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15/10/2020 Textos para Reflexão: Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 1)

Textos para Reflexão

31.3.16

Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 1)

Introdução
A lenda dos quadrinhos, Alan Moore, é o autor de diversos títulos memoráveis, tais quais Watchmen, A Liga Extraordinária,
V de Vingança e Do Inferno. Desde o seu aniversário de 40 anos, Moore se autoproclamou um mago. Mas é preciso
cuidado para compreender a sua visão da magia, que ele uma vez definiu como “uma ciência da linguagem, do uso de
símbolos para induzir alterações na consciência”. Alan vê uma conexão íntima entre a magia e a criatividade artística, o que
foi explorado de forma magistral na sua série Promethea.

Recentemente publicamos no blog uma tradução da sua entrevista, A arte da magia, concedida a revista britânica Pagan
Dawn. Conforme se tratou da série de posts com mais visualizações nos últimos tempos, resolvemos traduzir também o seu
monumental Fossil Angels [Anjos Fósseis].

Fossil Angels é uma espécie de “ensaio-manifesto” que trata basicamente do estado da magia e espiritualidade no mundo
atual, onde Alan traz críticas ácidas e contundentes a todos os demais magos e místicos, juntamente com conselhos
preciosos e um otimismo implícito em relação a um possível futuro mais pleno de espiritualidade, tudo permeado com a
mais fina ironia, numa linguagem por vezes rude e brutal, por vezes impregnada do bom humor britânico.

O ensaio foi escrito em 2002 para a edição #15 da revista KAOS, que de fato jamais chegou a ser lançada. Após quase uma
década, foi finalmente divulgado online em 2010, por admiradores de Moore (claro, com o seu devido consentimento).

Trata-se de um ensaio longo, que será publicado aqui no blog em diversas partes. Conforme tivemos algumas pessoas
auxiliando na tradução, vamos postar os créditos específicos sempre ao início de cada parte.

E agora, com vocês, Mr. Alan Moore, o Grande Mago...

Anjos Fósseis, parte 1


Por Alan Moore. Tradução de Daniel Lopes, revisão de Rafael Arrais.

Consideremos o mundo da magia. Uma dispersão de ordens ocultas que, quando não estão tentando refutar a ascendência
uma da outra, estão criogenicamente suspensas em suas rotinas ritualísticas, seu jogo de ditames de Aiwaz, ou algo
perdido em um spam canalizado de uma expansão de Dungeons & Dragons, mapeando um novo universo infalsificável e
então completamente sem valor até que demonstrassem que tem tanto a ver quanto uma unha pintada de esmalte preto
na garra de um dragão antigo. Transmissões autoconscientes de entidades afligidas por síndrome de Tourette, de horrores

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15/10/2020 Textos para Reflexão: Anjos Fósseis, por Alan Moore (parte 1)

glossolálicos de Hammer [companhia cinematográfica britânica]. Alguidares oraculares [scrying bowls] de alguma forma
recebendo trailers do canal Sci-Fi. Muito longe dos caciques ocultos, e por esta razão, muito longe dos índios ocultos.

Além disso, passando pelos portões rangentes das ilustres sociedades, dilapidados tolos de 50 anos que deram início aos
planos para um palácio celestial, mas inevitavelmente terminaram com o Bates Motel, enquanto lá fora se estende a
multidão. Os embusteiros da psique. O rugido incoerente de nossa hermética torcida em casa, os anouraques Akashicos, os
metidos a Wiccans e o Templo UV dos quarenta psíquicos-qualquer-coisa fazendo fila para a última franquia do reino das
fadas, reino dos irrecuperáveis hobbituados. Vila Potter.

Como exatamente isso confirma o Aeon de Horus, Aeon de qualquer coisa se não de mais
consumismo, de política de gangsters, do materialismo levado ao limite da mente? Isso que
parece ser um lugar comum quase universal de aceitação de ideais conservadores é na Em resumo, alguém
verdade sinal de uma desgovernada Thelema? O Cthulhu está voltando em algum tem alguma pista do
momento próximo ou são as maldições bárbaras da escuridão lá fora onde os iluministas que estamos fazendo,
tentam achar seus traseiros com uma lanterna? O ocultismo ocidental contemporâneo
e precisamente por
conseguiu realizar algo mensurável fora da sessão mediúnica [séance parlour]? A magia tem
algum outro uso definido para a espécie humana além de oferecer a oportunidade de se que estamos fazendo?
fantasiar? Putas Tântricas e vigários da noite temática de Thelema. Pentagramas em seus
olhos. “Esta noite, Matthew, eu serei o Logos do Aeon”. A magia demonstrou algum
propósito, justificando sua existência de modo como a arte ou a ciência ou a agricultura justificaram as suas? Em resumo,
alguém tem alguma pista do que estamos fazendo, e precisamente por que estamos fazendo?

Certamente, a Magia nem sempre foi divorciada de maneira tão aparente de toda função humana imediata. Sua origem
paleolítica no xamanismo com certeza representou, naquele momento, a única forma de mediação com um universo vasto
e hostil sobre o qual até então exercíamos muito pouco entendimento ou controle. Em tais circunstancias é fácil conceber
magia como representando inicialmente uma realidade de parada única numa loja de conveniência pela estrada. Uma visão
de mundo em que todas as outras vertentes da nossa existência – caça, procriação, lidar com os elementos ou pinturas nas
paredes das cavernas – foram agrupadas. A ciência de tudo, sua relevância para as preocupações comuns dos mamíferos,
tanto óbvias quanto inegáveis.

Essa função de uma “filosofia natural” com tudo incluso, obtida ao longo da ascensão da civilização clássica, ainda pode ser
vista, embora de maneira mais latente, até o século XVI, quando as ciências mundana e oculta não eram tão dissociáveis
como são hoje. Seria surpreendente, por exemplo, se John Dee não cedesse seu conhecimento de astrologia matizando sua
inestimável contribuição para a arte da navegação ou vice-versa. Não até que a Idade da Razão gradualmente pervertesse
nossa crença e contato com os deuses que proveram nossos predecessores e nosso inexperiente senso de racionalidade
identificasse o sobrenatural como um mero órgão vestigial no corpo humano, obsoleto e possivelmente doente, que deve
ser rapidamente extraído.

A ciência, crescida à parte da magia, dotada da magia, cria impulsiva, sua forma mais prática e portanto materialmente
proveitosa de aplicação, muito cedo decidiu que o ritual e a alfaia simbólica de sua cultura parental alquímica era
redundante, um estorvo e um constrangimento. Inflado em seu novo jaleco branco, com esferográficas ostentadas como
medalhas em seu peito, a ciência envergonhou-se de seus companheiros (história, geografia, por exemplo) flagrados
fazendo compras com a mãe, com todo o seu resmungo e cantoria. Seu terceiro mamilo. Melhor esconder sua loucura em
algum lugar seguro, alguma Fraggle Rock [gíria inglesa para uma ala psiquiátrica em que os encarcerados tomam altas
dosagens de medicamentos fortes] para velhos e perturbados paradigmas.

A cisão que isso causou na família de ideias humana parece irrevogável, com duas partes do
que antes era um organismo separado pelo reducionismo, uma "ciência de tudo" inclusiva
se tornou duas visões separadas, cada uma aparentemente em acirrada e viciosa oposição A magia, por outro
em relação à outra. A ciência, no processo deste amargo divórcio, pode-se dizer que perdeu lado, perdeu todo o
contato com seu componente ético, com base moral necessária para prevenir a reprodução seu propósito e
de monstros. A magia, por outro lado, perdeu todo o seu propósito e utilidade
utilidade
demonstrável, como muitos pais quando os filhos crescem e vão embora. Como preencher
o vazio? A resposta é, seja falando da magia ou do mundano, lastimando por pais e mães demonstrável, como
com ninhos vazios, com toda probabilidade, “com ritual e nostalgia”. muitos pais quando
os filhos crescem e
O ressurgimento da magia do século XIX, com sua natureza retrospectiva e essencialmente
vão embora
romântica, parecia estar abençoado com esses dois fatores em abundância. Embora seja
difícil não notar as contribuições feitas para a magia enquanto campo de conhecimento,
tais como, Eliphas Levi ou os vários magos da Golden Dawn, é tão difícil quanto deixar de

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argumentar que essas contribuições foram esmagadoramente sucintas, na medida em que aspiravam criar uma síntese da
tradição já existente, em formalizar as mais variadas sabedorias dos antigos.

Não é desmerecer essa considerável realização se observarmos que esta magia, durante décadas, carecia de propósito
imediato, o que levou a pressa pioneira que caracterizou, por exemplo, o trabalho de Dee e Kelly. No desenvolvimento de
seu sistema Enoquiano, a magia tardia da renascença poderia ser tipificada como experimental e de urgência criativa,
voltada para o futuro. Em comparação, os ocultistas do século XIX parecem ter quase deslocado a magia para um passado
reverenciado, tornando-a uma trilha de exibição de museu, um acervo, com eles mesmos como curadores.

Tinham todas as vestes e adereços, que cheiravam a reencenações históricas em grupo, uma sociedade serafínica do nó
selado, com uma marcha ligeiramente menos boba. O preocupante consenso de valores de direita e o número de baixas às
sacudidas e tropeços, por outro lado, provavelmente eram idênticos. Os ritos das elevadas ordens magísticas e as
bebedeiras homicidas das bandas tributo de Cromwell são também similares na medida em que ambas comovem se
justapostas ao cruel e implacável mecanismo da realidade industrial. Belas varinhas pintadas, obsessivas e genuínas
ponteiras, levantadas contra o lúgubre progresso das chaminés. O quanto disso não pode ser mais acuradamente descrito
como fantasias compensatórias da era da máquina? RPGs que só servem para evidenciar o fato brutal que essas atividades
não têm mais relevância humana na contemporaneidade. Uma melancólica recriação dos momentos eróticos há muito
passados de um impotente.

» Continua na parte 2

***

Crédito da foto: Kazam Media/REX Shutterstock (Alan Moore)

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