, refutando-a pelas evidencias (e mostrando como os trotskystas abusam de
pesquisas apresentando um quadro drasticamente falsificado dos fatos reais).
Lenin, por exemplo, argumentou em 8 de março que "os generais da guarda branca
eram muito ativos" em Kronstadt. "Existem amplas provas disso. Duas semanas antes
do evento de Kronstadt, os jornais de Paris publicaram um motim em Kronstadt. É
evidente que se trata da ação de Revolucionários Sociais e emigrantes da guarda
branca". [_Kronstadt_, pp. 44]
Estas parecem ser as grande "evidências" de Lenin e Trotsky com relação à natureza
branca-vanguardista da revolta. Na verdade, Trotsky com "base nesse despacho . . .
enviou um aviso a Petrogrado para meus companheiros navais". [Ibid.]
Todavia, para averiguar a verdade (ou inverdade) dessas afirmações basta verificar
como os bolshevikes reagiram ao anúncio do levante em Kronstadt. Eles não fizeram
nada. Os proprios editores trostkystas de um livro produzido para justificar a repressão
declararam que "o comando do Exército Vermelho foi apanhado de surpresa pela
rebelião". [Op. Cit., p. 6]. J.G. Wright, defendendo a posição de Trotsky (uma defesa
encomendada pelo próprio Trotsky), confessa que o "comando do Exército Vermelho"
foi "pego de surpresa pelo motim". [Op. Cit., p. 123]. Isto mostra claramente a pouca
importancia que os jornais davam à situação antes da rebelião. Naturalmente, durante e
depois a rebelião recebeu várias e diferentes abordágens que rápidamente se tornaram
foco da sujeira bolshevike.
Trotsky, ao mesmo tempo em que admitia, por um lado, que "a imprensa
imperialista . . . publicava . . . um grande número de reportagens fictícias sobre a
Rússia" sustentava, por outro, que as reportagens sobre Kronstadt eram exemplos de
"tramas" visando "provocar transtornos nos centros expecíficos da Rússia Soviética".
(na verdade, aqueless "agentes jornalísticos do imperialismo apenas ‘adiantaram’
aquilo que estava sendo preparado para ser executado pelos outros agentes do
imperialismo".). [_Kronstadt_, p. 69]. Lenin também observou, em um artigo entitulado
"A Campanha das Mentiras", que "a imprensa ocidental, nas duas últimas semanas,
mergulhara em uma orgia de mentiras engajando-se na produção massiva de invenções
fantásticas sobre a Rússia Soviética" e relacionou (coisas tipo "Petrogrado e Moscou
nas mãos dos insurgentes"). [Op. Cit., p. 50 e p. 51]
Ora, se essa imprensa não era confiável como é que podia ser utilizada como prova de
uma conspiração branca em Kronstadt? A resposta é previsível. Conforme Mett
observou, "em 1938 o próprio Trotsky fez esta acusação". [Op. Cit., p. 76]. Em outras
palavras, num primeiro momento a imprensa é a mais pura expressão da mentira, num
segundo momento aquela mesma imprensa torna-se o mais valoroso arauto da verdade,
um documento incontestavel. Algo milagroso, para não dizer patético! Contudo, nem
isso impediu que seu leal seguidor John G. Wright se referisse a aquelas coisas como
"fatos irrefutáveis" determinantes da "conecção entre a contra-revolução e
Kronstadt".) [Op. Cit., p. 115]. Além disso, se há uma conspiração em curso, por que
diabos esses conspiradores contra-revolucionários divulgariam notícias antecipadas
sobre seus planos? Isso também nunca foi explicado.
Como pode ser visto, em tempo algum nenhuma evidência foi apresentada provando
que os brancos organizaram ou mesmo tomaram parte na revolta. Conforme Ida Mett
argumenta:
"Se, o governo bolshevike tinham mesmo provas dessas supostas ligações entre
Kronstadt e contra-revolucionários porque não as apresentaram? Por que não
mostraram às massas trabalhadoras da Rússia o 'real' motivo do levante? Se isso não
foi feito é porque nunca houve qualquer prova". [Op. Cit., p. 77]
Contudo, uma rápida leitura do documento revela, de fato, que Kronstadt nada teve a
ver com uma conspiração branca, e muito menos foi fruto dela. Pelo contrário o que o
documento mostrou com clareza foi que o "Centro Nacional" branco tencionava
experimentar e fazer uso de "levantes" espontâneos objetivando "eclodir eventos
futuros" para poder atingir seus próprios fins. O documento relata que "podia ser
observado nas massas e entre os marinheiros, numerosos e inconfundíveis sinais de
insatisfação com a ordem vigente". Na verdade, o "Memorandum" declarava que "não
podemos esquecer que mesmo que o comando frances e as organizações anti-
bolshevikes não tomem parte na preparação e na direção do levante, a revolta em
Kronstadt será como as outras, depois de um breve período de sucesso estará
condenada ao fracasso". [_Kronstadt 1921_, p. 235 e p. 240]
Conforme Avrich destaca, an "o assunto fundamental do Memorandum é que a revolta
não ocorreria antes do degelo da primavera, quando o gelo derrete e Kronstadt fica
imune à uma invasão pelo continente". [_Kronstadt 1921_, pp. 106-7]. Voline dizia o
óbvio quando argumentou que a revolta "eclodiu espontaneamente" pois se ela "fosse
resultado de um plano concebido e preparado anteriormente, ela certamente não teria
acontecido no começo de março, num momento desfavorável. Algumas semanas depois,
com Kronstadt livre do gelo, teria se tornado uma fortaleza inexpugnável . . . A grande
vantágem do governo bolshevike foi precisamente a espontaneidade do movimento e a
ausência de qualquer organização prévia, qualquer cálculo, na ação dos marinheiros".
[_The Unknown Revolution_, p. 487]. Conforme pode ser visto, o "Memorandum"
também reconheceu a necessidade do gelo derreter e esta era a questão básica que
estava por trás do documento. Em outras palavras, a revolta foi realmente espontânea e
isto permeia todo o "Memorandum."
"Nada vem à luz revelando que o memorando secreto tenha sido sequer posto em
prática ou que havia alguma ligação entre os emigrantes e os marinheiros antes da
revolta. Pelo contrário, o levante caracterizou-se pela espontaneidade . . . não havia
nenhum traço no comportamento dos rebeldes que sugerisse qualquer cuidado maior
nos preparativos da revolta. Se tivessem arquitetado um plano, os marinheiros
certamente teriam esperado o gelo derreter . . . Além disso,os rebeldes autorizaram
Kalinin [um líder comunista] retornar a Petrogrado, embora ele houvesse feito
importantes ameaças. Mais adiante, não fizeram qualquer tentativa no sentido de
tomar a ofensiva . . . Também é muito significante, a grande quantidade de comunistas
que tomaram parte no movimento. . .
Além disso, mesmo se o memorandum tivesse alguma ligação com algum aspecto da
revolta seria em conexão com a reação do 'Centro Nacional' branco. Em primeiro lugar,
nem eles nem os franceses proporcionaram qualquer tipo de ajuda aos revoltosos. Em
segundo lugar, o professor Grimm, agente chefe do Centro Nacional em Helsingfors e
os oficiais representantes do general Wrangel na Finlandia, declararam para um colega,
depois da revolta ter sido esmagada, que se ocorresse uma nova eclosão o grupo não
seria pego de surpresa novamente. Avrich também afirma que a revolta "pegou os
emigrantes num ponto de desequilibrio" e que "nada . . . tinha sido feito para
implementar um Memorandum Secreto, e que as admoestações do autor eram
altamente recomendaveis". [Paul Avrich, Op. Cit., p. 212 e p. 123]
Com efeito, as tentativas encaminhadas por certos trotskystas de última hora para
justificar as difamações e calúnias de seus heróis contra Kronstad são patéticas. Nunca
houve qualquer evidência da existencia de um plano por parte da vanguarda branca.
Quando, em 1970, Paul Avrich divulgou suas pesquisas sobre a revolta, o único
documento em questão claramente não sustentava qualquer hipótese sobre brancos
organizando a revolta. Pelo contrário, os brancos queriam mesmo era se aproveitar do
"levante" dos marinheiros em proveito próprio, o "levante"por eles prognosticado
ocorreria na primavera (com ou sem eles). A revolta de fato ocorreu mais cedo do que
eles esperavam e não foi produto de uma conspiração. Na verdade, a história revelada
por este documento não comprova outra coisa a não ser que a revolta foi espontânea.
Na verdade, o próprio povo de Kronstadt sabia que os brancos estavam dispostos a apoir
suas ações (quaisquer ações contra os bolshevikes) mas este apoio nada tinha a ver com
aquilo que motivava a população, vinha por razões diferentes daquelas pelas quais o
povo lutava:
"Camaradas, neste momento voces estão alegres pela grande e pacífica vitória sobre a
ditadura dos comunistas. Contudo, nossos outros inimigos também celebram.
"O motivo da alegria deles, e completamente diferente dos motivos de nossa alegria.
"Voces foram movidos pelo ardente desejo por restaurar o autêntico poder dos
sovietes, pela nobre esperança de ver o trabalhador exercendo livremente seu trabalho
e o camponês alegrando-se pelo direito de dispor, em sua terra, do produto de sua
labuta. Enquanto que eles sonham em recuperar o chicote tzarista e os privilégios de
seus generais.
"Seus interesses são diferentes. Eles nunca foram seus companheiros de jornada.
"Sua ação foi para libertar-se do poder dos comunistas para poderem desenvolver seu
trabalho fecundo de paz construtiva. Ao passo que eles desejam forçar os
trabalhadores e camponeses a voltar a ser seus escravos.
Claro que isso não é suficiente para os seguidores de Lenin e Trosky. John Rees, por
exemplo, menciona Paul Avrich em defesa de sua asserção de que a revolta de
Kronstadt foi, de fato, pró-brancos. Ele argumenta o seguinte:
"Paul Avrich . . . disse que é uma ‘evidência inegável’ que a liderança da rebelião
resultou de um acordo com os brancos após eles [rebeldes] terem sido esmagados e
que 'não pode ser desconsiderada a possibilidade de que isso tenha sido continuidade
de um relacionamento anterior'". [Op. Cit., p. 64].
Vamos supor, por um momento, que certos elementos na "liderança" dos revoltosos
fossem, de fato, patifes. Qual o peso que isso representa na avaliação da revolta do
Kronstadt? Primeiramente, precisamos destacar que esta "liderança" havia sido eleita
pela e sob o controle da "conferência de delegados", que foi por sua vez eleita por e sob
controle de marinheiros e soldados rasos juntamente com gente comum do povo. Este
grupo se reunia durante a revolta "para receber e debater as informações que vinham
do Comitê Revolucionário e para propor medidas e providências". [Getzler, Op. Cit.,
p. 217]. As ações das "lideranças" não se processaram de uma forma independente do
conjunto da população, indiferente à sua agenda, elas funcionavam sob o controle da
base. Em outras palavras, a revolta não estava subordinada ao resultado de discussões
entre "lideranças" fossem elas "homens maus" ou não. Na realidade, esse tipo de atitude
apenas reflete o elitismo da história da burguesia.
Além do mais, a lógica desses argumentos de Rees foi posteriormente utilizada pelos
stalinistas. Na verdade, sua concordancia com os stalinistas, no que diz respeito à
revolução húngara de 1956 é bastante esclarecedora. Bastou os revoltosos hungaros
pedirem auxílio ao Ocidente contra o Exército Vermelho, para que Rees qualificasse
esse ato como objetivamente contra-revolucionário e pró-capitalista, exatamente como
os burocratas do Partido Comunista haviam argumentado. O fato de chegarem muitas
menságens de apoio aos rebeldes durante a revolta, de acordo com a lógica de Rees, era
uma prova de que todos os revoltosos estavam impregnados de valores burgueses,
condenando a revolta aos olhos de todos os socialistas. Similarmente, o fato do
sindicato polonês Solidariedade ter recebido apoio Ocidental contra o regime estalinista
não significa que sua luta foi contra-revolucionária. Assim, os argumentos usados por
Rees são idênticos àqueles utilizados pelos stalinistas para apoiar a repressão que
dirigiram contra a classe trabalhadora no Império Soviético. Na verdade, os trotskystas
ortodoxos também chamaram a "Solidarnosc" de uma corporação ligada à CIA,
banqueiros, Vaticano, Wall Street, capitalistas contra-revolucionários na Polônia, e
responsável pela queda da União Soviética em prejuízo da classe trabalhadora e do
socialismo, em outras palavras, uma contra-revolução. Como prova para essas
argumentações eles apontam a alegria e a disposição generalizada de apoio nos círculos
de elite Ocidentais (ignorando completamente a natureza popular daquela revolta).
Por fim, é bom não esquecer o fato de que os membros do comitê revolucionário de
Kronstadt se refugiaram na Finlândia juntamente com "cerca de 8.000 pessoas (alguns
marinheiros e a parte mais ativa da população civil)". [Mett, Op. Cit., p. 57]. Foi assim
que os bolshevikes vaticinaram o dia 5 de março ("No último minuto, todos aqueles
generais, Kozlovskvs, Bourksers, e toda aquela ralé, Petrichenkos, e os Tourins voaram
para a Finlandia, para as guardas brancas". [citado por Mett, Op. Cit., p. 50]).
Contudo, isto não indica qualquer conexão com "guardas brancas". Afinal das contas,
para onde mais eles poderiam ter ido? Qualquer um deles que permanecesse na Rússia
Soviética restava apenas uma prisão bolshevike ou a morte. O fato de que ativos
participantes na revolta tivessem im único refúgio para ir para evitar a morte não tira o
mérito da natureza da revolta nem pode ser usado como "evidencia" de uma
"conspiração branca".
Ele repetiu este argumento em 1937 e 1938. [Op. Cit., p. 79, p. 81 e p. 87]. Seus
discípulos repetiram suas afirmações. Wright argumenta que "o pessoal da fortaleza
não pode ter permanecido estático durante todo o período entre 1917 e 1921".
Duvidando que aqueles marinheiros revolucionários de 1917, aqueles bravos camaradas
que enfrentaram os brancos, eram os mesmos que estavam por trás da revolta de 1921.
[Op. Cit., pp. 122-3]. John Rees argumenta que como "a composição da guarnição
havia mudado . . . tudo indica que os camponeses concentraram seus esforços em
Kronstadt, conforme Trotsky sugeriu". [Op. Cit., p. 61]
Como pode ser visto, essa alegação de que os marinheiros de Kronstadt constituiam
uma "massa amorfa" cuja composição social se modificara é muito comum nos círculos
trotskystas. O que fazer com alegações como estas?
"Dos 2.028 marinheiros alistados, nada menos que 1.904 ou 93,9% foram recrutados
na marinha antes e durante a revolução de 1917. O grupo maior, 1.195, se agregou em
1914-16. Apenas 137 marinheiros ou 6.8% foram recrutados nos anos de 1918-21,
incluindo três que foram recrutados em 1921, e eles foram os únicos que não estavam
lá durante a revolução de 1917". [_Kronstadt 1917-1921_, pp. 207-8]
Como prova, ele menciona um telegrama seu solicitando "no final de 1919, ou em 1920,
licença para transferir um grupo de marinheiros de Kronstadt" ao que foi respondido:
"licença negada" [Op. Cit., p. 81]. Ora, nessa linha de raciocínio o comando comunista
em Kronstadt deveria deixar a fortificação totalmente desprovida de tripulação! O bom
senso é deploravelmente deficiente em Trotsky, tanto quanto em seus discípulos.
Wright, pondera que era "impossível" acreditar que os marinheiros de 1917 pudessem
ser aqueles mesmos camaradas que lutaram contra os brancos em Kronstadt. Isso teria
sido um argumento válido se as forças armadas soviéticas fossem democráticamente
constituídas. Contudo, conforme indicaremos na seção H.5.13, ela fôra típicamente
organizada sob o modêlo burguês. Trotsky aboliu os conselhos democráticos de
soldados e marinheiros da mesma forma que aboliu a eleição de oficiais em favor da
indicação de oficiais dentro de estruturas militares hierárquicas piramidais. O fato de
terem que defender Petrogrado e o nível técnico de conhecimento requerido para operar
os navios de guerra e as defesas de Kronstadt implica que os marinheiros de 1917 eram
insubstituíveis e tinham que permanecer em Kronstadt. E foi isso o que, de fato,
ocorreu. Nas palavras de Israel Gelzter:
Trotsky, em sua afirmação de que foram os guardas brancos que organizaram a revolta,
obviamente percebeu que aquele argumento (agora refutado) de mudança na
composição social dos marinheiros faria água rapidamente . E continuou enveredando
por outros caminhos:
"Os melhores, os mais dedicados marinheiros estavam ausentes de Kronstadt, por
exercerem um importante papel nos fronts e nos sovietes locais pelo país afora. Aquilo
que pudemos observar foi uma pretenciosa massa amorfa ('Somos de Kronstadt'), mas
sem educação e preparação política para o sacrifício revolucionário. O país estava
faminto. Enquanto que povo de Kronstadt exigia privilégios. O levante foi ditado pelo
desejo de obter rações alimentares privilegiadas". [_Kronstadt_, p. 79].
Este primeiro comentário de Trotsky diante do levante contém uma mentira. Conforme
Ida Mett escreveu, "tal exigência nunca foi feita pelos homens de Kronstadt". Trotsky
"deu início a suas acusações públicas através de uma mentira". [_The Kronstadt
Uprising_, p. 73]. Ele repetiu essa mesma afirmação novamente, seis meses depois [Op.
Cit., p. 92]. Na verdade, o que aconteceu foi exatamente o contrário. O ponto 9 das
reivindicações de Kronstadt se referia explicitamente ao fim dos privilégios pedindo
"equalização das rações para todos os trabalhadores".
"Não me atrevo argumentar quem foram os marinheiros de 1918 ou 1919. Até janeiro
de 1920 eu não estava na Rússia. Naquele tempo [contudo], Kronstadt, que havia
'liquidado' os marinheiros da frota do Báltico, era considerado o glorioso exemplo do
valor e da corágem inabalável. Naquele tempo eu ouvia não apenas de anarquistas,
menshevikes e revolucionários sociais, mas também de muitos comunistas, que a
verdadeira espinha dorsal da Revolução foram os marinheiros. Em 1o. de maio de
1920, durante a celebração e outras festividades organizadas pela primeira Missão de
Trabalhadores Britânicos, os marinheiros de Kronstadt receberam um grande
contingente de homenágens, que os colocava como grandes heróis, que haviam salvo a
Revolução de Kerensky e Petrogrado de Yudenich. Durante o aniversário de outubro os
marinheiros foram novamente para a frente dos soldados, representaram a tomada do
Palácio de Inverno e foram vívidamente aclamados pela multidão.
"'É um mito [considerar], do ponto de vista social, que Kronstadt de 1921 tivesse uma
população completamente diferente de 1917'. Essas foram as palavras de D., um
homem de Petrogrado, para mim na prisão. Em 1921 ele pertenceu à juventude
comunista e em 1932 foi preso como 'decista' (membro do grupo dos Centralistas
Democráticos de Sapronov)" [Op. Cit., pp. 335-6].
Desde então, tanto Paul Avrich quanto Israel Gelzter tem analizado esta questão. A
outra razão relacionada a esse assunto, ou seja, o abuso destes argumentos para defender
sua causa, que revelam com perfeição a natureza da ética bolshevike. "Distantes dos
revolucionários", declara Ciliga, "eles não ficaram apenas nas palavras, e tornaram
realidade as tarefas da reação e da contra-revolução, [após isso] passaram,
inevitavelmente, a fazer uso do recurso da mentira, da calúnia e da falsificação" [Op.
Cit., p. 335]. Defender tais atos é pagar tributo àqueles que seguem sua tradição.
Pierre Frank argumenta que a obra de Paul Avrich possui "conclusões" que são
"similares às de Trotsky" e que "confirmam as alterações na composição das
guarnições de Kronstadt que se processaram durante a guerra civil, embora faça isso
com algumas reservas" [Op. Cit., p. 25]. Basta uma rápida olhadela para estas reservas
para a falsidade de Frank vir à tona. Vamos ler novamente esta passágem de Avrich:
"Não há qualquer dúvida de que durante os anos da Guerra Civil ocorreu uma grande
rotatividade na Frota Báltica, e que muitos dos veteranos foram substituídos por
recrutas dos distritos rurais que trouxeram consigo o profundo sentimento de
descontentamento do camponês russo. Em 1921, de acordo com dados oficiais, mais de
tres-quartos dos marinheiros tinham origem camponesa, uma proporção
substancialmente mais alta que em 1917 . . . Contudo isto não significa
necessariamente que o comportamento padrão da frota tivesse sofrido alterações
fundamentais. Pelo contrário, pelo que se pode observar tanto pela uso da técnica
como da estatística. . ., o traço rebelde do campones que sempre prevaleceu entre os
marinheiros. . . Na verdade, em 1905 e 1917 foram aqueles muitos jovens oriundos do
interior que deram a Kronstadt sua reputação de cadeira quente do extremismo
revolucionário. E através da Guerra Civil o povo de Kronstadt manteve sua
independente e obstinada sina, difíceis de controlar e arredios em dar apoio ao
governo. Foi por esta razão que muitos deles . . . acabaram transferidos para novos
postos longíquos dos centros de poder bolshevike. Daqueles que permaneceram, muitos
anelavam pela liberdade alcançada em 1917 antes do novo regime começar a
estabelecer-se como ditadura do partido único através do país.
Conforme verificamos, As "reservas" de Avrich são tais que deixam claro ele não
chegou às mesmas conclusões que Trotsky com relação à atuação da classe trabalhadora
de Kronstadt e, na verdade, isto é percebido pela orientação ideológica desta
"explanação".
Esta passágem é citada por Israel Getzler em Kronstadt 1917-1921. A narrativa de Rees
é uma acabada versão da primeira metade do relatório de Yasinskys. Contudo, a
passágem continua exatamente como vemos a seguir:
Qual é a base de Rees para suas "provas adicionais"? Simplesmente que em "setembro
de 1920, seis meses antes da revolta, os bolshevikes tinham 4.435 membros em
Kronstadt. Cerca de 50% deles eram camponeses [mais precisamente, de famílias
camponesas], 40% trabalhadores e 10% intelectuais. . . . Este percentual de
camponeses no partido era consideravelmente mais alto que o nacional. . . " [p. 61].
Assim, com base nessa asserção, ele conclui que "provavelmente" Trotsky estava
correto!
Ora, vemos que essa "evidência" de mudança na composição de classes não tem
utilidade alguma porque não estabelece comparações entre os bolshevikes em Kronstadt
em 1917 e em 1921. Se Kronstadt sempre teve um alto percentual de camponeses em
sua composição, conclui-se apenas que em 1917 o percentual de bolshevikes de orígem
camponesa era mais alto que o normal.
Seria muito mais fácil para Rees informar seus leitores dos fatos reais relativos à
alteração da composição da guarnição de Kronstadt. Ele poderia ter mencionado o
trabalho de Getzler sobre esse tema, que demonstra que os navios de guerra
Petropavlovsk e Sevastopol constituiram o miolo do levante.
Ele poderia, também, ter mencionado o resumo de Samuel Farber sobre as provas de
Getzler (e outros). Em vez disso Rees erradamente afirma que Getzler "não observou os
números da composição bolshevik" [Op. Cit., p. 62]. Mas o que Rees fez quando teve
diante de si os números apropriados que revelavam a composição dos marinheiros? Veja
o que Farber diz a respeito disso:
E Rees ainda lamenta que Farber não notasse os números bolshevikes! Ora, hipóteses e
conclusões "prováveis" que surgem de hipóteses seriam mais importantes que
evidências? Rees ainda tenta salvar sua causa afirmando que a posição de Farber "só
teria validade se considerássemos as estatísticas isoladamente. . . Particularmente, os
marinheiros de Kronstadt haviam recebido licença pela primeira vez desde a guerra
civil. Muitos retornaram para suas vilas e deram de cara com as condições no interior
do país, como a situação enfrentada pelos camponeses com os destacamentos que lhes
retirava o alimento". [p. 62]. Naturalmente, tal argumento nada tem a ver com a questão
original de Rees. Não podemos esquecer que ele armentava, como Trotsky, que "a
composição da guarnição havia se alterado" não sua composição política. Diante da
esmagadora evidência contra sua causa, ele não apenas negou aqueles informes aos seus
leitores, como fez alterações no argumento original!
Diante do fato de que a composição de classe dos marinheiros era similar em 1917 e
1921 e de que a tripulação era composta por veteranos de 1917, os trotskystas passaram
a tropeçar em suas definições de classe, envolvendo a definição de uma específica
posição política "proletária" (i.e. a política do bolshevismo). Passaram a argumentar que
qualquer um que não subscrevesse sua posição seria um "pequeno-burguês" revelando
sua posição real na sociedade (i.e. sua posição de classe).
Primeiramente, temos que destacar que Kronstadt em 1917 nunca foi um baluarte
bolshevike. Politicamente, o ambiente em Kronstadt era "fechado em torno da política
Socialista Maximalista Revolucionária, uma dissidência à esquerda do partido SR e
politicamente localizada entre as esquerdas SRs e os anarquistas". [Farber, Op. Cit., p.
194] Ela era dirigida por Anatolii Lamanov e segundo Getzler, "rejeitava a dissenção
partidária" e "apoiava o sovietismo puro". Eles almejavam uma imediata revolução
social agrária e urbana, exigindo uma "socialização do poder, da terra e das fábricas" a
ser organizada por uma federação de sovietes baseada em eleições diretas e para
aplicação imediata, como primeiro passo em direção ao socialismo. [Getzler, Op. Cit.,
p. 135] As semelhanças com anarquismo são evidentes.
A memória de Trotsky (que, acima de tudo, aparenta ser a base da maioria dos
argumentos de seus seguidore) pregou-lhes uma peça. Ele declara que alí "estava não
os menshevikes mas todo o Kronstadt". No que dizia respeito aos anarquistas, a
"maioria" deles "representava a pequena burguesia da cidade e tinha um nível inferior
aos SRs". As esquerdas SRs "tinha sua base na parte camponesa da frota e nas
guarnições". Em suma, "nos dias da insurreição de outubro os bolshevikes constituiam
menos da metade do soviete Kronstad. A maioria consistia de SRs e de anarquistas".
[_Kronstadt_, p. 86]
"Eu sou anarquista porque a sociedade contemporânea está dividida em duas classes
opostas: os trabalhadores despojados e empobrecidos, os camponeses . . . e os homens
ricos, reis e presidentes . . .
"Eu sou anarquista porque desprezo e detesto toda autoridade, pois toda autoridade é
fundada na injustiça, na exploração e na coerção sobre a personalidade humana. A
autoridade desumaniza o indivíduo e faz dele um escravo.
"Eu sou um oponente da propriedade privada quando ela é possuída por indivíduos
capitalistas parasitas, pois a propriedade privada é um roubo.
". . .
"Eu sou anarquista porque creio que a presente luta entre as classes apenas terá um
fim quando as massas trabalhadoras, organizadas enquanto classe, alcancem seus
próprios interesses e conquistem, através de uma violenta revolução social, todas as
riquezas da terra . . . pela abolição de todas as instituições de governos e de
autoridades, as classes oprimidas proclamarão uma sociedade de livres produtores . . .
As próprias massas populares conduzirão seus assuntos de forma igualitária e comunal
em suas comunidades livres". [N. Petrov, citado por Paul Avrich, Anarchists in the
Russian Revolution, pp. 35-6]
Grande "pequena burguesia"! Claro que para Trotsky eles representavam a minoria dos
"reais revolucionarios", aqueles "elementos mais estreitamente ligados aos
bolshevikes", mas tal análise não pode ser levada a sério considerando a influência dos
anarquistas em Kronstadt. [Op. Cit., p. 86] Por exemplo, um membro do Comitê de
Petrogrado e o partido Helsingfors em 1917 lembrou que os anarquistas-comunistas
exerciam grande influência em Kronstadt. Além disso, conforme o historiador
Alexander Rabinowitch, eles possuiam uma "inegável capacidade de influenciar o
curso dos eventos" e fez referência à "influência dos comnistas anarco-sindicalistas [de
Kronstadt] sob Iarchuk". Na verdade, os anarquistas "exerceram um significante papel
no desencadeamento do levante de julho" de 1917. [_Prelude to Revolution_, p. 62, p.
63, p. 187 e p. 138]
"Politicamente, este foi o mesmo objetivo do povo de Kronstadt [em 1921], e 'Poder
aos sovietes não aos partidos' originalmente foi uma contribuição maximalista".
Economicamente, eles denunciaram o confisco de grãos e exigiram "todas as terras de
volta aos camponeses". Na indústria eles rejeitaram a teoria e a prática bolshevike de
"controle dos trabalhadores" por administradores burgueses em favor da "organização
social da produção e sua sistemática direção por representantes de trabalhadores". Se
opunham ao estado gestor nacionalista e centralizado em favor da socialização e auto-
gestão da produção pelos trabalhadores. Não foi por acaso que "os SR maximalistas
constituiam um grupo político fechado com os rebeldes em temperamento e pontos de
vista". [Op. Cit., pp. 171-2] Isso pode ser constatado tanto na leitura da resolução
Petropavlovsk como no jornal Izvestia de Kronstadt (veja No Gods, No Masters, vol.
2, pp. 183-204). Na verdade, "cada um dos pontos mais importantes do programa de
Kronstadt, publicados pelo rebelde Izvestiia, coincidia com os defendidos pelos
Maximalistas." [Avrich, Op. Cit., p. 171]
Como pode ser visto, os maximalistas estavam bem à frente dos bolshevikes. Eles
defendiam o poder soviete, não o poder do partido. Eles defendiam a auto-gestão dos
trabalhadores, não o capitalismo de estado dos bolshevikes.
Evidentemente, a visão política dos rebeldes de Kronstadt não se alterara
dramaticamente. Altamente influenciados pelos anarquistas e semi-anarquistas em 1917,
em 1921 as mesmas idéias políticas tomaram mais uma vez a dianteira, com
marinheiros, soldados e civís se levantando para libertarem a si próprios da ditadura
bolshevike formando uma "conferencia de delegados".
Pela lógica dos argumentos de Trotsky, os marinheiros de Kronstadt eram
revolucionários simplesmente através das ações da minoria bolshevike, pois uma
"revolução é 'feita' diretamente por uma minoria. O sucesso de uma revolução é
possível, portanto, apenas onde essa minoria encontra mais ou menos apoio . . . por
parte da maioria. A alteração nos diferentes estágios na revolução . . . é diretamente
determinada pela mudança nas relações políticas entre a minoria e a maioria, entre a
vanguarda e a classe". Esta é a razão da necessidade "da ditadura do proletariado" pois
o nível das massas não pode ser "igual . . . extrema e altamente desenvolvido". [Op.
Cit., p. 85 e p. 92]
Da mesma forma, John Rees contradiz seu principal argumento ao mencionar que a
"ideologia da guarnição de Kronstadt foi um fator" na revolta porque "em seus dias
heróicos a guarnição teve um ar de ultra-esquerda". [Op. Cit., p. 62] Se, conforme ele
sustentou, se tratasse de novos marinheiros, como é que teriam tempo para exercer
influência pela sua ideologia, uma ideologia de marinheiros que ele afirmou não existir?
E se os novos recrutas aos quais ele se refere foram influenciados pelos marinheiros de
1917 fica difícil sustentar que a revolta estava alienada do espírito de 1917.
Aqui surge uma questão interessante. Se é verdade que as revoluções são feitas por uma
minoria que ganha o apoio da maioria, então o que acontece quando a maioria rejeita a
vanguarda? Conforme indicado nas seções H.5.14 e H.5.15, Trotsky não receou prover
a resposta — a ditadura do partido. Nesse aspecto ele apenas seguiu a lógica dos
argumentos de Lênin. Em 1905, Lenin defendeu que (usando Engels como uma
autoridade na qual se apoiava) "o princípio, 'apenas pela base' é um princípio
anarquista". [Marx, Engels e Lenin, Anarchism and Anarcho-Syndicalism, p. 192] Para
Lenin, os marxistas deveriam ser favoráveis às pressões "De cima tanto quanto as de
baixo" e "renunciar pressionar também de cima é anarquismo". Segundo Lenin,
"pressionar de cima é pressionar pelos cidadãos em um governo revolucionário.
Pressionar de cima é pressionar pelo governo revolucionário nos cidadãos". [Op. Cit.,
p. 196 e pp. 189-90]
Kronstadt revela que a "pressão de cima" teve um grande desprezo pela "pressão de
baixo". Em outras palavras, a semente da ditadura bolshevike e a repressão de Kronstadt
repousa nos argumentos de Trotsky e em argumentos como estes. (veja seções H.5.5 e
H.5.12 para mais detalhes).
É desnecessário dizer que estes argumentos de Trotsky deixam muito a desejar. Por
exemplo, ele falha em mencionar (usando as palavras de Victor Serge — veja seção
H.5.X) que o estado e a imprensa comunista "positivamente se constituíram um frenesi
de mentiras". A campanha de rádio e jornal dirigida contra Kronstadt dizia que a revolta
fora organizada por espiões estrangeiros sob a liderança de generais ex-czaristas. Tal
fato, naturalmente, alienou muitos trabalhadores em Petrogrado. Duas centenas de
emissários foram enviados de Kronstadt para divulgar suas reivindicações mas apenas
uns poucos conseguiram evitar de ser presos. [Avrich, Op. Cit., p. 140] Como vemos, os
bolshevikes prevaleceram em sua propaganda de guerra com suas mentiras.
"Vocês estão narrando um conto de fadas quando dizem que Petrogrado está com
vocês ou que a Ukrania os apóia. São mentiras impertinentes. O último marinheiro em
Petrogrado abandonou vocês quando percebeu que eram conduzidos por generais
como Kozlovskv. A Sibéria e a Ukrania apóia a poder Soviético. A Petrogrado
Vermelha dá gargalhadas devido a seus miseráveis esforços em ajudar as guardas
brancas e os socialistas revolucionários". [cited by Mett, Op. Cit., p. 50]
Os insurgentes em Petrogrado não forneceram apoio ativo nem por parte dos
trabalhadores nem dos marinheiros. O Partido colocou para funcionar sua máquina de
propaganda para desmoralizar, mentir sobre a revolta e aqueles que tomaram parte nela.
O governo também dedicou uma "cuidadosa atenção" aos "trens de Petrogrado nas
principais estações em direção a Kronstadt para evitar qualquer contato com os
insurgentes". [Avrich, Op. Cit., p. 141] Previsivelmente, sob tais circunstancias muitos
trabalhadores e marinheiros relutaram em apoiar Kronstadt. Isolados da revolta, os
trabalhadores de Petrogrado foram cobertos de propaganda oficial (i.e. mentiras) e
rumores sem qualquer base verídica.
Contudo, esta não foi a única razão da ausência de um apoio efetivo. Outro fator,
naturalmente, foi a repressão do estado. Emma Goldman relata a situação de Petrogrado
daqueles dias:
"Foi imposto um excepcional estado de lei marcial em todas as províncias de
Petrogrado, e ninguém, exceto os oficiais com passes especiais, poderia deixar a
cidade. A imprensa bolshevike lançou uma campanha de calúnias e difamação contra
Kronstadt, anunciando que os marinheiros e soldados tinham feito uma aliança com o
'general czarista Kozlovsky'; e por causa disso o povo de Kronstadt foi declarado fora
da lei". [_No Gods, No Masters_, vol. 2, p. 171]
Como ninguém sabia o que aconteceria com todo aquele povo proscrito pelos
bolshevikes, surpreende o fato dos trabalhadores de Petrogrado (mesmo se soubessem
eles também estavam sob ameaça) não terem agido? Contudo, conforme Ida Mett
reporta parte do proletariado de Petrogrado continuou em greve mesmo durante os
eventos de Kronstadt, "em 7 de março os trabalhadores organizaram um grande
encontro (o dia do início do bombardeio a Kronstadt). Este encontro adotou uma
resolução dos marinheiros amotinados! Ele elegeu uma comissão que iria de fábrica
em fábrica chamando por uma greve geral". [Op. Cit., p. 52]
Como pode ser visto, Trotsky insulta a inteligencia de seus leitores quando diz que a
ausência de apoio de Petrogrado para Kronstadt refletiu uma "linha classista". Ida Mett
declara o óbvio:
"Aqui novamente Trotsky está dizendo coisas que são inteiramente falsas.
Primeiramente estava patente que a onda de greves tinha começado em Petrogrado e
que Kronstadt imediatamente deu seu apoio. E foi contra as greves de Petrogrado que
o governo formou um grupo especial de elite militar: O Comitê de Defesa. A repressão
foi primeiramente dirigida contra os trabalhadores de Petrogrado e contra suas
manifestações, pelo envio dos destacamentos armados de Koursantys.
Não foi apenas desta vez que Trotsky confundiu força com classe. Em sua infame obra
Communism and Terrorism ele defendeu a realidade da ditadura do Partido Comunista
(i.e. "ter substituido a ditadura dos Sovietes pela ditadura de nosso partido"). Ele
argumenta que "pode ser dito com completa justiça que a ditadura dos Sovietes tornou-
se possível apenas através da ditadura do partido" quando o "poder do partido"
substituiu o poder da classe trabalhadora. O partido "proporciona aos Sovietes a
possibilidade de sair da condição de parlamento disforme de trabalhadores para
transformar-se em aparato da supremacia do trabalho". Ele continua argumentando:
"Mas onde está nossa garantia, certos homens sábios nos perguntam, se é justamente
nosso partido que expressa os interesses do desenvolvimento histórico? Destruindo ou
dirigindo secretamente os outros partidos, você se vê livre de competições políticas, e
consequentemente você priva a si mesmo da possibilidade de testar sua linha de ação.
"Esta idéia é ditada por uma concepção puramente liberal do curso da revolução. Em
um período em que todo antagonismo assume uma característica aberta, a força
política rápidamente passa para uma guerra civil, o partido dirigente tem suficiente
suporte material para testar sua linha de ação. Sem a possibilidade de circulação dos
jornais menshevikes. Noske esmaga os comunistas, mas eles crescem. Nós acabamos
com os menshevikes e os SRs -- e eles desapareceram. Este critério é suficiente para
nós". [_Communism and Terrorism_]
Um critério interessante, para dizer o máximo. Essa errônea lógica que expõe com
relação a Petrogrado e Kronstadt tem uma longa história. Por esta mesma lógica Hitler
expressou os "interesses do desenvolvimento histórico" quando os comunistas alemães e
os trotskystas "desapareceram" em desabalada carreira para salvar seus trazeiros.
Similarmente, o número de trotskystas na Rússia "desapareceram" sob Stalin. Dizer
isso é uma justificação do stalinismo? Tudo isso prova apenas e tão somente o poder de
um sistema repressivo — aquela passividade dos trabalhadores de Petrogrado durante a
revolta de Kronstadt tem a ver com o poder do regime bolshevike e não com a base
classista da revolta.
"os bolshevikes, com todas suas falhas, foram a mais efetiva barreira contra a
ressurgencia branca e a queda da revolução".
Por essas razões, as greves em Petrogrado estavam fadadas a uma breve existencia. Na
verdade, elas terminaram tão rápido quanto começaram, nunca chegariam ao ponto de
uma revolta armada contra o regime". [Lenin and Trotsky, Op. Cit., pp. 24-35]
Este "além disso" no primeiro parágrafo prepara o caminho para o que virá pela frente.
Avrich relaciona mais algumas razões que não constam na lista de Frank. Aqui está o
que Avrich realmente lista como as razões para o fim da onda de greves:
"Por essas razões, as greves em Petrogrado estavam fadadas a uma breve existencia.
Na verdade, elas terminaram tão rápido quanto começaram, nunca chegariam ao
ponto de uma revolta armada contra o regime". [Paul Avrich, Kronstadt, pp. 49-51]
Como pode ser visto, Frank "salta" a maioria dos argumentos de Avrich e a base de
suas conclusões. Na verdade, aquilo que Frank chama de "conclusão" de Avrich não
pode ser compreendida como, conforme Frank faz, a última razão que Avrich dá para
ela.
Conforme pode ser visto, qualquer tentativa de usar a relativa inação dos trabalhadores
de Petrogrado como evidência da natureza classista da revolta só pode ser feita
ignorando todos os fatos relevantes da situação. Isto pode ser feito selecionando
citações de passágens acadêmicas para apresentar uma conclusão radicalmente falsa e
diferente daquela que o autor apresentou.
"Os brancos, embora com seus exércitos derrotados no campo, não estavam extintos —
como revelou o levante dos emigrantes de Kronstadt . . . Eles planejaram um levante
em Kronstadt e o Centro Nacional Branco arrecadou um total próximo a 1 milhão de
francos franceses, 2 milhões de marcos finlandeses, £5000, $25,000 e 900 tonelas de
provisões em apenas duas semanas; Na verdade, o Centro Nacional já planejava
mobilizar forças da marinha francesa e do general Wrangel, que tinha sob seu
comando 70.000 homens na Turkia, para desembarcar em Kronstadt se a revolta fosse
bem sucedida". [Op. Cit., pp. 63-4]
Para sustentar seus argumentos, Rees novamente apela para o livro de Paul Avrich. Nós,
novamente, consultamos aquela obra para verificar esse argumento. Primeiramente,
observamos que Petrichenko contatou Grimm pela "fome em Kronstadt . . . crescer
desesperadamente". [Avrich, Op. Cit., p. 121] Se a revolta tivesse se alastrado por
Petrogrado com a adesão dos trabalhadores, tais pedidos teriam sido desnecessários. O
isolamento não ocorreu devido "à realidade do balanceamento das forças de classe" ele
ocorreu pela realidade das forças coercitivas — o sucesso dos bolshevikes em reprimir
as greves de Petrogrado e difamarar a revolta de Kronstadt (veja seção H.5.5).
Em segundo lugar, conforme dito acima, a revolta de Kronstadt explodiu meses após o
fim da Guerra Civil na Rússia Ocidental. Wrangel fugiu da Crimea em novembro de
1920. No começo de 1921 os bolsheviques já não temiam uma invasão branca tanto que
desmobilizaram metade do Exército Vermelho (cerca de 2.500.000 homens). [Paul
Avrich, Op. Cit., p. 13]
"Em vez de retomar uma política de intervenção na Guerra Civil, tornou-se surdo a
esses apelos. Fora seus esforços na campanha para levantamento de fundos, os
emigrantes procuravam ajuda de Entene. . . do governo dos Estados Unidos. As
perspectivas de ajuda britânica eram precárias . . . A maior esperança de ajuda
estrangeira vinha da França . . . [mas] a França recusava-se interferir tanto política
como militarmente na crise". [Op. Cit., pp. 117-9]
Além disso, esses governos tinham que levar em conta a classe trabalhadora de seus
países. Era duvidoso que depois de todos aqueles anos de guerra, fossem capazes de
interferir, particularmente quando havia uma clara revolta socialista se desenvolvendo a
partir das bases. A classe trabalhadora, em tal situação, teria impedido uma intervenção.
O único perigo real para o poder bolshevike era interno — representado pelas
exigências dos trabalhadores e camponeses. Alguns dos ex-soldados pretendiam se unir
às forças guerrilheiras camponesas, enfrentando os repressivos (e contra produtivos)
esquadrões de confisco de mantimentos. Na Ukrania, os bolshevikes estavam
enfrentando os remanecentes do exército Mackhovista (uma iniciativa, incidentalmente,
tomada pelos próprios bolshevikes traindo os acordos feitos com as forças anarquistas
que passaram a ser atacadas assim que Wrangel fora derrotado).
Na verdade, em sua análise do "balanço das forças de classe", Rees falha em mencionar
qual classe detinha o poder real (e privilégios) na Rússia daquele tempo — o estado e a
burocracia do partido. A classe trabalhadora e os camponeses estavam oficialmente
enfraquecidos. A única influência que exerceram nesse "estado dos trabalhadores" foi
quando se rebelaram, forçando o estado a fazer concessões ou a reprimi-los (algumas
vezes ambos aconteceram). A balança das forças de classe estava entre os
trabalhadores e os camponeses por um lado e a burocracia governante por outro. Ignorar
este fator significa não compreender os problemas enfrentados pela revolução.
Diante do slogan chave levantado pelo povo de Kronstadt (pediam todo poder aos
sovietes e não para os partidos, que Rees distorceu para "sovietes sem partidos") é
difícil concordar com Rees de que sem a ditadura dos bolshevikes os brancos
inevitavelmente tomariam o poder. Afinal das contas, os encontros de Kronstadt
possuiam terço de delegados comunistas.
Além disso, a lógica do argumento de Rees tem um duplo sentido. Ele defende, por um
lado, que os bolshevikes representam a "ditadura do proletariado". Por outro, ele
defende que nas eleições dos sovietes livres os bolshevikes seriam substituídos por
"socialistas moderados" (e eventualmente os brancos). Em outras palavras, isso
significa que os bolshevikes, na verdade, não representavam a classe trabalhadora russa
e sua ditadura foi sobre o proletariado e não do proletariado. O argumento básico de
Rees, portanto, é falho. Rees e seus amigos trotskystas, na verdade, querem nos fazer
crer que a ditadura não se tornou corrupta e burocrática, mas que ela poderia funcionar
no interesse de seus súditos e, portanto, reformar-se a si mesma. Ao passo que qualifica
o povo de Kronstadt de "utopicos"!
"A realidade de tais ações causou um grande sofrimento por toda a Rússia. O regime
ficou privado de matérias primas e combustivel, as redes de transporte foram
destruídas, e começou a faltar alimento nas cidades. Em 1919 o regime tinha apenas
10% do combustível disponível de 1917, e a produção de minério de ferro no mesmo
ano chegou a l,6% dos níveis de 1914. Em 1921 Petrogrado perdera 57% de sua
população e Moscou 44,5%. Os trabalhadores quando não estavam mortos na linha de
frente da guerra civil, perambulavam famintos pela cidade. Aquela força que tornara a
revolução possível fora dizimada. . .
"O regime na Rússia tinha diante de si duas alternativas, ou esmagar o levante e salvar
a revolução, ou render-se ao levante e proporcionar às forças da reação marchar sob
sua retaguarda. Não havia nenhuma base material para uma terceira opção. Uma
economia e infraestrutura destroçados, uma população pressionada pela fome e pela
guerra sangrenta, e um mundo hostil que não possibilitava nenhum avanço à
revolução. Grandes esforços foram feitos para resolver estes problemas. Não havia
nenhuma solução de última hora e era crucial preservar o regime revolucionário.
Soluções reais de emergência seriam encontradas apenas se a revolução se espalhasse
internacionalmente, mas até lá para ter alguma chance de sucesso o regime teria que
sobreviver. Apenas a direita e o poder imperialista se beneficiariam desta destruição".
["Anarchy in the UK?", Socialist Review, no. 246, novembro 2000]
"Camaradas e cidadãos, nosso país está passando por momentos difíceis. Por tres anos
seguidos, a fome, o frio e o caos econômico nos cercaram como um firme alçapão. O
Partido Comunista que governa o país está alienado das massas e provou sua
incompetência em resgatá-la deste estado de ruína generalizada . . . Todos os
trabalhadores, marinheiros e soldados hoje podem claramente ver que apenas esforços
concentrados, apenas uma determinação concentrada das pessoas pode permitir ao
país alimento, madeira e carvão, pode vestir e calçar o povo e resgatar a República do
impasse em que se encontra". [citado em No Gods, No Masters, vol. 2, p. 183]
Mais tarde destaca que a "nova revolução será a alvorada das massas trabalhadoras do
Oriente e do Ocidente. Isso proporcionará um exemplo de sadia construção socialista
oposta à mecânica da construção 'comunista' governamental". [Op. Cit., p. 194] No
Kronstadt Isvestia de 8 de março lia-se:
"No que diz respeito a Kronstadt sua pedra fundamental esta escorada na Terceira
Revolução. Estas muralhas quebrarão definitivamente as cadeias que prendem as
massas trabalhadoras e abrirá novos caminhos para a criação socialista". [citado por
Ida Mett, Op. Cit., p. 80]
Na verdade, esta onda de greves refuta a alegação de Stack de que "Os trabalhadores
quando não estavam mortos na linha de frente da guerra civil, perambulavam famintos
pela cidade. Aquela força que tornara a revolução possível estava dizimada".
Evidentemente, um considerável percentual de trabalhadores estava trabalhando e não
morto no front ou perambulando pelas cidades. Conforme discutiremos abaixo,
aproximadamente um terço dos trabalhadores das fábricas permaneceram em
Petrogrado enquanto que a população trabalhadora urbana de toda a Rússia reduziu-se a
menos de 50%. [Avrich, Op. Cit., p. 24] Em outras palavras, a classe trabalhadora
permanecia viva e capaz de organizar a si própria organizando greves e preparando
encontros. O fato, naturalmente, é que a maioria daqueles que compunham a classe
trabalhadora não tinham eleito os comunistas através de eleições em sovietes livres.
Tais considerações políticas tem que ser levadas em conta diante dos argumentos de
Stack.
"O povo simples trabalhador vê tudo. Enchergam longe . . . vêem como na escala de
valores da política do governo eles ocupam o último lugar . . . Todos nós sabemos que
os problemas domésticos não podem ser resolvidos em poucos meses, ou mesmo anos, e
que devido à nossa pobreza, não se chega a nenhuma solução sem que antes
enfrentemos sérias dificuldades. Mas o fato do contínuo aumento das desigualdades
entre os grupos privilegiados da população da Rússia Soviética e o restante do povo
comum da classe trabalhadora, 'a viga-mestra da ditadura', provoca e alimenta a
insatisfação.
"O povo simples trabalhador vê como o funcionário público Soviético vive e como o
homem comum vive. Como o homem prático vive e como o funcionário público vive . . .
[Alguém pode dizer] 'Não podemos atender a todos; agradeça por não estar no front
militar'. Quando é necessário fazer reparos nas casas ocupadas pelas instituições
soviéticas, eles são capazes de encontrar [prontamente] tanto o material como a mão
de obra". [Alexandra Kollontai, The Workers’ Opposition, p. 10]
E tudo isso acontecia sob a aspereza das condições materiais enfrentadas pela Rússia
naquele tempo, sem falar na burocracia que se aproveitava de sua posição para tomar
recursos para si. Na verdade, parte dos fatores que resultaram em Kronstadt foram
devidos "a privilégios e abusos de comissários, funcionários do partido e funcionários
dos sindicatos que recebiam rações especiais, privilégios e casas". [Getzler, Op. Cit., p.
210] Stack também falha quando além de não mencionar estas coisas ainda insiste na
necessidade de defender um "estado de trabalhadores" no qual os trabalhadores são
desprovidos de poder e onde proliferam os abusos. Se alguém está desligado da
realidade, é ele mesmo! Ciliga escreveu:
"O Governo Soviético e a alta esfera do Partido Comunista aplicaram suas próprias
soluções [para os problemas enfrentados pela revolução] aumentando o poder da
burocracia. As atribuições dos sovietes foram assumidas pelos 'comitês executivos', a
ditadura da classe foi substituída pela ditadura do partido, a autoridade dos membros
do partido foi substituída pela autoridade da estrutura do partido, o poder dos
trabalhadores nas fábricas foi substituída pelo exclusivo poder da burocracia - fazer
todas estas coisas significava 'salvar a Revolução!' [. . .] A burocracia frustrou a
restauração burguesa . . . eliminando o caráter proletário da revolução". [Op. Cit., p.
331]
À luz destes fatos, é significativo que, em sua listagem dos ganhos revolucionários de
outubro de 1917, Stack falhe não mencionando aquilo que os anarquistas consideram
mais importante, o poder, a democracia e os direitos dos trabalhadores. Mas,
novamente, os bolshevikes, em vez de garantir e fortalecer o poder, a democracia e os
direitos dos trabalhadores, preferiram sacrificá-los para assegurar aquilo que
consideravam mais importante, o poder estatal (veja seção H.5.15 para uma mais
completa discussão desse assunto). Novamente, a imágem da revolução prevalece sobre
seu conteúdo!
Quando Stack argumenta que foi necessário esmagar Kronstadt para "salvar a
revolução" e "preservar o regime revolucionário" somos forçados a perguntar: salvar e
preservar o quê? A ditadura e os decretos dos líderes "Comunistas"? O poder do
partido? Sim, suprimindo Kronstadt, Lenin e Trotsky salvaram a revolução, salvaram a
revolução para Stalin. Dificilmente alguém se orgulharia disso.
A questão para os anarquistas, como para os marinheiros de Kronstadt, era quais seriam
as pré-condições necessárias para esta reconstrução. Poderia a Rússia ser reconstruída
no caminho socialista debaixo de uma ditadura que esmagou cada sinal de manifestação
da classe trabalhadora e da ação coletiva? Sem qualquer sombra de dúvida, conforme
Kronstadt mostrou, nenhuma outra coisa a não ser a reintrodução da democracia e do
poder dos trabalhadores traria à tona a expressão do poder criativo das massas e seu
interesse pela reconstrução do país. A continuação da ditadura do partido não levaria a
outra coisa exceto a escravidão da classe trabalhadora:
A revolução russa enfrentou crises econômicas durante os anos de 1917 e 1918, mas
durante estes anos em lugar algum encontramos os trotskystas argumentando que a
democracia soviete era impossível (evidentemente, os bolshevikes tornaram a
democracia soviete impossível pela supressão dos sovietes que elegiam pessoas
"erradas" a partir do início de 1918). Por fim, os argumentos de Stack (e de outros como
ele) são tais que ignoram a "realidade material" qualificando o estado de Lenin como
um "regime revolucionário" e que a reconstrução não poderia se dar de outra forma a
não ser através de uma burocracia privilegiada e sem a ativa participação da classe
trabalhadora. Os problemas enfrentados pela classe trabalhadora russa foram
dificultados ao extremo, mas eles jamais seriam resolvidos com alguém impedindo que
milhares de trabalhadores levassem em frente uma ação de greve por todo o território da
Rússia naquele tempo: "E se o proletariado estava tão exaurido como é virtualmente
pode ser capaz de articular uma greve geral nas maiores cidades e nos centros mais
altamente industrializados?" [Ida Mett, Op. Cit., p. 81]
Se há alguma "realidade material" ela é ignorada por Stack, não pelos anarquistas ou
pelos rebeldes de Kronstadt. Tanto os anarquistas quanto o povo de Kronstadt
reconheceram que o país estava diante de um medonho dilema e que um enorme esforço
seria requerido para sua reconstrução. A base material daquele tempo oferecia duas
possibilidades de reconstrução — por cima ou pela base. Tal reconstrução poderia ter
uma natureza socialista apenas se envolvesse uma participação direta das massas
trabalhadoras determinando o que era necessário e como deveria ser feito. Em outras
palavras, o processo tinha que começar pela base, coisa que nenhum comitê central
utilizando uma ínfima fração do poder criativo do país poderia levar a cabo. Essa
reconstrução burocrática, faria surgir uma sociedade onde poucos seriam beneficiados.
E foi, naturalmente, exatamente isso que aconteceu.
John Rees junta-se a seus amigos membros do partido argumentando que a base da
classe trabalhadora no estado dos trabalhadores tinha se "desintegrado" em 1921. A
classe trabalhadora fora reduzida "a uma massa individualizada, atomisada, uma fração
de seu tamanho original, e não mais capacitada a exercer o poder coletivo da mesma
forma que fazia em 1917." A "burocracia do estado dos trabalhadores elevou-a a seu
ponto culminante, a base da classe ficou corroída e desmoralizada". [Op. Cit., p. 65]
Rees afirma que Kronstadt foi "utópica" na medida em que "voltou seus olhos para as
instituições de 1917 quando a classe que tornou tais instituições possíveis perdeu a
capacidade coletiva para dirigir a vida política". [Op. Cit., p. 70]
Existem dois problemas com esse tipo de argumento. O primeiro envolve problemas
factuais. O segundo envolve problemas ideológicos. Vamos analisar um de cada vez.
Os problemas factuais são claros. Em fevereiro de 1921 por toda a Rússia, a classe
trabalhadora entrava em greve, organizando encontros e manifestações. Em outras
palavras, praticando a ação coletiva com base em reivindicações coletivamente
acordadas em reuniões nos locais de trabalho. Uma fábrica enviava delegados para
outras, incentivando-as a se juntarem ao movimento que logo se transformou em uma
greve geral em Petrogrado e Moscou. Em Kronstadt, os trabalhadores, soldados e
marinheiros deram um passo adiante e organizaram uma conferencia de delegados.
Qualquer afirmação de que a classe trabalhadora não tinha nenhuma capacidade para a
ação coletiva torna-se inválida diante de tais fatos.
Diante de tais fatores, é bastante provável que a real razão da supressão da democracia
soviete, da liberdade e dos direitos políticos foi o fato dos bolshevikes saberem que
seriam derrotados em eleições livres caso elas fossem implementadas. Como podemos
notar na seção H.5.15, eles tiveram a cautela de dispersar os sovietes com as maiorias
não-bolsheviques antes do começo da guerra civil. Com efeito, os bolshevikes
exerceriam a ditadura do proletariado à revelia e acima da vontade do proletariado caso
fosse necessário.
Assim, por não serem convincentes, os argumentos de Stack caem por terra um a um.
Conforme notamos, seus gurus ideológicos claramente argumentaram que era
impossível uma revolução sem guerra civil e exaustão econômica. Lamentavelmente, os
meios para mitigar os problemas da Guerra Civil e as crises econômicas (com o poder e
a autogestão dos trabalhadores) inevitavelmente entraram em conflito com o poder do
partido e não podiam ser encorajados. Se o bolshevismo não podia conciliar os
inevitáveis problemas da revolução e manter seus principios declarados (democracia e
poder soviete) então isso claramente não funcionaria e deveria ser evitado. Em outras
palavras, o argumento de Stack representa mais a truculencia da ideologia bolshevike do
que um argumento sério contra a revolta de Kronstadt.
A "terceira revolução" era uma alternativa real para
Kronstadt?
Na última seção discutimos o argumento de que o país estava exaurido utilizado para
justificar a repressão bolshevike contra Kronstadt. Tal argumento encontra sua mais
clara expressão em Victor Serge:
"O país estava exaurido e a produção praticamente paralizada; não havia estoque de
espécie alguma, nem mesmo no coração das massas havia reserva de resistencia. A
elite da classe trabalhadora moldada na luta contra o velho regime fora literalmente
dizimada. O Partido, inchado pelo influxo da sêde pelo poder, inspirava pouca
confiança . . . À democracia soviete faltava liderança, instituições e inspiração . . .
"A contra-revolução popular traduziu a demanda por sovietes livremente eleitos, por
um 'soviete sem comunistas'. Se a ditadura bolshevike caisse, seria apenas o primeiro
passo em direção ao caos, e pelo caos viria o levante camponês, o massacre dos
comunistas, o retorno dos emigrantes, o fim, e esta mudança forçaria a vinda de outra
ditadura, um tempo anti-proletário". [_Memoirs of a Revolutionary_, pp. 128-9]
Quão viável poderia ser esta alternativa? A ditadura soviética poderia mesmo reformar a
si mesma? A história dá a resposta com a subida de Stalin.
Ironicamente, Rees argumenta que a burocracia stalinista não poderia trair a revolução
sem "capturar o poder armado contra-revolucionário" (e portanto "sem lei marcial,
sem toque de recolher ou sem batalhas nas ruas") por causa da "atomização da classe
trabalhadora". Todavia, essa atomização foi produto das atividades contra-
revolucionárias de Lenin e Trotsky em 1921 quando reprimiram as greves e esmagaram
Kornstadt através da lei marcial, do toque de recolher e das batalhas nas ruas. Os
trabalhadores não tinham qualquer interesse em uma burocracia que os governasse,
explorasse e os tornasse passivos. Rees falha em não ver que o golpe stalinista
simplesmente foi construído sobre a plataforma contra-revolucionária de Lenin. A lei
marcial, o toque de recolher e as batalhas de rua ocorreram em 1921, não em 1928. A
subida do stalinismo foi a vitória de uma nova classe burocrática sobre outra.
Quanto à idéia de que uma revolução externa regeneraria a burocracia soviética, isto
também foi fundamentalmente uma utopia. Nas palavras de Ida Mett:
"Ninguém que sinceramente defende a linha de Lenin pode sustentar a idéia de 'dois
partidos' ou jogar com a possibilidade de uma cisão. Apenas aqueles que desejam
substituir o método de Lenin por algum outro pode advogar uma divisão ou um
movimento ao longo de uma rua de duas direções.
"Lutaremos com todo nosso poder contra a idéia de dois partidos, porque a ditadura do
proletariado exige como seu verdadeiro miolo um único partido proletário. Isso exige
um só partido. Isto exige um partido proletário — que é, um partido cuja política é
determinada pelos interesses do proletariado e conduzido pelo núcleo proletário. A
correção da linha de nosso partido, o aperfeiçoamento de sua composição social —
não é uma rua de duas direções, mas o fortalecimento e a garantia de sua unidade
como partido revolucionário do proletariado".
Tudo isso significa que a política do "estado dos trabalhadores" precisa ser
determinado por algum outro (não específico) grupo e não pelos trabalhadores. Quem
pode garantir que este outro grupo realmente sabe o que é do interesse do proletariado?
Ninguém, naturalmente. Qualquer decisão democrática pode ser ignorada quando
aqueles que determinam a política consideram que as manifestações do proletariado não
estão de acordo "com os interesses do proletariado".
Foi isto que Trotsky fez quando argumentou contra a facção oposição dos
trabalhadores do Partido Comunista que desejava reintroduzir alguns elementos de
democracia na Décima Conferência no tempo do levante de Kronstadt. Conforme ele
destaca, eles "chegaram com slogans perigosos. Fizeram dos princípios democráticos
um fetiche. Eles colocaram o direito dos trabalhadores elegerem representantes acima
do partido. Como se o Partido não fosse capacitado para exercer sua ditadura
esmagando os humores passageiros da democracia de trabalhadores!" Ele continua
afirmando que o "Partido é obrigado a manter sua ditadura . . . indiferente às
vacilações temporárias que surgem da classe trabalhadora . . . A ditadura não se
baseia em si mesma num determinado momento de um princípio formal de uma
democracia de trabalhadores". [citado por M. Brinton, _The Bolsheviks and Workers’
Control_, p. 78]
Diante disso a chamada por democracia é totalmente anulada por outros argumentos na
Plataforma, argumentos que logicamente eliminam a democracia resultando em atos
como o massacre de Kronstadt (veja também a seção H.5.15).
A questão que, naturalmente, vem à tona é como a democracia pode ser introduzida em
sovietes e sindicatos quando a ditadura do partido é essencial para a "realização" da
ditadura do "proletariado" e onde pode haver apenas um partido? Que acontece se o
proletariado vota por algo diverso (como ocorreu em Kronstadt)? Se a ditadura do
"proletariado" é impossível sem a ditadura do partido então, claramente, a democracia
proletária torna-se sem sentido. Tudo o que os trabalhadores poderiam fazer seria votar
nos membros do mesmo partido, todos aqueles que desobedecessem a disciplina do
partido seriam expulsos pelas ordens da liderança do partido. Em outras palavras, o
poder repousa na hierarquia do partido e definitivamente não na classe trabalhadora,
seus sindicatos ou seus sovietes (não passam de meros figurantes submissos ao governo
do partido). Em suma, a única garantia fornecida pela ditadura do partido é governar no
interesse do proletariado, que por sua vez confia nas boas intenções do partido.
Contudo, alienada da vontade real das massas, tal garantia torna-se imprestavel —
como a história revela.
Ele argumenta, por exemplo, que o soviete urbano "tem perdido importancia nos anos
recentes. Isto reflete sem dúvida um deslocamento na relação das forças de classe em
desvantágem para o proletariado". De fato, os sovietes perderam sua importancia
imediatamente após a revolução de outubro (veja seção H.5.9 para detalhes). O
"deslocamento" na relação das forças de classe começou imediatamente após a
revolução de outubro, quando os ganhos reais de 1917 (i.e. a democracia soviete, os
direitos dos trabalhadores e a liberdade) foram paulatina e resolutamente eliminados
pela classe burocrática formada em torno do novo estado — uma classe que procurava
justificar suas ações proclamando que aquilo que fazia era no "interesse" das massas
cuja vontade ignorava.
Em relação ao próprio Partido Comunista, ele o qualifica como ("em ação e não em
palavras") "um regime democrático. Que age através de táticas administrativas. Que
impede a perseguição e expulsão daqueles que exercem opiniões independentes sobre
as questões do partido". Nenhuma menção, naturalmente, às táticas usadas por Lenin e
Trotsky contra os dissidentes esquerdistas depois da revolução de outubro.
A esquerda comunista nos princípios de 1918 estava sujeita a tais pressões. Por
exemplo, eles foram expulsos pelas posições adotadas no Conselho Supremo de
Economia em março de 1918. Depois que apresentaram seus pontos de vista passaram a
ser perseguidos por Lenin "uma manobra feita em Leningrado obrigou o Kommunist
[seu jornal] a transferir sua publicação para Moscow . . . Depois que o assunto
apareceu pela primeira vez no jornal uma reunião feita às pressas pela Conferência do
Partido em Leningrado produziu uma maioria favorável a Lenin e 'obrigaram os
simpatizantes do Kommunist a por um fim em sua atividade dissidente'". O jornal ainda
teve quatro edições, sendo que a última teve que ser publicada como jornal privado de
facção. Esta edição referia-se à alta pressão dirigida contra eles pela direção do Partido,
sustentada por um boicote implementado pela imprensa e pelos pronunciamentos dos
líderes do Partido. [Maurice Brinton, Op. Cit., pp. 39-40]
Similarmente, tres anos depois a oposição dos trabalhadores também passou por essa
experiência. No Décimo Congresso do partido, A. Kollontai (autor da plataforma
trotskysta) denunciou que a circulação de seu panfleto havia sido deliberadamente
impedida. Foi considerada irregular pelo Comitê do Partido em Moscou, que
imediatamente votou uma resolução censurando públicamente a organização de
Petrogrado 'por não observar as regras relativas a controvérsias'."O sucesso da facção
leninista no controle da máquina do partido foi tal que 'provavelmente utilizaram o
artifício da fraude'". [Brinton, Op. Cit., p. 75 e p. 77] O testemunho de Victor Serge
sugere que uma votação fraudulenta garantiu a vitória de Lenin no debate do sindicato.
[_Memoirs of a Revolutionary_, p. 123] O próprio Kollontai menciona (no começo de
1921) que camaradas que "manifestarem desacordo com os decretos que venham de
cima serão reprimidos". [The Workers’ Opposition, p. 22]
A plataforma trotskysta declara que "a morte da democracia interna conduz à morte da
democracia dos trabalhadores em geral — nos sindicatos, e em todas as organizações
de massa não partidárias". De fato, essa causa é factualmente correta. A morte da
democracia dos trabalhadores geralmente precede à morte da democracia interna. A
ditadura do partido necessita esmagar a "ditadura democrática das massas
trabalhadoras e dos camponeses pobres". A ditadura do partido substitui a classe
trabalhadora, eliminando a democracia pela ditadura do partido único, democracia que o
partido precisa fazer definhar. Se os trabalhadores pudessem entrar no partido e
influenciar sua política então os mesmos problemas que surgem nos sovietes e nos
sindicatos apareceriam no partido (i.e. a escolha de políticas e de pessoas "erradas"). Por
isso necessitam uma centralização no poder dentro do partido tanto quanto nos sovietes
e nos sindicatos, tudo em detrimento da participação do povo simples e da massa
trabalhadora.
Assim, pois, o argumento de que Kronstadt foi uma "utopia" é falso. A terceira
revolução era a única real alternativa à Russia bolshevike. Qualquer luta que surgisse de
baixo nos anos pós 1921 enfrentaria os mesmos problemas que Kronstadt enfrentou, a
democracia soviete sendo suprimida pela ditadura do partido. Uma vez que a esquerda
opositora havia subscrito os "princípios leninistas" da "ditadura do partido", eles
jamais poderiam apelar para as massas nem tampouco decidir por elas. Todos os
argumentos dirigidos contra a democracia soviete em Kronstadt de conduzirem uma
contra-revolução são igualmente aplicáveis àquele movimento que invocava, segundo
Rees, a classe trabalhadora russa.
John Rees, por exemplo, afirma que o povo de Kronstadt lutava por "sovietes sem
partidos". Na verdade, ele faz essa afirmativa duas vezes em uma única página. [Op.
Cit., p. 63] Pat Stack vai mais longe ao afirmar que a "exigencia central do levante de
Kronstadt era 'sovietes sem bolshevikes'‚ em outras palavras, a completa destruição do
estado dos trabalhadores". ["Anarchy in the UK?", Socialist Review, no. 246,
November 2000] Ambos autores mencionam o livro Kronstadt 1921 de Paul Avrich em
seus artigos. Vamos olhar a fonte:
"'Sovietes Sem Comunistas' não foi, como é sustentado tanto por escritores soviéticos
como não-soviéticos, um slogan de Kronstadt". [_Kronstadt 1921_, p. 181]
Quando o povo de Kronstadt brada "todo poder para os sovietes não para os partidos"
eles distorcem para "sovietes sem partidos". Não se pretendia excluir os partidos
políticos dos sovietes, mas simplesmente impedir que os sovietes fossem dominados e
substituídos por eles. Conforme Avrich destaca, o programa de Kronstadt "tinha um
lugar para os bolshevikes nos sovietes, ao lado de outras organizações esquerdistas . . .
comunistas . . . [todos] participando vigorosamente da conferencia eleita de delegados,
fato que Kronstadt considerava como uma característica dos sovietes livres com os
quais sonhava". [Ibid.] O índice da obra de Avrich habilmente inclui esta página, sob o
adequado título "sovietes: 'sem comunistas'".
Rees tenta sugerir que os culpados pelo massacre implementado pelos bolshevikes são
os próprios marinheiros. Ele argumenta que "em Petrogrado, Zinoviev já tinha
essencialmente retirado os aspectos mais detestaveis da guerra comunista em resposta
às greves". Desnecessário dizer que Zinoviev não retirara os aspectos políticos da
guerra comunista, mas apenas os econômicos e, como a revolta de Kronstadt era
principalmente política, tais concessões não foram suficientes (na verdade, a repressão
dirigida contra os direitos dos trabalhadores, a oposição socialista e os grupos
anarquistas aumentou). Ele afirma que a "resposta" do povo de Kronstadt a essas
concessões está contida em _What We Are Fighting For_" e destaca a seguinte
passágem:
"não há nenhum meio termo na luta contra os comunistas . . . Eles procuram aparentar
fazer concessões: removeram destacamentos de bloqueio e alocaram 10 milhões de
rublos na província de Petrogrado para a compra de alimentos . . . Mas não vamos nos
deixar enganar . . . Não há meio termo. Vitória ou morte!"
Só que Rees falha em informar a seus leitores que isso foi escrito em 8 de março, após o
início das operações militares pelos bolshevikes (na noite anterior). Além do mais, o
fato é que a "resposta" claramente determina que "sem um único tiro, sem uma gota de
sangue, o primeiro passo fora dado [da "Terceira Revolução"]. Os trabalhadores não
precisam de sangue. Eles farão isso apenas em caso de legítima defesa", isto não é
mencionado. [Avrich, Op. Cit., p. 243] Em outras palavras, os marinheiros de Kronstadt
reafirmaram seu comprometimento com uma revolta não violenta. Qualquer violência
de sua parte seria em legítima defesa contra as ações bolshevikes. Você não vê nada
disso na obra de Rees.
Outro membro da SWP, Abbie Bakan, afirma que, por exemplo, "mais de três quartos
dos marinheiros" de Kronstadt "eram recrutas recentes de orígem camponesa" mas não
fornece a fonte de tal estatística. ["A Tragic Necessity", Socialist Worker Review, no.
136, November 1990, pp. 18-21] Conforme notamos na seção H.5.8, tal afirmativa é
falsa. A fonte provável para tal afirmativa é Paul Avrich, que relata que de acordo com
dados oficiais, mais de três quartos dos marinheiros eram de origem camponesa mas
Avrich em nenhum momento diz que eles eram todos recrutas recentes. Embora
afirmasse ter uma "pequena dúvida" se a Guerra Civil produzira "alta rotatividade" e
que muitos veteranos foram substituidos por recrutas vindos das áreas rurais, ele não
indica que todos aqueles marinheiros vindos do campo eram novos recrutas. O que ele
destaca é que "sempre houve um grande e obstinado elemento camponês entre os
marinheiros". [Op. Cit., pp. 89-90]
Além do mais, a verdade é que o "pior veneno dos rebeldes de Kronstad era dirigido
contra Trotsky e Zinoviev" mas não porque eles eram, conforme Bakan afirma,
"tratados como bode expiatório de judeus". Não há qualquer referência étnica nas
reivindicações dos marinheiros de Kronstadt. Em vez disso o que se vê em seus ataques
são fortes razões políticas. Conforme Paul Avrich argumenta, "Trotsky em particular
foi o símbolo vivo da guerra comunista, contra qual cada marinheiro tinha se rebelado.
Seu nome estava associado à centralização e militarização, à disciplina férrea e
arregimentação". Quanto a Zinoviev, ele diz "atraiu sobre si a ira dos marinheiros
representando o chefe do partido que havia reprimido os trabalhadores em greve e que
tomou suas próprias famílias como réfens". Boas razões para atacá-los e nenhuma delas
relacionada ao fato deles serem judeus. [Op. Cit., p. 178 and p. 176]
Bakan afirma que as "exigencias dos marinheiros de Kronstadt refletiam as idéias das
seções mais atrasadas dos camponeses". Conforme pode ser visto na seção H.5.5, tal
comentário não pode ser considerado devido às reais exigências da revolta (que,
naturalmente, ele não relaciona). Quais idéias estão contidas nessas exigências das
"seções mais atrasadas dos camponeses"? Eleições livres nos sovietes, liberdade de
expressão e de imprensa para os trabalhadores e camponeses, direito de assembléia,
liberdade sindical e de organização camponesa, conferência de trabalhadores, soldados e
marinheiros, libertação de todos os trabalhadores e camponeses prisioneiros políticos,
igualdade na distribuição das rações, liberdade de ação para os camponeses desde que
não empreguem trabalho assalariado, e daí por diante. Em outras palavras, tais
reivindicaçõs podem ser encontradas na maioria dos programas dos partidos socialistas
e foram, de fato, um elemento chave na retórica bolshevike em 1917. E, naturalmente,
todos os aspectos políticos das exigencias de Kronstadt refletem aspectos chaves da
Constituição Soviética. Quanto "atraso" pode ser encontrado!
Além de tudo, o artigo de Bakan revela o nível de baixaria a que podem chegar os
defensores do leninismo quando discutem a rebelião de Kronstadt. Tristemente,
conforme indicamos muitas e muitas vezes, não se trata de um caso isolado.
Trotsky disse que o "slogan de Kronstadt" era "sovietes sem comunistas". [Lenin e
Trotsky, Kronstadt, p. 90] Isso, evidentemente, é factualmente incorreto. O slogan de
Kronstadt era "todo poder para os sovietes não para os partidos" (ou "sovietes livres").
Com base em sua asserção errônea, Trotsky argumenta o seguinte:
Lógica interessante. Vamos supor que o resultado de eleições livres implicasse no fim
da "liderança" bolshevike (i.e. ditadura), como parece ter acontecido. O que Trotsky
defende é que a utilidade em permitir que trabalhadores elejam representantes é
"apenas servir como uma ponte para a ditadura do proletariado"! Este argumento foi
dito (em 1938) como um objetivo geral e não em termos dos problemas enfrentados
pela Revolução Russa em 1921. Em outras palavras Trotsky claramente defende a
ditadura do partido contrastando-a com a democracia soviete. Um repúdio ao lema
"Todo Poder aos Sovietes"!
Na verdade, Trotsky não temia explicitar tais afirmativas naquela ocasião. Conforme
destacamos na seção H.5.13, a oposição esquerdista baseava-se no "princípio leninista"
("que nenhum bolshevike poderia violar") de que "a ditadura do proletariado é e pode
ser realizada apenas através da ditadura do partido". Trotsky destacou dez anos mais
tarde que a classe trabalhadora como um todo não poderia determinar a política nesse
"estado dos trabalhadores" (que revela sua crença na ditadura do partido único como
um estágio inevitável da revolução "proletária"):
"Não pode haver nenhum campo comum entre estas duas abordagens. O autoritário
defende que a abordagem libertária embora nobre é 'utópica' e está desde o começo
fadada ao fracasso, ao passo que o libertário defende com base na história, que os
métodos autoritários simplesmente substituem um estado autoritário por outro,
igualmente despótico e distante do povo, e que não 'definhará' mais que seu
predecessor capitalista". [_Lessons of the Spanish Revolution_, p. 206]
"A classe trabalhadora é fragmentada. Sempre há aqueles que querem lutar, aqueles
que furam as greves e aqueles que ficam no meio termo. Até mesmo nos sovietes havia
tais divisões. As organizações revolucionárias não aspiram representar a classe
trabalhadora como um todo. Elas se baseiam naqueles trabalhadores que querem
mudar o capitalismo, e procuram organizar a maioria dos trabalhadores para a vitória
e para a necessária tomada do poder". [_Socialist Review_, no. 248, January 2001]
Naturalmente, poder-se-ia replicar que a ditadura bolshevike usou seu poder para
esmagar a resistencia dos patrões (e dos "trabalhadores atrasados"). Lamentavelmente,
não foi o caso. Primeiramente, precisamos destacar que os anarquistas não são contra a
defesa da revolução nem contra a expropriação de poder e dos bens da classe
dominante. Não defendemos que a revolução em si não precise de defesa, muito pelo
contrário, a questão é como a revolução fará isso. O argumento de Lenin é tão inválido
quanto confuso ao defender a revolução defendendo o partido no poder. Tratam-se de
duas coisas completamente diferentes.
"O problema é que, enquanto você levanta sua mão contra o capitalista, você desfere
uma pancada no trabalhador. Você sabe muito bem que com tais palavras eu expresso
a opinião de centenas, talvez milhares de trabalhadores que são abatidos nas prisões.
Ainda permaneço em liberdade pelo simples fato de ser um veterano comunista, tenho
sofrido por aquilo que acredito, e sou conhecido no meio dos trabalhadores, mas não
por isso, sou apenas um simples mecânico de fábrica. Onde estou agora? Em uma
prisão da checa ou, mais exatamente, preparando uma 'fuga', da mesma forma que
preparei a 'fuga' de Mikhail Romanov. E repito: você levanta seu braço contra a
burguesia, mas sou eu quem escarra sangue, e somos nós, os trabalhadores, que temos
que arrebentar as grades das prisões [para alcançar nossa liberdade]". [citado por
Paul Avrich, _G. T. Miasnikov and the Workers’ Group_]
Assim, as idéias de centralização defendidas pelos leninistas são danosas para os reais
avanços da revolução, ou seja, o poder e a liberdade da classe trabalhadora. Na verdade,
isso pode ser visto através da história do bolshevismo.
Bambery afirma (corretamente) que "Lenin e os bolshevikes inicialmente se opunham" à
formação expontânea dos sovietes em 1905. Eles justificavam sua oposição por seu
"modelo de revolução se inspirar nos momentos que antecederam a revolução francesa
em 1789." [Ibid.]
Na realidade, eles achavam que "apenas um partido forte ao longo das linhas de classe
poderia guiar o movimento político proletário e preservar a integridade de seu
programa. Esses aglomerados políticos, organizações políticas vacilantes e
indeterminadas como os representantes dos conselhos de trabalhadores não ajudam,
apenas representam". [P. N. Gvozdev, citado por, Oskar Anweilier, The Soviets, p. 77]
Em 1905, os bolshevikes viram os sovietes como um rival de seu partido e exigiram que
aceitassem seu programa partidário ou se tornassem meras organizações sindicais. Eles
temiam que o comitê do partido fosse marginalizado pelo soviete, o que consideravam
uma "subordinação da consciência ao expontaneismo". [Op. Cit., p. 78] Daí o
argumento de Lenin em What is to be Done?, onde ele defende que o "desenvolvimento
*expontâneo* do movimento dos trabalhadores resulta em que se subordinem à
ideologia burguesa". [_Essential Works of Lenin_, p. 82] Tal perspectiva está na raiz de
todos os argumentos bolshevikes para justificar o poder do partido depois da revolução
de outubro.
É falso afirmar que durante uma revolução ou guerra civil é impossivel implementar
uma abordagem libertária. Os anarquistas aplicaram suas idéias com muito sucesso no
movimento makhnovista na Ukrania. Nas áreas sob sua proteção, os makhnovistas
recusaram dizer aos trabalhadores e camponeses o que eles deveriam fazer:
Dessa forma, o argumento anarquista não é um plano utópico. Pelo contrário, ele pode
ser aplicado com sucesso nas mesmas circunstancias que, segundo os trotskystas,
forçaram os bolshevikes agir como agiram. Como pode ser visto, havia uma alternativa
viável e que foi aplicada com sucesso pelos makhnovistas (veja seção H.6 para saber
mais sobre os makhnovistas).
"se você considerar aqueles honrados eleitores incapazes de cuidar de seus próprios
interesses. Como é que eles poderiam saber escolher por eles mesmos o pastor que
melhor os guiasse? E como seriam capazes de resolver os problemas da alquimia
social. Como produziriam um gênio a partir dos votos de uma massa de loucos? E o
que aconteceria com as minorias . . . mais inteligentes, mais ativas e a parte radical da
sociedade?" [Malatesta, Anarchy, p. 53]
Nada poderia estar tão longe da verdade, naturalmente. O que os anarquistas defendem
(da mesma forma que Lenin antes da revolução de outubro) é que cada revolução está
sujeita ao isolamento, ao desenvolvimento político irregular, a problemas econômicos e
daí por diante (i.e. "circunstancias excepcionais"). A questão é se sua revolução pode
superá-los e se suas idéias políticas podem ser alteradas sem a influência da deformação
burocrática. Como podemos ver, o leninismo falhou nesse teste. Todavia, Frank não
acredita nisso. Se levarmos seu (e de Trotsky) argumento a sério então concluiremos
que a ideologia bolshevike não exerceu nenhum papel no desenvolvimento da
revolução. Em outras palavras, ele subscreve a contraditória posição de que a política
bolshevike foi essencial para o sucesso da revolução e que não exerceu nenhum papel
em seu desfecho.
O que estava em jogo é que o povo ficou diante de várias opções, opções provocadas
pelas condições objetivas que eles enfrentavam. As decisões tomadas seriam
influenciadas pelas suas ideias — essas coisas não ocorrem automaticamente, como se
as pessoas fossem pilotos de automóvel — e suas idéias são formadas pelas relações
sociais que fazem parte de sua experiência. Assim, alguém que está colocado em uma
posição de poder sobre outros agirá de certa maneira, tem uma determinada visão de
mundo, alienada da perspectiva de uma relação social igualitária.
Dessa forma, a atitude dos leninistas nos eventos de Kronstadt revela com clareza, que
toda aquela história de fazer as coisas de baixo para cima não passou de confersa fiada,
da mesma forma que os burgueses eles estabeleceram líderes que tinham que ser
obedecidos. Conforme Cornellius Castoriadis argumenta:
"Agora, é preciso deixar claro que não são os trabalhadores que escrevem a história.
São sempre os outros. E esses outros, seja lá quem for, tem uma existencia histórica
apenas na medida que as massas estão passivas, ou ativas simplesmente para apoiá-
los, e é isso precisamente o que 'os outros' nos dizem a cada oportunidade. A maior
parte do tempo esses outros não possuem olhos para ver e ouvidos para ouvir os gestos
e as expressões da criatividade autônoma das pessoas. Na melhor das hipóteses, eles
dirigem um elogio a esta atividade desde que ela milagrosamente coincida com sua
própria linha, mas eles a condenarão radicalmente, condenarão imputando a ela as
mais baixas motivações, tão logo ela se desvie de sua linha mestra. Assim Trotsky
descreve em termos grandiosos os anônimos trabalhadores de Petrogrado que se
moviam na dianteira do partido bolshevike ou que se movimentaram durante a Guerra
Civil, mas posteriormente ele passou a caracterizar os rebeldes de Kronstadt como
'pombos correio' e 'mercenários do Alto Comando Francês'. Carecem de categorias do
pensamento — de células celebrais, digamos, — necessarias para compreender, ou
mesmo registrar, as coisas como elas realmente são: para eles, uma atividade que não
é formalmente instituída, que não possui nenhum chefe ou programa, não possui
nenhum status; nunca é compreendida com clareza, exceto talvez como causadora de
'desordem' e de 'problemas'. A atividade autônoma das massas constitui por definição
tudo aquilo que foi reprimido na história". [Op. Cit., p. 91]
A versão trotskysta da revolta de Kronstadt provê uma boa análise disso, pela sua
contínua tentativa de retrata-la como resultado de uma conspiração branca. Na verdade,
a possibilidade de que o levante tenha sido uma expontânea revolta das massas com
objetivos econômicos e políticos além de ser considerada "absurdo" é também
qualificada como obra de "camponeses atrasados" conduzidos por SRs e espiões. Da
mesma forma que os capitalistas consideram a greve obra de "agitadores externos" e
"comunistas" infiltrados entre os trabalhadores, os trotskystas apresentam uma análise
de Kronstadt carregada de incompreensão ideológica e elitismo. Um comportamento
independente da classe trabalhadora é tido como "atrasado" e que deve ser corrigido
pela "ditadura do proletariado". Tudo isso é uma confirmação de que a ideologia
bolshevike claramente exerceu um papel chave para o surgimento do stalinismo.
"As atitudes no evento de Kronstadt, representou muitas vezes. . . anos após o evento, a
fonte de um profundo discernimento no pensamento político dos revolucionários
contemporâneos. Tais eventos podem de fato provêr um profundo discernimento sobre
metas conscientes ou inconscientes, muito mais que discussões sobre economia,
filosofia ou outros episódios da história das revoluções.
"Aquilo que alguem entende como socialismo é o que norteia suas atitudes. Os
compêndios em torno dos eventos de Kronstadt são alguns dos problemas mais difíceis
da ética revolucionária e da estratégia revolucionária: o problema dos fins e dos
meios, das relações entre Partido e massas, se é que esse Partido é necessário. A classe
trabalhadora é capaz de desenvolver por ela mesma um sindicato consciente? Onde
isso foi levado em consideração? Quando lhe foi permitido? Até que ponto?
Em última análise, o comentário de Wright (e dos que pensam como ele) mostra que
não existe qualquer comprometimento entre o bolshevismo e o poder e a democracia
dos trabalhadores. O que acontece com a auto-emancipação, o poder ou democracia dos
trabalhadores quando o "estado dos trabalhadores" reprime os trabalhadores que tentam
preencher suas necessidades pela construção de uma forma real de socialismo? É esta
experiência do bolshevismo no poder que melhor refuta a proclamação marxista de que
o estado dos trabalhadores "será democrático e participativo". A supressão de
Kronstadt foi apenas mais uma de uma série de ações que os bolshevikes vinham
implementando desde antes do começo da Guerra Civil, tais como a abolição dos
sovietes que elegiam maiorias não-bolshevikes, a abolição da eleição de funcionários e
soldados no Exército Vermelho e na Marinha e a substituição da auto-gestão dos
trabalhadores na produção por administradores indicados pelo poder "ditatorial" (veja
seção H.4 para detalhes).
"O que significa, 'proletariado como classe governante?' Significa todo o proletariado
na direção do governo? Existem 40 milhões de alemães. Todos esses 40 milhões seriam
membros do governo? Toda a nação governará, mas ninguém será governado. Então
não haverá governo algum, estado algum; mas se existir um estado, também haverá
aqueles que serão governados, que serão escravos.
"Na teoria marxista este dilema se resolve da seguinte forma. Um governo popular
significa um povo governado por um pequeno número de representantes eleitos pelo
povo. Os assim chamados representantes populares e governantes do estado eleitos por
toda a nação com base no sufrágio universal — a última palavra dos marxistas, como
da escola democrática — é uma mentira que esconde o despotismo de um governo de
minoria, uma mentira que traz consigo a perigosa e fraudulenta representação da
vontade popular.
"E assim . . . se repete o moto perpétuo que desagua sempre no mesmo lugar: uma
vasta maioria do povo governado por uma minoria privilegiada. Mas esta minoria,
dizem os marxistas, é formada por trabalhadores. Sim, talvez, por trabalhadores
padrão, os quais, logo que se tornam governantes ou representantes do povo cessarão
de ser trabalhadores e começarão a olhar de cima dos píncaros do estado toda aquela
massa de trabalhadores. Eles não representam o povo, representam a si próprios em
suas pretenções de governar o povo . . .
"Eles dizem que este jugo estatal, esta ditadura, é uma necessidade transitória, um
artifício para alcançar a completa libertação do povo: anarquia, ou liberdade, esta é a
meta, e o estado, ou a ditadura, o meio. Assim, para as massas serem libertadas elas
precisam primeiro ser escravizadas . . . Eles afirmam que apenas uma ditadura (a
deles, naturalmente) pode criar liberdade popular. Pois nós respondemos que nenhuma
ditadura pode ter outro objetivo a não ser perpetuar-se a si mesma, e que a única coisa
que pode nutrir e engendrar é a escravidão do povo submetido a ela. Liberdade pode
ser criada apenas pela liberdade, pela instrução de todas as pessoas e pela
organização voluntária dos trabalhadores de baixo para cima". [_Statism and
Anarchy_, pp. 178-9]
Fonte: http://www.geocities.com/projetoperiferia2/secH5.htm