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DOSSIÊ PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DO ORIENTE MÉDIO

REFLEXOS DE UMA SOCIEDADE HETEROGÊNEA: A PRESENÇA DOS MOUROS


2
NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA (1252-1284)
Mateus Sokolowski1

Resumo:
O contexto de nosso estudo se passa durante reinado de Afonso X de Leão e Castela
(1252 – 1284), este rei empreendeu grandes esforços para promover o conhecimento
em seu reino. Entre suas principais realizações destaca-se o registro das 427 Cantigas
de Santa Maria compostas em galego-português. A partir do estudo destas fontes temos
por objetivo compreender a influência da música árabe na forma poética destas
cantigas. Além disso, através de uma análise histórica de seu conteúdo, buscamos
contribuir para o desenvolvimento de uma melhor compreensão deste contexto como
exemplo de trocas culturais e políticas entre cristãos e muçulmanos.

Abstract
The context of our study is during the reign of Alfonso X of Leon and Castile (1252 -
1284). This king made great efforts to promote knowledge in his kingdom, among his
main achievements stands out the record of 427 Cantigas de Santa Maria, composed in
Galician-Portuguese. Based on these sources, we seek to understand the influence of
Arabic music in the musical and poetic form of these songs. In addition, through a
historical analysis of its content, we seek to contribute to the development of a better
understanding of this context as an example of cultural, economic and political
exchanges between Christians and Muslims.

1
Mestre em História pela UFPR destaca-se pelas suas pesquisas em História e Música Medieval. Reside
em Curitiba, PR, Brasil. email para contato: matsokol@hotmail.com. Currículo Lattes:
http://lattes.cnpq.br/1138002116614347
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3
As Cantigas de Santa Maria

Além de ser uma importante obra poética e musical, as 427 Cantigas de Santa
Maria podem ser compreendidas como uma ferramenta política de Afonso X de Leão e
Castela (1252-124), que as utilizou como uma forma de expressar sua devoção a
Virgem, divulgar sua visão de mundo e exercer seu poder. Nosso conhecimento destas
fontes depende, sobretudo, dos manuscritos do século XIII, são eles: o Codex Toledano
(To), conservado atualmente na Biblioteca Nacional da Espanha, contém 128
composições com notação musical; o Códice da Biblioteca Escorial, o mais completo de
todos, pode ser dividido em dois códices o (E1) e o (E2) contendo 416 cantigas
ilustradas e notação musical. E o Códice de Florença (F), conservado na Biblioteca
Nacional desta cidade.
Hoje as Cantigas de Santa Maria podem ser encontradas na sua integralidade
em sites e em versões impressas. Nós utilizamos a edição impressa pela Real Academia
2
Espanhola em 1922 e o site do Domínio Público lançado em 2004, onde se adota a
classificação corrente utilizada para a numeração das Cantigas de Santa Maria,
democratizando o acesso a estas fontes.
A autoria destes poemas é atribuída ao rei Afonso X, no entanto, o significado
da palavra “autor” durante a Idade Média é diferente da que se tem hoje. Segundo
Canedo, a identificação da autoria das CSM está mais ligada ao fato do rei ter sido o
mentor do projeto3, que contou com a colaboração de trovadores de sua corte.
Presume-se que o rei concebeu as cantigas em que fala na primeira pessoa, rezando
por vitórias em batalhas, cura de doenças e proteção contra inimigos. Fontes, por
exemplo, comprova o testemunho presencial do monarca através da CSM 169: “miragle
diréi grande que vi”, e outra em que o rei manifesta ter ouvido “dizer a muitos mouros

2
DOMÍNIO PÚBLICO. Disponível em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp>. Acesso em 01/08/2011.
3
CANEDO, S. A. Formas e fórmulas de composição nas Cantigas de Santa Maria. Tese (Doutorado
em Literaturas de Língua Portuguesa) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – Belo Horizonte,
2005.
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que moravan ant'y”. 4 Desta forma, a coordenação dos trabalhos e a intensidade da
intervenção do rei, diluíram as contribuições de seus colaboradores sob sua assinatura.
4

Proposta de uma analise Interdisciplinar: Música, História e Literatura:

Os estudos referentes às Cantigas de Santa Maria avançam graças aos esforços


interdisciplinares entre a Música, a História e a Literatura que constituem os três pilares
de nossa análise. Quanto à música, Ferreira examina a independência de Afonso X
frente aos modelos consagrados pelo trovadorismo cortês peninsular:

os trovadores não estão na origem dos modelos maioritariamente


usados nas CSM, então estes modelos formais foram adotados
pelo rei a partir de uma cultura alheia à tradição cortês local. 5

Segundo Ferreira, a elaboração das CSM era um projeto pessoal do rei, mas se
os jograis transmitiam os poemas através do canto, é provável que tenham participado
de sua criação com a sugestão de alterações ou as executando a sua própria maneira.
Através de ferramentas teóricas da etnomusicologia6, o autor atualizou o debate sobre
a notação musical das cantigas e identificou a influência da cultura andaluza nos
modelos rítmicos das composições da Afonso X. Ou seja, é possível identificar nas
cantigas elementos tradicionais da poesia provinda do oriente árabe. Da mesma forma
Candé ressalta que:

(...)até o século XII ou XIII, não há incompatibilidade entre os


sistemas musicais que podem referir-se às mesmas fontes. Os
músicos do Oriente e do Ocidente encontram ao longe vivos
sucessos, e o ensinamento dos teóricos persas coincide em mais
de um ponto com o de Boécio e de seus sucessores – quando
Afonso X, “El Sabio”, introduziu o ensino de música na

4
FONTES, Juan Torres. Alcaraz y la cantiga CLXXVIII”, en Alcanate. Revista de estudios alfonsíes,
III, El Puerto de Santa María (Cádiz), 2002-2003, págs. 256.
5
FERREIRA, Manuel Pedro. Jograis, contrafacta, formas musicais: cultura urbana nas Cantigas de
Santa Maria. In. Alcanate. Revista De Estudios Alfonsies VIII [2012-2013], [43 - 53] El. Puerto de Santa
María: Cátedra Alfonso X el Sabio. 2007 P. 47.
6
Abordagem que busca compreender a música como cultura que como seus principais expoentes John
Blacking (1928-1990). Seu livro “How musical is man?” de 1974 está entre os mais citados nesse campo
de estudos.
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Universidade de Salamanca, os estudantes ainda puderam
formar-se nessas diferentes culturas. 7
5
Daí a importância do estudo das melodias das cantigas para compreendermos
as relações culturais na Península Ibérica Medieval. Ferreira foi capaz de perceber a
influência moura nas melodias e ressalta que apesar de não sabermos exatamente
quem foram os colaboradores de Afonso X, há indícios de que algumas músicas foram
feitas com base em outras, pois na Idade Média era comum revestir os poemas com
melodias preexistentes que serviam de moldura.8 Este processo, chamado de
contrafactum, pode ser identificado em cantigas que possuem um ajustamento
problemático entre texto e música. Isso nos permite compreender melhor a
música/poesia medieval, onde a mesma melodia podia ser cantada com diferentes
textos, o conteúdo poderia ser adaptado à forma e vice-versa. Esta abordagem do autor
renovou os estudos das Cantigas de Santa Maria, cuja abordagem geralmente é
predominantemente literária deixando para segundo plano o caráter musical, igualmente
importante para sua compreensão. Apesar de nos dias de hoje existirem concertos e
releituras musicais de cantigas medievais, a música ainda não recebe a mesma atenção
da academia. No entanto, a notação musical que acompanham as cantigas, ou o
espaço que se destinou para sua escrita atestam que elas eram cantadas e não lidas 9:
Embora a entonação da voz, dicção das palavras e a execução cênica serem
elementos muito importantes e igualmente difíceis de recuperar, não podem ser
negligenciados.
Desta forma, o estudo da História da música pode ser muito útil para auxiliar os
pesquisadores na compreensão das cantigas como música e performance, e não
somente como poemas escritos. No entanto, a leitura de obras do gênero deve ser
sempre critica, no enxerto abaixo, exemplificaremos alguns equívocos da obra “História
da Música Ocidental” de Grout e Palisca, na qual se afirma que desde o século IX:

7
CANDÉ. Roland de. História Universal da Música. São Paulo. Martins Fontes, 1994. P. 198.
8
Nesta obra Ferreira irá exemplificar como contrafacta as seguintes CSM: o Canto da Sibila (CSM 422), o
tropo de ofertório Recordare, virgo mater (CSM 421), um rondeau com texto latino (CSM 290), uma
canção devocional de Gautier de Coinci (CSM 60) e uma alba do trovador Cadenet (CSM 340).
9
FERREIRA, Manuel Pedro. Jograis, contrafacta, formas musicais: cultura urbana nas Cantigas de
Santa Maria. In. Alcanate VIII [2012-2013], [43 - 53] ALCANATE. REVISTA DE ESTUDIOS
ALFONSIES El Puerto de Santa María: Cátedra Alfonso X el Sabio. Disponível em:
<http://www.publius.us.es/en/alcanate>. Acesso em 07/04/2016
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Até o final de idade média todos os desenvolvimentos importantes


da música europeia tiveram lugar ao norte dos Alpes. A 6
deslocação do centro musical da Europa, deveu-se em parte às
condições políticas. A conquista da Síria, do Norte da África e da
Península Hispânica pelos muçulmanos, concluída em 719 deixou
as regiões austrais da cristandade quer nas mãos dos infiéis, quer
sob constante ameaça de ataque. 10

Há muito tempo esta perspectiva foi superada pelas pesquisas dos historiadores.
O trecho acima evidencia a necessidade de trazer novas perspectivas para a
compreensão acerca da história da Música na Idade Média Ocidental, onde ocorriam
trocas culturais, econômicas e políticas entre cristãos e muçulmanos11. O pesquisador
desavisado, não especialista no assunto, mas interessado pela música, pode dar crédito
a perspectivas equivocadas do passado. Dai a necessidade de estudos
interdisciplinares, ou maior diálogo entre as disciplinas. Nas páginas seguintes de sua
obra, Grout e Palisca contradizem-se ao referir-se à música secular, afirmando que os
Provençais tiveram “a sua arte incialmente inspirada na cultura hispano-moura da
vizinha Península Ibérica, que se difundiu rapidamente para o norte” 12.
Devemos lembrar que a Idade Média foi um período marcado por conflitos entre
cristãos e muçulmanos, mas a guerra não foi onipresente. Na maior parte do tempo,
houve convivência pacífica e relações de cotidiano. Segundo Senko13 por um longo
período a escrita da história sobre o Oriente foi marcada pelo uso de construções
teóricas tendenciosas, as quais visavam geralmente depreciar a imagem da cultura
oriental frente a ocidental. No século XX, autores como Edward Said buscaram
desvencilharem-se destes antigos preconceitos. Em sua obra “Orientalismo: o Oriente

10
GROUT, D. J.;PALISCA, C. V. História da música ocidental, 4ª edição, Lisboa: Gradiva, 2007.P. 71.
11
Em nossa comunicação proferida na VIII Semana Acadêmica de História da UFPR, ministramos o mini-
curso: ‘Estudo da confluência da música proveniente do oriente com a do ocidente nas Cantigas de
Santa Maria de Afonso X o Sábio (1252-1284). ”Disponível em http://sahufpr.blogspot.com.br/ acessado
em 29/08/2015.
12
GROUT, D. J.; PALISCA, C. V. op. cit. 85.
13
SENKO, Elaine Cristina O passado e o futuro assemelham-se como duas gotas d’água: uma reflexão
sobre a metodologia da história de Ibn Khaldun (1332-1406). Elaine Cristina Senko. – Curitiba, 2012.
208 f. Orientadora: Profª. Drª. Marcella Lopes Guimarães Dissertação (Mestrado em História) - Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
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como invenção do Ocidente” 14, Said buscou desenvolver uma visão crítica do tradicional
discurso ocidental sobre o Oriente, alertando principalmente para a estigmatização
7
realizada pelos europeus acerca dos muçulmanos. Conhecer este trabalho é importante
para esclarecer equívocos construídos ao longo dos séculos, como a ideia “do atraso
do desenvolvimento da música provocado pelos infiéis”.
Ainda assim, a obra de Grout e Palisca é um clássico para o estudo da música.
Os autores escrevem uma obra muito ampla, e útil para estudarmos a notação musical
presente nos códices das cantigas medievais. Esta notação era constituída por neumas,
que são pontos quadrados, geralmente escritos com penas de ganso, que registravam
a melodia. 15 Este registro geralmente acompanhava as silabas das palavras, mas em
alguns casos encontramos figuras melismáticas16. Quanto ao ritmo existem amplas
divergências, pois a notação deste período não estabelecia critérios precisos para
execução dos ritmos, o que leva alguns estudiosos a defenderem que eram cantadas
em ritmo livre ou declamatório. Para Dart, os musicólogos não concordam integralmente
com a interpretação rítmica da notação medieval, e as discrepâncias entre as versões
publicadas da mesma peça, extraídas da mesma fonte, muitas vezes são
gigantescas.17No entanto, a influência dos ritmos árabes pode ser notada na forma
poética das Cantigas de Santa Maria. Na CSM 329, por exemplo, temos um poema de
15 cobras (estrofes), no qual o esquema de rimas é de AA no refrão e BBBA em todas
as cobras, ou seja, na estrutura poética temos a repetição das silabas: er er/ ez ez ez
er, na rima final do primeiro verso, que podemos verificar nas 2 ultimas estrofes da CSM
329:

Muito per é gran dereito | de castigado seer


quen s' atrev' ao da Virgen | pera furtar contanger..

Aquel mouro que estava | mui mais negro que o pez

14
SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. Tradução: Tomás Rosa
Bueno. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
15
GROUT. D. PALISCA.C. Op. Cit. p. 57.
16
Melisma é quando se canta ou toca várias notas em uma única sílaba. A música cantada neste estilo é
dita melismática, ao contrário de silábica, em que cada sílaba de texto corresponde a única nota.
17
DART, Thurston. Interpretação da Música. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p 203.
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foi todo escodrunnado, | e lógo aquela vez
acharon-ll' a oferenda | e aa Sennor de prez
8
a déron outra vegada. | E aquel mouro s' erger.18

O trecho que mostramos é um exemplo perfeito do zejel19 (aa / bbba). Quando


ao conteúdo, o estribilho enfatiza a punição que deve ser dada aos que furtarem o que
é da Igreja: a cantiga narra um episódio onde um grande exército de mouros saquearam
territórios cristãos. Estes mesmos mouros depositam moedas roubadas no altar da
Virgem, até que um deles decide roubar as moedas, o que lhe deixa cego e paralisado.
Quando seus companheiros devolveram as oferendas, o Mouro em questão voltou a
andar e enxergar. A cantiga é um primoroso exemplo da ambiguidade da representação
dos mouros, devotos da Virgem e ladrões ao mesmo tempo. A fonte nos apresenta o
reconhecimento do outro através do intercâmbio religioso. Por este motivo as Cantigas
de Santa Maria são um meio privilegiado para o estudo do contato entre os cristãos e
muçulmanos. Sua singularidade histórica é um verdadeiro exemplo das trocas culturais
do século XIII, período no qual, apesar de existir conflitos e perseguições entre o
islamismo, judaísmo e cristianismo, havia também colaboração e tolerância. No reinado
de Afonso X vemos o desafio de governar um reino cristão e conduzir a convivência
destas três crenças monoteístas20.
Além dos textos e notação musical, é importante abordarmos as iluminuras dos
manuscritos marianos. Elas exaltavam a figura do rei como um intermediário entre a
Virgem e seus súditos e Afonso X é representado no trono, como um novo rei David
rodeado por seus escribas e músicos.21 O rei David, segundo o Antigo Testamento teria

18
CSM 329.
19
O zéjel Era uma forma poética e musical popular no al-Andaluz entre os séculos XI e X, geralmente
executada por músicos mouros, e muito popular no mundo árabe bem como nas monarquias cristãs que
contratavam estes músicos. Na sua forma mais típica, consiste num estribilho de dois versos, ao que se
seguem 3 mono-rimas (mudança) e um quarto verso (volta) que rima com o estribilho, e que anuncia a sua
repetição. A distribuição da rima é a seguinte: AA (estribilho), BBB (mudança), A (volta) e repetição do
estribilho. Em resumo: AA-BBBA, AA-CCCA, AA-DDDA.
20
SILVEIRA, Aline dias da. Política e convivência entre cristãos e muçulmanos nas Cantigas de Santa
Maria. PEREIRA, Nilton M., CROSSETTI, Cybele de A., TEIXEIRA, Igor S. Reflexões sobre o
medievo. GT Estudos Medievais/ ANPUH-RS. São Leopoldo (RS): Oikos, 2009.
21
ECO. Umberto. Idade Média - Bárbaros, cristãos e muçulmanos. v. 1. Portugal: Publicações Dom
Quixote, 2010. P. 622.
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utilizado o saltério para acompanhar a recitação dos salmos22, muitos dos instrumentos
musicais citados na bíblia estão retratados nas iluminuras. Como são poucos os
9
instrumentos medievais que resistiram até os dias de hoje, estas fontes são importantes
vestígios deste mundo sonoro, apesar de serem representações mais recentes de
tradições culturais muito antigas. Abaixo vemos uma iluminura das Cantigas de Santa
Maria que presenta músicos mouros e cristãos cantando lado a lado:

23

A imagem diz muito: O trovador nobre e cristão portava sua espada na cintura
enquanto cantava e louvava a Santa Maria, os músicos tocam uma cítola, ou alaúde,
que estão entre os instrumentos de origem árabe que chegaram até a Europa via
Bizâncio ou via Magrebe e al-andaluz. Harnoncourt coloca que ao se estudar a história

22
Saltério é um instrumento dedilhado simples, com caixa alta, geralmente em forma trapezoidal, sobre a
qual são esticadas cordas em número de sete a dez. A mais antiga representação de um saltério que se
conhece está num relevo da Catedral de Santiago de Compostela, na Galiza, datado de 1184.
23
Iluminura da Cantiga 360 presente no Códice E-1 Disponível em: <
https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Christian_and_Muslim_playing_ouds_Catinas_de_Santa_Mari
a_by_king_Alfonso_X.jpg > Acesso em 31/10/2017
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de cada instrumento, verifica-se que a maioria possui uma trajetória que perpassam os
séculos,24 a nomenclatura e a origem de cada um é imprecisa, mas, atestam a
10
confluência da música oriental com a ocidental. 25 Smith afirma que Afonso X apreciava
a música moura e que seu filho Sancho IV em 1293 optou por incluir 15 músicos mouros
num grupo seleto de 27 músicos da corte. Possivelmente os músicos ocidentais
aprenderam a tocar alaúdes e outros instrumentos com mestres sarracenos e mouros 26
.
Na Idade Média, e demais períodos, o estudo da música é árduo e demora anos,
o que leva os discípulos a adotarem muito da performance e modos de tocar dos
mestres. Para Smith criou-se na Península Ibérica um estilo musical distinto da África e
de Bagdá fruto de influências recíprocas da literatura românica e melodias romances. 27
Nesse sentido, através das iconografias, Ferreira demonstra o papel destinado aos
jograis e torna explicita a importância da forma andaluza nas Cantigas Galego-
Portuguesas. A ligação entre os jograis locais e a corte é evidenciada pela forma
musical, poética e rítmica que remetem aos modelos árabes e aproximam
decisivamente as cantigas à arte mudéjar, refletindo a diversidade cultural da península
ibérica. 28
Na música medieval gostava-se que os instrumentos soassem muito fortes,
como no caso das gaitas-de-foles, ou suave como na harpa, flautas e alaúde. O
pesquisador deve tentar descobrir em qual ambiente a música era executada,29 pois há
diferenças entre a música executada ao ar livre e nos salões. Levantamos a hipótese

24
HARNONCOURT, Nikolaus. O Discurso dos Sons: Caminhos para uma nova compreensão musical.
1982. Trad. Marcelo Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. P. 29
25
GROUT, D. J.; PALISCA, C. V. Op. Cit.
26
SMITH. Douglas Alton. A History of the Lute from Antiquity to the Renaissance. The Lute Society
of America. 2002. Printed in Canada. P. 19
27
SMITH, Douglas Alton. Op.Cit. P. 20
28
Para o autor, Afonso X foi um dos responsáveis por adicionar ao canto europeu a forma da música
andaluza. O monarca impôs ao circulo palaciano suas excêntricas preferencias pessoais que refletiam o
isolamento politico durante as ultimas décadas do seu reinado. O Rei, como compositor, recorria a uma
variedade de tipos melódicos que, rara no canto gregoriano, tornou-se comum na tradição trovadoresca
europeia a partir do século XIII. Ferreira ressalta que Afonso X era um rei teimoso e incompreendido,
instigador de uma confluência palaciana entre cultura islâmica e cultura cristã, a qual na sua
excepcionalidade cuidou de dar expressão monumental. Ver: FERREIRA, Manuel Pedro. Alfonso X
Compositor. Alcanate , Revista de Estudios Alfonsíes V. V Semana de Estudios Alfonsiíes. 2006- 2007.
El puerto de Santa María.
29
DART, Thurston. Op.Cit. p 193.

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de que as Cantigas de Santa Maria eram executadas com certa frequência na corte de
Afonso X, conforme sugerem as iluminuras, o que indica um uso para-litúrgico do
11
repertório e fornece algumas pistas a respeito das ocasiões em que se executavam as
Cantigas de Santa Maria. Como verdadeira expressão da fé leiga, eram executadas em
festas, feiras e também no cerimonial de corte. Ademais, Afonso X recebia jograis e
trovadores dos reinos vizinhos, como França e Inglaterra, que contribuíam para o
intercâmbio de diferentes formas de se fazer música. Sua corte era, portanto, um local
que absorvia, retrabalhava e até exportava diferentes tendências e criações estéticas.

***

Além da produção das Cantigas, os empreendimentos culturais de Afonso X


foram variados. Este rei contava com a centenária tradição da escola de tradutores de
Toledo, que integrava o movimento de valorização do uso de línguas vernáculas como
um dos veículos para construção da identidade do reino. O rei enriqueceu o léxico
castelhano com termos jurídicos e científicos traduzidos do árabe, segundo Silveira tal
tarefa atesta o reconhecimento do outro (o muçulmano) na aquisição de saberes, e
consiste num passo importante para prática da tolerância, devido à necessidade de
organizar as formas de convívio nos reinos de Leão e Castela:

A prática da tolerância existiu na Península Ibérica muçulmana e


cristã. Uma tolerância medieval, praticada com pragmatismo para
evitar um mal maior, mas que não excluiu a possibilidade de
reconhecimento do outro como elemento que faz parte de um todo
maior, seja nas dimensões do reino ou do monoteísmo30.

No reino de Castela no século XIII, judeus e muçulmanos pagavam pesados


impostos, em contrapartida eram submetidos, bem como as suas propriedades, à
proteção do rei cristão.

30
SILVEIRA. Aline Dias da. FRONTEIRAS DA TOLERÂNCIA E IDENTIDAES NA CASTELA DE
AFONSO X. In. FERNANDES, Fátima Regina (Coord.) Identidades e Fronteiras no Medievo Ibérico.
Curitiba: Editora Juruá, 2013. p. 136.
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Enquanto Afonso X mandava traduzir, escrever crônicas e obras jurídicas em
castelhano, compôs suas cantigas em outro idioma: o galego-português que se
12
revelou como uma língua voltada para arte. O que lhe conferiu ainda mais prestígio foi
o fato de ter-se tornado idioma predileto dos trovadores, como os reis D. Dinis (1279-
1325) de Portugal e o próprio Afonso X 31, e são justamente estas cantigas/poesias que
buscamos estudar aqui; Para T. S Eliot, é a poesia que tem a incrível capacidade de
expressar sentimentos e conferir identidade a um grupo, mas, enquanto prática cultural
não poderia florescer isolada de outras culturas, e é por isso que confluência da tradição
do amor cortês, originário da Provença, com o modo de trovar galego-português e a
poesia andaluza ultrapassam as fronteiras medievais. 32
Esta mesma perspectiva pode ser encontrada no estudo de Ferreira. Em seu
capítulo “Hispânia contra Espanha: o ponto obliquo nas Cantigas de Santa Maria” o
autor explica que se escolhermos o termo Espanha para nos referir as cantigas de
Afonso X, excluiremos do nosso horizonte o reino português, enquanto o termo Hispânia
é mais preciso, pois inclui os reinos de Portugal, Leão ( e Galiza), Castela, Navarra e
Aragão, ligados à França e inclusive o reino islâmico de Granada. Devido ao idioma
poético comum as cantigas eram divulgadas por todos estes reinos, ao lado disso
Ferreira constatou que 26 Cantigas de Santa Maria narram eventos ocorridos em
Portugal,33 sem contar as referências a demais reinos vizinhos.
Nesse sentindo, Guimarães esclarece que o termo convergência, ou confluência,
sugere uma continuidade e sintonia, que pode explicar de maneira mais precisa a
interação entre a poesia peninsular e a provençal do que o termo influência, que sugere
uma procedência ou origem.34 A circulação dos cavaleiros e de suas mesnadas35 na
Idade Média não deixou somente uma trilha de saques e pilhagens. Eram eles também,

31
MONGELLI, Lênia Márcia. Fremosos Cantares: (antologia da lírica medieval galego-portuguesa) –
São Paulo. Editora WMF Martins Fontes, 2009.
32
ELIOT. T.S. De poesia e poetas. São Paulo: Brasilense, 1991. p. 30.
33
FERREIRA, Manuel Pedro. Aspectos da música medieval no ocidente peninsular. Volume 1 (Música
Palaciana). Editado por imprensa nacional – Casa da Moeda e Fundação Caloueste Gulbenkian. 1ª edição.
Lisboa, Maio de 2010.p. 176.
34
GUIMARÃES, Marcella Lopes. Sintomas de renovação na poética tardo-medieval. No prelo.
35
Era um contingente de homens armados pertencentes a um rei, rico homem ou conselho que formava
uma unidade ou tropa. Geralmente eram reunidos quando um rei pedia ajuda militar e os cavaleiros com
seus vassalos reuniam-se para atendê-lo.
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trovadores que, ao circularem, divulgavam suas cantigas, junto aos peregrinos e
romeiros que também contribuíam para o trânsito da criação poética. 36
13
Diferente do século XI, onde o Latim, tão importante para liturgia cristã e opunha-
se vigorosamente a língua árabe falada na Península Ibérica, nos séculos seguintes
nem uma nem outra vigora, mas, as línguas romances tornam-se principal meio de
comunicação da península37. Apesar de ter existido uma separação cultural-religiosa
na corte de Afonso X temos um espaço de aproximação e diálogo intelectual, que
propiciou a elaboração das Cantigas de Santa Maria. Além da música, em Castela o
bilinguismo era comum, palavras como alaúde, álgebra, álcool são só alguns exemplos,
da contribuição árabe ao vocabulário peninsular.

A presença dos muçulmanos nas Cantigas de Santa Maria: Uma análise


histórica.

Após a leitura das 427 Cantigas de Santa Maria separamos as que tinham o
mouro ou muçulmano como personagem de destaque, são elas: CSM 28, 46, 63, 83,
95, 99, 183, 185, 186, 192, 193, 205, 212, 215, 221, 277, 292, 305, 323, 328, 329, 333,
344, 345, 348, 352, 358, 361, 374, 379, totalizando 51 cantigas. Nelas vemos as
atividades dos mouros e episódios do processo de Reconquista, onde eles são
frequentemente caracterizados como feios e maldosos, mas, também são retratados
como devotos de Maria. Para Silveira nem todo muçulmano teve igual significado para
Afonso X e o rei buscava uma forma de integrar os não cristãos ao corpo do reino. 38
Através do estudo das cantigas não buscamos conhecer o relato de fatos
sucedidos. Não pretendemos violentar a fonte literária, mas buscamos aquilo que nem
crônicas, cartas ou leis podem oferecer, como historiador estamos interessados nas
maneiras de viver, pensar e sonhar; vamos às cantigas em busca da expressão do Eu,
de devoção, anseios, sentimentos e padrões estéticos.

36
GUIMARÃES, Marcella Lopes. Idem.
37
SILVEIRA. Aline Dias. Op. Cit. p. 131.
38
SILVEIRA. Aline dias. Op cit.
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Mais do que isso, as cantigas fornecem representações. Este conceito de Roger
Chartier é muito útil para analise do perfil dos mouros nas Cantigas de Santa Maria
14
enquanto:

(...) construção das identidades sociais como resultando sempre


de uma relação de força entre as representações impostas pelos
que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de
aceitação ou de resistência, que cada comunidade produz de si
mesma (...) 39.

Concordamos com Fontes para quem o poder estabelecido por Afonso X


buscava construir uma identidade social hispânica a partir de um passado heroico e de
coexistência com judeus e mouros, representados de forma homogeneizadora e
subordinada, mas, ao mesmo tempo, ambígua. Segundo este autor:

Percebe-se na Castela de Afonso X que o poder estabelecido


representa e ao mesmo tempo marginaliza grupos que compõem
essa sociedade por intermédio de representações, como no caso
dos “mouros”. Esta é uma criação homogeneizadora ao mesmo
marginalizante e ambígua que abarca todas as populações
hispano-árabes já pré-existentes no reinado castelhano-leonês,
vinculando-as a uma única categoria identitária. 40

Ao lado disso, devemos lembrar que as cantigas atribuídas a Afonso X cobrem


todo seu reinado e irão, portanto, refletir diversos momentos de seu governo, ainda que
boa parte refira-se aos anos iniciais. A primeira centena fora concluída entre 1257 e
1265 e as restantes foram compiladas até o final de seu reinado.
Ainda infante Afonso X participou de grandes batalhas contra os mouros e o
reinado de seu pai, Fernando III (1201-1252), foi igualmente marcado por conflitos que
deram à coroa de Castela a maior parte dos territórios mulçumanos, 41 inclusive a cidade
de Sevilha: governada um século antes por Almutâmide42 (1040 — 1095): exemplo de

39
CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos. AV. (online), 1991, vol.5, n.11, pp.173-
191.p. 183. Apud. FONTES, Leonardo Augusto Silva. Às margens da cristandade: os moros d’España à
época de Afonso X / Leonardo Fontes. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense,Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de História,2011. p 59.
40
FONTES, Leonardo Augusto Silva. Op. Cit, p. 56.
41
RUCQUOI, Adeline, História Medieval da Península Ibérica. Trad. Lisboa: Estampa, 1995. P. 159.
42
Terceiro e último dos reis Abádidas que governaram a Taifa de Sevilha
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rei e poeta do Al- Andalus43. Esta tradição poética não cessou no processo de
Reconquista, pelo contrário44:
15

Yet, ever after, a Muslim-ruled city fell to a Christian king, moorish


musicians were often retained at the court. The Cantigas de Santa
Maria of King Alfonso X the Wise of Castile were copied in Seville
not long after its reconquest.45

Afonso X não só preservou, mas incentivou a produção cultural de Sevilha,


cidade de grande valor cultural. Foi a partir dela que planejou expandir seus domínios
até o Magrebe. A CSM 328 conta que rei esteve no porto vigiando o abastecimento da
frota destinada a atingir esta ambição, tal feito levaria inevitavelmente ao choque com
Abû Yûsuf (1258 - 1286) rei da Dinastia Merínida, que após conquistar boa parte do
Marrocos enviou expedições para Granada contribuindo para a sobrevivência
muçulmana na região. Desta forma, a expedição castelhana teve como único êxito o
saque da cidade de magrebina de Salé. O envio da frota e a captura de prisioneiros da
cidade tiveram um custo muito alto para o reino Cristão, de forma que o Fecho de
Allende (Cruzada para África) foi declarado como um verdadeiro fracasso em 1260 46.
Após esta expedição, Afonso X realiza um cerco à cidade de Jerez em 1261 com
intenção de conquistá-la e repovoá-la e no mesmo ano tomou a cidade de Niebla,

43
Na corte de Almutâmide reuniram-se importantes homens das artes e da ciência como o astrónomo
Arzaquel (1029 - 1087) e poetas como Ibn Hamdis (1056 –1133) e Ibn Zaydun (1003-1071) que faziam da
cidade a capital das artes e cultura mesmo durante a desintegração do califado de Córdoba. Já no século
XII Averrois (1126 - 1198) descreveu Sevilha como o centro musical de Andalus.
44
O Califa ‘ Abd al- Rahman I (756 – 788) pode ter sido o um dos primeiros a ter músicos na corte de
Córdoba, enquanto o Califa Abd al- Rahman II (882-852) foi mais dedicado a trazer a música oriental para
Península e estabeleceu uma sessão especial no seu palácio para cantoras mulheres. Entre os importantes
músicos do século IX, destaca-se Zyryab (789- 857): músico e cantor da corte do emirado de Córdoba.
Saiu foragido de Bagdá após seu professor sentir-se ameaçado por seu talento e ficou conhecido pelo nome
de Ziryab ("melro") devido à sua bela voz e tez escura. Ele era tão talentoso que recebeu vários favores de
seu Califa. Tinha uma posição privilegiada no Califado de Córdoba. Modificou o alaúde, inseriu mais uma
corda de cor vermelha e desempenhou grande influência em andaluz como um representante da alta cultura
de Bagdá. In_ SMITH. Douglas Alton. A History of the Lute from Antiquity to the Renaissance. The
Lute Society of America. 2002. Printed in Canada. P. 18
45
SMITH. Douglas Alton Op.Cit. P. p.19. “Ainda assim, mesmo após uma cidade muçulmana cair para
um rei cristão, os músicos mouros foram na maioria das vezes mantidos na corte. As Cantigas de Santa
Maria do Rei Alfonso X, o Sábio de Castela, foram copiadas em Sevilha, logo após a sua reconquista.”
(tradução do autor).
46
JIMENEZ, Manuel Gonzalez. Alfonso X El Sabio. Editorial Ariel, S.A., Barcelona.Ariel biografías. 2ª.
Edición. 2004. P 140.
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território próximo ao Algarve português, cujo senhor era Muhammad Ibn Mahfoth.
Segundo Jimenez, não havia nenhuma justificativa para o ataque a Niebla se não a
16
necessidade de obter um êxito militar, que compensasse a opinião pública quanto ao
fracasso da cruzada para África.
A partir daí Afonso X continuou a residir em Sevilha, capital cultural do reino com
grande concentração de jograis e tradutores, 47 enquanto buscava entrar em acordo com
os reinos de Aragão e Portugal para pacificar a península e concentrar suas forças para
El Fecho del Imperio48. Porém, no ano de 1264 o rei teria que lidar com a revolta dos
mudéjares49 e neste mesmo ano Muhammad I de Granada enviou uma embaixada para
comunicar a ruptura da vassalagem que o vinculava ao monarca castelhano. Tal notícia
surpreendeu Afonso X, pois este vínculo permitia aos dois reinos conter os problemas
internos. Para Jimenez, as relações entre os dois monarcas podiam ser consideradas
amigáveis: Em 1254, por exemplo, Muhammad I foi às cortes celebradas em Toledo e
prometeu apoio a Afonso X para expedição ao norte de África. No entanto, os avanços
de Afonso X ao sul pressionaram o reino de Granada fazendo com que Muhammad I
sentisse ameaçado pelo avanço cristão. 50
Apesar dos conflitos, a política de Castela desde Fernando III foi marcada pela
inclusão dos territórios e boa parte da população muçulmana, assim como o reino de
Aragão, onde Jaime I (1208 - 1276) oferecia capitulações generosas aos mouros
valencianos. Tais acordos garantiam aos muçulmanos a prática de sua religião,
organização política, liberdade de movimento e venda de seus bens. Contudo, a
pressão das ordens militares sobre os mudéjares, bem como o descumprimento de tais
acordos pelo Reino de Castela levou a população muçulmana a desocupar a região e a
participarem do levante organizado por Muhammad I de Granada.
A revolta de 1264 ocorreu simultaneamente ao ataque de exércitos granadinos
contra a fronteira. O fator surpresa contribuiu para a eficiência da revolta, que teria
como consequência a convocação de uma cruzada contra o reino de Granada e os
mudéjares sublevados. O rei solicitou autorização e apoio do Papa, do reino de Portugal
e Aragão que atendeu na figura do próprio Jaime I, seu sogro, com sua hoste para acudir

47
Idem.
48
No qual o rei reivindicava a sua sucessão ao Sacro Império Romano Germânico.
49
Muçulmanos que viviam em territórios cristãos mediante o pagamento de tributos
50
Ibid.
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na difícil campanha contra os mudéjares. Em 1265, os principais conselhos dos reinos
de Jaén e Córdoba se uniram aos cavaleiros da fronteira e firmaram um acordo de
17
irmandade contra os mouros. Em junho deste mesmo ano, Afonso X à frente desta hoste
penetrou o reino de Granada para efetuar uma operação de castigo. Após essa
demonstração de força, Muhammad I não teve outra opção senão solicitar trégua.51 A
partir deste momento, formou-se uma dependência do reino de Granada em relação ao
reino de Castela, a trégua de 1265 permitiu a Afonso X neutralizar os últimos focos de
resistência em Andaluzia. Além disso, os tributos pagos pelo reino de Granada faziam
enorme falta, deste modo em 1266 celebrou-se o tratado de Alcalá, onde se renovou a
vassalagem ao reino de Castela com pagamento do tributo anual de 250.000 Maravedis
(moedas de ouro cunhadas na Península Ibérica).
No entanto, os maiores desafios enfrentados pro Afonso X, não viriam por parte
dos muçulmanos, mas seriam causados por seus próprios vassalos e inimigos internos.
Ao fim de seu reinado, quando finalmente reconheceu o seu fracasso na obtenção do
título de Imperador do Sacro Império Romano Germânico, este rei encontrou seu próprio
reino dividido por conflitos sucessórios, que o levou a mandar executar Don Fradique
seu irmão, entre outros membros da nobreza acusados de traição e conspiração, o que
lhe traria graves consequências políticas no futuro. Tal feito contribuiu pra o crescimento
do descontentamento e desconfiança de nobreza para com seu projeto de centralização
política. A execução de seu irmão seria utilizada como argumento em 1282 para
deposição de Afonso X por parte de partidários de D. Sancho (1258 – 1295), seu filho.
Antes disso, em 1280, Afonso X mandou executar seu almoxarife real, o judeu Zag de
la Maleha, acusado de traição ao disponibilizar recursos o reino para o Infante Sancho,
ao invés de socorrer a hoste do rei que sofrera sucessivas derrotas militares. O ponto
de vista do monarca é amplamente divulgado pela CSM 235, cujo refrão denuncia a
ingratidão de sua nobreza52:

Como gradecer ben-feito é cousa que muito val,


assi quen nono gradece faz falssidad' e gran mal.53

51
JIMENEZ. Op.Cit. p. 180
52
Idem. p. 315.
53
CSM 235
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No final do seu reinado Afonso X chegou a solicitar apoio do reino francês,


18
enquanto o infante Sancho buscou apoio em Navarra. Sancho, por sua vez, levou a
cabo incursões contra Granada o obrigou Muhammad II (1273–1302) a solicitar uma
trégua, ao lado disso buscou simpatizantes junto à igreja e ordens militares. Na
assembleia de Valladolid de 1282, Afonso X foi despossuído de seus poderes mantendo
apenas o título, pois, sua autoridade real permanecia reconhecida somente em
Sevilha.54 A nobreza, o clero e as ordens militares, as maiores forças políticas deste
55
contexto, aliavam-se àquele que seria o novo monarca: Sacho IV. Jimenez irá nos
mostrar um ponto importantíssimo desta conjuntura: no final de sua vida Afonso X
solicitou apoio do Papa e a demais reinos cristãos, mas a única ajuda verdadeira que
receberia, partiria surpreendente de Abu Yusuf (1258 - 1286) sultão dos Merínidas, que
colocou seu exército a sua disposição.
Após sua deposição em Valladolid, Afonso X deserdou e amaldiçoou
publicamente Sacho IV, deixando em seu testamento a maior parte de seus reinos para
o Infante Dom João de Castela. Além disso, “la escassa atividade de la cancilaria real
em los meses que precedieran a la morte de Alfonso X indica que su salud estaba ya
muy deteriorada” 56, até que em 1284 Afonso X faleceu deixando um legado cultural
ímpar na História do ocidente latino.
As Cantigas de Santa Maria, inevitavelmente irão refletir este contexto político
tão complexo. A CSM 46, por exemplo, conta a história de mouro que venerava a
imagem da virgem, até que se converte ao cristianismo, enquanto no início da cantiga
é descrito como infiel e saqueador, através de um milagre é convertido. Este temática é
reforçada pelo estribilho:

Porque ajan de seer


séus miragres mais sabudos
da Virgen, deles fazer
vai ant' ómes descreúdos57

54
Jimenez. Op. Cit. p. 347.
55
Idem. P. 351.
56
Idem.p. 371.
57
CSM 46
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Segundo a cantiga, inclusive os homens que não creem em Jesus, acabam por
19
ser convertidos. Os mouros descritos em detalhes “mouros barvudos” que os
diferenciavam dos demais, são reconhecidos, e podem inclusive receber a salvação
através da conversão. Tal tema se repete na CSM 192, onde a Virgem impede que um
mouro torne-se vassalo do demônio, enquanto na CSM 99 os mouros capturaram uma
cidade cristã, entram na igreja e destroem as imagens, sendo então punidos pela Virgem
por profanar a Igreja. Estas cantigas ao mesmo em que elogiam as matanças de mouros
nas batalhas da reconquista os retratam como importantes personagens do período. Ao
estudarmos a revolta dos mudéjares, por exemplo, temos que ter em mente que a
oposição entre o reino islâmico de Granada e o reino cristão de Castela não era total,
uma vez que Mohammad I era considerado vassalo de Afonso X e ambos os monarcas
influenciavam mutuamente cada reino, buscando alianças com a nobreza rival para
controlar o reino vizinho. Graças a esse vínculo com a coroa de Granada, o reino
castelhano recebia impostos que permitiam seu pleno funcionamento. Por trás dessa
aparente amizade, existia obviamente uma luta constante pela hegemonia na região.
Afonso X sempre buscou ser um imperador dentro de seu próprio reino e
enfrentou a resistência de sua nobreza por isto. Muhammad I, por sua vez, buscava ter
o controle de Granada e se desvincular da influência da dinastia dos Merínidas do
Marrocos. Cada reino possuía suas disputas internas, e a oposição entre muçulmanos
e cristãos não pode ser vista como total, pois, existia entre eles vínculos de vassalagem
e apoio mútuo, que revelam um complexo contexto político. A representação dos
mouros nas Cantigas de Santa Maria reflete este contexto e oferece distintas
percepções do muçulmano. Na CSM 379, por exemplo, a Virgem salva comerciantes
mouros do ataque de piratas, enquanto na CSM 192 os mouros são convertidos e
purificados. Afonso X podia esperar inclusive o apoio das minorias religiosas de seu
reino contra sua nobreza rebelde, o que explica a proteção dos judeus e muçulmanos
do reino. Nesse sentido, para Silveira as minorias religiosas deveriam ser integradas ao
corpo do reino, do qual o monarca era Cabeça, coração e alma. Nesse período as trocas
culturais foram inevitáveis e Afonso X teve que lidar com o desafio da alternância entre

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convivência e conflitos dentro de seu reino, temas que irão transparecer em suas
cantigas. 58
20

Conclusão:

As incompreensões contemporâneas sobre o Islã nos estimulam a pesquisar


sobre a presença da cultura árabe na Península Ibérica, este estudo se faz necessário
para esclarecer equívocos construídos ao longo dos séculos. A Idade Média foi um
período histórico marcado por vários conflitos entre cristãos e muçulmanos, no entanto,
a guerra não era onipresente. Na maior parte do tempo houve convivência e fiéis de
diferentes religiões relacionavam-se no cotidiano. Torna-se necessário, combater a
perspectiva dualista que estabelece às categorias “cristãos” e “muçulmanos” como
homogêneas e totalmente opostas uma a outra.
A partir da música foi possível perceber como a cultura cortesã dialogava com a
cultura popular nas Cantigas de Santa Maria, além de permitir a descoberta de um
hibridismo na composição destes poemas que refletem uma identidade cultural
59
indeterminada, reflexo do transito cultural entre Castela e os reinos vizinhos. A
presença dos muçulmanos nesta música/poesia se deu, portanto, de maneiras diversas:
não só passivamente como personagem refém da narrativa cristã, mas de maneira ativa,
a partir do momento eles executavam e influenciavam a criação destes poemas.

8. REFERÊNCIAS

FONTES:

Alfonso X el Sabio. Cueto, L.A.d,Ribera, J., & Real Academia Española (1889).
Cantigas de Santa Maria, Madrid, 1990.

58
SILVEIRA, Aline Dias. Op. Cit. P. 139.
59
SOKOLOWSKI, M. Aspectos da cavalaria nas cantigas de Santa Maria de Afonso X (1252-1284).
Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2016. Disponível em:
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