Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
-
. J . •
" '
.POETICA
:.DA MÚSICA . '
FICHA
1 Cambridge, tJ. S. A.
@ Harvard Universlty.
,•
.1
.,
j
·:1·: P A Q
11 1 · g A·
11/'Ut
N 9. 127 Iil'i
)
r
1 '
f.J
f'NDICE
1. Travando conhecimento · 9
4. Tipologia musical 91
L
l
. .
1
1 ' '
1 '
'
"
1. TRAVANDO CONHECIMENTO
"'
'
. '
• 't
11
. .
·-
. .. .
• 1 t
12
- .JI
' ..
1S
r, '
'
.
f
'. ;�
�
! '
14
gos, pressupõe a necessidade .de alguma espé
cie de dogmatismo. Então, uso as palavras
dogma e dogmático apenas enquantd desig
nam um elemento essencial na salvaguarda
da integridade da arte e do espírito, � man ·
15
. "' �'
'•
16
mática, serviram e continuarão a servir como
base para a criação musical, precisamente
porque foram desenvolvidas na verdadeira
prática, e se vós atribuis alguma importância,
se bem que ligeira, ao meu trabalho criador
- que é o fruto da minha consciência e da
.....
1 • minha fé-, então por favor acreditai nos
. ..
conceitos especulativos que têm engendrado
"
o meu trabalho e se têm desenvolvido com ele.
:.. 11 r.,
f.!f
Explanar - ou, em francês, explicar do
1
latim explicare, esclarecer, desenvolver -é
descrever algo, descobrir a sua génese, obser
var a relação das coisas umas com as outras,
procurar lançar luz sobre elas. Explicar-me a
1J 2
11
, ,._ �. / .
' . ·
J
.. �..
.
'
18
'
\;.
\ '
.
f:
ram a gravidade duma falha no julgamento
que viciou a consciência musical duma época
toda e invalidou todas as ideias, teses e opi;.
niões que foram apresentadas no que respeita
a uma das maiores faculdades de espírito - a
música como arte. Não nos esqueçamos de que
Petruckka, a Sagração da Primavera e o Rou
xinol surgiram numa época caracterizada por
profundas mudanças, que alteraram muitas
coisas e perturbaram muitos espíritos. Não
que estas alterações tivessem lugar no domí
nio da estética ou no nível de formas de
expressão (essa espécie de revolta tivera lugar
mais cedo, no inicio das minhas actividades).
As mudanças de que eu falo levaram a uma
revisão geral, tanto dos valores básicos como
dos elementos primordiais da arte da música.
Esta revisão, primeiramente evidente na
altura que acabei de mencionar, continuou
sem desfalecimento desde então. O que estou
aqui a dizer é em si elucidativo e claramente
se depreende do desenrolar dos factos con
cretos e dos acontecimentos diários que esta
mos presentemente a testemunhar.
Estou profundamente a par de que existe
um ponto de vista que considera o período
em que surgiu a Sagração da Primavera como
aquele que presenciou uma revolução. Uma
revolução cujas conquistas se diz estarem
19
•'\" .
·•. ,. .. ;Jr,lll
'
20
...
ri.:4'\ • 1•
,•'
,.
.,
tal como se comesou.:. Como consequência,
Chesterton fez-lhe ver que uma revolução no
!1
,
. ,. ' . ..
1 • � .. ' l,.. '
� � " � ...
t .
.
O\
,.
''
mais insípidas.
1.
Um complexo musical, porém, por muito
duro que possa ser, é legitimo até ao ponto ' 1
critica séria.
Seja qual foropinião que se tiver sobre
a
25
, "1 ... ,· �
para vós:
«Para sua infelicidade, o Senhor Gounod
admira certas partes obsoletas dos últimos
quartetos de Beethoven, que constituem a
fonte lamacenta donde saem os maus músicos
da moderna Alemanha: os Liszts, os Wagners,
os Schumanns e mesmo Mendelssohn, em cer
tos aspectos duvidosos do seu estilo. Se o
Senhor Gounod tornou realmente sua a dou-
26
,·
27
princfpios, tal como os defendo duma maneira
diferente , com as minhas composições.
Deixem-me agora explicar-vos como o meu
curso será organizado. Dividir-se-á em seis
lições, cada uma das quais terá um titulo.
A lição que acabei de vos apresentar, como
podeis fàcilmente depreender, é apenas um
meio de travarmos conhecimento uns com os
outros. Na primeira lição tentei resumir os
princípios orientadores do meu curso. Sabeis
agora que ides ouvir confissões musicais e
$8
tanto quanto o mesmo provém dum ser
humano integral e bem equilibrado, dotado
dos recursos dos seus sentidos e armado com
a sua inteligência. Estudaremos o fenómeno
da música como uma forma de especulação ,
em termos de som e de tempo.
Derivaremos deste estudo a dialéctica do
processo criador. Nesta conformidade, falar
-vos-ei do principio de contraste e de seme
lhança. A segunda parte da lição será dedi ' ,l
cada a elementos e morfologia da música.
A composição da música será a matéria ' '
so
• l
)
. '
'
.
' '
�
31
' ,
.... ...
, .
32
2. O FENOMENO DA MÚSICA .
Consideremos o exemplo mais banal: o do
prazer que nós experimentamos ao ouvir o
murmúrio da brisa nas árovres, o susimrrar
35
..
t.·
..
36
e predeterminadas que asseguram a probidade
da nossa operação.
Existe uma perspectiva histórica que,
como todos os aspectos das coisas subordina
das a leis de perspectiva óptica, torna dis
tintos apenas os objectos nos planos mais
próximos. Ã medida que os planos se afastam
de nós zombam do nosso domínio e apenas
nos deixam ter vislumbres de objectos priva
dos de vida e de significado útil. Mil obstá
culos nos separam das riquezas ancestrais,
que unicamente nos consentem aspectos da
sua realidade morta. Mesmo assim consegui
mos agarrá-los mais por intuição do que por
conhecimento consciente.
Assim, para termos na mão o fenómeno
da música, nas suas origens, não há necessi
dade de estudar os rituais primitivos e modos
de encantamento ou penetrar nos segredos da
magia antiga. Neste caso, recorrer à história
- mesmo à pré-história - não será arriscar
mo-nos demasiado procurando agarrar aquilo
que não pode ser agarrado? Como poderemos
explicar razoàvelmente aquilo que nunca nin
guém testemunhou?
Se eu considerar a razão só por si, como
guia neste campo, ela levar-nos-á directa
xnente a falsidades, porquanto deixará de ser
iluminada pelo instinto. O instinto é infalível.
31
Se nos conduz erradamente deixa de ser ins
tinto. Em todos os acontecimentos, uma ilusão
viva é mais valiosa em tais assuntos do que
uma realidade morta.
Um dia, a Comédie Française estava a
ensaiar uma peça medieval em que o famoso
actor Mounet-Sully, segundo as instruções do
autor, devia fazer um juramento sobre uma
velha Bíblia. Para os ensaios, a Bíblia antiga
tinha sido substituída por uma lista telefó
nica. «Ü argumento exige uma Bíblia velha
- bradou Mounet-Sully. - Tragam-me uma
Bíblia velha!» Jules Claretie, o director da
Comédie, correu imedi atamente à sua biblio
teca, a fim de ir buscar um exemplar dos dois
testamentos, n uma esplêndida edição antiga,
e tro uxe a triunfalmente ao actor. «Aqui tem.
-
38
lista apela para as teorias de Darwin ao
colocar o macaco diante do homem, na evo·
lução da espécie animal.
Consequentemente, a arqueologia não nos
fornece certezas, mas antes vagas hipóteses,
e à sombra de tais hipóteses alguns artistas
contentam-se com sonhar, considerando-as
menos como factos científicos do que como
fontes de inspiração. Com efeito, tal aplica-se
tanto à música como às artes plásticas. Os
pintores de todos os períodos, incluindo o
nosso, deixam as suas fantasias vaguear pelo
tempo e pelo espaço e oferecem sacrifícios
sucessivamente, ou mesmo simultâneamente,
nos altares do arcaísmo e do exoticismo.
Uma tal tendência não merece nem louvor
nem censura. Basta-nos notar simplesmente
que estas viagens imaginárias não nos ofere
cem nada de exacto e não fazem com que
conheçamos melhor a música.
Na nossa primeira lição ficámos surpreen
didos ao verificar que, no caso de Gounod, nos
anos 60 do século passado, mesmo J!�austo, no
início, encontrou ouvintes que se rebelaram
contra o encanto da sua melodia e ficaram
insensíveis e surdos à sua originalidade.
O que dizer então da música antiga e
como a poderemos julgar apenas com o ins
trumento do nosso raciocínio? Porque aqui o
39
� µ . .j,
. .
J
. ..
f
�·l •
.,
40
des psicológicas e do seu equipamento inte
lectual.
Apenas o homem completo é capaz do
esforço da especulação mais elevada que deve
agora ocupar a nossa atenção.
Porque o fenómeno da música não é nada
mais do que um fenómeno de especulação.
Não existe nada nesta expressão que vos deva
assustar. Pressupõe simplesmente que a base
da criação musical é uma percepção; primeiro
uma movimentação da vontade num domínio
abstracto com o objectivo de dar forma a algo
de concreto. Os elementos a que esta especula
ção necessàriamente se dirige são os de som
e de tempo. A música é inconcebível à parte
destes dois elementos.
A fim de facilitar a nossa exposição fala
remos primeiramente acerca do tempo.
As artes plásticas são-nos apresentadas
em espaço: recebemos uma impressão geral
antes de descobrirmos a pouco e pouco porme
nores a nosso bel-prazer. A música, porém,
baseia-se na sucessão temporal e requer viva
cidade de memória. Consequentemente, a
música é uma arte cronológica, tal como a
pintura é uma arte espaoiai. A música pres
supõe, antes de mais, uma certa organização
em tempo, uma crononomia - se vós me per
mitis o uso dum neologismo.
41
., �
' .
42
e
' .
43
•
<
. '
. ' .. - .
• • j
44
e cada uma destas determina um processo
psicológico especial, um tempo determinado.
Estas variações no tempo psicológico são
apenas perceptiveis, na medida e m que estão
relacionadas com a sensação primária - quer
, consciente quer inconsciente-do tempo real,
' tempo o ntológico .
45
especialmente adaptável à. interpretação dos
impulsos emotivos do compositor. Toda a mú
sica em que a vontade de expressão é domi
nante pertence ao s egundo tipo.
Este problema do tempo na arte da música
é de primordial importância. Pensei que era
aconselhável insistir no problema, porquanto
as considerações que abrangem o mesmo po
dem ajudar-nos a compreender os diferentes
tipos criadores que nos interessarão na nossa
quarta lição.
A músic a que se baseia no tempo ontoló
gico é, em geral, dominada pelo princípio de
semelhança. A música que adere ao tempo �
46
' :
48
1
49
e que tem de se tornar numa perfeita conso
nância para satisfação dos ouvidos.
Tal, porém, como os olhos completam as
linhas dum desenho que o pintor deliberada
mente deixou inacabado, do mesmo modo o
ouvido pode ser chamado a completar um
acorde e a cooperar na sua resolução, que em
boa verdade não chegou a ser terminada na
obra. A dissonância, neste caso, desempenha
o papel duma alusão.
Qualquer dos casos se aplica a um estilo
onde o uso da dissonância exige a necessidade
duma resolução. Nada nos força, porém, a
procurar constantemente a satisfação que re
side apenas no repouso.
Durante mais dum século, a música for
neceu exemplos repetidos dum estilo em que
a dissonância se emancipou. Deixou de estar
ligada à sua primeira função. Tendo-se ela
própria tornado urna entidade, acontece fre
quentemente que a dissonância nem prepara
nem antecipa absolutamente nada.
Deste modo, a dissonância não é mais um
agente de desordem do que a consonância
é uma garantia de segurança.
A música de ontem e a de hoje, resoluta
mente, une os acordes dissonantes paralelos,
que assim perdem a seu valor funcional, e o
50
nosso ouvido, de forma absolutamente natu
ral, aceita a sua justaposição.
Evidentemente, a instrução e a educação
do público não se têm mantido a par e passo
com a evolução da técnica. O uso da disso
nância, para ouvidos mal preparados para a
aceitar, não deixou de confundir a sua reac
ção, produzindo um estado de debilidade em
que já não se distingue o dissonante do con
sonante.
Deste modo, já não nos encontramos na
estrutura da tonalidade clássica, no sentido
escolástico da palavra. Não fomos nós que
criámos este estado de coisas e não é nossa
a culpa se temos de enfrentar uma nova ló
gica de música, que teria parecido inconce-
, bivel aos mestres do passado. Esta nova ló
gica abriu os nossos olhos a riquezas de cuja
existência nunca suspeitáramos.
Tendo alcançado este ponto, não se torna
menos indispensável obedecer não a novos
fdolos, mas à eterna necessidade de afirmar
o eixo da nossa música e de reconhecer a
existência de determinados pólos de atracção.
A tonalidade diatónica é apenas um meio
.,
de orientar a música para estes pólos. A fun
ção da tonalidade é completamente subor
dinada à força de atracção do pólo da sono
ridade. Toda a música não é mais do que
51
. ..
. . � .. ,
63
destes sons, de conformidade com determi
nadas relações intervalo. Esta a ctivi dade con
-
54
I
55
•
1
e o que afirmamos.
A modal i dade , a tonalidade e a polarid ade
são simplesmen te meios provis i onais que
estão a passar e que morrerão de vez. O que
sobrevive a todas as alterações do s istema
é a melodia. Os mestres da Ida de Média e d a
Renascença não se preocupavam menos com
a melodia do que Bach e Mozart; todavia a
minha topografia musical não reserva um
lugar isolado para a melodia. Reserva para
a melodia a mesma posição que ela ocupou
sob os sistemas modal e diat óni co . i .
56
' .
51
parece ser Unicaillente o resultado duin tra
balho intenso e árduo. Bellini herdou a me lo
dia sem sequer a ter mesmo pedido, como
se o céu lhe tivesse dito: «Dar-te-ei a única
coisa que falta a Beethoven.»
Sob a influência dum intelectualismo
conhecedor que se manteve entre os amantes
da música da espécie séria, durante algum
tempo foi moda desdenhar a melodia. Começo
a pensar, em completa concordância com o
p úblico em geral, que a melodia deve manter
o seu lugar no plano máximo da hierarquia
dos elementos que constituem a música.
A melodia é o mais essencial destes elemen
tos, não porque seja imediatamente percep
tível, mas p orque é a voz dominante da sin
fonia - não somente no sentido especifico
mas também simbolicamente.
Não existe, porém, nenhuma razão para
ficarmos anuviados pela melodia ao ponto
de perder o equilíbrio e de esquecer que a arte
da música nos fala em muitas vozes ao mesmo
tempo. Deixem-me mais uma vez chamar a
vossa atenção para Beethoven, cuja grandeza
deriva duma batalha obstinada com a melo
dia rebelde. Se a melodia fosse toda a música,
o que poderíamos louvar nas diversas forças
que formam a imensa obra de Beethoven,
em que a melodia seguramente é a menor?
58
1•
Se é fácil definir melodia, 6 muito menos
t, fácil distinguir as características que tornam
r
• 1. bela uma melodia. A apreciação dum valor
" é ela própria objecto de apreciação. O único
padrão que possuímos nestes assuntos de
pende dum requinte de cultura que pressupõe
a perfeição do gosto. Nada aqui é absoluto,
com excepção do relativo.
:Ji:-nos dado apenas um sistema de centros
polares e tonais com o objectivo de alcan
çarmos uma determinada ordem, ou seja,
mais definitivamente, a forma, a forma em
que culmina todo o esforço criador.
De todas as formas musicais, a consi
derada mais rica, do ponto de vista de desen
volvimento, é a sinfonia. Em geral designa
mos por esse nome uma composição em
diversos movimentos dos quais um confere
a toda a obra a sua qualidade sinfónica -
ou seja, o arlegro sinfónico, em geral colocado
na abertura da obra e que tende a justificar
o seu nome ao satisfazer as exigências duma
certa dialéctica musical. A parte essencial
desta dialéctica reside na porção central, o
desenvolvimento. li: precis amente este al"legro
sinfónico, que é também designado sonata
-allegro� que determina a forma em que é
construída, como sabemos, toda a musica
instrumental, desde a sonata a um instru-
59
, . ..-: .
60
obras do passado, não podem reivindicar o
desempenho do mesmo papel, porque a evo·
.
, lução da polifonia vocal paralisou há muito
tempo. O canto, cada vez mais ligado às
palavras, tornou-se por fim uma espécie de
enchedor, evidenciando por este modo a sua
decadência. Desde o instante em que o canto
assume, como seu chamamento, a expressão
do significado do discurso, deixa o campo da
• música e nada mais tem de comum com ele.
Nada demonstra mais claramente o poder
:· de Wagner e da espécie de tempestade e
força que ele desencadeou do que esta deca
dência, que a sua obra verdadeiramente con·
�
sagrou e que ele desenvolveu ràpidamente
1 desde a sua época.
,: Como deve ter sido poderoso este homem
para ter destruído com tal energia uma forma
essencialmente musical que cinquenta anos de
pois da sua morte ainda titubeamos sob o
descalabro e estrépito do drama musical! Por
que na verdade o prestígio da Síntese da Arte
ainda se encontra vivo.
:m isso a que chamamos progresso? Talvez.
A menos que os compositores encontrem for·
ças para sacudir este pesado legado e obe·
deçam à admirável injunção de Verdi: «Vol
temos aos tempos antigos, e isso será pro
gresso.»
61
1·
1
3. A COMPOSIÇÃO DA MúSICA
J
J
65
5
,.
, ..
·. )
66 . .,,
..
61
·� � ; .
i .. , .
68
que posso ter alguma possibilidade de vos
orientar neste assunto, essencialmente variá·
vel.
A maior parte dos amantes da música
crê que aquilo que põe a imaginação cria·
dora do compositor em movimento é uma certa
perturbação emotiva geralmente designada
por inspiração.
Não tenho qualquer intenção de negar à
inspiração o papel preponderante que sobre
ela tem recaído no processo generativo que
estamos a estudar. Simplesmente, mantenho
que a inspiração não é de modo algum uma
condição preceituada do acto criador, mas
antes uma manifestação cronologicamente
secundária.
Inspiração, arte, artista-tantas palavras,
obscuras, pelo menos, que nos impedem de ver
claramente num campo em que tudo é equilí
brio e cálculo, através dos quais se sente o
sopro da respiração do espírito especulativo.
i!: depois, e só depois, que a perturbação emo·
tiva, que está na raiz da inspiração, pode sur
gir - uma perturbação emotiva acerca da qual
as pessoas falam com tanta falta de respeito
ao atribuir-lhe um significado que é chocante
para nós e que compromete o termo em si.
Não é evidente que esta emoção é simples
mente uma reacção por parte do criador em
69
luta com essa entidade desconhecida, apenas
ainda o objecto da sua criação e que se irá
tornar uma obra de arte? Passo a passo, elo
a elo, ser-lhe-á permitido descobrir a obra.
ll1 esta cadeia de descobertas, assim como cada
descoberta individual, que dá origem à emo
ção - um reflexo quase fisiológico, como o
do apetite, que provoca um afluxo de saliva-., ·
70
l
.•
·�.I
.. .
11•. .
1 �: , ... •'
,.
72
. .,
·�
73
;,"' _IH
'
f,
74
.
.,
lores dignos de nota. Ele não tem de se preo
cupar com uma bela paisagem; não necessita
de se rodear de objectos raros e preciosos.
Não tem de se lançar na procura de descober ,
I
75
•\
76
outra coisa o guia na sua escolha? Uma ten
dência, um instinto de que o seu gosto pro
cede, uma faculdade completamente espon
tânea, anterior à reflexão.
Quanto à cultura, é uma espécie de edu
cação do berço que na esfera social confere
brilho à educação, mantém e completa a ins
trução académica. Esta educação do berço é
justamente importante na esfera do gosto e
é essencial ao criador, que deve incansàvel
mente educar o seu gosto ou correr o risco
de perder a sua perspicácia. O nosso espírito,
assim como o nosso corpo, requer um exer '
77
. :
�·
78
A minha ópera Mavra nasceu duma sim
patia natural pelo grupo de tendências meló
dicas, pelo estilo vocal e linguagem conven
cional que cada vez mais admiro na velha
ópera russo-italiana. Esta simpatia guiou-me,
muito naturalmente, ao longo do caminho
duma tradição que parecia perdida, na altura
em que a atenção dos círculos musicais es
tava inteiramente voltada para o drama mu
sical, que não representava nenhuma tradição,
do ponto de vista histórico, e que não preen
cheu absolutamente nenhuma necessidade, do
ponto de vista musical. A voga do drama musi
cado teve uma origem patológica.
Pobre de mim, mesmo a música admirável
de Pelléas et Mélisarule, tão fresca na sua mo
déstia, não conseguiu levar-nos para um campo
esclarecido, apesar das muitas características
com que sacudiu a tirania do sistema wagne
riano.
A música de Mavra permanece dentro da
tradição de Glinka e Dargomizhsky. Não tive
a mais pequena intenção de restabelecer esta
tradição. Simplesmente quis, por meu turno,
tentar o meu ponto de vista na forma viva
da opéra-bou{le, que tão bem se adaptou ao
conto de Pushkin que me deu o tema. Mavra
é dedicada à memória dos compositores, dos
quais nem um, tenho a certeza, teria reconhe-
19
...
. .
80
para aqueles que já não têm religião, tal
como em períodos de crises internacionais um
81
6
l • � f
,; ·�f· • ; " .
t '
... ·/
. '
. · , ..._ ';,·
j 1 . ..
82
noud; Lakmé, Ooppélia, Sylvia, de Léo De
�
libes; Oarmen, de Bizet; Le Roi malgré lui,
L':Stoile, de Chabrier; La Béarnaise, Véroni
que, de Messager - a que recenteinente se
juntou a Ohartreuse de Parme, do jovem Henri
Sauguet?
Pensem como foi subtil e aderente o ve
neno do drama musical para se ter insinuado
mesmo nas veias do colosso Verdi.
Como podemos deixar de lamentar que este
mestre da ópera tradicional, no fim duma
longa vida salpicada de tantas obras de arte
autênticas, culminasse a sua carreira com
Falstaff, que se não é a melhor obra de
Wagner não é também a melhor ópera de
Verdi?
Sei que vou contra a opinião geral, que vê
a melhor obra de Verdi na deterioração do
génio que nos deu Rigoletto, 1l Trovatore, Aida
e La Traviata. Sei que estou a defender aquilo
que precisamente a élite do passado recente
depreciou nas obras deste grande compositor.
Lamento ter de o dizer, mas mantenho que
existe mais substância e verdadeira invenção
na ária «La donna e mobile», por exemplo,
em que esta élite nada viu a não ser uma fa
cilidade deplorável, do que na retórica e voci
ferações do Ring.
BS
•••
1
-, • �· J • ,, •
84
tura em que se encontra sublimidade no culto
da desordem.
A obra de Wagner corresponde a uma ten
dência que não é, por assim dizer, uma desor
dem, mas uma tendência que tenta compensar
uma falta de ordem. O principio da melodia
infinita ilustra perfeitamente esta tendência.
:m a conveniência perpétua duma música que
nunca teve mais razões para principiar do que
para acabar. A melodia eterna surge-nos as
sim como um insulto à dignidade e à própria
função da melodia, que, como dissemos, é a
intonação musical duma frase cadenciada.
Sob a influência de Wagner, as leis que
defendem a vida do canto foram violadas e a
música perdeu o seu sorriso melódico. Talvez
o seu método de fazer as coisas correspon
desse a uma necessidade, mas esta necessidade
não era compatível com as possibilidades da
arte musical, porquanto a arte musical é limi
tada na sua expressão a uma medida que cor
responde exactamente às limitações do órgão
que o compreende. Um modo de composição
que não atribua a si próprio limites torna-se
pura fantasia. Os efeitos que produz podem
acidentalmente divergir, mas não são capazes
de se repetirem. Não posso conceber uma fan
tasia que se repita, porquanto apenas pode
ser repetida em seu detrimento.
85
( .
86
via, não sucumbirei. Vencerei o meu terror e
ficarei tranquilo com o pensamento de que
tenho as sete notas da escala e os seus inter
valos cromáticos à minha disposição, que
acentos fortes e fracos estão ao meu alcance
e que em todos estes eu possuo elementos
sólidos e concretos que me oferecem um campo
de experiência tão vasto como a infinidade
perturbadora e estonteante que acabou de me
assustar. � neste campo que lançarei as mi..
nhas raízes, inteiramente convencido de que
as combinações que têm ao seu dispor doze
sons em cada oitava e todas as variedades
rítmicas possíveis me prometem riquezas que
toda a actividade do génio humano nunca
esgotará.
O que me liberta da angústia em que uma
liberdade sem peias me faz mergulhar é o
facto de eu poder voltar sempre imediata
mente às coisas concretas que estão aqui em
discussão. Não tenho qualquer uso para uma
liberdade teórica. Deixem-me ter algo finito,
definido - matéria que se possa prestar à
minha operação desde que seja comensurável
com as minhas possibilidades. Tal matéria
apresenta-se-me juntamente com as suas limi
tações. Devo por minha vez impor as minhas
sobre a mesma. Assim, aqui estamos, quer
queiramos ou não, no domínio da necessidade,
87
. •
. '
t . , . •· •
88
De tudo isto concluímos a necessidade de
dogmatizar a dor de perdermos a nossa finali
dade. Se estas palavras nos aborrecem e nos
parecem duras podemos abster-nos de as pro
nunciar. Não obstante, e em todo o caso, con
têm o segredo da salvação: «� evidente - es
creve Baudelaire - que as retóricas e as
métricas não são tiranias inventadas arbitrà
riamente, mas uma colecção de regras exigidas
pela própria organização do ser espiritual, e
nunca as métricas e as retóricas evitaram a
1 •
'i
89
1
. . . 'l
1 ·
·.
.,
. � ,'.
(·
I
4. TIPOLOGIA MUSICAL
1
1
1·
Toda a arte pressupõe um trabalho de
selecção. Em geral, quando me disponho a
trabalhar, o meu objectivo não é definido. Se '�
'.�
93
' "..
"
94
zart e de Haydn são bem conhecidas de vós
e sem dúvida que observaram que estes com
positores estão óbviamente relacionados um
95
..
. ..
96
·i- '
97
7
'
'
...
1 ,
98
que vivemos isola o artista dos seus camara
das artistas e condena-o a aparecer como
monstro aos olhos do público ; um monstro
de originalidade, inventor da sua própria lin
guagem, do seu próprio vocabulário e do me
1
99
repetir, duma forma muito tocante, que Mo
zart tinha sido o encanto da sua juventude,
o de sesp ero da sua maturidade e a conso lação
da sua velhice .
100
:)
t '
(
j'
I .· \ ,..
• �.• . '..· l ... )'
,,. . ..
1 {
acção nem doutrina e leva à indiferente pas
sividade dum eclectismo estéril.
A universalidade estipula necessàriamente
submissão a uma ordem estabelecida e as
suas razões para esta estipulação são convin
centes. Submetemo-nos a esta ordem por sim
patia ou prudência. Em qualquer caso, os
benefícios da submissão não levam tempo a di
visar-se.
Numa sociedade como a da Idade Média,
que reconhecia e protegia a primazia do do
mínio espiritual e a dignidade da pessoa hu-
.. mana (que não se deve confundir com o in ) ;
.,
101
/,
.. ... "
102
.
,.
I
competência desta.
Não pediremos, na verdade, o impossível
da música quando esperamos que ela expresse
sentimentos, traduza situações dramáticas,
que imite mesmo a natureza? E como se não
fosse suficiente condenar a música à função
de ser uma ilustradora, o século a que deve·
mos o que se chama «progresso através da
ilustração» inventou por boa norma o mo
numental absurdo que consiste em dar a to
dos os acessórios, assim como a todos os sen
timentos e a todos os caracteres do drama li
rico, uma espécie de chapa de contrôle cha·
mada Leitmotiv - um sistema que levou De
bussy a dizer que o Ring tinha sobre ele um
103
impacte como se se tratasse duma vasta lista
musical citadina.
Existem dois g éneros de Leitmotiv em
Wagner: alguns simbolizam ideias abstractas
(o tema Destino, o tema Vingança, etc.); os
outros têm a pretensão de representar objec
tos ou personagens concretos: por exemplo, a
espada ou a curiosa família Nibelung.
Ê estranho que os cépti co s, que pronta
mente exigem novas provas para todas as
104
de Nova Iorque estendido à sua frente. Nunca
deixem dizer que estes pequenos livros auxi
liares de memória são um insulto para Wag
ner e atraiçoam o seu pensamento: a sua
larga circulação é, só por si, prova suficiente
de que respondem a uma real necessidade.
Bàsicamente, o que há de mais irritante
nestes rebeldes artísticos de que Wagner nos
oferece o tipo mais fiel é o espírito da siste
matização, que, sob a máscara de pôr de lado
as convenções, estabelece um novo padrão,
absolutamente tão arbitrário e muito mais
enfadonho do que o antigo. De forma que é
menos a arbitrariedade - a qual, conside
rando todas as coisas, é bastante inofensiva -
que tenta a nossa paciência do que o sis
tema que esta arbitrariedade estabelece como
princípio. Vem-me um exemplo disto à mente.
Dissemos que o objectivo da música não é,
e não pode ser, a imitação, mas caso isso
suceda, por alguma razão puramente aciden
tal, essa música constitui uma excepção a
esta regra, excepção esta que pode, por sua
vez, tornar-se a origem duma convenção. Ofe
rece, assim, ao músico a possibilidade de a
usar como lugar-comum.
Verdi, na famosa tempestade do Rigoletto,
não hesitou em usar uma fórmula que muitos
compositores já tinham usado antes dele.
105
''
106
em que o espírito de submissão não tem qual
quer amarra e escapa a toda a coacção. 1D isto
que André Gide tão bem expressou ao dizer
que as obras clássicas são belas apenas por
virtude do seu romantismo dominado. O que
se destaca neste aforismo é a necessidade de
subjugação.
Olhemos, por exemplo, para a obra de
Tchaikovski. De que é feita? E onde foi que
ele encontrou as suas fontes se não no arsenal
de que os românticos correntemente se ser
viam? Os seus temas são, na maioria, român-
ticos - assim acontece com a sua força im- li.
pulsionadora. O que não é absolutamente nada U • 1
101
constante e alerta do subjugador. Que dife
rença entre Der Freischütz, Euryanthe e
Oberon, por um lado, e Der fliegende Hollan
der, Tannhauser e Lohengrin, com a sua frou
xidão, por outro. O contraste é impressio
nante.
Não é apenas por acaso, ai de mim!, que
as últimas obras se encontram muito mais
vezes nos cartazes dos nossos teatros do que
as maravilhosas óperas de Weber.
Resumindo: o que é importante para a or
denação lúcida do trabalho-para a sua
cristalização - é que todos os elementos dio
nisíacos que põem a imaginaç ão dum artista
em movimento e fazem revigorar a seiva da
vida têm de ser devidamente dominados an
tes que nos intoxiquem, e devem, finalmente,
ser feitos para se submeterem à lei: Apolo
exige-o.
Está longe de me agradar, assim como está
longe da minha intenção, prolongar por mais
tempo o eterno debate sobre o classicismo e
o romanticismo. Já me alarguei bastante so
bre o que tinha a dizer para tornar a minha
a titude clara sobre este assunto, mas deixaria
a minha tarefa inacabada se não chamasse
por instantes a vossa atenção para uma ques
tão intimamente relacionada, a questão da-
108
, ' '
109
. .
"
,
110
sempre que designamos por moderno tudo o
que lisonjeia a nossa fatuidade no verdadeiro
sentido da palavra. Merecerá, porém, em ver
dade, a lisonja da fatuidade tanto trabalho?
O termo «modernismo» é tanto mais ofen
sivo quanto em geral é ligado a um outro cujo
significado é perfeitamente claro: falo de
academicismo.
Designa-se uma obra por académica
quando é estritamente composta de acordo
com os preceitos do conservatório. Segue-se
' 1 •
111
I
...
112
duma sinfonia que emprega escalas exóticas,
instrumentos obsoletos e métodos que foram
criados para fins inteiramente diferentes.
Aterrorizados com o pensamento de mos
trarem aquilo que são, perseguem o pobre
academicismo com unhas e dentes porquanto
sentem o mesmo horror que os seus composi
"
113
8
. ., ' ... ... . .
..
114
é um artista inteligente, mas falta-lhe inspi
ração (sic). Tudo aquilo é gelo.»
Ludwig Spohr, um compositor de renome,
ouviu a Nona Sinfonia trinta anos depois da
morte de Beethoven e descobriu nela um novo
argumento a favor daquilo que ele sempre
tinha dito, ou seja, que a Beethoven lhe fal
tava educação de estética e também «um sen
tido de beleza.» Para já, isto não é, realmente,
1
1 .
mau, mas aqui está algo ainda melhor. Para
a peça de eleição guardámos a opinião do
poeta Grillparzer sobre a Euryanthe, de We
ber: cUma completa ausência de ordem e cor.
Esta música é horrível. Uma tal perversão
de eufonia, uma tal violação do belo, teria
sido punido por lei na idade de ouro da
Grécia. Tal música deveria ser submetida a
jurisdição policial. .. »
Tais citações impedem-me de cometer a
insensatez de me defender da incompetência
dos meus críticos e de me queixar do débil
interesse com que consideram os meus es
forços.
Não pretendo questionar os direitos dos
críticos. Pelo contrário, lamento que os exer
çam tão pouco e muitas vezes indevidamente.
A crítica, diz o dicionário, é a arte de jul
gar produções literárias e obras de arte. Ale
gremente, adoptamos esta definição. Então,
115
J . I•• • t
•.'
..
116
crer num homem que no decurso da sua car-
reira teve ocasião de travar conhecimento com
os públicos mais variados, e tem-me sido pos
I ·
111
H ;· ,_ .,
. ·\:.\ -
118
de Aquino ... Assim, vendo as coisas como
são, a esse tipo de pompier prefiro o pompier
puro e simples que fala sobre melodia e, com
a mão no coração, advoga os direitos incontes
táveis do sentimento, defende a primazia da
emoção, dá provas de preocupação por aquilo
que é digno, na ocasião cede à aventura ou
carácter pitoresco oriental e vai até ao ponto
de louvar o meu Pássaro de Fogo. Compreen
dereis imediatamente que não é por esta razão
que eu o prefiro à outra espécie de pompier . . .
119
·' -:
•t''
''
120
. '
121
5. AS METAMORFOSES
DA MúSICA RUSSA .
"1J 1
1
,
·
1 ;
.,
1
oferece ostentações semelhantes, que, todavia, ' 1
125 ,, i
·- ·"
' ,.. • ··�� ; .- . ., .. r ! ,(
"
' 1
' '
126
'11·
121
)..,.·
' .
I
.. ...
1!8
fícios do seu sóbrio e enérgico dom pedagó
gico.
Por alturas dos anos 80, um rico amador,
Beliaev, que se tornou editor devido ao seu
amor pela música russa, reuniu um pequeno
circulo de músicos que incluía Rimski-Kor
sakov, o seu jovem e brilhante aluno Glazu
nov, Liadov e alguns outros compositores.
Sob a capa da preocupação no que respeita às
mais sérias das suas técnicas profissionais,
, as suas obras deram prova de sintomas alar
mantes dum novo academismo. O círculo de
Beliaev, então, voltou-se cada vez mais para
o academismo. O italianismo, renunciado e
humilhado, deu lugar ao entusiasmo sempre
crescente pela técnica alemã, e não é sem
razão que Glazunov foi chamado o Brahms
russo.
O núcleo formado pelo grupo de Os Cinco
encontrou oposição num outro quadrante
onde, simplesmente por virtude do brilhan
tismo do seu poderoso talento, a personalidade
de Tchaikovski brilhou isoladamente. Tchai
kovski, tal como Rimski-Korsakov, teve conhe
cimento da necessidade de adquirir uma sólida
técnica; ambos eram professores do conser
vatório, Rimski em Sampetersburgo, Tchai
kovski em Moscovo. Todavia, a linguagem
musical do último está tão completamente
129
9
separada dos preconceitos que caracterizavam
Os Cinco como tinha estado a de Glinka.
Enquanto Glinka viveu durante o reinado
da ópera e da canção italiana, Tchaikovski,
que aparece no fim deste reinado, cuja for
mação determinara, não sentia uma admira
ção exclusiva pela música italiana. A sua
educação formal tinha sido conduzida ao longo
das linhas das academias alemãs. Mas se ele
não ti nh a vergonha de gostar de Schumann e
d e Mendelssohn, cuja música óbviamente in
fluenciou a sua obra sinfónica, as suas sim
patias acompanharam com uma espécie de
predilecção Gounod, Bizet e Delibes, os seus
contem porâneos franceses. No entanto, por
mais atento e sensível que fosse para o mundo
exterior da Rússia, podemos dizer que, em
geral, demonstrou ser se não nacionalista e
populista, como Os Cinco, pelo menos profun·
damente nacional no carácter dos seus temas,
no recorte das suas frases e na fisionomia
rítmica da sua obra.
Falei-vos do russo Glinka, que preferiu a
Itália , de Os Cinco, que acasalaram o folclore
nacional com o realismo naturalista, tão que
rido da sua época, e do russo Tchaikovski,
que encontrou a sua verdadeira expressão ao
voltar-se de braços abertos para a cultura
ocidental.
130
Seja o que for que se possa pensar destas
tendências, eram compreensíveis e legitimas.
Obedeciam a uma ordem determinada. Toma
ram o seu lugar na estrutura da história russa.
Infelizmente, o academismo, cujos primeiros
sinais foram visíveis na actividade do círculo
de Beliaev, não demorou em reunir epigonos, í'
enquanto os imitadores de Tchaikovski dege
neraram para um lirismo enjoativo.
Quando se poderia pensar, porém, que es
távamos na véspera duma ditadura de conser
vantismo, uma nova desordem tinha-se infil
trado insidiosamente no pensamento russo,
uma desordem cujos princípios foram mar
cados pelo êxito da teosofia; uma desordem
ideológica, psicológica e sociológica, que se
apoderou da música com despreocupação im
pudente. Porque, francamente, será possível
relacionar um músico como Scriabin com
qualquer espécie de tradição? Donde vem?
E quais são os seus antepassados?
Assim, somos obrigados a considerar duas
Rússias, uma Rússia das direitas e uma
Rússia das esquerdas, que engloba duas espé
cies de desordem: a desordem conservadora e
a desordem revolucionária. Qual foi o desfecho
destas duas desordens? A história dos últimos
vinte anos encarregar-se-á de no-lo mostrar.
131
. '·
' , '
132
Acima de tudo, o que mais nos impres
siona é que a Revolução chegou numa altura
em que parecia que a Rússia se tinha liber
tado duma vez para sempre (pelo menos, no
princípio) tanto da psicose do materialismo
como das ideias revolucionárias que a tinham
escravizado, desde a metade do século x1x até
à primeira revolução de 1905. Na verdade, o
niilismo, o culto revolucionário do povo, o
materialismo rudimentar, assim como as con
juras sombrias tramadas no inferno do terro
rismo, tinham a pouco e pouco desaparecido.
Por essa altura, a Rússia tinha-se já enri
quecido com novas ideias filosóficas. Tinha-se
comprometido em investigações sobre a sua
própria vida religiosa e histórica, investiga
ções atribuíveis principalmente a Leontiev,
Soloviev, Rosanov, Berdiaev, Fedorov e Nes
melov.
Por outro lado, o «Simbolismo» literário
que relacionamos com os nomes de Blok, z.
Guippius e Bely, assim como o movimento ar
tístico do Mir Iskustva, de Diaghilev, contri
buíra muito para este enriquecimento, isto
para não mencionar o que era então designado
por «marxismo legalista», que tinha suplan
tado o marxismo revolucionário de Lenine e
133
- -....--- -
.. . '
'""' '· ' •
' .
1'
134
• 'fl
.. ' .
195
',
-:
' '
' '
136
•,
:
seitas que existem ainda nos nossos dias lado
a lado com o ateísmo oficial dos comunistas.
Este racionalismo e o seu espírito pseudocrí
tico envenenaram e continuam a envenenar
todo o campo de arte na Rússia com os fa
mosos argumentos sobre o «Significado de
Arte» e do «que é Arte e qual é a sua Missão:..
Foi logo após a morte de Puchkin e, prin
., cipalmente, através de Gogol, que tais espe
culações se infiltraram no espírito russo.
A arte russa sofreu considerável estrago re
sultante das mesmas. Alguns viram a razão
intrínseca para a arte como o abandono e o
desprezo dos costumes e hábitos da vida.
Nesta conformidade, chamo a vossa atenção
para o famoso movimento do «Peredvijniki»,
com as suas exibições itinerantes, um movi
mento que precedeu o esforço de Diaghilev.
Outros negaram à arte qualquer direito de
ser um fim em si. Testemunha disto é a fa
mosa discussão que se realizou, de forma tão
séria, por volta dos anos 1860: «Que é mais
importante, Shakespeare ou um par de bo
tas?» Mesmo Tolstoi, nas suas fantasias esté
ticas, escorregava no impasse da moral e do
seu categórico imperativo, o que tem de se
relacionar com a sua total incompreensão da
génese de qualquer espécie de criação. Final
mente, a teoria marxista que mantém que a
137
- -.
138
academismo rígido. A guerra iria destruir
esses esforços, e os acontecimentos subse
quentes que se deram varreram para longe os
seus últimos vestígios. Desta forma, a Revo
lução encontrou a música russa completa
mente desorientada, dentro do seu próprio
país, de tal modo que os bolchevistas não
tiveram qualquer problema em conduzir o seu
desenvolvimento a seu bel-prazer e beneficio.
Para dizer a verdade, a arte russa antes
da Revolução de Outubro tinha-se mantido
afastada da Revolução marxista.
Os retardatários do simbolismo, assim
como os imitadores mais jovens, agruparam
-se à sua volta e aceitaram a Revolução sem
por qualquer forma se tornarem fachos orien
tadores.
Gorki, um amigo pessoal de alguns diri
gentes comunistas, foi para o exílio, em Sor
rento, alguns anos depois de o comunismo se
ter instalado, onde permaneceu durante muito
tempo, voltando apenas à Rússia pouco antes
da sua morte, que ocorreu em 1936. Esta
longa ausência provocou ainda uma diatribe
azeda do poeta futurista Maiakovski, que este
dirigiu a Gorki, por alturas de 1926, sob a
forma duma epístola em verso: «Que pena,
camarada Gorki - dizia ele - que nunca o
encontremos agora nas oficinas. Pensa você,
139
.
.
140
nico), que um pouco ingenuamente simboli
zava o princípio colectivo em oposição ao tão
chamado princípio autoritário e ditatorial,
que necessita da ajuda dum condutor . Desde
então, como fàcilmente compreendereis, mui
tas coisas mudaram na vida russa.
Durante o primeiro período do bolche
vismo, as autoridades públicas encontravam
-se demasiado ocupadas com outras coisas
para se preocuparem com a arte duma forma
sistemática. A própria arte era presa das teo
rias mais diversas e contraditórias. Na ver
dade, estas teorias derivavam do domínio da
fantasia extravagante ou mesmo do ridículo.
Foi assim que se chegou ao ponto de se denun
"
ciar, em geral, a ópera como inútil. Os causa-
dores dessa asserção extraíram essa opinião
da origem supostamente religiosa e feudal do
género lírico (sic) e do seu carácter conven-
cional. Além disso, a ópera como forma pare
cia desafiar o realismo artístico, a lentidão da
sua acção não correspondia de maneira al
guma ao tempo da nova forma de vida socia
lista. Alguns mantiveram que só as massas
podiam ser o principal personagem, o herói
da ópera, ou que a ópera revolucionária não
deveria estar de maneira nenhuma ligada a
qualquer enredo. Estas teorias desfrutaram
um certo sucesso, facto que foi comprovado
141
: .
'
142
mem para repetir as desdenhosas ( ? ! ) pala
vras da Igreja Cristã: «Pó tu és e em pó te
tornarás.»
No scherzo e no /inale Beethoven grita
numa voz de trovão: «Não, tu não és pó, mas,
na verdade, o Senhor da Terra.» E mais uma
vez a deslumbrante imagem do herói vem à
vida no scherzo inspirado, assim como no
/inale tempestuoso e ribombante.
Qualquer observação sobre comentários
desta espécie parece-me supérflua.
Num dos seus artigos, um outro critico e
musicólogo ainda mais proeminente e famoso
do que o que acabamos de citar reassegura
-nos que «Beethoven batalhou para defender
1
os direitos civis da música como arte e que as 1
1
suas obras não indicam qualquer tendência
para a aristocracia».
Como podeis verificar, tudo isto nada tem
a ver nem com Beethoven, nem com a música,
nem com a verdadeira critica musical.
Então, hoje, tal como no passado, no
tempo de Stasov e Mussorgski (um músico
de génio, certamente, mas sempre confuso nas
suas ideias), o raciocínio dos «intelectuais»
procura atribuir um papel à música e conce
der-lhe um significado totalmente estranho à
sua verdadeira missão. Um significado de que
143
a música, na realidade, se encontra muito
afastada.
Tanta ambição exagerada e grandiloquên
cia não alteram facto de que Eugénio One
o
144
geral. Restabelecer o completo prestigio e
significado ao nome de Maiakovski nada o
conseguiria a não ser a pessoal intervenção
de Estaline. «Maiakovski - disse ele - é
o maior e melhor (sic) poeta da época
soviética.» Evidentemente que o epíteto tor
nou-se clássico e passou de boca em boca.
Se me debrucei por momentos sobre este
incidente literário, fi-lo, primeiramente, por
que a cadeira de poética que ocupo neste mo
mento me autoriza, creiam-me, a fazê-lo e em
segundo lugar porque, comparada com a vida
tumultuosa da literatura soviética, a música
permaneceu na sombra, na obscuridade.
Todavia, a segunda intervenção de Esta
line está precisamente relacionada com a mú
sica. Foi devida aos escândalos provocados
pela ópera Lady Macbeth de Mtsensk, de
t Chostakovitch, sobre um tema extraído de
!'\ · Leskov, e pelo seu bailado The Limpid Brook,
sobre o tema dos kolkhoz (herdade colectiva).
A música de Chostakovitch e o tema principal
das suas composições foram severamente cen
surados, talvez não de todo erradamente,
desta vez. Foram ainda adicionalmente ata
cados por constituírem formalismo decrépito.
A execução da sua música foi proibida, colo
cando-a a par da música de Hindemith,
145
10
Schoenberg, Alban Berg e outros composi
tores europeus.
Devo dizer-lhes que havia razões para esta
guerra contra a tão chamada música difícil.
Depois dos períodos do romantismo, cons
trutivismo e futurismo terem tido o seu curso
e depois das intermináveis discussões sobre
temas tais como «Jazz ou Sinfonia?», e tam
bém como consequência da mania de todas as
coisas grandiosas, a consciência artística rom
peu bruscamente com as fórmulas esquerdis
tas, por razões nitidamente políticas e sociais,
e seguiu os caminhos da «simplificação» e do
novo popularismo e folclore.
A voga pelo compositor Dzerzjinski,
encorajada pela aprovação pessoal de Esta
line, assim como pelo êxito das suas óperas
sobre temas extraídos dos romances de Cho
lokhov, O Dom TranquiTc e Sementes do Ama
nhã, revelaram esta «nova» tendência, de esti
lo próprio, para o folclore popular, uma ten
dência, na realidade, de há muito familiar à
música russa e em que persiste até agora.
Não estou deliberadamente a desperdiçar
tempo nas obras e actividades dos composito
res que já se tinham formado e tornado conhe
cidos antes da Revolução e que desde então
não revelaram nenhum desenvolvimento acen
tuado (por exemplo, Miaskovski, Steinberg e
146
outros que são simplesmente seguidores das
escolas de Rimski-Korsakov e Glazunov).
Hoje em dia mantém-se na Rússia a opi
nião de que o novo ouvinte das massas requer
uma música simples e compreensível. A ordem
do dia para todas as artes é «realismo socia
lista». Por outro lado, a política nacional da
União Soviética encoraja de mil maneiras a
produção artística regional das onze repúbli
cas incluídas no sistema da União. Estes dois
factos, só por si, determinaram o estilo, a
forma e as tendências da música soviética
contemporânea.
Em poucos anos surgiu uma série de colec
ções constituídas pelas mais variadas canções
do folclore (ucranianas, georgianas, arménias,
azerbaijanianas, abkasianas, buriato-mongóli
cas, tártaras, kalmucas, turcomenianas, kir
ghizas, hebraicas, etc.).
Se bem que interessante e importante,
quanto possa ser em si, este trabalho etnográ
fico e taxonómico não se deve confundir, como
acontece na União Soviética, com os proble
mas da cultura e da criação musical, por
quanto estes têm pouco a ver com as expedi
ções etnográficas. Tanto mais que estas expe
dições têm como objectivo prescrito notar e
trazer a lume milhares de canções sobre Esta
line, Vorochilov e outros dirigentes. Tanto
141
· .. f ..
148
Esta mania do folclore deu, porém, ori
gem a uma série de composições, pequenas e
· grandes, como as óperas 01iah-8enem, Gul
sara, Daissi, Abessalon e Eteri, Aitchurek,
Adjal-Orduna, Altine-Kiz, Taras Bulba, etc.
Todas estas composições pertencem ao tipo
convencional de ópera. Evidentemente que não
resolvem nenhum problema de criação, por
que ambas pertencem à categoria de arte «Ofi
cial» e afectam uma linguagem pseudopopu
lar. Nesta conformidade, podemos acrescentar
a recente mania pela opereta «Ucraniana»,
anteriormente designada por opereta da «Rús
sia pequena».
Se os supervisores da música soviética
confundem, intencionalmente, ou talvez pela
' ignorância, os problemas da etnografia com
os da criação, cometem o mesmo erro na ques
tão da execução, porquanto elevam-na, por
razões tendenciosas, ao nível do fenómeno
criador e da verdadeira cultura musical. O
mesmo se aplica aos grupos de amadores de
todas as espécies que formam orquestras,
coros e conjuntos populares e que são sempre
citados como argumento para. provar o desen
volvimento dos poderes artísticos dos povos
da União. Certamente que é óptimo que os
pianistas e os violinistas da União Soviética
arrebatem os primeiros prémios em concursos
149
internacionais (é verdade que tais con cursos
jamais ti veram valor de qualquer espécie ou
contribuíram em alguma coisa para a músic a ) .
150
sicas - ainda sem precedentes noutro lado -
às exigências da vida contemporânea.
Depois de utilizarem os romances de Cho·
lokhov como fonte de temas líricos, voltaram
-se para Gorki e para temas da guerra civil.
Numa nova ópera, Na Tempestade, atingiram
mesmo o ponto de fazerem Lenine aparecer
no palco. Quanto às famosas adaptações de
que acabei de falar, posso dizer-vos que, muito
recentemente, o Quebra-Nozes, de Tchaikovski,
1 foi restituído ao reportório de bal'let, com
modificações no enredo e no libreto, pois veri·
ficou-se serem duma cor demasiado mística e,
151
.
•'· \ ·.!' •'
•' ;
152
dele ou sair dele. :li: exactamente o caso do
conceito comunista. Para aqueles que são
mantidos dentro do círculo, todas as pergun
tas, todas as respostas, são determinadas
antecipadamente.
Resumindo, gostaria de dizer isto. De
acordo com a presente mentalidade russa exis
tem bàsicamente duas fórmulas que explicam
� o que é a música. Uma espécie de música seria
mais ou menos num estilo profano, a outra
num estilo elevado ou grandiloquente. Os
•.. kolkhozianos, rodeados de tractores e de má
quinas automáticas (que é o termo) , dançando
com razoável alegria (mantendo-se a par das
exigências da dignidade comunista) sob o
acompanhamento dum coro do povo: isto dará
um quadro adequado do primeiro tipo. Fazer
isto para a outra espécie, em estilo elevado, é,
de longe, mais complicado. Aqui a música é /�
chamada a «Contribuir para a formação da
personalidade humana impregnada do am-
biente da sua grande época».
Um dos escritores mais estimados pelos
soviéticos, Alexey Tolstoi, não hesita em es
crever com a maior seriedade, em referência
à Quinta Sinfonia de Chostakovitch:
153
humani dade , deve acumular a energia do
homem.
Aqui temos a «Sinfonia do Socialismo».
Começa com o largo das massas a traba
lhar secretamente , e o accellerando corres
ponde ao sistema subterrâneo; o allegro,
por sua vez, simboliza a maquinaria gigan
tesca da fábrica e a sua vitória sobre a
nature za O adagio rep resen ta a síntes e da
.
154
delo. A música não é uma «dança de campo·
neses» tal como não é uma «Sinfonia do Socia
lismo». Aquilo que realmente é tenho tentado
dizê-lo no decorrer das minhas anteriores
lições.
Talvez que estas considerações vos pare·
çam cheias de dureza e amargura. São, na
verdade. Todavia, o que supera tudo o mais
é o espanto, poderia mesmo dizer a estupefac
ção, em que o problema do destino histórico
da Rússia me tem sempre mergulhado, um
155
. .. .
,,. ,
156
pareceram completamente. lt esse o ponto cru
cial desta grande tragédia.
Uma renovação é produtiva apenas quando
vai de mão dada com a tradição. A dialéctica
viva deseja que a renovação e a tradição se
desenvolvam e se auxiliem uma à outra num
processo simultâneo. Ora, a Rússia apenas viu
o conservantismo sem a renovação ou a revo
lução sem a tradição, donde surge a tremenda
hesitação sobre o vazio que sempre tem enton
tecido a minha cabeça.
Não fiqueis surpreendido em me ouvir ter
minar esta lição com tais considerações de
ordem geral, mas, seja qual for o caso, a arte
não é nem pode ser «Uma superstrutura ba
seada em condições de produção», de acordo
com os desejos dos marxistas.
A arte é uma realidade ontológica, e ao
tentar compreender o fenómeno da música
russa não posso evitar tornar a minha análise
mais geral.
Sem dúvida que o povo russo está entre os
mais dotados para a música. Infelizmente,
embora a Rússia possa saber raciocinar, a
cogitação e a especulação não são de certeza
os seus pontos fortes. Ora, sem um sistema
especulativo e com a ausência duma ordem
bem definida na cogitação, a música não tem
valor ou mesmo existência como arte.
151
.·
.
"
158
6. A EXECUÇÃO. DA MúSICA
'
I'
Torna-se necessário distinguir dois mo
mentos ou, antes, dois estados de música:
música potencial e música verdadeira. Quer
escrita no papel quer retida de memória, a
música existe já antes da sua verdadeira exe
cução, diferindo a este respeito de todas as
outras artes, tal como difere delas, como
vimos, nas categorias que determinam a sua
percepção.
A entidade musical apresenta deste modo a
.''notável singularidade de envolver dois aspec
tos, de existir sucessiva e distintamente em
duas formas separadas uma da outra pelo
hiato do silêncio. Esta natureza particular da
música determina a sua própria vida, assim
como as suas repercussões no mundo social,
porquanto pressupõe dois tipos de músicos:
o criador e o executante.
Notemos, de passagem, que a arte do tea
tro que requer a composição dum texto e a
sua tradução em termos oral e visual implica
161
11
"
- 1 1
.
I � . ..
i,
'
..
'
,,
. -�
.
. •'
162
ponho levantar agora: a questão do exe
cutante e do intérprete.
A ideia de interpretação implica as limi
tações impostas sobre o executante ou aquelas
que o executante impõe sobre si mesmo na
sua própria função, que é transmitir música
ao ouvinte.
A ideia de execução implica a rigorosa
·
entrada em vigor duma vontade explícita que
não contém nada para além daquilo que espe
cificamente comanda.
O conflito destes dois princípios - exe
cução e interpretação - está na raiz de todos
os erros, de todos os pecados, de todos os mal
-entendidos, que se interpõem entre a obra J
musical e o ouvinte, e evita uma fiel trans
missão da sua mensagem.
Todo o intérprete é, também, necessària
mente, um executante. O contrário não é ver
/· .
i. A dadeiro. Seguindo mais a ordem de sucessão
· · · do que a de precedência, teremos em primeiro
· lugar de considerar o executante.
Está assente que eu coloco perante o exe
cutante música escrita onde está claramente
expressa a vontade do compositor, e fácil
mente discernível dum texto correctamente
estabelecido. Mas, independentemente de como
possa ser escrupulosamente notada uma peça
musical, independentemente de como possa
16S
'at �' �(' .-
)
164
ção em som da sua parte musical, o que ele
pode fazer de boa ou má vontade, enquanto se
tem o direito de procurar do intérprete, além
da perfeição desta tradução em som, um
cuidado carinhoso - o que não significa uma
recomposição, quer seja sub-reptícia ou decla
radamente aberta.
O pecado contra o espírito da obra começa
sempre com um pecado contra a sua letra, e
conduz a patetices infindáveis que uma lite
ratura sempre florescente do pior gosto faz
o melhor que pode por sancionar. Assim,
segue-se que um crescendo, como todos sabe
mos, é sempre acompanhado por uma acelera
ção do movimento, enquanto se dá sempre um
afrouxamento para acompanhar um dimi
nuendo. O supérfluo é aperfeiçoado; recorre
-se delicadamente a um piano, piano, pianís
simo; tem-se grande orgulho em aperfeiçoar
tonalidades inúteis - uma preocupação que
em geral anda de braço dado com o ritmo ine
xacto . . .
165
.. ' At . ;,... .... ,, "l ... .:., 'f
....
.. 1, ·,. . ..
'" �
· ·.
1
• ' .�
f
\
166
..
.. � ,. ,
'
•/ . ·' ..
167
. ',' \ ' '
168
., .
·-
169
' 1 • •
..
170
precisão e beleza: os exibicionistas sabem isto
demasiadamente bem.
A bela apresentação que faz com que a
harmonia daquilo que se vê corresponda à
execução de sons exige não só boa instrução
musical por parte do executante mas também
uma boa familiaridade da sua parte, quer seja
cantor, instrumentalista ou regente, com o
estilo da obra que lhe foi confiada; um gosto
muito preciso pelos valores expressivos e suas
limitações, um sentido seguro daquilo que
pode ser tomado como garantido - numa pa
lavra, uma educação não só do ouvido mas
também do espírito.
Uma tal educação não pode ser obtida nas
escolas de música e nos conservatórios, por
quanto o ensino de boas maneiras não é a sua
finalidade: só muito raramente um professor
de violino frisa sequer aos seus alunos de que ·.
111
,� il' '
� :.. �\•• �
l ''"
172
tes participantes apenas pode produzir efeitos
desastrosos.
O som, exactamente como a luz, actua
diferentemente de acordo com a distância que
separa o ponto da emissão do ponto da recep
ção. Uma massa de executantes situada num
estrado ocupa uma superfície que se torna
proporcionalmente maior à medida que essa
massa se torna consideràvelmente maior.
Ao aumentar o número de pontos de
emissão aumentam-se as distâncias que sepa
ram estes pontos uns dos outros e do ouvinte.
De modo que quanto mais se multiplicam os
pontos de emissão tanto mais confusa será a
recepção.
Em todos os casos, a duplicação de partes
pesa sobre a música e constitui um perigo • ·
173
•
....
114
participação no jogo não o investe automàti
camente da autoridade dum juiz.
A função judicial pressupõe um código de
sanções que a mera opinião não dispõe. E na
minha forma de pensar é absolutamente ili
cito estabelecer o público como júri, ao con
fiar-lhe a tarefa de dar um veredicto sobre o
115
... {•. '. ·� .....,, ...
' 1
:.,' ' ...
..
. . !''
176
' ' ..
,.
,..
,.. .
'
nos garantem que o compositor não seja atrai
' .
117
) ,,.
lif'
)
a ilusão de se identificar ele próprio com o
178
.
., 1
' , •• l/f
i ... '
' .. .
• :.
de todo o esforço, excepto aquele de voltar
-' �w um botão. Ora, o sentido musical não se pode
�·;
• •
179
..
EPILOGO
•
'1
1
Cheguei, assim, ao fim da minha tarefa.
Permitam-me, antes de concluir, expressar a
grande satisfação que sinto quando penso na
atenção que me dispensaram, uma atenção
que gosto de considerar como o sinal exterior
da comunhão que tão ansiosamente desejei
estabelecer entre nós.
::m esta comunhão que será, como uma espé
cie de epílogo, o assunto de algumas palavras
que gostaria de vos dizer sobre o significado
da música.
Travámos conhecimento uns com os outros
sob os severos auspícios da ordem e da disci
plina. Afirmámos o princípio da vontade espe
culativa que está na origem do acto criador.
Estudámos o fenómeno da música como uma
forma de especulação em termos de som e de
tempo. Passámos em revisão os objectos for
mais da arte da música. Considerámos o pro
blema de estilo e investigámos a biografia da
música. A este respeito, à maneira de exemplo,
183
.. \ <
..
184
� .. '
.
185
.'1· i'
186
•
. ..
DIÁLOGO
1
1. A RESPONSABILIDADE i
1
DOS INTELECTUAIS )
1
de Noam Chomsky
z. AMil:RICA LATINA
de Miguel Angel Asturias 1.
com prefácio de Josué de Castro
s. PROGRESSO, COEXIST2NCIA
E LIBERDADE .INTELECTUAL
. de Andrel D. Sakharov
EDUCAÇAO SEXUAL
1
de A. Berge, A. S. Neill, 1
A. S. Makarenko e B. Spock !
'1. DA LIBERDADE DE PENSAMENTO I'
E EXPRESSA.O
de John Stuart Mlll
8. A ARROGANCIA DO PODEB
de William Fulbright
10. ORIENTE E OCIDENTE- DIALOGO ·�·�
OU AGRESSAO T
de Georges Fradier
11. O CONFLITO DE GERAÇOES
de Margaret Mead
lZ. PENSAR PORTUGAL HOJE
de João Martins Pereira
18. CULTURA ASFIXIANTE
de Jean Dubuffet
14. POi!:TICA DA M'OSICA
de Igor Stravinsky
5. Romance e realidade
Sartre, Ehrenburg, Robbe-Grillet,
Aksionov, Pingaud e outros
8. Aura 25$
Carlos Fuentes
'
ASSINE ESTA COLEC ÇÃO
..1,,
1. MIOROPAISAGEM
Carlos de Oliveira (3.• edição) 25$
2. ANTOLOGIA BREVE
Pablo Neruda Esgotado
8. DE OMBRO NA OMBREmA
Alexandre O'Neill (2.• edição) Esgotado
4. O POETA APRESENTA O POETA
Vinicius de Moraes (3.• edição) 30$
15. SOBRE O LADO ESQUERDO
Carlos de Oliveira (2.• edição) Esgotado
6. ·ALGUMAS DAS PALAVRAS
Paul I!lluard Esgotado
'1. os ovos D'omo
Armando da Silva Carvalho 25$
8. LmA DE BOLSO
David Mourão-Ferreira (2.• edição) 25$
9. HOMEM DE PALAVRA(S)
Ruy Belo 29$ /1.
11'·'
AS SINE E s TA ·e o LEe ç Ã o
.•
•
O AUTOR-: