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INTRODUÇÃO
Nascido em Patos, na Paraíba, Francisco José Souto Leite tinha tudo para ser
apenas mais um Chico. Mas como nos melhores plot twists1 das melhores histórias
em quadrinhos, quis o tempo e o destino que o paraibano, com então dezoito anos,
mudasse para a capital do seu estado natal, João Pessoa, e se tornasse o Shiko.
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Traduzido ao pé da letra como “reviravolta” é uma mudança radical na direção esperada ou prevista da
narrativa de um romance, filme, série de televisão, quadrinho, jogo eletrônico ou outra obra narrativa.
Os trabalhos autorais de Shiko também possuem uma assinatura marcante.
Seus roteiros permeados por personagens urbanos, dissidentes e marginais
passeiam pelo mundo da loucura, do erotismo, do sexo, do fanatismo religioso, da
violência, da carne e do sonho. Nesse sentido, os quadrinhos de Shiko vão ao
encontro da contracultura – se não da contracultura dita como movimento ou opção
estética em sua totalidade, ao menos de elementos desse fenômeno, pincelados
aqui e acolá.
Sócrates, Jesus Cristo, Jimi Hendrix. Três figuras históricas diferentes, todas
elas ligadas por um elo comum: a contracultura.
Mesmo sem saber ao certo o que estava acontecendo naquele período, dava
pra sentir um novo ar, uma nova atmosfera – ventos da mudança. Logo toda a
América do Norte, a Europa e até mesmo o Brasil, conheceriam de perto o
fenômeno que se tornaria conhecido como contracultura. Permanecer indiferente a
ele era impossível. Sexo, drogas, guerra, feminismo, direitos humanos... A
contracultura estava presente em tudo que era feito: na política, na música, na
poesia, na literatura e até mesmo nos quadrinhos.
Fig 01 – Marvelman em uma história de 1954, criada por Mick Anglo. A simplicidade dos
traços e a ingenuidade do enredo ilustram o zeitgeist dos quadrinhos. Posteriormente, na década de
1980, escritores como Alan Moore, Neil Gaiman e Grant Morrison redefiniriam o personagem de
modo revolucionário, conferindo às histórias de Marvelman maior maturidade.
Muito se falava sobre uma certa invasão britânica dos quadrinhos – quando a
já saturada indústria norte-americana recrutou roteiristas e artistas do Reino Unido 3
para que, com o todo peculiar modo inglês de contar histórias, dessem novo fôlego a
um mercado sempre instável. Os quadrinhos entraram, definitivamente, numa nova
era: histórias mais adultas (inclusive com a abordagem de temas como sexo,
violência, ocultismo, política e filosofia), com personagens mais complexos,
linguagem poético-literária, arte experimental, simbólica e ousada cativavam jovens,
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A essa lista creio ser salutar incluir a obra Batman: Asilo Arkham, publicada em 1989, com roteiro de Grant
Morrison e arte de Dave McKean. Até hoje, uma das graphic novels mais revolucionárias e mais vendidas sobre
o personagem Batman.
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A invasão britânica das HQ’s dos anos 1980 foi encabeçada por figuras como Alan Moore, Grant Morrison,
Jamie Delano, Neil Gaiman, Alan Grant, Dave McKean, dentre outros. Posteriormente, na transição do final da
década de 1980 para o início de 1990 até meados de 2000, ocorreu o que muitos chamam de nova invasão
britânica nos quadrinhos, com a chegada dos trabalhos de Garth Ennis, Andy Diggle, Mark Millar e outros
autores ao mercado das comics norte-americanas.
adultos e despertavam o olhar da crítica para aquilo que ignoraram por um bom
tempo – um compilado de papel, cultura de massa, sub-arte. Editoras como a DC
Comics e seu selo de histórias adultas, Vertigo Comics, davam imensa liberdade
para que artistas e criadores explorassem novas ideias e formas narrativas, o que
resultou em experiências singulares, inéditas até em outras mídias (cinema, TV ou
mesmo a literatura). Os quadrinhos deixaram de ser vinculados apenas a aventuras
de super-heróis em roupas colantes coloridas – e mesmo quando histórias de
aventureiros mascarados eram publicadas, estas ganhavam uma densidade nunca
antes vista.
Fig 02 – Watchmen, obra-prima de Alan Moore e Dave Gibbons, desconstrói o arquétipo dos
super-heróis. Não há mais super seres essencialmente bondosos. Na trama, o universo construído
por Moore é povoado mais por anti-heróis do que por heróis propriamente ditos. Política, filosofia,
ciência e ficção compõem a tônica de Watchmen.
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Termo técnico para definir o tempo de atraso de um sinal ou transmissão de som, reverberação, eco ou em
equipamentos técnicos em geral.
PARAÍBA UNDERGROUND: A CONTRACULTURA NOS QUADRINHOS DE
SHIKO
Cada caso é um caso, cada homem e cada arte é produto de sua época. Ao
mesmo tempo, homem e arte possuem o poder de se tornarem atemporais. Mas, se
a contracultura não já se manifesta ipsis litteris como nos anos 1960, em nossa
contemporaneidade a contracultura, sem sombra de dúvidas, aparece reformulada,
reescrita e redesenhada. E não é preciso ir muito longe para ver isso.
Fig 04 – Quadro de Marginal. Erotismo, jazz, álcool e tabaco reinvindicam um certo clima beat
em uma atmosfera boêmia.
Tanto Crumb, o papa dos quadrinhos contraculturais dos anos 1960, quanto
Shiko, o arauto de uma nova geração marginal, possuem em comum não apenas o
universo temático, mas também a versatilidade no ato de criar. Crumb variava com
habilidade entre caricatura e desenho realista, chegando também a trabalhar com
pintura em tela e até mesmo com escultura. Shiko, além de habilidoso desenhista,
desponta no universo da aquarela, do graffiti de rua e do desenho publicitário.
Ambos também optaram pelo meio independente de publicação de seus trabalhos.
Em entrevista, Shiko brinca, dizendo “o artista underground se vende” ao se referir
sobre seu trabalho como ilustrador publicitário, lembrando que a situação do
mercado brasileiro ainda não é favorável para os quadrinistas da terra, que não
conseguem viver exclusivamente de suas artes. É preciso fazer essas concessões
mercadológicas como forma de sobrevivência – tanto do artista como da própria
arte.
Fig 13 – Talvez seja mentira: erotismo e inovação gráfica acompanhada de belos traços.
CONCLUSÃO
GOFFMAN, Ken. Contracultura Através dos Tempos. São Paulo: Ediouro, 2007.
PEREIRA, Carlos Alberto M.. O que é contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1992.
THE Mindscape of Alan Moore. S.i.: Shadowsnake Films, 2003. Son., color.
Legendado.