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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FAFICH – Departamento de História

2009

UMA ANÁLISE HISTÓRICA SOBRE O


INSULTO RACIAL

Walderez Simões Costa Ramalho

4º Período

Matéria: História e Linguagem

Professor: Luiz Arnaut

Belo Horizonte – Março de 2009


Neste trabalho, pretendo analisar uma fonte histórica relacionando
Linguagem e História. Para tanto, trabalharei com um processo encontrado por
um sociólogo1 na Delegacia de Crimes Raciais de São Paulo. Farei essa
análise relacionando os textos estudados com a fonte em questão. Acredito
que esse trabalho será de grande valia, pois, além de contribuir para uma
História Social da Linguagem e de ser um assunto de meu interesse, o tema do
insulto é ainda pouco explorado nas pesquisas históricas (ao menos no
Brasil)2.

Para começar, citarei o documento a ser estudado (queixa registrada


entre maio de 1997 e junho de 1998):

Informa a vítima que o indiciado, o qual prestava serviços


de convênio de assistência médica à empresa em que a
vítima trabalha, e por esse motivo freqüentemente
precisava entrar em contato pessoal ou telefônico, na
data de hoje ligou para falar com o gerente comercial e a
testemunha retro disse que ele não se encontrava mas,
se quisesse, poderia falar com a vítima. O indiciado pelo
telefone respondeu: “não falo com preto. Prefiro esperar”.
A vítima então tomou conhecimento do fato e ficou
sabendo que isso era freqüente. Esclarece ainda que nas
oportunidades anteriores que falou com o indiciado, ele
sempre foi extremamente mal-educado. A vítima sente-se
discriminada e ofendida em sua honra e imagem
pessoal.3

Vemos que o fato descrito envolvia três pessoas: o agressor, que


insulta a vítima de forma indireta; a testemunha, que seria o intermediário do
diálogo; e a vítima, que toma conhecimento do fato através do segundo
personagem. Portanto, não houve, neste caso, um contato direto entre os
envolvidos mais “importantes”. Na verdade, o agressor queria justamente evitar
esse contato com a vítima, devido à sua cor. Por isso, esta última se sentiu
prejudicada e discriminada. Apesar de faltar a versão do agressor, a “raça” da
testemunha, e os aspectos não-verbais do diálogo (entonação, gestualização),

1
Ver GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. O insulto racial: as ofensas raciais registradas em queixas de
discriminação.
2
Ver CARNEIRO, Deivy Ferreira. Calúnia e Injúria: uma análise historiográfica dos usos das ofensas
verbais na pesquisa histórica brasileira e internacional.
3
In: GUIMARÃES, ibdem
esse exemplo nos diz muito do contexto em que foi proferido o insulto (as
condições de enunciação).

O caso acima pode exemplificar os dois últimos pontos que Burke


colocou para o estudo da História Social da Linguagem: a língua reflete a
sociedade na qual é usada; e ela também molda essa sociedade. Assim, esse
insulto racial só foi possível em uma sociedade que segrega certos grupos
sociais, como os negros; além disso, concordaremos com Burke ao perceber
que essa ofensa é “um meio que indivíduos e grupos controlam outros grupos
ou resistem a esse controle, para afirmar ou suprimir certas identidades
culturais” 4.

O insulto está sempre relacionado a questões de poder. No caso


descrito, há uma tentativa de legitimar e (re)produzir uma hierarquia social
baseada em uma idéia de raça. Por outro lado, há também uma resistência a
essa hierarquia, pois a vítima se sentiu ofendida em sua honra e imagem
pessoal, e recorreu a meios legais para que o agressor fosse devidamente
penalizado. Acredito que o ofendido reconhece essa linha divisória
demonstrada por essa ofensa, e não nega as diferenças de cor: o que ele
rejeita é a representação dessas diferenças, ou seja, a tentativa de dominação
baseada no fato de ele ser negro. Nas palavras de Bourdieu:

“o insulto, assim como a nomeação, pertence à classe


dos atos de instituição e de destituição mais ou menos
fundados socialmente, através dos quais um indivíduo,
(...) quer transmitir a alguém o significado de que ele
possui uma dada qualidade, querendo ao mesmo tempo
cobrar de seu interlocutor que se comporte em
conformidade com a essência social que lhe é assim
atribuída” 5

Desta forma, podemos associar esse caso àquilo que Bourdieu


chamou de ritos de instituição. Afinal, os insultos raciais servem também para
institucionalizar a segregação, o afastamento do agressor em relação ao
insultado, relacionando-o à pobreza, à sujeira e à anomalia social. Instituir,
segundo Bourdieu, é “consagrar, sancionar e santificar um estado de coisas,

4
BURKE, Peter. A arte da conversação. Pág 41.
5
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer dizer. Pág 82
uma ordem estabelecida” 6. E é também impor limites, ou seja, fazer o que é de
sua essência e não qualquer outra coisa.

“é nítido o sentimento hierárquico de superioridade do


agressor, ferido pelo comportamento igualitário do
ofendido seja em uma disputa ou em um incidente que o
assusta ou desagrada, seja no dia-a-dia do
relacionamento social. Mais que uma arma de conflito, o
insulto é uma forma ritual de ensinar a subordinação
através da humilhação” 7

A A função desses ritos de instituição é “fazer desconhecer como arbitrário


e reconhecer como legítimo e natural um limite arbitrário” 8. A instituição, no
caso, explora as diferenças de cor, impõe uma identidade, uma essência social
baseada na raça do indivíduo e, o que dá no mesmo, impõe “um direito de ser,
que é também um dever ser (ou um dever de ser). É fazer ver a alguém o que
ele é e, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem de se comportar em função de
tal identidade” 9. O agressor se rejeita a ter um relacionamento de igualdade
com a vítima no dia-a-dia. Não aceitando essa situação, ele reivindica essa
linha divisória, lembrando ao agredido que sua essência social não lhe
permitiria essa igualdade. É um limite arbitrário que o agressor quer
transformar em algo natural. Para citar Guimarães,

“Em minha interpretação, a função do insulto racial é


institucionalizar um inferior racial. Isso significa que o
insulto deve ser capaz de, simbolicamente, a) fazer o
insultado retornar a um lugar inferior já historicamente
constituído, e b) re-instituir esse lugar.” 10

Esse insulto também é um exemplo daquilo que Bourdieu chamou de


lutas de classificações, ou seja,

“lutas pelo monopólio do poder de fazer ver e fazer crer,


de fazer conhecer e fazer reconhecer, de impor a

6
BOURDIEU. Pág 99
7
GUIMARÃES. Pág 11
8
BOURDIEU. Pág 98
9
BOURDIEU. Pág 100
10
GUIMARÃES. Pág 18
definição legítima das divisões do mundo social e, por
essa via, de fazer e desfazer os grupos” 11

A ofensa racial aparece, portanto, como uma forma de construção de


uma identidade social estigmatizada. Ela serve para reforçar o sistema de
valores de um grupo dominante. Assim, considerando que a posição social dos
negros no Brasil já está historicamente estabelecida, o simples emprego dos
termos negro(a) e preto(a) podem vir a ser insultuosos, mesmo na forma
sintética, ou seja, sem a necessidade de um complemento como “safado”,
“ladrão”, etc. Com isso, “negro” ou “preto” são expressões que

“passam a ser uma síntese verbal ou cromática para toda


uma constelação de estigmas referentes a uma formação
racial identitária. Mais que o termo, a própria cor adquire
função simbólica, estigmatizante, como bem o
demonstram os sinônimos listados em dicionários de
língua vernácula: sujo, encardido, lúgubre (...)” 12

Não quero dizer que o uso desses termos é sempre pejorativo. Não há
uma fórmula para identificar quais termos são injuriosos ou não. Para detectá-
los, é necessário considerar sempre as condições de enunciação. Segundo
David Garrioch, “nenhum tipo de comunicação, verbal ou não-verbal, pode ser
13
entendido sem referência ao contexto social no qual é produzido” . Afinal,
como bem disse o lingüista Antonio Carlos Secchin,

“Não há palavras „neutras‟; todas ganham ou perdem


cargas de significado a partir dos seus pontos de
produção e recepção, pois impregnam-se de matizes, de
ideologias e de intenções oriundas do lugar cultural e
social” 14

No insulto, portanto, o significado da palavra parece ter menos


importância do que a significação que assume numa dada situação. As injúrias
nos fazem questionar se as palavras realmente possuem um sentido fixo,
literal, que pode ser reconhecido sem a necessidade de se considerar as
condições de enunciação. Na fonte estudada, é nítido o caráter ofensivo da
expressão.

11
BOURDIEU. Pág 108
12
GUIMARÃES. Pág 4
13
GARRIOCH, David. Insultos verbais na Paris do século XVIII. In: História Social da Linguagem. Org
BURKE, Peter; PORTER, Roy. Pág 121
14
SECCHIN, Antonio Carlos. In: JUNIOR, Luiz Costa Pereira. A Justiça do Insulto.
Quero terminar dizendo que fazer esse trabalho foi, além de prazeroso,
muito produtivo e instigante para mim. A leitura dos textos teóricos, a busca
pela fonte e a leitura de artigos serviu (e servirá) muito para minha formação
acadêmica, pois o insulto (e não só racial) é um tema que pretendo trabalhar
mais a fundo. Confesso que não consegui colocar no papel tudo o que me veio
à cabeça, mas asseguro que não foi por displicência. Gostaria muito de receber
uma resposta crítica por parte de você (professor e/ou eventuais leitores), para
as idéias amadurecerem, e eu poder melhorar nos próximos textos, que
certamente virão. Obrigado.
BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar quer


dizer

BURKE, Peter. A arte da conversação.

CARNEIRO, Deivy Ferreira. Calúnia e Injúria: uma análise historiográfica


dos usos das ofensas verbais na pesquisa histórica brasileira e
internacional. Disponível em: <
http://www.rj.anpuh.org/Anais/2006/conferencias/Deivy%20Ferreira%20Carneir
o.pdf> Acesso em: 26/02/2009

GARRIOCH, David. Insultos verbais na Paris do século XVIII. In: História


Social da Linguagem. Org BURKE, Peter; PORTER, Roy. São Paulo:
Fundação Editora da UNESP, 1997

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. O insulto racial: as ofensas raciais


registradas em queixas de discriminação. São Paulo: Artigo publicado pela
USP. Junho de 1999. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
546X2000000200002&script=sci_arttext&tlng=pt> Acesso em: 13/02/2009

SECCHIN, Antonio Carlos. In: JUNIOR, Luiz Costa Pereira. A Justiça do


Insulto. Disponível em:
<http://revistamelhor.uol.com.br/textos.asp?codigo=11575>
Acesso em: 11/03/2009

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