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PUBLICAÇÃO QUADRIMESTRAL EDITADA PELO SECRETARIA EXECUTIVA

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES) Ana Cláudia Gomes Guedes


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Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ)
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21040-361 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Ana Cláudia Gomes Guedes
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CAPA, DIAGRAMAÇÃO E EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
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IMPRESSÃO E ACABAMENTO
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4 Vice-Presidente
O

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1O Suplente 3.000 exemplares
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2O Suplente
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CONSELHO FISCAL
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Ary Carvalho de Miranda (RJ)

CONSELHO CONSULTIVO
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Luiz Augusto Facchini (RS), Gastão Wagner de Souza Campos (SP),
Gilson de Cássia M. de Carvalho (SP), Jorge Antônio Zepeda Bermudez (RJ),
José Ruben de Alcântara Bonfim (SP), Roberto Passos Nogueira (DF),
José Gomes Temporão (RJ), Luíz Carlos de Oliveira Cecilio (SP) &
Paulo Sérgio Marangoni (ES)

CONSELHO EDITORIAL A Revista Saúde em Debate é associada à


Associação Brasileira de Editores Científicos
Coordenador
Paulo Duarte de Carvalho Amarante (RJ)
Ana Maria Malik (SP), Célia Maria de Almeida (RJ), Francisco de Castro Lacaz (SP),
Guilherme Loureiro Werneck (RJ), Jairnilson da Silva Paim (BA),
José da Rocha Carvalheiro (SP), Lígia Giovanella (RJ), Luis Cordoni Jr. (PR),
Indexação:
Maria Cecília de Souza Minayo (RJ), Naomar de Almeida Filho (BA),
Nilson do Rosário Costa (RJ), Renato Peixoto Veras (RJ), Literatura Latino-Americana e do Caribe
Ronaldo Bordin (RS) & Sebastião Loureiro (BA) em Ciências da Saúde (LILACS)
Rio de Janeiro v.25 n.58 maio/ago. 2001

ÓRGÃO OFICIAL DO CEBES


Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
ISSN 0103-1104

CONCEITUALMENTE A CAPA EXPRESSA A RICA PRODUÇÃO POLÍTICA,


ARTÍSTICA E CULTURAL DO MOVIMENTO DE REFORMA PSIQUIÁTRICA
FONTE – LABORATÓRIO DE ESTUDOS E PESQUISAS EM SAÚDE MENTAL (LAPS/FIOCRUZ)
SUMÁRIO

EDITORIAL ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 3 A construção da diferença na assistência em Saúde Mental no município: a


experiência de São Lourenço do Sul – RS
ARTIGOS ORIGINAIS The construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the experience of
São Lourenço do Sul – RS
Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente Christine Wetzel & Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ 77 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm


Jacileide Guimarães, Soraya Maria de Medeiros, Toyoko Saeki &
Maria Cecília Puntel de Almeida ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 5 Qualidade de vida de pessoas egressas de instituições psiquiátricas:
o caso de Ilhéus – BA
Quality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, case
As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do Modo Psicossocial
Rozemere Cardoso de Souza & Maria Cecília Morais Scatena ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 88
The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way
Abílio da Costa-Rosa,Cristina Amélia Luzio & Silvio Yasui ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 12
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substutivos de
Saúde Mental
A constituição de novas práticas no campo da Atenção Psicossocial: análise de dois
Clinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Health substitutive services
projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil
Rosana Onocko Campos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 98 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

The forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer projects in the
Psychiatric Reform in Brazil
Paulo Duarte de Carvalho Amarante & Eduardo Henrique Guimarães Torre 26 ○ ○ ○ ○ ○ ○

Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações


teóricas e questões atuais
From health assesment to mental Health Assesment: birth, theoretical approaches and
current issues
Patty Fidelis de Almeida & Sarah Escorel ○ ○ ○ 35 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Ambiente construído e comportamento espacial na instituição psiquiátrica: questões


éticas em Observação Participante
Built environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues in
Participative Observation
Mirian de Carvalho ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 48

Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade


Sheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the city
Regina Benevides de Barros & Silvia Josephson ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 57

O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da Família


The psycopharmic user in a Family Health Program
Maria Célia F. Danese & Antonia Regina F. Furegato ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 70

2 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999


EDITORIAL

E ste número da Saúde em Debate é dedicado à Saúde


Mental e será lançado por ocasião da III Conferên-
cia Nacional de Saúde Mental, em Brasília, no período
sofrimento psíquico no interior do contexto de recons-
trução de um efetivo sistema de proteção social.
Este número é a contribuição do CEBES aos importan-
entre 11 e 15 de dezembro de 2001. tes debates da III Conferência Nacional de Saúde Men-
Desde os primórdios da Reforma Sanitária, no iní- tal. Desinstitucionalização, novas práticas, práticas clí-
cio do CEBES que completa 25 anos, o campo da Saúde nicas nos serviços substitutivos, avaliação, relações dos
Mental têm sido vanguarda e integrante do movimento lares abrigados com a cidade, uso de psicofármacos no
sanitário, resguardando suas especificidades que in- PSF, experiências municipais de assistência em saúde
tegram o Movimento da Reforma Psiquiátrica no Bra- mental e qualidade de vida dos egressos de instituições
sil e, ao mesmo tempo, inserindo objetos, teorias, psiquiátricas são os temas abordados além do artigo
temas, atores e arenas no movimento mais geral que que recupera as conferências anteriores na área de Saú-
luta pela transformação das condições de saúde da de Mental que nos lembra e relembra que a Reforma
população brasileira. Sanitária em geral, e a Reforma Psiquiátrica em parti-
Desnecessário enfatizar a importância da III Confe- cular, são processos, nem contínuos nem lineares e que
rência Nacional de Saúde Mental, desejada há mais de dependem da participação de todos os segmentos para
uma década e que se realiza num contexto nacional e alcançar efetivamente os objetivos desejados: inclusão,
internacional auspicioso. Há cerca de dez anos vêm solidariedade e cidadania emancipada.
sendo implantados serviços substitutivos e novas prá-
ticas assistenciais e este é um bom momento para ava-
A Diretoria Nacional
liar avanços e impasses. Depois de muitos anos tra-
mitando no congresso, e de muita luta do movimento
social por uma sociedade sem manicômios, foi apro-
vada a Lei da Reforma Psiquiátrica abrindo possibili-
dades de inovação e de regulação. A OMS declarou 2001
o ano da Saúde Mental com a proposta “cuidar sim,
excluir não”. Mas, estas boas novas inserem-se no velho
e conhecido cenário de pobreza e extremas desigual-
dades sociais. Portanto, há que se pensar nas necessi-
dades específicas de proteção social dos portadores de

Saúde Debate,RioRiodedeJaneiro,
SaúdeememDebate, Janeiro,v. v.23,25,n. n.53,58,p. p.XX-YY,
3, maio./ago. 2001
set./dez. 1999 3
QUEM SOMOS

Desde a sua criação, em 1976, o CEBES tem como centro de seu projeto a
luta pela democratização da saúde e da sociedade. Nesses 25 anos, como
centro de estudos que aglutina profissionais e estudantes, seu espaço esteve
assegurado como produtor de conhecimentos com uma prática política concreta,
seja em nível dos movimentos sociais, das instituições ou do parlamento.
Durante todo esse tempo, e a cada dia mais, o CEBES continua empenhado
em fortalecer seu modelo democrático e pluralista de organização; em orientar
sua ação para o plano dos movimentos sociais, sem descuidar de intervir nas
políticas e práticas parlamentares e institucionais; em aprofundar a crítica e
a formulação teórica sobre as questões de saúde; e em contribuir para a
consolidação das liberdades políticas e para a constituição de uma sociedade
mais justa.
A produção editorial do CEBES tem sido fruto de um trabalho coletivo. Estamos
certos que continuará assim, graças a seu apoio e participação.

4 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 23, n. 53, p. XX-YY, set./dez. 1999


Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente
ARTIGOS ORIGINAIS

Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o


paradigma emergente1
Deinstitutionalization in Mental Health: considerations on the emergent paradigm

Jacileide Guimarães2
Soraya Maria de Medeiros3 RESUMO
Toyoko Saeki4 O presente artigo tem como objetivo analisar a pós-modernidade
Maria Cecília Puntel de Almeida5 epistemológica, social e política do saber/fazer psiquiátrico no Brasil. Para
tanto partimos dos pressupostos do Paradigma Emergente no âmbito
epistemológico e dos Novos Movimentos Sociais (NMS) no âmbito social e
político ambos segundo Santos (1997a, 1998), acrescido das experiências
práticas da assistência em saúde mental no Brasil nas duas últimas décadas
(1979-1999). Verificamos a congruência existente entre os movimentos de
mudança da atenção psiquiátrica e as prerrogativas do paradigma
emergente, podendo-se destacar a complexidade e complementariedade
exigida por esse paradigma e defendida pelas experiências brasileiras de
1
Trabalho elaborado a partir da disciplina desinstitucionalização de orientação basagliana.
Seminários de Saúde Mental do Mestrado
de Enfermagem Psiquiátrica e Saúde PALAVRAS-CHAVE: desinstitucionalização; saúde mental; paradigma emergente.
Mental da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo – EERP/ USP, 1999.
ABSTRACT
2
Mestranda em Enfermagem Psiquiátrica
e Saúde Mental na Escola de Enfermagem
This essay aims to analyze the epistemological, social and political post-
de Ribeirão Preto da Universidade de São
Paulo – EERP/USP. modernity of psychiatric knowledge/performance in Brazil. With that objective,
we started from the presuppositions of the Emergent Paradigm in the
3
Professora Doutora do Departamento de
Enfermagem da Universidade Federal do epistemological level and of the New Social Movements in the social level,
Rio Grande do Norte. both according to Santos (1997a, 1998), in addition to practical experience
e-mail: sorayamaria@uol.com.br
on mental health care in Brazil in the past two decades (1979-1999). We
4
Professora Doutora do Departamento de
observed the congruence that exists between both movements related to
Enfermagem Psiquiátrica e Ciências
Humanas da EERP/USP. psychiatric health care change and the prerogatives of the emergent
e-mail: maryto@eerp.usp.br paradigm. The complexity and complementarity required by such paradigm,
5
Professora Doutora do Departamento which is defended by the Brazilian deinstitutionalization experiences based
de Materno Infantil e Saúde Pública da on the theories of Basaglia, can be highlighted.
EERP/USP.
e-mail: cecilia@glete.eerp.usp.br KEY WORDS: deinstitutionalization; mental health; emergent paradigm.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 5


GUIMARÃES, J. et al.

INTRODUÇÃO A primeira tese – Todo o conhe- una ao que estudamos” (SANTOS,


cimento científico-natural é cientí- 1998: 53). A quarta tese – Todo o
O presente artigo tem como ob- fico-social – fudamenta-se na su- conhecimento científico visa cons-
jetivo analisar a pós-modernida- peração das dicotomias na não-du- tituir-se em senso comum –, por
de epistemológica, social e políti- alidade do conhecimento, abolin- fim, visa ao diálogo entre o conhe-
ca do saber/fazer psiquiátrico no do-se assim o sentido que continha cimento científico e o senso comum
Brasil nas duas últimas décadas interpretações estanques como, por enquanto possibilidade qualitativa
(1979 - 1999). exemplo, natureza/cultura, natural/ de ampliação do fenômeno obser-
Santos (1998: 37) define as artificial, observador/observado, vado e em detrimento do autorita-
transformações epistemológicas no saúde/doença, razão/desatino. A rismo e dominação de um sobre o
modo de se fazer/ver ciência ou o segunda tese – Todo o conhecimen- outro, ou seja, do primeiro sobre
Paradigma Emergente como um to é local e total – visa a um co- o segundo.
“paradigma de um conhecimento nhecimento interdisciplinar que Ressalta-se a importância deci-
prudente para uma vida decente” siva do desvelamento pelo paradig-
assim atestando a novidade de que ma emergente, da chamada neutra-
a ciência comporta, simultaneamen- lidade científica – preconizada pelo
te ao aspecto estritamente investi- paradigma dominante – na qual o
gativo, o aspecto social da vida das NO ÂMBITO SOCIAL E POLÍTICO, observador separado, cindido do
pessoas. Com base neste pensamen-
SANTOS (1997A) ATESTA UM ESTADO observado atuava sobre este sem
to tecido como um discurso sobre no entanto responsabilizar-se so-
as ciências e introdução a uma ci- PÓS-MODERNO DOS ACONTECIMENTOS
cialmente, enquanto que o obser-
ência pós-moderna, este autor de- ATRAVÉS DOS DENOMINADOS NOVOS vado por sua vez, possuía um lu-
fende um conjunto de teses que têm
MOVIMENTOS SOCIAIS (NMSS) gar passivo e coisificado no proces-
em comum a superação do paradig- so de investigação.
ma dominante1, sobre o que nos in- No âmbito social e político, San-
teressa citar sucintamente: tos (1997a) atesta um estado pós-
1. Todo o conhecimento científico- perceba a totalidade dos aconteci- moderno dos acontecimentos atra-
natural é científico-social; mentos específicos, complexifican- vés dos denominados Novos Mo-
do-os e assim enriquecendo-os. A vimentos Sociais (NMSs), presen-
2. Todo o conhecimento é local
terceira tese - Todo o conhecimen- tes em todo o mundo, principal-
e total;
to é auto-conhecimento - refere-se mente nas décadas de 70 e 80, de
3. Todo o conhecimento é autoco- forma mais ou menos intensa con-
a integração e intencionalidade en-
nhecimento; forme o estágio de desenvolvimen-
tre sujeitos e não entre ‘um sujeito
4. Todo o conhecimento cientí- e um objeto’, assim trata-se de “um to econômico local.
fico visa constituir-se em sen- conhecimento compreensivo e ín- Os NMSs são os movimentos ti-
so comum. timo que não nos separe e antes nos picamente pós-industriais que de-

1
Dentre vasta bibliografia sobre o paradigma científico dominante, pode-se consultar o próprio Santos (1989, 1998).

6 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001


Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente

nunciam as formas de opressão crucial para a transformação da pacote de medidas que revogava dis-
cotidianas contidas na violência, sociedade brasileira, denominado posições que limitavam os direitos

na poluição, no sexismo, no racis- por Sader (1990) como ‘entre o ve- políticos estabelecidos pela ditadu-

lho e o novo’. Segundo Sader (1990: ra militar (Sader, 1990: 48).


mo e no produtivismo, dentre ou-
tras formas de exclusão. Para San- 48), o ponto de partida da transi- Mas, à revelia da menor clareza
tos (1997a: 258), os NMSs trazem ção é claro: uma ditadura militar do ponto de chegada da transição,
como “novidade maior tanto uma permeada por uma ideologia de se- não se pode negar o surgimento de
crítica da regulação social capita- gurança nacional favorável ao algo novo que se podia dizer germe
lista como uma crítica da emanci- grande capital monopolista e finan- da redemocratização do país:
pação social socialista tal como ceiro nacional e internacional. Já o
ponto de chegada é menos claro: A chamada Nova República foi
foi defendida pelo marxismo”.
sendo instaurada assim como uma
Assim denunciando ‘com uma ra-
um regime híbrido, em que deixaram mistura híbrida entre o velho e o
dicalidade sem precedentes os ex-
de existir as leis de exceção, em que novo. Inegavelmente se trata de um
cessos de regulação da moderni-
novo regime. A forma de domina-
dade’ e contribuindo para a cons-
ção política foi modificada, subs-
trução, no dizer deste autor, de
tituindo as instâncias militares
uma equação que comungue si- PARA SANTOS (1997A: 258), por formas parlamentares: a nova
multaneamente ‘subjetividade, ci-
OS NMSS TRAZEM COMO “NOVIDADE Constituição fortaleceu o papel do
dadania e emancipação’. Congresso, as liberdades individu-
Segundo Santos (1997a: 257), a MAIOR TANTO UMA CRÍTICA DA REGULAÇÃO ais foram ampliadas, o direito de
América Latina destaca-se dos de- SOCIAL CAPITALISTA COMO UMA CRÍTICA DA organização política foi explicita-
mais países periféricos e semiperi- do, introduziram-se direitos da ci-
EMANCIPAÇÃO SOCIAL SOCIALISTA TAL dadania que antes não constavam
féricos com relação a atuação dos
NMSs, sendo que aqui estes movi- COMO FOI DEFENDIDA PELO MARXISMO” de nosso sistema jurídico, tem vi-

mentos são peculiarmente ‘nutridos gência, ao menos teoricamente, um


Estado de direito, baseado em leis
por inúmeras energias’ que compi-
votadas por um Parlamento eleito
lam desde reivindicações pós-ma-
os partidos políticos, as associações pelo voto universal e direto (Sader,
terialistas a lutas por condições bá-
civis e a grande imprensa não en- 1990: 54).
sicas de sobrevivência, diferente-
contram limitações do ponto de vis-
mente do que se passa nos países Assim finalizamos a década de
ta legal. Os próprios militares se re-
centrais onde os movimentos são 70 e adentramos a década de 80 com
tiraram do centro da cena política
‘puros’ ou bem definidos. um Brasil efervescente, manifesta-
para um lugar mais discreto. Dei-
Com relação ao Brasil particu- das as contradições e reduzido o
xou de haver presos políticos, os ór-
larmente, tem-se na ‘década de se- poder ditatorial das elites dirigen-
gãos de segurança tiveram seu pa-
tenta e de oitenta um notável flo- pel diminuído, foram restabelecidos tes. A sociedade civil despertava de
rescimento de NMSs’ (Santos, os mecanismos eleitorais na sua ple- um pesadelo que durara vinte e um
1997a), atente-se para o momento nitude. Antes mesmo da nova Cons- anos e havia muito o que ser ques-
político de luta pela transição de- tituição, o Congresso já havia remo- tionado. Emergem denúncias e in-
mocrática pós-ditadura que se de- vido o que considerou como ‘entu- dignação acerca da questão psiqui-
lineava. Vale situar esse momento lhos autoritários’, aprovando um átrica no âmbito da saúde.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 7


GUIMARÃES, J. et al.

O PROCESSO SAÚDE/DOENÇA MENTAL: de assistência substitutiva – e com Amarante (1999: 48) destaca a
A DESINSTITUCIONALIZAÇÃO SOB O SIGNO a Luta Antimanicomial. Em janeiro dualidade do processo epistêmico
DO PARADIGMA EMERGENTE de 1999, o referido projeto foi apro- científico dominante onde
vado no Senado, devendo, para tor-
a natureza de um conceito ou teoria
Feita esta breve localização teó- nar-se lei, ser aprovado em nova
científica significa uma determinada
rico-metodológica à luz do Paradig- votação na Câmara. Em abril deste
forma pela qual o homem se relacio-
ma Emergente e dos Novos Movi- ano (2001) foi aprovado e sancio- na com a natureza. A ciência moder-
mentos Sociais conforme Santos nado pelo Presidente da República, na, de base predominantemente po-
(1997a, 1998), retomamos o recor- tornando-se lei. Temos passado sitivista, vem exercitando um proces-
te das duas últimas décadas no Bra- pouco mais de duas décadas (1979 so de objetivação da natureza, em que
sil no âmbito das políticas e práti- – 1999), marcadas por indignação, a relação que se estabelece é entre
cas em saúde mental. contestação, lutas e conquistas sig- sujeitos epistêmicos, de um lado, e
A saúde mental brasileira nas nificativas de um processo que se de coisas e objetos de outro.
duas últimas décadas, mais precisa-
Esse autor ressalta o pensamen-
mente de 1979 a 1999, passou por
to de Franco Basaglia, que diz que é
transformações através de avanços
preciso pôr a doença, e não o homem,
que constituíram e constituem o pro- A SAÚDE MENTAL BRASILEIRA NAS DUAS entre parênteses, assim invertendo
cesso contemporâneo desta prática.
ÚLTIMAS DÉCADAS, MAIS PRECISAMENTE a tradição psiquiátrica e cientifica-
Em 1979, o Brasil recebe a visi-
mente moderna de objetivação do
ta do psiquiatra italiano Franco Ba- DE 1979 A 1999, PASSOU POR
sujeito. Com tal inversão, se estabe-
saglia, cujo discurso sobre a desins-
TRANSFORMAÇÕES ATRAVÉS DE AVANÇOS lece uma ruptura operada pela Luta
titucionalização do aparato psiqui-
Antimanicomial e pela Reforma Psi-
átrico repercute no meio social e QUE CONSTITUÍRAM E CONSTITUEM O
quiátrica brasileira, de orientação
político que passa por contestações PROCESSO CONTEMPORÂNEO DESTA PRÁTICA basagliana, com o método da ciên-
e desejos de mudança em uma soci-
cia moderna. No dizer de Amarante
edade que vivencia um processo de
(1999: 48), podemos conferir:
abertura após anos de regime mili-
tar ditatorial. Surge o Movimento inspira em um conhecimento que Neste sentido, o que vimos deno-
dos Trabalhadores em Saúde Men- pressupõe o diálogo como instru- minando como Luta Antimanicomial,

tal – então um NMS – que fortaleci- mento da contratualidade estabe- ou como Reforma Psiquiátrica, tem

do pela sociedade civil organizada como princípio básico uma ruptura


lecida nos inter-relacionamentos,
com essa tradição científica [a ciên-
e pelas primeiras experiências de sendo assim, um processo delibe-
cia moderna ou paradigma dominan-
desinstitucionalização, destacada- radamente contra a opressão, onde
te]. Em primeiro lugar, por romper com
mente a experiência santista, cul- é seguro afirmar a presença decisi-
o processo de objetivação da loucura
mina em 1989 com o movimento de va dos pressupostos deste estudo
e do louco (inscrevendo a questão ho-
Reforma Psiquiátrica, a criação do – ou seja, do Paradigma Emergen- mem-natureza ou a questão do nor-
Projeto de Lei 3657 de autoria do te e da atuação dos Novos Movi- mal-patológico em termos éticos, isto
deputado federal Paulo Delgado (PT- mentos Sociais segundo Santos é, de relação e não de objetivação). Em
MG) – que dispõe sobre a supera- (1997a, 1998) – no âmbito da saú- segundo lugar, por romper com o pro-
ção do manicômio e a construção de mental brasileira. cesso de patologização dos comporta-

8 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001


Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente

mentos humanos, com base em um tos; de espaços substitutivos de (1997b: 117), as “imagens desesta-
pressusposto teleológico ou ontológi- sociabilidade de possibilidades plu- bilizadoras” são os veículos, no tem-
co de normalidade. Daí advém o prin- rais e singulares concretas para po presente, portadores das “inter-
cípio de colocar a doença mental en- sujeitos concretos; de direito ao tra- rogações poderosas” – “tomadas de
tre parênteses, como forma de inver- balho, à família, aos amigos, ao posições apaixonadas, capazes de
ter a tradição psiquiátrica, que é a de
cotidiano da vida social e coletiva; sentidos inesgotáveis”. As imagens,
colocar o homem entre parênteses para
de solidariedade e inclusão de su- potencializam as interrogações ao
se ocupar da doença, como ressaltou
jeitos em desvantagem social. flagrarem o fato de que “tudo de-
Basaglia (Amarante, 1999: 48).
Assim o processo de desinstitu- pende de nós e tudo podia ser dife-
E relembrando as quatro teses de cionalização da psiquiatria brasilei- rente e melhor”.
Santos (1998), vejamos o que ain- ra, enquanto conhecimento e práti-
da nos diz Amarante (1999: 49) so- ca centrados no paradigma emer-
bre a démarche de colocarmos a gente, inscreve-se na contra-mão do PARA UM CONCEITO EMERGENTE
doença entre parênteses: DE SAÚDE MENTAL

Colocar um ‘fenômeno’ entre pa-


Para um conceito de saúde men-
rênteses representa uma importante
demarcação epistemológica no âmbi- “...NÃO HÁ SÓ UMA FORMA DE tal assentado no paradigma emer-

to da tradição do pensamento filosó- gente é seguro indicar a necessida-


CONHECIMENTO, MAS VÁRIAS, de fundamental de se conhecer a
fico existencial: consiste na idéia de
que o ‘fenômeno’ não existe em si, E DE QUE É PRECISO OPTAR PELA QUE historicidade da chamada psiquia-
mas é construído pelo observador, é tria moderna, resguardando as suas
FAVORECE A CRIAÇÃO DE IMAGENS
um constructo da ciência, e só existe conquistas e superando os limites
enquanto inter-relação com o obser- DESESTABILIZADORAS E A ATITUDE DE por ela determinados, atendo-se no
vador. E, portanto, se o observador,
INCONFORMISMO PERANTE ELAS” dizer de Santos ao “paradigma de
sujeito do conhecimento, constrói o um conhecimento prudente para
‘fenômeno’, este é parte do primeiro, uma vida decente”. Aqui faz-se
é parte de sua cultura e de sua sub-
oportuno reiterarmos a necessida-
jetividade (Amarante, 1999: 49).
projeto científico, político e econô- de de uma vigilância constante con-
Daí a complexidade e a comple- mico dominante: o neoliberalismo2. tra o atavismo manicomial real ou
mentariedade da mudança em saú- Uma novidade fruto da concepção travestido na psiquiatrização do
de mental acentuada por Amaran- epistemológica que “se assenta na cotidiano ou no institucionalismo
te (1999: 50), em pelo menos qua- idéia de que não há só uma forma sutil, sobre o qual Amarante (1999:
tro campos: a) o teórico-conceitu- de conhecimento, mas várias, e de 49) ressalta a importância de estar-
al; b) o técnico-assistencial; c) o que é preciso optar pela que favore- mos atentos e munidos com estra-
jurídico-político e d) o sócio-cultu- ce a criação de imagens desestabi- tégias de enfrentamento capazes de
ral. Ou seja, trata-se de uma inter- lizadoras e a atitude de inconformis- identificar e propugnar “um certo
relação de reconstrução de concei- mo perante elas”. Para Santos olhar que classifica desclassifican-

2
Sobre esta questão confira por exemplo: FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.), 1999. Fim de século: ainda
manicômios? São Paulo: IPUSP.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001 9


GUIMARÃES, J. et al.

do, que inclui excluindo, que nomeia Apontamos como possibilidade realidade que poderia ser melhor.
desmerecendo, que vê sem olhar”. de ampliação das estratégias de Imagens desestabilizadoras não nos
Não seria fácil a luta e manu- enfrentamento em prol desta nova falta no âmbito da saúde mental
tenção de um tal paradigma emer- cidadania, as ‘imagens desestabili- brasileira e as interrogações pode-
gente. No entanto, a saúde mental zadoras’ e as ‘interrogações pode- rosas, felizmente, estão em nosso
brasileira, nas duas últimas déca- rosas’ de que fala Santos (1997b: meio, pelo menos, há duas décadas.
das, tem demonstrado que é possí- 117-8), que, além de comprometi- De tais imagens e interrogações nas-
vel. Hoje, embora o projeto neolibe- das com a transformação do real, ce o vértice do tripé: a realização de
ral seja dominante e pululem trans- lançam um desafio que potencializa uma nova prática.
tornos/sofrimentos mentais e o gas- a indignação, o inconformismo e a Retomando as teses de Santos
to público com internações psiquiá- ação qualitativamente emancipató- (1998: 37-58) sobre o paradigma
tricas – que conforme dados do Mi- ria. As ‘interrogações poderosas’ emergente, podemos inferir que:
nistério da Saúde em apenas seis são as que nos fazem refletir sobre
• todo o conhecimento científico
anos aumentou de 224 milhões de
transmitido nos órgãos forma-
dólares em 1991 para aproximada-
dores, reproduzido e (re)criado
mente 370 milhões de dólares em
nas instituições e entidades que
1996 (Ministério da Saúde apud SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS PAUTADOS NUMA atuam com o processo saúde/
Daúd Júnior, 1999: 65-6) – vemos a
NOVA CIDADANIA E NUMA NOVA ÉTICA, QUE doença mental, é essencialmen-
redução palpável do hospitalocen-
te um conhecimento científico-
trismo psiquiátrico e a implemen- SUPEREM A CIDADANIA SOCIAL E A ÉTICA
social e como tal, não é neutro,
tação de serviços substitutivos em
POLÍTICA DA RESPONSABILIDADE LIBERAL resulta de escolhas cotidianas
26 dos 27 Estados do Brasil (Alves, e prática política;
1999). Serviços substitutivos, ou VOLTADA APENAS PARA A RECIPROCIDADE
• sendo o conhecimento local e to-
seja, serviços que, mais do que al- ENTRE DIREITOS E DEVERES
tal, quando apreendemos e so-
ternativas, preconizam a substitui-
cializamos através das experi-
ção do modelo manicomial, notoria-
ências e vivências de trabalhos
mente iatrogênico. Serviços substi-
em saúde mental, estamos
tutivos pautados numa nova cidada- o motivo, a causa dos acontecimen-
(re)criando esse conhecimento,
nia e numa nova ética, que superem tos e trazem em si o traço de serem
e contribuindo para a mudança
a cidadania social e a ética política mais relevantes do que as próprias
ou a reprodução do “discurso
da responsabilidade liberal voltada respostas – “como interrogar de
competente”3 sobre a saúde, a
apenas para a reciprocidade entre modo que a interrogação seja mais
doença e o doente mental;
direitos e deveres, buscando uma ci- partilhada do que as respostas que
dadania que, somada à subjetivida- lhe forem dadas?” – As ‘imagens • que todo o conhecimento técni-
de emancipatória, seja nova e esteja desestabilizadoras’ são as que su- co-científico e ético-político so-
atenta às novas formas de exclusão primem do presente a característica bre saúde mental, com o qual
social (Santos, 1997a). de inculpável, trazendo à tona uma atuamos, na cotidianidade de

3
Confira CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 4 ed. São Paulo: Cortez.

10 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 5-11, maio/ago. 2001


Desinstitucionalização em Saúde Mental: considerações sobre o paradigma emergente

nossa prática no âmbito das ins- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SANTOS, B. de S., 1997a. Pela mão de
tituições de ensino, nos servi- Alice: o social e o político na pós-
ços de saúde e movimentos so- ALVES, D. S., 1999. O “Ex” – tentando modernidade. 3 ed. São Paulo:
ciais, constituem-se como par- ver o futuro. Cadernos IPUB / Ins- Cortez, 348p.
te do autoconhecimento de nos- tituto de Psiquiatria da UFRJ,
SANTOS, B. de S., 1997b. A queda do
sas subjetividades e das respec- NO 14: p.21-30.
Angelus Novus: para além da
tivas interlocuções entre socie- AMARANTE, P., 1999. Manicômio e equação moderna entre raízes e
dade e indivíduo; entre a vida no loucura no final do século e do opções. NOVOS ESTUDOS –
âmbito público e no privado; en- milênio. In: FERNANDES, M. I. A.; CEBRAP. No 47: p.103–124. Pu-
tre os sujeitos sociais e estrutu- SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S. (Orgs.) blicacão quadrimestral do Centro
ras de micro e macro poder polí- Fim de século: ainda manicô- Brasileiro de Análises e Planeja-
tico. Dessa forma, podemos in- mios? São Paulo: Instituto de mento (CEBRAP).
tervir nesse processo, na pers- Psicologia da Universidade de São
SANTOS, B. de S., 1998. Um discurso
pectiva de melhorá-lo, a partir de Paulo, p. 47-53.
sobre as ciências. 10 ed. Porto:
nossas contribuições cotidianas
CHAUÍ, M. de S., 1989. Cultura e Afrontamento, 58p.
individuais e coletivas;
Democracia: o discurso competen-
• considerando que todo o conhe- te e outras falas. 4 ed. São Paulo:
cimento científico visa consti- Cortez, 309p.
tuir-se em senso comum, a pers-
DAÚD JÚNIOR, N., 1999. Neoliberalismo,
pectiva de mudança do paradig-
luta antimanicomial e pós-
ma emergente na saúde mental, neoliberalismo. In: FERNANDES, M.
caminha no sentido da pro- I. A.; SCARCELLI, I. R. & COSTA, E. S.
posta de uma visão do ser (Orgs.) Fim de século: ainda
doente mental como sujeito, manicômios? São Paulo: Instituto
como cidadão, respeitado em de Psicologia da Universidade de
sua alteridade, abandonando a São Paulo, p. 57-73.
visão do doente como ‘um ser
FERNANDES, M. I. A.; SCARCELLI, I. R. &
perigoso’, anormal, excluído. En-
COSTA, E. S. (Orgs.) Fim de século:
fim, contribuindo para a gera-
ainda manicômios? São Paulo:
ção de um imaginário coletivo
Instituto de Psicologia da Univer-
onde o ‘trem dos doidos de Bar-
sidade de São Paulo, 208p.
bacena’, o ‘beribéri do São João
de Deus’, a ‘imensidão lotada do SADER, E., 1990. A transição no Brasil:
Juquery’, e tantos outros emble- da ditadura à democracia? 6 ed.
mas/realidades similares cruas São Paulo: Atual, 92p. (Série

ou maquiadas que conhecemos história viva).

na assistência ao sofrimento psí- SANTOS, B. de S., 1989. Introdução a


quico, não sejam mais toleradas uma ciência pós-moderna. Rio de
na sociedade brasileira. Janeiro: Graal, 176p.

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COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.
ARTIGOS ORIGINAIS

As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as premissas do


Modo Psicossocial
The National Conferences of Mental Health and the premises of the psychosocial way

Abílio da Costa-Rosa1
Cristina Amélia Luzio2
Silvio Yasui3

RESUMO

O presente artigo pretende analisar as proposições básicas e os marcos


conceituais das duas conferências nacionais de saúde mental ocorridas até
o momento, à luz dos parâmetros do Modo Psicossocial construídos por
Costa-Rosa. Pretende-se, também, indicar a sua exeqüibilidade nos
dispositivos construídos pelas práticas de Atenção Psicossocial, que têm
proposto superar a lógica manicomial, observar os avanços e retrocessos do
processo de estratégia de hegemonia na saúde mental. Finaliza apresentando
alguns pontos para uma proposta de agenda de discussão.

PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; políticas públicas; conferências nacionais


1
Professor assistente-doutor do
de saúde mental.
Departamento de Psicologia Clínica da
Universidade Estadual Paulista, campus
Assis, doutor em Psicologia Clínica pela
Universidade de São Paulo; psicanalista e
analista institucional.
ABSTRACT
e-mail: abiliocr@assis.unesp.br
The present article intends to analyze the basic propositions and the
2
Professora assistente do Departamento de
conceptual marks of the two Mental Health National Conferences that have
Psicologia Clínica da Universidade
Estadual Paulista, campus Assis, occurred up until now, under the light of the Psychosocial Way parameters
doutoranda em Saúde Coletiva na built by Costa-Rosa. It is intended, also, to indicate its feasibility in devices
Universidade de Campinas.
built by Psychosocial Attention's practices, that intend to overcome the
e-mail: caluzio@assis.unesp.br
manicomial logic, to observe the progresses and setbacks of the hegemony
3
Professor assistente do Departamento de
Psicologia Evolutiva, Social e Escolar da strategy process in mental health. It concludes presenting a few points for a
Universidade Paulista, campus Assis, proposed discussion.
doutorando em Psicologia Social na
Universidade de São Paulo. KEY WORDS: psychosocial attention; public politics; national conferences of
e-mail: syasui@assis.unesp.br mental health.

12 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

INTRODUÇÃO do para a necessidade de se ampli- Único de Saúde, com garantia da


ar o conceito de saúde, consideran- participação popular. No plano as-
Neste artigo retomamos os ‘mar- do em seus determinantes as con- sistencial, aponta para os mesmos
cos conceituais’ e as proposições dições materiais de vida. Destaca- princípios já consagrados, tais
básicas das duas conferências na- mos o seguinte trecho: como reversão da tendência hospi-
cionais de saúde mental ocorridas talocêntrica, com prioridade para o
Situando a saúde mental no
até o momento, a fim de efetuar- sistema extra-hospitalar.
bojo da luta de classes, podemos
mos uma análise à luz dos parâ- Por fim, no tema III – Cidada-
afirmar que seu papel tem consis-
metros do Modo Psicossocial (Cos- tido na classificação e exclusão dos
nia e Doença mental: direitos, de-
ta-Rosa, 2000:141-168). Pretende- ‘incapacitados’ para a produção veres e legislação, o relatório rea-
mos, ao mesmo tempo, indicar a (...) É urgente pois o reconhecimen- firma, também, teses do Movimen-
sua exeqüibilidade nos dispositivos to da função de dominação dos tra- to Sanitário, sugerindo inclusões
construídos pelas práticas de Aten- balhadores de saúde mental e a sua no texto constitucional no que se
ção Psicossocial que têm proposto refere ao direito à saúde e propon-
superar a lógica manicomial. do reformulações da legislação or-
dinária que trata especificamente
da saúde mental, ou seja: Código
EM JUNHO DE 1987, COMO
PRIMEIRA CONFERÊNCIA NACIONAL Civil; Código Penal e legislação sa-
DE SAÚDE MENTAL (CNSM) DESDOBRAMENTO DA HISTÓRICA nitária; propõe, ainda, modifica-
8A CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE ções na legislação trabalhista,
Proposições gerais: concepção considerando a interface trabalho/
DE 1986, OCORREU, NA CIDADE DO
de saúde, participação popular, ci- saúde mental.
dadania e interesses dos usuários. RIO DE JANEIRO, A I CONFERÊNCIA O texto do relatório demonstra
Em junho de 1987, como des- NACIONAL DE SAÚDE MENTAL (CNSM) uma estreita vinculação entre o
dobramento da histórica 8 Confe-
a
Movimento Sanitário e o Movi-
rência Nacional de Saúde de 1986, mento da Reforma Psiquiátrica.
ocorreu, na cidade do Rio de Janei- Ambos tratam a saúde como uma
revisão crítica, redefinindo seu pa-
ro, a I Conferência Nacional de Saú- questão revolucionária, no eixo da
pel, reorientando a sua prática e
de Mental (CNSM). luta pela transformação da socie-
configurando a sua identidade ao
A Conferência foi realizada em um dade. Aponta, especificamente,
lado das classes trabalhadoras.
clima de intensas discussões e o seu aos trabalhadores de saúde men-
(BRASIL/MS, 1992:15)
relatório final ficou para a história tal, a necessária revisão de seu
do movimento da reforma psiquiátri- No tema II – Reforma Sanitária papel de agentes de exclusão e de
ca, que fez prevalecer suas teses em e reorganização da assistência à dominação, para reorientá-lo na
praticamente todos os temas. saúde mental, o relatório reafirma direção de uma identidade com os
No tema I – Economia, Socieda- as teses do Movimento Sanitário, interesses da classe trabalhadora.
de e Estado: impactos sobre a saú- introduzindo a especificidade da Estão presentes nesse documento
de e doença mental, o relatório ana- saúde mental no contexto de suas oficial, não apenas propostas téc-
lisa o modelo econômico altamen- diretrizes e princípios, apontando nicas, mas argumentos e proposi-
te concentrador brasileiro, apontan- para a constituição de um Sistema ções que engajam o processo de

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 13


COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

transformação de um setor espe- para a horizontalização das porosidade em relação ao ter-


cifico da saúde, a saúde mental, relações com os usuários e a ritório, praticamente subverte
em uma luta que transcende essa população da área; a própria natureza da institui-
especificidade, vinculando-a à ção como dispositivo. A natu-
• no que diz respeito às formas
luta pela transformação da socie- reza da instituição como orga-
de organização das relações in-
dade. Mas foi apenas mais um do- nização fica modificada e o lo-
trainstitucionais preconiza-se a
cumento oficial, talvez o primeiro cal de execução de suas práti-
sua horizontalização, com a
que colocou a questão da saúde cas desloca-se do antigo inte-
distinção obrigatória entre as
mental nessa perspectiva da luta rior da instituição para tomar
esferas do poder decisório, de
entre os interesses de classes. o próprio território como refe-
origem política e as esferas do
poder de coordenação, de natu- rência. A instituição, enquan-
O Modo Psicossocial e a I Conferência reza mais operativa. Esta reo- to equipamento, posiciona-se
Nacional de Saúde Mental rientação das relações intrains- num foco em que se entrecru-
titucionais vai na mesma dire- zam as diferentes linhas de
Costa-Rosa (2000:151-164), ação no território e para onde
ção das relações especificamen-
conceitua o Modo Psicossocial de podem remeter-se as primeiras
te interprofissionais e faz parte
acordo com quatro parâmetros fun- pulsações da Demanda;
dos requisitos necessários para
damentais, que podemos definir, su-
o exercício da subjetivação sin- • destacando a ética dos efeitos
cintamente, nos seguintes termos:
gularizada que é meta cara ao das práticas em saúde mental,
• em relação à concepção do ‘ob- Modo Psicossocial; o Modo Psicossocial preconiza a
jeto’ e dos meios de trabalho • quanto à forma como a insti- superação da ética da adapta-
preconiza a implicação subje- tuição se situa no espaço geo- ção, que tem seu suporte nas
tiva do usuário, o que pressu- gráfico, no imaginário e no ações de tratamento como rever-
põe a superação do modo de simbólico o Modo Psicossocial sibilidade dos problemas e na
relação sujeito-objeto caracte- preconiza antes de tudo a in- adequação do indivíduo ao meio
rístico do modelo médico e das tegralidade das ações no terri- e do ego à realidade. Ao propor
disciplinas especializadas que tório. Além disso ao preconizar suas ações na perspectiva de
ainda se pautam pelas ciênci- o posicionamento da institui- uma ética de duplo eixo, que
as positivas. Preconiza-se, ao ção como espaço de interlocu- considera por um lado a relação
mesmo tempo, a horizontali- ção, como instância de ‘supos- sujeito-desejo e por outro a di-
zação das relações interprofis- to saber’ e, ao fazer dela um mensão carecimento-Ideais1,
sionais como condição básica espaço de absoluta e intensa deixa firmada a meta da produ-

1
Carecimento, por oposição ao conceito de carência ou de necessidade, abarca uma dimensão do homem que inclui o desejo (como propõe a
psicanálise) e toda a abertura do homem para os Ideais, possíveis ou não de imediato. Mas inclui também a abertura para a produção e usufruto
de todos os bens da produção social, muito além do preenchimento de necessidades, e que, muito mais que estas, correspondem à especificida-
de humana. Pode-se considerar que aqui estão incluídas também as criações da Filosofia, da Arte, da Ciência, e até da Religião, mas não sem
passar pela aspiração pertinente ao usufruto das comodidades socialmente produzidas no mais alto grau da sua evolução histórica, tal como
encontrado em Marx nos Manuscritos de 1844. Quanto aos Ideais, na mesma perspectiva do conceito de desejo, é preciso sublinhar seu caráter
além da dimenção teleológica. (Costa-Rosa, 2000:162)

14 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

ção de subjetividade singulari- mental, parece mais do que justifi- exclusão e dominação, ao mesmo
zada, tanto nas relações imedi- cado que a participação popular nas tempo propondo sua reorientação
atas com o usuário propriamen- instituições seja elevada à catego- na direção dos interesses da classe
te dito, quanto nas relações com ria de dispositivo necessário, não trabalhadora. Esta é mais uma pro-
toda a população do território. apenas contingente. Por outro lado, posição que ultrapassa os interes-
o Modo Psicossocial propõe que a ses ético-políticos globais. Sua tra-
Retornando às proposições da I
ética da implicação subjetiva e so- dução nos pressupostos do Modo
CNSM, em primeiro lugar merece
ciocultural dos usuários das insti- Psicossocial exige um percurso um
destaque a proposta de ampliação
tuições de saúde mental nos con- pouco mais complexo. Antes de
do conceito de saúde, incluindo em
flitos e contradições que os atraves- tudo é preciso firmarmos uma con-
seus determinantes as condições
gerais de vida. Além de sua sintonia sam, fazendo-os procurarem ajuda, ceituação de Sociedade como arti-

com os princípios gerais da Refor- seja um componente essencial da culação de interesses contraditóri-

ma Sanitária, podemos indicar, ain- Atenção. Essa implicação do sujei- os, num processo político-social que

da, o alinhamento dessa preocupa- Gramsci denominou Processo de

ção com as do campo da Atenção Estratégia de Hegemonia (PEH). A

Psicossocial, que insistem, de mo- seguir temos de recorrer a uma das

dos diversos, na reformulação da RETORNANDO ÀS PROPOSIÇÕES proposições importantes do Modo


Psicossocial, que conceitua as prá-
DA I CNSM, EM PRIMEIRO LUGAR
concepção do ‘objeto’ das práticas em
saúde mental. Essa ampliação da ticas em saúde mental neste mo-

definição é sem dúvida um bom pon- MERECE DESTAQUE A PROPOSTA DE mento histórico, como conjunto ar-

AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE SAÚDE,


to de partida para tal reformulação. ticulado (nos mesmos termos do
Outra proposição que deve ser PEH), podendo aí designar-se dois
INCLUINDO EM SEUS DETERMINANTES pólos bem configurados e com ló-
sublinhada diz respeito à exigência
da ‘participação popular’ na saúde AS CONDIÇÕES GERAIS DE VIDA gicas contraditórias: o Modo Asilar
mental. Além de uma proposta co- e o Modo Psicossocial. (Costa-Rosa,
erente com a ética da participação 2000:141-168).
geral do cidadão na vida social, é Uma vez colocados na situação
fundamental percebermos sua coe- to na sua situação específica nun- de trabalhadores de saúde mental
rência com a ética da Atenção Psi- ca poderia ser realizada se, no con- não há como escapar ao alinhamen-
cossocial. Uma série de evidências texto mais amplo da sua existên- to com uma dessas lógicas. É fácil
apontam as relações diretas exis- cia, o exercício dessa implicação lhe demonstrar que a lógica asilar é
tentes entre as formas da organi- fosse negado. No Modo Psicossoci- perfeitamente congruente com a do
zação intrainstitucional e as formas al o engajamento subjetivo e socio- Modo Capitalista de Produção, na
como essa instituição (através de cultural são indissociáveis da defi- qual os interesses dos usuários são
seus agentes) se dirige e se relacio- nição de saúde mental. inequivocamente subordinados aos
na com a clientela e a população de Um terceiro aspecto, que é opor- interesses do Hospital. A proposi-
sua área de ação. Se nas práticas tuno sublinhar, refere-se à concla- ção de se alinhar com os interesses
da Atenção Psicossocial a exigên- mação dos trabalhadores da área a dos usuários é, portanto, uma exi-
cia da superação do paradigma su- reverem os riscos, ou mesmo, a efe- gência inadiável dos que pretendem
jeito-objeto é um objetivo funda- tivação do seu papel de agentes de fazer das práticas em saúde men-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 15


COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

tal dispositivos alternativos ao pessoas, a etapa nacional contou visão integrada das várias dimensões
Modo Asilar; ou seja, práticas ca- com a participação de quinhentos humanas da vida do indivíduo, em
pazes da produção de subjetivida- delegados eleitos nas conferências diferentes e múltiplos âmbitos de in-

de singularizada, em que os lucros estaduais, com composição paritá- tervenção (educativo, assistencial e de
reabilitação). (Brasil-MS,1994:13)
principais das ações de produção de ria dos dois segmentos: usuários e
saúde sejam apropriados pelos usu- sociedade civil, governo e prestado- Reafirma os princípios da uni-
ários das instituições, como pólo res de serviços. versalidade, integralidade, eqüida-
socialmente subordinado. Diversos pontos do relatório, de, descentralização, participação
Observamos, de modo geral, como aprovados na plenária final, tive- popular e municipalização, propon-
parece justo esperar por tratar-se da ram a defesa emocionada e firme do a substituição do modelo hospi-
I CNSM, uma ênfase em proposições dos usuários. talocêntrico por uma rede de servi-
na esfera político-ideológica e no Foram discutidos três grandes ços, diversificada e qualificada, e a
âmbito jurídico. Pode-se notar clara- temas: crise, democracia e reforma intensificação da desospitalização
mente, agora, como ali se tratava de
através dos programas públicos de
produzir bases para as propostas e
lares e pensões protegidas. Propõe,
experiências práticas que viriam, na
também, a articulação com os recur-
seqüência, exercitar outras lógicas
sos existentes na comunidade e a
contrárias à asilar. Deve-se registrar, EM DEZEMBRO DE 1992,
FOI REALIZADA A II CONFERÊNCIA
ainda, que a proposição antimanico- necessária transformação das rela-

mial, que vai atravessar os passos de ções cotidianas entre trabalhadores

boa parte das práticas da Reforma


NACIONAL DE SAÚDE MENTAL de saúde mental, usuários, famílias,

Psiquiátrica, até os dias de hoje, já (II CNSM) COM UMA ORGANIZAÇÃO comunidade e serviços, em busca da
desinstitucionalização, bem como da
se apresenta aí bem clara e plena-
DIFERENTE DA ANTERIOR humanização das relações no campo
mente afirmada.
da saúde mental. (Idem:16)

Chama a atenção para uma ne-


A SEGUNDA CONFERÊNCIA NACIONAL cessária construção coletiva de prá-
DE SAÚDE MENTAL psiquiátrica; modelos de atenção ticas e saberes cotidianos que con-
em saúde mental; direitos e cida- sidere: o trabalho em equipe, ou-
Proposições gerais: Atenção Integral dania. O relatório final subdivide- tros campos de conhecimento e os
Territorializada, direitos e terapêutica cidadã se em três partes: marcos conceitu- saberes populares. Por fim, desta-
ais; atenção à saúde mental e mu- ca a relação entre cidadania, Esta-
Quatro anos depois, em dezem- nicipalização; direitos e legislação. do e Sociedade, propondo estimu-
bro de 1992, foi realizada a II Con- Em sua primeira parte, o relató-
lar a organização dos cidadãos em
ferência Nacional de Saúde Mental rio aponta a atenção integral e cida-
associações comunitárias, altera-
(II CNSM) com uma organização di- dania como conceitos direcionado-
ções na legislação e ações no cam-
ferente da anterior. Precedida de res das deliberações da Conferência.
po da informação e educação.
etapas municipais, regionais e es- A atenção integral deverá propor Em sua segunda parte, o relató-
taduais, que contaram com o envol- um conjunto de dispositivos sanitári- rio apresenta inúmeras propostas
vimento direto de cerca de vinte mil os e socioculturais que partam de uma relativas à atenção em saúde men-

16 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

tal e municipalização. No capítulo questões estivessem como pano de O Modo Psicossocial e a II Conferência
sobre as recomendações gerais, além fundo, o relatório era muito mais Nacional de Saúde Mental.
de reafirmar o princípio da munici- extenso e específico nas questões
palização, acrescentou a proposta de da saúde mental. Podemos considerar como de
utilização dos conceitos de território A II CNSM foi realizada em um significativa relevância o fato de
e responsabilidade como dispositivos momento em que diversas experi- que os ‘marcos conceituais’ do RE-
para uma ruptura com o modelo hos- ências já estavam consolidadas e LATÓRIO DA SEGUNDA CONFE-
2
pitalocêntrico. Finaliza essa segun- espalhando-se pelo país; já exis- RÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE
da parte com propostas para a capa- tia uma lei, aprovada na Câmara MENTAL, realizada em 1992, este-
citação dos trabalhadores de saúde, dos Deputados e tramitando no Se- jam perfeitamente em sintonia com
sobre as relações no trabalho em ter- nado, e leis estaduais aprovadas ou as premissas gerais do Modo Psi-
mos de organização e conquista de em tramitação; já existiam dispo- cossocial para os tratamentos psí-
direitos, e sobre a promoção de pes- sitivos institucionais (portarias mi- quicos na Saúde Coletiva.
quisas voltadas para a investigação Ainda que se possa considerar
epidemiológica e sócio-antropológi- que tais marcos conceituais este-
cas e para a avaliação da rede de jam muito mais na perspectiva de
atenção em saúde mental. transformações na esfera político-
A terceira parte do relatório apre- ESTAVA EM CURSO UM PROCESSO ideológica, eles podem ser tradu-
senta propostas referentes ao tema DE TRANSFORMAÇÃO DA SAÚDE MENTAL zidos em dispositivos teórico-prá-
Direitos e Legislação. São cinco ca- ticos, capazes de fazerem de pre-
NO CAMPO TEÓRICO, NO CAMPO
pítulos abrangendo os seguintes te- ceitos gerais, verdadeiros instru-
mas: questões gerais sobre uma ne- ASSISTENCIAL, NO CAMPO JURÍDICO mentos de transformação das prá-
cessária revisão legal; direitos civis ticas cotidianas nas instituições
E NO CAMPO CULTURAL
e cidadania; direitos trabalhistas; de saúde mental, sobretudo das
drogas e legislação; direitos dos usu- relações destas com os usuários e
ários. Talvez tenha sido a parte do com a população das suas áreas
relatório na qual os usuários parti- de referência.
ciparam de forma mais ativa, espe- nisteriais) que possibilitavam a im- Senão vejamos:
cialmente na plenária final. plantação de novos serviços e au-
1. “I. ATENÇÃO INTEGRAL E CI-
Realizada em circunstâncias mentavam a fiscalização dos hos-
DADANIA são conceitos direciona-
históricas distintas da I CNSM, cujo pitais; já existiam diversas associ-
dores das deliberações da II Confe-
relatório apresentava diversas pro- ações de usuários atuando ativa-
rência Nacional de Saúde Mental”.
posições de caráter político, o texto mente pelo país. Ou seja, estava em
(Brasil/MS,1994:11)
da II CNSM não foi tão contunden- curso um processo de transforma-
te na crítica ao modelo econômico ção da saúde mental no campo teó- Definir a integralidade da con-
nem ao momento político que se rico, no campo assistencial, no cam- cepção e do exercício dos programas
estava vivendo. Embora aquelas po jurídico e no campo cultural. e ações implica operar uma série de

2
Como exemplo, o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Luiz Cerqueira já era uma realidade consolidada, o Programa de Saúde Mental de
Santos já era reconhecido internacionalmente como experiência modelar, inclusive pela Organização Pan-americana de Saúde (OPAS).

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 17


COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

transformações no modo de traba- zar a democratização das institui- 3. “III. O processo saúde/doença
lho. Estas transformações é que são ções e de suas relações com os mental deverá ser entendido a par-
condição para o exercício de ações usuários e com a população, e a tir de uma perspectiva contextuali-
integrais, e ao mesmo tempo cons- partir da condição de trabalhado- zada, onde qualidade e modo de vida
tituem a base para a efetivação de res da Saúde, cuida-se da aplica- são determinantes para a compre-
um princípio de cidadania nas prá- ção daquela diretriz. Uma das ensão do sujeito, sendo de impor-
ticas dos trabalhadores de saúde maneiras mais eficazes de cumprir, tância fundamental vincular o con-
mental que seja coerente com a nesta esfera de atuação, a diretriz ceito de saúde ao exercício de cida-
meta da singularização. de controle social, pela sociedade dania, respeitando-se as diferenças
Na perspectiva do Modo Psicos- civil, é pondo em prática disposi- e as diversidades”. (idem, idem)
social é de fundamental importân- tivos como os conselhos ‘gestores 3.1. Contextualizar o processo
cia que se tenha proposto a aten- de unidades de saúde’ e como os saúde/doença exige várias opera-
ção integral e a cidadania como
‘conselhos comunitários de saú- ções articuladas:
conceitos direcionadores, mas não
se pode perder de vista, por outro Primeira: o Modo Psicossocial
lado, o conjunto dos passos concre- preconiza uma definição de saúde
tos que ainda precisam ser dados NA PERSPECTIVA DO MODO numa perspectiva que a contextua-
para estar no exercício efetivo de lize em relação a uma concepção de
ações integrais em Saúde e de cida-
PSICOSSOCIAL É DE FUNDAMENTAL sociedade, entendida como conjun-
dania singularizada. Também não IMPORTÂNCIA QUE SE TENHA to de interesses contraditórios arti-
podemos esquecer que a integrali- culados, possíveis de serem descri-
PROPOSTO A ATENÇÃO INTEGRAL
dade, supondo o conceito de Terri- tos e compreendidos através do con-
tório, deve ocorrer simultaneamen- E A CIDADANIA COMO CONCEITOS ceito de Processo de Estratégia de
te em extensão e profundidade, su- DIRECIONADORES Hegemonia (PEH). Essa contextua-
perando as mazelas da Atenção es- lização, nos termos do PEH, obriga
tratificada por níveis (primário, se- a considerar a própria luta por saú-
cundário e terciário). de, tanto entendida como estado
de’, aliás, instrumentos já garan- das condições de vida, quanto en-
2. “II. A democratização do Es- tidos na constituição do país. Além tendida como reivindicação de cui-
tado com o controle da sociedade ci- disso devemos lembrar que as dados de saúde, como componente
vil é fundamento do direito à cida- metas de livre trânsito dos usuá- da própria definição de saúde.
dania e da transformação da legis- rios pelas instituições e de sua Segunda: no Modo Psicossocial
lação de saúde mental”. (idem:11) participação direta na instituição, define-se a especificidade da saúde
preconizadas pelo Modo Psicosso- mental, de tal modo que se visualiza
Esta diretriz, colocada em âm- cial, podem ser implementadas cri- a participação da dimensão sociocul-
bito de análise política da Forma- ando condições para que os con- tural como intrínseca ao próprio pro-
ção Social global é muito pertinen- selhos e comissões de usuários e cesso de subjetivação. Desse modo a
te, porém é necessário aproximá- população participem em esferas própria forma de atravessamento da
la das nossas esferas cotidianas da instituição relacionadas com o dimensão sócio-simbólica pode ser
de ação. Desse modo, ao preconi- poder decisório. parte constitutiva dos problemas que

18 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

tendem a apresentar-se como típicos Dizer que o exercício de cidada- prisma, não ignoramos as dramá-
ou preponderantes numa determina- nia é resolutivo e preventivo de ticas condições de vida dos usuári-
da conjuntura histórico-social. problemas psíquicos e mentais os do hospital psiquiátrico, cuja re-
pode ser muito pertinente, porém vogação há muito tarda.
Terceira, o Modo Psicossocial
isto está longe de significar que
inclui em sua caracterização a
prevenção em saúde mental e tra- 4. “IV. A vida exige uma aborda-
consideração da especificidade da
tamento psíquico em Saúde Cole- gem abrangente no campo da saú-
saúde mental com a inclusão da
tiva possam ser reduzidos ao exer- de mental, capaz de romper com a
própria noção de ‘crise’ como seu
cício de ações de cidadania, qual- usual e ainda hegemônica concep-
componente estrutural. Ou seja,
quer que seja a definição em que ção compartimentalizada do sujei-
dada a concepção de saúde que
se tome esta última. to, com as dissociações mente/cor-
inclui em sua definição a partici-
Disso resulta que o mais impor- po e trabalho/prazer ...”. Refletida
pação ativa do homem na busca
tante é especificar quais são as con- em: a) “Mudança no modo de pen-
de melhores condições de vida e
de melhor atendimento à saúde, e sar a pessoa com transtornos men-

dada a circunstância histórica de tais em sua existência-sofrimento,

que a sociedade liberal - ainda e não apenas a partir do seu diag-

mais gravemente nos contextos É IMPORTANTE SUBLINHAR, AINDA, nóstico”; b) “Diversificação das re-

chamados de capitalismos depen- ferências conceituais e operacionais,


QUE, AO TOMARMOS A QUESTÃO indo além das fronteiras delimita-
dentes - é conjunção de interes-
ses contraditórios, portanto um POR ESSE PRISMA, NÃO IGNORAMOS das pelas profissões clássicas em
processo que envolve luta e confli- saúde mental”; c) “uma ética da
AS DRAMÁTICAS CONDIÇÕES DE VIDA
to entre esses interesses, então só autonomia e singularização que
é possível conceber a saúde men-
DOS USUÁRIOS DO HOSPITAL PSIQUIÁTRICO, rompa com o conjunto de mecanis-
tal como um certo modo do posici- CUJA REVOGAÇÃO HÁ MUITO TARDA mos institucionais e técnicos em
onamento subjetivo e sociocultu- Saúde, que têm produzido, nos últi-
ral dos indivíduos na conjuntura mos séculos, subjetividades proscri-
conflitiva particular que os atra- tas e prescritas.” (idem:11-12)
vessa e pela qual são atravessados. dições das próprias práticas em
saúde mental, capazes de criar os Este talvez seja, entre todos os
3.2. Vincular o conceito de saúde meios de exercício de cidadania nas outros, o marco conceitual mais
ao exercício de cidadania, no âmbito relações das instituições e dos tra- complexo. Isto se deve ao fato de aí
das práticas em Saúde, é possível balhadores com os usuários e a po- se mesclarem, como veremos, as-
apenas em decorrência da própria pulação, e, ao mesmo tempo, mos- pectos teórico-técnicos e éticos:
contextualização da definição de saú- trar como essas condições podem
de nos termos acima propostos. Nes- estar em sintonia com a ética da ci- 4.1. Para mudarmos nossa ati-
te sentido também é importante não dadania singularizada e da produ- tude asilar, reformista e tecnicista
perder de vista algumas nuances in- ção de subjetividade singularizada, diante da pessoa com transtornos
cluídas na questão, que podem ser explicitadas no Modo Psicossocial. psíquicos ou mentais, e considerá-
capciosas se tomadas em sentido É importante sublinhar, ainda, que, la a partir de sua existência-sofri-
muito estrito ou muito genérico. ao tomarmos a questão por esse mento, faz-se necessário especificar

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 19


COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

uma concepção de subjetividade e concreta dos pacientes e do corpo so- sentir o sofrimento do ‘paciente’ e
de saúde psíquica que deixem cla- cial. Sobre essa separação artificial que, ao mesmo tempo, se transforme
ro qual é o lugar e o estatuto das se construiu o conjunto de aparatos sua vida concreta e cotidiana, que ali-

crises e dos diferentes desencadea- científicos, legislativos, administra- menta esse sofrimento (...) Por isso a
tivos (precisamente a ‘instituição’), festa, a comunidade difusa, a recon-
mentos problemáticos.
todos referidos à ‘doença’. É este con- versão contínua dos recursos insti-
É necessário dar às crises um junto que se pretende desmontar (de- tucionais, e por isso solidariedade e
lugar estrutural (depois de extirpa- sinstitucionalizar) para retomar o afetividade se tornarão momentos e
das de sua porção indesejável e evi- contato com aquela existência dos objetivos centrais... ( idem:30).
tável). As crises só terão uma aco- pacientes, enquanto existência-sofri-
mento. (idem, idem). Esta diretriz está perfeitamen-
lhida como efeitos estruturais e,
te em sintonia com o que, no Modo
portanto, também estruturantes, se O problema não é cura (a vida Psicossocial, se define em termos de
elas forem concebidas como inte- produtiva) mas a produção de vida implicação subjetiva e sociocultu-
grantes do modo de o sujeito se po-
ral dos indivíduos que recorrem às
sicionar em relação às conjunturas
instituições de saúde mental.
conflitivas (subjetivas e sociocultu-
rais) que os atravessam. Apenas
4.2. Para superarmos as referên-
numa concepção de saúde psíquica O MAL DA PSIQUIATRIA ESTÁ cias conceituais e operacionais,
assim formulada será possível con-
EM HAVER SEPARADO UM OBJETO para além das profissões clássicas,
siderar seriamente os indivíduos
serão necessárias pelo menos duas
como ‘existência-sofrimento’. FICTÍCIO, A ‘DOENÇA’, DA EXISTÊNCIA
operações articuladas.
Também já sabemos que esta
GLOBAL COMPLEXA E CONCRETA DOS
diretriz da II Conferência Nacional Primeira, será preciso rever e
de Saúde Mental sai explicitamen- PACIENTES E DO CORPO SOCIAL
modificar a concepção de saúde e
te do modelo italiano. Sobre isso, doença e dos meios de tratamento
Rotelli et al. (1990:28), afirmam decorrentes dos postulados psiqui-
que para considerar, de fato, o in- átricos, como detentores exclusivos
divíduo como existência-sofrimen- e de sentido, de sociabilidade, a uti- ou preponderantes do saber sobre
to é ‘preciso começar a desmontar lização das formas (dos espaços co- o psíquico e o humano neste con-
a relação problema-solução, renun- letivos) de convivência dispersa texto. Isso só poderá ser feito rela-
ciando a perseguir aquela solução (idem:30). tivizando a importância das con-
racional (tendencialmente ótima) Assim, o modelo italiano assen- tribuições desse campo de saber,
que no caso é a normalidade ple- ta-se em uma redefenição do tra- agregando-lhe de modo bastante
namente restabelecida’. balho terapêutico voltado para a re-
radical (não apenas como acessó-
O modelo italiano, do qual tam- constituição de pessoas enquanto
rios) uma série de conceitos e téc-
bém é tributário o Modo Psicosso- pessoas que sofrem, como sujeitos
nicas geradas no campo da Psica-
cial, proclama que (idem:33). Fala-se menos em cura
nálise e do Materialismo Históri-
do que em cuidado.
o mal da Psiquiatria está em haver co, além de contribuições da Filo-
separado um objeto fictício, a ‘doen- Cuidar significa ...fazer com que sofia (filosofia da Diferença), da
ça’, da existência global complexa e se transformem os modos de viver e Arte e da Estética.

20 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

A segunda operação deverá con- produção há pouca produção; onde ciais em sintonia com o agencia-
sistir numa crítica à divisão do tra- há subjetividade serializada falta mento dos interesses sociais subor-
balho tal qual ela está em ação des- subjetividade singularizada. dinados (intersubjetividade hori-
de o primeiro momento em que se Em suma, esta segunda opera- zontal singularizada).
congregaram diferentes disciplinas ção inclui a superação teórico-téc-
no campo do saber e das práticas nica e ideológica do modelo taylo- 4.3. Para sustentar na prática
em saúde mental. Essa crítica terá rista no processo de trabalho na uma ética da autonomia e da sin-
que passar pela demonstração saúde mental, e sua substituição gularização também será necessá-
(como via para a superação) de que por outro modo capaz de permitir rio realizar no mínimo outras duas
o modo da divisão do trabalho aí que o saldo mais precioso do pro- operações conjugadas.
atuante é o mesmo que vige no con- cesso de trabalho ( a implicação
A primeira diz respeito à auto-
texto da produção em geral e que subjetiva e a singularização) seja
nomia. A autonomia dos usuários
tem sido chamado de modo taylo- apropriado pelos trabalhadores e
só pode estar associada à autono-
rizado ou ‘linha de montagem’,
mia dos trabalhadores. A autono-
(Costa-Rosa, 1987:222-252).
mia dos trabalhadores e dos usuá-
Nesta linha de raciocínio é pos-
sível demonstrar que essa frag-
A ORGANIZAÇÃO DA INSTITUIÇÃO DE SAÚDE rios por sua vez associa-se à supe-
ração dos modos de existência e
mentação do cliente e da própria MENTAL COMO DISPOSITIVO SEGUNDO A
funcionamento das instituições que
subjetividade são os meios através MESMA LÓGICA DAS INSTITUIÇÕES TÍPICAS são características do Modo Asilar.
dos quais se reproduzem as rela- A organização da instituição de
ções sociais dominantes no contex-
DO MODO CAPITALISTA DE PRODUÇÃO
saúde mental como dispositivo se-
to social (as relações sociais de (MCP) PRODUZ UMA SÉRIE DE EFEITOS gundo a mesma lógica das institui-
produção e de poder). Ao mesmo
REFLETIDOS NA SUA ‘PRODUÇÃO’, QUE SÃO ções típicas do Modo Capitalista de
tempo será possível demonstrar Produção (MCP) produz uma série
que essas relações sociais domi- DESASTROSOS E ÀS VEZES LETAIS
de efeitos refletidos na sua ‘produ-
nantes (já conhecidas nossas com ção’, que são desastrosos e às ve-
as seguintes fisionomias: como zes letais. Há muito que teorizar e
trabalho intelectual e decisório pelos usuários e posto a seu servi- transformar a fim de driblar esse
versus trabalho de execução, e sob ço – ao contrário do que acontece intermediário necessário (já que
a forma da própria cisão fragmen- no Modo Asilar, em que é o inter- não dá para escapar neste momen-
tadora do processo de trabalho, por mediário, dono dos meios de pro- to histórico da intermediação da
exemplo, em termos da separação dução e das decisões do quê e como instituição nas práticas de Atenção)
entre momento diagnóstico e mo- produzir, quem dele se apropria. da relação dos trabalhadores de
mento terapêutico, mas não apenas) Convém não perdermos de vista que saúde mental e dos usuários. Mas
são alguns dos modos de expropria- a natureza desse excedente muda o melhor começo será, sem dúvida,
ção, tanto de trabalhadores quanto conforme o seu destinatário. Num reconhecer essa intermediação e
de usuários, do excedente precioso, caso dá-se como reprodução das desvendar-lhe a anatomia para des-
que é o equivalente da “mais-valia” relações sociais dominantes (sub- cobrir as operações que são neces-
no contexto das práticas em saúde jetividade capitalista), no outro dá- sárias para fazer esse intermediá-
mental. Ou seja, onde há muita re- se como recriação de relações so- rio trabalhar a favor da ética que

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 21


COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

preconizamos para nossas práticas medida, seja vivida como exercício. so aos usuários e da população do
de Atenção. Quanto a este aspecto Sem isto não há a menor plausibili- território a todos os espaços insti-
também propomos retomar as di- dade em propor a implicação subje- tucionais; criar modelos de recep-
retrizes de Modo Psicossocial em tiva e sociocultural do usuário e do ção e de escuta das primeiras de-
relação à instituição como disposi- trabalhador; sem estas parece-nos mandas, que sejam capazes de der-
tivo, e quanto ao modo de ela se que não pode haver terapêutica na rogar os atuais balcões e filas de
situar em relação à clientela e ao perspectiva da singularização. espera, construindo uma relação di-
território que lhe correspondem. Apenas poderá ser meta realis- reta que permita à instituição situ-
A segunda operação a respeito ta, na medida em que a instituição ar-se no imaginário e no simbólico
da singularização inclui justamen- seja capaz de desfazer seu imagi- como ‘sujeito-suposto-saber’, ou
te a nossa capacidade de criar uma nário repressivo e segregador (pa- seja, que lhe permita funcionar como
mínima sintonia (ainda que com trimônio que neste momento histó- primeiro interlocutor e até como te-
concessões táticas inevitáveis) en- rico não é exclusividade do Hospi- rapeuta, se for o caso, ali onde a ins-
tre a forma de conceber e atuar as tituição está acostumada a pensar e
definições de saúde e doença e dos agir apenas como ‘natureza morta’
meios de tratamento; a forma das ou, na melhor das hipóteses, como
relações intrainstitucionais; a for- A ATITUDE ÉTICA DE UMA PRÁTICA EM suporte das relações sociais da sua
ma da relação da Instituição como produção ali atualizadas.
SAÚDE MENTAL PODE SER DECIFRADA A
equipamento com seus usuários e Finalmente, a singularização só
com o território; e, finalmente, PARTIR DE UMA ANÁLISE DE SEUS EFEITOS poderá ser almejada como meta éti-
como se concebe o estatuto de nos- DE TRATAMENTO E CURA E TAMBÉM ca realista se formos capazes de
sas ações em termos de performan- superar o modo da ética vigente
ATRAVÉS DAS FINALIDADES SOCIOCULTURAIS
ce e de ética. nas práticas atuais do Modo Asi-
A meta da singularização, no PARA QUE CONCORREM ESSES EFEITOS lar. A atitude ética de uma prática
Modo só poderá ser almejada por em saúde mental pode ser decifra-
uma concepção do ‘objeto’ e dos da a partir de uma análise de seus
meios, e da relação dos dois, que efeitos de tratamento e cura e tam-
seja capaz de atender à especifici- tal Psiquiátrico). Isto, por sua vez, bém através das finalidades socio-
dade da subjetividade humana, e só será possível se os seus agentes culturais para que concorrem es-
que inclua a própria ação e autode- forem capazes de fazer prevalecer ses efeitos. A ética da singulariza-
terminação como constitutivas do ações que tendam a transformá-la ção terá que superar os modelos
homem. Ninguém trabalhará na em espaço privilegiado de interlo- funcionalistas das práticas que tra-
subjetividade à revelia do sujeito, cução para questões subjetivas e balham nos eixos da adequação do
a não ser para a produção de efei- socioculturais. Para isso será neces- indivíduo ao meio e do ego à reali-
tos de destituição subjetiva. sário que tais agentes sejam capa- dade, e no eixo da relação entre
Para ser almejada e alcançada, a zes de rever, de forma drástica, sua carências e suprimentos da mais
singularização dependerá de que a representação da sintaxe e da se- variada natureza.
forma das relações sociais e huma- mântica em termos lingüísticos e Essa superação só poderá ser
nas na instituição parta da horizon- em termos dos conjuntos do arqui- alcançada na perspectiva de uma
talização como meta e, em alguma tetônico e do mobiliário; abrir aces- prática que seja capaz de propor,

22 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

como efeito principal das suas átrica. Utilizando-se da mesma es- Primeira inflexão: as críticas ao
ações de tratamento, a implicação tratégia do Movimento Sanitário, a manicômio e à sua lógica. Esta é
subjetiva como meta radical, na re- Reforma Psiquiátrica instituciona- identificada a do Estado autoritá-
lação do sujeito com o desejo (por lizou-se enquanto política oficial (se rio naquele momento em uma de
oposição ao ego-realidade) e na re- é que, pelo menos desde os anos suas faces mais evidentes; nesse
lação carecimento-Ideais (por opo- setenta, em algum momento deixou momento também o modelo econô-
sição à carência-suprimento); dese- de ser política oficial, ao menos no mico excludente é colocado em pa-
jo e carecimento considerados como discurso). Na ‘guerra de posições’ ralelo com o paradigma excludente
o que mais essencialmente define no interior da construção de um da saúde mental e vice-versa. Até
a especificidade do homem. processo de hegemonia, o Movi- este momento, as lutas contra o
mento da Reforma Psiquiátrica con- hospital psiquiátrico se mesclam
quistou territórios no interior do inteiramente com as lutas sociais,
O PROCESSO DE ESTRATÉGIA aparelho estatal. podendo-se dizer que elas se auto-
DE HEGEMONIA NA SAÚDE MENTAL: reforçam. Até aqui parecia reagir-
AVANÇOS E RETROCESSOS se contra um adversário que insis-
tia em ficar impassível, embora
Muitas das propostas apresen- para olhos mais avisados fosse ine-
tadas nas duas Conferências se con- quívoco tratar-se sempre das ações
cretizaram, como, por exemplo, a
A II CNSM da contraface hegemônica que, na
criação de lei federal, leis estadu- CONSOLIDOU TAMBÉM seqüência, ficariam mais evidentes.
ais e municipais, que incorporaram A CONQUISTA DOS Segunda inflexão: os movimen-
as propostas apresentadas no rela- tos da Reforma Psiquiátrica se am-
ESPAÇOS INSTITUCIONAIS
tório e a criação da Comissão Naci- pliam, ganhando um novo eco so-
onal de Reforma Psiquiátrica que cial. Agora pode se dizer que a pró-
teve, posteriormente, a sua deno- pria sociedade se envolve na luta
minação mudada para Comissão contra o manicômio e sua lógica;
Nacional de Saúde Mental. Nesse firma-se o Movimento da Luta An-
sentido, o relatório da II CNSM Finalmente, poderia ser útil subli- timanicomial, cujo lema, ‘por uma
apontou para a consolidação das nharmos que esse processo de lutas sociedade sem manicômios’, ajuda
conquistas e para onde avançar. Os e conquistas pontuado pelas duas a definir com clareza um preceito
avanços, entretanto, parecem ter CNSM transcorre atravessado por um central das ações dos interesses até
sido mais difíceis num dos eixos movimento de sinal contrário, que se aí subordinados: os trabalhadores
centrais e mais importantes da luta: processa, neste caso, muito mais das instituições de saúde mental e
a Lei Paulo Delgado. como reação às ações da Reforma seus usuários. Na mesma seqüên-
A II CNSM consolidou também Psiquiátrica, do que como movimen- cia vão se firmando várias experi-
a conquista dos espaços institucio- to deliberado capaz de desfraldar sua ências e práticas, exercitando no-
nais. A posição oficial do aparato própria bandeira. No transcurso his- vas lógicas e demonstrando sua ca-
estatal estava alicerçada pelas di- tórico dessa luta podemos ver dese- pacidade de substituir o hospital
retrizes propostas e pelos conceitos nhadas algumas inflexões maiores psiquiátrico; firmam-se novos sig-
do Movimento da Reforma Psiqui- que vale a pena sublinhar. nificantes sociais antimanicômiais:

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 23


COSTA-ROSA, A. da, LUZIO, C. A. & YASUI, S.

Centros de Atenção Psicossocial Quanto a esta terceira inflexão 6. Criação de dispositivos que ga-
(CAPS) e Núcleos de Atenção Psi- nas lutas pela Reforma Psiquiátri- rantam a transferência dos re-
cossocial (NAPS). Assistimos a al- ca, às reações contra-hegemônicas, cursos financeiros das interna-
gumas manifestações oficiais, do tipo que nos é familiar, devemos ções para os serviços substitu-
mesmo que ainda tímidas no sen- acrescentar outras de ordem micro- tivos em saúde mental.
tido de subtraírem espaço e pode- física; uma espécie de patrimônio
7. Discussão sobre a revisão da
rio ao hospital psiquiátrico. Aqui sinistro herdado da constância do
formação profissional, com pro-
as forças contra-hegemônicas mos- lugar de subordinado no Processo
posta para a reforma curricular
tram sua face bem configurada; de Estratégia de Hegemonia.
dos profissionais da saúde con-
força que poderíamos flagrar na siderando os parâmetros da re-
sua maior visibilidade se nos deti- forma psiquiátrica.
PONTOS PARA UMA PROPOSTA
véssemos na observação dos avan-
DE AGENDA DE DISCUSSÃO. 8. Construção de espaços de aco-
ços e retrocessos de uma das pe-
lhimento e cuidado, flexíveis e
ças mais notáveis da luta antima-
1. Refletir sobre as atuais estra- que façam uma ponte com ou-
nicomial: a Lei Paulo Delgado. Pa-
tégias de fortalecimento do tros setores, principalmente as-
rece-nos que nada poderia ser mais
movimento de usuários e pro- sistência social, educação, cul-
indicativo da intensidade e virulên-
por avanços. tura. Trabalho na perspectiva
cia das forças contra-hegemônicas
2. Avançar nas propostas de acom- de uma rede intersetorial.
à Reforma Psiquiátrica do que a di-
panhamento e avaliação da rede
ferença entre o que se propunha
de serviços substitutivos por
como objetivos dessa lei e o que se
comissões paritárias de usuári- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
conseguiu transformar em Lei.
os e gestores e trabalhadores.
Terceira inflexão: podemos ver
COSTA-ROSA, A., 1987. Saúde Mental
esboçado um momento, de aparên- 3. Discutir o surgimento de uma
Comunitária: análise dialética de
cia mais serena, em que se vão se- nova demanda – dependência
um movimento alternativo. Tese
dimentando novos conceitos e no- química – que apresenta uma
de mestrado, São Paulo: Instituto
vos significantes, novas práticas e interface com assistência soci-
de Psicologia. Universidade São
novos movimentos; momento em al e judiciária.
Paulo-USP.
que se destacam os movimentos de 4. Discutir a demanda dos usuá-
usuários, dentro da perspectiva da rios – ex-internos – que acabam C OSTA -R OSA , A., 2000. O Modo

participação popular. Também ve- desassistidos sofrendo com Psicossocial: um paradigma das

mos tentativas cada vez mais fre- processo de marginalização. práticas substitutivas ao Modo

qüentes de teorização das novas Asilar. In: AMARANTE, P. (Org.).


5. Discutir a transinstitucionaliza-
práticas e de sua lógica teórico-téc- Ensaios – Subjetividade, Saúde
ção – criação de outras institui-
nica e ética, a ponto de visualizar, Mental e Sociedade. Rio de
ções menores de segregação –
sem maiores dificuldades, a perti- Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 141-168.
em que são abandonadas as es-
nência e a possibilidade de novos truturas asilares mas não a pos- R OTELLI , F. et al., 1990. Desins-
serviços na perspectiva de uma te- sibilidade da cronicidade e de titucionalização. São Paulo:
rapêutica cidadã. medicalização da demanda. HUCITEC, 1990, p. 17-59.

24 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001


As Conferências Nacionais de Saúde Mental e as Premissas do Modo Psicossocial

BRASIL. Ministério da Saúde, 1994.


Relatório Final da Segunda
Conferência Nacional de Saúde
Mental. Brasília: Centro de
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C OSTA -R OSA , A., 2000. O Modo


Psicossocial nos tratamentos
psíquicos na Saúde Coletiva,
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dade de Ciências e Letras de
Assis-UNESP. (prelo).

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Conferência Nacional de Saúde
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YASUI , S., 1999. A Construção da


Reforma Psiquiátrica e seu
contexto histórico. Dissertação
de Mestrado, Assis: Faculdade
de Ciências e Letras- UNESP, p.
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 12-25, maio/ago. 2001 25


AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.
ARTIGOS ORIGINAIS

A constituição de novas práticas no campo da Atenção


Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma
Psiquiátrica no Brasil
The forming of new practices in the Psychiatric-social care: review of two pioneer
projects in the Psychiatric Reform in Brazil

RESUMO
Paulo Duarte de Carvalho Amarante1
Eduardo Henrique Guimarães Torre2 O presente artigo tem como objetivo analisar documentos históricos de dois
serviços pioneiros no âmbito da Reforma Psiquiátrica no Brasil num contexto
específico de transformações no campo da saúde mental. Busca-se captar os
principais conceitos e dados históricos contidos nos projetos originais a fim de
entender a constituição deste novo campo de intervenção em saúde mental e de
estudar a produção teórica que dá base às novas formas de atenção e cuidado
aos sujeitos em sofrimento mental e situações de crise. Também é destacada a
necessidade de discussão sobre as portarias ministeriais que instituíram a
regulamentação dos novos serviços. Neste sentido, as reflexões aqui presentes
podem servir como subsídio para o trabalho de técnicos, profissionais,
pesquisadores e gestores na produção de novos conhecimentos, políticas e ações
de saúde mental no momento atual de implementação da Reforma Psiquiátrica.

PALAVRAS-CHAVE: atenção psicossocial; serviços substitutivos; Modelo Assistencial


em Saúde Mental

ABSTRACT
This paper aims to review historical documents from two pioneer services of
the Psychiatric Reform in Brazil within a specific context of transformations in
Mental Health. We seek to capture the main concepts and historical data found
in the original projects so as to understand the development of this new field on
1
Médico, Doutor em Saúde Pública,
Pesquisador Titular da ENSP/FIOCRUZ Mental Health intervention and to study the theoretical production that supports
new ways of providing attention and care to individuals in psychiatric suffering
2
Psicólogo, Especialista em Saúde
Mental, Mestrando em Saúde Pública na or crisis situations. We also highlight the need for discussion over ministerial
ENSP/FIOCRUZ decrees which regulate the new services. In that way, the reflections put forward
here can be used as a source of work for technicians, professionals, researchers
and managers in producing new knowledge, politics and Mental Health actions
Endereço para correspondência:
as the Psychiatric Reform is implemented today.
Av. Brasil, 4036/506
CEP 21040-361 – Manguinhos – RJ. KEY WORDS: psychiatric-social care; substitutive services; assistance model in
e-mail: amarante@ensp.fiocruz.br mental health

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A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil

INTRODUÇÃO Neste contexto de transforma- pla sobre os novos serviços de saú-


ções e eventos sociais, políticos, téc- de mental no Brasil, indicada na
A partir da segunda metade dos nicos e ideológicos, são promulga- bibliografia ao final deste texto.
anos 80, no Brasil, o movimento de das as Portarias Ministeriais 189/91 O Centro de Atenção Psicossocial
transformação no campo da saúde e 224/92, que instituem novos gru- Prof. Luiz da Rocha Cerqueira e o
mental passa por importantes mu- pos de procedimentos nas tabelas Núcleo de Atenção Psicossocial de
danças, caracterizadas pelo surgi- dos Sistemas de Informações Hos- Santos são pioneiros enquanto ser-
mento de novos serviços num con- pitalares (SIH) e Sistemas de Infor- viços alternativos à internação e ao
texto histórico, político e conceitu- mações Ambulatoriais (SIA)/ Siste- tratamento psiquiátricos convencio-
al emergente. A realização de duas ma Único de Saúde (SUS), viabili- nais. Apesar de existirem outros ti-
Conferências Nacionais de Saúde zando a criação de muitos novos ser- pos de dispositivos alternativos à
Mental em 1987 e 1992, somada à viços de atenção em saúde mental. internação psiquiátrica (como hos-
inscrição da proposta do Sistema Assim, torna-se essencial refletir so- pitais-dia, pensões protegidas, etc.),
Único de Saúde (SUS) na Carta Cons- alguns talvez até mesmo anteriores
titucional de 1988, abrem novos ca- à criação do CAPS e do NAPS, os pro-
minhos para a saúde pública no Bra- jetos destes serviços foram escolhi-
sil da “redemocratização”. Junto a
DENTRE ESTAS NOVAS EXPERIÊNCIAS, dos como objeto de análise deste es-
esses movimentos, profissionais da DESTACAM-SE A CRIAÇÃO DO CENTRO DE tudo devido ao fato de tais experiên-
saúde mental, articulados por todo
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL (CAPS) PROF. cias serem consideradas referências
o país em torno do lema “Por uma para se pensar o contexto atual da
sociedade sem manicômios” (ado-
LUIS DA ROCHA CERQUEIRA, EM MARÇO problemática existente no campo da
tado no II Congresso Nacional de DE 1987 EM SÃO PAULO, E DO saúde mental. Sabemos que os ser-
Trabalhadores de Saúde Mental em viços evoluíram, incorporaram novas
PRIMEIRO NÚCLEO DE ATENÇÃO
dezembro de 1987), promovem dis- questões e sofreram transformações,
cussões e produzem uma série de PSICOSSOCIAL (NAPS) EM SANTOS mas seus projetos de origem marca-
novas experiências em suas inter- ram um certo campo de intervenção,
venções junto à loucura e ao sofri- e estas experiências primárias vêm
mento psíquico. bre os chamados “novos serviços”, ainda influenciando a criação de
Dentre estas novas experiênci- considerando fazerem parte de um novos serviços, na medida em que
as, destacam-se a criação do Cen- processo importante na construção serviram de referência para as refe-
tro de Atenção Psicossocial (CAPS) de uma nova praxis da área. ridas portarias ministeriais.
Prof. Luis da Rocha Cerqueira, em A análise dos projetos não visa
março de 1987 em São Paulo, e do HISTÓRICO estabelecer uma comparação entre
primeiro Núcleo de Atenção Psicos- os serviços, mas captar as singula-
social (NAPS) em Santos, no bojo Este artigo foi escrito a partir da ridades e especificidades dos mes-
das transformações mais gerais reformulação de trabalho produzi- mos, procurando identificar suas
ocorridas naquele município no do anteriormente em colaboração bases teóricas, suas estratégias e
âmbito da saúde mental, após a com outros autores (Amarante et al., tendências, com o objetivo de ser-
histórica intervenção na Clínica An- 1999). Este, por sua vez, surge no vir de instrumento para o planeja-
chieta em 03 de maio de 1989. âmbito de uma pesquisa mais am- mento e invenção de novas possibi-

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AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.

lidades para muitas outras experi- projeto do Centro de Atenção Psicos- tificar conceitos e noções que pa-
ências que venham a surgir. Cum- social Prof. Luiz da Rocha Cerquei- recem ser próprios à equipe, e ter
pre ressaltar que, para um maior ra (Coordenadoria de Saúde Mental, nascido da própria experiência do
aprofundamento acerca destes ser- 1987), criado em São Paulo; e o tex- serviço e de sua reflexão sobre ela.
viços pioneiros existem as disserta- to de apresentação do Núcleo de Além disso, se faz necessário aten-
ções de Goldberg (1992), A doença Atenção Psicossocial (Nicácio et al., tar ao fato de que tais serviços evo-
mental e as instituições – a perspec- 1990), criado em Santos em 1989. luíram radicalmente em determina-
tiva de novas práticas, e Yasui (1999) Embora os documentos tenham dos aspectos. O objetivo da presen-
sobre o CAPS, e Nicácio (1994), O sido elaborados com objetivos de te análise não é, mais uma vez,
processo de transformação da saú- divulgação ou de tramitação admi- compará-los, mas subsidiar o de-
de mental em Santos: desconstrução nistrativa, e apesar de oferecerem bate sobre a construção de novas
de saberes, instituições e cultura, algumas limitações enquanto ins- formas de atenção e cuidado no
sobre o NAPS, dentre outras referên- trumentos de análise, possuem campo da saúde mental.
cias, algumas das quais indicadas
nas referências bibliográficas.
O PROJETO ORIGINAL DO CAPS

METODOLOGIA E ADVERTÊNCIAS ANALISAMOS OS DOCUMENTOS REFERENTES O CAPS é inaugurado em março

AOS PROJETOS ORIGINAIS DO CENTRO DE de 1987, em meio a um processo de


No presente trabalho, utilizamos redemocratização do país e num
a análise de conteúdo que consiste
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL PROF. LUIZ DA contexto de transição de uma fase
em “um método de tratamento e ROCHA CERQUEIRA E DO NÚCLEO DE sanitarista (de reformas que tinham
análise de informações, colhidas por como princípio a inversão de uma
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL DE SANTOS
meio de técnicas de coleta de dados, política nacional de privatizante
consubstanciadas em um documen- para estatizante e a implementação
to” (Chizzotti, 1995, 98). Analisa- de serviços extra-hospitalares), para
mos os documentos referentes aos a chamada “desinstitucionalização”
projetos originais do Centro de Aten- conceitos e noções que lhes confe- ligada, por um lado, à idéia de de-
ção Psicossocial Prof. Luiz da Ro- rem representatividade. A nature- sospitalização (influência do mode-
cha Cerqueira e do Núcleo de Aten- za destes deve ser levada em con- lo americano), e por outro à idéia
ção Psicossocial de Santos, desta- sideração, sendo importante ressal- de transformação cultural (influên-
cando “unidades de registro” como tar que o documento do CAPS é um cia do movimento italiano). O pro-
palavras, expressões e conceitos que projeto escrito antes da montagem jeto, de autoria da Coordenadoria de
possibilitam analisar o conteúdo de do serviço, com o objetivo de obter Saúde Mental, define a estrutura de
sua mensagem, além de “unidades recursos para sua implementação, seu funcionamento e a clientela pri-
de contexto” (Minayo, 1994, 75), portanto, sem uma preocupação de oritária a que se propõe a atender,
procurando situá-los dentro de um fundamentação teórica; enquanto descrevendo-a como aquela “soci-
contexto específico. que o documento do NAPS é um almente invalidada”, com “formas
Os projetos analisados são do- texto preparado a partir da criação diferentes e especiais de ser”, com
cumentos de natureza distinta: o do serviço, no qual podemos iden- “patologias de maior complexida-

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A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil

de”, de “pessoas que tenham enve- na, tendo como núcleo organizador culturais. O serviço deve buscar um
redado por um circuito de cronifica- a assistência, a reflexão sobre suas “cuidado personalizado” a quem
ção”, de “pessoas com graus variá- práticas e a transmissão de suas ex- atende, através de um “tratamento
veis de limitações sociais” e com periências a outros profissionais. de intensidade máxima”, funcionan-
“graves dificuldades de relaciona- Trata-se de uma dinâmica docente- do como um núcleo de reflexão dos
mento e inserção social” (Coordena- assistencial que pretende uma dupla serviços, de sistematização de infor-
doria de Saúde Mental, 1987, 01). instrumentalização: a dos profissio- mações e experiências, gerando uma
Tratando-se de um documento nais que atuam neste campo, a fim tecnologia capaz de ser transmitida
de natureza eminentemente admi- de que possam lidar melhor com as aos profissionais de saúde mental,
nistrativa, não cita explicitamente “patologias de maior complexidade” realizando investigações epidemio-
autores de referência, nem define (idem: 01), e a dos usuários, para a lógicas, clínicas e institucionais na
um marco teórico específico. vida em sociedade. A assistência é construção desta rede de serviços
O projeto define o CAPS como “es- definida como de atenção integral preferencialmente comunitária.
trutura intermediária” entre o hospi-
tal e a comunidade, que oferece às
pessoas “um espaço institucional que O PROJETO ORIGINAL DO NAPS
buscasse entendê-las e instrumenta-
O PROJETO DEFINE O CAPS COMO
lizá-las para o exercício da vida civil”. “ESTRUTURA INTERMEDIÁRIA” ENTRE O O primeiro Núcleo de Atenção
Neste contexto, pensa-se, portanto,
HOSPITAL E A COMUNIDADE, QUE OFERECE Psicossocial nasce em setembro de
numa rede assistencial externa inter- 1989, na Zona Noroeste de Santos,
mediária, não-cronificante e não-bu-
ÀS PESSOAS “UM ESPAÇO INSTITUCIONAL vinculado à Secretaria de Higiene e
rocratizada, ligada à sociedade e à QUE BUSCASSE ENTENDÊ-LAS E Saúde, no contexto do processo de
comunidade, quando é ressaltada a transformação da Saúde Mental que
INSTRUMENTALIZÁ-LAS PARA O
cronificação do hospital e a burocra- se desenrola em Santos, a partir da
tização dos serviços externos. O CAPS EXERCÍCIO DA VIDA CIVIL” intervenção municipal na Casa de
corresponde, então, a um “filtro de Saúde Anchieta.
atendimento entre o hospital e a co- O projeto foi elaborado após a
munidade com vistas à construção de (no sentido psicossocial), personali- criação do serviço, e fundamenta-
uma rede de prestação de serviços zada, exercida através de “progra- se em determinados autores, a co-
preferencialmente comunitária” mas de atividades psicoterápicas, meçar por Basaglia, do qual é to-
(idem: 02), de cunho desburocratizan- socioterápicas de arte e de terapia mada a noção de utopia para pen-
te e de caráter multiprofissional, for- ocupacional” (idem: 02), dentro de sar a ação prática de transformar a
mando uma “estrutura de continên- um enfoque “multidisciplinar” e realidade, entendendo que “abrir o
cia multiprofissional que busque es- “pluri-institucional”. A doença men- manicômio não é apenas abrir as
timular múltiplos aspectos necessá- tal deve ser pensada no campo da suas portas, mas ao abri-las, abrir
rios ao exercício da vida em socieda- saúde coletiva, levando-se em conta as nossas cabeças para a realidade
de respeitando-se a singularidade dos os contextos micro e macro social, de vida dos pacientes” (Basaglia
sujeitos”. (idem, ibidem). como a família, o trabalho e seu con- apud Nicácio et al., 1990, 02).
O serviço propõe um funciona- texto histórico, tentando produzir O NAPS tem como eixo “a des-
mento de 8 h/dia, 5 dias por sema- uma reinterpretação de elementos construção do manicômio”, produ-

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AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.

zindo um novo projeto de Saúde ou o psíquico, mas reinscrevendo-o tar o real acesso ao serviço e do ser-
Mental que se constitua numa ins- no corpo social’.” (idem: 02-03). viço às pessoas que implica superar

tituição que não segregue e não ex- a lógica da assistência como repara-
Este desafio, acredita-se, é o da
clua. Tendo o manicômio como lu- ção do dano para a lógica de produ-
construção de algo que não é dado, ção de saúde (...)” (idem: 03).
gar de violência, sua desconstrução
o que requer uma certa abertura no
implica uma ética que permeia o tra- Outra estratégia consiste na
enfrentamento de incertezas e con-
balho. Este é um ponto-chave no flitos, além da necessidade de envol- abertura do debate aos cidadãos, no
NAPS que visa superar a lógica da vimento de diferentes atores sociais. dialogar com a comunidade através
assistência em direção à lógica da Algumas estratégias da estrutu- das associações, Sindicatos, Igrejas.
produção de saúde: “A ética, en- ra e ação do NAPS são considera- Este debate, “não mais compreen-
quanto o buscar realizar pratica- das fundamentais para a realiza- dido como de domínio exclusivo dos
mente a utopia é seu maior impul- ção de seus objetivos. A estratégia técnicos”, deve abordar
so; utopia como ação prática de
“(...) o significado social do manicô-
transformar a realidade (Basaglia) mio e de uma instituição aberta (...),
e a clareza de que a negação do as diferentes formas de compreender a
manicômio como lugar de violência loucura, sobre a exclusão social, a ques-
não se realiza no sonho das idéias” MAIS UMA ESTRATÉGIA NA AÇÃO DO NAPS tão da cidadania. Este é um trabalho

É A DE TER UM PROJETO TERAPÊUTICO, QUE


(Nicácio, 1990: 02). constante (...) na prática concreta na

A partir de Rotelli, outro autor região: são as visitas domiciliares, a


ENVOLVE O “CUIDAR DE UMA PESSOA”, conversa com a vizinhança quando
referido no texto, entende-se que, ao
contribuir com um processo de ação “FAZER-SE RESPONSÁVEL”, “EVITAR O alguém está em crise, o diálogo no lo-
cal de trabalho (...)” (idem: 03-04).
e reflexão para a transformação da ABANDONO”, “ATENDER À CRISE” E
estrutura manicomial, possibilita-se Mais uma estratégia na ação do
uma nova e complexa realidade no
“RESPONSABILIZAR-SE PELA DEMANDA” NAPS é a de ter um projeto terapêu-
campo da saúde mental: tico, que envolve o “cuidar de uma
pessoa”, “fazer-se responsável”,
“(...) sair do manicômio (e esta saí-
“evitar o abandono”, “atender à cri-
da não é aquela triunfal, românti- de regionalização, compreendida se” e “responsabilizar-se pela de-
ca, mas um processo cotidiano, téc- como o ponto de partida para a manda”, através de diferentes ins-
nico, político, cultural, legislativo)
mudança de perspectiva, visando trumentos técnicos:
abre um campo de possibilidades e
uma ação de transformação cultu-
como tal incerto, rico, contraditório, “O ‘cuidar de uma pessoa’, ou
ral, e não como uma divisão admi-
por vezes extremamente difícil, novo, seja a construção do projeto terapêu-
nistrativa da cidade:
e belo (...) A complexidade desta tico implica a existência daquele su-
nova realidade implica instituições “(...) ou seja, o trabalho na região, jeito para além da remissão do sin-
em movimento, (...) em ‘aceitar o conhecer as necessidades, a deman- toma, reparação do dano ou o olhar
desafio da complexidade dos múlti- da, o percurso da demanda psiqui- para a doença. (...) Este projeto co-
plos planos da existência não redu- átrica, conhecer e intervir nas orga- loca em ação os diferentes instru-
zindo o sujeito à doença ou a comu- nizações institucionais que tecem mentos técnicos de conhecimento: a
nicação ‘perturbada’, ou e apenas a esta Região, no sentido do NAPS ser medicação, o estar junto, os grupos,
pobre, ou autonomizando o corpo e um ponto de referência, de possibili- a reunião de familiares, o atendi-

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A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil

mento individual, o atendimento paço coletivo de ação e reflexão das mismo da prática, serve de inspi-
familiar, a assembléia, o grupo de práticas profissionais, do confronto, ração para a proposta de dois ei-
mulheres, os núcleos de trabalho, o das ‘crises’ e do pensar e repensar o xos fundamentais de discussão:
passeio na cidade e na praia, a visi- próprio serviço. (...) A transformação
ta domiciliar.” (idem: 04). do papel do técnico, as crises gera- “ – a construção de uma política de

das na construção de um serviço saúde mental a partir de experiênci-


O projeto terapêutico requer res- as locais e de transformação do inte-
aberto, o se perceber sem as conheci-
ponsabilidade pela demanda, que das grades, chaves e muros na rela- rior das estruturas institucionais em
tem dois aspectos. Primeiro, a não- ção com a loucura, são alguns dos particular o manicômio;”
separação entre prevenção/trata- temas nas reuniões diárias da equi-
mento/reabilitação. Segundo, o pe. (...) além dos prontuários de cada “ – no desenvolvimento desse proces-
atendimento à crise, que não se li- paciente, escreve-se no ‘livrão’, de so a construção de estruturas exter-
mita ao atendimento das emergên- forma a ter informações mais imedi- nas que busquem ser totalmente subs-

cias que chegam ao Pronto-Socor- atas, registro do que é necessário ser titutivas à internação.” (idem: 08-09)

ro, mas também no NAPS e nas ca-


sas. Em síntese, “(...) a presença e
CONSIDERAÇÕES FINAIS
intervenção ativas do serviço em
diferentes momentos e situações AS PORTARIAS
A análise dos projetos dos dois
numa ação de transformação cul- 189/91 E 224/92 serviços demonstra, por um lado,
tural” (idem,ibidem).
DO MINISTÉRIO DA SAÚDE uma riqueza de concepções e uma
É a partir destes princípios que
multiplicidade de estratégias no
o NAPS pretende tornar-se um ser- INSTITUÍRAM E REGULAMENTARAM
enfrentamento do modelo assis-
viço substitutivo ao modelo mani- A ESTRUTURA DOS NOVOS tencial psiquiátrico tradicional.
comial: “Esta compreensão e a real
SERVIÇOS EM SAÚDE MENTAL Por outro lado, existem várias
possibilidade do atendimento à cri-
distinções entre os mesmos, o
se são fundamentais para as insti-
que vem a indicar sua natureza
tuições que se pretendem ser subs-
diversa. Tanto a multiplicidade
titutivas ao manicômio.” (idem: 05-
feito, do que está sendo realizado, do conjunto de suas contribui-
06). Com fundamento nesta estra-
uma comunicação informal; as reu- ções, quanto suas diferenças, fa-
tégia, a proposta do NAPS é de fun-
niões e o ‘livrão’ são a base da orga- zem de tais projetos documentos
cionamento integral, isto é, de fun-
nização do trabalho. (...) Talvez a fra- fundamentais de referência para
cionamento de 24 horas, 07 dias se que mais expresse todo esse pro- auxiliar a reflexão e a constru-
na semana, com um conjunto de re- cesso seja a de Rotelli, dos profissio-
ção das novas experiências no
cursos que incluem a existência de nais que ‘aprendem a aprender’; e
campo da Saúde Mental.
seis leitos. fundamentalmente que as relações de
As portarias 189/91 e 224/92 do
A transformação da equipe (as- poder e de saber possam ser coloca-
Ministério da Saúde instituíram e re-
sim como o conceito de equipe) é das em discussão (...)” (idem: 06)
gulamentaram a estrutura dos novos
outra estratégia importante:
Gramsci é o outro autor citado serviços em saúde mental. Embora
“A equipe é aqui compreendida no texto, do qual a premissa con- tenham viabilizado a construção de
como o trabalhar junto, como o es- tra o pessimismo da razão o oti- muitos novos serviços, produziram

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AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.

uma homogeneização das experiên- to das transformações ocorridas na Neste sentido, acreditamos existirem
cias originais, uma vez que as pio- área, que buscam construir não uma algumas questões e noções de base
neiras, porém distintas, experiências modernização ou humanização do que necessitem de maior debate, a
do CAPS e do NAPS, são considera- modelo anterior, mas uma superação fim de oferecerem um aprofunda-
das sinônimos em tais portarias . 1
efetiva do mesmo. Estes têm sido, ao mento e uma clareza acerca da pro-
Na medida em que a utilização menos, os princípios explícitos do blemática dos novos serviços, num
dos “nomes próprios” de ambas as amplo e plural movimento no cam- contexto de construção do campo da
instituições tornou-as modelos ou po denominado de antimanicomial saúde mental e suas práticas.
modalidades de serviços, e ainda, ou de reforma psiquiátrica. Mais importante que os termos
modelos idênticos, perdeu-se a plu- Serem denominados de “novos” são os seus significados. Por exem-
ralidade das questões por elas intro- não garante que os serviços de saú- plo, ocorre que sob a denominação
duzidas. Uma das contradições im- de mental criados sejam mediadores “antimanicomial”, são realizadas
portantes está no fato de que, em- e operadores de novas formas de in- práticas bastante conservadoras, e
bora esteja previsto o funcionamen- sob a de “Reforma Psiquiátrica”
to de NAPS/CAPS por 24 horas, sua muitas inovadoras. O fundamental
definição é a de serviço intermediá- é precisamente esta clareza com que
rio entre o regime ambulatorial e a OS DOCUMENTOS ANALISADOS DESENHAM os princípios são postos em discus-
internação hospitalar, não sendo uti- são, assim como as estratégias cons-
SERVIÇOS DISTINTOS QUE SURGIRAM DA
lizado o conceito de serviço substi- cientes que visam, e tornam possí-
tutivo introduzido pelo Núcleo de CRÍTICA PRÁTICO-TEÓRICA AO TRATAMENTO vel ou não, a superação do modelo
Atenção Psicossocial de Santos. tradicional. A reflexão sobre os no-
PSIQUIÁTRICO CONVENCIONAL, NÃO
Os documentos analisados dese- vos serviços só é realizada de forma
nham serviços distintos que surgi- CORRESPONDENDO A QUALQUER TIPO DE consistente quando se coloca um
ram da crítica prático-teórica ao tra- PRÁTICA EM SAÚDE MENTAL questionamento dos princípios que
tamento psiquiátrico convencional, norteiam a relação com a loucura. É
não correspondendo a qualquer tipo a partir deste aspecto central que a
de prática em saúde mental, a prin- inovação pode ser analisada. Isso
cípio, até então desenvolvida no Bra- tervenção no trato com a loucura ou envolve, portanto, uma abordagem
sil. A presente preocupação com este que sejam substitutivos do modelo histórica que oriente o enfrentamen-
tipo de análise se deve à grande im- manicomial. “Novo” implica certa to do processo de desconstrução do
portância desses serviços no contex- direção, que deve ser explicitada. manicômio e que funcione para ana-

1
A Portaria 189/91 introduz dois códigos de NAPS/CAPS na Tabela SIA/SUS, um para serviço de um turno e outro para serviço de dois turnos.
A Portaria 224/92 define os NAPS/CAPS como “unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com uma população adscrita definida pelo
nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos
de 4 horas, por equipe multiprofissional”, e que “podem constituir-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas
à saúde mental, considerando sua característica de unidade local e regionalizada. Atendem também a pacientes referenciados de outros
serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. Deverão estar integrados a uma rede descentra-
lizada e hierarquizada de cuidados em saúde mental”. E ainda: “São unidades assistenciais que podem funcionar 24 horas por dia, durante os
sete dias da semana ou durante os cinco dias úteis, das 8:00 às 18:00 h, segundo definições do Órgão Gestor Local. Devem contar com leitos
para repouso eventual”. (MS, PM 224;91). Grifo nosso.

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A Constituição de Novas Práticas no Campo da Atenção Psicossocial: análise de dois projetos pioneiros na Reforma Psiquiátrica no Brasil

lisar a reprodução do modelo psiqui- sentido mais precário do termo, e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
átrico, risco considerável com o qual sim rupturas. E como rupturas fun-
todos os novos serviços lidam ao ten- damentais entende-se, aquelas ope- AMARANTE, P. D. de C. et al., 1999.
tar se constituir. Para o trabalho no radas com: Metamorfose ou Invenção: notas
campo da saúde mental, hoje, estas sobre os novos serviços de saúde
• método epistêmico da psiquiatria,
idéias são decisivas. mental no Brasil. In: Clio-Psyché
centrado nas ciências naturais;
O objetivo dos novos serviços, – Histórias da Psicologia no Brasil.
caso procurem inscrever-se no pro- • conceito de doença mental, en- Jacó-Vilela, A. M., Rodrigues, H.,
cesso de rupturas – aqui entendi- quanto erro, desrazão, periculo- Jabur, F., (Org.), Rio de Janeiro:
das no sentido epistemológico ou ar- sidade; e como doença, patolo- UERJ/NAPE (trabalho produzido
queológico, de rompimento radical gia, desordem; no âmbito da pesquisa “O Estado
com determinado paradigma, ou de • princípio da instituição asilar da arte dos novos ser viços,
construção de um novo paradigma como recurso terapêutico (o estratégias e dispositivos em
– com o modelo anterior, é o de pro- princípio pineliano do isolamen- saúde mental no Brasil: uma
duzir estruturas ou recursos que to terapêutico), ainda hoje mui- trajetória em cartografia”,
efetivamente não reproduzam as to presente em nossas velhas e desenvolvida pelo Laboratório de
bases teórico-práticas do modelo “novas” instituições e serviços; Estudos e Pesquisas em Saúde
psiquiátrico clássico, que fundou a Mental, Escola Nacional de Saúde
• os princípios do tratamento
noção de doença mental como sinô- Pública – Fundação Oswaldo Cruz,
moral, atualmente presentes
nimo de desrazão e patologia, que
nas bases das terapêuticas Rio de Janeiro.)
fundou o manicômio como lugar de
normalizadoras. CHIZZOTTI, A., 1995. Pesquisa em
cura e que fundou a cura como or-
topedia e normalização. Ciências Humanas e Sociais, 2a
Isto é, se não existirem ruptu-
É importante que o Ministério da ed. São Paulo: Cortez
ras, não existirão os novos (sem
Saúde, que normaliza as ações e aspas) serviços, existirão não mais COORDENADORIA DE SAÚDE MENTAL – SES/
princípios do SUS, assim como o seu que metamorfoses, roupagens ‘no- SP, 1987. O Centro de Atenção
financiamento, enriqueça as deno- vas’ para velhos princípios. Assim, Psicossocial Prof. Luiz da Rocha
minações CAPS e NAPS com outras cumpre verificar como se organi- Cerqueira (CAPS). Projeto de
tipificações que digam mais respei- zam os novos serviços no sentido Implantação. São Paulo: SES/SP.
to à natureza dos serviços, o que de produzir uma instituição com
G OLDBERG , J. I., 1992. A doença
não significa que a terminologia caráter substitutivo, assumindo a
mental e as instituições – a
CAPS e NAPS deixaria de ser impor- demanda real dos portadores de
perspectiva de novas práticas.
tante. Talvez ainda mais importan- sofrimento psíquico e assumindo
Dissertação de Mestrado, São
te, e isto não compete apenas ao os recursos financeiros e o pesso-
Paulo: Faculdade de Medicina da
Ministério, é a formação de técni- al atualmente destinado ao siste-
Universidade de São Paulo.
cos, de profissionais, nas questões ma hospitalar, ao invés de seguir
conceituais e práticas que envolvem criando uma nova demanda, for- , 1996. Reabilitação como
os novos serviços, para que os mes- mando uma rede paralela, talvez processo – o Centro de Atenção
mos não sejam atualizações da psi- medicalizante/ psicologizante, tal- Psicossocial – CAPS. Reabilitação
quiatria, não sejam reformas, no vez cronicizante. psicossocial no Brasil (A. Pitta,

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001 33


AMARANTE, P. D. de C. & TORRE, E. H. G.

Org.), pp. 33-47, São Paulo: , 1992. Portaria no 224, de


Hucitec. 29 de janeiro de 1992.

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Psicossocial – uma estratégia. perguntar. SaúdeLoucura 1, (A.
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Lancetti, org.), pp. 47-59, São
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MINAYO, M. C. de S. (Org.), 1994. O _________, 1999. A construção da


desafio do conhecimento: pesquisa reforma psiquiátrica e o seu
qualitativa em ciências sociais. contexto histórico. Dissertação de
Petrópolis: Vozes. Mestrado, Assis: Faculdade de
Ciências e Letras, Universidade
NAPS II, 1991. Texto sobre o NAPS II.
Estadual Paulista.
Santos: NAPS, mimeo.

NAPS, 1990. Núcleo de Atenção Psico-


Social. Santos: NAPS, mimeo.

N ICÁCIO , M. F. de S. et al., 1990.


Produzindo uma nova instituição
em Saúde Mental. O Núcleo de
Atenção Psicossocial. Santos,
mimeo.

, 1994. O processo de
transformação em saúde mental
em Santos: desconstrucão de
saberes, instituições e cultura.
Dissertação de Mestrado, São
Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.

P ITTA , A., 1992. Avaliação como


processo de melhoria da quali-
dade de serviços públicos de saú-
de. Revista Brasileira de Admi-
nistração Pública, 26(2): 44-61,
abr/jun.

SECRETARIA NACIONAL DE ASSISTÊNCIA À

SAÚDE/MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1991.


o
Portaria n 189, de 19 de novem-
bro de 1991.

34 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 26-34, maio/ago. 2001


Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais
ARTIGOS ORIGINAIS

Da avaliação em saúde à avaliação em Saúde Mental:


gênese, aproximações teóricas e questões atuais1

From health assesment to Mental Health assesment: birth, theoretical approaches


and current issues

Patty Fidelis de Almeida1


RESUMO
Sarah Escorel2
A avaliação em saúde apresenta-se como um dos processos capazes de
fornecer subsídios importantes à tomada de decisão no setor e de responder
demandas por maior transparência no uso de recursos públicos por parte da
sociedade civil organizada. Elegendo como ponto de partida as principais
mudanças ocorridas na assistência em Saúde Mental em curso a partir do
movimento pela Reforma Psiquiátrica no país, o presente artigo discute
questões pertinentes às definições de avaliação, ao desenvolvimento de estudos
em outros países, além de expor algumas especificidades relativas à atenção
psicossocial. A seguir são apresentadas algumas considerações sobre impasses
e perspectivas pertinentes à avaliação em saúde, com ênfase em metodologias
de avaliação participativas.

PALAVRAS-CHAVE: avaliação em saúde, avaliação em Saúde Mental, serviços


substitutivos

ABSTRACT
1
As autoras agradecem às pertinentes
observações do parecerista.
Health evaluation comes forward as one of the processes capable of
2
Mestranda em Saúde Pública – ENSP/
providing important foundations for decision making in the field and of
Fiocruz.
Endereço: Avenida Maracanã 617, bloco 1, satisfying demands of the organized civil society for more transparency in
apt. 203 – Tijuca – Rio de Janeiro – RJ the use of public resources. Using as a start point the main changes in
CEP: 20511 000
Mental Health assistance due to the Psychiatric Reform in this country, the
Fone: (21)2567-0803 / (21)9853-9103
e-mail: patty@ensp.fiocruz.br present paper discusses the issues pertinent to the definitions of evaluation,
development of studies in foreign countries, as well as presenting a few
3
Pesquisadora Titular – DAPS/ENSP/Fiocruz.
specificities of psychiatric-social care. Then a few considerations over the
Endereço: Rua Almirante Alexandrino,
3051– Santa Teresa – Rio de Janeiro – RJ obstacles and perspectives pertinent to health care evaluation, focusing on
CEP: 20241 262 collaborative evaluation methods are presented.
Fone: (21) 2270-6937
e-mail: sescorel@ensp.fiocruz.br KEY-WORDS: health evaluation, mental health evaluation, substitutive services

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 35


ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.

INTRODUÇÃO zam a avaliação dos serviços substi- cebe-se que as definições são nume-
tutivos, tanto em relação à qualida- rosas e, de certa forma, construídas
Em termos históricos, foi só a de, quanto ao acompanhamento dos a partir do referencial do próprio
partir da década de 80 que o movi- resultados que permitam auxiliar nas avaliador. Guba e Lincoln (1989)
1
mento pela Reforma Psiquiátrica no mudanças estratégicas. Buscando for- identificam na história da avaliação
Brasil ganhou importância, tanto necer elementos para o debate sobre quatro gerações. Cabe ressaltar que
política como social. Para a sua im- os desafios e possibilidades que ca- a passagem de uma a outra não re-
plementação foi preciso inventar racterizam o campo da avaliação de presentou o desaparecimento da
novos locais, instrumentos técnicos políticas, programas e serviços de etapa anterior, sendo a categoriza-
e terapêuticos, como também novos saúde, enfatizando as especificidades ção por gerações um elemento di-
modos sociais de estabelecer rela- da área de Saúde Mental, o presente dático. A primeira geração caracte-
ções com a loucura. artigo apresenta uma breve revisão rizou-se pelas técnicas de medida
Nos anos 90, assistimos à cria- da literatura pertinente ao tema, para como testes de inteligência e avali-
ção e à consolidação de propostas ação de desempenho escolar. O ava-
como Centros de Atenção Psicosso- liador era um técnico que deveria
cial (CAPS), Núcleos de Atenção Psi- saber construir e/ou utilizar instru-
cossocial (NAPS), Lares Abrigados,
O DESAFIO ATUAL PARECE SER EFETIVAR AS mentos de medida. Entre os anos 20
etc., embora desde a década de 80 PROPOSTAS DA REFORMA PSIQUIÁTRICA NO e 30 desenvolveu-se a segunda ge-
algumas experiências já estivessem ração preocupada em identificar e
SENTIDO DE IMPLEMENTAR NOVOS
sendo desenvolvidas (Venancio, descrever como os programas edu-
1990). O desafio atual parece ser efe- DISPOSITIVOS, EMBORA OS HOSPITAIS cacionais atingiam seus resultados
tivar as propostas da Reforma Psi- TRADICIONAIS AINDA ABSORVAM A MAIOR e, para tanto, concentraram-se na
quiátrica no sentido de implementar análise de currículo. Para a terceira
PARTE DAS VERBAS DESTINADAS AO
novos dispositivos, embora os hos- geração a avaliação permitiria não
pitais tradicionais ainda absorvam ATENDIMENTO EM PSIQUIATRIA só descrever e mensurar, mas tam-
a maior parte das verbas destinadas bém julgar o mérito de uma inter-
ao atendimento em psiquiatria. venção a partir de referenciais ex-
Tendo em vista a reforma da as- a seguir tecer considerações sobre os ternos. Atualmente, segundo os au-
sistência psiquiátrica e a mudança do impasses, além de discutir propostas tores, estaríamos vivendo a quarta
paradigma asilar/hospitalocêntrico de de metodologias de avaliação. geração, momento em que a avalia-
tratamento, o campo da atenção psi- ção é caracterizada por um proces-
cossocial na última década foi grada- so de negociação entre avaliado e
tivamente delineando-se como um (IN) DEFINIÇÕES DE AVALIAÇÃO: avaliador, com propostas de caráter
espaço marcado pela diversidade de NOTAS INTRODUTÓRIAS participativo e inclusivo.
linhas teóricas, de propostas terapêu- Contandriopoulos et al. (1997)
ticas e de objetivos. Contudo, ainda Quando empreende-se a tarefa consideram que o processo de ava-
são escassos os estudos que priori- de tentar conceituar ‘avaliação’, per- liação é caracterizado por estabele-

1
Sobre esse assunto ver Amarante, 1995 e 1996; Birman e Costa, 1994; Desviat, 1999.

36 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001


Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

cer um julgamento de valor sobre conceber e interpretar a realidade. entre avaliador e contexto avaliado
uma determinada intervenção ou Tentativas de tornar crenças e valo- sobre a forma por meio da qual os
qualquer um de seus elementos, res do pesquisador menos tenden- resultados obtidos nesta interação
com o objetivo de auxiliar a toma- ciosos passam pela compreensão de poderiam ser utilizados.
da de decisões. Para a OMS avalia- que o modelo adotado é somente Para Donabedian (1990) seriam
ção é um processo importante para uma das possibilidades de interpre- três os enfoques possíveis para um
o planejamento estratégico na me- tar a realidade, mas não a contem- processo de avaliação. Na avaliação
dida em que permite a formulação pla em sua plenitude. O objetivo de de estrutura analisam-se os recur-
de juízos apoiados em análises de um processo avaliativo é “(...) rea- sos utilizados (físicos, humanos,
situações específicas, com o objeti- limentar ações buscando aferir re- materiais, etc.) e organizacionais da
vo de chegar a conclusões bem fun- sultados e impactos na alteração da atenção. Vuori (1991) considera que
damentadas que subsidiem ações qualidade de vida da população be- o pressuposto principal da aborda-
futuras. Os julgamentos formados neficiária, ou ainda, mais precisa- gem estrutural é que boas pré-con-
não devem pressupor uma senten- dições, ou boa disponibilidade de
ça final, ao contrário, devem ser recursos como força de trabalho,
pertinentes, sensíveis e acessíveis a instalações, equipamentos, entre
todos os que deles possam fazer uso AINDA É RECENTE NA LITERATURA outros, tendem a gerar resultados
(OMS, apud Aguilar e Ander-Egg, mais favoráveis.
1994). Dessa forma, a avaliação só
O ESFORÇO PARA DESTACAR AS A avaliação de processo enfoca
justifica-se quando permite uma re- ESPECIFICIDADES DA AVALIAÇÃO NO as atividades desenvolvidas em ter-
troalimentação dos processos em mos de utilização de recursos, qua-
CAMPO DAS POLÍTICAS SOCIAIS E DA
curso, a fim de corrigir, sanar ou litativos e quantitativos, pela equi-
evitar eventuais ‘erros’, estabelecen- AVALIAÇÃO DE PROGRAMAS E SERVIÇOS, pe em benefício do usuário. Inclui
do estratégias para melhorar a qua- ESPECIALMENTE NO CAMPO DA SAÚDE também o que os pacientes fazem
lidade da assistência prestada. por si próprios (Donabedian, 1990).
Os objetivos de um processo ava- A avaliação de resultados em
liativo serão distintos em função do saúde corresponderia à análise das
que se pretende avaliar. A análise mente, repensar as opções políticas conseqüências na saúde de indivídu-
de políticas, programas ou serviços e programáticas” (Carvalho, 1999). os e populações da atenção ofereci-
exige diferenciações na escolha das A imparcialidade e independên- da pelo serviço ou por um profissio-
variáveis, dos atores e do locus so- cia dos dados obtidos na avaliação nal específico. Para Vuori (1991) se
bre o qual incidirá a avaliação. Ape- ganham ainda mais destaque na os objetivos da atenção forem curar
sar disso, ainda é recente na litera- avaliação interna, ou seja, quando ou evitar a progressão de doenças,
tura o esforço para destacar as es- se quer julgar uma realidade da qual restaurar o estado de saúde ou alivi-
pecificidades da avaliação no cam- o pesquisador faz parte. Em qualquer ar a dor e o sofrimento, pode-se con-
po das políticas sociais e da avalia- caso, alguns fatores poderiam garan- siderar o êxito da assistência quan-
ção de programas e serviços, espe- tir a qualidade e a utilidade da ava- do são alcançados esses resultados.
cialmente no campo da saúde. liação como, por exemplo, uma boa O ‘resultado’ supõe uma mudança no
Toda perspectiva de avaliação qualificação dos profissionais envol- estado de saúde, para melhor ou pior,
está comprometida com formas de vidos e as estratégias construídas que possa ser atribuída à atenção

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 37


ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.

recebida. Pode incluir outros elemen- Lobo (1999) destaca que as forças Guerra Mundial, com o objetivo de
tos como conhecimento sobre a en- políticas que apoiam ou sabotam tornar mais eficiente a distribuição
fermidade, mudanças de conduta um determinado programa, a lógi- de recursos pelo Estado. Segundo
que promovam saúde, produção de ca econômico-financeira que norteia Contandriopoulos et al. (1997) tais
indicadores ou índices do nível de a alocação do gasto público, as cren- abordagens logo mostraram-se in-
saúde de determinada população e ças sobre a maior ou menor neces- suficientes quando aplicadas a pro-
satisfação do paciente. sidade de democratização do Esta- gramas sociais e educacionais.
As críticas sobre a avaliação de do, bem como as concepções de efi- Nos EUA, desde os anos 50, de-
resultados recaem sobre a dificul- ciência, efetividade e eficácia das senvolveram-se pesquisas de avali-
dade em atribuir determinada mu- ações governamentais na área soci- ação que utilizavam inquéritos e
dança no estado de saúde da popu- al, fazem parte da reflexão mais análises estatísticas sob uma pers-
lação à intervenção específica pois ampla que ajudam a definir de fato pectiva pluridisciplinar, tendo como
os ‘resultados’ sofrem influência de o que está sendo avaliado. Para Hartz base conhecimentos das ciências
inúmeras variáveis. Para Vuori sociais. No mesmo país, a imple-
(1991) os impasses apresentam-se mentação de políticas sociais gover-
também na definição de padrões, namentais de nível federal nos pe-
por meio dos quais possam ser men-
CONFORME RESSALTA ARRETCHE: ríodos Kennedy e Johnson reforça-
surados os resultados observados. “(...) O USO ADEQUADO DOS ram a importância de pesquisas
Defensores desse enfoque argumen- avaliativas (Perez, 1999). Na déca-
INSTRUMENTOS DE ANÁLISE E
tam que a melhoria nas condições da de 70, a necessidade de avaliar
de saúde do paciente seria a prova AVALIAÇÃO SÃO FUNDAMENTAIS ações sanitárias impôs-se como um
final de que a atenção foi positiva PARA QUE NÃO SE CONFUNDAM meio de controlar os custos do sis-
(Donabedian,1990). tema de saúde. Desde então, em um
OPÇÕES PESSOAIS COM RESULTADOS
Não existe qualquer tipo de ava- número significativo de países
liação que possa ser definida como DE PESQUISA” (1999:30) (EUA, Canadá, França, etc.) a avali-
instrumental, técnica ou neutra vis- ação sanitária detém grande prestí-
à-vis as opções valorativas de quem gio e investimentos.
empreende esse processo. Entretan- (1999) seria importante considerar Na França a função avaliação de
to, conforme ressalta Arretche: “(...) também as orientações ideológicas programas/políticas públicas está
o uso adequado dos instrumentos que atravessam os programas sob institucionalizada, funcionando, ao
de análise e avaliação são funda- análise, ressaltando o fato de que, mesmo tempo, como um dispositi-
mentais para que não se confundam mesmo para abordagens teórico- vo analítico e de gestão, moldado
opções pessoais com resultados de metodológicas da mesma natureza, como uma política. Um importante
pesquisa” (1999:30). Dessa forma, os valores podem ser contrastantes. marco da institucionalização foi a
uma questão que deve estar sem- fundação do Office Parlementaire
pre presente, refere-se ao ambiente d’Evaluation des Choix Scientifiques
político ou ao lugar ocupado pelo AVALIAÇÃO EM SAÚDE: ALGUMAS EXPERIÊNCIAS et Technologiques (1983), inspira-
programa ou serviço em análise do no Office of Technology Assess-
dentro do campo das políticas pú- A avaliação de programas públi- ment, órgão ligado ao congresso
blicas em determinado contexto. cos surgiu logo após a Segunda norte-americano. O modelo francês

38 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001


Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

é caracterizado por sua abordagem de responsabilização e desempenho nuidade, falta de documentação e


setorial, que apresenta resultados para a administração pública, os de sistematização dos resultados
promissores vis-à-vis modalidades resultados da avaliação acabam por obtidos. Duas características predo-
mais tradicionais e centralizadas tornar-se difusos na medida em que minantes no planejamento governa-
(Hartz, 1999 a). não está claramente definida a ins- mental do Brasil seriam responsá-
Em relação aos países latino- tância operacional da gestão públi- veis pela situação: “a ênfase na for-
americanos criou-se, em 1944, na ca que será alvo de avaliação (Silva mulação de planos e elaboração de
Argentina, com financiamento do e Costa, 2000). programas e projetos; e, baixo de-
Banco Mundial, o Sistema de Infor- Uma exploração inicial sobre o senvolvimento das etapas de acom-
mação, Avaliação e Monitoramento campo da avaliação no Brasil de- panhamento e de avaliação dos pro-
de Programas Sociais (SIEMPRO). monstra que grande parte das aná- cessos, resultados e impactos” (Sil-
Os objetivos do sistema são acom- lises existentes priorizam a racio- va e Costa, 2000: 10).
panhar gastos na área social, pro- nalização de gastos por meio de Atualmente, organismos inter-
duzir diagnósticos sobre a alocação nacionais como o Banco Mundial,
de recursos públicos, fornecer à Se- provedor de assistência técnica e fi-
cretaria de Desenvolvimento Social nanceira de reconhecida importân-
recursos e instrumentos necessári-
SEGUNDO SILVA E COSTA (2000), cia nos países em desenvolvimen-
os à operação de um sistema de in- O PAÍS APRESENTA GRANDE DIVERSIDADE to, incorporaram a “capacidade em
formação social, monitoramento, avaliação” como uma das priorida-
E AMPLITUDE DE CONCEITOS E
avaliação e capacitação em gestão des para a gestão do setor público,
social. A meta é integrar os siste- ABORDAGENS NO CAMPO DA AVALIAÇÃO, com o objetivo de garantir a sus-
mas de informação social aos pro- EMBORA AS EXPERIÊNCIAS DESENVOLVIDAS tentabilidade dos programas (Pic-
cessos de avaliação, democratizan- cioto, 1997 apud Hartz, 1999). Ou-
SEJAM CONSIDERADAS INSUFICIENTES
do as informações geradas. Apesar tra consideração importante rela-
de ter atingido um grau de institu- E INSATISFATÓRIAS ciona-se à necessidade corrente-
cionalidade no país, a implementa- mente apontada de uma pluralida-
ção da função avaliação ainda está de de abordagens metodológicas,
muito limitada aos programas fo- abordagens de custo-benefício, le- em que análises qualitativas agre-
calizados dirigidos às populações gitimam ações sanitárias muitas gam tanto valor quanto julgamen-
pobres e grupos vulneráveis (Silva vezes questionáveis ou estão inti- tos de cunho estatístico.
e Costa, 2000). mamente relacionadas a enfoques O cenário atual coloca em evi-
No Chile, a função avaliadora pessoais de técnicas ou programas dência também o interesse social
está relacionada à criação do Comi- (Pitta, 1992). Segundo Silva e Cos- pelo processo de avaliação, em par-
tê Intersetorial de Modernização da ta (2000), o país apresenta grande ticular dos segmentos definidos
Gestão Pública, instituído com o diversidade e amplitude de concei- como stakeholders de alguns pro-
objetivo de fornecer subsídios à tos e abordagens no campo da ava- gramas governamentais. De acordo
modernização das instituições pú- liação, embora as experiências de- com Silva e Costa, uma das exigên-
blicas. Embora nesse país esteja senvolvidas sejam consideradas in- cias feitas aos programas sociais
explícita uma orientação normati- suficientes e insatisfatórias, princi- seria “ (...) a definição de mecanis-
va à incorporação de instrumentos palmente pela dispersão, desconti- mos de acompanhamento e avalia-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 39


ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.

ção que facilitem a comunicação do dos serviços, que possam refletir o a ser apreendido como processo
governo com os beneficiários e aten- dia-a-dia desses serviços. em construção.
dam aos requisitos de responsabili- Amarante e Carvalho (1996) Em trabalho realizado em servi-
zação perante a sociedade” (2000: 9). chamam a atenção para o proble- ços substitutivos da cidade do Rio
ma de utilizar “técnica-pura” como de Janeiro, Rietra (1999) destacou
solução para questões cotidianas a ausência de indicadores qualita-
AVALIAÇÃO NO CAMPO DA SAÚDE MENTAL sob o risco de homogeneização e tivos e quantitativos que possibili-
mecanização da realidade. A cons- tem mensurar o alcance ou não das
A avaliação de serviços em Saú- trução de novos parâmetros deve- metas estipuladas pelos serviços.
de Mental ainda é um campo de es- ria ter como fonte o interior dos Embora ressalte que o trabalho de-
tudos bastante recente no Brasil, serviços permitindo, dessa forma, senvolvido seja de difícil medição,
embora alguns trabalhos já estejam a interação pesquisador-institui- reafirma a necessidade da elabora-
sendo desenvolvidos (Pitta et al., ção na construção de “(...) indica- ção de indicadores específicos que
1997; Silva Filho et al., 1996, Li- possibilitem o acompanhamento
bério, 1999). Tais propostas procu- dos resultados. Na perspectiva de
ram criar novos instrumentos de Saraceno e Bologaro (apud Silva Fi-
avaliação capazes de superar os
A AVALIAÇÃO DE SERVIÇOS EM lho, 1996), que têm como referenci-
tradicionalmente utilizados pela SAÚDE MENTAL AINDA É UM CAMPO DE al a experiência da “Instituição Ne-
clínica psiquiátrica como número ESTUDOS BASTANTE RECENTE NO BRASIL, gada”2, o modelo a ser construído
de altas, diagnóstico e remissão de para avaliação de serviços de Saú-
sintomas. Contudo, apesar da his-
EMBORA ALGUNS TRABALHOS JÁ ESTEJAM de Mental não deve considerar so-
tória também recente dos modelos SENDO DESENVOLVIDOS (PITTA ET AL., mente a supressão ou redução dos
substitutivos no país, a necessida- sintomas. Deve-se analisar também
1997; SILVA FILHO ET AL.,
de de um processo de avaliação tor- a inserção familiar, no trabalho e na
nou-se um imperativo tanto para a 1996, LIBÉRIO, 1999) vida cotidiana, captadas por meio
superação de modelos tradicionais, do que os autores denominaram
incapazes de estabelecer fluxos como variáveis soft, em função de
entre a implementação de determi- tivos que possuam como fonte sua difícil mensurabilidade por en-
nadas políticas ou programas e principal as relações exercitadas volver motivação de técnicos, expec-
seus resultados, quanto para o con- na instituição, principalmente no tativas e satisfação da equipe com
trole e participação da sociedade que elas possam construir enquan- o serviço. Neste sentido, haveria
civil organizada. É consenso entre to ética de inclusão e produção de “eventos sentinela”, fatos que seri-
os estudos realizados na área que vida, tais como o conceito de au- am inadmissíveis no cotidiano dos
os parâmetros avaliativos de que tonomia” (Amarante e Carvalho, serviços substitutivos de Saúde
dispomos no campo da atenção 1996:81). Esses princípios impli- Mental, como ausência de projeto
psicossocial são insuficientes, prin- cam a superação da dicotomia terapêutico para o usuário. Ainda
cipalmente no que diz respeito aos quantitativo-qualitativo e elegem assim, os autores não negam a im-
indicadores produzidos no interior as relações do cotidiano como algo portância de variáveis hard como

2
Sobre este assunto ver Basaglia, 1981.

40 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001


Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

número de técnicos, número de sa- to, verificando sua aplicabilidade idéia de que o sujeito possa falar al-
las, carga horária, entre outras. Su- para estendê-lo posteriormente à guma coisa e ser entendido naquilo
gerem que a identificação de um avaliação de outros serviços. A que está dizendo. Assim, quando o
problema relevante, definição dos questão da autonomia na pesquisa sujeito psicótico expressa-se, ainda
critérios e padrões de qualidade, citada, considerou os critérios prag- que tudo não tenha sido compreen-
construção de indicadores a partir máticos de autonomia para higie- dido, “algo da ordem de uma subje-
das informações coletadas na reali- ne, alimentação, medicação, ir e vir, tividade se dá”. Ao mesmo tempo, o
dade sob avaliação, posterior con- trabalho e relações sociais (família, tratamento proporcionaria também
fronto entre dados obtidos e critéri- amigos, grupos sociais). a aquisição de habilidades de ordem
os previamente definidos, bem como Também considerando a produ- pragmática, como capacidade de ge-
a discussão dos resultados são eta- ção de autonomia como uma das rir dinheiro, ir e vir, cuidados com a
pas fundamentais a serem observa- vias possíveis para pensar a avalia- higiene entre outras habilidades ne-
das (apud Silva Filho, 1996). ção da qualidade de serviços em Saú- cessárias à gestão do cotidiano, au-
Com o objetivo de desenvolver mentando com isso a “qualidade de
instrumentos de avaliação em Saú- vida” (Santos e Almeida, 2000).
de Mental, O Laboratório de Inves- Em trabalho que vem sendo rea-
tigação em Saúde Mental do Depar- lizado em um CAPS do município do
tamento de Medicina Preventiva da UM ESTUDO REALIZADO EM UM Rio de Janeiro pode-se apontar que
USP empreendeu uma pesquisa
3
CAPS NO ESTADO DE MINAS GERAIS algumas iniciativas de avaliação do
cujo objetivo foi caracterizar a po- serviço começam a ser implemen-
VIABILIZOU A PERCEPÇÃO DE QUE, PARA OS
pulação atendida em um ambulató- tadas. Para tal, vem sendo empre-
rio de Saúde Mental, no município TÉCNICOS, AUTONOMIA RELACIONA-SE À endida ampla discussão sobre quais
de São Paulo, dando ênfase aos as- MELHORIA DA “QUALIDADE DE VIDA” os objetivos de alguns dispositivos
pectos epidemiológicos clássicos terapêuticos utilizados, como as ofi-
(idade, sexo, diagnóstico, etc.) e in- cinas, redefinição de contratos dos
vestigando entre os usuários a pre- usuários e porta de entrada do ser-
sença ou ausência de autonomia. viço. Em meio a essas discussões,
Esta pesquisa fez parte de um estu- de Mental, um estudo realizado em alguns critérios podem ser aponta-
do multicêntrico de Avaliação de um CAPS no estado de Minas Gerais dos nas discussões de equipe como
Qualidade de Programas e Serviços viabilizou a percepção de que, para indicativos importantes a serem
de Saúde Mental desenvolvido e es- os técnicos, autonomia relaciona-se atingidos pelo serviço: participação
timulado em diversos países pela 4 à melhoria da “qualidade de vida”. de familiares no tratamento, parti-
OMS. O instrumento básico de ava- Neste sentido, os usuários passari- cipação dos usuários em atividades
liação foi a Ficha de Caracterização am a estabelecer “laços sociais” não geradoras de renda, estabelecimen-
da Clientela (FCC). A pretensão da verificados antes do início do trata- to de vínculos entre usuários e ou-
pesquisa foi testar este instrumen- mento. Esse conceito traduz-se pela tros dispositivos da rede social do

3
Sobre a pesquisa ver Pitta et al. (Org.), 1997.
4
No Brasil, esse estudo envolveu o município de Niterói no estado do Rio de Janeiro e os municípios de Santos, Campinas e São Paulo, em
São Paulo.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 41


ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.

bairro como locais de lazer e cursos Saúde Mental é um tema controver- vidas no cotidiano dos serviços
profissionalizantes, e desenvolvi- tido. Como desenvolver um proces- substitutivos, talvez seja uma estra-
mento da capacidade de reivindicar so de avaliação e quais instrumen- tégia para caracterizar os pontos
direitos. Para a consecução desses tos utilizar que considerem a sin- que distinguem as novas modalida-
objetivos, iniciativas relacionadas gularidade da atenção à loucura e des terapêuticas dos velhos dispo-
ao incremento de oficinas produti- que respondam às exigências de re- sitivos manicomiais, além de cons-
vas, estabelecimento de contato com solutividade de um serviço público? tituir um instrumento analítico pri-
outras instâncias da rede social da A adoção apenas de critérios prag- vilegiado, sem o qual corre-se o ris-
área, busca de vagas em cursos de máticos não parece suficiente para co de reproduzir hegemonias e no-
informática, marcenaria, entre ou- abarcar a complexidade da experi- vos enclausuramentos.
tros, além de um trabalho de cunho ência de uma clientela específica
político com a associação de usuá- como os portadores de sofrimento
rios e familiares, começam a ser in- psíquico. De acordo com Pitta (1997) DILEMAS DA AVALIAÇÃO EM SAÚDE: DOS
tensificadas e discutidas com mai- IMPASSES ÀS SOLUÇÕES POSSÍVEIS
or profundidade (Almeida, 2001).
A Gerência de Programas de Saú- Nesta breve tentativa de delimi-
de Mental do município do Rio de tar conceitualmente as diversas nu-
Janeiro, com o objetivo de acompa- A NECESSIDADE DE ances que o pensar a avaliação nos
nhar a qualidade da assistência pres- APONTAR OS RESULTADOS impõe, pode-se apontar também
tada pelos CAPS vem desenvolven- impasses que fazem parte de um
DA ASSISTÊNCIA NO
do o Programa de Acompanhamen- contexto mais geral, externo à ava-
to da Qualidade dos Centros de Aten- CAMPO DA SAÚDE MENTAL liação stricto sensu, mas que po-
ção Psicossocial, propondo o moni- dem funcionar ora como facilitado-
É UM TEMA CONTROVERTIDO
toramento de alguns indicadores res e ora como dificultadores des-
como: perfil da clientela atendida, se processo.
índices de internação, abandono do Uma dificuldade arrolada refe-
tratamento e adesão de famílias ao re-se à institucionalidade da função
tratamento, número de usuários do os impasses tornam-se prementes avaliação. No Brasil, a avaliação de
serviço que retornam à escola, ao nas áreas em que julgamentos de- políticas e de programas públicos
trabalho ou a atividades da vida co- vem ser construídos singularmen- ainda não está conformada como
munitária. Neste sentido, avaliações te, como no caso da loucura e por parte da administração pública, que
periódicas da assistência prestada tratar-se de uma atividade humana pressupõe, segundo Hartz, “(...) in-
vem sendo compreendida pela Gerên- caracterizada por trocas intersubje- tegrá-la em um modelo orientado
cia como um dever ético dos gesto- tivas entre alguém que precisa de para ação, ligando atividades ana-
res públicos, mas principalmente ajuda e aquele que se coloca no lu- líticas às de gestão, constituindo
como um instrumento de reflexão gar de proporcionar essa ajuda. O assim uma formulação da política
para os atores diretamente envolvi- desenvolvimento de metodologias de avaliação para avaliação de po-
dos na assistência (Libério, 1999). de avaliação mais participativas, líticas” (1999a:229). Para Cotta
A necessidade de apontar os re- que envolvam um conhecimento (1998) tal dificuldade é gerada em
sultados da assistência no campo da mais amplo das práticas desenvol- parte pela complexidade de algumas

42 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001


Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

metodologias de avaliação e tam- médico-social? Parece que os dispo- vias; experiências, idéias e perspec-
bém por desinteresse dos policy sitivos de Saúde Mental, que evolu- tivas de diversos grupos de interes-
makers e receio dos gestores dos em do interesse em contextualizar se (avaliadores e gestores); e, por
programas públicos. Dessa forma, socialmente vidas humanas por trás meio de conhecimento produzido
deixa-se de utilizar um importante das crises vislumbradas de forma pelas ciências sociais (Hartz, 1999;
instrumento gerencial, capaz de for- reducionista pela psiquiatria, trans- Chen, 1990 apud Furtado, 2001).
necer elementos tanto para o pro- formou-se em um amálgama de dis- Sugere-se que o modelo teórico a ser
cesso decisório como para a lógica ciplinas que unem-se por um discur- construído deva incorporar elemen-
de funcionamento de intervenções so que, ora está ligado à psicanáli- tos das diversas fontes de geração
em realidades sociais. se, ora ao assistencialismo, ora a de dados e conhecimentos disponí-
A ausência de um modelo teóri- um retorno à própria psiquiatria, veis no momento de implementação
co definido em relação aos progra- mas que, de certo modo, ainda não de determinado programa ou servi-
mas e serviços públicos de saúde, e conseguiu vislumbrar uma coerên- ço, a fim de incorporar tanto a par-
especialmente para os serviços de ticipação dos grupos de interesse
Saúde Mental, traz outras importan- quanto a possibilidade de releitura
tes dificuldades para o campo da da realidade a partir de contribui-
avaliação. O modelo teórico preco-
A AUSÊNCIA DE UM MODELO TEÓRICO ções externas.
niza e define de que forma deveria DEFINIDO EM RELAÇÃO AOS PROGRAMAS Contudo, apesar da inegável im-
funcionar um programa ou um ser- E SERVIÇOS PÚBLICOS DE SAÚDE, E portância da definição de um mo-
viço, de modo a explicitar o proble- delo teórico como etapa prévia da
ma, a população e o contexto alvos
ESPECIALMENTE PARA OS SERVIÇOS DE implementação de programas e ser-
da intervenção, os efeitos a curto, SAÚDE MENTAL, TRAZ OUTRAS viços públicos, iniciativas de ava-
médio e longo prazo que se preten- liação não podem estar condicio-
IMPORTANTES DIFICULDADES PARA
de atingir, bem como os recursos e nadas a sua existência, mesmo por-
atributos do programa necessários O CAMPO DA AVALIAÇÃO que a tradição brasileira não incor-
ao alcance dos objetivos propostos. pora esta fase como parte da im-
Sua importância é tão significativa plementação de projetos. Nesse
que, para Hennessy (apud Hartz, cia transdiciplinar unificadora. O sentido, um processo de avaliação
1999), somente as políticas e pro- objetivo não é construir um pensa- pode incluir também a construção
gramas que tivessem um modelo mento único dominante no campo, de um modelo teórico da realidade
teórico bem definido, assim como as mas apontar a necessidade de uma a ser estudada, a partir dos objeti-
medidas e indicadores pertinentes, certa coerência teórica entre os di- vos implícitos e explícitos existen-
deveriam ser alvo de avaliações. versos saberes que o constituem, até tes, de modo que o produto final
Na área de Saúde Mental, para para que seja possível estabelecer seja discutido e legitimado pelos
que um modelo teórico possa ser práticas de intervenção social e de atores sociais envolvidos.
produzido, algumas questões mere- cuidados que possam ser avaliados Pode-se afirmar que para reali-
cem reflexão: sob que aspectos deve- de forma mais clara e sistemática. zar qualquer tipo de avaliação é pre-
se intervir, ou melhor dito, sob que O modelo teórico pode ser cons- ciso que estejam disponíveis indi-
parâmetros éticos pode-se construir truído a partir de diversas fontes cadores capazes de quantificar e/ou
um novo modelo de intervenção como: resultados de pesquisas pré- qualificar de forma o mais próxima

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 43


ALMEIDA, P. F. de & ESCOREL, S.

possível do real fatos, processos e mesmo porque o campo do sofri- aos serviços substitutivos em Saú-
situações. Avaliações de determina- mento psíquico e das suas formas de Mental que já incorporam em sua
dos tipos de programas e serviços de cuidado traz em si especificida- lógica de funcionamento o desenvol-
envolvem geralmente situações des de ordem subjetiva e social que vimento de estratégias e espaços
complexas que não podem ser apre- não devem ser ignoradas. Alguns produzidos coletivamente.
endidas sem mediações. Dessa for- dos questionamentos sobre as tra- A metodologia da avaliação par-
ma, “(...) o indicador é, simplesmen- dicionais formas de avaliar recaem ticipativa surgiu no rastro da cha-
te, uma forma de nos aproximarmos sobre o caráter externo desses pro- mada pesquisa-ação e, por esse
do conhecimento de algo que não cessos, busca de objetividade como motivo, faz uso de princípios, pro-
podemos captar diretamente” ou sinônimo de significância quantita- cedimentos e estratégias corrente-
então podemos compreendê-lo como tiva, preocupação exclusiva com a mente utilizadas pela mesma. Essa
“(...) medidas específicas (explícitas) eficiência, incapacidade de incorpo- abordagem justifica-se na medida
e objetivamente verificáveis das rar dados contextuais e baixa rele- em que se tem como objetivo incor-
mudanças ou resultados de uma porar técnicos, usuários, familiares
atividade” (Aguilar & Ander-Egg, ou gestores como atores das ações
1994: 123-124). Cabe ressaltar que públicas, de forma a auxiliar as to-
por mais numerosos que sejam os
PARA A AVALIAÇÃO DE PROCESSOS madas de decisão. Parte-se do prin-
indicadores utilizados, estes não SOCIAIS QUE GUARDAM EM SI cípio de que a participação dos im-
refletem totalmente um conceito. MAIOR COMPLEXIDADE PODE-SE] plicados na assistência sob análise
Como já mencionado anterior- “(...) retira o avaliador da posição
mente, o campo da atenção psicos-
OPTAR PELO USO DE INDICADORES solitária de único agente valorati-
social carece ainda de indicadores CONSENSUAIS, QUE PARECE SER O vo” (Carvalho, 1999:91). Pretende-
capazes de traduzir a nova realida- se, dessa forma, que o processo de
CASO DE ALGUMAS INTERVENÇÕES
de da assistência. A quantidade e avaliação ganhe em confiabilidade
qualidade das informações disponí- EM SAÚDE MENTAL e legitimidade entre os atores soci-
veis sobre o que se pretende avaliar ais envolvidos.
tem importância fundamental para Nessa perspectiva, ganham
a escolha ou elaboração dos indica- vância dos resultados para os ato- destaque os estudos de caso, que,
dores. Para Aguilar e Ander-Egg res envolvidos na intervenção. Tal- de acordo com Hartz, são recomen-
(1994) o ideal seria produzir indi- vez em função de um ou mais dos dados com ênfase quando “(...) o
cadores que utilizem os dados já fatores acima mencionados, a ava- objeto de investigação é de gran-
existentes ou disponíveis. Além dis- liação seja associada, em muitas de complexidade, a tal ponto que
so, para a avaliação de processos ocasiões, a auditorias ou controles o fenômeno de interesse não se
sociais que guardam em si maior externos com o objetivo de controle distingue facilmente das condições
complexidade pode-se optar pelo de produtividade. contextuais, necessitando infor-
uso de indicadores consensuais, que Metodologias de avaliação par- mações de ambos” (1999:344).
parece ser o caso de algumas inter- ticipativas, somadas à pluralidade São indicados também quando o
venções em Saúde Mental. metodológica, possibilitam superar alvo da avaliação é uma interven-
Cabe destacar ainda algumas esses impasses. Tais estratégias ção inovadora, da qual ainda não
críticas aos processos tradicionais, parecem ser bastante pertinentes se tenha muitas informações. Uma

44 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001


Da Avaliação em Saúde à Avaliação em Saúde Mental: gênese, aproximações teóricas e questões atuais

das técnicas que vêm sendo cada O que se pretendeu discutir no AMARANTE, P. (Coord.), 1995. Loucos
vez mais utilizadas são os grupos presente artigo é que o campo da pela vida. A trajetória da reforma
focais, instrumento de pesquisa Saúde Mental enfrenta os mesmos psiquiátrica no Brasil. Rio de Ja-
que permite ao investigador cap- desafios da avaliação em saúde de neiro: Panorama/Fiocruz.
tar aspectos normativos e valora- forma geral, e ainda outras especi-
AMARANTE, P., 1996. O homem e a
tivos presentes em um determina- ficidades que tornam complexo o
serpente: outras histórias para
do grupo. Na área das ciências processo. Os serviços substitutivos
a loucura e a psiquiatria. Rio de
sociais, tal metodologia tem sido apresentam-se como uma realida-
Janeiro: Editora Fiocruz.
utilizada como uma das formas de muito recente e não hegemôni-
ca em termos de destinação de re- AMARANTE, P. & CARVALHO, A. da L.,
para apreender atitudes, opiniões,
cursos relativos à assistência psi- 1996. Avaliação de qualidade dos
motivações e preocupações dos in-
quiátrica no país. A produção de in- novos serviços de Saúde Mental:
divíduos. Um dos grandes benefí-
dicadores adequados ainda é bas- em busca de novos parâmetros.
cios do grupo focal é a geração de
tante incipiente e a assistência ao Saúde em Debate, 52: 74-82.
dados por meio da interação entre
os atores envolvidos e a facilida- louco envolve determinantes soci- BASAGLIA , F., 1981. A instituição
de em combiná-lo a outros instru- ais complexos. Apesar disso, as for- negada. Rio de Janeiro: Editora
mentos de pesquisa, como questi- mas coletivas de organização e ges- Graal.
onários, entrevistas e observação. tão dos serviços substitutivos po-
BIRMAN, J. & COSTA, J. F., 1994. Orga-
Apesar disso, o grupo focal pode ser dem ser elementos facilitadores da
nização de instituições para uma
a única metodologia de uma pes- implementação de processos ava-
psiquiatria comunitária. In: Ama-
quisa, visto que seus resultados liativos mais participativos em seu
rante, P. (Org.) Psiquiatria social
apresentam sustentação própria. cotidiano que contribuam para a
e reforma psiquiátrica. Rio de
Embora seja possível apreender sustentabilidade e manutenção
Janeiro: Editora Fiocruz. p. 41-72.
o que é ‘avaliação’ por diversos ân- desses projetos.
gulos e objetivos implícitos ou ex- CARVALHO, M. do C. B., 1999. Avaliação

plícitos, seu papel fundamental participativa – uma escolha

como instrumento de auxílio no REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS metodológica. In: Rico, E. M.

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parece ser um traço comum entre AGUILAR, M. J. & ANDER-EGG, E., 1994. Sociais: uma questão em debate.

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aliado à maior efetividade e efici- Saúde Pública, Fundação Os- Programas. Rio de Janeiro: Editora
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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 35-47, maio/ago. 2001 45


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CARVALHO, M. de
ARTIGOS ORIGINAIS

Ambiente construído e comportamento espacial na instituição


psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

Built environment and spatial behaviour in psychiatric institution: ethical issues in


participative observation

Mirian de Carvalho1

RESUMO

Este artigo é uma reflexão de base ética – fundamentada no pensamento


de Enrique Dussel – quanto à relevância do procedimento de observação
participante utilizado numa pesquisa que está em desenvolvimento, tendo
como objeto a relação entre ambiente construído e comportamento espacial
na instituição psiquiátrica. Tal aproximação envolve uma epistemologia e
uma poética do espaço, centradas, respectivamente, na psicologia de Robert
Sommer e na filosofia de Gaston Bachelard, incluindo no trabalho de campo
outros procedimentos metodológicos além da observação. Os resultados até
agora obtidos indicam problemas relativos ao espaço construído, suscitando
questões éticas pertinentes à metodologia.

PALAVRAS-CHAVE: espaço; ambiente; comportamento.

ABSTRACT

An ethical reflection – based on Enrique Dussel's thought – concerning


the relevance of the participative observation procedure employed in a
research under development, aiming at the relation between the built
environment and e the spatial behavior in the psychiatric institution. Such
approach involves an epistemology and a space poetics, according to Robert
Sommer's psychology and Gaston Bachelard's philosophy, respectively,
including in the field work other methodological procedures. Results obtained
1
Doutora em Filosofia. Leciona Filosofia e up to now indicate that there are problems related to built environment,
Estética da Arquitetura no PROARQ: raising ethical issues related to the methodology.
Programa de Pós-Graduação em Arquitetura
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. KEY-WORDS: space; environment; behavior.

48 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001


Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

INTRODUÇÃO ção, voltamo-nos primordialmente aos elementos da imaginação ati-


para o usuário assistido, tendo por nentes à espacialidade desejada,
Há cinco anos, juntamente com meta avaliar e recomendar espaços indicando espaços de atração, espa-
quatro arquitetos , vimos desenvol-
1
construídos que possam facilitar as ços habitáveis, abrigos e refúgios
vendo estudos em instituições psi- metas da Reforma Psiquiátrica e da (Bachelard, 1998:25), onde o indi-
quiátricas no Rio de Janeiro, partin- Reabilitação Psicossocial. No pre- víduo deseja ser e estar.
do da hipótese de que o espaço cons- sente texto, teceremos reflexões de O trabalho de Sommer implicou
truído interfere no comportamento cunho ético sobre a importância da técnicas de observação; do mesmo
dos usuários – definindo-se por usu- técnica de observação participante, modo, em nosso estudo, constata-
ários todas as pessoas que se relaci- resguardando-nos de mencionar o mos que a obtenção de certos da-
onam com a instituição (Sommer, nome das instituições estudadas. dos relevantes só seria viável atra-
1973:X). Além dos procedimentos de O corpus teórico de nosso estu- vés da observação – em alguns ca-
observação, utilizamos vários ou- do tem por base a psicologia de sos, participante; em outros, dire-
tros, comuns à pesquisa de campo. ta. Esse tipo de estudo, por circuns-
Valorizando a fala e o comportamen- crever relações sociais, comporta-
to do usuário-alvo, registramos tam- mento humano e políticas espaciais
bém comportamentos espaciais ob- O CORPUS TEÓRICO DE NOSSO ESTUDO TEM no âmbito do ambiente construído,
servados em todos os segmentos de envolve questões éticas, pois se re-
POR BASE A PSICOLOGIA DE SOMMER,
usuários da instituição, bem como fere ao homem no espaço instituci-
entrevistamos - em etapas diversas DA QUAL UTILIZAMOS A NOÇÃO DE ESPAÇO onal e na urbe, considerando as hi-

PESSOAL, E A FILOSOFIA DE BACHELARD,


- usuários igualmente representati- erarquias e invasões espaciais a que
vos de todos os segmentos afetos às estamos submetidos todos nós, em
instituições psiquiátricas estudadas. A PARTIR DA QUAL CONSIDERAMOS AS maior ou menor escala.
A avaliação desses procedimentos ABORDAGENS DO ESPAÇO POÉTICO Em lugares públicos ou coletivos,
nos revelou que a demanda de trans- torna-se difícil ou impossível demar-
formação desses ambientes não só é car espaços pessoais. Com freqüên-
verbalizada por eles, como se eviden- cia, na instituição psiquiátrica, o pa-
cia através de vários índices compor- Sommer, da qual utilizamos a no- ciente, mais que qualquer outro usu-
tamentais registrados durante o tra- ção de espaço pessoal, e a filosofia ário, está sujeito à invasão espacial
balho de observação. de Bachelard, a partir da qual con- (Sommer, 1973:40-41) e o pesquisa-
A fala do usuário-alvo se refere sideramos as abordagens do espa- dor pode identificar esses dados atra-
com clareza às dependências insti- ço poético. Em Sommer, “o espaço vés do trabalho de campo: “A melhor
tucionais, sugerindo e descrevendo pessoal refere-se a uma área com maneira para conhecer as fronteiras
com detalhes ambientes íntimos e limites invisíveis que cercam o cor- invisíveis é continuar andando, até
de convivência. Mas ressaltamos po da pessoa, e na qual os estra- que alguém reclame.” (id., ibid.:33).
que, embora considerando todos nhos não podem entrar” (id., Registramos que nessas instituições
aqueles que estão afetos à institui- ibid.:33). O espaço poético refere-se a demarcação do espaço pessoal é

1
Colaboram nesta pesquisa os arquitetos Andréa Borges, Marcos Fávero, Naylor Vilas Boas e Wanda Vilhena Freire.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 49


CARVALHO, M. de

dificultada pelo ambiente construído, mente espacialidades de natureza violados por visitantes bem intenci-
refletindo precariedades e lacunas que panóptica com áreas de fechamento onados que ignoram os avisos de ‘vi-
podem afetar inclusive os serviços al- e retração que os subordinam à visi- sitas proibidas’. (Sommer, 1973:35)
ternativos ao sofrerem interferência bilidade controlada. Eles são diversos
Esse autor constatou vários níveis
das formas manicomiais. Quanto a dos espaços poéticos, que ensejam a
de invasão espacial, comuns em hos-
isso, deparamos com uma situação criação de outros ambientes, imagi-
pitais psiquiátricos (id., ibid.:40-44).
básica: usuários convivendo simulta- nados pelo usuário, incentivando vá-
Do mesmo modo, na hierarquia es-
neamente com os espaços hospitala- rios níveis de contratualidade. Mui-
pacial, percebemos sobretudo a im-
res e/ou asilares e com formas alter- tos dos locais observados refletem
possibilidade de caracterização de um
nativas de assistência. Tal situação mecanismos de controle pelo espaço
espaço próprio do usuário, que, em
ocorre algumas vezes no mesmo pré- – ou seja, evidenciam uma política es-
face ao impedimento de posicionar-
dio e/ou no mesmo terreno. Outra si- pacial geradora de invasões de domí-
se pessoalmente, o faz através do cor-
tuação não-favorável é a existência nio no sentido sommeriano, em que
po, acrescentando objetos às vestes,
de serviço alternativo em bairro di-
usando roupas bizarras, ou de várias
verso do hospital, porém preservan-
outras formas, podendo chegar até à
do atendimento hospitalar tradicio-
nudez (Carvalho, 2000b:354), indi-
nal, quando - necessitando por algum
cando síndromes espaciais que po-
tempo de cuidados especiais - o usu- DEPARAMOS COM UMA SITUAÇÃO BÁSICA:
dem estar relacionadas com certas pa-
ário volta à tradicional enfermaria. USUÁRIOS CONVIVENDO SIMULTANEAMENTE tologias (id., ibid.:354).
Registramos igualmente problemas O trabalho de observação parti-
COM OS ESPAÇOS HOSPITALARES
básicos de conforto ambiental, sem cipante nos revelou indicativos de
mencionar as questões estéticas re- E/OU ASILARES E COM FORMAS espaços precários e demandas por
ferentes à visualidade dos espaços,
ALTERNATIVAS DE ASSISTÊNCIA espaços humanizados. A poética do
bem como ambientes alternativos mal espaço nos leva ao plano estético, ao
projetados ou impropriamente refor- plano sensível de realização dos es-
mados, e ainda uma situação afeta paços pessoais expressos pela ima-
ao patrimônio histórico: prédios, tom- ginação e pelo desejo de mudanças
bados ou não-tombados – mas repre- o espaço pessoal não pode ser ‘habi-
ambientais. Na maioria das vezes,
sentando significativos estilos de Ar- tado’ (Carvalho, 2000a:121), não fun-
esses ambientes são descritos como
quitetura –, descaracterizados por in- cionando como o desejado abrigo (Ba-
a casa (Carvalho, 2000a:123), com
terferências arquitetônicas inadequa- chelard, 1998:21).
todas as parcialidades da intimida-
das, ou em ruínas. Em relação a hospitais em geral,
de protegida (Bachelard, 1998:21).
Percebemos que os ambientes diz Sommer:

construídos funcionam muitas vezes Os pacientes de hospital se quei-


como regiões limítrofes, não permi- xam, não apenas do fato de seu es- DESENVOLVIMENTO: A ÉTICA NO
tindo vias de transversalidade (Car- paço pessoal ser continuamente vio- CAMPO DA METODOLOGIA
valho, 2000b:337-358). Esses luga- lado por enfermeiras, internos e mé-
res são freqüentemente demarcados dicos, que sequer se preocupam em No Brasil, sendo relativamente
por recortes espaciais (Carvalho, apresentar-se ou explicar suas ativi- recente e progressiva a implantação
1998:77), reproduzindo funcional- dades, mas que seus territórios são das formas alternativas de assistên-

50 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001


Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

cia, torna-se necessário o desenvol- no plano da ética voltada para os presidente da associação de bairro,
vimento de pesquisas sobre proble- procedimentos metodológicos, tan- da direção do clube ou de um diri-
mas pertinentes à relação entre genciando o projeto arquitetônico. gente de instituição como a escola,
ambiente construído e comporta- Em Arquitetura, o projeto deve o hospital, o posto de saúde.
mento espacial, para que se alcan- ser realizado segundo metodologia O projeto e sua avaliação inclu-
cem as metas da Reforma Psiquiá- própria (Cf. Del Rio, 1998:201-214). em conhecimento de tecnologias e
trica e da Reabilitação Psicossocial. O projeto arquitetônico não pode ser domínio das ciências do espaço,
O hospital-dia, a oficina comunitá- considerado meramente por seu as- envolvendo levantamentos e ques-
ria, o centro de atenção psicossoci- pecto estético, ou como fruto da tões complexas no âmbito dos obje-
al, as residências protegidas e ou- imaginação do projetista. Quanto a tivos, compreendendo funcionalida-
tros ambientes assistenciais teriam essa questão, ressaltamos que há de, conforto ambiental, aspectos
maior eficácia quanto a suas metas métodos de avaliação do ambiente, estéticos. Tais dimensões se tornam
se essa relação fosse observada com que vêm sendo desenvolvidos no indissociáveis na realização de um
mais cuidado. Por outro lado, se se ambiente que atenda às necessida-
oferecem meras adaptações de ser- des e às aspirações dos usuários em
viços manicomiais, tais metas ficam sentido amplo. A avaliação do am-
prejudicadas em função da precari-
TORNA-SE NECESSÁRIO O DESENVOLVIMENTO biente construído, visando as boas
edade dos ambientes. Mas é natu- DE PESQUISAS SOBRE PROBLEMAS condições de atendimento do usuá-
ral que existam tais problemas, em rio, nos conduz ao terreno da ética.
PERTINENTES À RELAÇÃO ENTRE AMBIENTE
sendo esta uma área nova do saber, No tocante à instituição psiquiátri-
que, por falta de conhecimentos se- CONSTRUÍDO E COMPORTAMENTO ESPACIAL, ca, a ética tangencia um compromis-
dimentados e pela constante emer- PARA QUE SE ALCANCEM AS METAS so fundamental com o usuário-alvo,
gência de dúvidas, vem destacar a já que a escolha do espaço em que
DA REFORMA PSIQUIÁTRICA E DA
necessidade de pesquisas. ele é atendido raramente é opção
Em nosso estudo, deparamos REABILITAÇÃO PSICOSSOCIAL sua. Aqui o termo ‘ética’ tem igual-
com várias situações que suscita- mente alcance profissional e políti-
ram este texto. No plano teórico, a co, porque diz respeito à participa-
carência de bibliografia indicando Brasil por profissionais com traba- ção do pesquisador também en-
questões específicas da instituição lhos de pesquisa em vários campos quanto cidadão, capaz de emitir ju-
psiquiátrica. No plano da práxis, ti- da Arquitetura. ízo de valor quanto à espacialidade
veram relevância as dificuldades e O ambiente construído deve ser do entorno institucional e urbano.
dúvidas suscitadas pelo trabalho de observado e reavaliado em qualquer Quanto à cidade e à instituição,
campo, mediante temática e mate- circunstância – da casa à escola, do é dever e direito do cidadão zelar
rial inusitados, sobretudo quanto à lar à cidade, e em qualquer institui- pelo ambiente em que vive, estuda,
técnica de ‘observação participante’, ção de assistência, seja ela pública trabalha, ou de alguma forma é as-
que requer muito tempo do pesqui- ou privada. Em se tratando princi- sistido, seja conservando-o, aprimo-
sador, fornecendo-lhe, porém, um palmente de espaço público e/ou rando-o ou cobrando das autorida-
material de inestimável riqueza, não institucional, o ambiente construí- des o zelo pelos espaços em que ‘vi-
suprido por outro procedimento e do não pode depender da decisão e vemos’. Assim, é tarefa do cidadão
merecendo uma reflexão filosófica do gosto do prefeito da cidade, do observar qualquer ambiente que

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 51


CARVALHO, M. de

diga respeito à população, em esca- mostrando comportamentos que volvida por Apel, centrada na ar-
la urbana, ou a um segmento da po- não foram notados na observação gumentação do indivíduo capaz de
pulação, em escala reduzida, através participante. Principalmente no caso uma formulação enunciativa como
de um serviço que lhe é prestado. do profissional da instituição, essa membro da comunidade (Apel,
Esta observação inclui problemas ou interferência pode levar, em maior 1995:44-68), até o campo da prá-
acertos relativos à malha viária da escala, à distorção e à camuflagem xis, há uma distância por vezes in-
cidade, à iluminação das ruas ou a de dados e de resultados. transponível. Essa distância é ana-
qualquer outro lugar onde estejamos Por outro lado, “Pode-se aceitar lisada pelo pensamento de Dussel:
inseridos; assim, a instituição se si- como certo que, se os membros ‘des- quando se trata de questões ético-
tua como espaço observável. conhecem’ os propósitos do cientis- políticas devemos, em primeira
Em qualquer instituição, a obser- ta, seus comportamentos tenderão a instância, direcionar-nos à práxis
vação dos espaços por profissionais ser menos influenciados. Assim po- e não à argumentação, evitando
que ali atuam, ou por qualquer pes- deremos registrar o comportamento assim o distanciamento e a distor-
soa afeta a esse ambiente, pode ser ção do objeto pelo discurso. Enfa-
vista como prática do exercício da tizando a questão da práxis, e ci-
cidadania. Nesse sentido, na vigên- tando Hinkelammert, Dussel con-
cia da legislação que rege novas
TORNA-SE NECESSÁRIO AVALIAR
sidera nas questões sociais a im-
metas de assistência, torna-se ne- PERIODICAMENTE OS ATUAIS portância do corpo:
cessário avaliar periodicamente os
ESPAÇOS – NOVOS OU
atuais espaços – novos ou reforma- El acceso a la realidad corporal –

dos – com vistas aos objetivos a se- REFORMADOS – COM VISTAS AOS esto es, el estado corporal incólume
en la relación social entre los seres
rem alcançados, sem que se repro- OBJETIVOS A SEREM ALCANÇADOS,
humanos –, y el acceso a los valores
duzam espaços manicomiais. Vamos
SEM QUE SE REPRODUZAM de uso en la relación del ser humano
agora encaminhar esta questão, dos
con la naturaleza, es el criterio de
pontos de vista ético e metodológi- ESPAÇOS MANICOMIAIS
validez ética de las normas en el caso
co, valorizando a técnica da obser-
concreto. (Apud Dussel, 1995:77).
vação participante, que em certas
circunstâncias é insubstituível no natural do grupo” (Goode & Hatt, No trabalho de observação parti-
caso da instituição psiquiátrica. 1972:158). Nesse sentido, é desejá- cipante, percebemos matizes dos
É pensamento comum entre pes- vel a não-identificação da situação problemas espaciais pertinentes ao
quisadores e estudiosos de metodo- de pesquisa, viabilizando-se a técni- corpo. Esse critério de validade ética
logia que a presença do observador, ca da observação participante, con- que considera os valores de uso na
quando este é identificado como tal, siderando-se suas vantagens e des- relação homem/natureza supera as
tende a interferir no comportamen- vantagens, que estamos avaliando hierarquias e dicotomias da mente
to das pessoas ou dos grupos ob- no andamento de nosso estudo. com reação ao e do conhecimento
servados. Notamos, em situações de Quanto à referida técnica, nas com relação à práxis, buscando por-
entrevista, uma certa ‘ansiedade’ duas acepções mencionadas – na di- tanto uma validade concreta – numa
diante dos pesquisadores por parte mensão ética e na metodológica – unidade – pertinente aos espaços que
de alguns profissionais quando sa- há relevantes questões a ser consi- acolhem ou excluem o corpo – o in-
bedores dos objetivos do estudo, deradas. Da ética do discurso desen- divíduo e o cidadão – nos ambientes

52 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001


Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

em que circulamos e/ou nos aloja- al; para isso, ele se torna um mem- Esse procedimento tem sido uti-
mos. A relação corpo-espaço mos- bro daquele grupo, vivendo na prá- lizado em larga escala em pesqui-
tra, em certas situações observa- xis o dia-a-dia dos ambientes, ao sa social e em Antropologia, tendo
das, a necessidade urgente de pro- circunscrever-se nesses espaços sido adotado por cientistas ao es-
jetos adequados e de um estudo através das atividades que permei- tudarem sociedades tribais, operá-
para avaliação dos espaços existen- am a observação participante. rios, seitas religiosas, pacientes ou
tes, sobretudo no tocante à conco- Sobre este procedimento metodo- grupos sociais, e foi utilizado no
mitância de ambientes manicomi- lógico, vejamos o que dizem alguns estudo dos hobo (Anderson, 1923).
ais e de formas alternativas. autores: “Este procedimento é usa- Diz respeito também ao arquiteto
A avaliação dos espaços institu- do quando o investigador pode dis- e ao estudioso do espaço, que, em
cionais objetiva políticas espaciais farçar-se e ser aceito como membro certa escala, lidam com questões
que busquem a inserção do homem do grupo” (Goode & Hatt, 1973:157). comportamentais, em que a obser-
na urbe – consideradas suas limita- Esta mesma questão é tematizada e vação é imprescindível.
ções –, começando pela inserção do Na observação participante afe-
corpo nos ambientes comunitários, ta à instituição psiquiátrica, o dis-
da rua ao quarteirão, e deste ao bair- farce do pesquisador pode ocorrer de
ro e à pólis. Para isso, é necessário vários modos. Ele pode participar de
um posicionamento do pesquisador, uma atividade cotidiana, como a vi-
O ‘CONHECIMENTO’
questionando ‘os mitos da neutrali- sita a um paciente. Pode freqüentar
dade científica’, para ultrapassar os DOS NOVOS ESPAÇOS lugares de convívio, usar a cantina,
limites do discurso. Nessa perspec- SE INICIA PELA INSERÇÃO a biblioteca, o jardim, o banheiro ou
tiva, o pesquisador se insere nos qualquer outra dependência da ins-
DO PESQUISADOR NA INSTITUIÇÃO
ambientes através da observação tituição, ou ainda participar como
participante, que pode assim ter al- expositor ou como ouvinte em con-
cance ético, além de metodológico. ferências, seminários e grupos de
Se tomarmos por base a ética de estudo. O pesquisador pode também
Dussel, o simples ‘reconhecimento’ participar da inauguração de um ser-
de precariedades espaciais não é endossada por outros teóricos men- viço, do festejo de uma data, ou fa-
motivo para modificá-las. Articula- cionando esses dois pesquisadores: zer um curso na instituição. Como já
do somente ao plano da linguagem, foi dito, outros pesquisadores agem
Para esses autores, a observa-
o reconhecimento da diferença ou da mesma forma: “O grupo inglês
ção participativa é um procedimen-
da exclusão não implica ação ou Mass Observation, ao estudar a opi-
to usado quando o investigador se
tomada de consciência de um fato nião de eleitores, utilizou-se de téc-
disfarça ou pede para ingressar em
significativo de alcance social. O ‘co- um grupo com o objetivo de inves-
nicas de camuflagem. Um observa-
nhecimento’ dos novos espaços se tigá-lo. Na observação participan- dor pode confundir-se com operári-
inicia pela inserção do pesquisador te, o pesquisador assume no grupo os entre outros operários ou traba-
na instituição. É no trabalho de dois papéis: o de estranho ao gru- lhar como porteiro numa barbearia.”
campo que o observador percebe po [observador] e o de participante (Goode & Hatt, 1972:158).
invasões espaciais e formula os pa- [membro aceito pelo gr upo]. No procedimento de observação
râmetros de transformação espaci- (Denker & Da Viá, 2001:147) participante, uma dentre as vanta-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 53


CARVALHO, M. de

gens apontadas se refere à espon- do pesquisador diante do grupo: “À como na não participante o proble-
taneidade dos comportamentos: “se medida que o investigador se torna ma do controle da observação não
os membros ‘desconhecem’ os pro- um participante real, paradoxal- está resolvido. À medida que o obser-

pósitos do cientista, seus compor- mente ele restringe a amplitude da vador se torna um participante, suas
experiências tendem a ser únicas,
tamentos tenderão a ser menos in- experiência. Ele assume uma deter-
próprias, e assim, nesse caso, um
fluenciados.” (id., ibid.:158). Ao minada posição dentro do grupo,
segundo pesquisador não seria ca-
participar, por exemplo, de um gru- com um determinado grupo ou cír-
paz de anotar os mesmos fatos. Exis-
po de estudos ou de um seminário, culo de amigos” (id., ibid.:159). Isto
tirá, pois, menor padronização dos
ou ao dar aula nas dependências de pode colocá-lo numa situação de
dados (id., ibid.:159).
um hospital ou de um serviço alter- hierarquia, favorável ou não, fe-
nativo, caso o pesquisador seja tam- chando vias de informação. Tais desvantagens não pesaram
bém professor - situações comuns Há outro senão mencionado pe- para o cômputo de nossos dados, le-
em nossa pesquisa - tais eventos los teóricos, quanto ao envolvimen- vando-nos a concluir que elas ope-
devem ser ressaltados como vanta- ram com maior ou menor intensida-
gem dessa técnica: “Assim ele [o de, dependendo do tipo de pesquisa,
pesquisador] tem acesso a um cor- do objeto pesquisado e da avaliação
constante do viés que possa intervir
po de informações que não seria
“COMO SEU PERÍODO DE PARTICIPAÇÃO
facilmente obtido somente olhando em cada etapa do estudo na fase de
de maneira desinteressada. [...]. PODE CONTINUAR DURANTE MESES, A sistematização do conhecimento.
Obtém assim uma experiência mais VARIAÇÃO DO MATERIAL OBTIDO SERÁ MUITO
profunda, enquanto registra o com-
MAIS AMPLA DO QUE AQUELA OBTIDA
portamento dos outros participan- RESULTADOS PARCELARES
tes.” (id., ibid.:158). ATRAVÉS DE UMA SÉRIE DE ENTREVISTAS,
Outra vantagem, dentre outras, EMBORA LONGAS” (ID., IBID.:158) Os dados obtidos na observação
é relativa ao tempo da pesquisa: participante foram relacionados e
“Como seu período de participação entrecruzados com os demais, obti-
pode continuar durante meses, a dos por outros procedimentos. Por
to emocional e afetivo por parte do outro lado, o espaço construído tem
variação do material obtido será
cientista: “Assim também, à medi- uma objetividade no plano físico ou
muito mais ampla do que aquela
da que participa emocionalmente, estético, que nos permite filtrar ele-
obtida através de uma série de en-
perde a objetividade, que é a sua mentos informativos e sistematizá-
trevistas, embora longas” (id.,
grande virtude” (id., ibid.:159). Pode los em categorias. O comportamen-
ibid.:158). Nossos primeiros conta-
ele reagir com carinho ou raiva, to espacial tem sempre a possibili-
tos duraram, em média, de um a
buscar apoio e prestígio, simpatizar dade de ser igualmente dimensio-
dois anos, tendo sido breves em
com as tragédias de um grupo, par- nado de modo objetivo, como, por
outras instituições.
ticipar de suas alegrias e tristezas. exemplo, os efeitos de um aposento
Expostas as vantagens deste pro-
Outro problema apontado é do sem janelas, a padronização das en-
cedimento, vamos às desvantagens.
controle dos dados: fermarias, ou os conflitos ocasiona-
Uma das desvantagens aponta-
das pelos estudiosos da metodolo- Finalmente, como é natural, é cla- dos durante as refeições pela dis-
gia enfatiza a questão da hierarquia ro que na observação participante posição das mesas, gerando inva-

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Ambiente Construído e Comportamento Espacial na Instituição Psiquiátrica: questões éticas em Observação Participante

sões espaciais. São também objeti- sem modelo (Carvalho, 2000b:356). Em nossa pesquisa, não partimos
vamente observáveis questões de Do contrário, corremos o risco de da argumentação para estabelecer-
conforto ambiental, do ponto de vis- dominar teorias sobre o espaço e mos uma práxis. Ao tomarmos par-
ta do asseio, da conservação, da ae- na prática reproduzir os mecanis- te de algumas atividades nas insti-
ração, da temperatura dos interio- mos manicomiais, mudando ape- tuições em que realizamos observa-
res e exteriores, da poluição visual nas as ‘cores’ ou a ‘fachada’. E é ção participante, nosso objetivo foi
e sonora etc. Tais dados podem ser através da experiência do espaço colher dados, optando por uma pos-
observados em seus efeitos sobre o que o pesquisador pode se posicio- tura ética que privilegia nossa expe-
usuário na relação corpo/ambiência. nar na instituição, enquanto cor- riência nos espaços institucionais,
Os lugares observados podem po, inserido numa atividade inte- caracterizando uma perspectiva vol-
ser enquadrados nas categorias grada ao trabalho de campo. tada para os problemas da pólis:
atração, neutralidade e hostilidade. Os dados obtidos pela observa-
Participar de una ‘comunidad de
Finalmente, utilizando-nos de um ção participante podem ser analisa- productores’ o ‘comunidad de vivien-
entrecruzamento de dados, foi pos- tes’ es condición primera del sujeto ar-
sível agruparmos as referências es- gumentante ‘como viviente’.. La Ética
paciais por suas características ou de la Liberación por su parte considera
predominantemente subjetivas, ou
CORREMOS O RISCO DE como el criterio y punto de partida, la
predominantemente objetivas, ou corporalidad sufriente del dominado o
expressivas, através da imaginação DOMINAR TEORIAS SOBRE excluído: la alteridad del Outro nega-
de espaços desejados. Para classifi- O ESPAÇO E NA PRÁTICA do en su dignidad (Dussel, 1995:77).

car esta ordem de dados, nós os


REPRODUZIR OS MECANISMOS O pesquisador nesse caso realiza
descrevemos respectivamente como
sua própria inserção no campo de
espaços imagético-simbólicos, ma- MANICOMIAIS, MUDANDO APENAS
estudo, como indivíduo e teórico,
terialidade espacial e espaços idea- AS ‘CORES’ OU A ‘FACHADA’ mas, em primeira instância, como
lizados. Embora valendo-nos de membro da comunidade valorizan-
outras técnicas de sondagem, res- do todas as possibilidades de alteri-
saltamos como fundamental o acer- dade (Dussel, 1992), considerando
vo de dados obtidos pela observa- dos, confrontados e posteriormente
do ponto de vista ético uma referên-
ção participante, pelos motivos ex- trabalhados, numa busca de cate-
cia às raízes históricas da América
postos do ponto de vista ético-me- gorias que os sistematize e corrija
Latina, quando se inicia aqui o en-
todológico, visando critérios de as distorções advindas desta técni- cobrimento do outro (Dussel,1993).
transformação dos espaços. ca. Esta prática propiciou a elabo- Isto nos leva a considerar o sofrimen-
Para isso são necessários novos ração de resultados gerais e parce- to dentro de uma dupla exclusão.
paradigmas (Kuhn, 1982:13), que lares na referida pesquisa, estabe- Esta é a meta que nos permite
recusem os modelos da ciência nor- lecendo categorias que nos permiti- dar continuidade à nossa pesqui-
mal (id., ibid.:43), daquela que é ram ‘ler’ os espaços estudados, bem sa, desvencilhando-nos a cada pas-
aceita a priori pela comunidade ci- como formular recomendações ca- so das teorias dos espaços vazios,
entífica. Aqui o cientista deverá en- bíveis em cada caso e, mais ampla- construídas sobre o ermo dos lu-
frentar desafios. Deverá questionar mente, na instituição que elegemos gares preenchidos por neutralida-
modelos e até conceber espaços como estudo de caso. de e indiferença.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001 55


CARVALHO, M. de

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56 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 48-56, maio/ago. 2001


Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade
ARTIGOS ORIGINAIS

Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da


relação com a cidade
Sheltered Homes: a political-clinical apparatus in the locked relationship with the city

RESUMO
Regina Benevides de Barros
1
Os avanços do processo de desospitalização e de desinstitucionalização
Silvia Josephson2 promovidos a partir da Reforma Psiquiátrica tem sido acompanhados de
desafios e impasses especialmente quando se busca o reposicionamento
sócio-político do ‘paciente psiquiátrico’. A saída do paciente do hospital
deve ser acompanhada de ofertas que lhe permitam passagens até então
obstruídas na relação com o socius. Os ‘lares abrigados’ destacam-se como
configuração na qual os usuários podem experimentar e vivenciar redes de
relações sociais mais amplas. A relação com a cidade no contemporâneo,
entretanto, traz elementos novos que precisam ser analisados sem o que
poderíamos incorrer em equívocos de se buscar inclusão em configurações
urbanas bastante avessas às misturas. O planejamento da assistência na
saúde não pode, assim, estar dissociado da análise das características
sociais/políticas/econômicas/culturais dos diferentes espaços urbanos.

PALAVRAS-CHAVE: saúde mental, dispositivo institucional, reforma psiquiátrica,


cidade

ABSTRACT
The progress of deshopitalisation and desinstitutionalization processes
1
Professora do Departamento de Psicologia
promoted by the Psychiatric Reform has been followed by challenges and
da Universidade Federal Fluminense, deadlocks specially when it comes to look for social-politic replacement of
Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica the ´psychiatric patient´. The patient´s exit from hospital must be allied by
(PUC/SP), Pós-Doutorado na área de offers which open passages until then obstructed in the relationship with
Planejamento e Administração em Saúde
the socius. The ´sheltered homes´ stand out as a configuration in which
do Departamento de Medicina Preventiva e
Social da FCM da UNICAMP the users can experiment and take part in larger social networks. The
e-mail: rebenevi@terra.com.br relationship with the city at present, however, brings new elements which
2
Professora do Departamento de
need to be analyzed so as not to incurr in mistakes in the search for inclusion
Psicologia da Universidade Federal in urban configurations against mixtures. The health assistance planning
Fluminense, Psicóloga, Mestre em cannot, however, be dissociated from the social/ political/ economical/ cultural
Psicologia Social – UERJ, Doutoranda em characteristics of different urban spaces.
Psicologia Social – UERJ
e-mail: silviacj@bol.com.br KEY WORDS: mental health; institutional apparatus; psychiatric reform; city

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 57


BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.

INTRODUÇÃO mensionado quase sempre como in- Em pesquisa realizada nos últi-
tervenção sobre o sintoma, viu-se mos quatro anos sobre o tema da
Dentre os impasses produzidos imediatamente convocada ao indis- ‘Desinstitucionalização da loucura,
pelo movimento desospitalizante e sociável exercício político de produ- os estabelecimentos de cuidado e as
desinstitucionalizante no campo da ção de subjetividade, aqui entendi- práticas grupais’1, dirigimos nosso
saúde mental está, certamente, o da como processo de produção do olhar, na sua última fase, ao mape-
reposicionamento sócio-político do eu e do mundo. amento das experiências dos cha-
‘paciente psiquiátrico’ quando in- O paciente, agora usuário dos mados Lares Abrigados no municí-
vestido pelos novos equipamentos serviços substitutivos de saúde pio do Rio de Janeiro.
de assistência. mental, passa a ser observado além A direção da pesquisa foi, na ver-
O hospital tomado, até então, dos muros do hospital psiquiátrico, dade, definida pelas indicações do
como locus do tratamento, seguido além de seu código de inscrição na próprio campo pesquisado já que,
da crítica aos métodos de conten- ‘Classificação Internacional das Do- em contato com alguns Serviços de
ção e asilamento ali praticados, tem Atenção Diária, pode-se acompa-
posto, cotidianamente, problemas nhar a inquietação dos profissionais
que os profissionais da saúde, ao de saúde frente à situação de paci-
se engajarem na ‘luta anti-manico- O PACIENTE, AGORA USUÁRIO DOS SERVIÇOS entes que haviam perdido contato
mial’, conseguem muitas vezes ape- com suas famílias nos longos perí-
SUBSTITUTIVOS DE SAÚDE MENTAL, PASSA A
nas dimensionar. odos de internação ou aqueles cu-
A retirada do paciente do mani- SER OBSERVADO ALÉM DOS MUROS DO jas famílias apresentavam dificulda-
cômio, por exemplo, como logo se des de os receberem de volta à casa.
HOSPITAL PSIQUIÁTRICO, ALÉM DE SEU
viu, tornou visível a complexidade A oferta de espaços habitacionais
e amplitude da tarefa da proposta CÓDIGO DE INSCRIÇÃO NA ‘CLASSIFICAÇÃO para estes pacientes, em que pudes-
antimanicomial: lidar com a expe- INTERNACIONAL DAS DOENÇAS’ sem ser acompanhados por um tra-
riência da loucura sem tratá-la como balho com ênfase na crescente au-
doença, lidar com o sofrimento do tonomização de suas ações, mostra-
paciente e da família, estabelecer li- va-se, portanto, fundamental.
gações com a cidade para pacientes enças’. A saída do paciente do hos- Dessa forma, decidimos redire-
isolados pelas fortes políticas segre- pital deve, portanto, ser acompa- cionar a pesquisa2 incluindo outro
gacionistas sobre a doença mental. nhada de ofertas que lhe permitam eixo, este relativo à análise das
A clínica, voltada até então para o passagens até então obstruídas na fronteiras entre o ‘dentro’ e o ‘fora’
‘tratamento’ do paciente, este di- relação com o socius. dos Serviços permitindo-nos o

1
“Desinstitucionalização da loucura, os estabelecimentos de cuidado e as práticas grupais”, pesquisa coordenada por Regina Benevides de
Barros e co-coordenada por Silvia Josephson, contou com a participação de dois bolsistas de inciação científica e com o apoio do CNPq/PIBIC/
UFF, Departamento de Psicologia/UFF.
2
A pesquisa, até aquele momento, havia tomado como objeto de investigação a utilização das práticas grupais no campo da Reforma Psiquiá-
trica (cf. Benevides de Barros, R. & Josephson, S. “As práticas grupais, a Instituição da Saúde Mental e os estabelecimentos de cuidado” ,
subprojeto do “Projeto de Integrado de Pesquisa: Saúde Mental, Desinstitucionalização e Abordagens Psicossociais”, coordenado por Eduardo
Mourão Vasconcellos. Projeto integrado UFF/UFRJ, 1996-1998, com apoio do CNPq).

58 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001


Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

acesso a outras práticas voltadas questões de ordem coletiva. Questi- Estes autores têm trabalhado
para o que, no movimento da Re- ona-se o recuo do envolvimento nos com uma concepção que considera
forma Psiquiátrica, é nomeado por problemas de cunho social e políti- os espaços urbanos para além de
‘reinserção social’.3 co, o aumento de comportamentos seu aspecto puramente técnico, pri-
Este redirecionamento veio ao ‘bairristas’ e o enclausuramento dos orizando o aspecto político e identi-
encontro das propostas formuladas indivíduos em comunidades homo- ficando-os com uma máquina pro-
inicialmente pela Reforma Psiquiá- gêneas que promovem a desvitali- dutiva que tanto pode se orientar no
trica italiana, modelo privilegiado zação e desqualificação dos espa- sentido de um esmagamento unifor-
pela Reforma brasileira, onde se ços urbanos. (Sennett, 1988; Rago, mizador, quanto na direção de uma
constata a preocupação com inves- 1993; Chauí,1992). ressingularização (Fourquet, 1978).
timento em uma luta por condições Paralelamente, pesquisas em O tom comum dos trabalhos re-
de vida para os ‘doentes mentais’ que áreas como a filosofia, geografia, feridos acima refere-se à existên-
lhes permitam exercer sua cidadania psicologia, antropologia, entre ou- cia de dispositivos e estratégias de
e reconstruir suas existências, tanto disciplina e controle que têm pre-
subjetiva quanto objetivamente. As- sidido a organização e reformula-
sim, paralelamente à abertura dos ção dos espaços urbanos e têm re-
portões dos grandes hospícios, pro- dundado na produção de cidadani-
curou-se construir um envolvimen- PARALELAMENTE À ABERTURA as hierarquizadas, com a segrega-
ção e marginalização de grandes
to progressivo com a população e DOS PORTÕES DOS GRANDES HOSPÍCIOS,
com a cidade. Com esse movimento camadas da população em áreas
buscou-se a reconstrução de uma
PROCUROU-SE CONSTRUIR UM onde a oferta de serviços e tecno-
relação cotidiana com a família e ENVOLVIMENTO PROGRESSIVO COM A logias é subdesenvolvida em todos
com os equipamentos sociais, refor- os aspectos – as favelas, os bair-
POPULAÇÃO E COM A CIDADE
çando-se a idéia de que a desinstitu- ros de periferia e as invasões de
cionalização da loucura dever-se-ia grandes terrenos desabitados.
estender no espaço urbano, porque Algumas dessas pesquisas, pri-
nele existiriam forças vivas que se vilegiando uma abordagem históri-
configuram como elementos impor- tras, têm trabalhado no sentido de co – genealógica, nos apresentam
tantíssimos para o desenvolvimen- analisar os modos de produção que, um quadro onde aparece em cores
to de estratégias terapêuticas. nas grandes cidades contemporâne- vivas o mecanismo pelo qual o pro-
Ao lado desta preocupação, en- as, fazem emergir tais comporta- jeto político de normalização social
tretanto, temos tido contato com mentos individualistas em conso- do espaço urbano, formulado e di-
trabalhos e debates nos quais se nância com o aparecimento de es- fundido pela medicina social do sé-
analisa a relação entre o individua- paços de exclusão e hierarquização culo XIX (1840 a 1890), escolheu
lismo exacerbado do mundo con- sociais (Josephson, 1999; Guattari, como alvo privilegiado de sua inter-
temporâneo e o desinteresse com as 1992; Rolnik, 1994). venção a população que tinha nas

3
Usamos aqui o termo tal como é frenquentemente referido na literatura especializada. Destacamos,entretanto, que este mereceria análise
mais cuidadosa, que foge ao escopo deste trabalho.

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ruas seu espaço de vida e circula- ples delegação às comunidades do às práticas de reinserção social. Isto
ção: os pobres, os loucos, as prosti- cuidado com a saúde? nos possibilitaria conhecer as res-
tutas, os operários e os prisionei- Vale destacar que os conceitos postas que os profissionais da saú-
ros. Todos eram, então, considera- de cidadania, autonomia e reinser- de, os territórios urbanos e os equi-
dos como classes perigosas, porque ção social, amplamente utilizados pamentos sociais têm dado à essas
sem domicílio certo, sem família, nas propostas da Reforma Psiqui- iniciativas, tanto quanto os efeitos
sem ocupação reconhecida. As pro- átrica, merecem, também ser pro- que esse movimento pode estar pro-
postas de reordenação dos espaços blematizados posto que, grande duzindo no trabalho desenvolvido
urbanos caracterizaram-se em disci- parte das vezes estão calcados em na rede de saúde mental com os
plinar essa massa de indivíduos, se- definições universalistas e abstra- usuários e seus familiares.
gregando-os em grupos e isolando- tas que pouco se detêm na análise Dentre os dispositivos que têm
os do convívio das classes detento- das intrincadas ligações com a sido experimentados, os Lares Abri-
ras do poder econômico e político, questão das classes sociais, dos gados destacaram-se como configu-
direcionando alguns para os subúr- ração na qual os usuários podem
bios e favelas, outros para lugares estabelecer um tipo de inserção dife-
escondidos das vistas das famílias: rente de outros desenvolvidos nos
para as prisões e os manicômios.
TRAÇAMOS, ENTÃO, COMO OBJETIVO, Serviços diários (Centro de Atenção
Em que pese o passar dos anos MAPEAR OS PROJETOS EXISTENTES NA Diária – CADS, Núcleos de Atenção
e o quanto se conseguiu avançar Psicossocial – NAPS, Hospitais-Dia
CIDADE DO RIO DE JANEIRO PROCURANDO
em relação aos processos discrimi- – HDS, Centros de Atenção Psicosso-
nalizadores do lidar com a diferen- ACOMPANHAR COMO TAIS PROPOSTAS ESTÃO cial – CAPS) já colocados em prática
ça, continuamos a conviver com SENDO IMPLEMENTADAS E QUE EFEITOS TÊM pelo movimento da Reforma. Trata-
estas e outras segregações e nos se de um lugar não mais caracteris-
PRODUZIDO QUANTO À PRETENSÃO DE
perguntamos como, no caso espe- ticamente terapêutico, mas um es-
cífico dos loucos, ultrapassar um REINSERÇÃO SOCIAL DOS USUÁRIOS paço em que se espera que o usuário
preconceito secular e que, em nos- possa experimentar e vivenciar redes
sos dias, encontra-se agenciado a de relações sociais mais amplas.
interesses outros como, por exem- gêneros, dos processos de trabalho Traçamos, então, como objetivo,
plo, os interesses da indústria da no contemporâneo. Tais categori- mapear os projetos existentes na ci-
medicalização ou os da indústria as, quando tomadas de forma abs- dade do Rio de Janeiro procurando
da privatização da saúde? Como trata, apenas reproduzem, de ma- acompanhar como tais propostas
proceder para que o resgate (ou neira ingênua, certos modos de estão sendo implementadas e que
melhor seria dizer – construção?) operar hegemônicos das formações efeitos têm produzido quanto à pre-
da cidadania dos chamados ‘doen- sociais em que se inserem. tensão de reinserção social dos usu-
tes mentais’, não se configure como Tais questões apontaram para ários. Queríamos, também, saber
uma resposta à demanda de dimi- a necessidade de um trabalho de que práticas ‘psi’ vêm sendo desen-
nuição de gastos públicos pela sim- campo que nos permita ter acesso
4
volvidas e que contribuições têm

4
O trabalho de campo foi realizado pelas bolsistas de iniciação científica Wilma Mascarenhas e Alessandra Daflon

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

dado para o movimento da Refor- to Philippe Pinel; o da Colônia Juli- tria do terceiro ano (R3), uma aluna
6
ma Psiquiátrica. ano Moreira, ambos municipaliza- do Curso de Assistência ao Psicótico
O material que se segue apresen- dos; o Lar Abrigado do Instituto de e duas assistentes sociais. Estes pro-
ta algumas conclusões parciais so- Psiquiatria da UFRJ (IPUB), e a Re- fissionais interessaram-se em dar
bre tais experiências. A parcialidade pública de Pasárgada do Centro Psi- andamento a um projeto desta na-
refere-se menos a uma posição que quiátrico Pedro II (CPPII). tureza a partir da constatação de
se pretenda, um dia, ser ‘completa’, O Hospital Philippe Pinel foi uma haver, na enfermaria do hospital,
do que a uma certeza das pesquisa- das primeiras instituições a imple- pessoas que não tinham para onde
doras de que o olhar, a escuta, a aná- mentar esta proposta. Há dez anos ir depois de estarem em alta médica.
lise são sempre recortes do que foi vem promovendo a reformulação No CPPII existem, como proje-
vivido na situação de pesquisa. dos seus serviços, seja pela organi- tos de moradia, a República de Pa-
zação de um hospital-dia, seja pe- sárgada, os ‘Colaboradores Sociais’,
las inovadoras experiências de dis- a Pensão Feminina, a Pensão Mas-
EIXO I: O SURGIMENTO DOS LARES ABRIGADOS culina, e a pensão do EAT (Espaço
Aberto ao Tempo). O EAT é um hos-
Os primeiros lares abrigados fo- pital-dia, que tem um trabalho de
ram criados em São Paulo e no Rio
Grande do Sul. O movimento dos pro-
OS PRIMEIROS LARES ABRIGADOS FORAM moradia a ele vinculado. Os Colabo-
radores Sociais existem desde o iní-
fissionais em Saúde Mental para a CRIADOS EM SÃO PAULO E NO RIO GRANDE cio da década de 80 e as pensões fo-
criação de lares abrigados no Rio de DO SUL. O MOVIMENTO DOS PROFISSIONAIS ram-se organizando mais recente-
Janeiro começou há pouco tempo. mente. A República é de 1995 e as
Seguindo os moldes da reforma,
EM SAÚDE MENTAL PARA A CRIAÇÃO DE
Pensões Feminina e Masculina são
a proposta relativa aos lares abriga- LARES ABRIGADOS NO RIO DE JANEIRO contemporâneas da República. O
dos objetivava, inicialmente, retirar projeto dos Colaboradores Sociais
COMEÇOU HÁ POUCO TEMPO
as pessoas das enfermarias, deslo- não era, inicialmente, um serviço de
cando a ênfase do tratamento, atre- moradia, tendo nascido como um
lada à lógica medicalizadora, para serviço de trabalho protegido.
alternativas crescentes de maior par- positivos de intervenção – a TV Pi-
ticipação do usuário na gestão de sua nel, por exemplo – seja pela propos-
vida e na diversificação de contato ta do Lar Abrigado, este, denomi- EIXO II: A PROPOSTA DO LAR ABRIGADO E SUA
com o espaço urbano. nado Lar Abrigado Paulo Barreto. LIGAÇÃO COM A REDE DE ASSISTÊNCIA
Há quatro projetos de Lares em O projeto de Lar Abrigado do IPUB
funcionamento hoje no município começou no segundo semestre de Segundo os entrevistados, este
do Rio de Janeiro: o Lar Abrigado
5
1998. Havia um primeiro grupo com- tipo de serviço substitutivo não se
Paulo Barreto, vinculado ao Institu- posto por um residente de psiquia- constitui em espaço de atendimen-

5
Os dados colhidos referem-se ao período da realização da pesquisa: jul/99 a jul/00.
6
O contato estabelecido com a Colônia Juliano Moreira restringiu-se, por motivos institucionais e de prazo da pesquisa, a uma visita seguida
de observações assistemáticas. Como não foi possível entrevistar os profissionais que lá trabalham, não estaremos, na análise, incluindo este
estabelecimento.

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to. A meta é fazer dele uma resi- residência, cujo funcionamento te- EQUIPES
dência, um lugar onde os usuári- rão que gerir.
os possam conviver com outras Um ponto importante destacado No Lar Paulo Barreto trabalham
pessoas, fazer novos vínculos afe- é a constante ausência de técnicos seis estagiários de psicologia, dois
tivos e construir suas vidas fora nas casas, a partir do momento em voluntários (alunos da UFRJ) e um
do hospital. O atendimento médi- que os moradores assumem o geren- coordenador. Existe espaço para ou-
co-psicoterápico oferecido é ambu- ciamento das mesmas. Segundo os tras especialidades, mas ultimamen-
latorial e realizado com profissio- técnicos do Lar Paulo Barreto, eles te têm recebido apenas estagiários
nais externos aos lares, nos hos- estão ali cuidando para que, cada vez de psicologia. A equipe do Lar do
pitais de referência. Este funcio- mais, os moradores assumam suas IPUB é composta por três assisten-
namento também obriga os usuá- vidas, o que significa que, aos pou- tes, três psicólogas, sendo uma de-
rios a circular, a aprender a andar cos eles devem assumir as ações di- las professora da UFRJ, além de duas
nas ruas e estabelecer outras re- árias e os técnicos serem cada vez cuidadoras. A equipe ressalta o ter-
lações, mediante o contato com mo ‘cuidadora’, para designar a fun-
outras pessoas. ção de duas funcionárias do IPUB
O importante para este novo que dormem no apartamento com as
modelo de assistência é promover o
A PROPOSTA DOS LARES ABRIGADOS, ENTÃO, moradoras. No caso da República do
trabalho em saúde mental conside- É A DE TRABALHAR COM PESSOAS QUE JÁ CPPII existe uma coordenadora que
rando as experiências de cada pro- é assistente social e conta com o
ESTIVERAM INTERNADAS E QUE PERDERAM
fissional e de cada usuário. Uma das apoio e trabalho de dois estagiários
funções da equipe, segundo os co- SEUS VÍNCULOS, OU MESMO COM AQUELAS do programa em Saúde Mental.
ordenadores, é promover e dar su- QUE, AINDA TENDO REFERÊNCIAS FAMILIARES,
porte à ligação entre a instituição
NÃO QUEREM OU NÃO CONSEGUEM
que presta assistência ambulatori- RECURSOS
al ou diária (como é o caso dos ‘RETORNAR AO NÚCLEO FAMILIAR’
CAPS) e o Lar e entre os moradores Os recursos com que os Lares con-
e os profissionais de saúde. tam são basicamente oriundos de
A proposta dos Lares Abrigados, mais somente apoiadores destas ta- suas instituições de origem. No caso
então, é a de trabalhar com pes- refas. Acreditam serem necessários do Lar Paulo Barreto, o Instituto Fran-
soas que já estiveram internadas outros serviços para que os Lares co Basaglia contribui com apoio téc-
e que perderam seus vínculos, ou Abrigados não sejam a única saída nico; já o Instituto Philippe Pinel é
mesmo com aquelas que, ainda dos hospícios. Chamam a atenção responsável pelo aluguel da casa. No
tendo referências familiares, não para o fato de que a rede de assis- dia-a-dia, os técnicos têm procurado
querem ou não conseguem ‘retor- tência oferece vários dispositivos de incentivar os moradores a retirarem
nar ao núcleo familiar’. Além dis- atendimento e que os Lares não de- o benefício de R$150,00 do INSS a que
so, trata-se de criar oportunidades vem ser tomados como um fim em si todos têm direito (benefício para por-
para o estabelecimento de relações mesmos, um ideal, mas devem con- tadores de deficiência). Este é um pon-
diferentes daquelas do hospital, tribuir para a articulação da plurali- to polêmico entre os técnicos, pois a
investindo na mudança da cultu- dade de propostas disponíveis no República do CPPII não apóia esta ati-
ra hospitalocêntrica para a de uma campo da Saúde Mental. tude por considerar que isto legitima-

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

ria a incapacidade dos usuários. No é obrigatória para os usuários e toda moradores são: estar com indicação
caso dos lares do IPUB e do Instituto a equipe. Geralmente os próprios de alta, ou seja, não estar em crise,
Pinel, a partir do momento em que moradores cuidam de seus objetos e não ter para onde ir. No Lar Paulo
os usuários começam a receber o be- pessoais, do espaço da casa e de suas Barreto existe um período de adap-
nefício, existe uma contribuição para refeições. No Lar do IPUB existe, como tação que é variável (mais ou me-
a caixinha da casa, em torno de 1/5 dissemos, a figura da ‘cuidadora’, que nos um mês) em que o usuário é
do que recebem de seus benefícios, possui formação na área de saúde e acompanhado por um membro da
destinada para a administração da que participa mais cotidianamente da equipe. Este processo compreende
casa. No Lar Abrigado do IPUB, a Se- administração da casa. passeios pelo bairro e visitas perió-
cretaria Municipal de Desenvolvi- Todos os projetos de lares abriga- dicas à casa, com o intuito de es-
mento Social financia 50% do aluguel dos visitados por nós trabalham com treitar laços com o lar e os outros
e o IPUB complementa o restante: a idéia de que a casa não é um espa- moradores. Nesta casa, atualmen-
IPTU, condomínio, alimentação, a ço de assistência à crise. Caso exista te, moram seis pessoas, de ambos
parte de medicação, além do paga-
os sexos e a proposta é chegar a tra-
mento dos técnicos.
balhar com 11 pessoas.
No Lar do IPUB os critérios são
os mesmos. Trabalham com flexibi-
EIXO III: FUNCIONAMENTO E ROTINA GERALMENTE OS PRÓPRIOS
lidade procurando saber sobre a
MORADORES CUIDAM DE demanda do usuário pelo serviço da
Observamos que as regras de con-
SEUS OBJETOS PESSOAIS, moradia. O grupo é composto por
vívio e a rotina dos Lares são estabe-
mulheres, fato não premeditado.
lecidas em conjunto pelos moradores DO ESPAÇO DA CASA
Algumas destas usuárias eram fre-
e técnicos em reuniões agendadas E DE SUAS REFEIÇÕES qüentadoras do Hospital Dia e ti-
entre eles. Os técnicos participam des-
nham dificuldades em encontrar
te momento auxiliando na organiza-
moradia, por isso foram convidadas
ção do dia-a-dia e acompanhando os
a participar do projeto.
moradores em suas atividades, quan-
Na República do CPPII não há
do necessário. No Lar Paulo Barreto a necessidade de internação, os usu-
restrições à participação de depen-
estipulou-se a hora do jantar como ários são encaminhados ao lugar de
este momento. No Lar coordenado dentes químicos no projeto, como
referência. Os Lares Abrigados não
pelo IPUB, este encontro ocorre uma ocorre nos demais. A equipe enten-
têm estrutura e nem como proposta
vez por semana, todas as quintas-fei- de que a dependência química está,
acolher pessoas em crise, porém as
ras à tarde e os temas costumam ser: em geral, associada a alguma outra
equipes mantêm-se alerta e sempre
a caixinha, a dificuldade de dar di- questão psiquiátrica. Desde que es-
prontas para atuar quando preciso.
nheiro para a caixinha, o que está fal- tejam em tratamento, os usuários
tando, o que está acontecendo na se- são recebidos neste projeto. Esta
mana, quais os problemas que estão EIXO IV: OS CRITÉRIOS equipe ressalta a questão da vonta-
ocorrendo. Tais encontros não têm o de e da autonomia como condições
aspecto de reunião, como ocorre na Em todos os serviços pesquisa- importantes para a adesão do usu-
República do CPPII, onde a presença dos, os critérios para selecionar os ário ao trabalho.

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EIXO V: A CASA E O TERRITÓRIO do Centro Comunitário, que é um que a comunidade freqüente a ins-
prédio de imensa circulação. Este tituição investindo na desconstru-
Nos projetos do Instituto Pinel e Centro é um programa do Hospital ção do preconceito por meio do con-
do IPUB, o que representou um gran- que acontece numa antiga unidade vívio e do contato.
de obstáculo à sua implementação, de internação com uma área cons- Todos os projetos dos lares pro-
segundo os coordenadores entrevis- truída de 10.000 m ², que ficou de- curam desenvolver trabalhos que
tados, foi a dificuldade de uma ins- sativada por oito anos, à espera de promovam a autonomia de seus
tituição pública assumir o aluguel uma obra do Ministério da Saúde moradores para que estes possam
de uma residência, com finalidade que não aconteceu. Houve uma pro- gerir a própria vida. Os técnicos do
de ‘moradia’. posta de ocupar este espaço com Lar Paulo Barreto enfatizam a pre-
No Lar Paulo Barreto houve a pre- atividades de promoção de saúde, ocupação em não tratar os usuári-
ocupação, por parte da equipe idea- em parceria com a sociedade civil os como crianças, estando atentos
lizadora do projeto, de freqüentar as organizada. A idéia era que os es- à questão da infantilização tão pre-
reuniões da associação de morado- sente nos espaços asilares. Eles afir-
res, travando contato com os mora- mam que ali não há atividades te-
dores do bairro, o que facilitou a ins- rapêuticas, mas o espaço, o ambi-
talação do Lar. Em relação à intera-
A EQUIPE RESSALTA UM ente e o convívio em si são terapêu-
ção com a comunidade, existe o que OUTRO TIPO DE OBSTÁCULO ticos, pois permitem que os mora-
eles chamam de ‘Amigos do Lar Abri- ENCONTRADO: O PRECONCEITO, dores criem laços afetivos a partir
gado Paulo Barreto’ que é um grupo do contato com as outras pessoas
de pessoas que freqüenta a casa em
NÃO TANTO EM RELAÇÃO À da casa. A relação entre os técnicos
algumas ocasiões organizadas pelos DOENÇA MENTAL, MAS, e os moradores desta residência é
moradores e técnicos, como jantares, vista como a mais espontânea pos-
PRINCIPALMENTE, EM RELAÇÃO
churrascos, etc. A equipe ressalta um sível, pois ali não existe uma hie-
outro tipo de obstáculo encontrado: À POBREZA rarquia como no hospital onde há
o preconceito, não tanto em relação relações distanciadas entre pacien-
à doença mental, mas, principalmen- te, médico e psicólogo. Este traba-
te, em relação à pobreza. A aparên- paços fossem reinvestidos fisica- lho realizado fora da instituição
cia e os hábitos dos moradores inco- mente e ocupados por entidades asilar possibilita a técnicos e estu-
modaram inicialmente seus vizi- como a Associação de Moradores, dantes estar em contato com as pes-
nhos. A atitude da equipe se dirigiu grupos como Alcoólatras Anônimos, soas, constituindo um outro olhar
no sentido de promover uma refle- Narcóticos Anônimos, grupos de “um olhar dirigido para o ser hu-
xão com estas pessoas sobre os mo- escoteiros; enfim, organizações que mano” (sic).
tivos do incômodo. pudessem estar em parcerias com a Em todos os projetos existem
Um caso especial é o da Repú- instituição oferecendo atividades tentativas de aproximação com a
blica de Pasárgada (CPP II), onde a gratuitas e que pudessem incluir comunidade, seja por meios de even-
vizinhança é a própria instituição. alguns usuários. Todos estes proje- tos e festas, seja por meio de proje-
O objetivo do projeto é ter uma casa tos buscam a lógica da desmistifi- tos desenvolvidos pela própria ins-
fora do espaço asilar mas, no mo- cação da doença mental, a inclusão, tituição, como é o caso da Repúbli-
mento, a moradia funciona dentro a troca social e a insistência para ca do CPPII, onde o Centro Comuni-

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

tário é o lugar de intercâmbio entre sistência àqueles que durante sécu- saneamento e habitação, a diminui-
a comunidade e a instituição. Este los, tem estado alijados dos direi- ção da oferta de trabalho, acarre-
é um espaço que se incumbe de ati- tos sociais básicos – os ‘mentais’. 7
tando um incremento da massa de
vidades de lazer e de cultura para a Entretanto, tais lutas, se têm avan- desempregados e subempregados.
comunidade interna e externa, gra- çado em suas conquistas têm, por Outro aspecto a ser levado em
tuitamente. Desta maneira, partici- outro lado, enfrentado os efeitos das conta diz respeito à existência de um
pando ativamente destes eventos, a políticas neoliberais que, no campo processo contínuo de aceleração que
comunidade é convidada a ‘entrar’ da saúde (embora não só neste), transforma todas as coisas em algo
na instituição. Espera-se que, a par- vêm diminuindo o amparo aos ci- absolutamente volátil e que exige,
tir do encontro dos moradores com dadãos, especialmente àqueles que em termos subjetivos, comporta-
a vizinhança outras formas de rela- se encontram em condições de mai- mentos flexíveis. A flexibilidade é
ção venham a ser construídas. or vulnerabilidade, acentuando dra- valorizada como um ‘algo mais’
maticamente as injustiças sociais. para a autonomia pessoal e a mol-
dagem das vidas individuais.
ALGUNS COMENTÁRIOS SOBRE Apostar e arriscar-se são palavras
O MAPEAMENTO REALIZADO fortes em um mundo onde valores e
DESTA MANEIRA, PARTICIPANDO ATIVAMENTE comportamentos são voláteis e se
O movimento da Reforma Psiqui- DESTES EVENTOS, A COMUNIDADE É transformam em seqüências aleató-
átrica no Brasil iniciou-se a partir da rias e infinitas, engendrando subje-
CONVIDADA A ‘ENTRAR’ NA INSTITUIÇÃO.
organização do Movimento dos Tra- tividades desterritorializadas por
balhadores em Saúde Mental ESPERA-SE QUE, A PARTIR DO ENCONTRO esta ‘ditadura da velocidade’, às
(MTSM), na década de 70. Este mo- DOS MORADORES COM A VIZINHANÇA quais faltam condições de montar
vimento deu-se num contexto de lu- territórios criativos e potencializado-
OUTRAS FORMAS DE RELAÇÃO VENHAM
tas, fazendo com que viessem à tona, res (Machado, 1999). A busca inces-
mais do que reivindicações salariais, A SER CONSTRUÍDAS sante pela produção de territórios
inquietações com relação às condi- existenciais gera, por sua vez, ima-
ções de trabalho e ao tipo de trata- gens identitárias que se refazem ao
mento até então oferecido, como as Cientes disso, damo-nos conta sabor de um mercado que a toda hora
práticas das longas internações em de diversos problemas que assolam exige novas capacidades, novos ros-
hospitais psiquiátricos com seus efei- as grandes cidades contemporâne- tos, novos comportamentos.
tos de estagnação, degradação, in- as. Destacam-se questões como a Mundo de ‘novos começos’, onde
fantilização, alienação e exclusão violência urbana, o aumento da po- também a questão das diferenças
dos chamados ‘doentes mentais’. pulação de rua, a proliferação de exclusivas adquire um novo contor-
Desde então inúmeras lutas têm favelas e bairros onde se constata a no (Bauman, 1998). Constata-se
sido travadas pela garantia da as- inexistência de serviços básicos de uma certa dissensão entre o normal

7
Este termo é recorrentemente utilizado pelos próprios usuários dos serviços de assistência em saúde mental. Observa-se aí uma “identificação
pela classificação” fortemente implantada pelo discurso normalizador da psiquiatria e que no vocabulário popular chega de forma simplificada
(doente mental=mental). Chama a atenção o modo naturalizado com que, nas lutas pelos direitos previdenciários, por exemplo, ou por vale
transporte para deficiente, familiares e associações de usuários e familiares utilizam-se do termo.

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e o anormal, o comum e o bizarro, o das características sociais/ políticas/ vêm problematizando a prática da
familiar e o estranho. Os ‘estranhos’ econômicas/ culturais dos diferen- reabilitação, com o intuito de que
já não são mais previamente seleci- tes espaços urbanos. Esta análise esta não se transforme em um novo
onados, rotulados e separados e/ ou abriria um importante canal para se jargão, vazio de sentido e repleto de
excluídos como o foram até a um pensar estratégias mais eficientes velhas práticas disciplinares.
tempo atrás (o caso dos loucos, por na construção de modos variados de Algumas práticas de reinserção
exemplo). Eles são tão erráticos e relação dos usuários com o socius. podem ser traduzidas em inúmeros
voláteis quanto é todo o restante da Diante disso, cabe a pergunta empreendimentos que tentam res-
sociedade contemporânea. sobre como se dá, ou se dará, a cir- tituir ao ‘louco’ seu lugar de cida-
Neste modelo de funcionamen- culação dos indivíduos que estão dão perante a sociedade. De acordo
to onde nada é garantido, constata- ‘fora dos padrões hegemônicos de com esta conceituação espera-se
se, rotineiramente, o aparecimento sociabilidade’. Até recentemente devolver ao sujeito ‘comprometido
de novos ‘excluídos’ e marginaliza- espaços específicos foram historica- psiquicamente’, o que a doença su-
dos: os novos desempregados, os postamente lhe usurpou: a possibi-
novos sem-teto, os novos pobres, os lidade de existência fora dos muros
novos assentamentos irregulares. excludentes dos asilos.
Para estes existem sempre os espa-
NESTE MODELO DE FUNCIONAMENTO ONDE Noções como autonomia e rea-
ços públicos abandonados e os ter- NADA É GARANTIDO, CONSTATA-SE, bilitação emergem como palavras de
ritórios esquecidos da cidade, bem ROTINEIRAMENTE, O APARECIMENTO DE ordem. E as práticas grupais – que
como o aparelho repressivo, a fim aparecem sob formas variadas como
de reprimir os sintomas de desagre-
NOVOS ‘EXCLUÍDOS’ E MARGINALIZADOS: assembléias, oficinas e grupos te-
gação e mantê-los nos limites. OS NOVOS DESEMPREGADOS, OS NOVOS rapêuticos – apresentam-se como
Complementando este quadro um importante dispositivo (Benevi-
SEM-TETO, OS NOVOS POBRES, OS NOVOS
encontramos um número cada vez des de Barros, 2000) para promo-
maior de construção de bairros ASSENTAMENTOS IRREGULARES ver a ‘inclusão’ dos loucos na socie-
mais e mais fechados, exclusivos, dade, assim como, os projetos de
homogêneos e seguros, onde se re- moradia dos lares abrigados.
força a valorização da privacidade, mente construídos para os loucos, Quanto a estes, suas singulari-
da ‘liberdade e autonomia’. Bairros para as crianças problemáticas, dades estão, a nosso ver, relaciona-
que se bastam a si mesmos, ‘simu- para os portadores de deficiência das ao processo de elaboração dos
lacros de cidades’ (Sarlo, 1997) mental e tantas outras categorias projetos específicos de cada Casa
onde não se encontram os signos estigmatizadas e excluídas. que, por sua vez, expressa o funci-
de um texto urbano que expressa Atualmente nos deparamos com onamento, a estrutura e as condi-
as diferentes formas de vida de estas discussões dentro do movimen- ções gerais das instituições/estabe-
seus cidadãos e onde se procura to de reforma que reflete sobre a pos- lecimentos aos quais estes lares es-
evitar o contato com ‘estranhos’. sibilidade de estes indivíduos existi- tão vinculados.
A partir destas considerações, o rem nos espaços da cidade contem- Por outro lado, apesar das dife-
estudo, o mapeamento e o planeja- porânea, discutindo questões como renças encontradas – estruturação
mento da assistência na saúde não as da reabilitação, autonomia e ci- da casa, articulação com o territó-
podem estar dissociados da análise dadania e trabalho. Muitos autores rio urbano, tomada de decisões in-

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Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

ternas, critérios para seleção dos de Saúde Mental, objetiva a reinser- o acesso aos bens sociais e culturais
moradores das casas, tipo de mora- ção social pela construção da cida- e à sua circulação pela cidade.
dia (casa, apartamento), localização dania e promoção da autonomia dos Entretanto, e considerando que
das mesmas (dentro ou fora dos usuários. A nosso ver, esse movi- o mais antigo destes Lares tem me-
hospitais psiquiátricos) – uma cons- mento tem se mostrado extrema- nos de cinco anos de existência,
tatação se impõe: a de não conside- mente importante e decisivo para os observamos que, apesar de se esta-
rar os Lares como “depósitos de lou- processos de desospitalização dos belecerem como casas residenciais
cos” (sic) , mas dar-lhes uma feição loucos e desinstitucionalização da e procurarem funcionar como tal,
de moradia, de residência, onde ou- loucura. Sem dúvida ele demonstra, ainda não conseguiram aprofundar
tras formas de relações sociais, di- de forma explícita, a implicação dos uma discussão acerca de sua efeti-
versas daquelas mantidas no âm- profissionais de Saúde Mental com va inserção social nos espaços ur-
bito do hospital e da família, pos- as metas da Reforma Psiquiátrica banos. Apesar da problematização
sam ser experimentadas. tanto como seu engajamento na luta dos vínculos dos Serviços com os
Outro ponto, que aparece como espaços da cidade ainda se encon-
questão fechada em todos os proje- trar em seus passos iniciais, cons-
tos dos Lares pesquisados, refere- tatamos, junto aos profissionais
se à questão de seu caráter não te- O PROJETO DOS LARES ABRIGADOS É UM entrevistados, a preocupação e a
rapêutico. Mais especificamente, os necessidade de serem ampliados os
DOS DISPOSITIVOS QUE, JUNTAMENTE COM
coordenadores afirmam que nestes estudos sobre o tema, através da
espaços não se faz terapia, em sen- OS DEMAIS SERVIÇOS DA REDE DE SAÚDE discussão acerca dos impasses, di-
tido estrito, de tratamento, indivi- ficuldades e alternativas para os
MENTAL, OBJETIVA A REINSERÇÃO SOCIAL
dual ou grupal (este, como já apon- problemas que uma metrópole como
tado, é realizado nos ambulatórios PELA CONSTRUÇÃO DA CIDADANIA E o Rio de Janeiro pode apresentar, de
dos hospitais de referência dos mo- PROMOÇÃO DA AUTONOMIA DOS USUÁRIOS modo e redimensionar as propostas
radores). Enfatizam o ‘efeito tera- para a Saúde Mental dentro de um
pêutico’ da proposta que advém, não quadro mais realista e concreto.8
só da ampliação das redes associa- Aqui, sem dúvida é o tema da auto-
tivas que se formam, como da plu- pela invenção de outros meios de nomia que se coloca como ponto de
ralidade de serviços de atendimento lidar com a loucura. O esforço tem reflexão crucial para que se possa
que a rede de Saúde Mental oferece sido grande, por parte daqueles en- avançar em propostas mais arroja-
atualmente (CAPS, NAPS, Hospital- volvidos nos projetos dos ‘lares’ no das para o movimento da Reforma,
Dia, Centro de Atenção Diária – CAD) sentido da reinserção dos usuários pois como discriminar, cotidiana-
e que deve continuar a se ampliar. no espaço urbano, promovendo re- mente, o cuidado da tutela? Como
O projeto dos Lares Abrigados é lações com a cidade, com o socius, trabalhar no sentido de que os usu-
um dos dispositivos que, juntamen- de tal modo a que estes não se colo- ários se tornem efetivamente poten-
te com os demais serviços da Rede quem em situações que inviabilizem tes para eles próprios estabelecerem

8
Outras importantes análises de experiências no Brasil têm contribuído para o debate sobre os serviços de moradia em Saúde Mental. O
trabalho de Carmem Vera Passos Ferreira sobre a Pensão Nova Vida, em Porto Alegre, traz, neste sentido rico material. Cf. Ferreira, Carmen V. P.,
1999. Em busca de uma Nova Vida: Trajetória de um Serviço de Moradia de Saúde Mental. Transversões,1 (1): 76-131

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 67


BENEVIDES DE BARROS, R. & JOSEPHSON, S.

relações de troca e de transformação deremos estar promovendo movi- como podíamos mais claramente
sobre a cidade e, ainda, o que ela, a mentos isolados que não terão des- identificar nos séculos passados,
cidade, põe em funcionamento? dobramentos no sentido do que mas anexando, incluindo. O tema
Nossa questão, então, refere-se se quer como produção de uma ou- merece cuidadosa análise que cer-
a como proceder para incluir os lou- tra cultura, outra sociabilidade, ou- tamente teremos oportunidade, em
cos em uma cidade que a cada mo- tra subjetividade. outra ocasião, de abordar.
mento procura se fechar mais e mais O estudo e o aprofundamento de
em locais homogêneos, circunscri- tais questões poderão nos impedir
tos, exclusivos/excludentes, ao mes- de corrermos o risco de aprisionar- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
mo tempo regida por fluxos velozes mos a reinserção dos ‘loucos’ ao
onde toda a diferença se perde e modo de produção capitalístico que BAUMAN, Z., 1998. O Mal-Estar na
tudo passa a fazer parte apenas de prima pela serialização. Da mesma Pós-Modernidade. Rio de Janeiro:
mais uma engrenagem para o bom forma, tais apontamentos podem Jorge Zahar Editores.
funcionamento do capitalismo. nos possibilitar abarcar questões do
BENEVIDES DE BARROS, R. D., 2000. O
Cabe, então, ampliar nosso cotidiano inserindo-os neste proces-
Dispositivo Grupal no Processo da
questionamento. Como articular os so de construção da ‘cidadania’.
Reforma Psiquiátrica no Brasil. In:
avanços promovidos pela experiên- Acreditamos, em suma, que esta
AMARANTE, P. (Org.) A Loucura
cia do ‘dispositivo-lares’ com os discussão pode nos dar condições
na (da) história/Seminário sobre
impasses contemporâneos, especi- para problematizarmos os mecanis-
História da Psiquiatria. Rio de
almente vividos nas grandes cida- mos de produção da exclusão, dis-
Janeiro: LASP/ENSP/FIOCRUZ. p
des, de confronto com a violência e seminados nos espaços urbanos
277:283.
com relações de trabalho cada vez contemporâneos, que vêm se somar
CHAUÍ, M., 1992. Público, Privado e
mais marcadas pelo desemprego, à exclusão histórica a que os cha-
Despotismo. In: NOVAES, A. (Org.)
pelo subemprego e pelo emprego mados ‘doentes mentais’ têm sido
Ética. São Paulo: Cia das Letras.
informal? Como não desatrelar tais submetidos.
discussões, sem que isto paralise as Tais conclusões, parciais, são FOURQUET, F. & MURAD, L., 1979 – Los
experiências inovadoras dos lares? bem mais inquietações que devem Equipamientos del Poder: Ciuda-
Neste sentido, é urgente que o funcionar como bússolas no árduo des, territorios y equipamientos
debate sobre os dispositivos imple- processo de construção da Refor- coletivos. Barcelona: Editorial
mentados a partir da Reforma Psi- ma Psiquiátrica. Somente a aber- Gustavo Gili.
quiátrica, como os lares abrigados, tura ao debate e a análise crítica
GUATTARI, F., 1992. Caosmose. Um
mas também os Centros de Atenção cotidiana de nossas práticas nos
Novo Paradigma Estético. Rio de
Psicossocial, os Hospitais-Dia, etc, darão condições de escapar das ar-
Janeiro: Editora 34.
estejam sendo analisados tanto em madilhas, freqüentemente postas,
sua relação com as políticas de saú- de produção da exclusão. Devemos, GUATTARI, F., 1981. Revoluções Mole-

de e, em especial, com as políticas ainda, colocar em discussão como, culares: pulsações políticas do

de saúde mental, quanto com as de- no funcionamento contemporâneo desejo. São Paulo: Brasiliense.

mais políticas públicas: de habita- do capitalismo mundial integrado JOSEPHSON, S. C., 1999. Espaços Urba-
ção, de transporte, de educação e de (Guattari, 1981), o processo de ex- nos e Estratégias de Exclusão e
previdência. Sem este cuidado, po- clusão se dá não mais separando, Hierarquização. In: Cadernos do

68 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001


Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse da relação com a cidade

IPUB/ Instituto de Psiquiatria da


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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 57-69, maio/ago. 2001 69


DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.
ARTIGOS ORIGINAIS

O usuário de psicofármacos num Programa Saúde da Família1


The psycopharmic user in a Family Health Program

Maria Célia F. Danese2


Antonia Regina F. Furegato3

RESUMO

Baseado na participação da enfermeira no Programa Saúde da Família


(PSF), este trabalho foi preparado tendo por objetivo identificar as repre-
sentações de usuários de psicofármacos sobre os tratamentos que recebem.
Esta pesquisa qualitativa, construída à luz da etnografia, foi realizada no
Jardim Eldorado, Assis/SP com 45 sujeitos. Os dados coletados, através de
entrevistas semi-estruturadas e complementados pela observação partici-
pante revelaram que estes mesmos usuários do sistema de saúde lançaram
mão dos serviços religiosos como solução alternativa e coadjuvante para
enfrentamento de seus problemas.

PALAVRAS CHAVE: Saúde da Família; Saúde Mental; Religião; Psicofármacos.

ABSTRACT

1
Conteúdo abstraído da Dissertação de Based on nurse participation in the Family Health Program, this work
Mestrado apresentada ao Programa de was prepared aiming to identify psycopharmic users' representations about
Pós Graduação em Enfermagem
their treatment. This qualitative study, built on ethnographic research, was
Psiquiátrica, EERP – Universidade
de São Paulo. performed at the "Jardim Eldorado", Assis-SP with forty five persons. The
data collected by semi-structured interviews and taking into consideration
2
Enfermeira do Programa Saúde da
Família. Mestre em Enfermagem the participants' observations, revealed that the same users of the health
Psiquiátrica. system used the religious services as alternatives and supporting solutions
3
Professora Titular do DEPCH da to face their problems.
EERP – Universidade de São Paulo
e-mail: furegato@eerp.usp.br KEY WORDS: Family health; Mental health; Religion; Psycopharmics.

70 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001


O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família

INTRODUÇÃO grandes crises de amor e de frimento (Rodrigues, 1996; Furega-


ódio, sempre resguardadas pelo to, 1999). Este referencial faz sen-
A convite da Prefeitura Munici- espaço físico da casa e o silên- tido para a prática da assistência de
pal de Assis, fomos conhecer uma cio da privacidade familiar; enfermagem no PSF.
nova proposta de assistência que • humanização do atendimento à Através desta vivência, observa-
estava sendo implantada, o Progra- população com base nas normas mos a presença de significativo nú-

ma Saúde da Família (PSF). dos programas de saúde, atra- mero de usuários de psicotrópicos.

Esta estratégia propõe um novo vés das visitas domiciliares, fa- Nessa população de 1457 pessoas,

cilitando a interação com os maiores de 15 anos, 795 (54,6%)


caminho dentro das políticas públi-
usuários, dentro de seu contex- faziam uso de algum tipo de psico-
cas de saúde, priorizando o ser hu-
to sociocultural; fármaco, receitado por médico.
mano enquanto cidadão, através da
Neste contexto, querendo com-
universalidade da atenção, descen- • participação da real condição de preender a realidade psicossocial
tralização de decisões e definição vida da comunidade, pois resi-
da população e contribuir para
de bases territoriais para a atua-
melhor desempenho do enfermei-
ção. O pensar e o agir com trans-
ro, propusemo-nos realizar esta
parência na atuação com o cidadão
pesquisa que teve por objetivo iden-
enquanto pessoa, dentro da visão A CONVITE DA PREFEITURA
tificar as representações dos usuá-
antropológica do núcleo familiar e
MUNICIPAL DE ASSIS, FOMOS rios de psicofármacos sobre os ser-
comunitário, levou-nos a vivenci-
CONHECER UMA NOVA PROPOSTA viços de saúde e os serviços, num
ar a nova realidade.
Programa Saúde da Família.
Participamos deste programa DE ASSISTÊNCIA QUE ESTAVA SENDO
desde o início, experienciando todo
IMPLANTADA, O PROGRAMA SAÚDE
o processo de implantação, imple- CARACTERIZAÇÃO DO CONTEXTO
mentação e solidificação do mesmo. DA FAMÍLIA (PSF)
Dentre os objetivos teóricos que A trajetória histórica de saúde em
norteiam este novo modelo de aten- Assis não foi diferente das demais
dimento e interação, interpretado e dindo no espaço territorial onde cidades brasileiras. Em 1991 foi cri-
adaptado segundo características atuamos, como prestadoras de ado o Conselho Municipal de Saúde
sociais e econômicas de áreas deli- serviço e usuárias, vivenciamos que efetivou suas ações a partir de 6
mitadas para contemplar as neces- as mesmas condições sociais, de outubro de 1993, consolidando a
sidades do processo saúde/doença econômicas e culturais. participação popular no gerencia-
de uma população específica, os que mento da saúde do município.
motivaram nosso trabalho foram os Partimos dos pressupostos de Concomitante à atuação do
que é através das relações interpes- Conselho Municipal de Saúde, fo-
destacados abaixo.
soais e do uso de técnicas de comu- ram criados, em cada Centro de
• promoção da família como nú- nicação em abordagem humanista Apoio à Saúde (CAPS), os Conse-
cleo básico de abordagem no que a enfermagem aproxima-se da lhos Gestores para planejar, acom-
atendimento à saúde da popu- pessoa, identifica suas necessidades panhar, avaliar e fiscalizar os ser-
lação, considerando que é nes- e pode ajudá-la na busca de solu- viços de saúde desenvolvidos em
te contexto que se desenvolvem ções sadias para minorar seu so- sua área de abrangência.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 71


DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.

Seguindo este modelo, com adoção de políticas de saúde mais demo- Rodrigues (1996), com base nos
cráticas, resolutivas e humanas, iniciou-se o processo de implantação do estudos de psiquiatria preventiva,
Programa Saúde da Família. Nesta construção social de saúde podem-se apresenta os mecanismos de insta-
estabelecer algumas diferenças entre o modelo médico vigente e a nova lação do enfrentamento de dificul-
proposta do PSF. dades cotidianas e seu desfecho,
Para Levcovitz & Garrido (1996), o PSF é um modelo de atenção que resultando em crescimento e ama-
pressupõe o reconhecimento da saúde como um direito de cidadania. durecimento ou criando tensões,
conflitos ou mesmo ameaça à inte-
gridade da pessoa.
QUADRO 1 – Diferenças entre o modelo médico e o PSF
A não resolutividade dos seus
problemas deixa o indivíduo vulne-
Modelo Médico Saúde da Família
rável, à mercê dos caminhos alter-
• atuação na doença • atuação no doente nativos que a comunidade respon-
• trata o indíviduo • trata a família de com respaldo místico-religioso.
• tratamento medicalizado e individual • tratamento da pessoa dentro do contexto social em que vive
• ênfase da medicina curativa • ênfase na medicina promocional e preventiva
• atuação ocasional • atende território adstrito METODOLOGIA
• isolamento do profissional na atuação e saber • interação contínua
• trabalho em equipe, somando conhecimentos e Estudar o homem é estudar tudo
vinculação social aquilo que mais intimamente lhe diz
respeito, partindo das instituições,
costumes, códigos e comportamen-
Foram instalados nove núcleos do PSF, abrangendo toda a área mais tos para atingir os desejos e senti-
carente do município de Assis. Cada núcleo era composto por um médico, mentos (Malinowski, 1984).
um enfermeiro, dois auxiliares de enfermagem e quatro agentes comunitá- De acordo com a natureza deste
rios de saúde. Sendo prerrogativa do programa morar na área de abrangên- campo de atuação, propusemo-nos
cia, a enfermeira trabalhava e morava no bairro Jardim Eldorado. trabalhar à luz da etnografia pois
Este núcleo do PSF era responsável por 609 famílias cadastradas, num levamos em consideração os espa-
total de 2.334 pessoas, sendo 1.233 do sexo masculino e 1101 do sexo ços físico, social, cultural e econô-
feminino. A infra-estrutura do bairro é precária e grande parcela da popula- mico como componentes e interve-
ção tem um padrão de vida muito baixo, ou seja, 72% ganham até dois nientes no processo saúde/doença.
salários mínimos e 21,3% ganham de dois a quatro salários mínimos. Leininger (1985) define etnogra-
Os principais problemas de saúde que afetavam as famílias do PSF Jardim fia como um processo sistemático
Eldorado emergiam de fatores sociais, econômicos, culturais e geográficos. de observar, detalhar, descrever, do-
Pela nossa vivência diária e observação, outro fator que estava provocando cumentar e analisar o estilo de vida
aumento nos transtornos, principalmente psíquicos, era o misticismo religio- ou padrões de cultura para apreen-
so interferindo inclusive nos tratamentos da medicina tradicional. der o modo de viver das pessoas.
Nas áreas mais carentes, onde todos os recursos são mais escassos, a Aplica estes princípios para pesqui-
vida parece ser uma sucessão de crises e, enfrentar o cotidiano se converte sas em enfermagem que denomina
num desafio para a existência numa luta solitária (Danese, 1998). de etnoenfermagem.

72 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001


O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família

Neste sentido, trabalhar inserido de psicofármaco, receitado por médico; ter capacidade de comunicação; acei-
no campo, fazendo um estudo apro- tar participar da pesquisa.
fundado de uma comunidade para
melhor atuar, dando sentido às inter- Procedimento de coleta de dados
venções de enfermagem, é tornar-se
A coleta de dados foi desenvolvida em cinco etapas:
um etnoenfermeiro. O conhecimento
de uma comunidade, dentro de um 1 – Após a consolidação dos dados cadastrais das famílias inscritas
contexto sócio-econômico-cultural, no PSF fizemos um levantamento de todas as pessoas que esta-
facilita o direcionamento dos cuida- vam usando psicofármacos. De posse desses dados, iniciamos as
dos de assistência primária à saúde. visitas domiciliares.
As condições ideais para desen-
2 – Com o consentimento dos sujeitos fizemos uma pergunta inicial:
volver esta pesquisa estavam nas
cláusulas de contrato de trabalho que Por que você começou a tomar ...............(nome do psicofármaco)
exigia a residência no bairro como
As respostas foram relatos de crises acidentais não superadas mas
forma de participação do processo
medicalizadas. A não superação, através da intervenção médica, levou
social. A família, a vizinhança, os
estas pessoas a procurarem, na religião, soluções alternativas.
grupos de lazer e religiosos formam
um conjunto disciplinar e organiza- 3 – A terceira etapa surgiu a partir da análise das informações coleta-
do de um modo de vida adequado às das na primeira interação, levando-nos a um levantamento históri-
necessidade do ser humano numa co da cidade, do serviço de saúde até a implantação do PSF. Dentro
realidade própria e peculiar. da visão etnografista, contextualizamos a população e o espaço ge-
A pesquisa qualitativa considera ográfico do bairro Jardim Eldorado, tentando encontrar alguma in-
como sujeitos de estudo “pessoas em dicação para o deslocamento dos pacientes em relação ao trata-
determinada condição social, perten- mento medicamentoso.
cente à determinado grupo social ou 4 – A quarta etapa constituiu-se de entrevistas realizadas com todos os
classe com suas crenças valores e
participantes do grupo, sujeitos desta investigação, fazendo-lhes as
significados” (Minayo, 1996).
seguintes indagações:

Local da pesquisa Há quanto tempo você faz uso da medicação?


A pesquisa foi realizada na ci- Você acredita na cura com o tratamento?
dade de Assis – SP, no bairro Jar- Por que continua fazendo uso da medicação?
dim Eldorado onde está implanta-
do um dos núcleos do Programa 5 – Em função desses achados que apontavam claramente para a des-
Saúde da Família. crença nos tratamentos tradicionais e para a busca de soluções atra-
vés da religião, os mesmos sujeitos foram abordados novamente
Seleção dos sujeitos com a seguinte questão:

Foram considerados como crité- Como a religião ajuda você a resolver seu problema?
rios de inclusão: ser morador do
bairro Jardim Eldorado; participar Estes procedimentos fecharam uma triangulação na coleta de dados onde
do PSF; ser usuário de algum tipo o problema inicial (medicalização) levou-nos a uma interação mais apro-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 73


DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.

fundada com o grupo e à constata- usuário de psicofármacos, dentro do vou-os à busca de outras soluções
ção da ineficácia do tratamento, de- seu contexto socioeconômico-cultu- na sua comunidade.
sencadeando uma busca alternati- ral. Selecionamos os principais resul- Os motivos desencadeantes foram
va no suporte religioso. tados para esta apresentação. avaliados como crises acidentais tor-
Dos quarenta e cinco sujeitos que nadas crônicas pela falta de resolu-
Instrumento de coleta de dados se propuseram a colaborar com esta ção das situações conflituosas. O tem-
pesquisa, trinta e três eram do sexo po de uso dos medicamentos é um
Malinowski (1984) diz que o tra-
feminino e doze do sexo masculino. A dado importante que corrobora o ca-
balho de campo é uma condição ir-
idade apresentada, por ocasião do ca- ráter crônico das crises; onze pesso-
restrita na pesquisa etnográfica. O
dastramento, variou de dezoito a ses- as estão fazendo uso do psicofárma-
requisito do PSF de trabalhar, mo-
senta e cinco anos, sendo 40% anal- co de dez a vinte anos, trinta e duas
rar e conviver com a comunidade
fabetos ou semi-alfabetizados. Vinte de um a dez anos, e duas sequer sa-
permitiu que desenvolvêssemos um
e uma mulheres (46,66%) são donas- bem precisar a data de seu uso.
trabalho de campo, operacionaliza-
Bezerra Júnior (1992) reconhece a
do através de entrevistas seqüenci-
importância dos psicofármacos nos
ais e de observação participante.
tratamentos de transtornos psíquicos
mas pondera a prescrição e o uso, em
O procedimento de análise de dados
BEZERRA JÚNIOR (1992) RECONHECE A nível de atendimento de massa. Re-
A análise dos resultados da pes- portando-se ao tempo gasto na con-
IMPORTÂNCIA DOS PSICOFÁRMACOS NOS
quisa foi desenvolvida através de des- sulta, o autor diz que não há tempo
dobramento das informações colhidas TRATAMENTOS DE TRANSTORNOS PSÍQUICOS
razoável para um atendimento dig-
e posterior reagrupamento analógico MAS PONDERA A PRESCRIÇÃO E O USO, EM no, visto que a maioria dos psiquia-
em um critério temático abstraído de tras da rede pública não atende, des-
NÍVEL DE ATENDIMENTO DE MASSA
cada grupo de dados. Este estudo es- pacha, não medica, repete receitas.
teve apoiado na Teoria das Represen- A demora e a falta de resolução
tações Sociais edificada por Moscovi- do problema transmitem descrédito
ci (1978), a partir do seu Estudo das e levam a não adesão dos pacientes
Representações Sociais da Psicanálise. de-casa e seis homens (13,33%) estão ao tratamento. Por outro lado, ape-
desempregados, formando um univer- sar da descrença no serviço, muitos
so de 59,99% que não têm renda pró- já são dependentes dos fármacos.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS pria, sendo este dado importante na Em muitos casos, o paciente conta
avaliação socioeconômica da popula- com este efeito prático para supor-
A análise dos dados, embasada na ção estudada. Os demais têm renda tar a carga emocional de sua vida.
pesquisa etnográfica e tendo como mensal entre dois e três salários. Esta dificuldade de relacionamen-
suporte o referencial teórico das Re- A população investigada usa to com o serviço de saúde, que serve
presentações Sociais, considerando psicofármacos, receitado por mé- apenas para medicalizar os proble-
tanto os dados qualitativos como os dico, para sintomas de transtor- mas do paciente, leva-o a procurar na
quantitativos, esteve voltada para nos mentais ou situações de cri- comunidade um apoio mais eficaz, o
uma visão real da população, buscan- se acidental. Entretanto, a irre- que é encontrado na religião, princi-
do compreender o comportamento do solutividade dos tratamentos le- palmente a neopentecostal. Esta é a

74 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001


O Usuário de Psicofármacos num Programa Saúde da Família

que conta com maior número de adep- QUADRO 2 – Comparação entre os Serviços de Saúde e os Serviços Religiosos
tos no bairro e contato mais direto
1 – Serviços de Saúde 2 – Comunidade Religiosa
com o povo. A religião, de certa ma-
neira, ocupa o espaço terapêutico do Relações entre doentes x serviço de saúde Relações entre doentes x serviços religiosos
serviço de saúde. Doença x medicação Doença punição x doença mérito
Como solução para seus proble- Tratamento x cura Tratamento x cura
mas, trinta e nove pessoas (86,6%)
buscam respostas na religião, qua-
Na tentativa do reequilíbrio individual e do seu grupo de origem, o sujeito
tro estão desesperançados, apon-
caminha entre domínios distintos e diferentes poderes: médico e religioso.
tando a morte como solução. Ape-
Embora os dois serviços estejam organizados socialmente para o aten-
nas dois mencionaram crédito e con-
dimento do indivíduo, somente na religião é possível visualizar uma ten-
fiança no tratamento convencional.
dência à centralidade nos sentimentos e expectativas do sujeito adoecido,
Os sentimentos advindos de
uma vez que nos serviços de saúde a conduta profissional está centrada
todo o processo pelo qual tem pas-
na doença do sujeito.
sado cada um dos quarenta e cinco
sujeitos são de insegurança, ansi-
edade e principalmente de procura QUADRO 3 – Apresentação dos temas e categorias, identificando as representações dos
por soluções. usuários de psicofármacos sobre os serviços de saúde e serviços religiosos, a partir do seu
A causa do ingresso no serviço ingresso no sistema.
de saúde está relacionada com per-
das que, por não terem sido tra- INGRESSO NO SISTEMA DE SAÚDE SERVIÇOS DE SAÚDE SERVIÇOS RELIGIOSOS

balhadas adequadamente, torna- • PERDAS • DOENTE X SERVIÇO DE SAÚDE • DOENTE X SERVIÇOS RELIGIOSOS
ram-se crônicas e estimularam a
Saúde, morte de parente, separação, Irresolutividade, descrença, falta de Companheirismo, apoio, conforto,
dependência medicamentosa. A
mutilação física, emprego, liberdade, compromisso, descontinuidade, falta amizade, fanatismo, presença, conso-
falta de resolubilidade pode estar de identidade social, econômica, vi- de vínculo, preconceito, baixa-auto- lo, cobrança, vigilância, intolerância,
levando o portador de transtorno olência, tragédia. estima, desinteresse, dificuldade de preconceito, cooperação obediência,
consulta, dificuldade de locomoção. afasta do demônio, melhor lugar.
mental a refugiar-se na transcen- • SENTIMENTOS
dência da religião. Raiva, culpa, revolta, resignação, • DOENÇA X MEDICAÇÃO • DOENÇA COMO PUNIÇÃO X MÉRITO
medo, punição, rejeição, angústia, Não fico sem as pílulas, não custa to- Caminho da purificação, vontade de
O mecanismo de enfrentamento mar, é a ajuda de Deus na terra, deve Deus, escolhido por Deus, privilégio,
vingança, desesperança, inconformis-
encontrado nesta população vem mo, descrença. servir para alguma coisa, tomo escon- salvação da alma, sofrer agrada a
dido, misturo com álcool, paliativo, Deus, cumprir a missão.
carregado de ‘sentimentos novos’,
• EXPECTATIVAS ajudou um pouco, não tem vantagem.
‘adaptações às perdas’ e ‘reformu- Acalmar, dormir, esquecer, tranqüi- • TRATAMENTO X CURA
lações de expectativas de vida’, cul- lizar, aliviar, ajudar a viver, ampa- • TRATAMENTO X CURA Só Deus cura, Jesus é grande médico,
rar, dar segurança, dar apoio. Só pego receita, não conheço o médi- exorcismo, fé, oração, bênção do pas-
minando na ‘doença’. co, cada vez é um, pego remédio em tor, ser justo é bom, ter boa intenção,
Dois tipos de serviço acolhem o • A DOENÇA qualquer posto, qualquer um pega participar, ler a Bíblia, louvar e agrade-
Muitas dores, dores nos nervos, ner- remédio pra mim, não preciso ir, não cer, comparecer aos cultos, orar, não de-
doente, conduzindo seus relaciona- escutam a gente, o remédio é de gra- sobedecer, divulgar a palavra de Deus,
vos pulam, muito doido, zueira, cabe-
mentos, as suas concepções de saú- ça quente, muito nervoso, sem con- ça, só vou lá de 6 em 6 meses, eles ajudar na comunidade, ir à missa, fa-
de e de doença, bem como, propon- trole, faz o que deve, fala muito, bate não têm paciência. zer encontros. Único caminho. Oração
a cabeça na parede, a voz não sai, mui- é remédio. Cura pela graça divina.
do tratamento e cura de maneiras to agressiva, cabeça quente, dor no
próprias. Os serviços de saúde e os peito, tristeza, velhice, insônia, corpo
repuxado, pressão alta, diabetes.
serviços religiosos.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 70-76, maio/ago. 2001 75


DANESE, M. C. F. & FUREGATO, A. R. F.

A justaposição desses dois ser- sua plenitude, favoreceram o desen- nia e loucura – políticas de saúde
viços tem dado ao sujeito a possibi- cadear da doença. Esta, por sua vez, mental no Brasil. Petrópolis/RJ:
lidade de enfrentamento da crise, foi banalizada no serviço de saúde, Vozes.
enquanto espaços de confidências por sua ineficácia, assim como tam-
DANESE, M. C., 1998. O usuário de
e, sob certa medida, de perscruta- bém na religião, pela falta dos ele-
psicofármacos num programa
ção da individualidade, autonomia, mentos adequados para atender às
saúde da família e suas repre-
dependência e interdependência de reais necessidades do doente.
sentações sobre os serviços de
si e dos outros. Para surtir o efeito Diante dos dados apresentados
saúde e os serviços religiosos.
desejado ao seu reequilíbrio, é dada nesta pesquisa, que contou com a
[Dissertação] Ribeirão Preto/SP.
ao sujeito a possibilidade da união informação direta dos usuários de
Escola de Enfermagem de Ri-
de dados que configurem esse pro- psicofármacos e do pesquisador,
beirão Preto/USP.
cesso de adoecimento: de um lado, ambos participantes no Programa
os dados científicos da esfera dos Saúde da Família, podemos concluir FUREGATO, A. R. F., 1999. Relações

serviços de saúde e, do outro, os que torna-se necessário uma pro- interpessoais terapêuticas na

dados da subjetividade representa- funda reflexão sobre a organização enfermagem. Ribeirão Preto/SP:

tiva da religião. dos serviços de saúde e sobre a con- SCALA.

duta do enfermeiro de saúde men- L EININGER , M., 1985. Qualitative


tal, se de fato queremos ajudar a research methods-nursing.
CONSIDERAÇÕES FINAIS pessoa que sofre. Orlando/USA: Grune & Stratton.
A necessidade de atuação da
LEVCOVITZ, E. & GARRIDO, N. G., 1996.
O estudo realizado em um PSF, enfermagem, fora das instituições
Saúde da família: a procura de
com os 45 sujeitos usuários de psi- manicomiais, modificando o mode-
um modelo anunciado. Cadernos
cofármacos, possibilitou entender lo de atendimento, mudando o pa-
Saúde da Família. 1 (1): 3-8.
que atrás da doença, da medicali- radigma e sendo agente transforma-
zação crônica, da busca religiosa, dor social levou-nos ao entendimen- MALINOWSKI, B. K., 1984. Os argonautas
estava uma história de vida que não to da solidez das descrições histori- do pacífico. São Paulo/SP: Abril.
pôde ser escrita, nem verbalizada. camente construídas pelos sujeitos, MINAYO, M. C. S., 1996. O desafio do
Na busca da solução para os seus jogando questões de suas próprias conhecimento: pesquisa quali-
problemas, o sujeito caminha entre posições. A etnografia, ou conforme tativa em saúde. São Paulo/SP:
domínios distintos e diferentes po- Leininger (1985) a etnoenferma- Hucitec.
deres: médico e religioso. Em am- gem, mostrou-se eficaz como mode-
MOSCOVICI, S., 1978. A representação
bos, ele precisa expressar e apresen- lo de abordagem, visando uma
social da psicanálise. Rio de
tar uma causa que justifique seu transformação estrutural.
Janeiro/RJ: Zahar.
ingresso e inclusão. Ambos têm efei-
tos sobre sua vida e a justaposição REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA RODRIGUES, A. R. F., 1996. Enfermagem
melhora as possibilidades de en- psiquiátrica-saúde mental:
frentamento da crise. BEZERRA JÚNIOR, B., 1992. Considerações prevenção e intervençã o. São
O início das crises acidentais re- sobre terapêuticas ambulatoriais Paulo/SP: EPU.
latadas provocaram sentimentos e em saúde mental. In: TUNDIS, S.
expectativas que, não atendidas em A.& COSTA, N. R. (Orgs.) Cidada-

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
ARTIGOS ORIGINAIS

A construção da diferença na assistência em Saúde Mental no


município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1
The construction of difference in Mental Health assistance in municipalities: the
experience of São Lourenço do Sul – RS

RESUMO
Christine Wetzel2
Maria Cecília Puntel de Almeida3 Frente às mudanças nas políticas de saúde mental no Brasil e a todo um
movimento que se instalou de questionamento ao modelo hospitalocêntrico e
excludente de atenção à loucura – a Reforma Psiquiátrica, e às mudanças
mais gerais no sistema de saúde brasileiro, principalmente a transferência
para os municípios da gestão e organização de seus sistemas locais de saúde,
o estudo enfoca a construção de um serviço, o Centro Comunitário de Saúde
Mental de São Lourenço do Sul – RS (CCSM). As técnicas de investigação
foram entrevistas com atores de diferentes instâncias (governantes, agentes
e usuários). O estudo desta prática singular aponta para a importância do
compromisso dos gestores locais com a implantação de um Sistema Local
de Saúde e do envolvimento de outros atores sociais como única forma de
garantir que o processo se torne construtor de sujeitos de transformação e
não de dominação.

PALAVRAS-CHAVE: atenção em saúde mental, organização de serviços, saúde mental.

1
Artigo elaborado com base na dissertação
de mestrado intitulada
ABSTRACT
“Desinstitucionalização em Saúde Mental: a
Due to the changes on mental health policies and a movement that
experiência de São Lourenço do Sul – RS”,
apresentada ao Programa de Pós-Graduação questions the hospital centered and excluding model of attention to madness
em Enfemagem Psiquiátrica da Escola de – the Psychiatric Reform, and more general changes in the Brazilian health
Enfermagem de Ribeirão Preto care system, mainly the transfer of the management and organization of
2
Professora da Escola de Enfermagem da Local Health Systems to municipalities, the work describes the construction
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, of a service construction, the São Lourenço do Sul Community Center of Mental
doutoranda do Programa de Pós-Graduação
Health – RS. The research techniques used were interviews with actors of
em Enfermagem Psiquiátrica da Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto da different levels (local authority, health agents and users). The study of this
Universidade de São Paulo. unique practice shows the importance of the commitment by local managers
e-mail: christi@eerp.usp.br with the implementation of a local health system and the involvement of
3
Professora Titular do Departamento de other social actors as the only way to assure that the process becomes the
Enfermagem Materno Infantil e Saúde constructor of transformation and not domination subjects.
Pública da Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. KEY WORDS: attention to mental health, services organization, mental health.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 77


WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

INTRODUÇÃO nos de hospitais psiquiátricos e pro- tativa de apreender (representar te-


fissionais da saúde mental quando oricamente) a estrutura do serviço
Experiências significativas em usam como argumento contra a re- para além do entendimento do seu
termos de uma atenção em saúde forma a sua pouca aplicabilidade funcionamento interno e formal. Luz
mental fundada em um modelo não prática na realidade da assistência (1981) refere que estrutura, enten-
manicomial têm sido desenvolvidas em saúde mental deste país. dida como um conjunto de regras
em alguns serviços, instituições e O novo enfoque não busca me- mais ou menos rigidamente hierar-
municípios no Brasil. Dentre estas ramente modernizar as tecnologias quizadas, só existe na medida em
encontra-se o Centro Comunitário de de atenção psiquiátrica e difundi- que ela é a organização das relações
Saúde Mental (CCSM) de São Lou- las, mas visa “redescrever, recons- sociais de poder, sendo que estas re-
renço do Sul, mais conhecido por truir as relações entre a sociedade e lações de poder são a prática de cer-
Nossa Casa. São Lourenço do Sul,
1
seus loucos. Não se trata de secun- tas regras do jogo, práticas estas que
no Rio Grande do Sul, localiza-se no darizar a questão técnica, assisten- a autora denomina “prática institu-
extremo sul do Brasil, às margens cional”. Esta prática institucional,
da Lagoa dos Patos, distante 190 vista sob esse prisma, tende a ser
Km da capital, Porto Alegre, e 70 Km conflituosa (vista do ângulo das re-
do pólo regional, Pelotas. A popula- lações sociais) e contraditória (vista
ção total, segundo dados do IBGE O NOVO ENFOQUE NÃO do ângulo da estrutura).
de 1992, era de 50.198 habitantes, BUSCA MERAMENTE Neste estudo, equipe, usuários,
dos quais 26.558 residiam na zona poder público e comunidade em ge-
MODERNIZAR AS TECNOLOGIAS
rural e 23.640 na zona urbana. ral são instâncias que se cruzam em
A importância dessas experiên- DE ATENÇÃO PSIQUIÁTRICA vários sentidos e, como sujeitos des-
cias está no sentido de que vêm dar
E DIFUNDI-LAS sa prática, estabelecem o movimen-
maior concretude à proposta de re- to, determinando-a, sendo porém
formulação da assistência à saúde determinados por uma disposição
mental e, neste momento, frente à da estrutura do Poder (político, eco-
hegemonia do projeto neoliberal no nômico, ideológico) em um momen-
Brasil e em todo ocidente, a atua- cial, mas de redefinir seu lugar to historicamente situado de uma
ção estratégica para contrapor esse numa estratégia mais ampla de formação social dada. Esta disposi-
projeto na saúde está situada na ação” (Bezerra Júnior, 1994:181). ção é aqui entendida como “distri-
luta pela qualidade e eficácia dos A matéria deste estudo, a propos- buição do poder entre classes e gru-
serviços públicos. A implantação de ta de institucionalização de uma de- pos sociais em um espaço histórico
serviços como o de São Lourenço terminada forma de atenção à lou- determinado” (Luz, 1981).
cria, dentro deste campo de tensões cura, através da organização de um O entendimento de que estas
e conflitos, uma dimensão de pos- serviço, referido a uma dada estru- mudanças não estão ocorrendo con-
sibilidades que se contrapõem a al- tura social e a uma formação social cretamente na totalidade da assis-
gumas críticas de governantes, do- concreta, objetiva-se como uma ten- tência brasileira aponta para a diver-

1
A Nossa casa é uma das modalidades de atendimento que o compõe atualmente.

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

sidade da realidade do país. Nesta mento: Nossa Casa, funcionando tas, foi visto como os diversos ato-
arena, onde diferentes interesses es- nos moldes de um Centro de Aten- res representam a instituição, sua
tão em jogo, os resultados destes ção Psicossocial; Ambulatório de prática e as dos demais atores. A
conflitos na implementação das Psicologia e Psiquiatria; Oficinas importância disto reside no fato de
ações na saúde mental exigem uma Integradas; Unidade de Internação que as representações não são gra-
compreensão deste movimento nos na Santa Casa de Misericórdia lo- tuitas, mas representações ‘da prá-
espaços concretos. As especificidades cal; Nosso Lar, casa em um núcleo tica’, porque é nela que tem a sua
locais e a forma como os sujeitos se habitacional onde residem cinco origem e suporte.
articulam nesse processo levam à usuários sem família. Albuquerque e Ribeiro (1979: 61-
necessidade de que este movimento A coleta de dados empíricos 62) chamam a atenção para o fato
seja retomado na sua singularidade. ocorreu em janeiro de 1995, utili- de que não se trata de uma causali-
Uma categoria que merecerá re- zando-se as técnicas de entrevista dade ‘interacional’ do tipo ‘as repre-
levo neste estudo será o ‘processo de semi-estruturada. Foi entrevistado sentações são causa e efeito das re-
2
constituição de sujeitos sociais’ do- lações sociais’, ou vice-versa. As
tados de uma dada vontade política relações materiais só têm efeitos na
e de um projeto de reformas. A valo- ordem das próprias relações mate-
rização deste plano implica a hipó-
AS PRIMEIRAS AÇÕES NA ÁREA DA SAÚDE riais e as representações ideológi-
tese de que é possível ‘revolucionar cas só têm efeitos na ordem das re-
o cotidiano’, questionar os mecanis- MENTAL EM SÃO LOURENÇO DO SUL presentações. Sendo assim, as re-
mos de dominação/exploração (mi- TIVERAM INÍCIO EM 1984 E NÃO SE presentações não são causa nem
cropoderes) mesmo quando não se efeito das relações sociais, mas es-
CONFORMAVAM COMO UM SERVIÇO, MAS
tenha alterado o esquema mais ge- tas duas ordens de relação se arti-
ral de dominação a nível do Estado, ERAM CONDUTAS ISOLADAS DE CUNHO culam uma a outra.
da sociedade política e do mundo da PREVENTIVO E EDUCATIVO
produção (Campos, 1994).
O que se pretende é “tratar o ins- A POUCA RESOLUTIVIDADE DOS MANICÔMIOS,
tituído como expressão de um dado A RACIONALIZAÇÃO DOS GASTOS MUNICIPAIS
processo de institucionalização, a o grupo que participou diretamen- E A AÇÃO DOS SUJEITOS SOCIAIS
partir das dinâmicas políticas par- te na criação do serviço: prefeito,
ticulares, configuradas pelos vári- secretária da saúde e do bem estar As primeiras ações na área da
os sujeitos sociais em suas dispu- social, psicóloga, enfermeira e psi- saúde mental em São Lourenço do
tas políticas” (Merhy, 1992). quiatra e dois usuários do serviço Sul tiveram início em 1984 e não se
O CCSM de São Lourenço do Sul que tinham tido a experiência an- conformavam como um serviço,
englobava, na época da pesquisa, as terior de internação em hospitais mas eram condutas isoladas de cu-
seguintes modalidades de atendi- psiquiátricos. Através das entrevis- nho preventivo e educativo, tais

2
Cecílio (1994) afirma que a categoria de sujeito e ator tem sofrido múltiplas abordagens por diferentes autores em contextos diversos, tendo
como resultado uma heterodoxia na utilização do tema que, embora rica, traz riscos. No presente trabalho não existe um rigor na utilização
destes termos; ator refere-se a todos os indivíduos ou grupos sociais que aparecem na análise e a utilização do termo sujeito já é mais presente
quando a análise se relaciona com as suas possibilidades/impossibilidades de gerar mudanças.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 79


WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

como palestras proferidas pela psi- niados. Isso desencadeou nos mu- E aí eu andava pelos corredores
cóloga na comunidade, principal- nicípios uma demanda para a qual lá do hospital em pânico. E olha, pode
mente na zona rural. não tinham estrutura. A dificulda- ser o que for na vida, podem me pa-

O encaminhamento para hospi- de em conseguir vagas em hospitais gar o dinheiro que for, mas eu não

tais psiquiátricos de cidades mais conto o que eu via lá, assim da mi-
psiquiátricos e os gastos com trans-
nha doença, entende? As coisas pa-
próximas era a única opção para porte aparecem como falta de reso-
vorosas que eu imaginava que via. É
os ditos ‘casos graves’, sendo que lubilidade deste mecanismo. A fal-
delírio mesmo, entende? Horror, de fi-
para o transporte a família conta- ta de resolubilidade também apare-
car tremendo assim na cama, de
va muitas vezes com a ajuda do ce relacionada às reinternações,
medo. Acontece que naquele hospital
poder público, através da polícia ou como demonstra a seguinte fala: a surpresa era maior porque passava
da ambulância. lá todo o tempo, acho que um terço do
As constantes reinternações em
(...) diariamente, duas vezes ao dia, tempo que ficava acordado, passava
hospitais psiquiátricos, não havia re-
a ambulância ia para Pelotas levar em fila. Era fila para o banheiro, fila
solutividade nos hospitais, as pesso-
pacientes em crise. Então, muitas para a água, fila para tomar remédio

vezes, quando a Santa Casa precisa- de novo, fila para almoçar, fila para o

va da ambulância para transportar café, fila para ir para o saguão, fila

um paciente grave para qualquer para... Era só fila durante o dia intei-

hospital, não tinha, ou porque a MAS O TRATAMENTO DESUMANO ro, dentro do hospital. E uma enfer-
meira lá perguntou para mim, na pri-
ambulância foi para a zona rural TOMA REALMENTE FORMAS
meira vez que ela me dirigiu a palavra
buscar um paciente doente mental,
ou foi para Pelotas levar esse pacien- DRAMÁTICAS QUANDO DESCRITO lá, perguntou para mim se eu sabia ler
e escrever. Isso me deixou muito indig-
te. (Enfermeira) POR ALGUÉM QUE O VIVENCIOU,
nado.(...) As pessoas eram muito mal
Os pacientes crônicos, oriundos CONCRETAMENTE, COMO PACIENTE vestidas, muito maltrapilhas, pessoas
de famílias sem condições de man- jogadas no chão. Era como se fosse um
ter um membro improdutivo, reali- depósito de gente, sucata humana. Era
zavam, muitas vezes, uma viagem terrível! E eu ali parecia que eu estava
sem retorno. Outros estabeleciam o nadando, desesperado para... não sei,

mecanismo da ‘porta giratória’, per- as voltavam, ficavam um tempo, e iam parecia que iam tirar alguma coisa de

manecendo internados durante al- de volta. (...) E porque a gente enten- mim. Isso era forte mesmo sabe? Me
dia que havia um tratamento desu- sentia perdido lá. (...) E os médicos
guns períodos, principalmente na
mano a essas pessoas, destinado a eram tão frios, tão frios, tão frios, que
agudização do quadro, e retornan-
essas pessoas onde elas ficavam asi- eu não confiava neles. Eu até nem dis-
do ao convívio familiar em outros,
ladas. Eram atendidas de uma forma se para ninguém que eu estava ouvin-
com o suporte dos psicotrópicos.
que na nossa concepção não era a do vozes, coisa parecida assim. Não
Uma série de mudanças nas po-
mais adequada. (Psicóloga) contei para ninguém porque eu não
líticas de saúde e de saúde mental
confiava. Eu sentia que, quanto mais
no país e no estado pressionam pela Mas o tratamento desumano
eu me queixasse, uma coisinha que
criação de um sistema local de saú- toma realmente formas dramáti- fosse, eu estava enterrado por mais
de. No caso da saúde mental ocorre cas quando descrito por alguém quinze, vinte dias lá dentro daquele
uma restrição dos leitos em hospi- que o vivenciou, concretamente, hospital. Então eu chorava, suplica-
tais psiquiátricos públicos e conve- como paciente. va para ele para mim ir embora, ir

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

para casa, e eu estava vendo que não pulso fundamental para que desenca- que vinha se instalando na saúde em
adiantava. (Usuário) deie o processo de discussão e cons- geral e na saúde mental no Brasil:
trução do serviço. Com o processo de
O alto custo financeiro com o Com o advento das discussões das
municipalização da saúde os gover-
transporte dos pacientes também é Ações Integradas de Saúde e depois
nantes locais passaram a ter respon-
um fator apontado como um ‘mo- do SUDS, a gente começou a se dar
sabilidade, poder de decisão e inter-
tivo forte’: conta que havia uma nova proposta
venção, que antes cabiam exclusiva- em discussão no país, e que no muni-
Então, esse foi um motivo forte, mente a outras instâncias, ocorrendo cípio nós também precisaríamos dis-
junto com o que a gente sabia da fal- uma aproximação entre a instância go- cutir essa descentralização dos servi-
ta da resolutividade do hospital, dos vernamental, que passa a ser local, e ços, onde os municípios teriam um
gastos que o município tinha com
a comunidade, o que faz com que os papel muito importante na organiza-
esse transporte, que era um trans-
conflitos ocorram de forma muito mais ção de seu sistema local de saúde.
porte inútil porque as pessoas iam e
próxima e direta e as reivindicações Então começamos a evoluir, e a medi-
vinham... (Secretária da Saúde)
da que evoluíamos, que íamos crian-
O conflito da comunidade com os do toda uma rede, não só de serviços
‘loucos da rua’ aparece como ‘o esto- mas como também o desenvolvimen-

pim para todo este processo de dis- to de vários projetos, nos demos con-

cussão’. O tensionamento oriundo O CONFLITO DA COMUNIDADE ta que o usuário do sistema não teria
um atendimento completo se não se
desse conflito é dirigido à Secretária
COM OS ‘LOUCOS DA RUA’ agregasse também, nesse atendimen-
da Saúde, gerando o confronto comu-
nidade versus poder público, como APARECE COMO ‘O ESTOPIM to, se não se desse ênfase à atenção à
saúde mental. (Secretária da Saúde)
aparece na fala a seguir: PARA TODO ESTE PROCESSO
Isso começou com a secretária da
Eu considero até hoje, passados DE DISCUSSÃO’ saúde. Ela foi participar, se não me
todos estes anos, que o grande impul-
engano, do I Encontro Estadual de
so que foi dado, pelo menos para mim
Saúde Mental em Porto Alegre, (...) e
enquanto gerente do sistema (...) foi
aí ela foi lá e viu as pessoas coloca-
uma paciente que tem na comunida-
rem como as coisas poderiam ser fei-
de (...) não havia aceitação da comu- desta comunidade adquiram um po-
tas a nível de município (...) ela sem-
nidade em relação à ela, porque ela der de pressão muito maior. Nesse jogo
pre vinha com vontade de fazer algu-
tinha as crises em público. E um dia de pressões, barganhas e articulações,
ma coisa. (Enfermeira)
eu estava na minha casa, depois de percebe-se um poder mais circulante
muita agitação, uma pessoa da co- entre estas duas instâncias. A articulação do poder público
munidade me ligou e exigiu, em nome municipal, na pessoa da secretária
dela, da família, dos vizinhos, dos de saúde, com os outros níveis do
colegas de trabalho, que a municipa-
AS ARTICULAÇÕES DA PROPOSTA LOCAL governo, a sua inserção e militân-
lidade resolvesse os problemas dessa
COM O MOVIMENTO MAIS AMPLO cia na proposta do Sistema Único
paciente. (Secretária da Saúde)
de Saúde (SUS) e da municipaliza-
Na reação da comunidade, que co- A Secretária da Saúde e do Bem ção podem ser percebidos na fala.
bra do poder público uma solução, a Estar Social estava inserida e com- Todo um saber vinha se impon-
Secretária da Saúde identifica um im- prometida com todo o movimento do no Brasil em relação às políticas

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 81


WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

de saúde, através de diversos foruns recem como fatores que têm uma A grande ênfase dada ao fato
e em vários níveis de discussão. Esta grande relevância na possibilidade/ de não terem tido ‘um estímulo ex-
prática mais ampla foi construtora impossibilidade de concretizá-las. terno’ demonstra que, na percep-
de sujeitos que, frente à necessida- Apesar de perceberem estas ques- ção imediata das pessoas que es-
de de elaboração de um projeto po- tões mais gerais contribuindo para tavam à frente da proposta, exis-
lítico e sustentação do poder políti- a mudança local, as determinações tia um grande grau de autonomia
co no nível local, construíram a ex- que aparecem como mais presentes e que a criação e a invenção tive-
periência no concreto. nas falas a seguir são as que foram ram um papel fundamental, sem
A política governamental de um vivenciadas pelas pessoas, em diver- modelos pré-fabricados.
sistema descentralizado de atenção sos níveis, na sua prática cotidiana. As mudanças no contexto eco-
leva, em 1982, à criação da Secreta- As mudanças em um nível conjun- nômico, político e social que geram
ria da Saúde e do Bem Estar Social, tural nem sempre são percebidas por toda uma mudança na própria raci-
não só possibilitando, como também elas de forma imediata. onalidade vigente, não são percebi-
exigindo que o município assuma das como tendo influência sobre o
uma responsabilidade que até então pensar e fazer. O fato de estas de-
não vinha tendo. Mas a forma como terminações não serem conscientes
os governantes se comprometeram NAS ENTREVISTAS COM OS TÉCNICOS geram a ‘surpresa’ quando percebe-
com isso é muito diversa, estando em se práticas semelhantes, sem que
APARECE COM MUITA FORÇA A QUESTÃO
jogo diversos fatores e interesses. houvesse tido alguma espécie de
Como visto, a integração destes DA VONTADE POLÍTICA, DO PAPEL intercâmbio entre elas.
governantes às propostas reformis-
QUE OS GOVERNANTES DA ÉPOCA
tas é fundamental para que eles es-
tabeleçam um vínculo de compro- TIVERAM NA IMPLANTAÇÃO A SINGULARIDADE CONTRIBUINDO PARA
metimento com elas, para que se DO TRABALHO A CONSTRUÇÃO DA PROPOSTA
percebam como sujeitos, e dentro de
determinado grau de liberdade como Quando nos damos conta de que
decisores, possam operacionalizá- a proposta da Reforma Psiquiátri-
las no concreto. Porque aí tu vais criando essa ca brasileira não se instalou de for-
Nas entrevistas com os técni- história, e para tu teres uma idéia, ma homogênea nos municípios,
a gente nunca ouviu falar em Fran-
cos aparece com muita força a sendo que em alguns nem sequer
co Basaglia, eu nunca tinha escu-
questão da vontade política, do chegou a se instalar, torna-se ne-
tado falar (...) Até aí foi uma fase
papel que os governantes da épo- cessário que nos reportemos às es-
desconhecida para nós do processo
ca tiveram na implantação do tra- pecificidades locais.
evolutivo das políticas de saúde
balho. A unanimidade em relação São Lourenço do Sul é um mu-
mental a nível de Brasil e de mun-
a esse aspecto leva a repensar afir- nicípio pequeno, com grande parte
do. Não sabíamos nada disso. Isso
mações de que mudanças nos ser- aí aconteceu tudo por acaso. Não de sua população residindo na zona
viços de atenção à saúde mental foi assim um por acaso ‘ah, estou- rural. A economia prioriza o setor
ocorrem via única e exclusivamen- rou aqui’, não, mas não tinha, va- agropecuário. Dentro deste contex-
te ‘soluções técnicas’, no momen- mos dizer assim, um estímulo ex- to, a forma como instalou-se a aten-
to em que questões políticas apa- terno. (Psiquiatra) ção à saúde mental pode ser melhor

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A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

entendida. Um serviço pequeno, não Eu já trabalhava com promoção zado na comunidade através destas
centrado no ato médico, com a atu- nas Assembléias Comunitárias Rurais, assembléias, e o trabalho da saúde
que eram grupos de pessoas que se reu-
ação de uma equipe com alto nível mental nasce vinculado a uma pro-
niam em locais distantes da cidade, e
de integração com essa comunida- posta de participação comunitária
realizava um trabalho em saúde men-
de, e até mesmo com as relações mais ampla.
tal desde zero anos até a velhice, e co-
dando-se de forma mais informal mecei a conversar com as pessoas:
A falta de resposta deste ambu-
entre os trabalhadores de saúde quem eram os doentes que moravam latório na resolução dos problemas
mental e usuários, uma relação que naquela localidade, onde estavam, o aparece na fala abaixo, principal-
se estabelece não só internamente no que faziam, como eram tratados, quem mente em relação aos casos crôni-
serviço, mas também na comunida- reinternava, quem era problema para cos, e gerou uma crítica interna a
de: todos se conhecem, comparti- aquela comunidade... (Psicóloga) esta forma de atendimento, possi-
lham de problemas semelhantes, fre- O trabalho nas Assembléias Co- bilitando que não se cristalizasse
qüentam os mesmos lugares, fazem munitárias Rurais não teve somen- como forma única de intervenção.
compras no mesmo supermercado.
(...)como tinha atendimento e eu não
tinha estrutura aqui para ficar com o

CRIANDO UMA NOVA MANEIRA DE CONCEBER E


UMA RELAÇÃO QUE SE ESTABELECE NÃO SÓ doente em crise, tinha que encami-
nhar. E eu era a porta de entrada do
ATENDER O LOUCO – QUEBRANDO AS QUATRO INTERNAMENTE NO SERVIÇO, MAS TAMBÉM hospital, porque eu era o médico as-
PAREDES E CONSTRUINDO A NOSSA CASA
NA COMUNIDADE: TODOS SE CONHECEM, sistente do hospital da cidade vizinha.
Então era a coisa mais simples, eu
Em 1987, iniciaram as discus- COMPARTILHAM DE PROBLEMAS
pegava, ligava para o hospital e di-
sões, desencadeadas pela secretária SEMELHANTES, FREQÜENTAM OS MESMOS zia: ‘Olha, está indo uma ambulân-
de saúde, tendo seu início ainda cia para aí!’ E o paciente no outro dia
LUGARES, FAZEM COMPRAS NO
muito restrito, envolvendo apenas já estava internado. Mas aquilo não
duas pessoas: uma enfermeira e MESMO SUPERMERCADO me satisfazia (...) porque eu comecei
uma estagiária de psicologia, que a ver a história do outro lado: eu es-
tinham como tarefa a elaboração de tava aqui, via um caso agitadíssimo

um projeto de saúde mental. Frente te o objetivo de divulgar o atendi- na minha frente, no outro dia eu che-

à exigência da elaboração de um mento psiquiátrico ambulatorial gava no hospital, o caso que eu enca-
que começou a ser realizado. Possi- minhei aqui já estava bem, estava
projeto, o grupo elabora, em 1987,
bilitou também a integração desta calmo, estava tranqüilo. Muita vezes
o que denominaram de Plano de
equipe inicial com a comunidade da a gente se dava conta que ele tinha
Saúde Mental do Município.
parado a medicação, tinha tido uma
Paralelamente à elaboração do zona rural, através da psicóloga que
briga em casa, não precisava ter tido
Plano, já estava sendo prestado já tinha vínculo com este segmento
todo aquele esquema. (Psiquiatra)
atendimento ambulatorial pelo psi- da população. Através disto também
quiatra. Como era um atendimento foi possível que a equipe realizasse A ‘nova solução institucional’ –
que até então inexistia no municí- um diagnóstico mais concreto da- o ambulatório –, não alterou em
pio, foi divulgado nas Assembléias quela realidade. Ocorre, deste modo, nada o destino que os doentes men-
Comunitárias Rurais, onde a psicó- a integração dos técnicos a todo um tais crônicos até então vinham ten-
loga já vinha atuando. trabalho que já vinha sendo reali- do. Frente à ineficácia do ambula-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 83


WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

tório, em maio de 1988 começa a se metidos a determinada conduta te- para a subjetividade louca, ao esta-
delinear a idéia de ‘um local’, sen- rapêutica. Como dizem Rotelli et al belecimento de uma nova relação
do elaborado um projeto de implan- (1990), é desmontando estes apara- com ela e à criação de fissuras na
tação de um centro de reabilitação tos institucionais em relação à ‘do- serialização da psiquiatria (Torre &
do doente mental. Neste processo de ença’ que será possível retomar o Amarante, 2001).
construção pode-se identificar qua- contato com a existência dos paci- O segundo nível de ação refere-
tro níveis de ação destes sujeitos: entes enquanto ‘existência’ doente. se à família:
em relação aos usuários, à família, A citação acima tem relação com
E tanto que fizemos que foi feita
à comunidade e aos governantes.
3
a crítica ao conceito psiquiátrico de
uma reunião com todos estes famili-
No primeiro nível – os usuários doença mental realizada pelo grupo
ares e foi colocado, dada a idéia, de
– foi realizada uma espécie de loca- de Trieste. No novo paradigma o pro- se fazer esse tipo de serviço aqui,
lização destes, conhecendo quem blema deixa de ser a doença em sua para que as pessoas pudessem ficar
eram, onde viviam, quais eram os dimensão técnico-científica, na qual aqui na comunidade. (Enfermeira)
seus problemas.
Se fez vários grupos com famili-
Então se fez visitas domiciliares ares, onde se colocou essa proposta.
através dos arquivos que tinham lá (Psicóloga)
na unidade sanitária (...) E outros NO NOVO PARADIGMA O PROBLEMA DEIXA
que andavam perambulando aí pe- Na medida em que a proposta
DE SER A DOENÇA EM SUA DIMENSÃO visava superar uma prática que não
las ruas, outras pessoas. Então a
gente procurou ver lá nos arquivos TÉCNICO-CIENTÍFICA, NA QUAL DESAPARECE respondia às necessidades, a adesão
da família era fundamental. As ins-
O SUJEITO DOENTE, MAS REFERE-SE A
da unidade sanitária e alguns que
já passaram aqui pelo ambulatório tituições que até então vinham aten-
com atendimento do psiquiatra, e vi- SUJEITOS CONCRETOS, EM SUA dendo os pacientes não exigiam uma
sitamos essas pessoas, fizemos visi-
EXISTÊNCIA-SOFRIMENTO participação efetiva dos familiares,
tas para todos eles, eu e a assistente sendo que, muitas vezes, até a proi-
social. (Enfermeira)
bia. Ao mesmo tempo, não davam
A importância desta conduta nenhuma espécie de suporte quan-
está no fato de que muitos serviços desaparece o sujeito doente, mas re- do o paciente não estava ‘entre os
são estruturados para usuários ima- fere-se a sujeitos concretos, em sua seus muros’, no caso do hospital psi-
ginários. Estes não existem concre- existência-sofrimento. No lugar do quiátrico, ou ‘no horário da consul-
tamente para os agentes. Mais tar- objeto doença mental, o objeto exis- ta’ no caso do ambulatório. Mas a
de, estas pessoas chegam até este tência-sofrimento do sujeito em sua participação e inserção do familiar
serviço como pacientes, com as nor- relação com o corpo social. não se concretiza através de meca-
mas e papéis já estabelecidos, onde Uma proposta de mudança deve nismos coercitivos ou normativos,
recebem um diagnóstico e são sub- levar à produção de um novo lugar sendo necessário que se estabeleça

3
Neste estudo comunidade refere-se ao contexto local, cabendo ressaltar porém que a comunidade não é percebida como um espaço homogêneo
e harmônico: conflitos, diferentes atores com interesses diversos, enfim, tanto o que tem de homogêneo, como o que tem de heterogêneo estão
presentes, e, neste tensionamento e na dinâmica que se estabelece neste espaço, surge a possibilidade de transformação.

84 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001


A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

um outro tipo de vínculo entre a equi- governantes democráticos, que Então foi feito um acerto assim; a
pe e familiares, e isso foi construído viam por bem transferir um poder prefeitura tinha um prédio alugado
e negociado na própria relação. que era seu para a população. As aqui no outro lado, onde ficava uma

O terceiro nível da ação – a co- próprias mudanças que ocorreram espécie de rouparia e o pessoal que

munidade – ocorreu muito antes de nas políticas de um modo geral e trabalhava com os mosquitos, então
eles ficavam todos aqui neste prédio.
ser pensada a possibilidade de um nas políticas de saúde em particu-
Então, na época, o prefeito disse o
atendimento em saúde mental no lar exigem que, para que os gover-
seguinte: ‘É uma casa grande, o pre-
município e continuou no decorrer nantes possam viabilizar as suas
ço do aluguel vai ser elevado. A gente
de todo processo. O trabalho de propostas, tenham o apoio da co-
aluga desde que estas coisas que es-
saúde mental já nasceu no interior munidade. Então, não é um poder
tão nessa casa alugada aqui possam
de uma proposta de participação concedido e sim um poder constru-
passar todas para lá!’ Que aí ele ia
comunitária mais ampla. A maio- ído no decorrer de anos de luta pela
encerrar o contrato dessa casa aqui e
ria dos profissionais já vinha rea- democratização, em todas as instân-
ele pagaria o aluguel só de lá. Foi onde
lizando algum trabalho junto à co- se alugou aquela casa e passou to-
munidade, conhecia a sua realida- das essas coisas para lá, os mosqui-
de e pôde determinar que segmen- tos, a rouparia, tudo ficou lá, tudo jun-
tos era necessário e estratégico AS PRÓPRIAS MUDANÇAS QUE OCORRERAM to. (Enfermeira)

mobilizar inicialmente.
NAS POLÍTICAS DE UM MODO GERAL E NAS Em relação aos vereadores, o
Mas como começar, como mo- apoio político conquistado neste
POLÍTICAS DE SAÚDE EM PARTICULAR EXIGEM
bilizar, como falar isso para a co- período deu inclusive algumas ga-
munidade? Então a secretária pe- QUE, PARA QUE OS GOVERNANTES POSSAM rantias na forma de lei.
diu para a gente entrar em conta- VIABILIZAR AS SUAS PROPOSTAS,
E aquele apoio político que se ti-
to com uma enfermeira, que era
uma pessoa que trabalhava com
TENHAM O APOIO DA COMUNIDADE nha necessidade junto ao legislativo
também foi possível porque a equipe
isso aí, que tinha uma boa vivên-
também passou a sensibilizar os ve-
cia nisso aí. Entramos em contato
readores. Tanto é que se conseguiu
com ela e fizemos uma reunião
cias, no Brasil. No caso da saúde incluir na Lei Orgânica Municipal,
onde foram mobilizadas as pesso-
mental, a própria proposta de de- que em 87, 88, eu não me lembro bem
as, as associações de bairro, o hos-
o ano, foi quando se montou na Lei
pital, o hospital da Reserva, a Bri- sospitalização exigia que a comu-
Orgânica Municipal um capítulo es-
gada Militar, médicos, muitas pes- nidade assumisse um papel que até
pecífico para a área de saúde men-
soas ligadas na área da saúde, e então não vinha tendo.
tal. (Secretária da Saúde)
foi colocado o problema para as Por último, vemos a ação em re-
pessoas. Ela colocou a experiência lação aos governantes. Esta foi di- Como resultado deste movimen-
dela, o que ela achava que poderia recionada para o prefeito e para os to, é inaugurada em 16 de agosto
ser feito. Isso também foi um iní-
vereadores. No caso do prefeito, foi de 1988 a Nossa Casa. Posterior-
cio, toda essa discussão partiu
necessária uma negociação, porque mente, na própria prática dos ato-
desta reunião. (Enfermeira)
a nova proposta exigia um investi- res, foram surgindo outras necessi-
A participação da comunidade mento que até então não tinha sido dades que levaram à ampliação do
não era uma ‘concessão’ feita por necessário: o aluguel de uma casa. âmbito institucional além da inte-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 85


WETZEL, C. & ALMEIDA, M. C. P. de

gração dos diferentes trabalhos que convergência do poder estratégico à disciplina. São Paulo, Depar-
vinham sendo desenvolvidos no entre equipe de trabalho, institui- tamento de Ciências Sociais,
município na área da saúde men- ções, instâncias governamentais e FFLCH USP. (Mimeografado)
tal, surgindo o Centro Comunitário grupos organizados da comunida- BEZERRA JÚNIOR, B., 1994. De médico,
de Saúde Mental. de foram fundamentais para que de louco e de todo mundo um
a mudança fosse construída no ca- pouco: o campo psiquiátrico no
minho da democracia. A possibili- Brasil dos anos 80. In:
CONSIDERAÇÕES FINAIS dade de convivência com a diferen- GUIMARÃES, R.; TAVARES, R.
ça precisa ser construída em to- (Orgs). Saúde e sociedade no
O estudo dessa experiência sin- dos os espaços da comunidade, Brasil: anos 80. Rio de Janeiro,
gular aponta para alguns fatores através da sua própria possibili- Relume-Dumará.
que foram decisivos para a cons- dade de participação, negada du-
CAMPOS, G. W. de S., 1994. Consi-
trução da mudança na saúde men- rante tantos anos neste país, re-
derações sobre a arte e a ciência
tal. As políticas de saúde mental vendo conceitos e preconceitos
da mudança: revolução das coisas
mais amplas trouxeram repercus- cristalizados que têm como resul-
e reforma das pessoas. O caso da
sões em todos os espaços sociais tado a discriminação, a exclusão
saúde. In: MERHY, E. E.; CAMPOS, G.
onde a internação em manicômios e a violência.
W. de S.; CECÍLIO, L. C. de O. (Org.).
era o mecanismo utilizado para O enfrentamento destas questões
Inventando a mudança na saúde.
atender e controlar a loucura. Os exige a retomada de alguns aspec-
São Paulo, HUCITEC.
óbices para sua utilização, os gas- tos aparentemente simples mas mui-
tos que envolvia e a repercussão tas vezes esquecidos, tais como a CECÍLIO, L. C. de O. /Prólogo/, 1994.
disso, obrigando a uma convivên- solidariedade, o acolhimento e, por In: MERHY, E. E.; CAMPOS, G. W. de
cia com a loucura, que não tem que não, em alguns momentos, a S. & CECÍLIO, L. C. de O. (Org.).
mais no seu tradicional mecanis- conciliação. Mas exige também a re- Inventando a mudança na
mo de exclusão a resolubilidade tomada da responsabilização por saúde. São Paulo, HUCITEC.
anterior, geraram uma crise nos parte de todos atores envolvidos: LUZ, M. T., 1981. As instituições
municípios que leva à necessidade governantes, trabalhadores de saú- médicas no Brasil: instituição e
de criação de outras formas, outros de, usuários, família e comunidade, estratégia de hegemonia. 2ª ed.
caminhos para o atendimento do na construção de sistema público de Rio de Janeiro, Graal.
doente mental. A Reforma Sanitá- atenção à saúde com um atendimen-
MERHY, E. E., 1992. A saúde públi-
ria e a transferência aos municípi- to de qualidade, voltado às necessi-
ca como política. São Paulo,
os da responsabilidade de implan- dades dos seus usuários.
HUCITEC.
tação de sistemas locais de saúde
também fez com que os governan- ROTELLI, F. et al, 1990. Desinstitu-
tes locais tivessem que assumir REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS cionalização, uma outra via. In:
questões que, até então, cabiam a NICÁCIO, F. (Org.) Desinstitu-
outros níveis de gerência. ALBUQUERQUE, J. A. G.; RIBEIRO, A. E., cionalização. São Paulo, HUCITEC.
Apesar da participação dos go- 1979. Relações institucionais em TORRE, E. H. G. & AMARANTE, P., 2001.
vernantes ter sido fundamental, a agências de saúde: da assistência Protagonismo e subjetividade: a

86 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001


A Construção da Diferença na Assistência em Saúde Mental no Município: a experiência de São Lourenço do Sul – RS1

construção coletiva no campo da


saúde mental. Ciência e saúde
Coletiva, 6(1): 73-85.

BIBLIOGRAFIA

BEZERRA JÚNIOR., B., 1972. Da verdade


à solidariedade: a psicose e os
psicóticos. In: BEZERRA JÚNIOR., B.;
AMARANTE, P. (Orgs.) Psiquiatria sem
hospício: contribuições ao estudo
da reforma psiquiátrica. Rio de
Janeiro, Relume-Dumará. p.31-37.

MINAYO, M. C. de S., 1993. O desafio


do conhecimento: pesquisa
qualitativa em saúde. 2 ed. São
Paulo, HUCITEC.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 77-87, maio/ago. 2001 87


SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.
ARTIGOS ORIGINAIS

Qualidade de vida de pessoas egressas de instituições


psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA1
Quality of life in patients discharged from psychiatric institutions: the Ilhéus – BA, case

Rozemere Cardoso de Souza2


Maria Cecília Morais Scatena3

RESUMO

Esta pesquisa objetivou investigar a qualidade de vida de egressos de


instituições psiquiátricas, através de instrumento de avaliação da qualidade
de vida (WHOQOL) elaborado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em
sua versão abreviada. Evidenciaram-se as carências e os aspectos que merecem
a atenção dos profissionais de saúde, quando do planejamento, implementação
e avaliação de ações com vistas à melhoria da qualidade de vida dos sujeitos,
no contexto estudado, constituindo-se num valioso diagnóstico.

PALAVRAS-CHAVE: saúde mental; qualidade de vida; programa saúde da família.


1
Parte da dissertação de mestrado,
defendida em 13/12/2000 na Escola de
Enfermagem de Ribeirão Preto/USP.
2
Professora assistente da Universidade
ABSTRACT
Estadual de Santa Cruz, Ilhéus/ BA.
Doutoranda em Enfermagem Psiquiátrica This research aimed at investigating the quality of life of patients discharged
da Escola de Enfermagem de Ribeirão from psychiatric institutions, through an instrument of life quality assessment
Preto da Universidade de São Paulo.
(WHOQOL) developed by the World Health Organization (WHO), in its
e-mail: rosecarsouza@ig.com.br
abbreviated version. The lacks and the aspects which deserve the health
3
Professora associada junto ao
professionals' attention were shown considering the planning, implementation
Departamento de Enfermagem Psiquiátrica
e Ciências Humanas da Escola de and evaluation of actions which relate to the improvement of the subjects' life
Enfermagem de Ribeirão Preto da quality, in the studied context, being a valuable diagnosis.
Universidade de São Paulo.
e-mail: cila@eerp.usp.br KEY WORDS: mental health; quality of life; family health program.

88 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001


Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

INTRODUÇÃO Assim pensando, com o auxílio da vas, padrões e preocupações”


literatura, chegamos à conclusão de (WHOQOL GROUP, 1994:28).
A vida do doente mental é mar- que um estudo sobre qualidade de Motivações para o estudo dessa
cada por sofrimentos que são, fre- vida desses sujeitos nos possibilita- temática, em saúde mental, têm sido
qüentemente, ligados à própria do- ria conhecer, de modo mais abrangen- atribuídas à necessidade de melhor
ença e/ou à evolução do seu cuida- te, como eles vivem. Este fator de fun- entender as limitações e o sofrimen-
do, caracterizados por relações de damental importância seria o ponto to ligado às doenças mentais. Tam-
poder e de subordinação de tal modo de partida para as mudanças que es- bém há o entendimento de que me-
que o sujeito é “transformado em tudávamos implementar. lhorias neste campo conduzirão à re-
doente-objeto, não gente, não ho- Qualidade de vida, compreendi- dução das taxas de internações psi-
mem” (Ornellas, 1997:196). do como um termo de caráter sub- quiátricas, da sobrecarga familiar e
Embora a tendência atual con- jetivo e multidimensional. Galera do sistema de saúde, com conseqüen-
temple a mudança dessa situação e (1994) o define como o resultado do te economia de recursos, pois as do-
o exercício pleno da cidadania dos enças mentais estão entre as que mais
doentes mentais, percebemos, em oneram a sociedade (Marcolin, 1998).
nosso cotidiano profissional, uma O tema é importante por nortear
insuficiência de práticas capazes de intervenções que possam causar
promover tal socialização, já que MOTIVAÇÕES PARA O ESTUDO DESSA impacto positivo na vida dos sujei-
não propiciam a criação de espaços tos, uma vez que as avaliações po-
TEMÁTICA, EM SAÚDE MENTAL, TÊM SIDO dem ocorrer a partir de suas percep-
positivos dos quais possam emer-
gir relações capazes de transformar ATRIBUÍDAS À NECESSIDADE DE MELHOR ções, possibilitando que sejam ou-
suas experiências de vida. vidos não-somente quanto aos as-
ENTENDER AS LIMITAÇÕES E O SOFRIMENTO
A expectativa de um olhar mais pectos que se referem à doença.
LIGADO ÀS DOENÇAS MENTAIS Exposto isto, o presente trabalho
positivo à vida de um portador de
distúrbio mental, mesmo em nossos objetivou investigar a qualidade de

dias, tem-se dado de forma muito vida de pessoas egressas de unida-


des de atendimento psiquiátrico,
lenta, sendo notória a carência de
buscando conhecer suas percepções
políticas que promovam o bem-es- processo de interações do homem
quanto aos aspectos biológicos, psi-
tar dessas pessoas e da comunida- com seu meio ambiente, valendo
cológicos, sociais e ambientais.
de em geral. este como um atributo que classifi-
Motivados para contribuir com ca como boa ou ruim tal interação.
a melhoria do cuidado prestado a Já a Organização Mundial de Saúde
METODOLOGIA
esses sujeitos e a seus familiares, (OMS) engloba em seu conceito a
interessamo-nos por conhecer o dia- interação do indivíduo com o seu
Local da pesquisa
a-dia especialmente daqueles que ambiente interno e externo: “Quali-
vivem em suas comunidades e que dade de vida é a percepção de uma Desenvolvemos este estudo na
ainda não contam com apoio para pessoa de sua posição na vida no área de abrangência do Programa
enfrentamento dos obstáculos de- contexto da cultura e sistema de Saúde da Família (PSF), no bairro
correntes dessa convivência ou de valores nos quais ele vive e em re- Nossa Senhora da Vitória, localiza-
outros fatores. lação aos seus objetivos, expectati- do no município de Ilhéus/ BA. Den-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 89


SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

tre as razões para a escolha desta da qualidade de vida, elaborado pela endemos, e os resultados aqui apre-
área, destacamos: a identificação, OMS, em sua versão abreviada sentados confirmam, que facetas e
através dos registros do PSF, como (WHOQOL-BREF), que foi validado domínios relacionam-se entre si.1
uma das áreas que possuíam maior no Brasil pelo Departamento de Psi- Além da escala, uma parte do questi-
incidência de distúrbio mental e o quiatria e Medicina Legal da Uni- onário destinou-se aos dados socio-
apoio dos profissionais desse progra- versidade Federal do Rio Grande do demográficos dos sujeitos e a algu-
ma para a identificação dos sujeitos, Sul - Porto Alegre. Trata-se de uma mas informações sobre sua saúde.
bem como para intervenções futuras. escala do tipo Likert de 5 pontos, Um dos pesquisadores aplicou os
com medidas de intensidade, capa- questionários em um só encontro,
Sujeitos do estudo cidade, freqüência e avaliação. Esta o qual teve duração média de 45
escala abrangeu 24 questões que minutos. Esclareceu aos sujeitos,
Incluímos no estudo 26 sujeitos
avaliaram 4 domínios (físico, psico- inicialmente, que as respostas de-
adultos, de ambos os sexos, todos
lógico, relações sociais e meio am- veriam se referir às duas semanas
vinculados ao PSF, que atenderam
anteriores à entrevista.
aos seguintes critérios: ser egresso
Para análise dos dados utiliza-
de instituição psiquiátrica, ou seja,
mos o programa Epi Info, da OMS,
em algum momento de sua vida foi
de domínio público. Uma vez cate-
submetido a tratamento psiquiátri-
gorizados, estes nos permitiram
co em instituições para esse fim, seja INCLUÍMOS NO ESTUDO identificar as características sociode-
ambulatorial ou hospitalar, não nos
importando sua região de origem,
26 SUJEITOS ADULTOS, mográficas dos sujeitos e os resulta-
dos dos domínios do WHOQOL-BREF.
nem a freqüência de atendimentos DE AMBOS OS SEXOS,
Para encontrar estes últimos, segui-
ou seu diagnóstico; ser capaz de com- TODOS VINCULADOS AO PSF mos os passos definidos pela OMS e
preender perguntas e responder a um
descritos por Fleck et al. (1998).
questionário e concordar em partici-
Apresentamos os resultados dos
par da pesquisa. Dentre os partici-
domínios por meio de gráficos que
pantes, excluímos apenas os egres-
mostram as freqüências de respos-
sos por abuso de substâncias psico-
biente), as quais representam 24 tas em três categorias: satisfação,
ativas, dadas às peculiaridades des-
facetas, isto é, subdomínios do ins- insatisfação e posição intermediá-
se sofrimento e da assistência.
trumento original, e mais 2 que com- ria. Descrevemos as médias encon-
põem um quadro geral da qualidade tradas para cada domínio numa es-
Procedimentos para coleta e
de vida, totalizando 26 questões (Fle- cala de 4 a 20 pontos, assim como
análise dos dados
ck et al., 1999). Apesar desta classifi- os resultados mais relevantes das
Coletamos os dados entre os dias cação, que busca representar a mul- facetas que compõem os mesmos.
24 de abril e 02 de junho de 2000, tidimensionalidade do objeto de es- Quanto maior o escore, melhor a
utilizando instrumento de avaliação tudo (a qualidade de vida), compre- representação da qualidade de vida.

1
Maiores informações acerca da estrutura do instrumento e da nossa experiência em utilizá-lo, ver SOUZA, R.C., 2000. Qualidade de vida das
pessoas egressas de instituições psiquiátricas: o caso de Ilhéus/BA. Ribeirão Preto. 122p. Dissertação (Mestrado) – Escola de Enfermagem de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

90 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001


Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

RESULTADOS E DISCUSSÕES renda, moradias inadequadas e estado insatisfatório da saúde,2 mostram


que os sujeitos estão à margem da sociedade e distantes da cidadania ple-
Características sociodemográficas dos sujeitos na. No entanto, estas se assemelham às características sociodemográficas
e condições de saúde das demais famílias vinculadas ao PSF, do contexto estudado (Souza, 2000),
tão comuns às periferias urbanas formadas pelas migrações, mas próprias
Dos 26 sujeitos entrevistados,
de uma região que vem experimentando a maior crise econômica de sua
a grande maioria (76,9%) era do
história (Pimenta, 2000).
sexo feminino, com idade entre 20
Nesse contexto, é importante ressaltarmos que, quando os sujeitos se
e 70 anos, sendo a média de 43
deslocam de uma situação para outra, suas expectativas são de melhoria
anos. Constatamos que mais da
das condições de vida, o que nos leva a reforçar a idéia da necessidade de
metade (53,8%) não possuía com-
implementação de ações voltadas à saúde mental das comunidades.
panheiro. Quanto à escolaridade,
quase todos (92,3%) eram analfa-
Análise das freqüências de respostas do whoqol-bref
betos ou semi-analfabetos.
Segundo a ocupação e rendimen- Domínio 1 (Domínio Físico)
tos, observamos que para cada três
Em geral, as respostas obtidas para o domínio Físico – 1 (Gráfico 1)
sujeitos, um encontrava-se aposen-
demonstraram que 34% dos sujeitos estavam insatisfeitos, tema que aufe-
tado, sendo que o rendimento da
riu uma média de 11,91 (posição intermediária).
maioria (69,2%) procedia de auxílio
previdenciário (aposentadoria ou
Gráfico 1 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para o
pensão), ou de parentes e amigos.
domínio 1. Município de Ilhéus/BA, 2000.
Com relação às moradias, estas
não apresentavam boas condições.
Eram de difícil acesso, muitas ha-
bitadas ainda em construção. Nem
sempre possuíam banheiro no inte-
rior da casa, nem água encanada.
Quando interrogados sobre sua
condição de saúde, a maioria dos
sujeitos (61%) a considerou insatis-
fatória (muito ruim ou fraca), citan- Em relação às facetas que compuseram este domínio, destacamos aque-
do como principais problemas de las a que os sujeitos se referiram como as mais difíceis e as que lhes davam
saúde: problemas nervosos ou emo- maior satisfação. São elas: ‘dor e desconforto’ e ‘dependência de medica-
cionais, doenças crônico-degenera- mentos’; e ainda ‘capacidade para o trabalho’, respectivamente.
tivas (hipertensão e diabetes) e do- Observamos que os sintomas ‘dor e desconforto’ dificultavam o cotidia-
res diversas. no da grande maioria dos sujeitos, pois 69% mencionaram que eles os impe-
Características como analfabe- diam de fazer o que precisavam, variando de média a extrema intensidade
tismo, carência parcial ou total de tal impedimento.

2
saúde conforme entendimento dos sujeitos.

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 91


SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

Quanto à ‘dependência de me- mercado produtivo e afirmado que a relação terapêutica é um ingrediente
dicação ou de tratamentos’, qua- imprescindível nesse processo (Motta, 1997).
se que a unanimidade (96%) dos Assim, observamos que alternativas para o trabalho são necessárias e
sujeitos respondeu precisar de al- que as interações terapêuticas desenvolvidas por profissionais de saúde têm
gum tratamento médico para levar seu valor, favorecendo os sujeitos a se desenvolverem enquanto pessoas, a
sua vida diária, ainda que uma mi- aumentarem seus rendimentos e, conseqüentemente, a satisfazerem melhor
noria (4%) considerasse pequena suas necessidades, proporcionando segurança e satisfação às suas vidas.
tal necessidade.
Percebemos, por esses resulta- Domínio 2 (Domínio Psicológico)
dos, que os sujeitos têm baixa au- As respostas obtidas para o domínio 2 (Gráfico 2) revelaram que 31%
tonomia e dão pouca atenção à dos entrevistados mostraram-se insatisfeitos, mas a maioria (46%) respon-
saúde, principalmente a mental, o deu que não estava satisfeita, nem insatisfeita. A média observada neste
que era esperado, uma vez que os domínio foi de 11,25 (posição intermediária).
serviços de saúde mental de Ilhéus
ainda estão fortemente influencia-
GRÁFICO 2 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para o
dos pela cultura manicomial e os
domínio 2. Município de Ilhéus/BA, 2000.
profissionais não parecem se pre-
ocupar com a transformação, nem
tampouco com a continuidade da
assistência. Discutiremos melhor
estas questões após avaliação do
domínio psicológico.
Na avaliação da sua ‘capacida-
de para o trabalho’, metade (50%)
dos sujeitos demonstrou satisfa-
ção e a outra metade (46%) insa- Ainda neste domínio, os sujeitos demonstraram experimentar situações
tisfação. Isto denota que, mesmo críticas nas facetas sentimentos positivos e negativos. Na primeira, que
a maioria dos sujeitos estando contribui para melhorar sua qualidade de vida, observamos carência e as
aposentada ou desenvolvendo ati- freqüências atribuídas a ela revelaram que metade (50%) dos sujeitos não
vidades informais, eles ainda se aproveitava a vida como gostaria, respondendo que não a aproveitava ou
sentem úteis e precisam de ajuda que a aproveitava muito pouco.
para se inserir no mercado de tra- No que diz respeito à freqüência com que os sujeitos tinham ‘sentimen-
balho, de modo a terem seu poten- tos negativos’, tais como mau-humor, desespero, ansiedade e depressão,
cial valorizado. quase todos (96,2%) responderam conviver com tais sentimentos, variando
Iniciativas como o ‘Projeto Tra- a freqüência de algumas vezes a sempre.
balho’, desenvolvido pelo Centro de Se pensarmos que esses sujeitos estão vinculados a um programa que
Atenção Psicossocial (CAPS) ‘Luís da visa à promoção da saúde e que em algum momento de suas vidas mantive-
Rocha Cerqueira’, em São Paulo, têm ram contato com os serviços de assistência psiquiátrica, estes aspectos, ao
provado com sucesso a possibilida- lado dos observados no domínio físico, demonstram que tais serviços além
de de inserir o doente mental no de não atenderem às suas necessidades, não os valorizam assistindo-os de

92 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001


Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

maneira mais humana e holística, Esse é um trabalho de ajuda que o profissional pode empreender junto ao
pois percebemos que dentre suas ne- paciente, em suas relações.
cessidades principais está a de que Dessa forma, entendemos que, se os profissionais de saúde atentarem
alguém escute as suas queixas. para uma assistência mais humana, certamente terão atitudes mais res-
Para Brasil (1996:21), por trás ponsáveis e éticas, desenvolvendo habilidades e potencialidades que ajuda-
das queixas e sintomas esconde-se rão os sujeitos a melhorar a qualidade de suas vidas.
um pedido de ordem afetiva e de re-
lacionamento que necessita ser com- Domínio 3 (Relações Sociais)
preendido. Este autor afirma que “se
Nas respostas referentes ao domínio ‘relações sociais’ (Gráfico 3), a
o maior sofrimento é a doença, o
insatisfação foi pequena, correspondendo a 19% dos sujeitos. A média
maior sofrimento da doença é a soli-
observada de 12,98 indicou posição intermediária, sendo este o maior
dão; quando o médico (ou outro pro-
escore observado.
fissional) se recusa a ouvir o que o
paciente tem a lhe dizer, isto tem o
GRÁFICO 3 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para
caráter de uma proscrição, uma ex-
o domínio 3. Município de Ilhéus/BA, 2000.
comunhão para o paciente”. Menci-
ona, ainda, que com freqüência as
pessoas não têm com quem queixar-
se de seus males. Este fato foi clara-
mente observado por nós, quando
identificávamos os sujeitos e reali-
závamos as entrevistas, tanto que
uma das falas ficou em nossa men-
te: ‘é bom ter com quem se abrir’.
Integrante deste domínio, a fa- As respostas obtidas para cada uma das facetas ‘relações pessoais’ (ami-
ceta ‘imagem corporal e aparência’ gos, parentes, conhecidos e colegas), ‘suporte (apoio) social’ e ‘atividade
apresentou maior satisfação dos sexual’ indicaram que a maioria dos entrevistados (entre 50 a 57%) encon-
sujeitos, pois 50% manifestaram trava-se satisfeita com relação a elas.
tendência a aceitar a própria apa- A satisfação encontrada neste domínio contraria resultados de outras pes-
rência. Entretanto, alguns entrevis- quisas (Galera & Teixeira, 1997; Campos & Caetano, 1998) e pode estar rela-
tados demonstraram conformismo cionada a características geográficas e socioculturais do contexto estudado.
com essa situação, alegando impos- Segundo Alves et al. (1999), no Nordeste os sujeitos estabelecem uma
sibilidade de melhorá-la, o que, pro- extensa rede de relações com os que vivem mais próximos, atividade que é
vavelmente, mostra a carência de se própria das mulheres, responsáveis por sustentar as ligações de parentes-
olharem no espelho e de gostarem co. Solidariedade e prontidão ajudam a manter esses laços, que têm grande
do que observam, aspecto muito sig- peso na vida dos sujeitos.
nificativo na qualidade de vida, para A esse respeito, Heimstra & Mcfarling (1978:123) afirmam que morado-
não deixarmos de lado os sonhos res de áreas faveladas “têm um forte sentimento de pertinência. A área
que nos conduzem a lutas e conquis- física que circunda suas casas é tida como parte integrante delas e serve
tas e nos fazem sentir realizados. como base para um vasto conjunto de vínculos sociais.”

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 93


SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

Com esta pesquisa pudemos perceber que a satisfação dos sujeitos com Quanto à insegurança, identifi-
relação a esse domínio pode ser atribuída à experiência de compartilha- cada pela faceta ‘segurança física e
rem condições de vida comuns, que lhes permitem falar a mesma lingua- proteção’, 50% dos entrevistados
gem. Mesmo assim, estudos mais qualitativos poderiam oferecer maior afirmaram que não se sentem nada
compreensão da forma e das condições satisfatórias dos egressos experi- seguros ou muito pouco seguros em
mentarem suas relações. sua vida diária. No que tange aos
‘recursos financeiros’, grande parte
Domínio 4 (Meio Ambiente) dos sujeitos (69%) disse não possuir
dinheiro ou possuí-lo aquém das
Os resultados relacionados ao meio ambiente (domínio 4), que abrange
suas necessidades.
seus recursos ‘naturais e sociais’, demonstraram que praticamente não há
Estes aspectos podem estar inter-
sujeitos satisfeitos neste domínio, pois apenas 8% demonstraram satisfa-
relacionados, e a insegurança pode
ção (Gráfico 4), ficando a média em torno de 11,25 (posição intermediária).
ser conseqüência do ambiente pre-
Este foi o menor resultado atribuído aos domínios do WHOQOL-BREF.
cário. Do mesmo modo, a inseguran-
ça pode estar vinculada à renda, pois
GRÁFICO 4 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para
sendo insuficiente para as necessi-
o domínio 4. Município de Ilhéus/BA, 2000.
dades básicas dos sujeitos, compro-
mete gravemente o seu bem-estar.
No que se refere a ‘oportunida-
des de adquirir novas informações
e habilidades’, 50% dos entrevis-
tados responderam encontrar di-
ficuldades de acesso às informa-
ções necessárias ao seu dia-a-dia.
Em relação às freqüências para as facetas deste domínio, constatamos Isto, provavelmente, está ligado ao
que os principais obstáculos são a insegurança; carência de recursos finan- grau de instrução dos sujeitos e se
ceiros, de informações necessárias ao dia-a-dia, de oportunidades de lazer, atentarmos para este mundo cada
bem como a precariedade do ambiente físico. vez mais informatizado, onde as
O ‘ambiente físico’ foi considerado saudável para aproximadamente 20% informações é que direcionam
dos entrevistados. Este número refletiu a realidade do contexto estudado, melhor nossas vidas, teremos aí
no qual observamos a inexistência de infra-estrutura, responsável pela for- mais um agravante.
ma desordenada com que o bairro vem sendo construído, assim como a Com relação às ‘oportunidades de
existência das desigualdades sociais. participação em recreação/lazer’, 69%
Assim sendo, consideramos imprescindível a adoção de políticas ambi- dos sujeitos responderam ter pouca
entais, para melhorar a qualidade de vida desses sujeitos, dentre as quais ou nenhuma oportunidade para de-
citamos: saneamento básico, pavimentação de ruas e morros e o desenvol- senvolvê-los, resultado que nos sur-
vimento de projetos educativos. No entanto, entendemos que o sucesso des- preendeu pelo fato de o local de es-
sas ações e de outras similares dependerá do desempenho de todos os ato- tudo ter acesso direto ao mar.
res envolvidos, conforme alerta o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Conforme Ferreira (1999:78), “o
dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA, 2000). lazer é um tempo em que o homem

94 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001


Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

se livra de um cotidiano massacrante e descobre que o ócio é fundamental o desenvolvimento de seu potenci-
como princípio criador.” al, num determinado contexto, para
Compartilhando com esta idéia, percebemos que há necessidade de que assumam suas responsabilida-
motivar os sujeitos a buscarem formas de lazer, as quais contribuirão para des no desenrolar desse processo
sua maior satisfação e desenvolvimento na comunidade onde vivem. (OMS, 1986).
Compreendemos, portanto, que
Quadro da qualidade de vida geral promover saúde implica um conjun-
to de esforços do qual os sujeitos
O quadro da qualidade de vida geral (Gráfico 5) indicou que 54% dos
também devem participar, buscan-
sujeitos perceberam a qualidade de suas vidas como insatisfatória, ficando
do melhorar suas vidas, exercendo
a média em torno de 11,15 (posição intermediária).
assim sua cidadania plena.
Diante do exposto, considera-
GRÁFICO 5 – Distribuição da freqüência de respostas sobre a medida de satisfação para
mos este trabalho relevante por
o resultado da qualidade de vida geral. Município de Ilhéus/BA, 2000.
servir como um indicador que po-
derá, num contexto local, auxiliar
seus atores (sujeitos, líderes comu-
nitários, equipe do PSF, Universi-
dade) a discutirem e definirem suas
responsabilidades, pelo menos em
saúde mental, partindo das carên-
cias aqui identificadas.

Nas questões que compuseram esse quadro, a insatisfação com a qua-


lidade de vida pareceu estar mais relacionada à saúde. Provavelmente, CONSIDERAÇÕES FINAIS
essa avaliação tenha sido influenciada pelos problemas de saúde referi-
dos pelos sujeitos, como também pelo impacto negativo do distúrbio men- A avaliação da qualidade de
tal à vida do portador. vida através do instrumento WHO-
No entanto, a relação entre saúde e qualidade de vida vai muito além QOL-BREF trouxe-nos um valioso
dessa referência à doença, pois a saúde, em seu sentido amplo (de promo- diagnóstico, apontando carências e
ção de bem-estar e estilos de vida saudáveis, por exemplo), também tem a aspectos que merecem mais aten-
ver com todas as particularidades dos domínios aqui descritos. ção dos profissionais de saúde,
Buss (2000) entende que as explicações e respostas para a articulação quando do planejamento e imple-
da saúde e qualidade de vida se desenvolvem no campo conceitual e na mentação de ações para o cuidado.
prática da promoção da saúde, definida na Carta de Ottawa como “processo Dentre esses aspectos, destacamos:
que confere às populações os meios de assegurarem um maior controle so- a necessidade de interagir com os
bre sua própria saúde e de melhorá-la (...) pressupõe os modos de vida sujeitos, valorizando-os e ajudan-
sadios para alcançar o bem estar” (OMS, 1986). do-os a darem maior importância
Nesse sentido, a saúde constitui o principal recurso para a qualidade de às suas vidas; escutá-los terapeu-
vida e a sua promoção deve somar esforços para que todos os sujeitos, sem ticamente em suas queixas; cons-
distinção, tenham ao seu alcance os mesmos recursos e possibilidades para truir um ambiente saudável; pro-

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 95


SOUZA, R. C. de & SCATENA, M. C. M.

mover atividades de lazer, acesso às tos existentes no contexto estuda- FLECK, M. P.A. et al., 1999. Desenvol-
informações e promoção à saúde. do, como deste estudo para nortear vimento da versão em português
Entendemos que a equipe do esse processo, que no seu transcor- do instrumento de avaliação de
PSF pode desenvolver assistência rer exigirá novas avaliações dos qualidade de vida da OMS
holística e humanizada que concor- itens estudados. (WHOQOL – 100). Rev. Bras.
ra para o atendimento dessas ne- Psiquiatr., v.21, n.1, p.19-28.
cessidades, possibilitando, inclusi-
GALERA, S. A. F., 1994. Contribuição ao
ve, aos egressos desenvolverem au- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
estudo da qualidade de vida de
tonomia e obterem alívio do sofri-
doentes mentais tratados ambu-
mento decorrente da dependência ALVES, P. C. B.; RABELO, M. C. M. &
latorialmente. Ribeirão Preto, 79p.
de medicação/tratamentos e dos SOUZA, I. M., 1999. Introdução. In:
Dissertação (Mestrado) – Escola
sentimentos negativos experimen- RABELO, M. C. M.; ALVES, P. C. B. &
de Enfermagem de Ribeirão Preto,
tados no cotidiano. SOUZA, I. S. Experiência de doença
Universidade de São Paulo.
Por outro lado, os aspectos con- e narrativa. Rio de Janeiro:
siderados satisfatórios precisam ser FIOCRUZ. GALERA, S. A. F.; TEIXEIRA, M. B., 1997.
valorizados, embora a satisfação Definindo qualidade de vida de
BRASIL, M. A. A., 1996. A ética do sofri-
com as relações sociais, contrária a pessoas portadoras de problemas
mento humano. In: FIGUEIREDO, A.
resultados de outras pesquisas, de saúde mental, número especial.
C.; SILVA FILHO, J. F. (Org.). Ética e
mereça um estudo mais qualitativo Rev. Latino-am.Enfermagem, v.5,
Saúde Mental. Rio de Janeiro:
esclarecedor da forma e condições p.69-75.
Topbooks.
dessa experiência, a fim de serem
B USS , P. M., 2000. Promoção da HEIMSTRA, N. W.; MCFARLING, L. H.,
mais bem trabalhados.
saúde e qualidade de vida. Rev. 1978. Psicologia ambiental. São
Vimos que os aspectos não fa-
Ciên-cias e Saúde Coletiva, v.5, Paulo, EPU/EDUSP, p.123.
lam por si só, por que estão interli-
gados com os demais dentro de um n.1, p. 163-78. IBAMA , A contribuição do IBAMA
mesmo domínio ou fora dele, o que CAMPOS, E. M.; CAETANO, D., 1998. para a questão ambiental (On
nos levou a pontuar algumas ques- Qualidade de vida de pacientes Line). Disponível em: [http://
tões relevantes que, certamente, esquizofrênicos. J. Bras. Psiquiatr., www.ibama.gov.br/online/arti-
conduziriam a intermináveis discus- v.47, n.1, p.19-22. gos/artigo22.html]. Acesso em:
sões. No entanto, chamou-nos a 04 de outubro de 2000.
FERREIRA, G., 1999. As instâncias so-
atenção de como a saúde, tendo um
ciais na prática: uma questão éti- MARCOLIN, M. A., 1998. Escala de
sentido positivo e multidimensio-
ca. Cadernos IPUB, n.14, p.77-82. qualidade de vida em pacientes
nal, mantém estreita relação com a
esquizofrênicos. Rev. Psiquiatr.
qualidade de vida satisfatória, cons- FLECK, M. P. A. et al., 1998. Versão
Clín., v.25, n.6, p. 352-6.
tituindo-se num recurso primordial em português dos instrumen-
para sua promoção. tos de avaliação de qualidade M OTTA , A. A., 1997. A ponte de
Dessa maneira, contemplamos a de vida (WHOQOL) 1998 (On madeira: a possibilidade estrutu-
importância tanto da equipe do PSF, Line). Disponível em: [http:// rante da atividade profissional na
para o início de um processo que www.hcpa.ufrgs.br/psiq]. Acesso clínica da psicose. São Paulo,
eleve a qualidade de vida dos sujei- em: 18 de novembro de 1999. Casa do Psicólogo.

96 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001


Qualidade de Vida de Pessoas Egressas de Instituições Psiquiátricas: o caso de Ilhéus – BA

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SOUZA, R. C. A., 2000. Diagnóstico


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Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 88-97, maio/ago. 2001 97


CAMPOS, R. O.
ARTIGOS ORIGINAIS

Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos


serviços substitutivos de Saúde Mental
Clinical ptractice: denied words – on clinical practices in Mental Health
substitutive services

Rosana Onocko Campos1

RESUMO

Este artigo analisa algumas dificuldades e entraves encontrados no


Movimento sanitário brasileiro, para a discussão sobre modelagens clínicas
nos serviços públicos de saúde. Essa questão é analisada em relação a área
de saúde mental e suas especificidades. Propõem-se alguns eixos temáticos
para subsidiar a reformulação da clínica nos equipamentos substitutivos
do Sistema Único de Saúde (SUS). A ênfase é colocada na interface com a
subjetividade das equipes profissionais que neles trabalham e no papel de
suporte do apoiador (supervisor) institucional.

PALAVRAS-CHAVES: planejamento e gestão em saúde, clínica em saúde mental,


serviços substitutivos, subjetividade nas organizações.

ABSTRACT

This paper analyzes some difficulties and obstacles faced by the Brazilian
Sanitary Movement in the discussion of clinical modeling in public health
care services. The issue is analyzed with focus on the mental health area
and its particularities. Some thematic frameworks are proposed to support
the reformulation of the Clinical practice in substitutive equipment to the
SUS – Unified Health Care System. The proposals focus on the interface
1
Dra. em Saúde Coletiva – Departamento
de Medicina Preventiva e Social da
with the subjectivity within the system's professional teams, and on the
Faculdade de Ciências Médicas – Unicamp role of institutional supporters (supervisors).
Rua Américo de Campos 93 – Cidade
universitária – Campinas/ SP KEY WORDS: health-care planning and management, mental health clinical
e-mail: rosanaoc@mpc.com.br practice, substitutive service, subjectivity in organizations.

98 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001


Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

INTRODUÇÃO Na América Latina, desde a dé- A dimensão social continua cin-


cada de sessenta, desenvolveu-se dida, pois agora se pode olhar e até
Nas últimas décadas, poucos tra- com grande ênfase a epidemiologia escutar as comunidades, mas elas
balhos no campo sanitário brasilei- social, que deriva em uma medici- não se encarnam em doentes con-
ro levantaram a importância da clí- na social, a qual não conseguiu de- cretos. No Brasil, após a criação do
nica nos serviços públicos de saú- senvolver uma proposta clínica. Sistema Único de Saúde (SUS), apa-
de. Contudo, poderíamos reconhe- Neste caso, o escopo do olhar abriu- rece a figura do conselheiro: o su-
cer que as questões médicas e sani- se tanto que já não mais enxergava jeito com voz. Contudo, apesar de
tárias encontram-se interligadas os indivíduos: os problemas de saú- um cidadão comum ter direitos ga-
desde o século XVIII (Snow, Vigilân- de seriam problemas dos grupos e rantidos no Conselho Local e, ain-
cia Sanitária alemã, Wirchow, etc.). comunidades. E deve-se reconhecer da, poder ser ouvido como conse-
Segundo Foucault (1989) a es- que, apesar das críticas empreendi- lheiro, terá pouco a nos dizer sobre
truturação da clínica contemporâ-
das pela medicina social à clínica a doença de seu filho quando se en-
nea aconteceu no século XIX, e, pelo
contrar na fila do Centro de Saúde.
menos na França, a clínica moder-
Os cidadãos devem ser escutados;
na se constitui sobre bases anáto-
os doentes, nem tanto.
mo-patológicas e morfológicas, ou
seja, desde a sua origem estrutura- NA AMÉRICA LATINA, DESDE A DÉCADA O Planejamento em Saúde, em
seu processo de constituição disci-
se como um certo “olhar”. DE SESSENTA, DESENVOLVEU-SE COM plinar no interior da Saúde Coletiva
Já no começo do século XX, com
GRANDE ÊNFASE A EPIDEMIOLOGIA SOCIAL, Brasileira, manteve-se, em geral,
as elaborações de Freud, a escuta
afastado das questões clínicas, com-
entra em cena: o pai da psicanálise QUE DERIVA EM UMA MEDICINA SOCIAL,
partilhando, assim, características
dirá que as histéricas têm o que di-
A QUAL NÃO CONSEGUIU DESENVOLVER gerais do campo da Saúde Coletiva
zer. O advento da psicanálise é o res-
UMA PROPOSTA CLÍNICA (Onocko, 2001). Contudo, no âmbi-
gate da escuta. Mas essa escuta per-
to dos serviços assistenciais de Saú-
manecerá até hoje descolada do
de, quando saímos do aspecto tele-
olho que examina.
“Freud inventa o espaço psica- ológico e chegamos ao operativo,

nalítico no movimento de ruptura (pela redução do social com que a nos deparamos sempre com uma

com a rotina da consulta médica e clínica opera), a própria medicina escolha clínica.
a entrevista terapêutica. Aquilo que, social, constituída ela mesma sobre Estamos chamando, aqui, de clí-
como é costume sustenta o vínculo bases epidemiológicas, atribuiu-se nica às práticas não somente médi-
estabelecido no face a face fica ago- o direito de definir necessidades cas, mas de todas as profissões que
ra suspenso: o olhar, a presença fron- sociais, estruturando-se também lidam no dia-a-dia com diagnóstico,
tal dos corpos, sua semiótica postu- como um certo “olhar”. Neste enfo- tratamento, reabilitação e prevenção
ral e gestual” (KÄES, 1997: 50). As- que podem ser olhados grupos de secundária. Isto reforça o argumen-
sim, criam-se settings diferentes risco e comunidades, que jazem a to sobre a especificidade do Planeja-
para escutar e para ver. O doente é nossa frente para que desvendemos mento em Saúde: quem quer contri-
também, e nesse mesmo movimen- seus segredos e necessidades, mu- buir para planejar mudanças em ser-
to, cindido na suas dimensões sub- dando de escala: igual à maca de viços de saúde deve dispor de um
jetiva e biológica. qualquer consultório médico. certo leque de modelos clínicos, e isto

Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001 99


CAMPOS, R. O.

é uma questão de eficácia. Se o Pla- Essa reflexão sobre a clínica serviços de saúde? Como se fossem
nejamento em Saúde quer ser eficaz não pode ser amarrada às visões estabelecimentos e organizações
promovendo mudanças nos serviços, reducionistas predominantes no passíveis de serem submetidos a
ele precisa, necessariamente, de uma discurso sanitário. A tradição des- técnicas gerenciais, de maneira se-
interlocução com a clínica. sa área tem tratado a clínica como melhante às fábricas de sapatos ou
Campos (2000) defende que os uma prática que não interessa ao aos serviços de táxi.
serviços de saúde têm uma dupla fi- campo dos nossos saberes efetivos Uma evidência disto pode ser en-
nalidade: produzir valores de uso prévios. Mais ainda, às vezes ela contrada na contratação de ‘geren-
(práticas produtoras de saúde, cura- aparece como oposta e estrutural- tes’ sem nenhuma vinculação pré-
doras, cuidadoras e preventivas) e mente contraposta à prevenção e à via com a Saúde para dirigir gran-
sujeitos trabalhadores mais autôno- promoção da saúde. des estabelecimentos assistenciais.
mos e prazeirosos. Pensamos o Pla- Contudo, deve-se reconhecer que No melhor dos casos, os planejado-
nejamento em Saúde como dispositi- uma parte da eficácia da Saúde Co- res têm tratado os serviços de saú-
vo (Onocko, 1998). Aquilo que, segun- de como organizações de tipo pro-
do Julliem (1998) propicia, faz advir, fissional, em cujo caso tratar-se-ia
ou, segundo Baremblitt (1994), abre de intervenções a nível da cultura
espaços para a criação do novo parâ- organizacional, ou comunicativa
metro. Assim sendo, ele se constitui A TRADIÇÃO DESSA ÁREA TEM (Rivera, 1996). Partindo desse olhar,
como uma práxis que visa à produ-
1
TRATADO A CLÍNICA COMO UMA tratar-se-ia de “enxertar” novos va-
ção e não somente à ação, e defende- lores na organização (como se isso
PRÁTICA QUE NÃO INTERESSA
mos que essa produção pode, muito pudesse ser conseguido indepen-
bem, ser compromissada com essa AO CAMPO DOS NOSSOS dentemente das formas de subjeti-
dupla finalidade. Assumir tal postu- vação ali vigentes), e de impor limi-
SABERES EFETIVOS PRÉVIOS
ra trará conseqüências impactantes tes ao reconhecimento do poder di-
sobre nossa prática como planejado- ferenciado que os médicos detêm
res. É preciso resgatar para o Plane- nas organizações de Saúde (o que
jamento em Saúde uma preocupação acaba por reforçar o patrimônio ex-
fundamental com os sujeitos que tra- letiva depende, em alguma medida, clusivo dos médicos sobre a clínica,
balham nos serviços de saúde, com a dos que tratam. Alguns autores pro- e sustenta a degradação das práti-
finalidade de subsidiar um exercício puseram-se a falar em processo de cas clínicas sob a forma de procedi-
profissional que estimule novas ma- saúde/ doença/ atenção (Menendez, mentos médicos).
neiras de subjetivação, e também, 1992), e, assim, a nosso ver, recolo- Para a tradição da saúde coleti-
uma preocupação com o desenvolvi- caram certa ênfase nos serviços as- va, a clínica tradicional opera – pre-
mento de uma reflexão sobre as mo- sistenciais. Mas, como a área de Pla- dominantemente – no setting indi-
delagens clínicas que possam se cons- nejamento, mesmo no interior da vidual, do encontro singular. Sendo
tituir em suporte para novas práticas. Saúde Coletiva, tem se ocupado dos que a própria área de Saúde Coleti-

1
“Chamamos de práxis este fazer no qual os outros são visados como seres autônomos(...) A práxis é por certo uma atividade consciente, só
podendo existir na lucidez; mas ela é diferente da aplicação de um saber preliminar (não podendo justificar-se pela invocação de um tal saber
– o que não significa que ela não possa justificar-se)” (Castoriadis 1986: 95).

100 Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, p. 98-111, maio/ago. 2001
Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

va estruturou-se contrapondo as serialidade, o que há de comum entra na vida do sujeito, mas nun-
práticas coletivas às individuais, é nos casos. Nem sempre trabalha ca o desloca totalmente. Seu João
compreensível que o tema da clíni- com riscos, ainda que devesse; está doente e continua a ser tra-
ca tenha ficado fora de foco para a está focada no curar, não na pre- balhador metalúrgico, obsessivo,
maioria dos sanitaristas. venção, nem na reabilitação. In- pai, etc. Nem na pior das doen-
Pensamos que uma reflexão so- tervir sobre o prognóstico dos ca- ças, nem à beira da morte, pode-
bre a clínica se faz necessária se sos é cada vez menos freqüente. ríamos, nunca, ser totalmente re-
pretendemos avançar na discussão O sujeito é reduzido a uma doen- duzidos à condição de objeto. O
sobre a eficácia. Campos (1997) pro- ça, no melhor dos casos, ou a um sujeito é sempre biológico, social,
pôs as seguintes categorias para órgão doente. Contudo, e indepen- e subjetivo. O sujeito é também his-
repensar a clínica: dentemente de sua ênfase no bio- tórico: as demandas mudam no
lógico, podemos reconhecer esta tempo, pois há valores, desejos que
Clínica degradada: queixa-condu-
como a clínica dos especialistas, são construídos socialmente e cri-
ta, não avalia riscos, não trata a
am necessidades novas que apare-
doença, trata sintomas. É a Clíni-
cem como demandas. Assim, clíni-
ca mais comum nos Pronto-aten-
ca ampliada seria aquela que incor-
dimentos, mas, também é a de
porasse nos seus saberes e incum-
grande parte de nossa atenção à
PENSAMOS QUE UMA bências a avaliação de risco, não
demanda (encaixes ou programa-
somente epidemiológico, mas tam-
das) em muitos outros serviços. É
REFLEXÃO SOBRE A CLÍNICA
bém social e subjetivo, do usuário
esta a clínica da eficiência: produz SE FAZ NECESSÁRIA SE ou grupo em questão. Responsabi-
muitos procedimentos (consultas),
PRETENDEMOS AVANÇAR lizando-se não somente pelo que a
porém, com muito pouco questio-
epidemiologia tem definido como
namento sobre a eficácia (de fato, NA DISCUSSÃO SOBRE A EFICÁCIA
necessidades, mas também pelas
que grau de produção de saúde
demandas concretas dos usuários.
acontece nessas consultas?).
Campos (2000) entende que as de-
Deve-se reconhecer que, após a mandas são também manifestação
crição do SUS, a clínica adquiriu que estritamente protegidos nos
concreta de necessidades sociais
também um valor ideológico: ter seus corpus profissionais, já não
produzidas pelo jogo social e histó-
acesso equivale a possuir cidada- podem fazer práxis na própria
rico, que foram se constituindo, e
nia. Mas, quase ninguém se inter- prática e verificar a eficácia do que
que aparecem na sua singulariza-
roga sobre quais tipos de cuida- produzem. Toda vez que a clínica
ção. É evidente que para desenvol-
dos se tem acesso. Assim, a de- fica fortemente amarrada a pres-
ver este tipo de clínica a formação
gradação da clínica tem sido esti- crições técnicas, restringe-se sua
do super-especialista fica estreita,
mulada por essa associação de possibilidade de ampliação. Na
pois esta proposta gera tensão nas
valores transcendentes: o acesso Saúde Mental, alguns, em nome
barreiras disciplinares, estimulan-
do cidadão e a eficiência. Parado- da clínica, efetivam tais práticas.
do o trabalho em equipe. Trabalho
xo da extensão de direitos! Clínica ampliada: (clínica do su- este que vem acontecer como uma
Clínica tradicional: trata das do- jeito) a doença nunca ocuparia nova práxis e não mais como aquele
enças enquanto ontologia, na sua todo o lugar do sujeito, a doença lugar idealizado, utópico e que nin-

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CAMPOS, R. O.

guém teria visitado jamais, da Assim, após a criação do SUS, das vezes, entendida como a nega-
equipe transdisciplinar perfeita. fortaleceu-se a crítica ao modelo de ção da existência da doença, o que
tratamento asilar, com tudo o que em momento algum é cogitado (...)”
Para o Planejamento em Saúde
ele acarreta de submissão, isola- (Amarante, Idem: 84).
vir a ser uma práxis preocupada
mento e discriminação negativa. O Esta influência, em muitos casos
com o mundo das finalidades e com
ímpeto da Luta Antimanicomial mal interpretada como abolição da
a eficácia, é preciso que nós, plane-
criou focos de cegueira, espaços re- doença e da clínica, tem contribuído
jadores da Saúde Coletiva, não con-
calcados, nossos próprios pactos para um certo esvaziamento da dis-
tinuemos surdos às questões rela-
denegatórios. Nisso, nossa luta se
2 cussão sobre a clínica nos serviços
tivas aos modelos clínicos. Deverí-
assemelha a toda luta. substitutivos de saúde mental.
amos desenvolver reflexões sobre a
Como lembra Amarante (1996), Na nossa experiência, com super-
clínica nas suas múltiplas especia-
na inspiração basagliana a doença visão institucional de vários serviços
lidades: assim, na Saúde Mental, ou de saúde mental nos últimos anos,
é colocada entre parênteses, o olhar
no combate às drogas, ou na Saúde temos a impressão de que a doença
da criança, ou da família, ou da não foi colocada entre parênteses,
mulher, a clínica deveria ser sem- para recolocar o foco no doente, a
pre interrogada à luz da sua produ- SE A CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA doença foi negada, negligenciada,
ção, da sua eficácia. O substantivo oculta por trás dos véus de um dis-
NO ESPAÇO DOS SERVIÇOS PÚBLICOS
clínica seria, assim, sempre plural curso que, às vezes, e lamentavelmen-
e adjetivado (Campos, 1997). DE SAÚDE RELACIONA-SE COM
te, transformou-se em ideológico.
SUA PRODUÇÃO SOCIAL E HISTÓRICA, Nesta linha, é possível reconhecer no
discurso de alguns membros da co-
NOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL
O ESPAÇO DA CLÍNICA NA ORGANIZAÇÃO munidade antimanicomial certa ide-
DE SERVIÇOS SUBSTITUTIVOS DE ENCONTRAREMOS UMA alização da loucura, negação das di-
SAÚDE MENTAL: UM CONJUNTO VAZIO? ficuldades concretas e materiais do
SITUAÇÃO SEMELHANTE
que significa viver como portador de
Se a constituição da clínica no sofrimento psíquico e minimização do
espaço dos serviços públicos de saú- verdadeiro sofrimento que se encar-
de relaciona-se com sua produção deixa de ser exclusivamente técni- na nesses pacientes, por exemplo, no
social e histórica, nos serviços de co, exclusivamente clínico. Então, é surto psicótico.
saúde mental encontraremos uma o doente, é a pessoa o objetivo do Na contramão, um sendeiro que
situação semelhante, ainda que ne- trabalho, e não a doença. Desta for- se bifurca: em nome da doença e da
les possam ser reconhecidas outras ma a ênfase é colocada no processo clínica os ideólogos da psiquiatria
influências, diretamente vinculadas de ‘invenção da saúde’ e de ‘repro- organicista continuam a sustentar
à sua especificidade e à crítica do dução social do paciente’. Mas, nos teses bizarras, como a da origem
sistema manicomial que marcou diz também esse autor: “a operação puramente genética, o tratamento
fortemente essa área. ‘colocar entre parênteses’ é, muitas condutista que repete o asilo fora

2
“Chamo de pacto denegatório a formação intermediária genérica que, em qualquer vínculo (...) conduz irremediavelmente ao recalque, à recusa,
ou à reprovação (...) o que pudesse questionar a formação e a manutenção desse vínculo e dos investimentos do que é objeto” (Kaës, 1991: 27).

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Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

dele, a continuidade das camisas de viços asilares vão sendo substituí- o serviço contribui para dissociar
força e, lamentavelmente, até do dos por outros equipamentos: Cen- ainda mais. Remédio é com psiquia-
eletrochoque. tros de Atenção Psicossocial (CAPS), tra. Escuta é com psicólogo. Traba-
E, alguns psicanalistas que, ain- Núcleos de Atenção Psicossocial lho é com o terapeuta-ocupacional.
da que bem intencionados, preten- (NAPS), Hospitais Dia (HD), equipes Intercorrência clínica, outra: não é
dem transformar todo serviço de de saúde mental no Programa Saú- conosco. Surto? Vai ter que internar.
saúde em uma reprodução do con- de da Família, etc. Desejamos des- Claro, nem todos os lugares fun-
sultório particular, como se o salto tacar alguns entraves que identifi- cionam exatamente assim, estamos
entre público e privado pudesse ser camos neles, pois, pensamos, não procurando reconhecer alguns en-
dado sem conseqüências. Opera-se, se devem a uma concepção técnica traves, e sugerir algumas linhas de
em algumas abordagens, certa ‘neu- sobre a organização do trabalho, reflexão para serem aprofundadas.
rotização’ do psicótico: nada se mas a uma impossibilidade que se No fundo, é essa uma postura
sabe, o sujeito tem que demandar, constitui no intermediário das rela- clínica: crer que fazer consciente
tomar decisões e advir. Ora, se um algumas coisas resolve outras.
psicótico pudesse fazer isso não pre- Como disse Japiassu: “a consciên-
cisaria de serviços especiais. Sem cia não é imediata, porém mediata;
dúvida, existem concepções clínicas
REMÉDIO É COM PSIQUIATRA. não é uma fonte, mas uma tarefa, a
embasando essas práticas. O que se ESCUTA É COM PSICÓLOGO. tarefa de tornar-se consciente, mais
quer ressaltar é a necessidade de se TRABALHO É COM O consciente” (Japiassu, 1990:10).
ampliar o debate sobre a clínica pos-
sível no serviço público de Saúde
TERAPEUTA-OCUPACIONAL.
Mental. Particulamente sobre uma INTERCORRÊNCIA CLÍNICA, OUTRA: ALGUNS EIXOS PARA PENSAR A CLÍNICA NA
clínica das psicoses. ORGANIZAÇÃO DOS SERVIÇOS
NÃO É CONOSCO. SURTO?
No interregno, continuam sofren- SUBSTITUTIVOS NA REDE PÚBLICA:
do milhares de pacientes psicóticos. VAI TER QUE INTERNAR
Apesar de tudo que temos avança- Não propomos estes eixos na
do, ainda, em muitos lugares do país, pretensão de esgotar a discussão,
poucas vezes se oferece a esses usu- ções entre os sujeitos que ali traba- nem de ‘fechar’ uma proposta clíni-
ários, como alternativa terapêutica, lham e seu objeto de trabalho. As- ca única para os serviços substitu-
algo mais que remédios, uma inter- sim, coloca-se a questão da subjeti- tivos. Estamos chamando-os de ei-
nação de vez em quando, e, no me- vidade dos que tratam, de sua in- xos precisamente por identificá-los
lhor dos casos, uma luta para ele serção institucional, às ameaças como núcleos temáticos, em volta
também se engajar. Diga-se de pas- narcísicas a que são submetidos dos quais agrupam-se inúmeras
sagem que, quando isso acontece, a pelo próprio fato de trabalharem práticas que ocorrem nos mais va-
consciência da equipe, entendendo com pessoas com sofrimento psíqui- riados serviços. Ressaltá-los como
do que se trata, e sem manipular os co (Marazino, 1989), (Käes, 1996). eixos tem a intenção de criticar a
usuários, pode vir a ser um magnífi- Colocar a doença entre parênte- naturalização dessas práticas, res-
co recurso terapêutico. ses é trazer para o centro do foco o gatar seu valor de uso do ponto de
Lentamente, muito mais lenta- usuário do serviço. Um usuário que vista do que, de fato, pretende ser
mente do que gostaríamos, os ser- muitas vezes está dissociado, e que produzido. Destacamos a necessida-

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CAMPOS, R. O.

de de nos interrogarmos sobre o sen- acompanhados, menos de dois paci- xa. Mas gostaríamos de salientar que
tido de nosso trabalho, sobre o valor entes serão encaminhados a interna- por trás dessa complexidade, locali-
de nossas práticas, sobre a eficácia. ção cada mês. Ainda que sem fontes za-se uma questão fortemente entre-
de comparação, parece-nos que é pos- laçada com a concepção clínica que
A crise sível sustentar a tese da freqüência tenhamos da psicose. Tudo isso per-
baixa. (Pois, por exemplo, em um ou- meado pelo valor – fortemente ideo-
Os equipamentos substitutivos: a tro serviço que acompanhamos e que logizado – de “não internarás”.
que será que se destinam? Ou, per- funciona ainda na lógica do ambu- Se assumirmos que o momento
guntando a partir de um referencial latório, a taxa é de 3,5% ao mês). Fica do surto constitui-se, para pacien-
do Planejamento: para que servem? claro, portanto, que os serviços subs- tes e técnicos, em um momento de
Deixando de lado a grande carên- titutivos são definitivamente efica- fundamental importância, podere-
cia de serviços destinados à atenção zes em prevenir internações. Ainda mos escapar da simples reiteração
de pacientes com problemas de dro- assim não pudemos constatar taxa do valor ideológico e propor outras
gas e/ou álcool (pois mereceria um saídas. “(...) o surto psicótico, é vi-
estudo particular), na maioria dos vido com enorme angústia, é a fa-
casos os serviços de atenção à saú- lência dos referencias que susten-
de mental vem se definindo com uma O QUE TEMOS VISTO ACONTECER COM OS tavam este indivíduo. Esta quebra
vocação especial para o atendimen- USUÁRIOS QUE ACABAM SENDO INTERNADOS joga o sujeito no medo, confusão
to de psicóticos e neuróticos graves. mental, perda dos limites corporais,
É QUE MUITAS VEZES, A INTERNAÇÃO
Na maioria deles, também, se colo- nem mesmo o tempo como uma di-
cando com maior ou menor ênfase a PRODUZ UMA QUEBRA DE SUA VINCULAÇÃO mensão tem consistência suficien-
necessidade de serem – de fato – COM O SERVIÇO, O QUE REDUNDA EM te: deixa de existir como tal” (Car-
substitutivos à internação psiquiá- rozzo, 1991: 33).
POSTERIOR FRAGILIDADE E EXPOSIÇÃO AO
trica integral. Entendermos este momento colo-
Na nossa experiência pessoal, e na RISCO DE NOVAS INTERNAÇÕES cará para nós a necessidade de quali-
maioria dos serviços com que tivemos ficar os serviços substitutivos para
contato, essa função é cumprida, com intervir na crise. E deveremos reco-
variações, porém nunca com taxa zero zero de internação, o que talvez se nhecer que, em alguns usuários e em
de internações. Quer dizer que, com- deva ao fato de nossa experiência algumas situações, a necessidade de
parados os pacientes com eles mes- acontecer em serviços sem leitos resguardo, proteção e contenção se-
mos, a redução da freqüência de in- (CAPS, HD, ambulatórios). rão fortemente colocadas pelo apare-
ternações é muito importante depois O que temos visto acontecer com cimento do surto. Assim, quando o
que se vinculam a algum serviço os usuários que acabam sendo inter- serviço não dispõe nem mesmo do
substitutivo, e considerados o mon- nados é que muitas vezes, a interna- espaço físico (às vezes também não
tante de pacientes e a quantidade de ção produz uma quebra de sua vin- do psíquico, nem do técnico) para aco-
encaminhamentos feitos para unida- culação com o serviço, o que redun- lher a crise, a única saída que pode
des de internação a taxa é relativa- da em posterior fragilidade e exposi- ser enxergada pela equipe é encami-
mente baixa (num serviço da cidade ção ao risco de novas internações. nhar para internação.
de Campinas: 1.5 % ao mês). Isso quer A relação entre os serviços de um No seu momento de maior sofri-
dizer que, de cada 100 pacientes sistema de saúde mental é comple- mento e fragilidade, o paciente é

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Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

exposto a uma quebra extra de seus riamente, constatamos que 70 % algo que pode ser tratado e acom-
referenciais e vínculos. Se ele já não dos casos só tiveram essa oferta de panhado e não somente abafado por
reconhece o espaço, irá parar em um tratamento (ou seja, nunca tiveram grande quantidade de remédios.
espaço que, de fato, ele não conhe- contato com outro tipo de serviço Para isto ser suportável a própria
ce, entre pessoas que ele nunca viu, de saúde mental) e ainda, muitos equipe precisará de cuidados. Sabe-
e ser “tratado” por uma equipe que deles haviam passado a maior par- mos que isto não é sempre fácil no
não conhece sua história. Desta for- te do último ano internados (lem- setor público.
ma, a possibilidade de se produzir bro de um caso que havia passado Sustentada nessa posição clíni-
da crise uma passagem para algu- em internação 8 meses), somente ca, pensamos ser possível uma pri-
ma outra coisa fica prejudicada. que então, eles não eram mais asi- meira diretriz para a organização de
No melhor dos casos, se o usuá- lares, pois o Sistema de financia- um sistema de saúde mental. A da
rio consegue no episódio da inter- mento pretende modular interna- necessidade de trabalhar com equi-
nação se ligar de alguma maneira a ções curtas (para sermos politica- pamentos não intermediários, senão
alguém da equipe de internação, verdadeiramente substitutivos: ca-
logo ele será submetido a uma nova pazes de preservar o vínculo com
perda. O sistema coloca o imperati- seus usuários nos diversos momen-
vo (antimanicomial) dessas Unida- ESSA GRANDE PARCELA DE tos, e sob as diversas fases em que
des de Internação trabalharem na se apresenta seu sofrimento. Fugin-
PACIENTES PSICÓTICOS NO BRASIL
lógica de uma porta giratória: en- do da lógica do entra-e-sai e substi-
trou, melhorou, saiu. Pouquíssimas VIVE NO PIOR DOS MUNDOS: tuindo-a pela da responsabilização.
perguntas em relação a essas três Para isto acontecer deveria ser pos-
EM NOME DA DESINSTITUCIONALIZAÇÃO,
fases: assim, uma experiência do- sível contar com um apoio institu-
lorida e inesquecível transformar- ELES NÃO TÊM VÍNCULO, cional para a própria equipe.
se-á, por obra do Sistema, em mais NEM HISTÓRIA, OU ESPAÇO
um episódio banalizado. A família
Estamos fazendo esta análise
pressupondo como exemplo o me- É obvio que existem nas famíli-
lhor dos casos, pois em grande par- mente corretos e antimanicomiais). as dos psicóticos características,
te do Brasil, ainda não existindo Essa grande parcela de pacientes condições relacionadas à produção
suficiente oferta de Serviços subs- psicóticos no Brasil vive no pior dos dessa psicose. Como tratá-los fora
titutivos, grande número de paci- mundos: em nome da desinstituci- do manicômio, senão intervindo
entes psicóticos, com longas histó- onalização, eles não têm vínculo, nesses núcleos familiares, propici-
rias de evolução, só conhecem nem história, ou espaço. ando o restabelecimento de víncu-
como única experiência terapêuti- A possibilidade de acompanhar los “desde algum outro lugar”. Sem
ca esse lamentável entra-e-sai em a crise dos usuários está colocada esperar que se façam “normóticos”
diversas internações. Há alguns para grande parte dos serviços. Um (Hippólito, dixit, 1997); porém que
anos atrás, em um levantamento compromisso com esta questão exi- sejam capazes de gastar melhor sua
realizado numa Unidade de Inter- girá da equipe a possibilidade de própria vida.
nação, analisando prontuários sustentar sua própria crise. Trans- Muitas dessas famílias têm uma
numa amostra selecionada aleato- formar o surto em passagem, em relação culposa com a instituciona-

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CAMPOS, R. O.

lização do parente. E uma sensação para se produzir um psicótico), mas, do, exacerbando-se paranóias), pe-
tremendamente doída e contraditó- sim, com o desejo da criança. Ela dir informações às famílias sobre os
ria entre querê-los de volta (para colocava esses pais na genealogia de usuários (aí é o mesmo ao avesso:
mitigar a culpa) e o medo e o incô- sua própria paternidade. a história não é mais do sujeito, se-
modo concreto e terrível de ter um Assim, no caso dos serviços não a que sua família conta, e as
louco em casa. No caso dos mani- substitutivos, o objetivo declarado famílias são constrangidas a se exi-
cômios brasileiros, esta questão é de evitar as perdas de laços sociais birem na frente de outras, nos as-
agravada pelo quadro de pobreza e familiares coloca o imperativo de pectos mais íntimos e doídos – doi-
extrema a que estão submetidas tratar também as famílias. dos? – de sua relação).
muitas dessas famílias. Na maioria dos serviços que co- Atribuímos uma parte desta di-
Penso que várias questões da nhecemos existe algum espaço des- ficuldade à falta de formação; é di-
clínica de crianças de François Dol- tinado a trabalhar com famílias. fícil trabalhar com famílias, e há na
to (1989, 1996 a, 1996 b) merecem Porém, muitas vezes, esse espaço, rede pública poucas pessoas com
ser exploradas em relação a uma essa capacitação específica. Mas
clínica da psicose. Sobretudo tra- outra, e nesse sentido desejamos
tando-se de pessoas com muitos inserir esta contribuição, está rela-
anos de evolução e em propostas cionada com a perda de sentido das
nas quais se pretende recuperar ASSIM, NO CASO DOS SERVIÇOS nossas práticas, com o véu produ-
zido nas equipes, que imprime sua
certo vínculo familiar.
SUBSTITUTIVOS, O OBJETIVO DECLARADO
Dolto não rejeitava entrevistar marca acrítica no dia-a-dia dos tra-
terapeuticamente famílias, pais. DE EVITAR AS PERDAS DE LAÇOS SOCIAIS balhadores de saúde. Esquecemos

Outros autores também defendem o valor da pergunta “para quê”.


E FAMILIARES COLOCA O IMPERATIVO
esta proposta de ‘aproveitar-se’ da “Sabemos que o lugar que coube
DE TRATAR TAMBÉM AS FAMÍLIAS
transferência parental, já que, é ob- ao psicótico em sua família foi de car-
vio, não são as crianças as que de- regar algo que nas gerações preceden-
mandam análise (Manonni, 1980; tes foi ficando impossível ser elabo-
Rosemberg, 1999). Esta questão é rado (...) Se podemos entender a im-
mais ou menos reconhecida no cam- fundamental para o sucesso da pro- portância muitas vezes vital para
po da análise de crianças, mas, cre- posta, é alarmantemente esvaziado este núcleo familiar desta ‘função’

mos, não tanto no das psicoses. To- de sentido. Fazem-se grupos de fa- que o psicótico corporifica, sabemos

davia, deve-se reconhecer que, fre- que os pais, a família não devem ser
mília para quase qualquer coisa:
culpados ou responsabilizados por
qüentemente, os psicóticos tampou- informar as famílias da evolução do
esta violência. Não foi uma opção
co demandam: a sociedade ou a fa- paciente (o grupo transforma-se em
(...)” (Carrozzo, 1991: 35).
mília o fazem em seu nome. uma degradação eficiente do direi-
Contudo, no caso de Dolto, o com- to à informação, para não falar da Assumirmos esta posição permi-
promisso nunca era com o desejo dos complicada situação na qual é co- te-nos aceder a uma razão para tra-
pais (que em geral atuam em nome locado o usuário, pois se está den- tar essas famílias. Essa carga de
do desejo de seus próprios pais, o que tro do grupo vê-se tratado como um gerações, que o psicótico encarna é
sustenta tese de alguns autores de objeto do qual há que se ter infor- bem pesada. Trabalhar isso com
que são necessárias várias gerações mação, e se está fora vê-se ameaça- cada família pode vir a ser funda-

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Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

mental. Para isso, o espaço tem que reparadas, as invasões à própria fechados. A paródia está no fato de
ser apropriado. O que a família nos subjetividade não sejam vividas que na saúde pública, pelo menos,
transfere deve ser redirecionado, e como mortíferas, e a dificuldade de os programas eram baseados em
isto dificilmente será possível em viver possa ser acompanhada. critérios de risco, nos serviços de
reuniões multitudinárias. Contudo, gostaríamos de salien- saúde mental vimos muitas vezes
Podemos assim sugerir outra di- tar o peso da estruturação do servi- eles se justificarem simplesmente
retriz para o sistema público: ao se ço público sobre esse dispositivo de pelo gosto de tal ou qual terapeuta
pensar na população alvo de um tratamento. Se as pessoas que ofe- em oferecer isto ou aquilo. Nenhu-
dado serviço, talvez seja necessário recem o grupo não têm clareza de ma interrogação sobre o sentido de
redimensionar a oferta de atendi- objetivos, o espaço é banalizado, os nossas práticas.
mento incrementando aos usuários usuários são ‘encaminhados’ para Temos visto muitos grupos de
potenciais, reservando uma porcen- o grupo e ‘devem ir’, nunca ninguém medicação nos quais realiza-se de
tagem para as famílias. Sabendo se perguntando sobre o que tal es- fato uma consulta médica coletiva,
disso, inclusive, avaliar a necessi- mera prescrição de receitas, e não
dade de aprimorar a formação dos um espaço para que os usuários,
profissionais que trabalham na rede entre eles, possam, com a ajuda do
pública de maneira específica. terapeuta, construir novas relações
NA MAIORIA DOS SERVIÇOS com os remédios.
O grupo CONSTATAMOS TAMBÉM A EXISTÊNCIA
O trabalho
DE ESPAÇOS PARA GRUPOS. GRUPOS
Na maioria dos serviços consta-
tamos também a existência de espa- DE VERBALIZAÇÃO, DE TERAPIA Outra questão que mereceria ser
ços para grupos. Grupos de verbali- resgatada na clínica e explorada
OCUPACIONAL, DE TRABALHO CORPORAL
zação, de terapia ocupacional, de tra- com psicóticos é o uso de mediado-
balho corporal. As variações são inú- res diferentes da palavra. Desenhos,
meras, e diversas também as corren- tintas, argila... Há coisas de que os
tes ou abordagens em que os tera- loucos não falam. Não podem falar.
peutas se inserem. Nada errado: há paço significa para esse usuário em Todavia, as desenham, as amassam,
riqueza nessa diversidade. particular. O grupo transforma-se, as vomitam.
O grupo pode ser um espaço pri- assim, em véu sobre o mandato de Uma paciente pintou durante
vilegiado para vivenciar-se de uma fazer eficiente o serviço: atende-se anos barcos. Metros de tela e quilos
nova maneira as transferências a 8 ou 10 pessoas em uma hora (ga- de pintura em mares azuis e barcos
maciças dos psicóticos, “viver expe- rantindo produtividade), mas se coloridos. Havia chegado de outra
riências afetivas realmente novas, degrada a singularidade dos casos. instituição, com anos de internação
fundantes, que permitam um cerzi- Em muitos serviços, os grupos e sem nenhum dado pessoal nem
do (não perfeito) na trama desta oferecidos modulam, inclusive, familiar. Chamavam-na de Rita e
subjetividade” (Carrozzo, Idem: 34). quem pode ou não pode ter acesso resultou ser Maria Aparecida, quan-
De novo um espaço que possa se ao serviço. Parodiando os progra- do conseguiu recuperar sua cartei-
constituir em passagem: um lugar mas clássicos da saúde pública, ofe- ra de identidade pelas marcas digi-
no qual algumas coisas possam ser recem-se unicamente ‘cardápios’ tais. Anos passou des-Aparecida,

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CAMPOS, R. O.

pintando barcos, antes de conseguir que o espaço da produção, com toda trabalho também como produção
contar que havia nascido em uma a sua potencialidade, é freqüente e do sujeito em si, não somente como
cidade portuária. Hoje vive com sua lamentavelmente banalizado. Quais reprodução material. Procurando
família e enviou uma estrela de mar as conseqüências para um psicótico sempre que possível a construção
de presente ao serviço. Foram vári- de trabalhar numa linha de produção de sentido dessa reprodução soci-
os litros de tinta que a ajudaram a na qual ele só enxerga um pedaço do al, para ela não vir a ser simples
voltar para casa. produto? Por que muitas das oficinas adaptação social.
Outro paciente, jovem, delirante que ‘dão certo’ trabalham com técni-
e não conseguia falar de nada no cas que partem do fragmento (papel A equipe e o projeto como processo
setor de casos agudos. Um dia, no reciclado, vitraux, mosaico) para pro- intermediário
trabalho de colagge, viu em uma duzir um objeto? O que está sendo
revista a foto de um cachorro. E dis- cerzido nessa criação, quando ela Inseridos no campo do planeja-
parou a falar de uma vez em que pode ser encarada como processo pro- mento de serviços de saúde, defende-
houve um cachorro, e uma casa, e mos que um projeto em um serviço
uma mãe... e saiu da crise. de saúde deve incluir uma propos-
Com esses exemplos desejamos ta clínica. E também que todo proje-
mostrar uma diferença básica entre UM DIA, NO TRABALHO DE COLAGGE, to só será possível se explorado a
o fazer alguma coisa (ou qualquer partir da subjetividade da própria
VIU EM UMA REVISTA A FOTO DE UM
coisa), e fazer coisas que possam vir equipe em questão (Onocko, 2001).
a ter sentido para cada usuário. Te- CACHORRO. E DISPAROU A FALAR DE Se pensamos o Planejamento em
mos visto numerosas oficinas que Saúde como dispositivo, ele torna-se
UMA VEZ EM QUE HOUVE UM CACHORRO,
– chamando-se de terapêuticas – mais uma exploração do dado do que
estruturam-se somente em base do E UMA CASA, E UMA MÃE... uma aplicação de receitas tecnológi-
produzido (em termos de produto E SAIU DA CRISE cas prontas. Esta forma de encarar o
para a cooperativa vender, por exem- planejamento ressalta o espaço do
plo) e não do que produzem concre- Projeto e faz relativo o do Plano.
tamente sobre a singularidade de Enfatizamos que o subjetivo é
cada usuário que se encontra inse- dutivo de si e do mundo? Pensamos próprio do projeto, como o técnico o
rido na ‘linha’ de produção. que essas questões não podem desa- é do plano. O momento que indaga o
Claro que, na direção de colocar a parecer para a equipe que trata nem sentido, o ‘para quê’ das práticas, o
doença entre parênteses, o fato de para o paciente, sob o risco, já denun- momento em que posso desejar
estar inserido em uma produção que ciado por outros autores, de a ação projetar(me) com os outros para
lhe traz algum pagamento produz social prevalecer sobre a interlocução transformar o real, é o projeto. “O
efeitos: o usuário deixa de ser uma (Figueiredo, 1997). projeto visa sua realização como mo-
carga para a família e pode vir a de- Mais uma consideração sobre as mento essencial” (Castoriadis, 1986:
sempenhar outros papéis, que não conseqüências que poderíamos ex- 97). E este é o momento mais com-
somente o de enlouquecido da casa. trair disto para a estruturação dos plexo do ponto de vista da constitui-
Essa é a parte da intervenção psicos- serviços públicos: pensarmos espa- ção da grupalidade, momento no
social que pode e deve ser preserva- ços nos quais possam, além de di- qual consensos e representações di-
da; o que gostaríamos de ressaltar é zer, fazer algo. E pensarmos no versas virão à tona, assim como con-

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Clínica: a palavra negada – sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de saúde mental

flitos e desencontros. O projeto tem rios que vão sustentar a realização pensar. O paradoxo, que qualquer
permanência, o plano é uma figura do pr ojeto da instituição” (Kaës,
projeto estrategista enxergaria é que essa
fragmentária e provisória. Se tenho Idem: 34, grifo do autor). impossibilidade de autocrítica
um projeto, passar dele ao plano re- constitui-se em nossa fraqueza.
E essa não é uma tarefa fácil nos
sulta, aí sim, de uma aplicação téc- Nunca ficamos tão vulneráveis aos
serviços públicos, muitos dos quais
nica, depende de um saber prévio e é outros como quando não consegui-
encontram-se burocratizados ou
relativamente fácil de se conseguir. mos nos enxergar. “A distância en-
submetidos ao gerenciamento auto-
Como trabalhar em planejamen- tre a cultura da instituição e o fun-
ritário. A compreensão dos aspec-
to, ajudando a formular projetos, fa- cionamento psíquico induzido pela
tos subjetivos envolvidos pode con-
zendo de nossa prática uma práxis, tarefa está na base da dificuldade
tribuir para repensar nosso papel
a não ser admitindo e estimulando para instaurar ou manter um es-
como apoiadores das equipes.
os sujeitos que formulam esses paço psíquico de contenção, de li-
Parece irrisório pedir a grupos
projetos a fazerem práxis na sua gação e de transformação” (Kaës,
que se encontram espremidos nas
própria prática? Na práxis, o sujei- 1991: 36, grifos do autor).
to faz a experiência na qual está E não é também disso que preci-
inserto e a experiência o faz. sa uma clínica da psicose? Não bas-
Defendemos que a possibilidade de ta manter a ética da psicanálise na
sair da eterna repetição, ousando e NADA CONTRA O DIVÃ, MAS TEMOS sua lógica privada, oferecendo con-
reorganizando o trabalho, dependerá: sultórios ainda que tornados públi-
CERTEZA DE QUE A CLÍNICA QUE
cos (Figueiredo, 1999: 11). Tratar
“(...) de criar um dispositivo de tra-
ALMEJAMOS PARA O SERVIÇO PÚBLICO psicóticos, colocando a doença en-
balho e de jogo, que restabeleça,
numa área transicional comum
área comum, a NÃO SERÁ CONSTRUÍDA SOMENTE tre parênteses, fazendo advir uma

coexistência das conjunções e das clínica do sujeito, nos desafia a ser-


EM VOLTA DELE
disjunções, da continuidade e das mos capazes de mudar nosso setting.
rupturas, dos ajustamentos regula- Nada contra o divã, mas temos cer-
dores e das irrupções criadoras, de teza de que a clínica que almejamos
um espaço suficientemente subjetivi- para o serviço público não será cons-
zado e rrelativamente
elativamente operatório
operatório” suas próprias dores institucionais, truída somente em volta dele.
(KAËS, 1991: 39; grifo nosso). que consigam criar um espaço su- Deveríamos criar uma rede de
ficientemente trófico para os usu- sustentação, de suporte, na qual os
Para Käes, a instauração do es-
ários. Freqüentemente, umas das pacientes possam experimentar, de
paço psíquico do ser-conjunto se
saídas institucionais a esse sofri- novo, suas transferências maciças,
sustenta na possibilidade de se re-
mento é o apelo exagerado ao ide- com resultados diferentes. Mas des-
criar a ilusão institucional, ofere-
ológico. Ideologia que funciona aí tacamos que, para isso, a própria
cendo referencias para a aderência
como falsa consciência, véu obtu- equipe deve ter suporte, holding
narcísica de seus membros, pois:
rando a possibilidade de se inter- (Winnicott, 1999). Assim, essa fun-
“a falha de ilusão institucional pri- rogar sobre o sentido das própri- ção faz parte do novo papel do apoi-
va os sujeitos de uma satisfação im- as práticas. ador institucional. Nos serviços de
portante e debilita o espaço psíquico Sobre esse sofrimento o movi- saúde mental a análise da situação
comum dos investimentos imaginá- mento ‘da luta’ não tem tempo para institucional estará sempre fortemen-

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CAMPOS, R. O.

te entrelaçada com a discussão clíni- dação da clínica, a criação de servi- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ca. Não é possível discutir casos sem ços pobres para pobres, e a inviabi-
colocar em análise o funcionamento lidade do Sistema Único de Saúde AMARANTE, P. D. de C., 1996. O homem
da equipe. A natureza do que ali é tra- em termos dos custos crescentes e a serpente: outras histórias
tado faz essa separação indesejável. derivados do alto consumo de téc- para a loucura e a psiquiatria.
Qualquer profissional da saúde nicas diagnósticas e terapêuticas Rio de Janeiro: Fiocruz. 141 p.
precisará de ousadia para sair dos que acabam sendo caras, ineficazes, BAREMBLITT, G., 1992. Compêndio de
compartimentos estanques dos sa- e, às vezes, até iatrogênicas. análise institucional e outras
beres prévios. A equipe só consegue Sustentamos que o Planejamen- correntes: teoria e prática. Rio de
recriar seus contratos de trabalho to em Saúde estará sempre ligado Janeiro: Rosa dos Ventos. 204 p.
se tiver desenvolvido um espaço in- às questões advindas das modela-
termediário suficientemente trófico, CAMPOS, G. W. de S., 1997. Uma clínica
gens clínicas e da subjetividade dos
de suporte. Assim, o projeto insti- do sujeito: por uma clínica
grupos que estão em ação.
tucional será possível. Pensamos reformulada e ampliada. Campi-
Tarefa complexa, distinta das
que o projeto, como o brincar, faz nas, mimeo.
que nos foram colocadas na nos-
parte desses processos intermediá- , 2000. Um método para
sa formação como planejadores,
rios (Onocko, 2001). Como diz Win- análise e co-gestão de coletivos.
difícil e que só pode ser pensada
nicott (1999), referindo-se ao brin- São Paulo: Hucitec. 236 p.
como possível se abrirmos o cam-
car, isso exige um lugar e um tem-
po do planejamento a outras dis- CARROZZO, N., 1991. Campo da criação,
po. E não se resolve somente refle-
ciplinas e saberes, e se, assim fei- campo terapêutico. In: EQUIPE DE
tindo, ou desejando, mas no fazer.
to, continuarmos a refletir sobre ACOMPANHANTES TERAPÊUTI-
Projetar é fazer.
a nossa própria práxis como pla- COS DO HOSPITAL-DIA A CASA –
E nós, planejadores, deveremos
nejadores. “Se acaso devemos, eu A rua como espaço clínico. Pp 31-
estudar, compreender e aprimorar
e os outros, encontrar o fracasso 40. São Paulo: Editora escuta.
nosso entendimento em relação às
nesse caminho, prefiro o fracasso CASTORIADIS, C., 1986. A instituição
modelagens clínicas: tomar posição,
numa tentativa que tem um senti- imaginária da socie-dade. Tradu-
não sermos mais “neutros”, em re-
do a um estado que permanece ção de Guy Reynaud. Rio de Janei-
lação às propostas clínicas. Nisso
consiste nosso handing: manejo, e aquém do fracasso e do não fra- ro: Editora Paz e Terra. 418 p.
já não mais apenas no domínio de casso, que permanece irrisório”
D OLTO , F., 1989. Inconsciente e
técnicas para preencher planilhas de (Castoriadis, 1986: 113).
destinos, seminário de psica-
um plano, que talvez nunca venha nálise de crianças. Tradução de
a ser executado. Dulce Estrada. Rio de janeiro:
Precisamos assumir declarada- AGRADECIMENTOS
Zahar. 193 p
mente a necessidade de ampliação
A autora agradece as valiosas , 1996 a. No Jogo do desejo:
da clínica nos serviços públicos de
críticas e sugestões recebidas para ensaios clínicos. Tradução de Vera
saúde, se não o fizermos, ainda que
Ribeiro. São Paulo: Ática. 295 p.
involuntariamente ou por omissão, o presente artigo de Fernando Cem-
continuaremos trabalhando a favor branelli, Gastão W. de Sousa Cam- , 1996 b. Quando surge
da proposta hegemônica: a degra- pos, e Stella Maris Chebli. a criança. Tradução de Marina

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