Você está na página 1de 5

Formatação de Roteiros Para

Histórias em Quadrinhos
Por Sandro Massarani Ao iniciar a escrita de uma história em quadrinhos (hqs), o
principal é termos a noção de que, ao contrário do cinema, não existe um modelo único
ou preferencial de formatação do roteiro para as hqs, cabendo o estilo e o tipo de escrita
à escolhas pessoais ou empresariais. Como diz Denny O'Neil em seu clássico livro DC
Comics Guide to Writing Comics, "a formatação certa é aquela que funciona para
você". Logo, não há uma certa rigidez em tipos de fontes, tamanhos de letras, margens
de folhas, etc. Para facilitar nosso aprendizado, resolvi agrupar as inúmeras formatações
existentes em quatro grupos, com as devidas considerações, e sempre lembrando que
não há rigidez nessa classificação. Não esqueçam de conferir a bibliografia
recomendada e comprar todos os livros possíveis sobre o assunto. Um roteirista de
quadrinhos utiliza muito a linguagem do cinema em relação aos tipos de tomada e à
distância da câmera, e você pode aprender o básico nesse meu texto. Os quatro grupos
mais comuns de formatação de roteiro para as histórias em quadrinhos, de acordo com
meus conhecimentos, são: 1. Plot First (Enredo Primeiro) ou The Marvel Way (o Modo
Marvel) 2. Full Script (Script Completo) 3. Full Script Detailed (Script Completo
Detalhado) 4. Layout Script (Rascunho) 1. Plot First (Enredo Primeiro) ou The Marvel
Way No início da década de 60, os super-heróis da DC retomaram as boas vendas dos
períodos anteriores, principalmente por causa da revista Liga da Justiça. O chefão da
Marvel Martin Goodman, ciente do fato após uma partida de golfe (!), pediu para que
seu editor Stan Lee criasse então um novo grupo de super-heróis. Stan já estava
saturado com os quadrinhos da época, revoltado com a mesmice que imperava e queria
pedir demissão. Sua esposa então lhe deu o maior conselho de sua vida: escreva a
revista do jeito que quiser, já que você vai pedir mesmo a demissão. E Stan, junto com o
desenhista Jack Kirby, fez o que lhe havia sido aconselhado. Nascia o Quarteto
Fantástico. Com o sucesso da revista, que mostrava pela primeira vez de forma sólida
super-heróis com problemas cotidianos, Stan, sempre junto de desenhistas geniais,
iniciou uma sequência criativa raras vezes igualadas na arte. Homem-Aranha, o Incrível
Hulk, os Vingadores, Homem de Ferro, X-Men, Surfista Prateado e toda uma nova
mitologia foi sendo construída. Na medida que o número de revistas aumentava, Stan
ficava cada vez mais sobrecarregado, acabando construindo o famoso Modo Marvel de
se fazer quadrinhos para solucionar seu problema de tempo. Em poucas folhas, ou até
linhas de papel, Stan Lee primeiro resumia toda a história, às vezes separando por
páginas, e a entregava ao desenhista. O desenhista construía os painéis e as páginas e as
devolvia para Stan, que então finalmente acrescentava os diálogos de acordo com o que
o desenhista tivesse feito. Esse método é muito pouco utilizado hoje e deu muito certo
na Marvel da época por uma simples razão: Stan Lee só trabalhou com gênios da
narrativa. Jack Kirby (que praticamente inventou o desenho moderno de super-heróis),
John Buscema, Steve Ditko (Homem-Aranha), Bill Everett (Demolidor), Gil Kane, John
Romita, Don Heck (Homem de Ferro), etc. As vantagens desse método para o escritor é
a de que ele tem de certa forma seu trabalho reduzido (não sei se é bem uma vantagem),
e também pode alterar a história para melhor após ver os desenhos feitos. Se contar com
um grande desenhista tirará a sorte grande. As desvantagens desse método são
preocupantes. Se o desenhista não souber criar muito bem a história ou não houver uma
comunicação frutífera entre os autores, os desenhos podem não ter nada a ver com a
idéia que o escritor tinha em mente. Aí ele terá que se virar na hora de colocar os
diálogos. Além disso, é um processo mais demorado, onde temos um ping-pong além
do normal entre roteirista e desenhista. 2. Full Script (Script Completo) É o tipo de
roteiro mais comum, e geralmente o mais parecido com a formatação do cinema. Aqui,
as variações na formatação são praticamente infinitas, mas as páginas são claramente
definidas, assim como todos os painéis e diálogos. A vantagem é que o roteirista tem
um controle maior do que escreveu, e após a aprovação do editor, o trabalho fica
exclusivamente nas mãos do desenhista. É lógico que o desenhista pode entrar em
contato e fornecer algumas idéias, o que é bastante comum. No roteiro de cinema, não
fica muito bem o escritor dar ordens diretas ao diretor em um roteiro. Porém, o roteiro
de histórias em quadrinhos é muito mais informal e muitos são realmente uma conversa
direta com o desenhista, estando o escritor bem mais a vontade para direcionar a obra do
que nos filmes. O nível de detalhe de um Full Script varia muito. O escritor pode apenas
dar uma idéia do que ele quer em um painel, dando mais liberdade ao desenhista
(principalmente se for de confiança), assim como pode controlar até a composição dos
painéis e desenhos de cada página. Exemplos de Full Script: Exemplo - INHUMANS
#1 PAUL JENKINS - PÁGINA 8 Para dar o download de todo o script original em
inglês clique aqui. Página Oito Painel 1 Certo, rapaz ... esta página é um flashback de
eventos que ocorreram quando Raio Negro era um jovem de cara limpa de dezenove
anos. É uma reprise de uma história mais antiga, então provavelmente logo que você
pegar este roteiro, alguém pode já ter procurado a referência. **Nota: Joe, Nancy... esta
é a recordação que vocês pediram. Já que não conseguimos encontrar a referência para
esta parte, isso precisa chegar ao Bob por causa da continuidade, e anexado se
necessário. Na medida que começamos, estamos no meio de algum conflito ou outro.
Maximus está em cima de uma construção, com jeito de insano, gesticulando
selvagemente na medida que uma nave Kree decola para o céu. O próprio Raio Negro
está acorrentado, e não pode se libertar. Max (Caption): "Não foi minha culpa-eu não
pedi para que você estivesse lá quando os Krees chegassem. Você e essa sua
consciência intratável e imutável." Painel 2 Aproximamos de Raio Negro, que grita para
a nave. Estamos olhando para ele enquanto ele manda um golpe sônico para o ar. Atrás,
Max segura a sua cabeça em sinal de extrema dor. Max (Caption): "Você simplesmente
não poderia me deixar fora de sua pequena festinha, poderia? Voicê tinha que dizer
algo..." Painel 3 Wham! A nave Kree se despedaça no céu, pegando fogo na medida que
começa a se desintegrar. O casco principal da nave já aparenta estar caindo de uma
forma suspeita lembrando um foguete espacial. Eu lhe dou total permissão para você
desenhar o efeito sonoro, principalmente se você colocar uma palavra rude nele. "Tha-
WANK!" (?) *** O exemplo acima (traduzi apenas três dos cinco painéis da página)
mostra como o roteiro de quadrinhos é bem informal. Há inclusive recados para outras
pessoas responsáveis pela revista. Caption siginifica caixas de texto, não sendo balões
de diálogos, e são muito comumente utilizadas, geralmente para descrições ou para a
narração de uma história, como foi no caso anterior. Exemplo - ULTIMATE
FANTASTIC FOUR #21 MARK MILLAR - PÁGINAS 2 e 3 Para dar o download de
todo o script original em inglês clique aqui. Página Dois 1/ Ao virar a página o leitor se
depara com uma página splash inteira do Coisa de costas para nós, com um punho para
trás em nossa direção enquanto ele ajusta um fone de ouvido com o outro. Um
Tiranossauro Rex corre contra nós atravessando uma vegetação pré-histórica. Estamos
milhões de anos no passado. CAPTION : 150 Milhões de anos atrás O COISA : Reed.
O COISA : Dois segundos. Página Três 1/ Uma tomada "cool" do Coisa socando o
dinossauro na face. O COISA : HNNT. 2/ Uma tomada impactante com a cabeça do
bicho se movendo para trás, com seu maxilar deslocado. SEM DIÁLOGO 3/ Se afaste
um pouco e nos mostre o dinossauro caindo em um amontoado, com terra para todos os
lados e O Coisa apenas parado lá com uma postura maneira como uma pequena figura.
Este painel provavelmente fica melhor visto de cima. SEM DIÁLOGO *** Reparem
em como as caixas de texto e o diálogo são colocados na página, não se esquecendo que
cada um faz isso de uma maneira diferente. Quando o mesmo personagem fala duas
vezes seguidas, significa que o roteirista quer dois balões de diálogo e não apenas um. É
interessante notarmos também como o Millar indica o painel apenas com um número,
sendo este roteiro de escrita bem ágil. Geralmente, os Full Scripts tem como base a
seguinte estrutura: Ou seja, toda obra tem uma ou mais páginas. Cada página tem um ou
mais painéis, onde cada painel obrigatoriamente tem que ter uma descrição, e,
opcionalmente, Captions e/ou diálogos. 3. Full Script Detailed (Script Completo
Detalhado) Criei esse tipo de classificação exclusivamente para abrigar os scripts de
Alan Moore, que são detalhados ao extremo. Moore é talvez o mais talentoso escritor de
histórias em quadrinhos em todos os tempos, tendo ajudado muito a elevar o prestígio
desta arte. Na mesma proporção que Moore é fabuloso ele também é excêntrico, e
alguns de seus roteiros para histórias em torno de 20 páginas chegam a ter mais de 100
folhas! O mais interessante, é que mesmo com toda a sua descrição detalhista, os
desenhistas que trabalham com Moore sempre deram uma grande contribuição ao seu
trabalho, inclusive com idéias próprias. Basta vermos o papel fundamental de Dave
Gibbons na criação de todo o simbolismo de Watchmen, provavelmente a maior obra de
hq já realizada. Exemplo de Full Script Detalhado: Exemplo - THE KILLING JOKE (A
Piada Mortal) ALAN MOORE - PÁGINA 4 - Painel 1 Para dar o download das 10
primeiras páginas dessa obra revolucionária, que estabeleceu as bases da personalidade
atual do Coringa, utilizada inclusive nos cinemas, clique aqui. PÁGINA 4. (PAINEL) 1.
AGORA MAIS UMA PÁGINA COM NOVE PAINÉIS. NESSE PRIMEIRO
ESTAMOS OLHANDO ATRAVÉS DA MESA PARA O CORINGA (SITUADO
FORA DO PAINEL) NA MEDIDA QUE ELE FITA OS OLHOS NO BATMAN, QUE
AGORA ESTÁ SENTADO NO LADO OPOSTO DA MESA, COM SUAS LUVAS
NEGRAS COM BARBATANAS REPOUSADAS CALMAMENTE NA PARTE DE
CIMA. ALÉM DISSO, NÓS SÓ PODEMOS VER APENAS UM RELANCE DO SEU
PEITO, TALVEZ COM SUA CAPA PRETA PENDURADA DE FORMA A
REVELAR APENAS UM POUCO DO AMARELO E PRETO DO SÍMBOLO POR
TRÁS. TIRANDO ISSO, O RESTANTE DO BATMAN ESTÁ TOTALMENTE
INVISÍVEL NAS SOMBRAS FEITAS PELA AURÉOLA DE LUZ DE UM ABAJUR
MONTADO EM CIMA DA MESA DE CARTAS. TALVEZ NAS PROFUNDAS
SOMBRAS QUE OBSCURAM A CABEÇA E OS OMBROS DO BATMAN
POSSAMOS VER DOIS LAMPEJOS BRANCOS ONDE SEUS OLHOS ESTÃO
SITUADOS, JÁ QUE A LUZ DA LÂMPADA DA PAREDE AO REFRATAR NO
ESPELHO DE SUAS LENTES DE CONTATO FAZ SEUS OLHOS PARECEREM
VAZIOS E BRANCOS TODO O TEMPO. NO PRIMEIRO PLANO TUDO QUE
PODEMOS VEZ DO CORINGA SÃO SUAS MÃOS BRANCAS ENTRANDO NO
PAINEL PELA FRENTE, PEGANDO OUTRA CARTA E COLOCANDO-A NA
MESA DA MESMA FORMA QUE ANTES, AINDA PARECENDO TOTALMENTE
ALHEIO A IMPONENTE PRESENÇA DE UMA GRANDE FIGURA NEGRA
SENTADA À SUA FRENTE NA MESA DE CARTAS. TAMBÉM VISÍVEL NA
MESA, E EU PROVAVELMENTE DEVERIA TER MENCIONADO ISSO NAS
PÁGINAS DOIS E TRÊS, PELO QUE EU ME DESCULPO AGORA, SÃO DUAS
CARTAS DE CORINGA DESCARTADAS QUE O PÁLIDO LUNÁTICO ESTÁ
UTILIZANDO EM SEU JOGO, COLOCANDO UMA POR CIMA DA OUTRA. O
BRANQUELO E MALICIOSO DESENHO DA CARTA PODE SER TALVEZ
MODELADO À PARTIR DO DESIGN DA CARTA ORIGINAL QUE DEU A IDÉIA
PARA JERRY ROBBINS FAZER O CORINGA, O QUE EU ACREDITO QUE
POSSA SER ENCONTRADO NO LIVRO DE STERANKO SOBRE QUADRINHOS.
A FACE É MALDOSA E PERVERTIDA E DEPRAVADA. O BATMAN: Olá. O
BATMAN: Eu vim para conversar. *** Esse script é o exemplo da falta de formatação
existente para as hqs. Moore escreve tudo com letras maiúsculas e nem se preocupa em
dividir em parágrafos. Reparem a quantidade de linhas para descrever apenas um painel.
Só recomendo escrever assim se você tiver a genialidade de Alan Moore, caso contrário
faça um roteiro "clean", fácil de se ler, e sem tantos micro detalhes. 4. Layout Script
Algumas vezes o roteiro de uma hq, tanto Full Script quanto Marvel Way, vem
acompanhado de rascunhos feitos pelo escritor de como deve ser um painel ou uma
página, principalmente quando o roteirista quer ter mesmo a certeza de que o desenho
final estará bem próximo do que ele deseja. Porém, há uma variante mais incomum que
é o próprio roteiro ser todo desenhado em layouts, inclusive com diálogos inclusos,
simulando já uma revista pronta e portanto merecendo uma classificação especial. Esses
roteiros desenhados geralmente são feitos por excelentes desenhistas que também
gostam de escrever histórias, necessitando de um grande conhecimento em narrativa
visual. No exemplo abaixo, Jeff Smith (criador de Bone), faz um roteiro desenhado para
o grande Charles Vess se basear. Coloquei também a página pronta para podermos
comparar. É realmente algo bem interessante. Exemplo de Layout Script: Exemplo -
ROSE JEFF SMITH - PÁGINA 21 Agora a versão final desenhada e colorida por
Charles Vess: *** Conclusão: É fundamental termos em mente que o básico para uma
criação de roteiro para histórias em quadrinhos é o mesmo de uma obra cinematográfica
ou literária. Não há mudança significativa na teoria sobre estrutura da história, criação
de personagens, diálogos e outros tópicos relevantes. O principal conselho que podemos
retirar desse caos de formatação nas hqs, é sempre procurarmos escrever de maneira
clara, com bastantes espaços em branco para facilitar a leitura (Alan Moore não conta).
Poucos scripts de quadrinhos se encontram disponíveis, até para a compra. Mas nesse
caso, na minha opinião, o conhecimento teórico de escrita e a análise das obras já
prontas se torna mais importante que a formatação a ser utilizada ou da própria análise
de um script original. Exercício proposto: - Pegue qualquer revista em quadrinhos e faça
o processo criativo inverso. À partir da revista já pronta, escreva o roteiro, copiando
todos os diálogos mas descrevendo os painéis e páginas à sua maneira. O seu poder de
sintetizar e observar as informações de uma hq será bastante estimulado, e essa é uma
excelente maneira de analisar uma obra. Bons estudos!
tópicos sobre narrativa, roteiros e mundos virtuais
Além do Cotidiano

Você também pode gostar