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Editor originai: Harvard TJniversity Press,·

1 Cambridge, tJ. S. A.

@ Harvard Universlty.

Tradução: Maria Helena Garcia.

Orientação gráfica: Fernando Felgueiras.

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Todos os direito• para Portugal reservados por


PUBLICAÇÕES DOM QUIXOTE - R. Luciano Cordeiro, 119 L11 bo1

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f'NDICE

1. Travando conhecimento · 9

2. O fenómeno da mllslca .......................... . 33


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' 3. A composição da música .......................' . 63

4. Tipologia musical 91

5. As metamorfoses da música russa .. .......... . 123 1 .

6. A execução da música ............................ . 159

EpiJogo ...... ; . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

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1. TRAVANDO CONHECIMENTO

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Considero uma grande honra ocupar hoje


a cadeira de poética de Charles Eliot Norton
e sinto especial prazer em agradecer à Comis­
são, que tão- amàvelmente me convidou para
dirigir a pafavra aos estudant�s da Universi­
dade de Harvard.
Não consigo esconder como me sinto feliz
em vir falar pela primeira vez a uma audiên­
cia que está disposta a incomodar-se em me
escutar e em aprender antes de julgar.
. !' · Até ao presente tenho aparecido em estra-
dos de concertos e salas de teatro perante
multidões que constituem aquilo a que eu
designo por público. Nunca até hoje, porém,
me dirigi a uma audiência de estudantes.
Como estudantes que sois, sem dúvida ansio­
sos por adquirir sólidas informações sobre .
matérias que vos são apresentadas, não fica­
reis surpreendidos se vos avisar que a matéria
especial que vou discutir convosco é séria - ·

mais séria do que -aquilo que em geral se

11
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pensa. Espero que não fiqueis assustados pela


sua densidade, pela sua gravidade especi fica.
Não tenho qualquer intenção de vos esma­
gar ... mas torna-se difícil falar BQbre música
se apenas considerarmos as suas realidades
materiais, e eu sentiria que estava a trair
amúsica se a fizesse assunto duma disser­
tação feita à pressa, recheada de anedotas
e de divertidas divagações.
Não me esquecerei de que ocupo uma
cadeira de poética e não constitui segredo.
para nenhum de vós que o signi ficado exacto
de poética é o estudo do trabalho a se r feito.
O verbo poiein, de que a palavra deriva, não
significa nada mais senão fazer ou coMtruir.
A poética dos filósofos clássicos não con­
sistia em dissertações líricas sobre o talento
natural e sobre a essência da beleza. Para
eles, a simples pal avra techné envolvia tanto ' · .

as belas-artes como as artes mecânicas e era


aplicada ao conhecimento e ao estudo de cer-

tas e inevitáveis regras da arte aplicada. Eis


a razão por que a Poética de Aristóteles
sugere constantemente ideias respeitantes ao
trabalho pessoal, preparação de materiais e

estrutura. A poesia da música é exactamente


aquilo de que vos vou falar, quer isto dizer
que falarei sobre a construção no campo da
música como pret�xto para agradáveis fanta-

12

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sias: No que me diz respeito, estou demasiado


a par da responsabilidade que pesa sobre os
meus ombros para não tomar a tarefa seria­
mente a peito.
Assim, se aprecio extraordinàriamente a
honra que me foi dada de falar para vós,
que estais aqui para estudar e para obter
de mim aquilo que eu for capaz de dar, espero
que, por sua vez, vós desfruteis a vantagem
de serdes, na realidade, testemunhas duma
série de confissões musicais.
Não vos alarmeis. Não serão confissões
do estilo das de Jean-Jacques Rousseau e
ainda menos do tipo psicanalftico, que sob
uma máscara pseudocientifica apenas conse­
guem uma triste profanação dos valores reais
do homem e das suas faculdades psicológicas
e criadoras.
Gostaria de colocar o plano das minhas
confissões a meio caminho entre um curso
académico (deixem-me que chame a vossa
atenção para este termo, porquanto referir­
-me-ei novamente ao mesmo no decorrer das
minhas lições) e aquilo a que se poderia cha­
mar na generalidade uma apologia para as
minhas próprias ideias. Emprego a palavra
apologia não no seu sentido corrente francês,
significando eulógia, mas no sentido duma
justificação e defesa das minhas ideias e

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opiniões pessoais. Em suma, tudo isto signi·


fica que vos darei convicções dogmáticas.
Estou perfeitamente ciente de que as pala­
vras dogma e dogmático, seja qual for a rari­
dade do seu uso em assuntos estéticos ou
mesmo em assuntos espirituais, conseguiram .
sempre ofender - mesmo chocar - certas
mentalidades mais ricas de sinceridade do
que fortes em convicções. Por essa mesma
razão, insisto ainda mais em que aceiteis estes
termos inteiramente no seu legítimo signifi·
cado e aconselho-vos a reconhecer a sua vali­
dade e a familiarizar-vos com eles. Espero
que venhais a ter um gosto especial pelos
mesmos. Se falo do significado legítimo des­
tes termos é apenas para destacar o uso
normal e natural do elemento dogmático em
qualquer campo de actividades em que se
torna categórico e verdadeiramente essencial.
De facto, não podemos observar o fenó­
meno criador independentemente da forma
em que o mesmo se torna manifesto. Todos
os processos formais provêm dum princípio,
e o estudo deste princípio requer precisa­
mente o que designamos por dogma. Por
outras palavras, a necessidade que sentimos
de trazer ordem ao caos, de libertar a linha
recta da nossa operação da confusão de possi­
bilidades e da indecisão de pensamentos va-

14
gos, pressupõe a necessidade .de alguma espé­
cie de dogmatismo. Então, uso as palavras
dogma e dogmático apenas enquantd desig­
nam um elemento essencial na salvaguarda
da integridade da arte e do espírito, � man­ ·

tenho que neste contexto elas não usurpam


a sua função.
O próprio facto de termos de recorrer
àquilo a que chamamos ordem - essa ordem
que nos permite dogmatizar no campo que _ \
estamos a considerar - não só desenvolve
o nosso gosto pelo dogmatismo como também
nos incita a colocar a nossa própria activi­
dade criadora sob a égide do dogmatismo.
Eis, pois, a razão pela qual eu gostaria de
vos ver aceitar este termo.
Ao longo do meu curso e em todas as
oportunidades apelarei para o vosso sentir
e para o vosso gosto pela ordem e pela disci­
plina, porquanto estas - alimentadas, infor­
madas e apoiadas por conceitos positivos -
formam a base daquilo que se designa por
dogma.
Neste momento, a fim de vos orientar na

organização dos vossos estudos, devo dizer­


-vos . que o meu curso vai ser limitado ao
desenvolvimento de teses que constituirão
uma explicação da música sob a forma de
lição. Qual a razão por que uso a palavra

15
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explicação1 E qual a razão por que falo duma


explicação? Porque aquilo que tenciono diier·
-vos não constitui uma exposição impessoal
de dados gerais, mas será uma explicação
de música tal como a compreendo. Nem esta
explicação será menos objectiva em qualquer
aspecto, por ser o fruto da minha própria
experiência e das minhas observações pes­
soais .

O facto do valor e da eficácia de tal expli­


cação terem sido comprovados na minha
própria experiência convence-me - e dá-vos
a garantia - de que não vos estou a o ferecer
um conjunto de me ras opiniões, mas antes
uma série de descobertas que, embora reali­
zadas por mim, são todavia justamente tão
válidas para os outros como para mim pró­
pr io .

Deste modo, não se trata duma questão


dos meus sentimentos e gostos particulares
nem tão-pouco da questão duma teoria de
música projectada através dum prisma sub­
jectivo. As minhas experiências e investiga­
ções são inteiramente objectivas e as minhas
introspecções levara m a interrogar-me se
poderia extrair algo de concreto das mesmas.
Estas ideias que estou a desenvolver, estas
causas que estou a de fe nder e que trouxe
perante vós p ara defender duma forma siste-

16
mática, serviram e continuarão a servir como
base para a criação musical, precisamente
porque foram desenvolvidas na verdadeira
prática, e se vós atribuis alguma importância,
se bem que ligeira, ao meu trabalho criador
- que é o fruto da minha consciência e da
.....
1 • minha fé-, então por favor acreditai nos
. ..
conceitos especulativos que têm engendrado
"
o meu trabalho e se têm desenvolvido com ele.
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Explanar - ou, em francês, explicar do
1
latim explicare, esclarecer, desenvolver -é
descrever algo, descobrir a sua génese, obser­
var a relação das coisas umas com as outras,
procurar lançar luz sobre elas. Explicar-me a

vós é também explicar-me a mim próprio e


ser obrigado a esclarecer assuntos que são
falseados ou traídos pela ignorância e ma­
levolência que sempre se encontram unidas
por algum elo misterioso na maior parte
dos julgamentos feitos sobre a arte. A igno­
rância e malevolência encontram-se unidas
numa única raiz; a segunda beneficia sub­
-repticiamente das vantagens que extrai da
primeira. Não sei qual seja mais odiosa.
Evidentemente que a ignorância em si não
constitui nenhum crime. Começa a ser sus­
peita quando advoga sinceridade; porquanto
a sinceridade, conforme dizia Rémy de Gour­
mont, dificilmente constitui uma explicação,

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e nunca uma des culpa . A malevolência nunca


falha em pleitear ignorância como circuns­
tância atenuante.
Prontamente se aceita que esta sombria
conspiração de «ignorância , fraqueza e mali ­
cie1.» - para usar a linguagem da teol ogia -
justifique uma refutação, uma defesa leal e
enérgica, que é a maneira como eu com­
preendo o termo «polémica».
Assim, sou obrigado a ser polémico. Pri­ . ,

meiro, em virtude da subversão dos valores


musicais a que acabei de me referir e, segun­
do, em defesa duma causa que à primeira
vista pode parecer ser pessoal, mas que na
realidade não é. Deixem-me explicar este
segundo ponto: por algum acaso que me
agrada considerar como feliz, a minha pessoa
e o meu trabalho foram, apesar de mim, mar­
cados com um cunho distinto desde o início
da minha carreira e têm desempenhado o
papel dum «reagente». O contacto deste rea-.
gente com a realidade musical que me cerca,
com os ambientes humanos e o mundo de
ideias, provocou várias reacções em que a
violência tem sido apenas igualada pela arbi­
trariedade. Parec e que todos tinham a direc­
ção errada, mas acima e para além do meu
próprio trabalho estas reacções irreflectidas
afectaram a música como um todo e revela-

18
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ram a gravidade duma falha no julgamento
que viciou a consciência musical duma época
toda e invalidou todas as ideias, teses e opi;.
niões que foram apresentadas no que respeita
a uma das maiores faculdades de espírito - a
música como arte. Não nos esqueçamos de que
Petruckka, a Sagração da Primavera e o Rou­
xinol surgiram numa época caracterizada por
profundas mudanças, que alteraram muitas
coisas e perturbaram muitos espíritos. Não
que estas alterações tivessem lugar no domí­
nio da estética ou no nível de formas de
expressão (essa espécie de revolta tivera lugar
mais cedo, no inicio das minhas actividades).
As mudanças de que eu falo levaram a uma
revisão geral, tanto dos valores básicos como
dos elementos primordiais da arte da música.
Esta revisão, primeiramente evidente na
altura que acabei de mencionar, continuou
sem desfalecimento desde então. O que estou
aqui a dizer é em si elucidativo e claramente
se depreende do desenrolar dos factos con­
cretos e dos acontecimentos diários que esta­
mos presentemente a testemunhar.
Estou profundamente a par de que existe
um ponto de vista que considera o período
em que surgiu a Sagração da Primavera como
aquele que presenciou uma revolução. Uma
revolução cujas conquistas se diz estarem

19
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hoje processo de assimilação. Nego a vali·


no

dade dessa opinião. Mantenho que está errado


o terem-me considerado um revolucionário.

Qua:Q.do Sagração apareceu muitas opiniões


a

s e anteciparam no que lhe diz respeito . No


tumulto das opiniões contraditórias, o meu
amigo Maurice Ravel interveio, pràticamente
sõzinho, para pôr as coisa s nos seus de'1dos '
'
lugares . Foi capaz de ver e disse que a novi­ ::, .:'i !
.!
dade da Sagração consistia não na ccomposi· ·,
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ção » , não na orquestração , não no mecanismo
técnico do trabalho, mas na entidade musical. !'

Apesar de tudo fui considerado um revo­


lucionário . Ora, os surtos revolucionários
nunca são completamente espontâneos. Exis­
tem pessoas intelige ntes que fazem revoluções
com malícia premeditada ... Torna-se sempre
necessário precavermo-nos contra o facto de
estarmos a ser detur pados por aqueles que nos
imputam uma i nten ção que não é a nossa .
No que me diz res peito, nunca ouvi falar
sobre revolução sem pensar na conversa que
G. K. Chesterton nos conta que teve com um
estalajadeiro de Calais ao desembarcar em
França. O esta lajadeiro queixava-se amarga· .

mente da crueza da vida e da crescente falta


de l ibe rdade :e Quase não mereceu a pena
- conclui a o estalajade iro - ter ha vido três
revoluções para terminar de todas as vezes

20
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tal como se comesou.:. Como consequência,
Chesterton fez-lhe ver que uma revolução no

verdadeiro sentido da palavra era a desloca­


ção dum objecto em movimento que descrevia
uma curva fechada, e deste modo voltava
sempre ao ponto de partida ...
O tom dum trabalho como a Sagração
pode ter parecido arrogante, a linguagem de
que falava poderá ter parecido áspera na sua
novidade, mas de modo algum implica que
seja revolucionária no sentido mais subver­
sivo da palavra.
Se apenas é necessário quebrar um hábito
para merecer ser rotulado de revolucionário,
então todos os músicos que têm algo a dizer
e que para o dizerem passam além dos limites
da convenção estabelecida seriam conhecidos
como revolucionários. Porque sobrecarregar
1.
1 o dicionário das belas-artes com este termo
t
estertoroso, que designa, na sua aceitação
mais vulgar, o estado de tumulto e de violên­
cia, quando existem tantas outras palavras
que melhor se adaptam para designar origi­
nalidade?
Na verdade, ver-me-ia atrapalhado para
vos citar um único facto na história da arte
que pudesse qualificar-se de revolucionário.
A arte é por essência construtiva. A revolu·
ção implica uma quebra de equilibrio. Falar

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de revolução é falar dum caos temporário.


Ora, a arte é o contrário do caos. Nunca cede \
1
ao caos sem encontrar imediatamente as suas
obras vivas, a sua própria existência amea-·
çada.
A qualidade de ser revolucionário é em
geral atribuída aos artistas dos nossos dias
com uma intenção laudatória, sem dúvida
porque estamos a viver um período em que
a revolução desfruta uma espécie de p re stí gio
entre a élite de ontem. Esclareçamos as coi­
· ·

sas: sou o primeiro a reconhecer que a a udá ·

eia é a força motora dos actos mais elevados


e importantes; o que constitui tanto maior
razão para não a colocar imprudentemente ao
serviço da desordem e fµndamentar as ânsias
num desejo de causar sensação a qualquer
preço. Aprovo a audácia. Não ponho quais­
quer limites à mesma, mas não existem tam­
bém quaisquer limites para o dano produzido
por actos arbitrários.
Para saborear completamente as conquis­
tas da audácia devemos exigir que a mesma
trabalhe sob uma luz impiedosa. Estamos a
trabalhar em seu favor quando denunciamos
os falsos produtos que usurpam o seu lugar.
O excesso, sem fundamento, estraga todas as
substâncias, todas as formas em que toca.
Na sua precipitação desequilibra a eficiência
das descobertas mais valiosas e ao mesmo
tempo corrompe o gosto dos seus devotos -
o que explica a razão pela qual o seu gosto
muitas vezes salta sem transição das compli­
1
cações mais desenfreadas para as banalidades 1 •

mais insípidas.
1.
Um complexo musical, porém, por muito
duro que possa ser, é legitimo até ao ponto ' 1

em que é verdadeiro. Para reconhecer, porém,


os genuínos valores, no meio dos excessos de
logro, tem de se ser dotado dum instinto espe­
cial que os nossos snobes odeiam, tanto mais
intensamente quanto é certo ficarem eles pri­
vados completamente do mesmo.
A nossa élite de vanguarda, juramentada
perpetuamente a exceder-se a si própria,
espera e exige que a música satisfaça o gosto
pela cacofonia absurda. ...

Digo cacofonia sem medo de ser classifi­


cado entre os grupos de convencionais, de
académicos pomposos, os 'laudatores temporis
acti. Ao usar estas palavras estou certo de
que pelo menos não estou voltando a casaca
do avesso. A minha posição a este respeito é
exactamente a mesma da altura em que com­
pus a Sagração e de quando as pessoas acha­
ram justo chamar-me um revolucionário. ,
Hoje, tal como no passado, estou precavido
contra dinheiro falso e tenho o cuidado de não
o aceitar como sendo a verdadeira moeda do
mundo. A cacofonia significa som desagradá·
vel, mercadoria de contrabando, música não
coordenada, que não se aguentará sob uma

critica séria.
Seja qual foropinião que se tiver sobre
a

a música de Arnold Schoenberg (para tomar


como exemplo um compositor que ev�lui ao

longo de linhas essencialmente diferentes das


minhas, tanto do ponto de vista estético como
técnico), cujas obras deram frequentemente
origem a violentas reacções ou sorrisos iró- ·i

nicos - torna-se impossível para um espírito


em si respeitador, equipado com verdadeira
cultura musical, não sentir que o compositor
de Pierrot Lunaire está perfeitamente ciente
do que está a fazer e que não está a tentar
enganar ninguém. Adoptou o sistema musical
que se ajustava às suas necessidades e dentro
deste sistema está perfeitamente de acordo
com ele próprio, perfeitamente coerente. Não
se pode pôr de parte a música que se detesta
e apelidá-la de cacofonia.
Igualmente degradante é a vaidade dos
snobes que se gabam duma familiaridade
embaraçosa com o mundo do incompreensível
eque com prazer confessam que se encontram
em muito boa companhia. Não é
a música que
eles procuram, mas antes o efeito do choque,
a sensação que entontece a compreensão.
Assim, confesso que sou completamente
insensível ao prestigio da revolução. Todo o

barulho que a mesma possa fazer não acorda


o mais ligeiro eco em mim, porquanto revo·
lução é uma coisa, inovação é outra. Mesmo
a inovação, quando não seja apresentada
numa forma imoderada, nem sempre é reco­
nhecida pelos seus contemporâneos.
Deixem-me dar-vos como exemplo a obra
dum compositor a quem escolhi propositada­
mente por causa da sua música, cujas quali­

dades desde há muito foram claramente i!

reconhecidas, que se tornou tão universal­


mente conhecido que os realejos de toda a

parte o tornaram seus.


Estou a falar de Carlos Gounod. Não
fiquem surpreendidos de me deter sobre Gou­
nod durante uns instantes. Não é tanto o
compositor de Fausto que retém a minha aten­
ção como o exemplo que Gounod nos oferece
dum trabalho cujos méritos mais evidentes
não foram compreendidos, quando ainda
novos, pelas próprias pessoas cuja missão é
estarem rigorosamente informadas sobre as

realidades que têm de julgar.


Consideremos o Fausto. Os primeiros cri­
ticas desta ópera famosa recusaram reconhe-

25
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cer em Gounod a inventiva melódica que hoje


nos parece o traço dominante do seu talento.
Com efeito, foram até ao ponto de perguntar
se na realidade ele possuiria mesmo algum
dom melódico. Eles viram em Gounod «um
sinfonista perdido no teatro», «um músico
severo», para usar os seus próprios termos,
e1 evidentemente, mais «Conhecedor» do que
«inspirado». Naturalmente, censuraram-lhe o

ter «alcançado os seus efeitos não através das


vozes, mas através da orquestra»,
Em 1862, três anos depois da primeira
representação de Fausto, a Gazette Musicale
de Paris declarou muito simplesmente que
Fausto, no conjunto, «não era o trabalho dum
melodista». Quanto ao famoso Scudo, cuja
palavra era lei na Revue des Deux Mondes, .·

este Scudo no mesmo ano produziu a obra­


-prima histórica seguinte, que nunca me per­
doaria se a não tivesse respigado na integra, /

para vós:
«Para sua infelicidade, o Senhor Gounod
admira certas partes obsoletas dos últimos
quartetos de Beethoven, que constituem a
fonte lamacenta donde saem os maus músicos
da moderna Alemanha: os Liszts, os Wagners,
os Schumanns e mesmo Mendelssohn, em cer­
tos aspectos duvidosos do seu estilo. Se o
Senhor Gounod tornou realmente sua a dou-

26

trina da melodia continua, da melodia da


floresta virgem e do pôr-do-sol que constitui
o encanto do Tannhiiuser e do Lohengrin, uma
melodia que se pode comparar à carta de
Arlequim: 'quanto a períodos e a vírgulas,
nem sequer lhes dedico um pensamento, deixo
isso consigo, para as colocar onde quiser' -
o Senhor Gounod nesse caso, o que eu gosta­
ria de acreditar ser impossível, estará irreme­
diàvelmente perdido.»
Mesmo os alemães corroboraram, de certo
modo, o bom Scudo. Na realidade, podia-se
ler na Miinchener Neueste Nachrichten que
Gounod não era francês, mas belga, e que as
suas composições não traziam o selo das
escolas contemporâneas francesa e italiana,
mas precisamente a da escola alemã, em que
ele tinha sido educado e formado.
Porque a literatura, que surge de todos os
lados da música, não mudou nos últimos
setenta anos e porque, enquanto a música
muda constantemente, os próprios comenta­
dores que recusam tomar nota destas trans­
formações não mudam - temos naturalmente
de tomar uma defesa vigorosa.
Portanto, vou ser polémico. Não tenho
receio de o admitir. Serei polémico não em
minha própria defesa, mas com o fim de
defender por palavras toda a música e os seus

27
princfpios, tal como os defendo duma maneira
diferente , com as minhas composições.
Deixem-me agora explicar-vos como o meu
curso será organizado. Dividir-se-á em seis
lições, cada uma das quais terá um titulo.
A lição que acabei de vos apresentar, como
podeis fàcilmente depreender, é apenas um
meio de travarmos conhecimento uns com os
outros. Na primeira lição tentei resumir os
princípios orientadores do meu curso. Sabeis
agora que ides ouvir confissões musicais e

sabeis qual o significado que atribuo a essa


expressão e como o carácter aparentemente
subjectivo da palavra é contrabalançado pelo
meu desejo de dar um carácte r nitidamente ·

dogmático a estas convicções.


A nossa apresentação uns aos outro s, sob
os auteros auspícios da ordem e da dis cip lina,
não vos deve assustar, porquanto o meu curso
não será limitado a uma exposição árida e
impessoal de ideias gerais, mas compreenderá
uma explicação da música tão vital quan to
possível, tal como eu a concebo; uma explica­
ção da minha experiência pessoal fielmente
relacionada com os valores concretos.
A minha segunda lição focará o fenómeno
da música. Deixo de parte o problema insolú­
vel das origens da música, a fim de discorrer
longamente sobre o fenómeno musical em si,

$8
tanto quanto o mesmo provém dum ser
humano integral e bem equilibrado, dotado
dos recursos dos seus sentidos e armado com
a sua inteligência. Estudaremos o fenómeno
da música como uma forma de especulação ,
em termos de som e de tempo.
Derivaremos deste estudo a dialéctica do
processo criador. Nesta conformidade, falar­
-vos-ei do principio de contraste e de seme­
lhança. A segunda parte da lição será dedi­ ' ,l
cada a elementos e morfologia da música.
A composição da música será a matéria ' '

estudada na minha terceira lição. Nela consi­


deraremos as seguintes questões: Que é a
composição e que é o compositor? Como e até
que ponto o compositor é um criador? Estas
considerações levar-nos-ão a estudar um por
um os elementos formais da arte da música.
Desta forma teremos que tornar muito expli­
citos os conceitos de invenção, imaginação,
inspiração, cultura e gosto; da ordem como
regra e como lei oposta à desordem, e final­
1.
,, mente a oposição do campo da necessidade ao
campo da liberdade.
A quarta lição tratará da tipologia musi­
cal aprendida através dum estudo das suas
origens e desenvolvimento históricos. A tipo­
logia pressupõe um acto de selecção que pre­
sume um certo método de discriminação. As
.' ... """""
'•

análises que este método nos instiga a fazer


conduzir-nos-á ao problema de estilo e, para
além disso, à interpretação de elementos for­
mais, cujo desenrolar constitui o que se pode
chamar a biografia da música.
Durante o decorrer desta lição examinarei . t

algumas questões que essencialmente nos . ,. .

dizem respeito hoje em dia: as que envolvem


o público, o snobismo, a protecção e o filisti­
nismo. Do mesmo modo o modernismo e o

academismo e a eterna questão de classicismo


e de romanticismo.
A quinta lição será inteiramente dedicada
à música russa. Relacionada com ela, aborda­
rei o folclore e a cultura musical russa; canto
simples e música tanto religiosa como pro­
fana. Falarei igualmente do italianismo, ger­
manismo e orientalismo da música russa do
século XIX. Chamarei a atenção para as duas
desordens das duas Rússias- as desordens
conservadora e revolucionária. Finalmente,
falar-lhes-ei do neofolclore dos Sovietes e da
degradação dos valores nacionais.
A sexta e a última lição, que focará a ver­
dadeira execução, levar-me-á a uma descri­
ção do fenómeno físico da música. Estabele­
cerei os elementos que distinguem a interpre­
tação da execução propriamente dita, e a este
respeito falarei também dos executantes e dos

so
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.
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seus ouvintes, da actividade e da passividade


da audiência e do magno problema de julga­
mento ou criticismo. O meu epílogo prpcurará
determinar o profundo significado da música
e o seu objectivo essencial, que é promover
uma comunhão, uma união do homem com o
seu próximo e com o Ser Supremo.
Como vereis, esta é a explicação da música
que vou empreender para vós e que espero
convosco assuma a forma de síntese dum sis­
tema que começará com uma análise do fenó­
meno da música e terminará com o problema
da execução da música. Notareis que não
escolhi o método mais frequentemente apli­
cado na síntese desta e spécie : o método que
desenvolve uma tese partindo do geral para
o particular. Tratarei deste assunto de forma
diferente. Adoptarei uma espécie de parale­
lismo, um método de sincronização; ou seja,
unirei os princípios gerais com os factos par­
ticulares, apoiando constantemente uns e
outros.
Na verdade, deve-se reconhecer que apenas
devido a razão de ordem prática somos obri·
gados a diferenciar as coisas arranjando-as
em categorias convencionais tais como «pri­
márias e secundárias», «principais e subordi­
nadas». Além disso, o meu objectivo não é

31
' ,
.... ...

, .

separar os elementos que nos dizem respeito,


mas seleccioná-los, sem os desunir.
A verdadeira hierarquia dos fenómenos,
assim como a verdadeira hierarquia das rela­
ções, usa a substância e a forma num nível
completamente à parte do das classificações
convencionais.
Deixai-me nutrir a esperança de que o
esclarecimento desta tese será um dos resul­
tados do meu curso, um resultado que muito
ambiciono.

32
2. O FENOMENO DA MÚSICA .
Consideremos o exemplo mais banal: o do
prazer que nós experimentamos ao ouvir o
murmúrio da brisa nas árovres, o susimrrar

dum riacho, a canção dum pássaro. Tudo isto


', . nos agrada, nos diverte e nos encanta. Pode­
mos mesmo dizer: «Que encantadora música'!>
Naturalmente, estamos apenas a falar em ter­
mos de comparação; mas então comparação
não é razão. Estes sons naturais sugerem-nos
música, mas não constituem em si música. Se
temos prazer nestes sons ao imaginar que
estando expostos aos mesmos nos tornamos
músicos e mesmo, momentâneamente, músicos
criadores, temos de admitir que nos estamos
a enganar a nós próprios. São promessas de
música; têm necessidade dum ser humano
para as manter: um ser humano que seja,
evidentemente, sensível às muitas vozes da
natureza, mas que além disso sinta a necessi­
dade de as pôr em ordem e que para essa
tarefa seja dotado duma habilidade especial.

35
..
t.·

..

Nas suas mãos, tudo o que tenho considerado


como não sendo música tornar-se-á música.
Daqui concluo que os elementos tonais tor­
nam-se música apenas pelo motivo de serem
organizados e que tal organização pressupõe
um acto humano consciente.
Desta forma, tenho conhecimento da exis­
tência de sons naturais elementares, as maté­
rias-primas da música, que, agradáveis em si,
podem acariciar-nos o ouvido e dar-nos um
prazer que pode ser p erfeito. Mas acima e
para além deste divertimento passivo des­
cobriremos música, a música que nos fará
participar activamente no trabalho dum espí-.
rito que ordena, dá vida e cria. Porquanto na
raiz de toda a criação descobre-se um apetite
que não é um apetite pelos frutos da terra.
Que aos dons da natureza se juntem os bene­
fícios do artífice - tal é a signif icação geral
de arte.
Porque não é a arte que se derrama sobre
nós na canção dum pássaro, mas a modulação

mais simples , correctamente executada, é já


arte, sem q ualquer possibilidade de dúvida.
A arte, no verdadeiro sentido, é uma forma
de moldar obras, de acordo com certos méto­
dos adquiridos quer por aprendizagem quer
por inventiva. Os métodos são as vias rectas

36
e predeterminadas que asseguram a probidade
da nossa operação.
Existe uma perspectiva histórica que,
como todos os aspectos das coisas subordina­
das a leis de perspectiva óptica, torna dis­
tintos apenas os objectos nos planos mais
próximos. Ã medida que os planos se afastam
de nós zombam do nosso domínio e apenas
nos deixam ter vislumbres de objectos priva­
dos de vida e de significado útil. Mil obstá­
culos nos separam das riquezas ancestrais,
que unicamente nos consentem aspectos da
sua realidade morta. Mesmo assim consegui­
mos agarrá-los mais por intuição do que por
conhecimento consciente.
Assim, para termos na mão o fenómeno
da música, nas suas origens, não há necessi­
dade de estudar os rituais primitivos e modos
de encantamento ou penetrar nos segredos da
magia antiga. Neste caso, recorrer à história
- mesmo à pré-história - não será arriscar­
mo-nos demasiado procurando agarrar aquilo
que não pode ser agarrado? Como poderemos
explicar razoàvelmente aquilo que nunca nin­
guém testemunhou?
Se eu considerar a razão só por si, como
guia neste campo, ela levar-nos-á directa­
xnente a falsidades, porquanto deixará de ser
iluminada pelo instinto. O instinto é infalível.

31
Se nos conduz erradamente deixa de ser ins­
tinto. Em todos os acontecimentos, uma ilusão
viva é mais valiosa em tais assuntos do que
uma realidade morta.
Um dia, a Comédie Française estava a
ensaiar uma peça medieval em que o famoso
actor Mounet-Sully, segundo as instruções do
autor, devia fazer um juramento sobre uma
velha Bíblia. Para os ensaios, a Bíblia antiga
tinha sido substituída por uma lista telefó­
nica. «Ü argumento exige uma Bíblia velha
- bradou Mounet-Sully. - Tragam-me uma
Bíblia velha!» Jules Claretie, o director da
Comédie, correu imedi atamente à sua biblio­
teca, a fim de ir buscar um exemplar dos dois
testamentos, n uma esplêndida edição antiga,
e tro uxe a triunfalmente ao actor. «Aqui tem.
-

mon cher Doyen - disse Claretie .......; uma edi­


ção do século quinze . . . » « Século quinze! -

disse Mounet-Sully. - Mas, então, nessa


altura era novinha em folha . . . »

Mounet-Sully tinha razão, se assim o

entenderem, mas atribuiu demasiada impor­


tância à arqueologia .

O passado foge ao nosso alcance. Deixa­


-nos ape nas coisas d isp ersas O elo que as .

uniu foge-nos. A nossa im aginaç ão preenche


em geral o vazio, util iz an do teorias preconce­
bidas Deste modo, por exe mplo , um materia·
.

38
lista apela para as teorias de Darwin ao
colocar o macaco diante do homem, na evo·
lução da espécie animal.
Consequentemente, a arqueologia não nos
fornece certezas, mas antes vagas hipóteses,
e à sombra de tais hipóteses alguns artistas
contentam-se com sonhar, considerando-as
menos como factos científicos do que como
fontes de inspiração. Com efeito, tal aplica-se
tanto à música como às artes plásticas. Os
pintores de todos os períodos, incluindo o
nosso, deixam as suas fantasias vaguear pelo
tempo e pelo espaço e oferecem sacrifícios
sucessivamente, ou mesmo simultâneamente,
nos altares do arcaísmo e do exoticismo.
Uma tal tendência não merece nem louvor
nem censura. Basta-nos notar simplesmente
que estas viagens imaginárias não nos ofere­
cem nada de exacto e não fazem com que
conheçamos melhor a música.
Na nossa primeira lição ficámos surpreen­
didos ao verificar que, no caso de Gounod, nos
anos 60 do século passado, mesmo J!�austo, no
início, encontrou ouvintes que se rebelaram
contra o encanto da sua melodia e ficaram
insensíveis e surdos à sua originalidade.
O que dizer então da música antiga e
como a poderemos julgar apenas com o ins­
trumento do nosso raciocínio? Porque aqui o

39
� µ . .j,
. .
J
. ..
f
�·l •
.,

instinto falha-nos. Falta-nos um elemento


indispensável de investigação: ou seja, a sen·
sação da música em si.
A minha própria experiência de há muito
me convence u de que qualquer facto histórico,
recente ou distante , pode ser utilizado como
estímulo para pôr a faculdade criadora em
movimento, mas nunca como uma ajuda para
esclarecer dificuldades.
Consegue-se apenas construir sólidamente
na base do urgente, porquanto aquilo que se
deixou de usar jamais nos servirá directa­
mente. As sim, é inútil retroceder para além
de certo limite , até dados informativos que já
não nos permitem contemplar a música em si.
De facto, não nos devemos esquecer de que
a música do tipo da que tem h oj e s igni ficado
para nós é a mais jovem de todas as artes ,
embora as suas origens possam ser tão velhas
como as do homem. Quando passamos para
além do século xv, as dificuldades materiais
em breve nos fazem parar e amontoam-se a
tal ponto que ficamos reduzidos a fazer con­
jecturas quando chegamos a executar músic a ,
Quanto a mim, não consigo tomar um

interesse no fenómeno da música, excepto


tanto quanto ela emana do home m completo ,
quero dizer, dum homem armado com os
recursos dos seus sentidos, das suas faculda-

40
des psicológicas e do seu equipamento inte­
lectual.
Apenas o homem completo é capaz do
esforço da especulação mais elevada que deve
agora ocupar a nossa atenção.
Porque o fenómeno da música não é nada
mais do que um fenómeno de especulação.
Não existe nada nesta expressão que vos deva
assustar. Pressupõe simplesmente que a base
da criação musical é uma percepção; primeiro
uma movimentação da vontade num domínio
abstracto com o objectivo de dar forma a algo
de concreto. Os elementos a que esta especula­
ção necessàriamente se dirige são os de som
e de tempo. A música é inconcebível à parte
destes dois elementos.
A fim de facilitar a nossa exposição fala­
remos primeiramente acerca do tempo.
As artes plásticas são-nos apresentadas
em espaço: recebemos uma impressão geral
antes de descobrirmos a pouco e pouco porme­
nores a nosso bel-prazer. A música, porém,
baseia-se na sucessão temporal e requer viva­
cidade de memória. Consequentemente, a
música é uma arte cronológica, tal como a
pintura é uma arte espaoiai. A música pres­
supõe, antes de mais, uma certa organização
em tempo, uma crononomia - se vós me per­
mitis o uso dum neologismo.

41
., �
' .

As leis que regulam o movimento dos sons

exigem a presença dum valor mensurável e


constante: metro, um elemento p urame nte
material, através do qual o ritmo, um ele­
mento puramente formal, se realiza. Por
outras palavras, o metro responde à pergunta
de em quantas partes iguais se divide a unida­
de musical a que chamamos medida, e o ritmo

responde à pergunta de como se agruparão


estas partes iguais dentro duma determinada
medida. Por exemplo, uma medida em quatro
compassos pode ser composta de dois grupos ;
.::
'i
de dois compassos ou em três grupos: um com­
passo, dois compassos e um compasso, e assim
por diante ...
Deste modo, vemos que o metro que ofe­
rece em si apenas elementos de simetria, e é
inevitàvelmente formado de quantidades uni­
formes, é necessàriamente utilizado pelo rit­
mo, cuja função é estabelecer a ordem do
movimento ao dividir as quantidades ofereci­
das pela medida.
Qual de nós ao ouvir música de jazz não
sentiu uma sensação divertida que se aproxi­
mou da vertigem quando um dançarino ou um
músico solista, ao tentar com persistência
acentuar tonalidades irregulares, não conse­
guiu afastar o nosso ouvido da pulsação regu-

42
e
' .

lar do metro, vergonhosamente expulso pela


percussão?
Como reagimos a uma impressão deste
tipo? Que nos impressiona mais neste conflito
de ritmo e de metro? :S:: a obsessão com regu­
laridade. Neste caso, os compassos isócronos
são simplesmente um meio de destacar a
invenção rítmica do solista. li'.: isto que causa
surpresa e produz o inesperado. Depois de
maduramente reflectirmos, chegamos à con­
clusão de que sem a presença real ou implicita
dos movimentos não poderíamos compreender
o significado desta invenção. Estamos, pois,
' aqui a desfrutar uma relação .
., '
Parece-me que este exemplo esclarece sufi-
cientemente as ligações entre o metro e o
ritmo no sentido hierãrquico, assim como no
sentido crononómico.
Que podemos dizer, agora que estamos
completamente informados, quando alguém
fala - como é muitas vezes o caso - acerca
dum «ritmo rãpido»? Como pode tal asneira
ser cometida por uma pessoa razoável? Por­
que, afinal de contas, a velocidade apenas
altera o movimento. Se eu cantar o hino nacio­
nal americano duas vezes mais depressa do
que o habitual, modifico o seu tempo; de
forma alguma altero o seu ritmo, porquanto a

43

<
. '

. ' .. - .
• • j

relação dos valores das notas permanece


intacta.
Fiz questãq de me debruçar alguns minu­
tos sobre esta questão muito elementar por­
quan to vemo-la estranhamente deformada por
pessoas ignorantes, que curiosamente abusam
do vocabulário da música.
Mais complexo e realmente fundamental
é o problema específico do tempo musical do
cronos da música. Recentemen te, este pro­
blema foi obj ecto dum estudo, particular­
mente interessante, feito por Pierre Souv..
tchinsky, um filósofo russo, meu amigo . O seu
pensame nto é tão semelhante ao meu que
nada melhor do que resumir a sua tese aqui.
A criação musical surge-lhe como um com­
plexo i nato de in t uições e de possibilidades
baseadas principalm e nte numa experiê ncia
exclusipamente musical de tempo - cronos,

de que o trabalho musical simplesmente nos


dá a realização fu ncio nal .
Todos sabem que o tempo passa a uma
velocidade que varia de conformidade com as
dispo si ç ões interiores do indivíduo e com os
acontecimentos que vêm afectar a sua cons­
ciência. A expectativa, o enfado, a a ngústia ,
o prazer e a dor, a co ntempla ção - todos nos
aparecem, então, como categorias di ferentes ,
no meio dos quais a nossa vida se desenrola ,

44
e cada uma destas determina um processo
psicológico especial, um tempo determinado.
Estas variações no tempo psicológico são
apenas perceptiveis, na medida e m que estão
relacionadas com a sensação primária - quer
, consciente quer inconsciente-do tempo real,
' tempo o ntológico .

O que confere ao conceito de tempo musi­


cal o seu cunho especial é que este conceito
nasce e desenvolve-se tão bem fora das cate­
gorias do tempo psicológico como, simultânea­
mente, com as mesmas.
Toda a música, quer se submeta ou não à
corrente normal de tempo ou quer se dissocie
ou não dela, estabelece uma relação especial
. entre a passagem de tempo, a própria duração
da música e os meios técnicos e materiais
através dos quais a música se manifesta.
O Sr. Suvtchinsky apresenta-nos, assim,
duas espécies de música: uma que se desen­
volve paralelamente ao processo de tempo on­
tológico, envolvendo-o e penetrando-o, levando
o espírito do ouvinte a uma sensação de eu­
foria e, se assim se pode dizer, de «calma
dinâmica:., outra que leva vantagem ou neu­
traliza este processo e que n ão é indepen­
dente de cada unidade tonal momentânea.
Desloca os centros de atracção e gravidade e
integra se
- no instável. Este facto torna-a

45
especialmente adaptável à. interpretação dos
impulsos emotivos do compositor. Toda a mú­
sica em que a vontade de expressão é domi­
nante pertence ao s egundo tipo.
Este problema do tempo na arte da música
é de primordial importância. Pensei que era
aconselhável insistir no problema, porquanto
as considerações que abrangem o mesmo po­
dem ajudar-nos a compreender os diferentes
tipos criadores que nos interessarão na nossa
quarta lição.
A músic a que se baseia no tempo ontoló­
gico é, em geral, dominada pelo princípio de
semelhança. A música que adere ao tempo �

psicológico ambiciona proceder por contraste.


A estes dois princípios que dominam o pro-
cesso criador correspondem os conceitos fun­
damentais de variedade e de unidade.
Todas as artes recorrem a este princípio.
Os métodos de policromia e monocromia
nas artes plásticas correspondem, respectiva­
mente, a variedade e a unidade. Quanto a
mim, considerei sempre que, dum modo geral,
é mais satisfatório proceder por semelhança
do que por contraste. Desta forma, a música
ganha em força, na medida em que não su­
cumbe às seduções da variedade. O que perde
em riqueza duvidosa ganha em autêntica ge­
nuinidade.

46
' :

O contraste produz um efeito imediato.


semelhança satisfaz-nos apenas com o
' tempo. O contraste é um elemento de varie­
dade, mas divide a nossa atenção. A seme­
lhança nasce duma luta pela unidade. A ne­
cessidade de procurar a variedade é perfei­
tamente legítima, mas não nos devemos es­
quecer de que o Um precede o Muito. Além
disso, a coexistência dos dois é constante­
mente necessária, e todos os problemas de
arte, tais como todos os possíveis problemas
nesse campo, incluindo o problema de conhe-
cimento e de Ser, giram inevitàvelmente ao
redor desta questão; por um lado, com Par­
ménides negando a possibilidade do Muito e,
por outro lado, com Heraclito negando a exis­
tência do Um. Simples questão de senso
comum, assim como de suprema sabedoria,
convida-nos a confirmar tanto um como
o outro.
De qualquer modo, a melhor atitude para
um compositor, neste caso, será a dum ho­
mem que tem consciência da hierarquia de
valores e que tem de fazer uma escolha. A va­
riedade é apenas válida como meio de atingir
a semelhança. A variedade cerca-me por to­
dos os lados. Assim, não receio sentir a sua
falta, porquanto constantemente sou confron­
tado com ela. O contraste está em toda a
parte. Basta-me apenas tomar conhecimento.
A semelhança está escondida. Tem de ser
procurada e apenas se encontra depois dos
esforços mais exaustivos. Quando a variedade
me tenta, sinto-me pouco à vontade no que
respeita às soluções fáceis que me oferece.
A semelhança, por outro lado, apresenta-me
problemas mais difíceis, mas oferece também
resultados que são mais sólidos e, portanto,
mais valiosos para mim. E sc usado será dize r
que não esgotei este eterno assunto, e a ele
teremos de voltar.
Não nos encontramos num conservatório
e não tenho qualquer intenção de vos maçar
com a pedagogia musical . Nesta altura não
me preocupa aflorar determinados p rincípios
elementares que a maior parte de vós conhece
e que se necessário - supondo que vos te­
nhais esquecido dos mesmos - encontrareis
claramente explicados em qualquer livro di­
dáctico. Não vos reterei com os conceitos de
intervalos, acordes, modos, harmonia, modula­
ção, registo e timbre - nenhum dos quais é
ambíguo; no entanto, deter-me-ei por alguns
instantes em determinados elementos da ter­
minologia musical que podem induzir à confu­
são e tentarei esclarecer certos mal-entendi­
dos, tal como acabei de fazer no que respeita
ao cronos, ao falar sobre metro e ritmo.

48
1

Todos vós conheceis que a escala de sons


audíveis constitui a base física da arte da
música. Sabeis, igualmente, que a escala é for­
mada por meio de tons da série harmónica
arranjada em ordem diatónica numa sucessão
diferente daquela que a natureza nos oferece.
Igualmente sabeis que a relação culmi­
nante entre dois tons se chama intervalo e
que um acorde é o som complexo que resulta
do som simultâneo de, pelo menos, três tons
L
de diferentes diapasões. f;
Tudo está para além deste ponto e tudo
é claro para nós. Todavia, os conceitos de
consonância e de dissonância deram origem '
a interpretações tendenciosas que devem ser '
definitivamente corrigidas.
Consonância, diz o dicionário, é a combi­
nação de vários tons numa unidade harmó­
nica. A dissonância resulta da alteração desta
harmonia pela adição de tons que lhe são
estranhos. Temos de admitir que tudo isto
não é muito claro. Desde que a palavra .:dis­
sonância» surgiu no nosso vocabulário tem
acarretado com ela uma certa reputação de
pecabilidade.
Acendamos a nossa lanterna: na lingua­
gem do livro didáctico a dissonância é um ele­
mento de transição, um complexo ou inter- 1

valo de tons que não é completo em si mesmo

49
e que tem de se tornar numa perfeita conso­
nância para satisfação dos ouvidos.
Tal, porém, como os olhos completam as
linhas dum desenho que o pintor deliberada­
mente deixou inacabado, do mesmo modo o
ouvido pode ser chamado a completar um
acorde e a cooperar na sua resolução, que em
boa verdade não chegou a ser terminada na
obra. A dissonância, neste caso, desempenha
o papel duma alusão.
Qualquer dos casos se aplica a um estilo
onde o uso da dissonância exige a necessidade
duma resolução. Nada nos força, porém, a
procurar constantemente a satisfação que re­
side apenas no repouso.
Durante mais dum século, a música for­
neceu exemplos repetidos dum estilo em que
a dissonância se emancipou. Deixou de estar
ligada à sua primeira função. Tendo-se ela
própria tornado urna entidade, acontece fre­
quentemente que a dissonância nem prepara
nem antecipa absolutamente nada.
Deste modo, a dissonância não é mais um
agente de desordem do que a consonância
é uma garantia de segurança.
A música de ontem e a de hoje, resoluta­
mente, une os acordes dissonantes paralelos,
que assim perdem a seu valor funcional, e o

50
nosso ouvido, de forma absolutamente natu­
ral, aceita a sua justaposição.
Evidentemente, a instrução e a educação
do público não se têm mantido a par e passo
com a evolução da técnica. O uso da disso­
nância, para ouvidos mal preparados para a
aceitar, não deixou de confundir a sua reac­
ção, produzindo um estado de debilidade em
que já não se distingue o dissonante do con­
sonante.
Deste modo, já não nos encontramos na
estrutura da tonalidade clássica, no sentido
escolástico da palavra. Não fomos nós que
criámos este estado de coisas e não é nossa
a culpa se temos de enfrentar uma nova ló­
gica de música, que teria parecido inconce-
, bivel aos mestres do passado. Esta nova ló­
gica abriu os nossos olhos a riquezas de cuja
existência nunca suspeitáramos.
Tendo alcançado este ponto, não se torna
menos indispensável obedecer não a novos
fdolos, mas à eterna necessidade de afirmar
o eixo da nossa música e de reconhecer a
existência de determinados pólos de atracção.
A tonalidade diatónica é apenas um meio
.,
de orientar a música para estes pólos. A fun­
ção da tonalidade é completamente subor­
dinada à força de atracção do pólo da sono­
ridade. Toda a música não é mais do que

51
. ..
. . � .. ,

uma sucessão de impulsos que convergem


para um de fi nitivo ponto de repouso. Isto é
tão verdade iro no canto gregoriano como na
fuga de Bach, tão verdadeiro na música de
Brahms como na de D ebussy .

Esta lei geral de atracção é apenas satis­


feita em parte pelo tradicional sistema diató­
nico , porquanto esse sistema não possui
nenhum valor absol uto.
São poucos os músicos de hoje que não
estão a par deste estado de coisas, mas per­
manece ainda o facto de ser impossível esti­
pular as regras que regem esta nova t écnica,
nem isto surpreende absolutamente nada.
A harmonia tal como é hoje ensinada nas
escolas dita as regras que apenas foram
fixadas depois da publicação das obras em
que foram baseadas, re gras que eram des­
conhecidas para os compos itores dessas obras.
Deste modo, os nossos trabalhos de harmonia
tomam como seu ponto de partida Mozart
e Haydn, nenhum dos quais jamais ouviu
falar de tratados de harmonia.
Assim, a nossa principal preocupação não
é tanto aquilo que é conhecido como tona­
lidade como aquilo que se pode d esignar por
atracção polar do som, dum intervalo ou

mesmo dum complexo de tons. O tom sonoro


constitui, assim, o eL"'!:o essencial da música.
A forma musical não seria crível na
ausência de elementos de atracção que cons­
troem todo o organismo musical e que estão
ligados à sua psicologia. As articulações do
discurso musical denunciam uma correlação
entre o tempo e a interacção dos tons. Não
sendo a música mais do que uma sucessão
de impulsos, é fácil ver que a aproximação
e a separação dos pólos de atracção deter­
minam, de certo modo, a respiração da
música.
Em virtude de os nossos pólos de atrac­
ção já não se encontrarem num sistema
fechado, que era o sistema diatónico, pode­
mos juntar os pólos sem sermos compelidos
a obedecer às exigências da tonalidade, por­
quanto deixamos de acreditar no valor abso­
luto do sistema maior-menor com base na
entidade a que os musicólogos chamam
escala.
A afinação dum instrumento, dum piano,
por exemplo, requer que toda a escala musi­
cal existente no instrumento seja ordenada
de conformidade com as fases cromáticas.
Tal afinação leva-nos a observar que todos
estes sons convergem para um centro que é
o a acima do e médio.
A composição, para mim, consiste em
colocar numa ordem um determinado número

63
destes sons, de conformidade com determi ­
nadas relações intervalo. Esta a ctivi dade con­
-

duz a uma procura do centro sobre o qual


deve convergir a série de sons compreendidos
na minha incumbência. Assim, se for dado
um centro, terei de encontrar uma combi­
nação que convirja sobre o mesmo. Se, por
outro lado, se tiver encontrado uma combi­
nação ainda não orientada, terei que deter­
minar o centro para o qual a mesma deve
conve rgi r A d escoberta deste centro sugere­
.

-me a sol uç ão do meu problem a. :m, assim,


que satisfa ço o meu acentuado go sto por
tal espécie de topografia musical.
O sistema antiquado de tonalidade clás­
sica, que serviu como base para construções
musicais de interesse forçado, teve a autori­
dade de lei entre os músicos apenas durante
um curto período de tempo - um período
muito mais pequeno do que em geral se ima­
gina, que se estendeu apenas desde metade
do século XVII até metade do século XIX.
Desde o momento em que os acordes dei­
xaram de servir meramente para preencher
as funções que lhes eram atribuidas pe la
interacção dos tons, mas, em vez disso, se des­
prenderam de todo o constrangimento para
se tornarem novas entidades libertas de todos
os laços - desde esse momento, pode dizer-se,

54
I

que o processo está completo: o sistema dia­


tónico sobreviveu ao seu ciclo de vida. O tra­
balho dos polifonistas da Renascença ainda
não tinha entrado neste sistema, e vimos que
a música do nosso tempo já não lhe é fiel.
Uma progressão paralela de acordes-nona
bastaria como prova. Foi aqui que as portas
se abriram para aquilo que tem sido rotu­
lado com o abusivo termo atonalidade.
A expressão está em moda, mas isso não
significa que seja muito clara, e eu gostaria
de saber exactamente aquilo que as pessoas
que usam o termo querem dizer com ele.
O prefixo negativo a indica um estado de
:!
indiferença concernente ao termo, negando-o
sem inteiramente renunciar a ele. Com preen­
dida desta forma, a palavra atonalidade mal
corresponde àquilo que aqueles que a usam
têm em mente. Se se dissesse que a minha
música é atonai, isso seria o mesmo que dizer
que eu me tornei surdo à tonalidade. Ora,
pode acontecer que eu me mantenha durante
muito tempo dentro dos limites da estrita
ordem da tonalidade, mesmo que conscien­
temente quebre esta ordem com o objectivo
de estabelecer uma nova. Nesse caso não sou
atonal mas antitonal. Não estou a tentar
argumentar gratuitamente com as palavras.

55

1

Torna-se essencial saber aquilo que negamos


·

e o que afirmamos.
A modal i dade , a tonalidade e a polarid ade
são simplesmen te meios provis i onais que
estão a passar e que morrerão de vez. O que
sobrevive a todas as alterações do s istema
é a melodia. Os mestres da Ida de Média e d a
Renascença não se preocupavam menos com
a melodia do que Bach e Mozart; todavia a
minha topografia musical não reserva um
lugar isolado para a melodia. Reserva para
a melodia a mesma posição que ela ocupou
sob os sistemas modal e diat óni co . i .

Sabemos que o termo melodia, no s i gni ­


ficado científico, se aplica à voz mais alta
em polifonia, deste modo diferenciando a
melodia da cantilena não acompanhada que
se chama monódia.
Melodia, melôdia em grego, é a intona ção
de melos, que significa um fragmen to , uma
parte duma frase. São estas que impressio­
nam de tal modo o ouvido que o levam a
destacar determinadas acentuações . Assim,
melodia é o canto musical duma frase caden­
ciada - uso a palavra cadenciada no seu
sentido geral, não no sentido especial da
música. A capacidade para a melodia é um
dom, o que quer dizer que não está dentro
do nosso alcance desenvolvê-la pelo estudo,

56
' .

mas podemos, pelo menos, regular a sua evo­


lução por meio duma arguta autocrítica.
O exemplo de Beethoven bastaria para nos
convencer de que de todos os elementos da
música a melodia é a mais acessível ao ouvido
e a que menos se consegue. Eis aqui um
dos maiores criadores de música que passou
toda a sua vida a implorar a ajuda deste
dom que lhe faltava, de tal modo que este
surdo admirável desenvolveu as suas extraor­
dinárias faculdades em razão directa da
resistência que lhe era oferecida por aquela
que ele não possuía, tal como um cego na
sua noite eterna desenvolve a acuidade do .. J

seu sentido auditivo.


Os Alemães, como todos nós sabemos,
,,.
veneram os seus três B. Num plano mais
modesto seleccionaremos dois B para satis­
fazer as necessidades do nosso argumento.
Na altura em que Beethoven legou ao
mundo riquezas em parte atribuíveis à resis­
tência do som melódico, um outro compositor,
cujas realizações nunca igualaram as do mes­
tre de Bona, espalhou ao vento, com incan­
sável profusão, magnificas melodias da mais
rara qualidade, distribuindo-as tão graciosa­
mente como as recebera, sem mesmo se aper­
ceber do mérito de as ter criado. Beethoven
acumulou um património para a música que

51
parece ser Unicaillente o resultado duin tra­
balho intenso e árduo. Bellini herdou a me lo­
dia sem sequer a ter mesmo pedido, como
se o céu lhe tivesse dito: «Dar-te-ei a única
coisa que falta a Beethoven.»
Sob a influência dum intelectualismo
conhecedor que se manteve entre os amantes
da música da espécie séria, durante algum
tempo foi moda desdenhar a melodia. Começo
a pensar, em completa concordância com o
p úblico em geral, que a melodia deve manter
o seu lugar no plano máximo da hierarquia
dos elementos que constituem a música.
A melodia é o mais essencial destes elemen­
tos, não porque seja imediatamente percep­
tível, mas p orque é a voz dominante da sin­
fonia - não somente no sentido especifico
mas também simbolicamente.
Não existe, porém, nenhuma razão para
ficarmos anuviados pela melodia ao ponto
de perder o equilíbrio e de esquecer que a arte
da música nos fala em muitas vozes ao mesmo
tempo. Deixem-me mais uma vez chamar a
vossa atenção para Beethoven, cuja grandeza
deriva duma batalha obstinada com a melo­
dia rebelde. Se a melodia fosse toda a música,
o que poderíamos louvar nas diversas forças
que formam a imensa obra de Beethoven,
em que a melodia seguramente é a menor?

58
1•
Se é fácil definir melodia, 6 muito menos
t, fácil distinguir as características que tornam
r
• 1. bela uma melodia. A apreciação dum valor
" é ela própria objecto de apreciação. O único
padrão que possuímos nestes assuntos de­
pende dum requinte de cultura que pressupõe
a perfeição do gosto. Nada aqui é absoluto,
com excepção do relativo.
:Ji:-nos dado apenas um sistema de centros
polares e tonais com o objectivo de alcan­
çarmos uma determinada ordem, ou seja,
mais definitivamente, a forma, a forma em
que culmina todo o esforço criador.
De todas as formas musicais, a consi­
derada mais rica, do ponto de vista de desen­
volvimento, é a sinfonia. Em geral designa­
mos por esse nome uma composição em
diversos movimentos dos quais um confere
a toda a obra a sua qualidade sinfónica -
ou seja, o arlegro sinfónico, em geral colocado
na abertura da obra e que tende a justificar
o seu nome ao satisfazer as exigências duma
certa dialéctica musical. A parte essencial
desta dialéctica reside na porção central, o
desenvolvimento. li: precis amente este al"legro
sinfónico, que é também designado sonata­
-allegro� que determina a forma em que é
construída, como sabemos, toda a musica
instrumental, desde a sonata a um instru-

59
, . ..-: .

mento de solo através de vários conjuntos


de câmara (trios, quartetos, etc.) até às
mais extensas composições para grandes
massa s orquestrais. Não desejo , porém, ma­
çar-vos mais com um curso de morfologia,
que não corresponde exactamente ao objec­
tivo das minhas lições, e apenas menciono
o assunto, de passagem, para vos lembrar
que e xiste na música, assim como nas outras
artes, uma espéc ie de hierarquia de formas.
� costume distingui r as formas instru­
mentais das formas vocais. O el emento ins­
trum ental desfruta duma autonomia a que
o elemento vo cal é alheio, sendo este último
ligado às palavras. Através do curso da his ­
tóri a, cada um destes meios deixou a sua
marca sobre as formas a que deu origem.
Bàsicamente, tais distinções constituem ape­
nas categorias artificais. A form a nasce do
meio tonal, mas cada meio tão prontamente
pede emprestadas formas que foram desen­
volvidas por outros meios que a mistura de
estilos é constante e torna a discriminação
impossível .
Grandes centros de cultura, no passado,
tal com o a Igrej a , receberam com agrado
e cultivaram a arte vocal. No nosso t empo,
as sociedades corais já não realizam a mesma
tarefa. Reduzidas a preservar e a apresentar

60
obras do passado, não podem reivindicar o
desempenho do mesmo papel, porque a evo·
.
, lução da polifonia vocal paralisou há muito
tempo. O canto, cada vez mais ligado às
palavras, tornou-se por fim uma espécie de
enchedor, evidenciando por este modo a sua
decadência. Desde o instante em que o canto
assume, como seu chamamento, a expressão
do significado do discurso, deixa o campo da
• música e nada mais tem de comum com ele.
Nada demonstra mais claramente o poder
:· de Wagner e da espécie de tempestade e
força que ele desencadeou do que esta deca­
dência, que a sua obra verdadeiramente con·

sagrou e que ele desenvolveu ràpidamente
1 desde a sua época.
,: Como deve ter sido poderoso este homem
para ter destruído com tal energia uma forma
essencialmente musical que cinquenta anos de­
pois da sua morte ainda titubeamos sob o
descalabro e estrépito do drama musical! Por­
que na verdade o prestígio da Síntese da Arte
ainda se encontra vivo.
:m isso a que chamamos progresso? Talvez.
A menos que os compositores encontrem for·
ças para sacudir este pesado legado e obe·
deçam à admirável injunção de Verdi: «Vol­
temos aos tempos antigos, e isso será pro­
gresso.»

61


1
3. A COMPOSIÇÃO DA MúSICA
J
J

Estamos a viver numa época em que a


' condição do homem está a sofrer profunda al-
,,
1 teração. O homem moderno está progressiva-
mente a perder a compreensão dos valores e o

sentido das proporções. Esta im possibilidade


de assimilar as realidades essenciais é extre­
mamente grave. Conduz-nos infalivel mente à
violação das leis fundamentais do equilíbr io
humano.
No dominio da música , as consequências
desta desorientação são as seguintes: por um
lado, existe uma tendência para afastar o es­
pírito daquilo a que chamo alta matemática
da música, a fim de degradar a música numa
utilização servil e vulgarizá-la ao adaptá-la
às exigências dum util itarismo elementar -

como veremos, em breve, ao examinar a mú­


sica soviética. Por outro lado, porque o pr ó­
prio espírito está doente, a música dos nossos
dias e, em especial, a música que se intitula
e se crê pura acarreta consigo os si ntomas

65
5
,.

, ..

duma mácula patológica e espalha os germes


dum novo pecado original. O velho pecado ori­
ginal foi principalmente um pecado de conhe·
cimento; o novo pecado original, se posso falar
nestes termos, é, primeiramente e acima de
tudo, um pecado de ausência de conheci­
mento - uma recusa em reconhecer a verdade
e as leis que daí procedem, leis que conside·
ramos fundamentais.
Qual é então esta verdade no domínio da
música? Quais as suas repercussões na acti­
vidade criadora?
Não nos esqueçamos do que foi escrito:
Spiritus ubi vult spirat (São João, 3 :8). O que
devemos reter nesta proposição é acima de
tudo a palavra quer. Assim, o espírito está
dotado da capacidade de querer. O principio
da volição especulativa é um facto.
Ora, é precisamente este facto que muitas
vezes é debatido. As pessoas perguntam qual
a direcção que o vento do Espírito toma, e
não a justiça do trabalho do artífice. Ao fazer­
des isto, sejam quais forem os vossos senti­
mentos sobre ontologia ou seja qual for a
vossa filosofia e crença, deveis admitir que
estais a atacar a própria liberdade do espí­
rito - quer comeceis ou não esta imensa pala­
vra com letra maiúscula. Se fordes crente da
filosofia cristã tereis então de recusar aceitar

·. )

66 . .,,
..

a ideia do Espírito Santo. Se fordes agnóstico


ou ateísta, nada tereis a fazer senão recusar
ser um livre-pensador ...
Deve notar-se que nunca existe qualquer
disputa quando o ouvinte tem prazer na obra
que escuta. O menos conhecedor dos amantes
de música agarra-se prontamente à periferia
duma obra; agrada-lhe por razões que na
maior parte dos casos são inteiramente estra­
nhas à essência da música. Este prazer basta­
-lhe, e não exige nenhuma justificação, mas
se acontecer que a música não lhe agrade, o
nosso amante de música pedir-vos-á uma ex­
plicação da decepção que sentiu. Exigirá que
se lhe explique algo que é, na sua essência,
inenarrável.
Pelos seus frutos julgamos a árvore. Jul­
guemos então a árvore pelos seus frutos e

não nos imiscuamos com as raizes. A função


justifica um órgão, independentemente de
quanto estranho o órgão possa surgir aos
olhos daqueles que não estão habituados a ver
o seu funcionamento.
Os círculos snobes transbordam de pessoas
que, tal como uma das personagens de Mon­
tesqueu, se espantam como se pode possivel­
mente ser um persa. Fazem-me, infalivel­
mente, pensar na história do camponês que
ao ver pela primeira vez um dromedário no

61
·� � ; .
i .. , .

Jardim Zoológico o examina pormenorizada­


mente, sacode a cabeça e ao ir-se embora diz,
com grande gáudio dos circunstantes: cNão
é verdadeiro.»
:m, então , através do desempenho desini­
bido das suas funções que uma obra se revela
e se justifica. Somos livres de aceitar ou re­
jeitar este desempenho, mas ninguém tem o
direito de duvidar da sua existência.
Assim, j ulgar, discutir e criticar o prin­
cípio da vontade espec ulativa que está na ori­
gem de toda a criação é manifestamente inú­
til. No estado puro, a música é espec ulação
gratuita. Os artistas de todas as épocas têm
incessantemente t e stific ad o este conceito.
Quanto a mim, não ejo
v nenhuma razão para
não tentar fazer como eles fizeram . Eu pró­
prio, tendo sido criado, não posso deixar de
desejar criar. O que põe este desejo em movi­
mento e que posso eu fazer para o tornar· pro­
dutivo?
O estudo do processo criador é um assunto
extremamente delicado. Na verdade, torna-se
impossível do exte rior observar o trabalho in­
terior deste processo. li: fútil tentar seguir as
suas fases sucessivas na obra de qualquer
outra pessoa. Torna-se igualmente muito di.­
fícil para uma pessoa observar-se a si mesma.
Contudo é apenas pela ajuda da intros pecç ão
,

68
que posso ter alguma possibilidade de vos
orientar neste assunto, essencialmente variá·
vel.
A maior parte dos amantes da música
crê que aquilo que põe a imaginação cria·
dora do compositor em movimento é uma certa
perturbação emotiva geralmente designada
por inspiração.
Não tenho qualquer intenção de negar à
inspiração o papel preponderante que sobre
ela tem recaído no processo generativo que
estamos a estudar. Simplesmente, mantenho
que a inspiração não é de modo algum uma
condição preceituada do acto criador, mas
antes uma manifestação cronologicamente
secundária.
Inspiração, arte, artista-tantas palavras,
obscuras, pelo menos, que nos impedem de ver
claramente num campo em que tudo é equilí­
brio e cálculo, através dos quais se sente o
sopro da respiração do espírito especulativo.
i!: depois, e só depois, que a perturbação emo·
tiva, que está na raiz da inspiração, pode sur­
gir - uma perturbação emotiva acerca da qual
as pessoas falam com tanta falta de respeito
ao atribuir-lhe um significado que é chocante
para nós e que compromete o termo em si.
Não é evidente que esta emoção é simples­
mente uma reacção por parte do criador em

69
luta com essa entidade desconhecida, apenas
ainda o objecto da sua criação e que se irá
tornar uma obra de arte? Passo a passo, elo
a elo, ser-lhe-á permitido descobrir a obra.
ll1 esta cadeia de descobertas, assim como cada
descoberta individual, que dá origem à emo­
ção - um reflexo quase fisiológico, como o
do apetite, que provoca um afluxo de saliva-., ·

esta emoção que invariàvelmente segue inti­


mamente as fases do processo criador.
Toda a criação pressupõe, na sua origem,
uma espécie de apetite que é provocado pelo
gosto antecipado da descoberta. Este gosto
antecipado do acto criador acompanha a com­
preensão intuitiva duma entidade quase des­
conhecida já possuída, mas não ainda inteli­
gível, uma entidade que não tomará uma
forma definida, excepto pela acção duma téc­
nica constantemente vigilante.
Este apetite que surge em mim, ao simples
pensamento de pôr em ordem elementos musi­
cais que tenham atraído a minha atenção, não
é absolutamente nada uma coisa fortuita,
como a inspiração, mas tão habitual e perió­
dica, se não tão constante, como uma necessi­
dade natural.
Este pressentimento duma obrigação, este
gosto antecipado dum prazer, este reflexo con­
dicionado, como diria um moderno fisiolo-

70
l
.•

gista, mostra claramente que a ideia de des­


coberta e de trabalho ãrduo é o que me atrai.
O próprio acto de pôr a minha obra no
papel, de, como dizemos, amassar a massa, é
para mim inseparãvel do prazer da criação.
No que me diz respeito, não posso separar
o esforço espiritual do esforço psicológico e
físico. Defrontam-me ao mesmo nível e não
apresentam uma hierarquia.
A palavra artista, como pela maioria é
compreendida hoje em dia, confere ao seu por­
tador o mais alto prestigio intelectual, o pri­
vilégio de ser aceite como espírito puro - este
termo pretensioso é, do meu ponto de vista,
inteiramente incompatível com o papel do
homo faber.
Nesta altura devemo-nos lembrar de que,
seja qual for o campo de trabalho que nos
tenha caído em sorte, se é verdade que somos
intelectuais somos chamados não a cogitar,
mas a executar.
O filósofo Jacques Maritain lembra-nos de
que na poderosa estrutura da civilização me­
dieval o artista era apenas classificado como
um artífice. «E ao seu individualismo era proi ­

bida qualquer espécie de desenvolvimento


anãrquico, porquanto a natural disciplina so­
cial impunha-lhe certas condições limitativas.»
Foi a Renascença que inventou o artista, o

·�.I

.. .
11•. .
1 �: , ... •'

,.

distinguiu do artífice e começou a exaltar o


primeiro à custa do último.
No início, o nome do artista era apenas
dado aos Mestres de Artes: filósofos, alqui­
mistas, mágicos. Os pintores, os escultores,
os músicos e os poetas tinham apenas direito
a serem qualificados como artífices.

Manejando diversas ferramentas


O subtil artesão implanta
Vida no mármore, cobre e bronze

diz o poeta Du Bellay, e Montaigne enumera


nos seus Ensaios «pintores, poe tas e outros
artífices». Mesmo no século xvn, La Fontaine
chama um pintor pelo nome de artesão e es­
boça uma viva censura dum crítico mal humo­
rado que podia ter sido o antepassado da maior
parte dos críticos dos nossos dias.
A ideia da obra a ser feita está para mim
tão intimamente ligada à ideia de arranjar
materiais e ao prazer que a execução do tra·
balho em si nos concede que caso o impossível
acontecesse e repentinamente o meu trabalho
me fosse dado numa forma co mpletamente

perfeita ficaria emba r aça d o e c o nfundido,


como se se tratasse dum logro.
Temos um dever para com a música, ou
seja, inventá-la. Lembro-me de que uma vez,

72
. .,
·�

durante a guerra, quando atravessava a fron­


teira francesa, um guarda me perguntou qual
era a minha profissão. Disse-lhe, muito natu­
ralmente, que era um inventor de música. En­
tão o guarda ao verificar o meu passaporte
.,.
' .
perguntou-me porque era que eu estava dado
como compositor. Retorqui-lhe que a expres·
são «inventor de música» se parecia ajustar
mais exactamente à minha profissão do que
o termo que me era dado nos documentos que
me autorizavam a atravessar fronteiras.
A invenção pressupõe imaginação, mas não
se deve confundir com esta, porquanto o acto
de invenção implica a necessidade duma des­
coberta feliz e de alcançar a completa reali­
zação desta descoberta. Aquilo que imagina­
mos não se reveste necessàriamente duma
forma concreta e pode permanecer num estado
de virtualidade, ao passo que a invenção não
é concebivel fora da verdadeira realização.
Deste modo, o que nos preocupa aqui não
é a imaginação em si, mas antes uma ima­
ginação criadora: a faculdade que nos ajuda
a passar do nível da concepção para o nível
da realização.
No decorrer dos meus trabalhos tropeço
subitamente com algo inesperado. Este ele­
mento inesperado colide comigo. Tomo nota
dele. Na altura mais apropriada faço dele uso

73
;,"' _IH
'
f,

proveitoso. Este dom de oportunidade não se


deve confundir com o da irregularidade da
imaginação, vulgarmente chamado fantasia.
A fantasia implica uma vontade predetermi­
nada de cada um se abandonar ao capricho.
A ajuda, acima mencionada, do inesperado é
algo absolutamente diferente. 1l'.: uma colabÓra­
ção imanentemente ligada com a inércia do
processo criador, repleta de possibilidades não
solicitadas e que muito apropriadamente tem­
pera a inevitável extrema rigorosidade da von­
dade pura e simples. E é bom que assim seja.
«Em tudo que cede graciosamente - diz
algures G. K. Chesterton - tem que haver
resistência. As proas dos navios são belas
quando se inclinam apenas porque procuram
manter-se erectas. A Rigidez que cede ligeira­
mente, tal como a Justiça influenciada pela
Piedade, constitui toda a beleza da Terra.
Todas as coisas procuram crescer direitas, e
felizmente que nada tem êxito quando assim
acontece. Tentem crescer direitos e a vida vos
ensinará a curvar.»
A faculdade de criar nunca nos é dada só
por si. Vai sempre de mão em mão com o dom
da observação. Pode reconhecer-se o verda­
deiro criador pela sua capacidade em fazer
sempre descobertas ao seu redor, de descobrir
nas coisas mais insignificantes e humildes va-

74
.
.,
lores dignos de nota. Ele não tem de se preo­
cupar com uma bela paisagem; não necessita
de se rodear de objectos raros e preciosos.
Não tem de se lançar na procura de descober­ ,
I

tas; estas estão sempre ao seu alcance. Basta­ ( -.;.


' I

-lhe apenas deitar uma vista de olhos em


volta. Coisas familiares, coisas que estão em .�
todo o lado, atraem a sua atenção. O menor
acidente retém o seu interesse e orienta as
suas operações. Se lhe escorrega a mão ele
nota imediatamente; na ocasião, pode retirar
lucro de algo imprevisto que uma falta mo­
mentânea lhe revela.
Não se inventa uma casualidade: obser­
vamo-la para dela retirar inspiração. Uma
casualidade é talvez a única coisa que real­
mente nos inspira. Um compositor improvisa
sem destino, do mesmo modo que um animal
esgaravata. Ambos estão esgaravatando por­
que cedem a uma compulsão na procura de
coisas. Qual o anseio do compositor que se
satisfaz com esta busca? As regras com que,
tal qual um penitente, ele está sobrecarre­
gado? Não. Ele está à procura do seu prazer.
Busca uma satisfação que sabe perfeitamente.
que não encontrará sem que lute primeiro.
Não se pode forçar alguém a amar, mas o
amor pressupõe compreensão, e para com­
preender temos de o exercer em nós.

75
•\

O mesmo problema foi posto na Idade Mé­


dia pelos teólogos do amor puro. Compreender
para amar; amar para c ompreender Não va­ .

mos entrar aqui num círculo vicioso; estamos


a subir em espiral, contanto que tenhamos
feito um esforço inicial, tenhamos mesmo feito
um exercício de rotina.
Pascal tinha isto especific amente no seu

espírito quando es creve que o hábito «domina


o autómato, que por sua vez, irreflectida­
mente, domina o espírito. Porque não há que
errar - continua Pascal-, somos tanto autó­
matos como somos espíritos . . . ».

Assim, esgaravatamos na esperança de


obtermos aquilo que nos dá prazer, guiados
pelo nosso olfacto, e, subitamente, trope çamos
num obstáculo desconhecido, que nos provoca
um sobressalto, um choque, e este choque fe­
cunda o nosso poder criador.
A faculdade de observação e de fazer algo
daquilo que observamos pertence apenas à
pessoa que possui, pelo menos, no seu par­
ticular campo de trabalho uma cultura adqui­
rida e um gosto inato. Um comerciante, um
amante da arte, que é o primeiro a comprar
as telas dum pintor desconhecido, que se tor­
nará famoso vinte e cinco e anos mais tarde,
sob o nome de Cézanne - não nos dá tal pes­
soa um claro exemplo deste gosto inato? Que

76
outra coisa o guia na sua escolha? Uma ten­
dência, um instinto de que o seu gosto pro­
cede, uma faculdade completamente espon­
tânea, anterior à reflexão.
Quanto à cultura, é uma espécie de edu­
cação do berço que na esfera social confere
brilho à educação, mantém e completa a ins­
trução académica. Esta educação do berço é
justamente importante na esfera do gosto e
é essencial ao criador, que deve incansàvel­
mente educar o seu gosto ou correr o risco
de perder a sua perspicácia. O nosso espírito,
assim como o nosso corpo, requer um exer­ '

cicio continuo. Fica atrofiado se não o culti­ L'


1
varmos.
:m a cultura que traz à luz o valor completo
do gosto e lhe dá a oportunidade de provar
o seu valor simplesmente pela sua aplicação.
O artista impõe uma cultura sobre si próprio
e termina por impô-la aos outros. li: desta
maneira que se estabelece a tradição.
A tradição é completamente diferente do ,

hábito, mesmo dum hábito excelente, por­


quanto o hábito é, por definição, uma aquisi­
ção inconsciente e tende a tornar-se mecânico,
ao passo que a tradição resulta duma acei­
tação consciente e deliberada. Uma tradição
verdadeira não é a relí quia dum passado irre­
mediàvelmente desaparecido; é uma força viva

77

. :
�·

que anima e nos informa do presente. Neste


sentido, o paradoxo que por ironia mantém
que tudo quanto não é tradição é plágio, é
verdadeiro . . .

Longe de implicar a repetição daquilo que


foi, a tradição pressupõe a realidade daquilo
que tolera. Surge-nos como uma herança, um
legado que se recebe com a condição de o fazer
frutificar, antes de o passar para os nossos
descendentes.
Brahms nasceu sessenta anos depois de
Beethoven. Dum a outro e, de todos os pontos
de vista, a distância é grande; não se vestem
da mesma forma, mas Brahms segue a tra­
dição de Beethoven sem pedir emprestado um
dos seus trajes. Porque o pedir um método
emprestado nada tem a ver com o observar a
tradição. «Um método é substituído; uma tra­
dição é transportada a fim de produzir algo de
novo». Assim, a tradição assegura a continui­
dade da criação. O exemplo que acabei de
citar não constitui uma excepção, mas é uma
prova em cem duma lei constante. Este sen­
tido da tradição que é uma necessidade na­
tural não deve ser confundido com o desejo
que o compositor sente ao continuar a afini­
dade que ao longo dos séculos encontra com
algum mestre do passado.

78
A minha ópera Mavra nasceu duma sim­
patia natural pelo grupo de tendências meló­
dicas, pelo estilo vocal e linguagem conven­
cional que cada vez mais admiro na velha
ópera russo-italiana. Esta simpatia guiou-me,
muito naturalmente, ao longo do caminho
duma tradição que parecia perdida, na altura
em que a atenção dos círculos musicais es­
tava inteiramente voltada para o drama mu­
sical, que não representava nenhuma tradição,
do ponto de vista histórico, e que não preen­
cheu absolutamente nenhuma necessidade, do
ponto de vista musical. A voga do drama musi­
cado teve uma origem patológica.
Pobre de mim, mesmo a música admirável
de Pelléas et Mélisarule, tão fresca na sua mo­
déstia, não conseguiu levar-nos para um campo
esclarecido, apesar das muitas características
com que sacudiu a tirania do sistema wagne­
riano.
A música de Mavra permanece dentro da
tradição de Glinka e Dargomizhsky. Não tive
a mais pequena intenção de restabelecer esta
tradição. Simplesmente quis, por meu turno,
tentar o meu ponto de vista na forma viva
da opéra-bou{le, que tão bem se adaptou ao
conto de Pushkin que me deu o tema. Mavra
é dedicada à memória dos compositores, dos
quais nem um, tenho a certeza, teria reconhe-

19
...
. .

cido como válida tal manifestação da tradição


que eles criaram, por causa da novidade de
linguagem de que fala a minha música, cem
anos depois de os seus modeles terem flores­
cido. Quis, todavia, renovar o estilo destes
diálogos-em-música, cujas vozes foram inju­
riadas e afogadas pelo tinido e estrépito do
drama musicado.
Assim, cem anos passaram antes que a

frescura da tradição russo-italiana pudesse de


novo ser apreciada, uma tradição que con­
tin uou a viver à parte da corrente principal
d o presente e na qual circulava um ar salubre,
bem apropriado para nos afastar dos vapores
cheios de miasmas do drama musical, da arro­
gância insuflada, que não podia esconder a
sua vacuidade.
Tenho motivos para provocar a discussão
com a notória Síntese das Artes. Não a con­
deno meramente pela sua ausência de tra di ­

ção, a sua afectação de nouveau riche. O que


torna o seu caso muito pior é o facto de a
aplicação das suas teorias ter infligido um
duro golpe na música em si.
Em todos os períodos da anarquia espiri­
tual em que o homem ao perder o seu sentir
e gosto pela ontologia se assusta consigo
mesmo e com o seu destino, surge sempre um

destes gnosticismos que serve como religião

80
para aqueles que já não têm religião, tal
como em períodos de crises internacionais um

exército de adivinhadores, faquires e videntes


monopoliza a publicidade jornalística. Pode­
mos falar destas coisas tanto mais livremente
em virtude do facto de os dias alciónicos do
wagnerismo pertencerem ao passado e de a
distância que nos separa deles nos permitir
pôr de novo os assuntos na devida ordem.
Além disso, os espíritos firmes nunca acre­
ditaram no paraíso da Síntese das Artes e

têm sempre reconhecido os seus encantos no


seu verdadeiro valor.
Disse que nunca vi qualquer necessidade
da música adoptar um tal sistema dramático.
Acrescentarei mais alguma coisa: mantenho
que este sistema, longe de ter erguido o nível
da cultura musical, nunca cessou de a debili­
tar e finalmente de a humilhar da forma mais
paradoxal. No passado, ia-se à ópera apenas
pela diversão oferecida pelas obras musicais
acessíveis. Mais tarde, voltou-se a ir à ópera
a fim de bocejar com os dramas em que a
música, arbitràriamente paralisada por limi­
tações alheias às suas próprias leis, não podia
deixar de cansar o auditório mais atento,
apesar do grande talento exibido por Wagner.
Assim, da música impudentemente consi­
derada um deleite puramente sensual passá-

81
6
l • � f
,; ·�f· • ; " .

t '
... ·/
. '
. · , ..._ ';,·
j 1 . ..

mos sem transição para as tristes futilidades


da Arte-Religião, com o seu heróico arma­
mento, o seu arsenal de misticismo guerreiro
e o seu vocabulário temperado por uma reli­
giosidade adulterada. De forma que assim que
a música deixou de ser escarnecida foi apenas
para se encontrar sufocada sob flores literá­
rias. Conseguiu ser ouvida por um público
culto graças unicame nte a uma má compreen­
são, que pretendeu tornar o drama numa con­
fusão de símbolos, a própria música num
o bjecto de especulação filosófica. :m esta a
forma por que o espírito especulativo veio a
perder o seu curso e veio a atraiçoar a música,
enquanto ostensivamente tentava servi-la me­
lhor.
A música baseada nos princípios opostos
não deu ainda, infelizmente, provas do seu
valor no seu próprio período. :m c urioso notar
que foi um músico que se proclamava adepto
de Wagner, o francês Chabrier, que conseguiu
manter a sólida tradição da arte dramática
naqueles tempos difíceis e que se distinguiu
na opéra-comique francesa juntamente com al­
guns dos seus compatriotas, no auge da voga
wagneriana. Não é esta a tradição que con­
tinua no grupo cintilante das obras de arte
que são designadas por Le Médecin malgré
lui, La Colombe, Philémon et Baucis, de Gou-

82
noud; Lakmé, Ooppélia, Sylvia, de Léo De­

libes; Oarmen, de Bizet; Le Roi malgré lui,
L':Stoile, de Chabrier; La Béarnaise, Véroni­
que, de Messager - a que recenteinente se
juntou a Ohartreuse de Parme, do jovem Henri
Sauguet?
Pensem como foi subtil e aderente o ve­
neno do drama musical para se ter insinuado
mesmo nas veias do colosso Verdi.
Como podemos deixar de lamentar que este
mestre da ópera tradicional, no fim duma
longa vida salpicada de tantas obras de arte
autênticas, culminasse a sua carreira com
Falstaff, que se não é a melhor obra de
Wagner não é também a melhor ópera de
Verdi?
Sei que vou contra a opinião geral, que vê
a melhor obra de Verdi na deterioração do
génio que nos deu Rigoletto, 1l Trovatore, Aida
e La Traviata. Sei que estou a defender aquilo
que precisamente a élite do passado recente
depreciou nas obras deste grande compositor.
Lamento ter de o dizer, mas mantenho que
existe mais substância e verdadeira invenção
na ária «La donna e mobile», por exemplo,
em que esta élite nada viu a não ser uma fa­
cilidade deplorável, do que na retórica e voci­
ferações do Ring.

BS
•••
1

-, • �· J • ,, •

Quer o admitamos ou não, o drama wagne­


riano revela uma linguagem bombástica
contínua. As suas brilhantes impro visaçõe s
insuflam a sinfonia, p ara além de toda a
proporção, e dão-lhe uma essência menos real
do que a invenção, a um tempo modesta e
aristo crática , que floresce em todas as páginas
de Verdi.
No início do meu curso notifiquei que me
reportaria continuamente à nece ssidade de
ordem e disciplina, e eis-me de novo a fatigar­
-vos ao regressar ao mesmo tema.
A música de Ricardo Wagner é mais im­
provisada do que construída no sentido mu­
sical específico. As árias, os conju ntos e as
suas relações específicas na estrutura duma
ópera conferem a todo o trabalho uma coe­
rência que é s i m plesmente a manifestação
externa e visível duma ordem interna e pro­
funda.
O antagonismo de Wagner e de Verdi
muito nitidamente ilustra os meus pensa­
mentos sobre este assunto.
Enquanto Verdi era relegado para o reper­
tório dos tocadores de r ealej o , era moda acla·
mar em Wagner o revolucionário típico. Nada
mais significativo do que este ostracismo da
ordem à musa das esquinas das ruas, na al-

84
tura em que se encontra sublimidade no culto
da desordem.
A obra de Wagner corresponde a uma ten­
dência que não é, por assim dizer, uma desor­
dem, mas uma tendência que tenta compensar
uma falta de ordem. O principio da melodia
infinita ilustra perfeitamente esta tendência.
:m a conveniência perpétua duma música que
nunca teve mais razões para principiar do que
para acabar. A melodia eterna surge-nos as­
sim como um insulto à dignidade e à própria
função da melodia, que, como dissemos, é a
intonação musical duma frase cadenciada.
Sob a influência de Wagner, as leis que
defendem a vida do canto foram violadas e a
música perdeu o seu sorriso melódico. Talvez
o seu método de fazer as coisas correspon­
desse a uma necessidade, mas esta necessidade
não era compatível com as possibilidades da
arte musical, porquanto a arte musical é limi­
tada na sua expressão a uma medida que cor­
responde exactamente às limitações do órgão
que o compreende. Um modo de composição
que não atribua a si próprio limites torna-se
pura fantasia. Os efeitos que produz podem
acidentalmente divergir, mas não são capazes
de se repetirem. Não posso conceber uma fan­
tasia que se repita, porquanto apenas pode
ser repetida em seu detrimento.

85
( .

Vamo-nos compree nder uns aos outros no


que respeita a esta palavra fantasia. Não usa­
mos a palavra no sentido em que estã ligada
a uma forma musical definida, mas na acei­
tação que pressupõe um abandono do eu ao s
capr ichos da imaginação, e isto conjectura que
a vontade do compositor é voluntàriamente
paralisada. Na verdade, a imaginação não é
apenas a mãe do capricho, mas, também, o
criado e a criada da vontade criadora.
A função do criador é examinar cuidadosa·
mente os elementos que recebe, porquanto a
actividade humana deve impor limites a si
própria. Quanto mais a arte é d ominada e
trabalhada t anto mais é livre.
Quanto a mim, experimento uma esp écie
de terror quando, no momento de me pôr a
trabalhar e de me encontrar perante uma
imensidade de possibilida des que se me depa·
ram, tenho a sensação de que tudo me é per­
mitido. Se tudo me é perm itido, o melhor e o
pior, se nada me oferece resistência, então
qualquer esforço é inconcebível e não posso
usar nad a como base, e, c ons e quentemente ,
todo o empreendimento se torna inútil.
Terei então de me perder neste abismo da
liberdade? A que me deverei agarrar para es­
c ap ar à tontura que toma conta de mim pe­
rante a virtualidade desta infinidade? Toda·

86
via, não sucumbirei. Vencerei o meu terror e
ficarei tranquilo com o pensamento de que
tenho as sete notas da escala e os seus inter­
valos cromáticos à minha disposição, que
acentos fortes e fracos estão ao meu alcance
e que em todos estes eu possuo elementos
sólidos e concretos que me oferecem um campo
de experiência tão vasto como a infinidade
perturbadora e estonteante que acabou de me
assustar. � neste campo que lançarei as mi..
nhas raízes, inteiramente convencido de que
as combinações que têm ao seu dispor doze
sons em cada oitava e todas as variedades
rítmicas possíveis me prometem riquezas que
toda a actividade do génio humano nunca
esgotará.
O que me liberta da angústia em que uma
liberdade sem peias me faz mergulhar é o
facto de eu poder voltar sempre imediata­
mente às coisas concretas que estão aqui em
discussão. Não tenho qualquer uso para uma
liberdade teórica. Deixem-me ter algo finito,
definido - matéria que se possa prestar à
minha operação desde que seja comensurável
com as minhas possibilidades. Tal matéria
apresenta-se-me juntamente com as suas limi­
tações. Devo por minha vez impor as minhas
sobre a mesma. Assim, aqui estamos, quer
queiramos ou não, no domínio da necessidade,

87
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e, no entanto, qual de nós jamais ouviu falar


de arte que não seja como campo da liber­
dade? Esta espécie de heresia encontra-se uni­
formemente espalhada, porquanto se imagina
que a arte está fora dos limites da actividade
ordinária.
Bem, na arte, tal como em qualquer outra
coisa, apenas se pode construir numa funda­
ção resistente: s ej a o que for que ceda cons­
tanteme nte à pressão torna o movimento im­
possível.
Assim, a minha liberdade consiste em mo­
vimentar-me de ntro da estreita moldura que
atribuí a mim próp r io , para cada um dos meus
empreendimentos.
Irei ainda mais longe: a minha liberdade
será tanto maior e mais significativa quanto
mais estreitamente limitar o meu campo de
acção e quanto mais me rodear de obstáculos.
Seja o que for que diminua, a coacção diminui
a força. Quanto mais limitações se im põem
mais nos sentimos livres das cadeias que nos
algemam o espírito.
A voz que me intima a criar eu respondo,
primeiro, com s usto ; segui damente , tra nqui ­

lizo-me aceitando como armas aquelas coisas


que participam na criação; todavia, fora da
mesma a arbitrariedade da coacção serve
apenas para obter pre cis ão de execu ção.

88
De tudo isto concluímos a necessidade de
dogmatizar a dor de perdermos a nossa finali­
dade. Se estas palavras nos aborrecem e nos
parecem duras podemos abster-nos de as pro­
nunciar. Não obstante, e em todo o caso, con­
têm o segredo da salvação: «� evidente - es­
creve Baudelaire - que as retóricas e as
métricas não são tiranias inventadas arbitrà­
riamente, mas uma colecção de regras exigidas
pela própria organização do ser espiritual, e
nunca as métricas e as retóricas evitaram a
1 •

originalidade de se manifestar totalmente em 1

si. O contrário, ou seja, de que elas ajudaram


ao florescimento da originalidade, seria infi­
nitamente mais verdadeiro.»

1 •
'

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89
1
. . . 'l
1 ·
·.

.,

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I
4. TIPOLOGIA MUSICAL

1
1

Toda a arte pressupõe um trabalho de
selecção. Em geral, quando me disponho a
trabalhar, o meu objectivo não é definido. Se '�
'.�

me perguntassem o que eu desejava nesta fase


do processo criador, teria de ser muito pres­
sionado para o dizer. Daria, no entanto, uma
resposta exacta quando me perguntassem o
que eu não queria. 1 '

Proceder por eliminação - saber como


descartar, como o jogador diz, essa é a grande
técnica de selecção. Aqui de novo se nos de­
para a procura do Um de Muitos, a que nos
referimos na nossa segunda lição.
Acharia muito difícil mostrar de que modo
este princípio está incorporado na minha mú­
sica. Tentarei exprimi-lo expondo mais as
minhas tendências gerais do que citando fac­
tos particulares como exemplos: se procedo
por justaposição dos tons fortemente metá­
licos, posso produzir uma sensação imediata
e violenta. Se, por outro lado, consigo juntar

93
' "..
"

cores intimamente relacionadas, atinjo o meu


alvo menos directamente mas mais segura­
mente.
O princí pio deste método revela a activi­
dade subconsciente que nos faz inclinar para
a unidade; porque, instintivamente, preferi­
mos a coerência e a sua força tranquila aos
podere s agitados da dispersão - isto é, pre­
ferimos o domínio da ordem ao domínio da
irregularidade.
Porque a minha própria experiência me
mostra a necessidade de rejeição, a fim de
seleccionar, e a nece ssidade de diferenciação,
a fim de unir, parece-me que por extensão
posso aplicar este princípio a toda a música,
estabelecendo assim um quadro em perspec­
tiva, uma vista estereoscópica da história da
minha arte, e também ver o que constitui a
verdadeira fisionomia dum compositor ou
duma escola.
Será esta a nossa contribuição para o es­
tudo dos tipos musicais-para a tipologia­
e para um exame do problema de estilo.
O estilo é a forma parti cul ar como um
compositor organiza a sua concepção e fala a
linguagem da sua arte. Esta linguagem mu­
sical é o elemento comum aos compositores
duma escola particular ou duma época. Cer­
tamente que as fisionomias musicais de Mo-

94
zart e de Haydn são bem conhecidas de vós
e sem dúvida que observaram que estes com­
positores estão óbviamente relacionados um

com o outro, embora seja fácil distingui-los


para aqueles que estão familiarizados com a
linguagem do período.
O vestuário que a moda prescreve para
os homens da mesma geração impõe aos que
o usam um tipo particular de gestos, um com­
portamento e conduta comuns, que são con­
dicionados pelo corte dos trajos. De forma
semelhante, as vestes musicais usadas por
uma época deixam a sua marca sobre a lin­
guagem e, por assim dizer, sobre os gestos da
sua música, assim como sobre a atitude do
compositor em relação aos materiais tonais.
Estes elementos são os factores imediatos da
massa de pormenores que nos ajudam a de­
terminar como se formam a linguagem e o
estilo.
Não existe necessidade de vos dizer que
aquilo a que se chama estilo duma época re­
sulta duma combinação de estilos individuais,
uma combinação dominada pelos métodos dos
compositores que exerceram uma influência
preponderante no seu tempo.
Podemos observar, voltando ao exemplo
de Mozart e de Haydn, que eles beneficiaram
da mesma cultura, beberam das mesmas fon-

95
..
. ..

tes e emprestaram as descoberta s um ao


outro. Cada um deles, porém, edifica um mi­
lagre que lhe pertence.
Podemos dizer que os mestres, que na
sua grandeza ultrapassam a generalidade dos
seus contemporâneos, enviam raios do seu
génio muito para além da sua época. Desta
forma surgem como poderosos sinais de fogo
- como sinais luminosos, para usar a ex­
pressão de Baudelaire-, atrav és de cuja luz
e calor se desenvolveu uma soma de tendên­
cias que a maior parte dos seus sucessores
partilhará e que contribui para formar o vo-
1 ume de tradições que constitui uma cultura.
Estes grandes sinais luminosos, que bri­
lham a distâncias grandemente separadas so­
bre o campo histórico da arte, promovem a
continuidade que produz a verdade e apenas
tornam legítimo o significado de uma palavra
de que muito se tem abusado, e essa evolução
tem sido venerada como uma deusa- uma
deusa que revelou ser algo duma vagabunda,
digamos de passagem, mesmo em ter dado
nascimento a um mito um pouco bastardo que
muito se lhe assemelha e foi chamado de cPro­
gresso», com letra maiúscula ...
Para os devotos da religião do Progresso,
hoje é sempre e necessàriamente mais válido
do que ontem, surge necessàriamente a con-

96
·i- '

sequência de que no campo da música a opu­


lenta orquestra contemporânea representa um
avanço sobre os modestos conjuntos instru­
mentais dos primeiros tempos - pelo que a
orquestra wagneriana representa um avanço
sobre a de Beethoven. Deixo-vos para julga­
rem qual a preferência que vale a pena ...
A bela continuidade que torna possível o
desenvolvimento da cultura surge como regra
geral, que sofre algumas excepções que, pode
dizer-se, são expressamente criadas para o 1
1
confirmar.
De facto, em intervalos bastante separa­
dos vê-se um bloco quase errático em silhueta,
no horizonte da arte, um bloco cuja origem é
desconhecida e cuja existência é incompreen­
sível. Estes monólitos parecem enviados pelo
céu para afirmar a existência, e em certa me­
dida a legitimidade, do acidental. Estes ele­
mentos de descontinuidade, estes passatem­
pos da natureza, têm vários nomes na nossa
arte. O mais curioso chama-se Hector Berlioz.
O seu prestígio é grande. Pode ser atribuído
principalmente ao 1Yrio duma orquestra que
evidencia a originalidade mais irrequieta, uma
originalidade inteiramente gratuita, sem fun­ '
''
damento, uma originalidade que não é sufi­ 1

ciente para disfarçar a pobreza da invenção,


e se se mantiver que Berlioz é um dos grandes

97
7
'
'
...

1 ,

criadores do poema tonal responderei que


esse tipo de composição - que, a propósito,
foi de muito pequena duração - não pode ser
considerado no mesmo pé que as grandes for­
mas sinfónicas, porquanto procura ser intei­
ramente dependente dos elementos estranhos
à música. A este respeito, a influência de Ber­
lioz é maior no campo da estética do que na

da música; quando esta influência se faz


sentir em Liszt, Balakirev e no Rimski-Kor­
sakov das obras jovens, deixa a essência da
sua música intacta.
Os grandes sinais luminosos de que falá­
mos nun ca chamejam sem causarem profun­
das perturbações no mundo da música, após
o que as coisas de novo se estabilizam. A ra­
diação do fo go torna-se cada vez mais ate­
nuada até ao momento em que não aquece
ninguém, salvo os pedagogos. É nesse mo­
mento que nasce o academismo . Entretanto,
su rge um novo sinal luminoso e a história
continua - o que não significa que continue
sem choque ou acidente. Acontece, assim, que
a época contemporânea oferece-nos o exemplo
duma cultura musical que dia a dia perde o
sentido da continuidade e o gosto duma lin­
guagem comum.
O capricho individual e a anarquia inte­
lectual que tendem a dominar o mundo em

98
que vivemos isola o artista dos seus camara­
das artistas e condena-o a aparecer como
monstro aos olhos do público ; um monstro
de originalidade, inventor da sua própria lin­
guagem, do seu próprio vocabulário e do me­
1

canismo da sua arte. O uso de materiais já


' 1

empregados e de formas estabelecidas é-lhe,


em geral, proibido. Assim, ele chega ao ponto
de falar um idioma sem relação com o mundo
que o escuta.A sua arte torna-se verdadeira­
mente única no sentido em que é incomunicá­
vel e excluída de toda a parte. O bloco errá­
tico deixa de ser uma curiosidade, mas é uma
excepção; é o único modelo oferecido aos neó­
fitos para emulação.
O aparecimento duma série de tendências
anárquicas, incompatíveis e contraditórias no
campo da história corresponde a esta completa
ruptura da tradição. Os tempos mudaram
desde o dia em que Bach, Haendel e Vivaldi,
de forma absolutamente evidente, falavam a
mesma linguagem, que os seus discípulos re­
petiram após eles, cada um transformando
involuntàriamente esta linguagem de acordo
com a sua própria personalidade.
O dia em que Haydn, Mozart e Cimarosa
se repetiram uns aos outros em obras que
serviram de modelos aos seus sucessores, su­
cessores estes como Rossini, que gostava de

99
repetir, duma forma muito tocante, que Mo­
zart tinha sido o encanto da sua juventude,
o de sesp ero da sua maturidade e a conso lação
da sua velhice .

Esses tempos deram lugar a uma nova


idade que procura reduzir tudo à uniformidade
no campo da matéria, e n quanto tende a des­
truir toda a universalidade no domínio do
espírito por deferência a um individualismo
aná rquico . Esta é a maneira como centros
universais de cultura se tornaram isolados.
Recolheram-se a uma e strutura nacional,
mesmo regional, que por sua vez se fragmenta
até ao desaparecimento eventual.
Quer ele queira quer não, o artista con­
temporâneo é apanhado por esta infernal ma­
quinação. Existem almas simples que se rego­
zijam com este estado de coisas. Há c r imino­
sos que a aprovam. Apenas alguns se sentem
horrorizados numa solidão que os obriga a
voltarem-se para eles próprios, quando tudo
os convida a participar na vida social.
A universalidade cujos benefícios estamos
gradualmente a perder é uma coisa inteira­
mente diferente do cosmopolitanismo que está
a principiar a tomar conta de nós. A u ni versa­
lidade pressupõe a fecundidade duma cultura
que se espalha e comunica a todo o lado, ao
passo que o cosmopolitanismo não oferece nem

100
:)
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,,. . ..

1 {
acção nem doutrina e leva à indiferente pas­
sividade dum eclectismo estéril.
A universalidade estipula necessàriamente
submissão a uma ordem estabelecida e as
suas razões para esta estipulação são convin­
centes. Submetemo-nos a esta ordem por sim­
patia ou prudência. Em qualquer caso, os
benefícios da submissão não levam tempo a di­
visar-se.
Numa sociedade como a da Idade Média,
que reconhecia e protegia a primazia do do­
mínio espiritual e a dignidade da pessoa hu-
.. mana (que não se deve confundir com o in­ ) ;
.,

dividuo), em tal sociedade o reconhecimento


por todos duma hierarquia de valores e dum '
· .. ,..
}
,,

conjunto de princípios morais estabelecia uma


ordem de coisas que punha todos de acordo
no que respeita a certos preconceitos funda­
mentais do bem e do mal, da verdade e do
erro. Não falo da beleza nem da fealdade,
porquanto é absolutamente fútil dogmatizar
num campo tão subjectivo.
Não nos deve surpreender, então, que a
ordem social nunca tenha governado directa­
mente estes assuntos. Na verdade, não é pelo
facto de promulgar uma estética, mas por me­
lhorar a condição do homem e por exaltar o
trabalhador competente no artista, que uma
civilização comunica algo da sua ordem às

101
/,
.. ... "

obras de arte e especulação. O bom artífice,


naqueles dias felizes, sonha em atingir o belo
apenas através das classificações do útil. A
sua principal preocupação aplica-se à justiça
duma operação que é bem executada, ao man­
ter uma verdadeira ordem.
A impressão estética que surge desta jus­
tiça não será legitimamente alcançada, visto
que não foi calculada. Poussin disse muito
correctamente que o «objectivo da arte é o
deleite». Ele não disse que este deleite devia
ser o alvo do artista, que se deve sempre sub­
meter, unicamente, às exigências do trabalho
a ser feito.
É um facto de experiência e que só apa­
rentemente é paradoxal que encontremos a
liberdade na estrita submissão ao objectivo:
«Não é sabedoria, mas a insensatez que é in­
flexível - diz Sófocles na magnífica tradu·
ção da Antígona que nos é dada por André
Bonnard. - Olhem para as árvores. Ao abra­
çarem os movimentos da tempestade preser­
vam os seus ramos mais frágeis, mas se se
erguerem contra o vento são arrastadas, raí­
zes e tudo.»
Tomemos o melhor exemplo: a fuga, uma
forma pura em que a música nada significa
fora dela própria. Será que a fuga não im­
plica a submissão do compositor às regras?

102
.
,.
I

Não é dentro daquelas criticas severas que ele


encontra o completo florescer da sua liber·
dade, como criador? A força, diz Leonardo da
Vinci, nasce da coacção e morre na liber­
dade.
A insubordinação vangloria-se justamente
do oposto e elimina o constrangimento na es­
perança, sempre frustrada, de encontrar na
liberdade o princípio da força. Em vez disso,
encontra na liberdade apenas a arbitrariedade
do capricho e as irregularidades da fantasia.
Deste modo, perde todo o vestígio de domínio,
\,
perde o seu ponto de apoio e termina exigindo
i
da música coisas que estão fora da esfera e

competência desta.
Não pediremos, na verdade, o impossível
da música quando esperamos que ela expresse
sentimentos, traduza situações dramáticas,
que imite mesmo a natureza? E como se não
fosse suficiente condenar a música à função
de ser uma ilustradora, o século a que deve·
mos o que se chama «progresso através da
ilustração» inventou por boa norma o mo­
numental absurdo que consiste em dar a to­
dos os acessórios, assim como a todos os sen­
timentos e a todos os caracteres do drama li­
rico, uma espécie de chapa de contrôle cha·
mada Leitmotiv - um sistema que levou De­
bussy a dizer que o Ring tinha sobre ele um

103
impacte como se se tratasse duma vasta lista
musical citadina.
Existem dois g éneros de Leitmotiv em
Wagner: alguns simbolizam ideias abstractas
(o tema Destino, o tema Vingança, etc.); os
outros têm a pretensão de representar objec­
tos ou personagens concretos: por exemplo, a
espada ou a curiosa família Nibelung.
Ê estranho que os cépti co s, que pronta­
mente exigem novas provas para todas as

coisas e que em geral têm um prazer oculto


em expor seja o que for puramente conven­
cional em formas estabelecidas, nunca exigem
que seja dada qualquer prova da necessidade
ou mesmo da simples conveniência de qual­
quer frase musical que reivindique identifi­
car-se com uma ideia, um objecto ou uma
personagem.
Se me dizem que o poder do génio é aqui
bastante grande para justificar esta identifi­
cação, então perguntarei qual a utilidade da­
queles pequenos guias de larga circulação
que são a personificação material da lista mu­
sical citadina que Debussy tinha em mente,
pequenos guias que fazem com que o neófito
que assista a uma apresentação de Gotter­
dammerung se assemelhe a um desses turistas
que se podem ver no topo do Empire State
Building tentando orientar-se com um mapa

104
de Nova Iorque estendido à sua frente. Nunca
deixem dizer que estes pequenos livros auxi­
liares de memória são um insulto para Wag­
ner e atraiçoam o seu pensamento: a sua
larga circulação é, só por si, prova suficiente
de que respondem a uma real necessidade.
Bàsicamente, o que há de mais irritante
nestes rebeldes artísticos de que Wagner nos
oferece o tipo mais fiel é o espírito da siste­
matização, que, sob a máscara de pôr de lado
as convenções, estabelece um novo padrão,
absolutamente tão arbitrário e muito mais
enfadonho do que o antigo. De forma que é
menos a arbitrariedade - a qual, conside­
rando todas as coisas, é bastante inofensiva -
que tenta a nossa paciência do que o sis­
tema que esta arbitrariedade estabelece como
princípio. Vem-me um exemplo disto à mente.
Dissemos que o objectivo da música não é,
e não pode ser, a imitação, mas caso isso
suceda, por alguma razão puramente aciden­
tal, essa música constitui uma excepção a
esta regra, excepção esta que pode, por sua
vez, tornar-se a origem duma convenção. Ofe­
rece, assim, ao músico a possibilidade de a
usar como lugar-comum.
Verdi, na famosa tempestade do Rigoletto,
não hesitou em usar uma fórmula que muitos
compositores já tinham usado antes dele.

105
''

Verdi aplica a sua própria inventiva, e sem


sair da tradição faz dum lugar-comum uma
página perfeitamente original que leva a sua
marca inconfundível. Deveis concordar que
estamos aqui muito longe do sistema wagne­
riano, exaltado pelos seus adoradores em de­
trimento do italianismo, que é tratado com
desprezo por tantos subtis pensadores que se
perderam no sinfonicismo, que é para eles
um pretexto inesgotável para glosas literárias.
Deste modo, o perigo não reside no em ­
préstimo de negativos fo tográficos ; o perigo
consiste em reproduzi-los e aplicar neles a
força da lei, uma tirania que é simplesmente
uma manifestação de romantismo que se tor­
nou decrépito.
O romantismo e o classicismo são termos
que têm sido sobrecarregados com tão dife­
rentes significados que não deveis esperar
que eu tome partido numa discuss ão sem fim,
que está certamente a tornar-se cada vez
mais numa discussão de palavras. Tal, porém,
não altera o facto de num sentido muito ge­
ral os princípios da submissão e insubo rdi­
nação que definimos caracterizarem, em geral,
a atitude do classicista e do romântico perante
um trabalho de arte; uma divisão puramente
teórica, porquanto encontraremos sempre na
origem da invenção um elemento irracional

106
em que o espírito de submissão não tem qual­
quer amarra e escapa a toda a coacção. 1D isto
que André Gide tão bem expressou ao dizer
que as obras clássicas são belas apenas por
virtude do seu romantismo dominado. O que
se destaca neste aforismo é a necessidade de
subjugação.
Olhemos, por exemplo, para a obra de
Tchaikovski. De que é feita? E onde foi que
ele encontrou as suas fontes se não no arsenal
de que os românticos correntemente se ser­
viam? Os seus temas são, na maioria, român-
ticos - assim acontece com a sua força im- li.
pulsionadora. O que não é absolutamente nada U • 1

romântico é a sua atitude perante o problema


de os incorporar na obra musical.
Que nos poderá dar mais prazer do que
o recorte das suas frases e o seu belo arranjo?
Por favor, não pensem que estou à procura
dum pretexto para elogiar um dos poucos
compositores russos de que sou realmente
amigo. Tomo-o como exemplo apenas pelo
facto de o exemplo ser tão flagrante, tal
como a música dum outro romântico muito
mais afastado de nós. Refiro-me a Carl Maria
von Weber. Estou a pensar nas suas sonatas, !

que são duma referência instrumental tão for­


mal que os poucos rubati que se permitem na
ocasião não conseguem esconder o domínio

101
constante e alerta do subjugador. Que dife­
rença entre Der Freischütz, Euryanthe e
Oberon, por um lado, e Der fliegende Hollan­
der, Tannhauser e Lohengrin, com a sua frou­
xidão, por outro. O contraste é impressio­
nante.
Não é apenas por acaso, ai de mim!, que
as últimas obras se encontram muito mais
vezes nos cartazes dos nossos teatros do que
as maravilhosas óperas de Weber.
Resumindo: o que é importante para a or­
denação lúcida do trabalho-para a sua
cristalização - é que todos os elementos dio­
nisíacos que põem a imaginaç ão dum artista
em movimento e fazem revigorar a seiva da
vida têm de ser devidamente dominados an­
tes que nos intoxiquem, e devem, finalmente,
ser feitos para se submeterem à lei: Apolo
exige-o.
Está longe de me agradar, assim como está
longe da minha intenção, prolongar por mais
tempo o eterno debate sobre o classicismo e
o romanticismo. Já me alarguei bastante so­
bre o que tinha a dizer para tornar a minha
a titude clara sobre este assunto, mas deixaria
a minha tarefa inacabada se não chamasse
por instantes a vossa atenção para uma ques­
tão intimamente relacionada, a questão da-

108
, ' '

queles dois antagonistas: modernismo e aca­


demicismo.
Primeiramente, que abortivo neologismo
é a palavra «modernismo»! Rigorosamente,
que significa? No seu sentido mais clara­
mente definido designa uma forma de libera­
lismo teológico que constitui uma falácia con­
denada pela Igreja de Roma. Aplicado às
Artes, estaria o modernismo em campo aberto
para uma condenação análoga? Estou abso­
lutamente convencido de que sim ... Aquilo que
é moderno é aquilo que é representativo do
seu próprio tempo e aquilo que se mantém ao,
e dentro do, alcance do seu próprio tempo.
'
Algumas vezes os artistas são censurados '
'

por serem ou demasiado modernos ou não su­


ficientemente modernos. Podia-se igualmente
censurar as épocas por não serem bastante
modernas ou serem demasiado modernas. Uma
recente votação popular mostrou que sob to­
das as aparências Beethoven é o compositor
mais procurado nos Estados Unidos. Partindo
desta premissa pode dizer-se que Beethoven
é muito moderno e que um compositor de ma­
nifesta importância como Paul Hindemith não
é absolutamente nada moderno, uma vez que
a lista dos vencedores nem sequer menciona
o seu nome.

109
. .
"
,

O termo «modernismo» em si não implica .

nem louvor nem censura e não implica obri­


gação de qualquer espécie. Ê essa precisa­
mente a sua fraqueza. A palavra esquiva-se­
-nos, escondendo-se sob qualquer aplicação da
mesma que se queira fazer. ::m verdade que se

diz que cada um deve viver no seu próprio


tempo. O conselho é supérfluo: como se pode­
ria proceder doutra forma? Mesmo que eu

quisesse reviver o passado, os esforços mais


enérgicos da minha vontade mal orientada
seriam inúteis.
Segue-se que toda a gente se tem aprovei­
tado da maleabilidade deste termo vazio para
tentar dar-lhe forma e cor, mas, mais uma
vez, o que entendemos pelo «modernismo»?
No passado nunca se usou este termo, que
nem sequer era conhecido. Todavia, os nossos
antepassados não eram mais estúpidos do
que nós. Constituiu o termo uma verdadeira
descoberta? Demonstrávamos que não foi
nada disso. Não será antes um sinal de deca­
dência da moralidade e do gosto? Aqui, creio
firmemente que devemos responder com a
afirmativa.
Para terminar, a minha esperança mais
intima é que fiqueis tão embaraçados como
eu pela expressão. Seria muito mais simples
deixar de mentir e admitir duma vez para

110
sempre que designamos por moderno tudo o
que lisonjeia a nossa fatuidade no verdadeiro
sentido da palavra. Merecerá, porém, em ver­
dade, a lisonja da fatuidade tanto trabalho?
O termo «modernismo» é tanto mais ofen­
sivo quanto em geral é ligado a um outro cujo
significado é perfeitamente claro: falo de
academicismo.
Designa-se uma obra por académica
quando é estritamente composta de acordo
com os preceitos do conservatório. Segue-se
' 1 •

que o academicismo considerado como


1
um

exercicio escolástico com base na imitação é


em si algo de muito útil e mesmo indispensá­
vel aos principiantes que fazem o seu tiro­
cínio no estudo de modelos. Segue-se igual­ 1·
mente que o academicismo não deve encontrar i
lugar fora do conservatório e que aqueles que
fazem um ideal do academicismo quando já
terminaram os seus estudos produzem infle­
xivelmente obras correctas que são áridas e
secas.
Os escritores contemporâneos da música
adquiriram o hábito de medir todas as coisas
em termos de modernismo, quer isto dizer,
em termos duma escala não existente, e ime­
diatamente levam à categoria de «acadé­
mico» -que eles consideram como o contrá­
rio de moderno -tudo que não se mantém

111
I
...

a par com as extravagâncias que aos seus


olhos constituem a quinta-essência do moder­
nismo. Para estes críticos, seja o que for que
pareça discordante e confuso é automàtica­
mente relegado para o arquivo do moder­
nismo. Aquilo que eles acham claro e bem
ordenado, e destituído de ambi guidade , que
lhes poderia dar uma saída, é prontamente re­
legado para o arquivo do academicismo. Ora,
podemos fazer uso das formas académicas
sem correr o risco de nos tornarmos acadé­
micos.
Aquele que é contrário a pedir empres­
tadas estas formas, quando tem necessidade
delas, revela claramente a sua fraqueza.
Quantas vezes já notei esta estranha incom­
preensão por parte daqueles que se crêem
bons juízes da música e do seu futuro! O que
torna isto mais difícil de compreender é o
facto de estes mesmos críticos admitirem
como natural e legítimo o empréstimo de me­
lodias antigas populares ou religiosas harmo­
nizadas em formas incompatíveis com a sua
essência. Não ficam absolutamente nada cho­
cados com o ridículo estratagema do Leitmo­
tiv e deixam-se seduzir pelas excursões musi­
cais conduzidas pela Agência Cook de Beirute.
Eles acreditam em si até ao minuto em que
aplaudem as mesmas medidas introdutórias

112
duma sinfonia que emprega escalas exóticas,
instrumentos obsoletos e métodos que foram
criados para fins inteiramente diferentes.
Aterrorizados com o pensamento de mos­
trarem aquilo que são, perseguem o pobre
academicismo com unhas e dentes porquanto
sentem o mesmo horror que os seus composi­
"

tores favoritos pelas formas consagradas, os


quais têm medo de lhes tocar.
Uma vez que eu tenho tantas vezes pedido
emprestadas atitudes académicas sem pensar
em esconder o prazer que encontro nelas, não , ,
'

tenho sido poupado, tornando-me a vítima es­


colhida da palmatória correctiva destes se­
nhores.
Os meus maiores inimigos fizeram-me
sempre a honra de reconhecer que estou per­
feitamente ciente daquilo que estou a fazer.
O temperamento académico não se pode adqui­
rir. Não se adquire um temperamento. Ora,
eu não tenho um temperamento que se ajuste
ao academismo; assim, uso sempre fórmulas
académicas intencional e voluntàriamente.
Utilizo-as tão intencionalmente como utilizo o
folclore. São matérias-primas do meu traba­
lho. E acho bastante cómico que os meus crí­
ticos tomem uma atitude que possivelmente
não podem manter. Porque algum dia, hesi-

113
8
. ., ' ... ... . .

..

tantes, terão de me conceder o que, devido a


noções preconcebidas, me têm negado.
Não sou mais académico do que sou mo­
derno, não sou mais moderno do que sou con­
servador. Pulcinella bastaria para provar isto.
Assim, perguntais, então, que sou? Recuso fa.
lar pormenorizadamente sobre a minha pes­
soa, que permanece fora do objectivo do meu
curso, e se prometi falar-vos um pouco sobre
a minha obra foi simplesmente para ilustrar o
meu pensamento com um exemplo ao mesmo
tempo imediato e concreto. Posso considerar
outros exemplos para compensar o meu si­
lêncio e a minha recusa em exibir-me. Esses
exemplos mostrar-vos-ão, ainda mais clara­
mente, como a crítica através dos tempos tem
desempenhado o seu papel como informa­
dora.
Em 1737, o escritor musical alemão Scheibe
escreveu de Bach: «Este grande homem seria
o objecto da admiração mundial se fosse mais
insinuante e não estragasse as suas compo­
sições com muita confusão e linguagem bom­
bástica, e se, por um excesso de arte, não
obscurecesse a sua beleza.»
Gostaríeis de saber o que Schiller - o
famoso Schiller - escreveu da Criação de
Haydn num relato duma soirée em que a
ouviu? «� uma confusão sem carácter. Haydn

114
é um artista inteligente, mas falta-lhe inspi­
ração (sic). Tudo aquilo é gelo.»
Ludwig Spohr, um compositor de renome,
ouviu a Nona Sinfonia trinta anos depois da
morte de Beethoven e descobriu nela um novo
argumento a favor daquilo que ele sempre
tinha dito, ou seja, que a Beethoven lhe fal­
tava educação de estética e também «um sen­
tido de beleza.» Para já, isto não é, realmente,
1
1 .
mau, mas aqui está algo ainda melhor. Para
a peça de eleição guardámos a opinião do
poeta Grillparzer sobre a Euryanthe, de We­
ber: cUma completa ausência de ordem e cor.
Esta música é horrível. Uma tal perversão
de eufonia, uma tal violação do belo, teria
sido punido por lei na idade de ouro da
Grécia. Tal música deveria ser submetida a
jurisdição policial. .. »
Tais citações impedem-me de cometer a
insensatez de me defender da incompetência
dos meus críticos e de me queixar do débil
interesse com que consideram os meus es­
forços.
Não pretendo questionar os direitos dos
críticos. Pelo contrário, lamento que os exer­
çam tão pouco e muitas vezes indevidamente.
A crítica, diz o dicionário, é a arte de jul­
gar produções literárias e obras de arte. Ale­
gremente, adoptamos esta definição. Então,

115
J . I•• • t
•.'
..

uma vez que a critica é uma arte, não pode


escapar também às nossas críticas. Que lhe
pedimos? Que limites atribuiremos ao seu do­
mínio? Na realidade, queremos que seja in­
teiramente livre na sua função própria, que
consiste em julgar obras existentes, e não em
resmungar sobre a legitimidade das suas ori­
gens ou intenções.
Um compositor tem o direito de esperar
que a crítica reconheça, pelo menos, a opor­
tunidade que ele oferece de julgarem a sua
obra no seu valor nominal. Qual a finalidade
de fazer perguntas incessantes sobre o próprio
inicio da operação? Para que serve cansar o

compositor com perguntas supérfluas, pergun­


tando-lhe qual a razão por que ele escolheu
um determinado assunto, um determinado ar­
gumento, uma determinada voz, uma determi­
nada forma instrumental? Para que serve,
numa palavra, atormentá-lo com o por que
em vez de procurar o como e estabelecer,
assim, as razões do seu fracasso ou êxito?
Sem dúvida que é muito mais fácil fazer
perguntas do que dar respostas. É mais fácil
perguntar do que explicar.
É minha convicção de que o público se
mostra sempre mais honesto na sua esponta­
neidade do que aqueles que oficialmente se

afirmam como juízes de obras de arte. É de

116
crer num homem que no decurso da sua car-
reira teve ocasião de travar conhecimento com
os públicos mais variados, e tem-me sido pos­
I ·

sível observar na minha dupla carreira de 1


compositor e executante que, quanto menos o
público estava predisposto, favorável ou des­
favoràvelmente, para uma obra musical, tanto
mais saudáveis foram as suas reacções à obra
e mais propícias ao desenvolvimento da arte
da música.
Após o fracasso da sua peça mais recente,
um homem inteligente declarou que o público
tinha decididamente cada vez menos talento...
Pelo contrário, penso que é aos compositores
que algumas vezes lhes falta talento, e que
o público tem sempre se não talento (que
dificilmente poderia ser o atributo dum grupo ·'I

colectivo), pelo menos, quando deixado en-


tregue a si próprio, uma espontaneidade que
confere grande valor às suas reacções, desde
que, evidentemente, não tenha sido contami-
nado com o vírus do snobismo.
Tenho muitas vezes ouvido artistas di­
zerem: «Por que é que se queixa dos snobes?
São eles os servos mais úteis dos novos ca­
minhos. Se os não servem por convicção, fa­
zem-no pelo menos na sua capacidade de sno­
bes. São os nossos melhores clientes.» Res­
pondo que são maus clientes, falsos clientes,

111
H ;· ,_ .,
. ·\:.\ -

pois estão tão prontamente ao serviço do


erro como da v erdade. Ao servir todas as cau­
sas, viciam completamente as melhores, por­
que as confundem com as piores.
Depois de considerar todas as coisas, pre­
firo a invectiva desassombrada do simples ou­
vinte que não compreendeu nada dos louvores
sem valor, completamente despidos de sentido
tanto para aqueles que os distribuem como
para aqueles que os recebem.
Tal como toda a espécie de mal, o sno­
bismo tende a dar origem a outro mal que é
o seu oposto: pompierisme ( 1} • Quando tudo
está dito e feito, o snobe não é mais do que
uma espécie de pompier - um pompier da
vanguarda.
Os pompiers da vanguarda estabelecem
conversa superficial sobre a música tal como
o fazem sobre Freud ou Marx. Ã mais ligeira
provocação trazem os complexos da psicaná­
lise e vão mesmo até ao ponto de se familia­
rizarem, embora de forma relutante - mas
snobisme oblige -, com o grande São Tomás

( 1) O termo pompier teve a sua origem na seme­


lhança dos elmos dos antigos oficiais romanos dos
quadros da metade do século XIX com os capacetes
dos bombeiros. Aplica-se agora a pessoas que exibem
pedantismo pomposo e formalismo.

118
de Aquino ... Assim, vendo as coisas como
são, a esse tipo de pompier prefiro o pompier
puro e simples que fala sobre melodia e, com
a mão no coração, advoga os direitos incontes­
táveis do sentimento, defende a primazia da
emoção, dá provas de preocupação por aquilo
que é digno, na ocasião cede à aventura ou
carácter pitoresco oriental e vai até ao ponto
de louvar o meu Pássaro de Fogo. Compreen­
dereis imediatamente que não é por esta razão
que eu o prefiro à outra espécie de pompier . . .

É simplesmente pelo facto de o achar menos


perigoso. Além disso, os pompiers da van­
guarda cometem o erro de desdenharem abso­
lutamente dos seus colegas do passado. Ambos
permanecerão pompiers toda a vida, mas os
revolucionários passam mais depressa de
moda do que os outros: para eles, o tempo é
a maior das ameaças.
O verdadeiro amante de música, tal como
o verdadeiro protector, não se enquadra nes­
tas categorias; todavia, como todas as coisas
realmente dignas de valor, são raros. O falso
protector é em geral recrutado nas fileiras
dos snobes, tal como o antiquado pompier é
em geral recrutado na burguesia.
Por razões por mim já apontadas, o bur­
guês irrita-me muito menos do que o snobe,
e não defendo o burguês ao dizer que é real-

119
·' -:
•t''
''

mente muito mais fácil atacá-lo. Deixaremos


esses ataques aos grandes especialistas deste
assunto - os comunistas. Do ponto de vista
de humanismo e de desenvolvimento do espí­
rito, não é preciso dizer que o burguês cons­
titui um obstáculo e um perigo. Todavia, esse
perigo é por de mais conhecido para nos in­
quietar na mesma medida que o p e rigo que
nunca é denunciado como tal : o snobismo .

Ao concluir, torna-se impossível não d izer


uma palavra ou duas sobre o protector, que
desempenhou um papel de primordial impor­
tância no desenvolvimento das artes. A dureza
dos tempos e a demagogia demasiado domi­
nante que tendem a transformar o Estado
num protector anónimo e gradualmente insen­
sível fazem-nos ter saudades do Margrave de
Brandenburgo, que tanto auxiliou João Sebas­
tião Bach, do príncipe Esterhazy, que tomou
Haydn sob a sua protecção, e de Luís Il da
Bavária, que protegeu Wagner.
Embora a protecção das artes se torne
cada dia mais fraca, prestemos homenagem
aos poucos protectores que nos restam, desde
o pobre protector, que sente que já fez bas­
tante pelo artista quando lhe oferece uma
chávena de chá em troca da sua graciosa

120
. '

contribuição, até ao anónimo Dives ( 1), que


ao delegar na secretaria encarregada do de­
partamento da generosidade a função de dis­
tribuir donativos torna-se deste modo um pro-
tector sem o saber. 1
"

(1) Dlves-o rico da parâbola (São Lucas, 16:19-


-31). (N. da T.)

121
5. AS METAMORFOSES
DA MúSICA RUSSA .
"1J 1

1
,
·

1 ;
.,

Por que razão ouvimos sempre falar mais


da música russa em termos do seu russianismo
do que simplesmente em termos de música?
Porque é sempre o pitoresco, os ritmos estra­
nhos, os timbres da orquestra, o orienta­
lismo - em resumo, a cor local, que é tomada
em consideração ; porque as pessoas estão inte­
ressadas em tudo que ajude à encenação russa
ou supostamente russa: troika vodka, isba,
ba"lalaika, pope, boyar, samovar, nitchevo e

mesmo bolchevismo. Porquanto o bolchevismo -

1
oferece ostentações semelhantes, que, todavia, ' 1

exibem nomes que estabelecem um paralelo ,


mais íntimo com as exigências da sua dou­
trina. >:
Espero que sejais bastante gentis de molde
a permitir-me considerar a Rússia dum outro
ângulo completamente diferente... A minha
expressa finalidade é ajudar a esclarecer um
mal-entendido de longa data, corrigir certas
deformações de perspectiva.

125 ,, i

·- ·"
' ,.. • ··�� ; .- . ., .. r ! ,(
"
' 1
' '

Se achei apropriado dedicar uma lição do


meu curso à música russa não é porque seja
particularmente ami go da mesma, devido à
minha origem ; mas, principalmente , pelo facto
de a música russa, em especial nos seus últi­
mos desenvolvimentos, ilustrar duma maneira
muito caracte ríst ica e muito s ignificativa a
tese principal que vos quero apresentar. Deste
modo, dedicarei menos tempo a uma perspec­
tiva história da música russa do que àquilo a
que chamei as suas metamorfoses - as suas
transformações durante o decurso do peque­
ní ssimo período que compreende toda a sua
existência, porquanto os seus princípios como
arte consciente de si própria não vão mais
além de cento e tal anos e, dum modo geral,
está estabelecido que estes princípios são in­
separáveis das primeiras obras de Glinka.
A partir de Glinka podemos observar o
uso do folclore na música russa. É na ópera
Uma Vida pelo Tsar que o melos do povo se
incorpora muito naturalmente na arte musi­
cal. Aqui, Glinka não obedece aos ditames do
hábito. Não pensa em lançar a pedra dum
vasto empreendimento para fins de exporta­
ção . Considera o motivo p opul ar como maté­
ria -p rima e t rata - o quase instintivamente,
consoante a prática da música italiana, então
em voga.

126
'11·

Glinka não é tu cá tu lá com o povo, como


alguns dos seus sucessores, para reforçar o

seu vigor através do contacto com a verdade


simples. Ele procura meramente os elementos
da alegria musical. Duma cultura adquirida
através do seu contacto com os Italianos,
reteve sempre um gosto natural pela música
, italiana, e é sem qualquer desejo de estabe- .
lecer um sistema que ele introduziu nas suas
obras melodias de origem ou sentimento
popular.
Dargomijski, um talento menos pujante,
menos original, mas da espécie mais fina,
mostra gostos semelhantes. A sua encanta­
dora ópera Russalka, às suas deliciosas ro­

manzas e canções, mistura de igual forma os


melos populares russos e o italianismo pre-
. valecente, com a facilidade mais despreo­
cupada e encantadora.
Os Cinco, eslavófilos da variedade popular,
iriam estabelecer como sistema esta utilização
inconsciente do folclore. As suas ideias e os
seus gostos inclinaram-se para uma espécie
de devoção à causa do povo, uma tendência
que, evidentemente, ainda não tinha tomado
as vastas proporções que tem nos nossos dias,
consoante as instruções da Terceira Interna­
cional.

121
)..,.·
' .

I
.. ...

Balakirev, Mussorgs ki , Borodin, Rimski­


-Korsakov, aos quais deve mos acre scenta r a

personalidade menos característica de Cesar


Cui, todos tenderam para melodias populares
e cânticos litúrgicos.
Assim, com a melhor das inte nçõ es - e com
vários graus de talento -, Os Cinco procura­
ram enxertar o estilo popular sobre a arte
musical. No inicio, a frescura das suas ideias
compensou a imperfeição da sua técnica.
Todavia, a frescura não se re p roduz fàcil­
mente. Chegou o momento em que se sentiu a
necessidade de consolidar os feitos e aperfe i­
çoar a técnica. Dos amadores que todos eram
no início do seu movimento, transformaram-se
em profissionais e perderam aquele excelente
primeiro arrebatamento despretensioso da ju­
ventude que constituía o seu encanto.
Foi desta forma que Rimski-Korsakov
chegou a envolver-se num estudo metódico de
composição e rompeu com o amadorismo dos
seus colegas para se tornar num eminente
professor.
Nessa função, estabeleceu um centro
activo de compositores, genuinamente profis­
sionais, lançando desta maneira as fundações
para a mais sólida e mais apreciável instru­
ção académica. Consegui desfrutar os bene-

1!8
fícios do seu sóbrio e enérgico dom pedagó­
gico.
Por alturas dos anos 80, um rico amador,
Beliaev, que se tornou editor devido ao seu
amor pela música russa, reuniu um pequeno
circulo de músicos que incluía Rimski-Kor­
sakov, o seu jovem e brilhante aluno Glazu­
nov, Liadov e alguns outros compositores.
Sob a capa da preocupação no que respeita às
mais sérias das suas técnicas profissionais,
, as suas obras deram prova de sintomas alar­
mantes dum novo academismo. O círculo de
Beliaev, então, voltou-se cada vez mais para
o academismo. O italianismo, renunciado e
humilhado, deu lugar ao entusiasmo sempre
crescente pela técnica alemã, e não é sem
razão que Glazunov foi chamado o Brahms
russo.
O núcleo formado pelo grupo de Os Cinco
encontrou oposição num outro quadrante
onde, simplesmente por virtude do brilhan­
tismo do seu poderoso talento, a personalidade
de Tchaikovski brilhou isoladamente. Tchai­
kovski, tal como Rimski-Korsakov, teve conhe­
cimento da necessidade de adquirir uma sólida
técnica; ambos eram professores do conser­
vatório, Rimski em Sampetersburgo, Tchai­
kovski em Moscovo. Todavia, a linguagem
musical do último está tão completamente

129
9
separada dos preconceitos que caracterizavam
Os Cinco como tinha estado a de Glinka.
Enquanto Glinka viveu durante o reinado
da ópera e da canção italiana, Tchaikovski,
que aparece no fim deste reinado, cuja for­
mação determinara, não sentia uma admira­
ção exclusiva pela música italiana. A sua
educação formal tinha sido conduzida ao longo
das linhas das academias alemãs. Mas se ele
não ti nh a vergonha de gostar de Schumann e
d e Mendelssohn, cuja música óbviamente in­
fluenciou a sua obra sinfónica, as suas sim­
patias acompanharam com uma espécie de
predilecção Gounod, Bizet e Delibes, os seus
contem porâneos franceses. No entanto, por
mais atento e sensível que fosse para o mundo
exterior da Rússia, podemos dizer que, em
geral, demonstrou ser se não nacionalista e
populista, como Os Cinco, pelo menos profun·
damente nacional no carácter dos seus temas,
no recorte das suas frases e na fisionomia
rítmica da sua obra.
Falei-vos do russo Glinka, que preferiu a
Itália , de Os Cinco, que acasalaram o folclore
nacional com o realismo naturalista, tão que­
rido da sua época, e do russo Tchaikovski,
que encontrou a sua verdadeira expressão ao
voltar-se de braços abertos para a cultura
ocidental.

130
Seja o que for que se possa pensar destas
tendências, eram compreensíveis e legitimas.
Obedeciam a uma ordem determinada. Toma­
ram o seu lugar na estrutura da história russa.
Infelizmente, o academismo, cujos primeiros
sinais foram visíveis na actividade do círculo
de Beliaev, não demorou em reunir epigonos, í'
enquanto os imitadores de Tchaikovski dege­
neraram para um lirismo enjoativo.
Quando se poderia pensar, porém, que es­
távamos na véspera duma ditadura de conser­
vantismo, uma nova desordem tinha-se infil­
trado insidiosamente no pensamento russo,
uma desordem cujos princípios foram mar­
cados pelo êxito da teosofia; uma desordem
ideológica, psicológica e sociológica, que se
apoderou da música com despreocupação im­
pudente. Porque, francamente, será possível
relacionar um músico como Scriabin com
qualquer espécie de tradição? Donde vem?
E quais são os seus antepassados?
Assim, somos obrigados a considerar duas
Rússias, uma Rússia das direitas e uma
Rússia das esquerdas, que engloba duas espé­
cies de desordem: a desordem conservadora e
a desordem revolucionária. Qual foi o desfecho
destas duas desordens? A história dos últimos
vinte anos encarregar-se-á de no-lo mostrar.

131
. '·
' , '

Veremos a desordem revolucionária devo­


rar a desordem conservadora, e ao devorá-la
tomar um tal gosto pelo prato que pedirá
mais e continuará sempre a pedir mais - atê
que morra de indigestão.
Isto leva-me à segunda parte da minha
lição. A música russa soviética será o assunto
da matéria.
Primeiramente, devo confessar que a
conheço apenas a distância. Mas não foi Gogol
que disse que duma terra distante (neste
caso, a Itália, o seu pai s adoptado) «era-lhe
mais fácil abraçar a Rússia em toda a sua
imensidade»? Creio também que tenho algum
direito a julgá-la dum ponto de vista vanta­
joso, americano ou europeu ocidental. Tanto
mais que a Rússia , neste momento, está a
lutar com processos tão contraditórios que se
admite ser quase impossível ver claramente
dum ponto nitidamente vantajoso e, conse­
quentemente, tanto mais improvável do inte­
rior do país em si .
A música é aquilo de que vos vou falar,
mas antes de o fazer torna-se absolutamente
essencial, a fim de que este particular pro­
blema possa ser melhor delimitado e encarado,
que eu vos diga algumas palavras, em termos
muito gerais sobre a Revolução Russa.

132
Acima de tudo, o que mais nos impres­
siona é que a Revolução chegou numa altura
em que parecia que a Rússia se tinha liber­
tado duma vez para sempre (pelo menos, no
princípio) tanto da psicose do materialismo
como das ideias revolucionárias que a tinham
escravizado, desde a metade do século x1x até
à primeira revolução de 1905. Na verdade, o
niilismo, o culto revolucionário do povo, o
materialismo rudimentar, assim como as con­
juras sombrias tramadas no inferno do terro­
rismo, tinham a pouco e pouco desaparecido.
Por essa altura, a Rússia tinha-se já enri­
quecido com novas ideias filosóficas. Tinha-se
comprometido em investigações sobre a sua
própria vida religiosa e histórica, investiga­
ções atribuíveis principalmente a Leontiev,
Soloviev, Rosanov, Berdiaev, Fedorov e Nes­
melov.
Por outro lado, o «Simbolismo» literário
que relacionamos com os nomes de Blok, z.
Guippius e Bely, assim como o movimento ar­
tístico do Mir Iskustva, de Diaghilev, contri­
buíra muito para este enriquecimento, isto
para não mencionar o que era então designado
por «marxismo legalista», que tinha suplan­
tado o marxismo revolucionário de Lenine e

dos grupos de exilados à sua volta.

133
- -....--- -
.. . '
'""' '· ' •

' .

1'

Certamente que esta «Renascença russa»


poderia parecer em muitos aspectos inorgâ­
nica e impotente; hoje mais do que nunca
temos razões para a julgar dessa forma.
Basta apenas lembrarmo-nos do movi­
mento grotesco conduzido por Tchulkov, que
foi designado por «Movimento dos Anarquis­
tas Místicos» - além do mais, um movimento
místico inteiramente suspeito - e lembrarmo­
-nos de Merezhko e do êxito significativo de
Andreiev e Artzibasheff, romancistas do pior
gosto possível. Todavia, com o período negro
dos anos 1860-1880, o período dos Cherni­
shevski, dos Dobroliobov, dos Pissarev, altura
em que uma onda traiçoeira que aviltou as
verdadeiras fundações da cultura e do Estado
brotou do meio de falsos intelectuais, moral­
mente deserdados e socialmente inadaptados,
e dos centros de seminaristas ateístas e estu­
dantes falhados - comparado com esse pe­
ríodo, os vinte anos que precederam a Revolu­
ção parecem-nos, j ustificadamente, um curto
período de convalescença e renovação.
Ai de mim, a renascença cultural não en­
controu uma expressão comensurável na es­
fera das reformas do Governo ou no domínio
da iniciativa económica e dos problemas so­
ciais - de modo que, no início da primeira
guerra mundial, a sociedade russa era ainda

134
• 'fl
.. ' .

constituída por elementos paradoxalmente


díspares, tais como a ordem feudal (então
ainda existente) , o capitalismo ocidental e
um comunismo primitivo (na forma de comu- 1

nidades rurais). Não é, portanto, de surpreen­


der que no primeiro choque (neste caso a
guerra mundial) este sistema, se é que se
lhe pode chamar um sistema, não conseguisse
resistir à pressão externa e interna. Assim, a
Revolução nascente que uniu o radicalismo
marxista dos exilados à «perseguição» agrá­
ria e à confiscação da propriedade privada
iria aniquilar e maltratar todas as superstru­
turas da cultura antes da guerra, reduzindo,
por esse mesmo acto, a Rússia ao humilde
lugar dos «Demónios» de Dostoievski e mer­
gulhando-a, mais uma vez, num ateísmo mili­
tante e num materialismo rudimentar.
Pode dizer-se que teve lugar naquela al­
tura uma colisão de duas desordens. Ã desor­
dem revolucionária, o fraco e débil governo
podia apenas opor uma outra desordem, reac­
cionária. Nem as autoridades nem a consciên­
cia social se igualavam na tarefa de realizar
ou mesmo de formular um sistema vivo e
construtivo de oposição capaz de reduzir e
desarmar a pressão das forças revolucioná­
rias, que, no entanto, tinha enfraquecido con­
sideràvelmente por volta de 1910, tendo per-

195

',

-:
' '
' '

dido bastante terreno com a sua propaganda


subversiva.
Na realidade, quase parece impossível
explicar tal atrofia do Estado russo quando,
a o atrair uma tradição de séculos, tendia
fundamentalmente para a realização da ideia
duma Terceira Roma. Tal como a imagem
feliz de Rosanov põe o pr oblema , «a Rússia
p erdeu as s uas cores em três dias, se não em
dois».
Já nos parece mais do que tempo para
abandonar o ponto de vista comum e errado
(um ponto de vista que, além disso, tem sido
acus ado de mentir através dos factos) que
at rib u i ao tipo russo um elemento de irracio­
nalidade inata, reivindicando encontrar ali a
explicação da predispos ição russa para o mis­
ticismo e devoção religiosa. Mesmo conce­
dendo aos Russos essa p artic ularidade não s e
podia sem te meridade parar aqui e negligen­
ciar outro aspecto desta mesma natureza,
como sejam as tendências para um raciona­
lismo rudimentar, quase infantil, que tantas
vezes degenera em censuras e disputas esté­
reis. Isto constitui também uma característica
e specificamente russa.
No campo espiritual, este outro aspecto
pr ovoc ou o ateísmo militante, assim como as
doutrinas racionalistas das seitas religiosas,

136
•,

:
seitas que existem ainda nos nossos dias lado
a lado com o ateísmo oficial dos comunistas.
Este racionalismo e o seu espírito pseudocrí­
tico envenenaram e continuam a envenenar
todo o campo de arte na Rússia com os fa­
mosos argumentos sobre o «Significado de
Arte» e do «que é Arte e qual é a sua Missão:..
Foi logo após a morte de Puchkin e, prin­
., cipalmente, através de Gogol, que tais espe­
culações se infiltraram no espírito russo.
A arte russa sofreu considerável estrago re­
sultante das mesmas. Alguns viram a razão
intrínseca para a arte como o abandono e o
desprezo dos costumes e hábitos da vida.
Nesta conformidade, chamo a vossa atenção
para o famoso movimento do «Peredvijniki»,
com as suas exibições itinerantes, um movi­
mento que precedeu o esforço de Diaghilev.
Outros negaram à arte qualquer direito de
ser um fim em si. Testemunha disto é a fa­
mosa discussão que se realizou, de forma tão
séria, por volta dos anos 1860: «Que é mais
importante, Shakespeare ou um par de bo­
tas?» Mesmo Tolstoi, nas suas fantasias esté­
ticas, escorregava no impasse da moral e do
seu categórico imperativo, o que tem de se
relacionar com a sua total incompreensão da
génese de qualquer espécie de criação. Final­
mente, a teoria marxista que mantém que a

137
- -.

arte é apenas uma «superstrutura baseada


em condições de produção» teve como conse­
quência que a arte na Rússia não é mais do
que um instrumento de propaganda política
ao serviço do Partido Comunista e do go­
verno .

Evidentemente, tal corrupção do espírito


crítico russo não poupou a música. Nos dez
primeiros anos do século xx, os sucessores
de Glinka, com excepção de Tchaikovski, pa­
garam todos tributo, em vários graus, quer
às ideias do populismo, quer às ideias revo ­

lucionárias, quer, finalmente, ao folclore, e


todos eles atribuíram problemas e objectivos
à música que lhe são estranhos. Por simples
curiosidade citarei este facto pouco conhe­
cido, ou seja: que Scriabin tinha tencionado
pôr uma epígrafe na partitura erótico-mística
do seu Poema do Êxtase, uma epígrafe que
não era senão: «Levantai-vos, ó desgraçados
da terra», a primeira frase da versão original
francesa da Internacional.
Apenas alguns anos antes da guerra, a

música na Rússia tinha-se comprometido, até


certo ponto, na sua própria emancipação .

Tinha tendência para romper a tutela de Os


Cinco e especialmente da escola de Rimski­
-Korsakov, que naquela altura, conforme dis­
semos, não representava mais nada do que um

138
academismo rígido. A guerra iria destruir
esses esforços, e os acontecimentos subse­
quentes que se deram varreram para longe os
seus últimos vestígios. Desta forma, a Revo­
lução encontrou a música russa completa­
mente desorientada, dentro do seu próprio
país, de tal modo que os bolchevistas não
tiveram qualquer problema em conduzir o seu
desenvolvimento a seu bel-prazer e beneficio.
Para dizer a verdade, a arte russa antes
da Revolução de Outubro tinha-se mantido
afastada da Revolução marxista.
Os retardatários do simbolismo, assim
como os imitadores mais jovens, agruparam­
-se à sua volta e aceitaram a Revolução sem
por qualquer forma se tornarem fachos orien­
tadores.
Gorki, um amigo pessoal de alguns diri­
gentes comunistas, foi para o exílio, em Sor­
rento, alguns anos depois de o comunismo se
ter instalado, onde permaneceu durante muito
tempo, voltando apenas à Rússia pouco antes
da sua morte, que ocorreu em 1936. Esta
longa ausência provocou ainda uma diatribe
azeda do poeta futurista Maiakovski, que este
dirigiu a Gorki, por alturas de 1926, sob a
forma duma epístola em verso: «Que pena,
camarada Gorki - dizia ele - que nunca o
encontremos agora nas oficinas. Pensa você,

139
.
.

talvez, que vê as coisas mais claramente das


colinas de Capri ?»
Estranho que possa parecer, no princípio,
o futur ismo por si só adoptou as opiniões do
comunismo, embora incorresse numa censura
do próprio Lenine .

Maiakovski e Meyerhold, no teat ro, foram


os seus principais protagonistas. Quanto à
música, não encontrou dirigentes compará­
veis. Então, também durante os primeiros
anos da Revolução a política musical limitou ­

-se a decretos rudimentares ao sanc ionar um


ou outro trabalho dos compositores burgueses
(que era o termo consagrado) . Eis a forma
como as coisas se passavam: O Kitezh, de
Rimski-Korsakov, considerado demasiado mís­
tico, foi posto no índice, ao passo que a
Eugénio Oneguin, de Tchaikovski, reconhecida
como uma ópera que retratava os costumes de
forma realística, mereceu a honra de ser re­
presentada. Pouco depois sucedeu precisa­
mente o contrário. Descobriu-se que Kitezh
era um drama popular, desta forma digno de
ser sancionado. Quanto à Eugénio Oneguin,
emitia um perfume de nobreza feudal, e assim
foi retirada do repertório ...
Citarei ainda um outro facto curioso desse
período: a fundação da orquestra sem con­
dutor, Persimfans (primeiro conjunto sinfó-

140
nico), que um pouco ingenuamente simboli­
zava o princípio colectivo em oposição ao tão
chamado princípio autoritário e ditatorial,
que necessita da ajuda dum condutor . Desde
então, como fàcilmente compreendereis, mui­
tas coisas mudaram na vida russa.
Durante o primeiro período do bolche­
vismo, as autoridades públicas encontravam­
-se demasiado ocupadas com outras coisas
para se preocuparem com a arte duma forma
sistemática. A própria arte era presa das teo­
rias mais diversas e contraditórias. Na ver­
dade, estas teorias derivavam do domínio da
fantasia extravagante ou mesmo do ridículo.
Foi assim que se chegou ao ponto de se denun­
"
ciar, em geral, a ópera como inútil. Os causa-
dores dessa asserção extraíram essa opinião
da origem supostamente religiosa e feudal do
género lírico (sic) e do seu carácter conven-
cional. Além disso, a ópera como forma pare­
cia desafiar o realismo artístico, a lentidão da
sua acção não correspondia de maneira al­
guma ao tempo da nova forma de vida socia­
lista. Alguns mantiveram que só as massas
podiam ser o principal personagem, o herói
da ópera, ou que a ópera revolucionária não
deveria estar de maneira nenhuma ligada a
qualquer enredo. Estas teorias desfrutaram
um certo sucesso, facto que foi comprovado

141
: .
'

pelos princípios da ópera-massas e ópera­


-sem enredo.
Por exemplo, o Gelo e Aço, de Detchevoff,
e A Frente e a Retaguarda, de Gladkovski. ....
Independentemente das ideologias regionais e
provincianas, tão tipicamente russas, um culto
evolucionário e romântico foi dedicado a Bee­
thoven. Na execução, o final da Nona Sinfonia
foi muitas vezes tocada juntamente com a
lnternaci-Onal, composta, como sabeis, pelo
belga Degeyter.
Lenine, por algum a razão desconhecida,
achava na sonata Appassionata «música so­
·bre-humana». Beethoven foi co n sid erad o à
luz das ideias de Romain Rolland, que como
sabeis ouvia o «entrecruzar dos sabres», o
barulho da batalha e as lamentações dos ven­
cidos na Eroica.
Eis aqui, escrita por um dos mais famosos
críticos musicais soviéticos, uma análise desta
mesma Terceira Sinfonia.
Os violinos, em vozes sussurradas, entoam
o seu cântico melancólico, repassado de amar­
gura. A voz do oboé, mer gulhada em tristeza,
ergue-se lentamente. Então os guerreiros em
silêncio austero ( ?) acompanham o seu chefe
à sua última morada. Mas aqui não há deses­
pero. Beethoven, o optimista, o grande amante
da Vida, tinha demasiado respeito pelo ho-

142
mem para repetir as desdenhosas ( ? ! ) pala­
vras da Igreja Cristã: «Pó tu és e em pó te
tornarás.»
No scherzo e no /inale Beethoven grita
numa voz de trovão: «Não, tu não és pó, mas,
na verdade, o Senhor da Terra.» E mais uma
vez a deslumbrante imagem do herói vem à
vida no scherzo inspirado, assim como no
/inale tempestuoso e ribombante.
Qualquer observação sobre comentários
desta espécie parece-me supérflua.
Num dos seus artigos, um outro critico e
musicólogo ainda mais proeminente e famoso
do que o que acabamos de citar reassegura­
-nos que «Beethoven batalhou para defender
1
os direitos civis da música como arte e que as 1
1
suas obras não indicam qualquer tendência
para a aristocracia».
Como podeis verificar, tudo isto nada tem
a ver nem com Beethoven, nem com a música,
nem com a verdadeira critica musical.
Então, hoje, tal como no passado, no
tempo de Stasov e Mussorgski (um músico
de génio, certamente, mas sempre confuso nas
suas ideias), o raciocínio dos «intelectuais»
procura atribuir um papel à música e conce­
der-lhe um significado totalmente estranho à
sua verdadeira missão. Um significado de que

143
a música, na realidade, se encontra muito
afastada.
Tanta ambição exagerada e grandiloquên­
cia não alteram facto de que Eugénio One­
o

guin é ainda a ópera de que o público mais


gosta, aquela que reabastece a caixa regista­
dora (se bem que haja subsídios do Estado).
Foi, no entanto, necessário, para reabilitar a
ópera , que Lunatcharski (comissário das
Belas-Artes e da Instrução Pública) acen­
tuasse (e isto é absolutamente cómico) que o

conflito de dois amantes não contradiz de


qualquer modo as ideias do comunismo.
Estou a tentar dar-vos uma ideia sucinta
da actual situação da música soviética e das
teorias e tendências que tomaram forma à sua
volta - mas, mais uma vez, tenho de fazer
uma pausa, a fim de considerar dois factos. �

Por duas vezes Estaline, pessoal e aberta­


1'
mente, interferiu na questão da arte soviética.
A primeira relacionou-se com Maiakovski,
Todos sabem que o suicídio do poeta, em 1930,
perturbou e espantou profundamente a maior
parte dos comunistas ortodoxos, provocando,
em seu nome, uma verdadeira insurreição,
porquanto a perseguição de Mai akovski tinha
começado alguns anos antes da sua morte e
fundamentara-se na desaprovação de todas as
tendências «esquerdistas» da literatura, em

144
geral. Restabelecer o completo prestigio e
significado ao nome de Maiakovski nada o
conseguiria a não ser a pessoal intervenção
de Estaline. «Maiakovski - disse ele - é
o maior e melhor (sic) poeta da época
soviética.» Evidentemente que o epíteto tor­
nou-se clássico e passou de boca em boca.
Se me debrucei por momentos sobre este
incidente literário, fi-lo, primeiramente, por­
que a cadeira de poética que ocupo neste mo­
mento me autoriza, creiam-me, a fazê-lo e em
segundo lugar porque, comparada com a vida
tumultuosa da literatura soviética, a música
permaneceu na sombra, na obscuridade.
Todavia, a segunda intervenção de Esta­
line está precisamente relacionada com a mú­
sica. Foi devida aos escândalos provocados
pela ópera Lady Macbeth de Mtsensk, de
t Chostakovitch, sobre um tema extraído de
!'\ · Leskov, e pelo seu bailado The Limpid Brook,
sobre o tema dos kolkhoz (herdade colectiva).
A música de Chostakovitch e o tema principal
das suas composições foram severamente cen­
surados, talvez não de todo erradamente,
desta vez. Foram ainda adicionalmente ata­
cados por constituírem formalismo decrépito.
A execução da sua música foi proibida, colo­
cando-a a par da música de Hindemith,

145
10
Schoenberg, Alban Berg e outros composi­
tores europeus.
Devo dizer-lhes que havia razões para esta
guerra contra a tão chamada música difícil.
Depois dos períodos do romantismo, cons­
trutivismo e futurismo terem tido o seu curso
e depois das intermináveis discussões sobre
temas tais como «Jazz ou Sinfonia?», e tam­
bém como consequência da mania de todas as
coisas grandiosas, a consciência artística rom­
peu bruscamente com as fórmulas esquerdis­
tas, por razões nitidamente políticas e sociais,
e seguiu os caminhos da «simplificação» e do
novo popularismo e folclore.
A voga pelo compositor Dzerzjinski,
encorajada pela aprovação pessoal de Esta­
line, assim como pelo êxito das suas óperas
sobre temas extraídos dos romances de Cho­
lokhov, O Dom TranquiTc e Sementes do Ama­
nhã, revelaram esta «nova» tendência, de esti­
lo próprio, para o folclore popular, uma ten­
dência, na realidade, de há muito familiar à
música russa e em que persiste até agora.
Não estou deliberadamente a desperdiçar
tempo nas obras e actividades dos composito­
res que já se tinham formado e tornado conhe­
cidos antes da Revolução e que desde então
não revelaram nenhum desenvolvimento acen­
tuado (por exemplo, Miaskovski, Steinberg e

146
outros que são simplesmente seguidores das
escolas de Rimski-Korsakov e Glazunov).
Hoje em dia mantém-se na Rússia a opi­
nião de que o novo ouvinte das massas requer
uma música simples e compreensível. A ordem
do dia para todas as artes é «realismo socia­
lista». Por outro lado, a política nacional da
União Soviética encoraja de mil maneiras a
produção artística regional das onze repúbli­
cas incluídas no sistema da União. Estes dois
factos, só por si, determinaram o estilo, a
forma e as tendências da música soviética
contemporânea.
Em poucos anos surgiu uma série de colec­
ções constituídas pelas mais variadas canções
do folclore (ucranianas, georgianas, arménias,
azerbaijanianas, abkasianas, buriato-mongóli­
cas, tártaras, kalmucas, turcomenianas, kir­
ghizas, hebraicas, etc.).
Se bem que interessante e importante,
quanto possa ser em si, este trabalho etnográ­
fico e taxonómico não se deve confundir, como
acontece na União Soviética, com os proble­
mas da cultura e da criação musical, por­
quanto estes têm pouco a ver com as expedi­
ções etnográficas. Tanto mais que estas expe­
dições têm como objectivo prescrito notar e
trazer a lume milhares de canções sobre Esta­
line, Vorochilov e outros dirigentes. Tanto

141
· .. f ..

mais que a criação musical não entra nas


harmonizações, infalivelmente convencionais
e muitas vezes suspeitas, destas canções fol­
clóricas.
Ao mesmo tempo, observa-se que os inte­
resses c laramente políticos, por de mais visí­
veis no folclore musical, vão de mão dada,
como é semp re o caso na Rússia, com uma
teoria confusa e complicada que expressa­
mente põe em relevo que «as diferentes cultu­
ras regionais se estão a exp andir e a evoluir
numa cultura musical de todo o grande pais
socialista».
Eis aqui o que um dos mais importantes
críticos e musicólogos soviéticos escreve: «ln já
a altura de abandonarmos a distinção - abso­
lutamente feudal, burguesa e pretensiosa -
entre a música folclórica e a música artís­
tica. Como se a qualidade da estética fosse
apenas o privil égio da invenção individual e
da criação pessoal do co mpo sitor . :. Se o cres ­
cente interesse da etnografia m usical é com­
prado ao preço de tais heresias, seria talvez
preferível que este interesse fosse exercido
nas formas musicais p rim itivas , anteriores à
Revolução, porque, doutra forma, corre o

risco de trazer apenas prejuízo e co nfusão à


música russa.

148
Esta mania do folclore deu, porém, ori­
gem a uma série de composições, pequenas e
· grandes, como as óperas 01iah-8enem, Gul­
sara, Daissi, Abessalon e Eteri, Aitchurek,
Adjal-Orduna, Altine-Kiz, Taras Bulba, etc.
Todas estas composições pertencem ao tipo
convencional de ópera. Evidentemente que não
resolvem nenhum problema de criação, por­
que ambas pertencem à categoria de arte «Ofi­
cial» e afectam uma linguagem pseudopopu­
lar. Nesta conformidade, podemos acrescentar
a recente mania pela opereta «Ucraniana»,
anteriormente designada por opereta da «Rús­
sia pequena».
Se os supervisores da música soviética
confundem, intencionalmente, ou talvez pela
' ignorância, os problemas da etnografia com
os da criação, cometem o mesmo erro na ques­
tão da execução, porquanto elevam-na, por
razões tendenciosas, ao nível do fenómeno
criador e da verdadeira cultura musical. O
mesmo se aplica aos grupos de amadores de
todas as espécies que formam orquestras,
coros e conjuntos populares e que são sempre
citados como argumento para. provar o desen­
volvimento dos poderes artísticos dos povos
da União. Certamente que é óptimo que os
pianistas e os violinistas da União Soviética
arrebatem os primeiros prémios em concursos

149
internacionais (é verdade que tais con cursos
jamais ti veram valor de qualquer espécie ou
contribuíram em alguma coisa para a músic a ) .

Certamente que é óptimo que a Rússia exe­


cute as suas canções do folclore e cultive os
cânticos dos kolkhoz.
Valerá, porém, a pena alongarmo-nos so­
bre estes assuntos secundários na esperança
de encontrarmos em tais factores quantitati­
vos os sinais duma verdadeira e genuína cul­
tura cujas origens e condições, tal como em
todos os outros campos da criação, não estão
de forma alguma contidos neste consumo de
massas, que se assemelha mais a um resul­
tado d e treino? Será que não se encontram
estes sinais em algo inteiramente diferente,
algo que a Rússia soviética tenha completa­
mente esquecido ou cuja linguagem tenha de­
saprendido?
Devo finalmente chamar a vossa atenção
para duas tendências que, na minha opinião,
lançam luz nas directrizes musicais da Rússia
contemporânea e que desde os últimos anos
têm sido cada vez mais pronunciadas. Estas
tendências são, por um lado, o reforço da
temática da Revolução, a necessidade de
assuntos revolucionários de interesse imediato
para os nossos dias e, por outro lado, a adap­
tação bastante especializada das obras clás-

150
sicas - ainda sem precedentes noutro lado -
às exigências da vida contemporânea.
Depois de utilizarem os romances de Cho·
lokhov como fonte de temas líricos, voltaram­
-se para Gorki e para temas da guerra civil.
Numa nova ópera, Na Tempestade, atingiram
mesmo o ponto de fazerem Lenine aparecer
no palco. Quanto às famosas adaptações de
que acabei de falar, posso dizer-vos que, muito
recentemente, o Quebra-Nozes, de Tchaikovski,
1 foi restituído ao reportório de bal'let, com
modificações no enredo e no libreto, pois veri·
ficou-se serem duma cor demasiado mística e,

deste modo, perigosa, assim como estranha,


para o espectador soviético. De forma seme-
/,
lhante, depois de hesitações intermináveis e
de numerosas revisões, a famosa ópera de
Glinka Uma Vida pelo Tsar mais uma vez
tomou lugar no reportório sob o titulo de Ivan
Sussanin. A palavra «tsar» foi substituída,
conforme a ocasião exigia, pelas palavras
«país», «terra natal» e «povo». Quanto à
apoteose, a encenação original do drama man­
teve-se, com os tradicionais repicar dos sinos
e as procissões dos clérigos nas suas vestes
sacerdotais. Não devemos procurar na música
de Glinka uma explicação para esta patriótica
encenação, mas antes na propaganda da de-
fesa nacional.

151
.
•'· \ ·.!' •'

... t·' :4; �

•' ;

Não possuindo quaisquer formas autênticas


de expressão que lhe sejam próprias, o patrio­
tismo comunista imposto sobre o governo so­
viético pela pressão dos acontecimentos ( cTu
que pensas pre ssionar serás pressionado>)
manifestou-se, via subversão, através duma
das o bras -primas mais puras da música clás­
sica russa, uma obra-prima que foi concebida
e composta em circunstâncias inteiramente
diferentes e enquadrad a num signifi cado abso­
lutamente d iferente .
Se a cultura musical da Rússia contempo­
rânea fosse tão florescente como se afirma,
que necessidade haveria de recorrer a este
empréstimo, posso mesmo dizer fals ificação,
de Glinka?
O actual problema da Rússia comunista,
c o mo compreendeis certamente, é acima de
tudo um problema de conceitos gerais, quer
isto dizer, dum sistema de valores compreen­
didos e calculados. :m o problema de escolher
e seleccionar o admissível do inadmissível;
uma síntese de experi ência, com as suas con­
sequências, por outras palavras, com as suas
conclusões, que determina o gosto e o estilo
de toda a vida, de toda a acção. Daqui concluo
que, na verdade, um conceito geral não é capaz
de evolução, sendo em si mesmo um círculo
fechado. Podemos apenas permanecer dentro

152
dele ou sair dele. :li: exactamente o caso do
conceito comunista. Para aqueles que são
mantidos dentro do círculo, todas as pergun­
tas, todas as respostas, são determinadas
antecipadamente.
Resumindo, gostaria de dizer isto. De
acordo com a presente mentalidade russa exis­
tem bàsicamente duas fórmulas que explicam
� o que é a música. Uma espécie de música seria
mais ou menos num estilo profano, a outra
num estilo elevado ou grandiloquente. Os
•.. kolkhozianos, rodeados de tractores e de má­
quinas automáticas (que é o termo) , dançando
com razoável alegria (mantendo-se a par das
exigências da dignidade comunista) sob o
acompanhamento dum coro do povo: isto dará
um quadro adequado do primeiro tipo. Fazer
isto para a outra espécie, em estilo elevado, é,
de longe, mais complicado. Aqui a música é /�
chamada a «Contribuir para a formação da
personalidade humana impregnada do am-
biente da sua grande época».
Um dos escritores mais estimados pelos
soviéticos, Alexey Tolstoi, não hesita em es­
crever com a maior seriedade, em referência
à Quinta Sinfonia de Chostakovitch:

A música deve apresentar a fórmula


consumada das tribulações psicológicas da

153
humani dade , deve acumular a energia do
homem.
Aqui temos a «Sinfonia do Socialismo».
Começa com o largo das massas a traba­
lhar secretamente , e o accellerando corres­
ponde ao sistema subterrâneo; o allegro,
por sua vez, simboliza a maquinaria gigan ­
tesca da fábrica e a sua vitória sobre a
nature za O adagio rep resen ta a síntes e da
.

cultura ciência e arte soviéticas. O scherzo


,

reflecte a vida atlética dos felizes habitan­


tes da União. Quanto ao /inale, é a imagem
da gratidão e o entusiasmo das massas.

O que vos acabo de ler não é uma brinca­


deira por mim imaginada. li: uma citação lite­
ral dum musicólogo de renome que apareceu
recentemente num órgão comunista oficial.
Constitui, nos seus moldes, uma obra-prima
consumada de mau gosto, debilidade mental e
completa desorientação no reconhecimento dos
valores fundamentais da vida. Nem sequer é,
pelo menos, o resultado (se não a consequên­
cia) dum estúpido conceito. Para a ver objeci­
tivamente temos de nos libertar.
Quanto a mim, compreendereis pronta­
mente que considero estas duas fórmulas, es-.
tas duas imagens, como sendo igualmente
inadmissíveis, e considero-as como um pesa-

154
delo. A música não é uma «dança de campo·
neses» tal como não é uma «Sinfonia do Socia­
lismo». Aquilo que realmente é tenho tentado
dizê-lo no decorrer das minhas anteriores
lições.
Talvez que estas considerações vos pare·
çam cheias de dureza e amargura. São, na
verdade. Todavia, o que supera tudo o mais
é o espanto, poderia mesmo dizer a estupefac­
ção, em que o problema do destino histórico
da Rússia me tem sempre mergulhado, um

problema que há séculos permanece um mis­


tério. 1

A grande controvérsia dos «eslavófilos» e i.


dos «Ocidentais», que se tornou o tema prin· 1'
cipal da filosofia russa e de toda a cultura
russa, não tem, por assim dizer, resolvido 1
nada.
Ambos estes sistemas opostos falharam
1
numa medida semelhante no cataclismo da
1
Revolução.

Apesar de todas as profecias messiânicas


dos «eslavófilos» - que visionaram para a
Rússia um caminho histórico inteiramente
novo e independente da velha Europa, perante
os quais estes «eslavófilos» se curvaram, ape­
nas, como perante um túmulo sagrado - a Re­
volução Comunista lançou a Rússia nos braços
do marxismo, um sistema ocidental e europeu

155
. .. .

,,. ,

por excelência. Porém, o que nos confunde


completamente é que este sistema hiperinter­
nacional está ele próprio a sofrer muito ràpi­
damente uma transformação, e vemos a Rús­
sia regressar a uma atitude da pior espécie
de n acional ismo e c hauvinismo populares, que
mais uma vez a separa radicalmente da cul­
tura europeia .

Isto significa que, depois de vinte e um

anos de revolução catastrófica, a Rússia não


foi capaz de resolver o seu grand e proble ma
histórico. Além disso, como é que poderia ter
real izado isto quando nunca conseguiu esta­
b iliz ar a sua cultura ou consolidar as suas
tradições? Encontra-se, tal como sempre se
encontrou, numa encruzilhada de frente para
a Europa e, todavia, voltando-lhe as costas.
Nos diferentes ciclos do seu desenvolvi ­

mento e das suas metamorfoses históricas, a


Rússia tem sido sempre falsa para consigo
própria, tem sempre minado as fundações da
sua própria cultura e profanado os valores
das fases que têm perpassado antes.
E a go ra que chega a altura, atrav és da
necessidade , de mais uma vez se apoiar nas
suas trad ições, fica sat is feita com os seus
s imples simulacros, sem compreender que o
seu valor intrínseco, a sua própria vida, desa-

156
pareceram completamente. lt esse o ponto cru­
cial desta grande tragédia.
Uma renovação é produtiva apenas quando
vai de mão dada com a tradição. A dialéctica
viva deseja que a renovação e a tradição se
desenvolvam e se auxiliem uma à outra num
processo simultâneo. Ora, a Rússia apenas viu
o conservantismo sem a renovação ou a revo­
lução sem a tradição, donde surge a tremenda
hesitação sobre o vazio que sempre tem enton­
tecido a minha cabeça.
Não fiqueis surpreendido em me ouvir ter­
minar esta lição com tais considerações de
ordem geral, mas, seja qual for o caso, a arte
não é nem pode ser «Uma superstrutura ba­
seada em condições de produção», de acordo
com os desejos dos marxistas.
A arte é uma realidade ontológica, e ao
tentar compreender o fenómeno da música
russa não posso evitar tornar a minha análise
mais geral.
Sem dúvida que o povo russo está entre os
mais dotados para a música. Infelizmente,
embora a Rússia possa saber raciocinar, a
cogitação e a especulação não são de certeza
os seus pontos fortes. Ora, sem um sistema
especulativo e com a ausência duma ordem
bem definida na cogitação, a música não tem
valor ou mesmo existência como arte.

151

.
"

Se a vacilação da Rússia através do decor­


rer d a história me desorienta ao ponto de
fazer estalar a minha cabeça, as perspe ctivas
da arte musical russa não me desconcertam
menos. Porque a arte pressupõe uma cultura,
uma educação, uma estabilidade integral da
inteligência, e a Rússia de hoje nunca se en­
controu mais privada destas.

158
6. A EXECUÇÃO. DA MúSICA
'

I'
Torna-se necessário distinguir dois mo­
mentos ou, antes, dois estados de música:
música potencial e música verdadeira. Quer
escrita no papel quer retida de memória, a
música existe já antes da sua verdadeira exe­
cução, diferindo a este respeito de todas as
outras artes, tal como difere delas, como
vimos, nas categorias que determinam a sua
percepção.
A entidade musical apresenta deste modo a
.''notável singularidade de envolver dois aspec­
tos, de existir sucessiva e distintamente em
duas formas separadas uma da outra pelo
hiato do silêncio. Esta natureza particular da
música determina a sua própria vida, assim
como as suas repercussões no mundo social,
porquanto pressupõe dois tipos de músicos:
o criador e o executante.
Notemos, de passagem, que a arte do tea­
tro que requer a composição dum texto e a
sua tradução em termos oral e visual implica

161
11
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um problema semelhante, se não absoluta­


mente idêntico; porque existe uma distinção
que não se pode ignorar: o teatro apela para
a nossa compreensão dirigindo-se simultânea­
mente à vista e ao ouvido. Ora, de todos os
nossos sentidos a vista é o que mais se encon­
tra intimamente ligado à inteligência, e o
ouvido é atraído neste caso, pela linguagem
articulada, para o veículo das imagens e dos
conceitos.
Assim, o leitor duma obra dramática pode
imaginar mais fàcilmente a que se assemelha­
ria a sua real apresen tação do que o leitor
duma partitura musical pode imaginar como
soaria o verdadeiro instrumento executante
da partitura .

É fácil ver a razão por que há, de longe,


menos leitores de p ar tituras orquestrais do
q ue há leitores de livros sobre música.
Além disso, a linguagem da música é
muito limitada p ela sua notação. Desta forma,
o actor dramático acha que tem muito mais
latitude no q ue respeita ao cronos e intonação
do que o cantor que se encontra intimam ente
ligado ao tempo e ao melos.
Esta sujeição, tantas vezes tão aborrecida
para o exibicionismo de certos solistas, está
na própria essência da questão que me pro-

162
ponho levantar agora: a questão do exe­
cutante e do intérprete.
A ideia de interpretação implica as limi­
tações impostas sobre o executante ou aquelas
que o executante impõe sobre si mesmo na
sua própria função, que é transmitir música
ao ouvinte.
A ideia de execução implica a rigorosa
·
entrada em vigor duma vontade explícita que
não contém nada para além daquilo que espe­
cificamente comanda.
O conflito destes dois princípios - exe­
cução e interpretação - está na raiz de todos
os erros, de todos os pecados, de todos os mal­
-entendidos, que se interpõem entre a obra J
musical e o ouvinte, e evita uma fiel trans­
missão da sua mensagem.
Todo o intérprete é, também, necessària­
mente, um executante. O contrário não é ver­
/· .
i. A dadeiro. Seguindo mais a ordem de sucessão
· · · do que a de precedência, teremos em primeiro
· lugar de considerar o executante.
Está assente que eu coloco perante o exe­
cutante música escrita onde está claramente
expressa a vontade do compositor, e fácil­
mente discernível dum texto correctamente
estabelecido. Mas, independentemente de como
possa ser escrupulosamente notada uma peça
musical, independentemente de como possa

16S
'at �' �(' .-
)

estar cuidadosamente garantida contra toda


a possível ambiguidade, as indicações de
tempo, variações, fraseado, acentuação, etc.,
contêm sempre elementos escondidos que desa­
fiam a definição, porque a dialéctica verbal é
impotente para definir a dialéctica musical na
sua totalidade.
A efectivação destes elementos é, pois, um
assunto de experiência e intuição, numa pala­
vra, do talento da pessoa que é chamada a
apresentar a música.
Deste modo, em contraste com a perícia
das artes plásticas, cujo trabalho acabado é
apresentado aos olhos do público numa forma
sempre idêntica, o compositor corre grande
perigo todas as vezes que a sua música é
tocada, uma vez que a apresentação compe­
tente do seu trabalho depende de cada vez dos
factores imprevisível e imponderável que vão
formar as virtudes da fidelidade e da simpa­
tia, sem o que a obra será irreconhecível numa
ocasião, inerte noutra e em qualquer caso
atraiçoada.
Entre o executante puro e simples e o
intérprete no sentido estrito da palavra existe
uma diferença no todo que é mais de ordem
ética do que estética, uma diferença que
apresenta um ponto de consciência: teorica­
mente, pode-se exigir do executante a tradu-

164
ção em som da sua parte musical, o que ele
pode fazer de boa ou má vontade, enquanto se
tem o direito de procurar do intérprete, além
da perfeição desta tradução em som, um
cuidado carinhoso - o que não significa uma
recomposição, quer seja sub-reptícia ou decla­
radamente aberta.
O pecado contra o espírito da obra começa
sempre com um pecado contra a sua letra, e
conduz a patetices infindáveis que uma lite­
ratura sempre florescente do pior gosto faz
o melhor que pode por sancionar. Assim,
segue-se que um crescendo, como todos sabe­
mos, é sempre acompanhado por uma acelera­
ção do movimento, enquanto se dá sempre um
afrouxamento para acompanhar um dimi­
nuendo. O supérfluo é aperfeiçoado; recorre­
-se delicadamente a um piano, piano, pianís­
simo; tem-se grande orgulho em aperfeiçoar
tonalidades inúteis - uma preocupação que
em geral anda de braço dado com o ritmo ine­
xacto . . .

Estas são as muitas práticas queridas aos


espíritos superficiais, sempre ávidos e pron­
tamente satisfeitos, um êxito imediato e fácil
que lisonjeia a vaidade da pessoa que o obtém
e perverte o gosto daqueles que a aplaudem.
Quantas carreiras lucrativas têm sido lança­
das por meio de tais práticas! Quantas vezes

165
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1
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tenho sido vítima destas atenções mal orien­


tadas dos ladrões da quinta-essência, que per­
dem tempo em minúcias sobre um pianissimo
sem sequer notarem as egrégias asneiras da
rendição! Excepções, podeis dizer. Os maus
intérpretes não nos devem fazer esquecer os
bons. Concordo - fazendo notar, contudo, que
os maus são em maioria e que os virtuosos
que servem a música fiel e lealmente são
muito mais raros do que a queles que para se
instalarem no confortável berço duma carreira
obrigam a música a servi-los.
Os prin cipios bastante disseminados que
governam a interpretação dos mestres ro­
mânticos em particular, tornam estes composi­
tores as vítimas predestinadas dos assaltos
criminosos de que estamos a falar. A inter­
pretação da sua obra é governada por consi­
derações extramusicais com base nos amores
e infortúnios da vítima. O título duma peça
torna-se uma desculpa para um gratuito e

demorado pensamento. Se a peça não tem


nenhuni, lança-se um título sobre a mesma por
razões absolutamente fantasiosas. Penso na
sonata de Beethoven que nunca foi designada
doutra maneira a não ser pelo título de Sonata
ao Luar, sem que haja alguém que saiba por­
quê; da valsa em que é obrigatório encontrar
o Adeus de Fré déric Chopin.

166
..
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'
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Evidentemente, não é sem u ma razão que


os piores intérpretes se agarram em geral aos
românticos. Os elementos estranhos mu sical­
mente que se encont ram espalhados ao longo
das suas obras convidam à traição, ao passo
que uma página em que a música procura não
expressar nada para além de si mesma resiste
melhor às tentativas da deformação literária.
Não é fácil conceber como um pianista pode
estabelecer a sua reputação ao considerar
Haydn como seu cavalo de batalha, o que é
' indubitàvelmente a razão pela qual o grande
,?

músico não ganhou entre os nossos intér-


pretes u ma reputação que esteja de acordo
com o seu verdadeiro valor.
No que respeita à interpretação, o século
passado deixou-nos, na sua pesada herança,
uma espécie curiosa e peculiar de solista sem
precedentes no passado distante - um solista
chamado o dirigente de orquestra.
• Foi a música romântica que indevidamente
insuflou a personalidade do Kapellmeister,
mesmo até ao ponto de lhe conferir - junta­
mente com o prestigio que ele hoje em dia
desfruta no pódio, em que concentra a atenção
sobre si - o poder arbitrário que exerce so­
bre a música confiada ao seu cuidado. Empo­
leirado no seu estrado sibilino, ele impõe os
seus próprios mov imentos, as suas próprias

167
. ',' \ ' '

variações particulares, sobre as compos1çoes


que ele rege, e chega até ao ponto de falar
com impudência ingénua das suas especialida­
des, da sua quinta, da sua sétima, da mesma
maneira que um chefe de cozinha se gaba do
prato da sua autoria. Ouvindo-o falar, pensa­
- se nos cartazes que recomendam aos auto­
mobilistas lugares onde se come: «No restau­
rante X, provem os seus vinhos e os seus
pratos especiais.»
No passado nunca houve nada semelhante,
nos tempos em que já se conheciam tão bem
como nos nossos dias virtuosos tiranos e

agressivos, quer instrumentalistas quer pri­


mas-donas. Aqueles tempos, porém, não so­
friam ainda da competição em excesso de
regentes que aspiram a estabelecer uma dita­
dura sobre a música.
Não penseis que estou a exagerar. Uma
anedota que me contaram, há já alguns anos,
mostra claramente a importância que o re­
gente tem em tomar conta das preocupações
do mundo musical. Um dia, a uma pessoa que
preside nos lucros duma grande agência de
concertos, contaram-lhe o êxito obtido na
Rússia Soviética por aquela famosa orquestra
sem regente de que já falámos: «Isso não faz
sentido - declarou a pessoa em questão -

e não me interessa Aquilo em que estou ver-


.

168
., .
·-

dadeiramente interessado não é numa orques­


,. f ,
...
tra sem regente, mas num regente sem or­
questra.»
; �
; Falar dum intérprete significa falar dum
tradutor, e não é sem razão que um bem
conhecido provérbio italiano, com a forma
du m trocadilho, iguala a tradução à traição.
Regentes, cantores, pianistas, todos os vir­
tuosos devem conhecer ou lembrar-se de que
a primeira condição a ser preenchida por
qualquer pessoa que aspira ao imponente ti­
tulo de intérprete é que, antes de mais, seja
um executante impecável. O segredo da per­
'!
feição reside acima de tudo na consciência da
lei que lhe é imposta pela obra que está a exe­
cutar. E de novo voltamos ao grande princípio
da submissão, que tantas vezes temos invo­
cado no decorrer das nossas lições. Esta sub­
missão exige uma flexibilidade que, por sua
vez, exige, juntamente com o domínio técnico,
um sentido de tradição e, comandando tudo,
uma cultura aristocrática que não é mera­
mente uma questão de conhecimento adqui­
rido.
Esta submissão e cultura que exigimos do
criador devemos justa e naturalmente exigi-la
do intérprete também. Ambos encontrarão,
nesse sentido, liberdade em rigor extremo, e
na análise final, se não na primeira instância,

169
' 1 • •

..

êxito-verdadeiro êxito, a legítima recom­


pensa dos intérpretes, que n a expressão da
sua mais brilhante vir tuosidad e conservam
essa modéstia de movimento e de sobriedade
de expressão que é a marca de artistas per­
feitos.
Disse algures que não era suficiente ouvir
música, mas que a mesma tinha de ser tam­
bém vista. Que diremos da incivilidade desses
esgareiros que tantas vezes tomam sobre si
o dar-nos o «sentido interior» da mús i ca , des­
figurando -a com os seus ares afectados? Por­
que, repito, vemos a música. Os olhos expe­
rimentados seguem e julgam, algumas vezes
inconscientemente, o mínimo gesto do exe­

cutante. Deste ponto de vista , podemos idea­


lizar o processo de execução como a criação
de novos valores que exigem a solução de
problemas semelhantes aos que surgem no
campo da co reografi a.
Em ambos os casos prestamos demasiada
atenção ao contrôle dos gestos. O d an çarino
é um orador que fala uma linguagem muda.
O instrumental ista é um orador que fala uma
lin guagem inarticulada. Tanto sobre um como
outro a música impõe um sentido estrito,
p orquan to a música não se move no abstracto.
A sua tradução em termos de plástica exige

170
precisão e beleza: os exibicionistas sabem isto
demasiadamente bem.
A bela apresentação que faz com que a
harmonia daquilo que se vê corresponda à
execução de sons exige não só boa instrução
musical por parte do executante mas também
uma boa familiaridade da sua parte, quer seja
cantor, instrumentalista ou regente, com o
estilo da obra que lhe foi confiada; um gosto
muito preciso pelos valores expressivos e suas
limitações, um sentido seguro daquilo que
pode ser tomado como garantido - numa pa­
lavra, uma educação não só do ouvido mas
também do espírito.
Uma tal educação não pode ser obtida nas
escolas de música e nos conservatórios, por­
quanto o ensino de boas maneiras não é a sua
finalidade: só muito raramente um professor
de violino frisa sequer aos seus alunos de que ·.

é impróprio quando tocam afastar as pernas


demasiado.
É, todavia, estranho que um tal programa
educacional não exista em nenhum lado. Ao
passo que todas as actividades são reguladas 1

por regras de etiqueta e boa educação, os 1

executantes, na maior parte dos casos, des­


conhecem por completo os preceitos elemen- /
tares da cortesia musical, quer isto dizer da ,

boa educação muBicaZ - um assunto de de- ,

111
,� il' '

� :.. �\•• �
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cência comum, que uma criança pode apren­


der ...
A Paixão de São Mateus, de João Sebas­
tião Bach, está escrita para um conjunto de
música de câmara. A sua primeira execução, ,�

em vida de Bach, foi perfeitamente realizada


por uma força total de trinta e quatro mú-
sicos, incluindo solistas e coros. Sabe-se isto.
E, no entanto, nos nossos dias não se hesita
em apresentar a obra, em completo desprezo
pelos desejos do compositor, com centenas de
executantes, algumas vezes mil. Esta ausência
de compreensão das obrigações do intérprete,
este arrogante orgulho em números, esta
concupiscência de muitos , revela uma com­
pleta ausência de educação musical.
O absurdo de tal prática é, na realidade,
evidente em todos os sentidos e acima de tudo
do ponto de vista acústico, porque não é sufi­
ciente que o som chegue ao ouvido do público;
devemos também considerar em que condi­
ções, em que estado, o som é recebido.
Quando a música não foi concebida para
uma grande massa de executantes, quando o
seu compositor não quis produzir efeitos dinâ-
micos maciços, quando a estrutura está fora
de proporção em relação às dimensões da
obra, a multiplicação do número de executan-

172
tes participantes apenas pode produzir efeitos
desastrosos.
O som, exactamente como a luz, actua
diferentemente de acordo com a distância que
separa o ponto da emissão do ponto da recep­
ção. Uma massa de executantes situada num
estrado ocupa uma superfície que se torna
proporcionalmente maior à medida que essa
massa se torna consideràvelmente maior.
Ao aumentar o número de pontos de
emissão aumentam-se as distâncias que sepa­
ram estes pontos uns dos outros e do ouvinte.
De modo que quanto mais se multiplicam os
pontos de emissão tanto mais confusa será a

recepção.
Em todos os casos, a duplicação de partes
pesa sobre a música e constitui um perigo • ·

que apenas se pode evitar procedendo com


infinito tacto. Tais adições exigem uma pro­
porção subtil e delicada que pressupõe em si
o mais seguro dos gostos e uma cultura dis­
criminada.
Crê-se, muitas vezes, que o poder se pode
aumentar indefinidamente ao multiplicar a

duplicação das partes orquestrais - uma


crença que é completamente falsa: o espes­
samento não constitui reforço. Em certa me­
dida e até certo ponto, a duplicação pode dar
a ilusão de força ao produzir uma reacção de

173

....

ordem psicológica no ouvinte. A sensação de


choque simula o efeito do p od e r e ajuda a
estabelecer uma ilusão de equilíbrio entre as
massas tonais sonoras.
Bastante se poderia dizer a este respeito,
sobre o equilíbrio das forças na orquestra mo­
derna, um equilíbrio que se explica mais fàcil­
mente pelos nossos hábitos auriculares do que
se justifica pela exactidão das proporções.
E um facto positivo que para além dum certo
g r au de extensão a impressão de intensidade
diminui em vez de aumentar e consegue ape­
nas atenuar a sensação. Os músicos devem
chegar à conclusão de que para a sua arte isto
é tão verdadeiro como para a arte dos car­
tazes publicitários: que a explosão de som não
retém a atenção do ouvido - tal como o pe­
rito em publicidade sabe que as letras dema­
siado grandes não atraem a vista .
Uma obra de arte não pode conter-se em
si. Assim que o criador completou o seu tra­
balho, tem absoluta necessidade de partilhar
a sua alegria. Muito naturalmente, procura

estabelecer contacto com o seu irmão, que


neste caso se torna seu ouvinte. O ouvinte
reage e torna-se parceiro no jogo iniciado pelo
criador. Nada menos, nada mais. O facto de
o parceiro ser livre de aceitar ou recusar a

114
participação no jogo não o investe automàti­
camente da autoridade dum juiz.
A função judicial pressupõe um código de
sanções que a mera opinião não dispõe. E na
minha forma de pensar é absolutamente ili­
cito estabelecer o público como júri, ao con­
fiar-lhe a tarefa de dar um veredicto sobre o

valor duma obra. Já chega que. o público seja


chamado a decidir sobre o seu último destino.
O destino duma obra, evidentemente, de­
pende, em última análise, do gosto do público,
das variações do seu humor e hábitos; numa
palavra, das suas preferências. Mas o destino
duma obra não depende do julgamento do
público como se fosse uma sentença sem apelo.
Chamo a vossa atenção para este ponto
absolutamente importante: por um lado, con­
\ siderai o esforço consciente e a paciente orga­
' :� nização que requer a composição duma obra
l/ e, por outro lado, o julgamento - que é pelo
' menos apressado e de improvisada necessi­
dade - que se segue à apresentação da obra.
A desproporção entre os deveres da pessoa
que compõe e os direitos daqueles que o jul­
gam é evidente, uma vez que o trabalho ofe­
recido ao público, seja qual for o valor que
possa ter, é sempre fruto de estudo, raciocínio
e cálculo que implica exactamente o oposto de
improvisação.

115
... {•. '. ·� .....,, ...
' 1
:.,' ' ...

..
. . !''

Falei pormenorizadamente, durante algum


\
tempo, sobre este tema a fim de vos obrigar
a ver mais claramente onde residem as ver­
dadeiras relações entre o compositor e o pú­
blico, tendo o executante a actuar como inter­
mediário. Aperceber-vos-eis mais completa­
mente, então, da responsabilidade moral do
executante.
Porque só apenas através do executante
está o ouvinte em contacto com a obra m.usi­
cal. A fim de que o público possa saber o que
é uma obra musical e qual o seu valor, o
público deve primeiro assegurar-se do mérito
da pessoa que lhe apresenta a obra e da con­
formidade dessa apresentação com a vontade
do compositor.
A tarefa do ouvinte torna-se especialmente
difícil quando se trata duma primeira audição,
porque, neste caso, ele não tem qualquer ponto
de referência e não possui nenhuma base para
comparação.
E surge, assim, a primeira impressão, que .
é tão importante; o primeiro contacto do tra­
balho recém-nascido com o público depende
inteiramente da validade duma apresentação
que foge a todo o contrôle.
Tal é, então, a nossa situação perante um

trabalho não publicado, quando a qualidade


dos executantes que estão perante nós não

176
' ' ..

,.
,..
,.. .

'
nos garantem que o compositor não seja atrai­
' .

çoado e que não sejamos defraudados.


Em todos os períodos, a formação duma
élite tem-nos dado uma certeza adiantada em
assuntos de relações sociais que nos permite
ter inteira confiança nos executantes des­
conhecidos que surgem perante nós, sob a
égide desse sentido perfeito que a educação
concede. Não possuindo uma garantia desta
espécie, as nossas relações com a música
nunca serão satisfatórias. Compreendereis,
sendo a situação aquilo que é, porque acen­
tuamos a tal ponto a importância da educação.
Dissemos, anteriormente, que o ouvinte
era, de certo modo, chamado para se tornar o
parceiro do compositor. Isto pressupõe que a
instrução e a educação musical do ouvinte são
suficientemente vastas de modo que ele possa
não só compreender as principais caracterís­
ticas da obra, à medida que surgem, mas tam­
bém seguir até certo ponto os aspectos va­
riáveis do seu desenvolvimento.
Na verdade, uma tal participação activa é
uma coisa indiscutivelmente rara, tal como o
criador é uma rara ocorrência na massa da
humanidade. Esta participação excepcional dá
ao parceiro um prazer tão vivo que o une, em
certa medida, com o espírito que concebeu e
realizou a obra que está a escutar, dando-lhe

117
) ,,.

lif'
)
a ilusão de se identificar ele próprio com o

criador. Ê esse o significado do famoso adágio


de Rafael: compreender é fazer igual.
Mas tal compreensão é a excepção; o nú­
mero vulgar de ouvintes, não interessa supor
quanto atento ao processo musical ele esteja,
desfruta a música apenas duma maneira pas­
siva.
Infelizmente, existe ainda uma outra ati­
tude em relação à música que difere tanto
daquela do ouvinte que se entrega ao desen­
volvimento da música - participando nela e

seguindo-a passo a passo - como da atitude '


do ouvinte que tenta dàcilmente ir com a

música: porque devemos agora falar de indi­


ferença e de apatia. Tal é a atitude dos
snobes, dos falsos entusiastas, que vêem num
concerto ou numa execução apenas a oportu-,
nidade de aplaudirem um grande regente ou
aclamarem um virtuoso. Basta apenas olhar,
por uns instantes, para aqueles «rostos cin­
zentos de aborrecimento», como dizia Claude 1

Debussy, para medir o poder que a música


tem de produzir uma espécie de estupidez
nessas infelizes pessoas que a escutam sem a
ouvir.
Aqueles de vós que me destes a honra de
ler as Crónicas da Minha Vida talvez se lem-

178

.
., 1
' , •• l/f
i ... '
' .. .

brem de que frisei o assunto respeitante à


I'
música mecânicamente reproduzida. 1
A propagação da música por todos os
•1·1 . meios possíveis é, em si, uma coisa excelente;
mas difundi-la sem tomar precauções, ofere­
cê-la de modo hesitante ao público em geral,
que não está preparado para a ouvir, é pre­
parar este público para a mais aflitiva satu­
ração.
Já não estamos mais no tempo em que
João Sebastião Bach, alegremente, ia a pé, até
muito longe, para ouvir Buxtehude. Hoje, a
rádio traz a música para nossas casas, a todas
as horas do dia e da noite. Alivia o ouvinte

• :.
de todo o esforço, excepto aquele de voltar
-' �w um botão. Ora, o sentido musical não se pode
�·;
• •

' ..; adquirir ou desenvolver sem exercício. Na


:- . música, como em tudo o mais, a inactividade
' .. · conduz gradualmente à paralisia, à atrofia,
··
·'l� :· ' das faculdades. Compreendida desta forma, a
· ' ' música torna-se uma espécie de droga que,

longe de estimular o espírito, paralisa-o e


estultifica-o.
Assim, acontece que o próprio empreendi­
mento que procura fazer com que as pessoas
gostem de música, oferecendo-a numa difusão
cada vez maior, muitas vezes atinge apenas o
resultado de fazer com que as mesmas pessoas
percam o apetite pela música, cujo interesse
devia ser suscitado e o gosto desenvolvido.

179
..

EPILOGO

'1
1
Cheguei, assim, ao fim da minha tarefa.
Permitam-me, antes de concluir, expressar a
grande satisfação que sinto quando penso na
atenção que me dispensaram, uma atenção
que gosto de considerar como o sinal exterior
da comunhão que tão ansiosamente desejei
estabelecer entre nós.
::m esta comunhão que será, como uma espé­
cie de epílogo, o assunto de algumas palavras
que gostaria de vos dizer sobre o significado
da música.
Travámos conhecimento uns com os outros
sob os severos auspícios da ordem e da disci­
plina. Afirmámos o princípio da vontade espe­
culativa que está na origem do acto criador.
Estudámos o fenómeno da música como uma
forma de especulação em termos de som e de
tempo. Passámos em revisão os objectos for­
mais da arte da música. Considerámos o pro­
blema de estilo e investigámos a biografia da
música. A este respeito, à maneira de exemplo,

183
.. \ <

.. 1 ' ... ··�


.. • l
1
·.
•'

..

seguimos as metamorfoses da música russa.


Finalmente, examinámos os diferentes proble­
mas apresentados pela execução da música.
No decorrer destas lições referi-me, em
diferentes ocasiões, à questão essencial que
preocupa o músico, à medida que exige a , . ·f j
:
atenção de todas as pessoas, movidas por um , .'.,:.X
impulso espiritual. Vimos que esta questão . : .�'f.'·1
.
reverte sempre e inevitàvelmente para a per-,,,;'
seguição do Um de Muitos. '..'\
·

Assim, ao concluir, encontro-me mais uma :\7'.r" "

vez perante o eterno problema implicado em .. ;i::? '

todos os inquéritos de ordem ontológica, um ··_:


problema a que todo o homem, que sente o

seu caminho através do campo da disseme­


lhança - quer seja um artífice, um físico, um

filósofo ou um teólogo -, é inevitàvelmente


levado pela razão da própria estrutura da sua
compreensão.
Oscar Wilde disse que todos os autores
pintam sempre o seu auto-retrato. Aquilo que
observo nos outros deve do mesmo modo ser
visível em mim. Parece que a unidade que
procuramos é forjada sem o sabermos e esta­
belece-se dentro dos limites que impomos
sobre o nosso trabalho. Quanto a mim, se a
minha própria tendência me leva a procurar
a sensação em toda a sua frescura, rejeitando
o entusiasmo, o lugar-comum - o ilusório,

184
� .. '
.

·� · · · numa palavra-, estou, no entanto, conven-


cido de que variando constantemente a pro­
cura se acaba apenas em fútil curiosidade.
Ê por isso que acho inútil e perigoso aperfei­
çoar em demasia as técnicas da descoberta.
Uma curiosidade que é atraída por todas
as coisas revela um desejo pela tranquilidade
na multiplicidade. Ora este desejo nunca pode
encontrar uma verdadeira nutrição na varie­
dade interminável. Ao desenvolvê-la, adqui­
rimos apenas uma falsa fome, uma falsa sede:
são de facto falsas porque nada as pode saciar.
Quanto mais natural e mais saudável é lutar
para uma realidade única, limitada, do que
para uma divisão interminável.
Direis que isto é equivalente a cantar os
louvores da monotonia?
O Areopagita mantém que quanto maior é
•'
a dignidade dos anjos na hierarquia celestial
:.t.;
tanto menor é o número de palavras que
empregam; assim, o mais alto de todos pro­
nuncia apenas uma única sílaba. Será isto um
exemplo da monotonia de que nos devemos
,.. precaver?
Na verdade, não há confusão possível entre
. a monotonia nascida duma ausência de varie­

dade e a unidade que é uma harmonia de


variedades, uma disposição de Muitos.

185
.'1· i'

«A Música - diz o sábio chinês Seu Ma­


·tsen, nas suas memórias é aquilo que uni ..
-

fica.» Nunca se alcança este elo de unidade


sem busca e dificuldades, mas a necessidade
de criar deve afastar todos os obstáculos.
Penso, nesta altura, na parábola do Evan­
gelho, da mulher em trabalho de parto que ·

«tem pena, porque a sua hora chegou; mas,


dentro em pouco, ao nascer a criança, ela não
se lembra m ais da angústia, pela alegria de
ter nascido um homem para o mundo».
Como vamos evitar sucumbir à necessi ­

dade irresistível de partilhar com os nossos


irmãos esta alegria que sentimos quando ve­
mos vir à luz algo que tomou forma através
da nossa pr ópria acção?
Porque a unidade do tra balho tem uma
ressonância que lhe é própria . O s eu eco,
apanhado pela nossa alma, soa cada vez mais
'�·
perto. Deste modo, o trabalho consumado
espalha-se para o exterior para ser comuni­
cado, e finalmente corre de novo para a sua
origem. O ciclo está então fechado. E é desta
maneira que a música se revela em si como
uma forma de comunhão com os nossos ir­
mãos - e com o Ser Supremo.

186

. ..

DIÁLOGO
1
1. A RESPONSABILIDADE i
1
DOS INTELECTUAIS )

1
de Noam Chomsky
z. AMil:RICA LATINA
de Miguel Angel Asturias 1.
com prefácio de Josué de Castro
s. PROGRESSO, COEXIST2NCIA
E LIBERDADE .INTELECTUAL
. de Andrel D. Sakharov
EDUCAÇAO SEXUAL
1
de A. Berge, A. S. Neill, 1
A. S. Makarenko e B. Spock !
'1. DA LIBERDADE DE PENSAMENTO I'
E EXPRESSA.O
de John Stuart Mlll
8. A ARROGANCIA DO PODEB
de William Fulbright
10. ORIENTE E OCIDENTE- DIALOGO ·�·�
OU AGRESSAO T
de Georges Fradier
11. O CONFLITO DE GERAÇOES
de Margaret Mead
lZ. PENSAR PORTUGAL HOJE
de João Martins Pereira
18. CULTURA ASFIXIANTE
de Jean Dubuffet
14. POi!:TICA DA M'OSICA
de Igor Stravinsky

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15. SOBRE O LADO ESQUERDO
Carlos de Oliveira (2.• edição) Esgotado
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18. AS MAÇAS DE ORESTES :� .
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14. NOS SEUS OLHOS DE SILtllNCIO ! .
António Ramos Rosa 30$
115. AS GRADES
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16. ANTOLOGIA POltTICA
Aimé Césaire 30$
1'1. SENTIMENTO DO TEMPO
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19. VOCAÇAO ANIMAL
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.•

O AUTOR-:

Igor Stravinsky ncuceu em Ora1denbe1um (BfJ.aM)


em 1888. Teve outro grande nome da mtiaicci n.ca44,
Rímaki-Korsakov, como professor u compodgcJo.
8erguei Diaghilev, que rweZou o ballet ruaao 4
Europa ocidental, proporcionou-lhe a primeirci grande
o portunidade, ao encomendar-lhe a música parei
O Pássaro de Fogo. O Uito que obteve na ôpera de
Paris, na noite de !5 u Junho de 1910, tornou famoso
o nome de S trav insky . Ccnnplje CI partitura u maia
dois ballets para Diaghilev: Petruchka. (-1911) e
A Sagração da. Prima.vera (1.913). Quando este é
·
apresentado em Pari8 provoca um c esc4ndalo> ·no a
meioa musicais, pot_a a composição. é ponsidercula. por .
aZgun.s criticos como a nega�ão da música. Para . -
outros, porém, constitui o í1ifcio de uma. nova era.
De coZaboração co m Ramuz �ompõe A História 1,
do Soldado (1918), que ewpõe o tema universa l da '1
luta entre o bem e o mal. '

Entre ª" duas grandes guerrà8.. Strcwins'hy escoZke


uma nova pátria, a França (virá me.mio a natura­
Zizar--se franc�s em .1934). Aí ae torna amigo de.
Piccuao e Cocteau, entre outros .
·

Este período, geraZment.e considerado <neocldssico>,


vai do ballet Pulcinella. (1919) d ópera The Rake's · .

Progress (1948-1951), com destaque para o conjunto


das Sinfon!as para. Instrumentos. _de Sopro.
Entretanto, transferira-ae para os Estadoa- Unt®••
em 19,+0, indo Teaidír em Hollywood. e tomàndõ ,a
nacionalidade americana em 1945. O novo 'perfodo 'da:.
�a actividade representa um regresso ds - forma.a
modernas da música serial (dodecafónica}. São de
destacar as 8Uá8 obras Ca.nticum Sacrum (1955) e
Agon (1957).
Fa lec e u em 1971.

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