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UNOPAR
Homem, cultura
e sociedade

Homem, cultura e sociedade


Giane Albiazzetti
Márcia Bastos de Almeida
Okçana Battini

ISBN 978-85-8143-641-8

C M Y K CL ML LB LLB
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Homem,
cultura e
sociedade

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A
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S
M
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AvaliacaoAcaoDo
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Avaliação
Homem, e
ação docente
cultura e
sociedade
Sandra Regina dos Reis Rampazzo
Giane Albiazzetti
Marlizete Cristina
Márcia Bastos Bonafini Steinle
de Almeida
Edilaine Vagula
Okçana Battini

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© 2013 by Pearson Education do Brasil e Unopar

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Capa: Solange Rennó e Wilker Araujo
Diagramação: Casa de Ideias

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Albiazzetti, Giane
Homem, cultura e sociedade / Giane Albiazzetti, Márcia Bastos de
Almeida, Okçana Battini. — São Paulo : Pearson Education do Brasil,
2013.

Bibliografia
ISBN 978-85-8143-641-8

1. Cultura – Estudo e ensino 2. Desenvolvimento cultural 3. Evolução


humana 4. Homem 5. Sociedade I. Almeida, Márcia Bastos de. II. Battini,
Okçana. III. Título.

13-01074 CDD‑306.07

Índices para catálogo sistemático:


1. Cultura e sociedade : Sociologia : Estudo e ensino 306.07
2. Sociedade e cultura : Sociologia : Estudo e ensino 306.07

2013
Pearson Education do Brasil
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CEP: 02712­‑100 — São Paulo — SP
Tel.: (11) 2178­‑8686, Fax: (11) 2178­‑8688
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Sumário

Unidade 1 — A transição do mito ao logos.....................1


Seção 1 A filosofia e sua origem.........................................................3
Seção 2 O movimento sofista e socrático ........................................12
Seção 3 Do pensamento clássico aos medievais...............................18
Seção 4 Filosofia dos modernos.......................................................25

Unidade 2 — O pensamento moderno.........................39


Seção 1 Concepção de ciência moderna..........................................41
Seção 2 O racionalismo...................................................................46
Seção 3 O empirismo.......................................................................50
Seção 4 O mundo máquina..............................................................53
Seção 5 O criticismo kantiano no movimento iluminista.................55
Seção 6 O positivismo......................................................................57

Unidade 3 — Cultura e ideologia..................................69


Seção 1 Ideologia e cultura: uma relação indissociável e espaço
de contradição..................................................................70
Seção 2 O surgimento do modo de produção capitalista e a
formação da nossa sociedade........................................... 73

Unidade 4 — Antropologia e cultura............................85


Seção 1 Cultura: o “cimento” que possibilita a união social............86
Seção 2 Antropologia: as correntes teóricas e a interpretação
sobre a construção da cultura............................................89
2.1 Por que a Antropologia surgiu?............................................................... 89
2.2 O pensamento científico como base para o surgimento da Antropologia...93

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vi  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

2.3 Estruturalismo ...................................................................................... 108


2.4 Antropologia interpretativa ou hermenêutica........................................ 114
2.5 Diversidade cultural: etnocentrismo e relativização.............................. 117

Unidade 5 — Formação da cultura brasileira..............131


Seção 1 Aspectos históricos na formação da cultura brasileira......132
1.1 Gilberto Freire...................................................................................... 137
1.2 Sérgio Buarque de Holanda.................................................................. 137
1.3 Florestan Fernandes.............................................................................. 139
Seção 2 Diversidade cultural brasileira e relações inter-étnicas.....141

Referências.................................................................159

Sugestão de leitura......................................................163

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Carta ao aluno

O crescimento e a convergência do potencial das tecnologias da informação


e da comunicação fazem com que a educação a distância, sem dúvida, contribua
para a expansão do ensino superior no Brasil, além de favorecer a transformação
dos métodos tradicionais de ensino em uma inovadora proposta pedagógica.
Foram exatamente essas características que possibilitaram à Unopar ser o que
é hoje: uma referência nacional em ensino superior. Além de oferecer cursos nas
áreas de humanas, exatas e da saúde em três campi localizados no Paraná, é uma
das maiores universidades de educação a distância do país, com mais de 450
polos e um sistema de ensino diferenciado que engloba aulas ao vivo via satélite,
Internet, ambiente Web e, agora, livros‑texto como este.
Elaborados com base na ideia de que os alunos precisam de instrumentos didáticos
que os apoiem — embora a educação a distância tenha entre seus pilares o autodesen‑
volvimento —, os livros‑texto da Unopar têm como objetivo permitir que os estudantes
ampliem seu conhecimento teórico, ao mesmo tempo em que aprendem a partir de
suas experiências, desenvolvendo a capacidade de analisar o mundo a seu redor.
Para tanto, além de possuírem um alto grau de dialogicidade — caracterizado
por um texto claro e apoiado por elementos como “Saiba mais”, “Links” e “Para
saber mais” —, esses livros contam com a seção “Aprofundando o conhecimento”,
que proporciona acesso a materiais de jornais e revistas, artigos e textos de outros
autores.
E, como não deve haver limites para o aprendizado, os alunos que quiserem
ampliar seus estudos poderão encontrar na íntegra, na Biblioteca Digital, acessando
a Biblioteca Virtual Universitária disponibilizada pela instituição, a grande maioria
dos livros indicada na seção “Aprofundando o conhecimento”.
Essa biblioteca, que funciona 24 horas por dia durante os sete dias da semana,
conta com mais de 2.500 títulos em português, das mais diversas áreas do conhe‑
cimento, e pode ser acessada de qualquer computador conectado à Internet.
Somados à experiência dos professores e coordenadores pedagógicos da
Unopar, esses recursos são uma parte do esforço da instituição para realmente

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viii  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

fazer diferença na vida e na carreira de seus estudantes e também — por que


não? — para contribuir com o futuro de nosso país.
Bom estudo!
Pró‑reitoria

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Apresentação

O presente texto aborda a importância do homem como agente responsável


pela construção da realidade social, enfocando a cultura como categoria central
para a constituição das relações sociais vigentes. Para isso torna-se essencial a
discussão dos princípios do modo de produção capitalista e sua influência nos
aspectos econômicos, políticos e culturais, sendo que esses fatores é que sustentam
a sociedade e a formação do ser social.
Para isso devemos analisar o processo de expansão europeia a partir do século
XV e da dominação colonialista e imperialista, com suas consequências sobre a
organização social, cultural, política e econômica dos povos dominados. Além
disso, o livro propõe uma discussão em relação às implicações desse processo
colonialista e imperialista sobre o caso particular do Brasil, especialmente no que
se refere à formação histórica, cultural e educacional da sociedade e da cultura
brasileira, enfatizando-se as relações de dominação política e econômica como
fundamentos da hierarquização social e das desigualdades étnicas e de classe ao
longo da nossa história.
O passado, portanto, não pode ser tomado como obra do acaso ou de meros
acidentes históricos, tampouco como o acúmulo progressivo de grandes atos e
feitos heroicos de homens especiais. O que o professor Mota (1974, p. 14, grifo
do autor) propõe é que “[...] há em curso uma história profunda, lenta, silenciosa,
subterrânea, uma história das estruturas, diversa de uma história de superfície,
rápida, leve, do dia a dia, uma ‘história dos acontecimentos’”.
Com isso, o presente e o cotidiano passam a ser reconhecidos como resultado
de um contexto mais amplo, que comanda os bastidores da realidade social, e por
isso todas as evidências históricas têm que ser pesquisadas e analisadas em suas
inúmeras facetas. Eric Hobsbawm, em seu livro Era dos Extremos (2000), afirma
que essa articulação entre passado e presente é recuperar dados precisos e com‑
prováveis acerca da trajetória humana ao longo do tempo, fornecendo informações
indispensáveis para a compreensão da realidade social.
Assim, este livro faz uma abordagem histórica, filosófica, sociológica e antro‑
pológica mostrando como se deu a passagem do pensamento mitológico para o

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x  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

pensamento filosófico e como este último foi se modificando e modificando a forma


de conhecimento e as relações sociais.
Esperamos que você se sinta provocado à busca de um conhecimento mais pro‑
fundo e consistente. Que este livro seja um “esticador” de horizontes em sua vida
acadêmica.

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Unidade 1
A transição do
mito ao logos

Márcia Bastos de Almeida

Objetivos de aprendizagem: O objetivo desta unidade é aprender


como o pensamento mitológico se constituiu em elemento fun-
damental na passagem para o pensamento racional, lógico ou
filosófico.

Seção 1: A filosofia e sua origem


Nesta seção apresentaremos os aspectos gerais do
pensamento mitológico e do nascimento do pensa-
mento filosófico na Grécia Antiga como uma interpre-
tação racional do mundo e dos fenômenos naturais
seu sentido pedagógico.

Seção 2: O movimento sofista e socrático


Nesta seção apresentaremos o movimento que se
tornou importante para o conhecimento e dissemina-
ção da filosofia e a inauguração de um novo projeto
filosófico-pedagógico: o movimento dos sofistas. Os
sofistas, além de ensinarem, provocaram conflitos
conceituais e promoveram discussões em torno da
política e do novo modelo de governo instaurado

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naquele período. Ainda na mesma seção, apresen-


taremos a figura de Sócrates que mudou o eixo da
discussão filosófica e inaugurou a Ética, conforme
conhecemos e pensamos.

Seção 3: Do pensamento clássico aos medievais


Apresentaremos nesta seção o pensamento pedagó-
gico de Platão, Aristóteles e os filósofos que represen-
taram a Idade Média: Santo Agostinho e São Tomaz
de Aquino. O pensamento desses filósofos representa
importante marco na Filosofia e, principalmente, na
Filosofia da Educação no Brasil.

Seção 4: Filosofia dos modernos


Nesta seção, vamos apresentar o movimento filosó-
fico educacional no período moderno que marcou
profundamente o modelo educacional da contem-
poraneidade. Da modernidade herdamos o modelo
de conhecimento, os valores, o modo de produção
e o modelo educacional. O pensamento de impor-
tantes filósofos como Descartes, Rousseau e Locke
ainda figura em fundamentação dos modelos peda-
gógicos vigentes no sistema educacional brasileiro,
daí a importância de dedicarmos uma seção aos
modernos.

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A transição do mito ao logos  3

Introdução ao estudo
Nesta unidade, apresentaremos a origem da Filosofia e a Filosofia da Educação
em sua especificidade. A importância de iniciarmos nossa leitura e o nosso curso
com esse tema significa a importância que a instituição assegura ao curso de Peda‑
gogia por uma formação humanista e, principalmente, por um profissional reflexivo
e comprometido com a educação em sua forma científica e não técnica.
Todas as seções abordadas terão como foco a relação entre filosofia e educação
em todos os períodos marcantes da História do pensamento da humanidade: a anti‑
guidade clássica, o período medieval, os modernos e os contemporâneos. Para isso
iniciaremos uma breve apresentação da origem da filosofia, seus principais movi‑
mentos e filósofos em seus aspectos centrais.
Faremos esse movimento porque precisamos voltar ao passado e conhecer
as raízes no pensamento filosófico que inauguraram uma forma específica de
conhecer e dar respostas à realidade, ao mundo e a tudo o que nele existe. A
Filosofia, portanto, nasceu como teoria do conhecimento e se mantém até a atua­
lidade desvelando o real com a intenção de explicá-lo e socializá-lo, e isto só é
possível por uma educação sistematizada. Assim, podemos dizer que a Filosofia
também nasceu com vocação pedagógica, porque com ela se inicia um período
de construção de conhecimento e um projeto pedagógico a ser executado: a Pai-
deia. Eis o motivo de estudarmos, no curso de Pedagogia, a disciplina filosófica:
teoria geral do conhecimento.
A filosofia da Educação é uma disciplina que com a História, a Psicologia e a
Sociologia se constituem como fundamentação da educação nos cursos de Pedago‑
gia. Nos anos 1970, com a abertura e a proliferação dos cursos de pós-graduação, a
disciplina conquistou um amplo espaço no debate educacional e se tornou uma das
mais importantes áreas de pesquisa e produção literária.
Contudo, consideramos por bem iniciarmos este trabalho explicitando a gênese
(início) do pensamento filosófico, sua vocação educacional e sua trajetória no espaço
acadêmico e, principalmente, no curso de Pedagogia.
Portanto, vamos iniciar nossa leitura, ou melhor, a nossa viagem ao mundo do
conhecimento.

  Seção 1  A filosofia e sua origem


A filosofia nasceu da curiosidade e do espanto e é uma produção grega. Como
área de conhecimento, que chegou até nós e influenciou o desenvolvimento da ci‑
vilização ocidental, a filosofia teve sua gênese e desenvolvimento na Grécia Antiga.
Os povos do Oriente, embora com níveis de conhecimento, desenvolvimento social,
político e econômico muito mais avançados, não conseguiram “fazer filosofia” da
mesma forma que o conseguiram os gregos. Reale (1993, p. 11) explica:

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Crenças e cultos religiosos, manifestações artísticas de natureza


diversa, conhecimentos e habilidades técnicas de diferentes espé‑
cies, instituições políticas, organizações militares existiram seja nos
povos orientais que chegaram à civilização antes dos gregos, seja
entre os gregos, e, consequentemente, é possível fazer confrontos
[...]. No que diz respeito à filosofia, porém, encontramo-nos diante
de um fenômeno tão novo que, como dissemos, não só não há entre
os povos orientais idêntico correlativo, mas nem mesmo algo que
analogicamente comporte comparação com a filosofia dos gregos
ou que a prefigure de momo inequívoco.

Ou seja, havia desenvolvimento em povos tão antigos quanto os gregos, mas a


forma de pensar, de usar a razão e desenvolver o que ficou conhecido como LOGOS
foi um fenômeno que se restringiu ao povo grego.
Antes do que costumamos chamar de nascimento da Filosofia, assim mesmo,
com F maiúsculo, as pessoas que ensinavam, explicavam os acontecimentos de or‑
dem natural, como os ciclos da natureza, a origem do universo e do homem, eram
os poetas. Um desses poetas gravou seu nome na história da humanidade: Homero.
Seus poemas eram lidos e relidos e, pode-se arriscar uma afirmação aqui, tinham
o mesmo valor que um livro “sagrado”. Isto porque seus poemas continham uma
conotação mística e religiosa. Não podemos desprezar essa necessidade inerente ao
ser humano de buscar explicações do cotidiano no sobrenatural daquilo que foge à
sua racionalidade comum.
Outros poetas existiram ao tempo de Homero, mas somente ele os construiu com
imaginação rica e peculiar de uma mente privilegiada. Suas narrativas continham
descrições dos eventos — tanto bons quanto ruins — de forma harmoniosa. Reale
descreve seus dois grandes poemas, Odisseia e Ilíada:
[...] foi bem observado que seus dois poemas, construídos por
uma imaginação tão rica e variada, transbordantes de maravilha,
de situações e eventos fantásticos, não caem, senão raras vezes,
na descrição do monstruoso e disforme, como em geral acontece
nas primeiras manifestações artísticas dos povos primitivos: a ima‑
ginação homérica já se estrutura segundo o sentido da harmonia,
da eurritmia, da proporção, do limite e da medida, que se revelará,
depois, uma constante da filosofia grega, a qual erigirá a medida e
o limite até mesmo em princípios metafisicamente determinantes
(REALE, 1993, p. 19).

A produção poética de Homero já apresentava uma racionalidade sistemática,


organizada e com nexos causais. Neles já se anunciava o afastamento de uma racio‑
nalidade mitológica para dar espaço a uma racionalidade lógica. Em seus poemas,
os fatos são narrados com a apresentação de suas razões. Ou seja, há a explicações
dos “porquês” dos eventos, ou a presença dos nexos causais.
Dando continuidade à nossa caminhada em busca da compreensão da origem
da filosofia, apresentamos na sequência pontos elucidativos para que isso aconteça.
Compreender o mundo, os ciclos da natureza, o ser humano e suas fases crono‑
lógicas até a morte, a origem de todos os astros que compõem o universo, o ciclo

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A transição do mito ao logos  5

marítimo e sua relação com as fases lunares, enfim, tudo isso e muito mais fazem
parte de um conjunto de fenômenos que na antiguidade eram desconhecidos. Esse
desconhecimento provocava a curiosidade, a admiração, a perplexidade, ou seja,
provocava espanto! Tudo o que nos é estranho, ou que não conseguimos compreen‑
der a partir de nossas experiências e conhecimentos, nos causam esses sentimentos.
Por isso, à medida que aos poucos a racionalidade filosófica passava a dar res‑
postas para esses “mistérios”, o espanto ia dando lugar a novas perguntas que eram
respondidas por esse novo modo de conhecer: a Filosofia. Por isso é que podemos
dizer que a Filosofia tem uma pergunta básica, ou seja, aquela pergunta que está
sempre (ou deveria estar) em nossos pensamentos: o que é a realidade? Ou ainda:
por que tudo o que está a nossa volta existe? Por que nós existimos? Qual o sentido
da vida se existe a morte? Por que precisamos fazer escolhas? Depois de respondidas
essas questões surgem outras, e outras, e outras... infinitamente. A Filosofia procura
respostas e, quando as encontra, muda as perguntas! Atenção! Não é verdade que a
Filosofia não encontra respostas. Encontra sim, mas suas respostas não têm o caráter
de conhecimento absoluto e, dessa forma, todos podemos concordar ou não com
as suas conclusões e é assim que o pensamento e o mundo vão se transformando.
Na contemporaneidade, isto é, nos tempos atuais, nossas curiosidades não são
tantas como no período antigo e para respondê-las todos nós recorremos à Internet.
Mas na antiguidade não existia Internet com todos os sites de busca que hoje nos
são disponibilizados. Por isso e muito mais, convido o leitor para um passeio até a
Grécia Antiga, mais especificamente entre os séculos V e VI a.C., e visitar as origens
do pensamento ocidental, o nosso pensamento. Isto mesmo, o nosso modo de pensar,
nossa cultura, nossos valores são marcados pela influência da Filosofia Grega.
Pois bem, vamos começar por entender o significado etimológico da palavra Fi‑
losofia, ou seja, vamos entender o que a palavra significa ao pé da letra. Essa palavra
é composta por outras duas palavras: Philo e Sophia, assim mesmo com PH. Philo
significa amigo/amizade e Sophia que significa saber/sabedoria. Portanto, juntando
o significado das duas palavras temos amigo do saber e daí pode-se entender que o
filósofo é aquele que é amigo da sabedoria ou aquele que busca sempre o conhe‑
cimento, o saber. A Profa. Marilena Chaui oferece a seguinte explicação: “Assim,
filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama a sabedoria, tem amizade
pelo saber, deseja saber” (CHAUI, 2002, p. 19).
Se você chegou até aqui, podemos dizer que a busca pelo conhecimento o está
motivando e, no sentido exposto acima, podemos dizer que você é um filósofo e,
portanto, podemos continuar estudando. Segundo registros na literatura, foi Pitágoras
de Samos (século V a.C.) o criador da palavra filosofia sem dar a ela o estatuto de área
de conhecimento, mas sim de uma postura diante do que se lhe apresenta diante dos
olhos. Vamos compreender melhor a ideia de Pitágoras:
Pitágoras teria afirmado que a sabedoria completa pertence aos
deuses, mas os homens podem desejá-la e amá-la, tornando-se
filósofos. Dizia ainda que três tipos de pessoas compareciam aos
jogos olímpicos (festa mais importante na Grécia): as que iam para

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comerciar durante os jogos, ali estando apenas para servir aos pró‑
prios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios; as
que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (durante os jogos
havia competições artísticas: dança, teatro, poesia, musica); e as
que iam contemplar os jogos e torneios, para avaliar o desempenho
e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de
pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo (CHAUI, 2002, p. 20).

Isso quer dizer que o comportamento natural de um filósofo não está ligado a
interesses pessoais, mas tão somente à busca de uma compreensão das coisas, à busca
da sabedoria e do conhecimento. Buscar o conhecimento, aprender e socializar esse
conhecimento e aprender faz parte do perfil do filósofo. Pensando assim, podemos
dizer que somos filósofos!
Os primeiros gregos considerados sábios ou sophos ficaram conhecidos como filó­
sofos pré-socráticos. Isto porque Sócrates figura na história da Filosofia como “divisor
de águas” na discussão filosófica. É assim porque
os primeiros filósofos ou pré-socráticos queriam
compreender o mundo natural, a physis, e Sócrates
Para saber mais concentraram-se em compreender o agir humano
A palavra sophos é de origem inaugurando a Ética e, também, uma forma e um
grega e significa saber/sabedoria. método de encontrar a verdade.
A Filosofia Antiga está dividida conforme os
problemas, as discussões e os confrontos entre os
pensadores iam se definindo. Dessa forma, ela (a Filosofia) se dividiu nos seguintes
períodos:
1. Período naturalista ou pré-socrático: o problema dessa fase era a busca da
compreensão da physis, ou seja, o cosmo e tudo o que nele existe. Os gru‑
pos de pensadores que o representaram estão divididos entre os jônicos, os
pitagóricos, os eleatas e os pluralistas.
2. Período humanista: surgiu quando o período naturalista não atendia as “de‑
mandas” das discussões políticas, sociais e morais. Esse período é represen‑
tado no primeiro momento pelos sofistas e, na sequência, por Sócrates, que
inaugura a busca pela essência do homem.
3. Período das Sínteses Platônica e Aristotélica: esse período, muito rico no pensa‑
mento filosófico, traz à tona a ideia do suprassensível e a formulação orgânica
dos problemas filosóficos. Ou seja, explicam os problema de ordem ética e
política (para citar apenas dois), a partir de uma ideia de organismo vivo.
4. Período das escolas helenísticas: esse período foi marcado pelas escolas que
representavam os sistemas filosóficos: estoicismo, epicurismo e ceticismo.
5. Período religioso: representado pelo encontro entre a cultura helênica em
Alexandria e o cristianismo.

Vamos abordar aqui o primeiro período, conhecido também por movimento pré‑
-socrático. Sobre o movimento dos filósofos pré-socráticos chamaremos a sua aten‑

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A transição do mito ao logos  7

ção para três movimentos que consideramos fundamentais para o seu entendimento
posterior quando examinarmos a relação que pretendemos fazer com a educação e,
mais especificamente, com a Pedagogia. Primeiro vamos compreender os atomistas.
Esse nome, atomista, vem da palavra átomo (menor partícula indivisível) e o fundador
desse movimento foi Leucipo. No entanto, suas ideias principais foram desenvolvidas
por seu discípulo Demócrito que desenvolveu as ideias de Leucipo e as transformou
em uma das doutrinas filosóficas mais influentes de toda a Antiguidade. Isto quer
dizer que o modo como Leucipo e depois Demócrito compreendiam a realidade,
ou o modo como eles interpretavam o mundo, a natureza e tudo o que nela existe,
ficou marcado e influenciou muitos pensamentos, incluindo até o pensamento de
Karl Marx muitos séculos depois.
A doutrina atomista afirma que tudo que está a nossa volta (inclusive nós mesmos)
se constitui por matéria. Tudo é matéria, ou melhor, tudo está formado por átomos.
Eles foram os primeiros materialistas do mundo ocidental. Vamos entender melhor:
A doutrina atomista sustenta que a realidade consiste em átomos e
no vazio, os átomos se atraindo e se repelindo, e gerando com isso
os fenômenos naturais e o movimento. A atração e repulsão dos
átomos devem-se às suas formas geométricas, sendo que átomos
de formas semelhantes se atraem e os de forma diferente se repe‑
lem. Os átomos são imperceptíveis e existem em número infinito
(MARCONDES, 2000, p. 34-35).

Mas agora é preciso compreender o conceito de átomos dos antigos. Você deve
estar se perguntando: como eles viram os átomos se não existiam equipamentos, como
os microscópios, para vê-los? Então vamos à explicação! Os átomos a que eles se
referiam eram uma ideia. Qual era o conceito de ideia? Reale (1993, p. 155) ensina:
[...] ideia é o visível. Mas o átomo é invisível, pela sua pequenez,
afirmada como consequência da sua indivisibilidade, pois é difícil
declarar indivisível o que é perceptível aos sentidos e, portanto,
pode ser considerado suscetível de fragmentação em partes. E
então, em que sentido ideia, em que sentido visível? Visível, evi‑
dentemente, só à visão do intelecto: o intelecto abstrato, que parte
do visível corpóreo, indo sempre mais além até onde os sentidos
não podem chegar, encontra o seu termo final num mundo quin‑
tessenciado e despotenciado, que é a analogia do visível corpóreo.
Forma é, pois, o visível geométrico, o que é visível ao intelecto.

Assim, podemos compreender que para os antigos o átomo não estava visível dire‑
tamente ao concreto, ou, aos sentidos, mas à ideia das formas. Quando olhamos um
objeto em forma de círculo, por exemplo, não estamos vendo o círculo de fato, mas
a ideia de uma representação geométrica. Essa é a ideia de átomo para os filósofos
atomistas. Os átomos eram, portanto, considerados qualitativamente iguais e quan‑
titativa e geometricamente diferentes (círculo esfera, triângulo retângulo, quadrado
e outros de tamanhos diferentes).
A Filosofia moderna se apropria desse pensamento para fundamentar a base da
ciência experimental que permanece em nossos dias. No entanto, também esse mo‑

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8  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

vimento apresentou falhas significativas em sua construção. O movimento atomista


não deu conta, por assim dizer, das explicações acerca da existência do homem,
da sua vida e do conhecimento. O ser humano não se constitui apenas de átomos,
mas tem uma alma (a vida mesmo) e, segundo a teoria atomista, esta vida também
se constitui por átomos. Ainda Reale (1993,159-160):
O corpo humano, como todas as outras coisas, é constituído de
um encontro de átomos, e assim, naturalmente, também a alma.
A alma, que é o que dá a vida e também o movimento ao corpo, é
constituída de átomos mais sutis que os outros, lisos e esferiformes,
de natureza ígnea. Esses átomos propagam-se por todo o corpo, e
assim o vivificam. Pela sua sutileza, eles tendem também sair do
corpo, mas com a respiração são sempre reintegrados todos aqueles
átomos ígneos que conseguem sair. Cessando a respiração, advém
a morte, e todos os átomos ígneos que estavam no corpo se dis‑
persam. A alma é, pois, da mesma natureza do corpo, e, portanto,
mal se explica a sua superioridade sobre o corpo.

Assim é a explicação da vida humana para os atomistas. A alma não tem nada de
sobrenatural, mas é um conjunto de átomos redondinhos, lisos e quentinhos (natureza
ígnea que é uma palavra para designar fogo) que se movimentam, entrando e saindo
do corpo. Quando esse movimento cessa é porque o corpo morreu.
Sobre o conhecimento, eles explicam que o movimento dos átomos que chegam
aos sentidos gera a sensação e o conhecimento, que, por sua vez, se dividem em
conhecimento obscuro e genuíno. O conhecimento obscuro advém das sensações,
dos sentidos (olfato, tato, visão, audição e paladar) enquanto o conhecimento verda‑
deiro é aquele que está no intelecto e, dessa forma, sem contato com o conhecimento
obscuro.

Para saber mais


Atenção, leitor! Quando dizemos que uma pessoa é materialista porque gosta de comprar e dá
extremo valor ao dinheiro e aos bens que ele proporciona, estamos fazendo uma interpretação
economicista e até de senso comum, porque essa pessoa é consumista e não necessariamente
materialista. Uma pessoa materialista é aquela que não acredita na formação do universo, da
natureza e do próprio ser humano a partir de um ente espiritual. O materialista, de acordo com
Demócrito, é aquele que não vê na realidade algo que se aproxima da espiritualidade. Para ele
tudo se origina da matéria e por ela se mantêm. Isto sim é ser um materialista!

Depois temos dois movimentos (e aí completamos três, conforme já anunciamos)


que também influenciaram muito nossa cultura e, mais ainda, a nossa educação esco‑
lar. Porque, dessas duas, surgiram teorias de conhecimento e tendências pedagógicas.
Então vamos aprender bem para depois ensinar.

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A transição do mito ao logos  9

Os dois movimentos ficaram conhecidos como mobilismo e monismo. Um se


contrapondo ao outro. Heráclito nasceu em Éfeso e por isso tinha o nome da cidade
natal como sobrenome (Heráclito de Éfeso), seu nascimento ocorreu em final do sé‑
culo VI e início do século V a.C. No entanto, não há um consenso na historiografia
sobre o período exato do seu nascimento e morte. No entanto, seu pensamento filo‑
sófico marcou o pensamento ocidental de forma definitiva. Os problemas filosóficos
que o antecederam não explicaram o dinamismo, real e perceptível aos sentidos, na
realidade.
Heráclito percebeu e falou sobre o seguinte: nada fica imóvel para sempre. Sempre
há mudanças, tudo se modifica ao longo do tempo, tudo se move constantemente,
tudo se transforma sem parar. Nada permanece igual. Para explicar isso, ele utilizou
o exemplo de um rio que, depois, se tornou a frase (ou fragmento de seu pensamento)
mais conhecida no mundo acadêmico e fora dele. A frase é: “Não se pode descer
duas vezes ao mesmo rio” (HERÁCLITO apud REALE, 1993, p. 64). O que se tornou
popular dessa frase é a ideia de que o rio muda sempre (renovando suas águas) e as
pessoas se modificam constantemente (envelhecendo a cada segundo). Reale (1993,
p.64) ensina ainda sobre essa frase:
[...] o rio é aparentemente sempre o mesmo, mas na realidade é
feito de águas sempre novas, que se acrescentam e se dispersam;
por isso à mesma água do rio não se pode descer duas vezes, jus‑
tamente, porque, quando se desce a segunda vez, já é outra a água
que se encontra; e porque nós mesmos mudamos, no momento
em que completamos a imersão no rio, tornamo-nos diferentes do
momento em que nos movemos para mergulhar.

Isto quer dizer que nada permanece e há movimento em todos os aspectos. O


mundo, os fenômenos que compõem a realidade e a vida propriamente dita passam
por mudanças constantes e eternamente. Trata-se de um ciclo, ou como Heráclito
dizia: é um constante devir. Uma coisa se transformando em outra. Por exemplo:
um bebê em uma criança, que se transforma em um adolescente que se transforma
em um adulto que envelhece e morre. No bebê há o devir da velhice porque ele
irá passar por todos os processos de transformações da vida. A natureza, também,
apresenta essa transformação. A semente se transforma em árvore que dá frutos e,
novamente, a semente.
No entanto, não se pode reduzir o pensamento de Heráclito ao aspecto do de‑
vir apenas no processo de transformação. Há também a questão dos opostos onde
o devir se harmonizam. O devir é, também, um eterno conflito assim descrito em
Reale (1993, p. 65):
O devir é, pois, um contínuo conflito dos contrários que se alter‑
nam, é uma perene luta de um contra o outo, é uma guerra perpé‑
tua. Mas, dado que as coisas só têm realidade, como veremos, no
perene devir, então, por consequência necessária, a guerra revele
como o fundamento da realidade das coisas: a guerra é mãe de
todas as coisas e de todas rainha.

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10  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

É importante compreender que essa guerra de Heráclito é, também e ao mesmo


tempo, paz. A paz é buscada porque existe a guerra. É nesse contraste que se cons‑
titui a harmonia.
Outro ponto importante no pensamento de Heráclito é a formulação do princípio
de tudo e de todas as coisas: o fogo. Para ele, o fogo, estando em movimento cons‑
tante, provoca as transformações existentes. Assim:
O fogo, com efeito, é perenemente móvel, é vida que vive da morte
do combustível, é incessante transformação em fumaça e cinzas, é,
como diz perfeitamente Heráclito do seu Deus, fome e saciedade,
vale dizer, unidade de contrários, fome das coisas, eu faz as coisas
serem, e saciedade das coisas, que as destrói e faz perecer. E, com
isso, fica claro também que o Deus heraclitiano (que já tinha sido
chamado de noite-dia, fome-saciedade, guerra-paz, isto é, unidade
dos contrários) (REALE, 1993, p. 68).

Quanto à alma, Heráclito expressou alguns pensamentos que afirmaram que esta
(a alma) tinha propriedades muito diferentes do corpo. Sobre essa ideia encontrou‑
-se um fragmento que está registrado em Reale (1993, p. 70, grifo do autor): “Os
confins da alma não os encontrarias nunca, embora percorrendo os seus caminhos;
tão profundo é o seu logos”.
Por fim, encontramos no pensamento desse filósofo alguns pensamentos sobre
moral. Para ele, “[...] a felicidade não pode se constituir nos prazeres do corpo: se
assim fosse, felizes seriam os bis diante do feno [...] difícil é a luta contra o desejo,
pois o que este quer, compra-o a preço da alma” (REALE, 1993, p. 71).
Assim, para Heráclito e seus seguidores estava entendida que a realidade natural
de constitui pelo movimento (daí a palavra mobilismo) e nada permanece igual para
sempre e tudo vai se modificando no decorrer do tempo, ou seja, tudo é passageiro.
Você percebeu que essa é uma ideia presente em nosso cotidiano? Nós sempre di‑
zemos que tudo passa, mas foi o Heráclito quem percebeu isso na realidade natural.
Mas ele disse mais: tudo se constitui, também, pelos contrários. O mundo se compõe
de quente e frio, seco e úmido, fogo e água, amor e ódio e daí por diante.
Agora vamos entender um pouco do monismo que está representado por Parmê‑
nides. Esse movimento defende a ideia de uma realidade única, sem mudanças e
sem transformações. O movimento e as transformações que percebemos são apenas
aparentes e, de fato, não existe.
Para Parmênides os nossos sentidos não são capazes de conhecer a realidade como
de fato ela é. E como ela é? Parmênides responderá que temos a ilusão de movimento,
mas a verdadeira realidade não se movimenta, é única e imutável.
Parmênides também é considerado o filósofo que inaugurou a ideia de SER. Porque
para ele o Ser é idêntico a si mesmo e não se modifica. O real e a verdade consistem
naquilo que não muda, não se transforma nunca. O que muda, não pode ser verda‑
deiro. “[...] o ser é sempre idêntico a si mesmo, imutável, eterno, imperecível, invisí­
vel aos nossos sentidos e visível apenas para pensamento” (CHAUI, 2002, p. 211).

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   11

Os seus seguidores ou discípulos ficaram conhecidos como os Eleatas (Escola


Eleata). Para esses filósofos, seguidores de Parmênides, uma coisa ou um ser que
fosse ao mesmo tempo uno e múltiplo não poderia existir por que não seria nada.
Todos seriam alguma coisa e, ao mesmo tempo, não seriam. Isso é impensável. Por
exemplo: como alguém pode ser bonito e feio ao mesmo tempo (alguém acha bonito
e outro feio); como o gelo, que é frio, pode queimar? Para ele, esse antagonismo era
impensável e, assim, inexistente. Segundo Chaui (2002, p. 212):
O que Parmênides afirmava era a diferença entre pensar e perceber.
Percebemos a Natureza na multiplicidade das coisas que se trans‑
formam uma nas outras e se tornam contrárias a si mesmas. Mas
pensamos ser, isso é, a identidade, a unidade, a imutabilidade e a
eternidade daquilo que é em si mesmo. Perceber é ver aparências.
Pensar é contemplar a realidade como idêntica a sim mesmo. Pensar
é contemplar o to on, o ser.

Toda a concepção essencialista de mundo e de homem tem sua inspiração em


Parmênides.

Saiba mais
Os quatro filósofos apresentados — Leucipo, Demócrito, Heráclito e Parmênides — não foram
os únicos filósofos daquele período. Outros que não estão citados, como Tales de Mileto, são
muito importantes e também influenciaram o pensamento Ocidental. Só elegemos os primeiros
por considerá-los fundamentais para o nosso estudo. Se você quiser saber mais dos pré-socráticos
acesse os sites:
<www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/momentos/escola/socrates/presocraticos.htm>.
<paxprofundis.org/livros/presocraticos/filosofos.htm>.
<educacao.uol.com.br/filosofia/pre-socraticos-origens-da-filosofia-e-os-primeiros-filosofos-
-gregoshtm>.

Questões para reflexão


Vamos dar uma paradinha para refletir sobre o tema apresentado até aqui:
Como você avalia os argumentos de Heráclito e Parmênides?
Você os reconhece em nossa vida e em nosso cotidiano?
Existe alguma coisa que permanece e outras que se modificam?

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12  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

  Seção 2  O movimento sofista e socrático


Neste espaço vamos conhecer uma parte muito importante para nossa compre‑
ensão do tema e, por isso, vamos apresentar o segundo momento da Filosofia na
Antiguidade Clássica, ou seja, na Grécia Antiga, que compreende o período do século
V e VI a. C. Vamos conhecer os sofistas e Sócrates, mas sem nos aprofundar muito; o
texto é um encorajamento para aqueles que buscam o conhecimento.
O segundo momento do pensamento filosófico está marcado por Sócrates e o
movimento sofista. A importância de Sócrates está centrada na mudança do eixo
das discussões ou dos problemas a que ele se dedicou. Enquanto os pré-socráticos
se preocupavam em compreender o mundo natural, esse filósofo que escreveu seu
nome na História da humanidade se preocupou em compreender o agir do homem na
polis. Pode-se dizer que ele inaugurou o problema da relação entre ética e política.
Mas antes de começarmos uma reflexão sobre a questão ética dos sofistas é preciso
algum entendimento sobre as distinções sobre a questão moral. Todos os povos, desde
o período primitivo, tiveram algum tipo de organização (mínima) para a manutenção
do grupo. Assim, havia uma reflexão ética antes da Filosofia. Quando dizemos que
Sócrates inaugurou a ética, significa que ele sistematizou essa área de conhecimento.
Reale (1993, p. 179-180) explica da seguinte forma essa questão:
[...] para examinar, embora brevemente, as características da
reflexão moral pré-filosófica, e para compreender a fundo a dife‑
rença daquela sobre esta, é necessário que procedamos a algumas
distinções terminológicas, da máxima importância: a) uma coisa
é a moralidade ou conduta moral; b) outra são as convicções mo‑
rais que os homens expressamente professam; c) outra ainda é a
filosofia moral. A) moralidade ou conduta moral, todos os homens
a possuem [...] mesmo os primitivos e os selvagens. B) também
as convicções morais são uma herança espiritual de todos os
homens [...]. C) [...] no nível de filosofia moral, a razão vai além
do particular, busca estabelecer não regras que valham para casos
particulares, mas, em geral, busca estabelecer nexos e ligações
universais e necessários.

Vamos nos ater à questão da filosofia moral, que é a busca de um princípio das
normas que regem a vida. Esse princípio, que irá fundamentar a ideia de uma filo‑
sofia moral, está na busca de uma essência humana. Ou seja, está na condição da
determinação orgânica o princípio da moralidade.
Antes disso, no período pré-filosófico, as questões morais tinham como funda‑
mento as explicações mitológicas. Homero, em sua Odisseia, ofereceu um sentido ou
uma concepção ética um pouco mais geral, como explica Reale (1993, p. 181): “[...]
o homem reverente e obediente aos deuses tem sempre vantagem sobre os homens
prepotentes e maus, os quais não podem fugir à vingança divina”. Trata-se de uma
motivação externa. Além disso, os gregos impressionam-se pelos atos de seus heróis
(Ulisses, Aquiles, Heitor, Helena, Penélope e outros/outras). Esses atos são estimula‑
dores de um comportamento para um ordenamento moral e social.

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   13

Outro grande e notável poeta registrado pela historiografia é Hesíodo. Em seu


poema O trabalho e os dias ele ensina que a vida dedicada ao trabalho eleva o ho‑
mem. Ainda Reale (1993, p. 181-182):
[...] o ideal da vida camponesa elevando à mais alta dignidade
moral o humilde sacrifício de cada dia, a cotidiana fadiga sem
prêmio, o trabalho como tal; mas sobretudo porque o poema con‑
tém preceitos, máximas e sentenças. A concepção ético-religiosa
da vida delineia-se de maneira nítida em Hesíodo. Os males dos
quais os homens sofrem são a punição infligida pelos deuses por
causa da arrogância dos próprios homens. O duro trabalho vincula‑
-se a culpas humanas, mas é a única via que resta ao homem para
viver; quem não trabalha deve recorrer à injustiça, a qual reclama
a expiação, a punição.

Para Hesíodo, o ideal de uma vida virtuosa estava atrelada ao trabalho diário e
duro. Ensina, também, a seguir uma vida com moderação.
Outros filósofos também refletiram e apresentaram suas concepções de vida
moral no período que antecedeu à filosofia clássica. A historiografia registra que
Sócrates, Platão e Aristóteles foram profundamente influenciados pelos sete sábios
gregos que os antecederam. Não há um consenso sobre alguns nomes desses sábios.
Transcreveremos aqui os sete sábios elencados por Platão, conforme Reale (1993,
p. 182) “São eles: Tales, Pítaco, Bias, Sólon, Cleóbulo, Míson, Quíton”. Os filósofos
e historiadores se divergem entre um e outro nome. Apenas isso.
Por outro lado, os sofistas também fizeram história porque se dedicaram às ques‑
tões éticas e políticas, mas de uma forma diferente (aliás, bem diferente) de Sócrates.
Mas é preciso deixar registrado o importante momento político de Atenas­ naquele
período fazendo com que a Filosofia deixe de ter uma preocupação norteada pelos
fenômenos naturais e passe a se constituir culturalmente naquele contexto. Vejamos:
Esse surgimento corresponde ao começo da estabilização da socie‑
dade grega, com o desenvolvimento da atividade comercial, com
a consolidação das várias cidades-estados e com a organização da
sociedade ateniense, que finalmente assumirá a hegemonia através
da liderança da liga de Delos. Há um progressivo enriquecimento
proveniente do comércio e da expansão marítima, dando origem
a uma classe mercantil politicamente muito influente (477 a.C.)
(MARCONDES, 2000, p. 40).

Isto significa que a sociedade grega estava passando por profundas modificações
em todos os segmentos. A política estava passando por uma reforma de governo e
o comércio modificando os costumes locais com a influência de outros povos nos
locais de intenso comércio e, ainda, uma classe emergente que exigia participação
política. Foi nesse período que Sólon inicia uma reforma de governo instituindo a
democracia no lugar da aristocracia.

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14  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Mas por que Sólon, que era um aristocrata


(sem dinheiro porque sua família perdeu todos os
Para saber mais bens, mesmo assim a sua condição de aristocrata
Sólon foi governador de Atenas foi mantida), resolveu mudar o modelo de go‑
e realizou profundas mudanças. verno para a democracia? Em primeiro lugar por‑
Dentre elas, a instauração da de- que a aristocracia estava em decadência, e depois
mocracia. Mas essa democracia porque na democracia todas as vozes podem ser
ouvidas e todos os interesses podem ser contem‑
era escravista e mantinha o Estado
plados. Veja bem: podem! Não significa que são,
dividido por classes sociais.
porque na verdade nem todos são contemplados
com a distribuição de riquezas, entretanto ela
oferece espaço público para que todos possam se manifestar. Essa é uma das boas
características da democracia.
É nessa nova fase da Grécia que surgem em Atenas os sofistas e Sócrates, porque
agora todas as deliberações são tomadas em as‑
sembleia em praça pública, na Ágora, por todos
os cidadãos. Ah! Agora temos a figura do cidadão
Para saber mais que se manifesta em praça pública. Mas a condi‑
Democracia: do grego demo = ção de cidadão exige que ele seja homem, maior
povo e kratos = poder. de 21 anos, nascido em Atenas e proprietário de
terras. Ficaram excluídos desse modelo de cida‑
Portanto: poder do povo.
dania, as mulheres, crianças e estrangeiros.
Os sofistas chegaram de toda parte da Grécia
com uma bagagem de conhecimentos considerá‑
vel. Mas alguns historiadores registraram que eles
Para saber mais chegaram a Atenas para ensinar tão somente a
A palavra sofista significa: sábio, arte do discurso, já que agora era na Ágora que
especialista no saber, possuidor do acontecia o debate político. Entretanto, sabe-se
saber. que eles ensinavam também outros conhecimen‑
tos. Mas esse discurso tinha uma característica
No entanto, o termo ganhou um
porque se tratava da retórica, ou seja, um discurso
sentido negativo com Platão e vazio, enganador, porque era desprovido de ver‑
Aristóteles, que assim os definiam: dade. Além disso, eles cobravam para ensinar e
aquele que, fazendo uso de racio- isso causava uma grande irritação nos filósofos
cínios enganosos, enfraquecem a (Sócrates,­ Platão e Aristóteles), que não con‑
verdade. cebiam a ideia de ensinar por dinheiro. Mas é
importante saber que Sócrates era um soldado e
recebia o soldo (pagamento) mesmo se não hou‑
vesse guerra. Platão e Aristóteles eram aristocratas e tinham uma vida boa. Diferente
dos sofistas, que não tinha absolutamente nada e cobravam de quem os procurava.

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   15

Quem os procurava eram os jovens da aristocracia que estavam encantados e ansio‑


sos para demonstrar a retórica em praça pública, mais especificamente, na Ágora.
É nesse momento que a Filosofia toma um corpo diferente da Filosofia dos pré‑
-socráticos. Agora a palavra se tornou mais importante. Mas não uma palavra qual‑
quer, mas racional. A linguagem utilizada nos discursos precisa ter uma significação
e justificativas com fundamentação racional. Assim explica Marcondes (2000, p. 41):
O surgimento da filosofia corresponde, portanto, à busca de bases
para essa discussão legítima, tais como: o que é a verdade? Quais
os princípios da razão? Com base em que critérios se pode justi‑
ficar aquilo que se diz? É neste sentido que podemos entender o
contexto histórico e político de surgimento do discurso filosófico,
da filosofia, que encontra seu apogeu nos séculos V-IV a.C..

O período marcado pela sofística, além de mudar o eixo das discussões engendra‑
das pelos pré-socráticos ou filosofia naturalista, também adotou um novo método que
ficou indentificado como o método empírico-indutivo. Conforme Reale (1993, p. 194):
[...] a sofística tem seu ponto de partida na experiência e tenta
ganhar o maior número possível de conhecimentos em todos os
campos da vida, dos quais, depois, extrai algumas conclusões,
em parte de natureza teórica, como por exemplo sobre a possibi‑
lidade do saber, sobre as origens, o progresso e o fim da cultura
humana, sobre a origem e a constituição da língua, sobre a origem
e a essência da religião, sobre a diferença entre livres e escravos,
helenos e bárbaros; em parte, ao invés, de natureza prática, sobre
a configuração da vida do indivíduo e da sociedade. Ela procede,
portanto, segundo o modo empírico-indutivo.

Os ensinamentos dos sofistas tinham um fim prático que se distanciava do ideal


de busca teórica. Isso, no entanto, dava uma conotação de empobrecimento da busca
pelo conhecimento verdadeiro, que, afinal, estava distante da vida ordinária dos
homens comuns. Os sofistas profissionalizaram o conhecimento, o saber e, além do
método empírico-indutivo, ainda cobravam por esse saber. Platão e seus discípulos
consideravam como sinal de baixeza moral o ato de cobrar para educar, para ensinar.
Os sofistas sofreram preconceitos porque iam de cidade em cidade vendendo
conhecimentos e “portanto, infringirem a fidelidade à sua cidade, rompendo o laço
que o grego considerava intocável” (REALE, 1993, p. 196-197). O grego alimentava,
naturalmente, um sentimento de cidadania muito profundo.
Esse período foi marcado, entre outros fatores, pela liberdade de espírito, de
pensamento. Eles inverteram a lógica marcada pelo modelo da tradição dos pré‑
-socráticos e inauguraram a lógica da racionalidade em busca da compreensão da
dinâmica do cotidiano.
Os sofistas marcaram presença, mas foi Sócrates quem deixou um legado. Ou
seja, deixou um modelo de Filosofia, um projeto, um método e muitos problemas
que ainda estão presentes no campo filosófico. Seu projeto? Encontrar o verdadeiro
conhecimento. Seu método? A Maiêutica. Seus problemas? Todos os que envolvem

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16  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

o agir do homem: O que é o bem? O que é a justiça? O que é a verdade? O que é o


amor? E tantos outros.
Tanto Sócrates quanto os sofistas viviam rodeados por jovens que os admiravam.
Esses jovens, da classe aristocrática, queriam aprender a arte da argumentação, do
discurso. Eles queriam aprender a retórica que os sofistas ensinavam de forma bri‑
lhante. Por que eles queriam aprender a retórica? Para falar na Ágora, que com a
Democracia se tornou um espaço público onde os atenienses iam apresentar e de‑
fender suas ideias para governar a Pólis.
Mas é muito importante que todos saibam
que esses sofistas não tinham compromisso com a
verdade e tudo o que eles ensinavam não passava
Para saber mais da superfície. Ou seja, eles tinham um projeto pe‑
RETÓRICA (do grego; arte da ora- dagógico sim, mas apenas para dar um “lustro” no
tória): Arte de utilizar a linguagem aluno. Como isso é possível? Ora, eles ensinavam
em um discurso persuasivo, por uma cultura geral ao aluno, mas essa formação
meio do qual visa-se convencer a não tinha um compromisso de uma formação
audiência da verdade de algo. A completa do sujeito. Por fim, podemos dizer que
linguagem utilizada não se baseia se tratava de uma formação superficial.
na lógica, mas na habilidade em No entanto, com Sócrates era muito diferente!
empregá-la (JAPIASSU; MARCON- Ele tinha um projeto pedagógico mais consistente
DES, 1996). e com a finalidade de fazer com que o sujeito
alcançasse o verdadeiro conhecimento com a fi‑
nalidade de formação integral do sujeito. Sócrates
e seu discípulo Platão entenderam que a crise instalada em Atenas era resultado de
um modelo educacional fracassado. Chamamos a sua atenção para esse ponto muito
importante. Hoje falamos em fracasso escolar. Falamos de uma sociedade sem prin‑
cípios, sem escrúpulos e creditamos esses vícios ao modelo educacional deficiente.
No entanto, vimos que o modelo de sociedade vinculado ao modelo educacional
esteve presente como problema filosófico desde sua fase inicial.
Pois bem, Platão e seu mestre Sócrates partiram do seguinte princípio: “[...] como as
crianças e os jovens não receberam formação adequada e pertinente ao desenvolvimento
de virtudes que levavam ao bem comum, a crise assolou a cidade” (NOGUEIRA JUNIOR,
2009, p. 27). A educação deveria contemplar um projeto de cidadania que promovesse a
ideia de participação coletiva, e não um projeto centrado no indivíduo (que, aliás, foi um
conceito inaugurado na Modernidade, como veremos depois). Para que a Pólis superasse
a crise pela qual estava passando, seria preciso uma educação que contemplasse o
cultivo daquilo que há de melhor no ser humano. Para que haja uma cidade onde
se efetivasse a justiça para todos, seria necessária uma educação desde a infância
para a formação do homem com todas as virtudes do bem comum. Essa é a ideia ou
o conceito de PAIDEIA.
A Paideia é o termo utilizado pelos gregos para indicar educação. E educação é
a formação completa do homem desde a sua infância. Como nos ensina Nogueira
Junior, “Paideia é o termo grego para educação, que indica formação do caráter, ação

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   17

de conduzir as crianças na trilha da virtude, ou simplesmente, cultura” (NOGUEIRA


JUNIOR, 2009, p. 28).
O ideal educativo grego aparece como Pai-
deia, formação geral que tem por tarefa construir
o homem como homem e como cidadão. Platão
Saiba mais
define Paideia da seguinte forma “[...] a essência Acesse a Biblioteca digital: NO-
de toda a verdadeira educação ou Paideia é a GUEIRA JUNIOR, Renato. Apren-
que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tor‑ dendo a ensinar: uma introdu-
nar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e ção aos fundamentos filosóficos da
a obedecer, tendo a justiça como fundamento” educação. Curitiba: IBPEX, 2009.
(NOGUEIRA JUNIOR, 2009, p. 27).
E também acesse o site:
Portanto, para Sócrates e Platão, o conheci‑
<www.educ.fc.ul.pt/docentes/
mento tinha um alcance educacional, um projeto
pedagógico. Ensinar o verdadeiro conhecimento opombo/hfe/momentos/escola/
(não aquele conhecimento ilusório dos sofistas) paideia/conceitodepaideia.htm>.
era imprescindível para a formação do homem vir‑
tuoso para que a cidade fosse justa. E o verdadeiro
conhecimento para Sócrates está no conceito. Para ele, conhecer é conceituar! Os
conceitos são imutáveis e universais. Para o leitor entender melhor daremos alguns
exemplos. Para Sócrates precisamos encontrar o conceito de justiça, de bem, de bon‑
dade, de amor, de coragem — só para apresentar alguns — porque, uma vez encon‑
trado o conceito de cada um, encontraríamos a verdade que os constitui. A verdade
não pode ser flexível e mudar sempre que for conveniente para alguém — que era o
que os sofistas ensinavam. Para ele o conceito de uma ideia jamais poderia mudar.
Pensando e falando sobre essa forma de alcançar o conhecimento, Sócrates formulou
um método que se norteava pelo diálogo: A Maiêutica. Dessa forma, os jovens que se
dispunham a aprender e que estavam dispostos a alcançar o verdadeiro conhecimento
começavam a interpretar a realidade, ou seja, o cotidiano e tudo que o envolve (questões
éticas, morais, políticas — principalmente políticas!) de forma reflexiva e crítica. Os
seguidores de Sócrates não eram superficiais como os seguidores da maioria dos sofistas.
Esse comportamento incomodou a classe governante porque esses jovens passaram a
contestar o modelo de governo instaurado em Atenas, a democracia e, por isso, ele foi
preso e condenado à morte por um veneno conhecido como cicuta.
Explicamos tudo isso para mostrar ao leitor que as mudanças sociais, políticas e
econômicas ocorridas na Grécia Antiga projetaram uma nova forma de filosofar e,
com ela, nasceu também um projeto de educação. Porque nesse momento em que
a filosofia se ocupa por questões éticas e políticas também está se ocupando da for‑
mação de um novo sujeito que atua na pólis: o cidadão.
Mesmo os sofistas, ensinando de forma considerada pelos filósofos antigos como
superficial, promoveram uma forma de educação e um debate. É do debate que sus‑
citam os movimentos sociais, econômicos, políticos e educacionais que é o nosso
interesse aqui. Quanto a Sócrates, foi um mestre assumido e por excelência!

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18  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

  Seção 3 Do pensamento clássico aos


medievais
Quando falamos de pensamento filosófico clássico estamos nos referindo a:
Sócrates,­Platão e Aristóteles (e todas as escolas que eles influenciaram). Eles formam
a tríade que fundamenta o pensamento clássico do ocidente.
Assim, podemos dizer que, depois de Sócrates, um importante cidadão aparece
no cenário político e educacional de Atenas: Platão (427-348 a.C.). Foi esse filósofo
grego que deixou registrado em toda a sua produção literária a preocupação com uma
formação educacional, ou seja, um projeto pedagógico. Em sua importante e grande
obra A República encontramos nos livros II, III, IV e VII o registro de sua preocupação
com o conhecimento, a política e, principalmente, a educação. É importante destacar
que as três dimensões — conhecimento, política e educação — não se desvinculam
da formação humana do sujeito. Para ele a busca do conhecimento tem o sentido
do aperfeiçoamento humano porque o conhecimento verdadeiro leva o sujeito ao
alcance do bem e quando isso acontece o homem está pleno em sua integralidade e
em sua perfeição para bem conduzir a cidade.
A República, sua obra mais conhecida, apresenta a Teoria das Ideias, onde ele
demonstra o seu conceito de conhecimento verdadeiro e para isso ele se utiliza de
uma forma bem didática de um diálogo entre Sócrates e outros discípulos. Platão
escolheu a forma dialógica para apresentar suas ideias — o livro todo é assim, como
seu mestre Sócrates fazia — para que o processo de conhecimento se efetivasse. No
Mito da Caverna ele explica o que é o conhecimento, onde ele está e como se chega
a ele. Para Platão o conhecimento está no conceito (aprendeu com Sócrates) imutável
e universal, está no mundo inteligível e chega-se a ele com um método de ascensão
dialético. Leia com atenção a citação abaixo, ela explica muito bem o pensamento
platônico.
A caverna, enquanto signo pedagógico, é a representação da
realidade sensível, das sombras dos reflexos, enquanto o mundo
exterior representa o mundo inteligível, a realidade verdadeira. A
caverna é iluminada pelo fogo, o mundo externo, pelo sol. A pas‑
sagem das sombras para o sol representa o bem e corresponde às
etapas da educação do filósofo. Na passagem da ignorância para a
sabedoria são relevantes os estudos de matemática, de astronomia,
de harmonia e de dialética (522-535 a.C.) (PAVIANI, 2008, p. 9).

Vamos entender um pouco mais. Platão divide o mundo em duas partes — ele foi
um dualista — ou em dois mundos: o mundo sensível, das sensações ou dos sentidos
(onde estamos), e o mundo inteligível, mundo das ideias. Aqui, onde estamos no
mundo sensível (das sensações), só existe a aparência, as sombras ou como ele dizia
as cópias. No mundo das ideias estão os verdadeiros conceitos, a forma verdadeira,
a ideia real. Com esse mito ele queria dizer que é preciso muito esforço e disposição
para romper com as amarras que estão representadas pelo preconceito, a preguiça e
a covardia que nos prendem às sombras e buscar o verdadeiro conhecimento. Uma

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   19

vez que alcançamos esse conhecimento é preciso dividi-lo com os outros para que
todos possam se libertar das amarras do mundo das aparências ou da ignorância.
Para entender melhor: a pessoa que se apropria do conhecimento verdadeiro precisa
voltar e socializar esse conhecimento com os outros. Podemos dizer que nesse caso
o filosofar ou o exercício filosófico é um ato pedagógico.
O método dialético do mito da caverna se constitui de uma ascensão (uma su‑
bida) que vai do conhecimento mitológico e passa para a doxa (opinião); depois de
algum tempo abandona a opinião e passa a se utilizar da razão e, só depois, por
último alcança-se o inteligível, o conceito (que é o verdadeiro conhecimento). Para
o nosso filósofo a opinião não é um conhecimento verdadeiro por ser relativo. Ele
estava dizendo que a opinião depende do momento, do espaço e da pessoa. Se cada
um tem uma forma diferente de interpretar o real, essa interpretação não pode ser
verdadeira porque a verdade está no conceito que se constitui pela essência que não
muda e é universal. Platão acreditava em uma verdade eterna.
Esse conhecimento verdadeiro, para Platão, reside apenas na essência do conceito.
Por isso, ele é considerado um IDEALISTA (porque o verdadeiro conhecimento está
no mundo das ideias) e ESSENCIALISTA (a verdade está na essência do conceito que
é imutável). Sua pedagogia é, assim, essencialista.
Para entender melhor a ideia de conceito, vamos recorrer à Chaui (2002, p. 213):
1)  Um conceito ou uma ideia não é uma imagem, mas a descrição
e uma explicação da essência própria de um ser (que pode ser
qualquer coisa: uma pessoa, uma árvore, a água etc.);
2)  Um conceito ou uma ideia não são substituídos para as coisas,
mas a compreensão intelectual delas (porque estão na ideia);
3)  Um conceito ou uma ideia não são formas de participação ou
relação de nosso espírito em outra realidade, mas o resultado de
uma análise dos dados da realidade ou do próprio pensamento;
4)  Um juízo e um raciocínio não permanecem no nível da expe­
riência, mas, partindo dela (da experiência) sistematizam (organi‑
zam) em­ relações racionais que a tornam compreensível ao ponto
de vista lógico;
5)  Um Juízo ou raciocínio buscam causas universais e necessárias
para explicar a realidade tal como ela é.

Esse modelo de pensamento filosófico nos deixou marcas profundas, por incrível
que pareça. Essas marcas estão em nossos preconceitos quando acreditamos que as
pessoas já nascem com qualidades ou defeitos e que a educação não é capaz de
transformar o que já está internalizado, pelo nascimento, na pessoa. Quando dize‑
mos “filho de peixe, peixinho é!” ou “pau que nasce torto, morre torto!” estamos
reproduzindo uma filosofia essencialista. Ou seja, a condição do sujeito é inata. Por
outro lado, quando dizemos que: “aqui, neste mundo, só teremos sofrimentos e no
céu haverá uma tranquilidade eterna!”, isso também é Platão. Esse modo de pensar foi
absorvido pela filosofia cristã. Na Idade Média, quem interpretou Platão foi o bispo
Santo Agostinho que, com Aquino, representaram a filosofia essencialista na Igreja.

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Essa ideia de Filosofia como processo educacional e, portanto, projeto pedagó‑


gico se mantém até o final da Idade Média em sua vertente religiosa. Com isso
queremos explicar que durante a Idade Média a
educação formal ficava por conta da Igreja, em
Para saber mais geral nos mosteiros. A ideia de conhecimento se
norteava principalmente pela metafísica aristoté‑
Sobre o modelo de ensino institu- lica, que estava, naquele período, interpretada
cionalizado aqui no Brasil, é muito por São Tomaz de Aquino. Esse modelo de co‑
importante explicar que a Ratio nhecimento nos chegou com os jesuítas pelo
Studiorum foi o projeto pedagó- Ratio Studiorum (o projeto pedagógico dos jesuí­
gico trazido pelos padres jesuítas tas) e foi o primeiro modelo de ensino que se
para ensinar os filhos dos colonos instituiu no Brasil. Saviani, em seu livro História
portugueses. Os indígenas foram das ideias pedagógicas no Brasil descreve esse
catequizados, ou seja, foram cris- modelo como uma “[...] verdadeira pedagogia
tianizados e aculturados. Para isso brasílica, isto é, uma pedagogia formulada e
não foi utilizado a Ratio Studiorum. praticada sob medida para as condições encon‑
tradas pelos jesuítas nas ocidentais terras desco‑
bertas pelos portugueses” (SAVIANI, 2010, p. 47).
47).
Saiba mais Continuando com Aristóteles: o interessante
Dica de Filmes: disso é que o próprio filósofo grego, que foi discí‑
pulo de Platão, pensou em um projeto pedagógico
Sobre o ensino na Idade Média,
no sentido de formar um governante virtuoso na
assistam: Em nome do Pai.
garantia de uma cidade feliz. Sua filosofia con‑
Sobre os primeiros Jesuítas no Bra- templava a ética, a política, a lógica, a poética e
sil: A missão. a metafísica e a ideia de educação.

Para compreender um pouco mais sobre a


Para saber mais metafísica vamos recorrer à Professora Marilena
Chaui, que em seu livro Convite à filosofia (que
Metafísica: A metafísica define-se pode ser baixado gratuitamente na Internet)
como a filosofia primeira, o ponto explica as questões que são formuladas pela
de partida do sistema filosófico, metafísica: O que é uma coisa? O que é um
na medida em que examina os objeto? O que é o corpo humano? O que é uma
princípios e as causas primeiras. consciência?
(JAPIASSU; MARCONDES, 1996) [...] um filósofo grego não falaria em “nada”, mas em
“não ser”. Não falaria em “objeto”, mas em “ente”, pois
a palavra objeto só foi usada a partir da Idade média
e, no sentido em que a empregamos hoje, só foi usada a partir do
século XVII. Também não falaria em “consciência”, mas em pysche,
isto é, alma. Jamais falaria em “subjetividade”, pois essa palavra,
com o sentido que lhe damos hoje, só foi usada a partir do século
XVIII (CHAUI, 2002, p. 206, grifo do autor).

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   21

Isso pode até parecer muito estranho para nós, mas já percebemos que a linguagem
se modifica constantemente. Isto para falar do nosso vocabulário em nossos dias. Ima‑
gine você que a filosofia tem, pelo menos, 25 séculos de vida e a linguagem humana,
muito mais do que isso. Por isso quando ouvimos um professor de Filosofia dizer que
a pretensão de determinado filósofo é “conhecer a coisa em si” achamos que está
divagando ou está muito longe da nossa realidade. Mas é preciso lembrar que “a
coisa ou ente” é o nosso “objeto”. Mas por que não falar logo de uma vez a palavra
objeto? Porque nós estaríamos ferindo o vocabulário do Filósofo.
A Metafísica investiga a realidade em si de forma racional e não se baseia em da‑
dos conhecidos pela experiência sensível, mas nos
conceitos formulados pelo pensamento. Portanto,
é um conhecimento puramente abstrato. É um
conhecimento sistemático (organizado) porque
Saiba mais
os conceitos se relacionam de forma dependente. Aristóteles foi mestre de Alexan-
No entanto, depois que Aristóteles se desligou dre, o Grande.
de Platão, fundou uma escola para a pesquisa em‑ Assista ao filme com o mesmo
pírica e o ensino. As duas mantinham a interface nome. Nele há uma cena com o
porque para ele não existia conhecimento sem filósofo ensinando alguns meninos
passar pela experiência. da aristocracia. Aliás, Aristóteles
Vamos compreender um pouco mais dessa ficou decepcionadíssimo com o
palavra tão diferente em nosso vocabulário: META‑ comportamento violento com que
FÍSICA. A palavra meta significa depois ou acima Alexandre conduzia seu governo.
e é por isso que dizemos nos dias atuais muito em
“alcançar metas”. Isto quer dizer que tem alguma
coisa acima que precisamos ou devemos alcançar, ou, algum lugar onde devemos
chegar. Mas, verdade seja dita, a palavra metafísica não foi utilizada por Aristóteles
e sim por um organizador, ou uma espécie de “bibliotecário” das suas obras: An‑
drônico de Rodes, por volta de 50 a.C. Pois bem, esse homem, Andrônico, recolheu
e classificou todas as obras (de Aristóteles) que ficaram dispersas ou perdidas. Com
a palavra grega ta meta ta physika, o organizador indicava um conjunto de escritos
que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou natureza.
Já vimos o que significa a palavra meta (depois). A palavra ta aqueles; ta physika,
aqueles da física. Então ficou assim: aqueles (escritos) que estão (catalogados) após
os (escritos) da física. Portanto, METAFÍSICA.
Aristóteles se referia a esses escritos como a FILOSOFIA PRIMEIRA, porque o seu
tema era a o estudo do “ser enquanto ser”. Assim, o que Aristóteles designou como
Filosofia Primeira, passou a ser conhecida como Metafísica.
Vamos entender um pouco mais sobre a metafísica. Em seu primeiro momento
os filósofos metafísicos, mais especificamente Aristóteles, investigavam somente aquilo
que é, aquilo que existe. Olhando em torno de si mesmo, o filósofo se perguntava:
o que é isso tudo que vejo, que posso tocar, ouvir e sentir (veja bem: ele utiliza todos
os órgãos dos sentidos: visão, olfato, tato, audição e paladar). Mas aqui tem uma

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diferença porque para compreender tudo o que existe é preciso ter o exercício ra‑
cional e apriorístico, ou seja, para conhecer o mundo existente de fato como ele é,
é necessário abandonar a ideia de que o conhecimento é aquele que se nos apresenta
pela experiência sensível ou sensorial (a partir dos órgãos dos sentidos).
O conhecimento metafísico é, principal‑
mente, sistemático. Isto é, existe um sistema de
Para saber mais organização, é organizado, tem uma lógica de
encadeamento: um conceito depende de outros
APRIORISMO: O que vem em pri- e se relaciona com outros. Percebeu? Não se trata
meiro lugar. de um conhecimento sem fundamentação, sem
CONHECIMENTO SENSÍVEL: Aquilo critério e sem rigor metodológico.
que apreendemos com os cinco A primeira metafísica faz uma distinção en‑
sentidos — tato, olfato, paladar, tre o que é e o que parece ser. Entre verdade e
visão e audição. mentira. Ou, melhor ainda: entre realidade e
aparências, entre o que é real e o que é falso.
Esse primeiro momento foi longo e permane‑
ceu de Aristóteles, na antiguidade clássica, aos medievais. Somente com o filósofo
David Hume (1711-1776), no século XVIII, é que aconteceu uma grande mudança
conceitual. Como demorou! Mas Hume demonstrou que os conceitos construídos
pela metafísica não correspondem, exatamente, à realidade externa. O que a meta‑
física fornece são apenas nomes gerais para as coisas ou ainda como explica Chaui
(2002, p. 207): “[...] nomes que nos vêm à mente pelo hábito mental ou psíquico de
associar em ideias as sensações, as percepções e as impressões dos sentidos, quando
são constantes, frequentes e regulares”.
Logo, podemos entender que o filósofo Hume colocou um ponto final no primeiro
período metafísico. Mas quem deu o “pontapé” inicial para o segundo período desse
modelo de conhecimento foi Immanuel Kant, que demonstra a impossibilidade da utili‑
zação dos conceitos construídos pela metafísica para se conhecer a realidade como esta
se apresenta. Por isso, ele propôs um conhecimento a partir da nossa própria capacidade
racional. Ou ainda, a partir de uma razão crítica. Para Kant, a metafísica agora toma
um caminho diferente daquele iniciado com Aristóteles e mantido pelos medievais. O
sentido do conceito é aquilo que existe para nós e organizado por nossa razão.
No século XVII (antes ainda de Hume, que era um inglês), outro filósofo (dessa
vez um alemão), Jacobus Thomasius, decidiu que a palavra correta para designar os
estudos da Filosofia Primeira ou Metafísica seria: ONTOLOGIA. Outra palavrinha
para complicar a nossa vida de estudantes. Essa palavra, ontologia, é composta por
duas palavras gregas: onto e logia. Onto vem de dois substantivos: ta onta (os bens
e as coisas possuídas por alguém) e ta onta (as coisas realmente existentes). Essas
duas palavras derivam do verbo ser. O ser é aquilo que realmente é e não aquilo
que aparenta ser. Assim, podemos entender que Metafísica e Ontologia têm o mesmo
significado, afinal estão dizendo que: para compreender o real é preciso buscar o
princípio (racional) de cada ”coisa” para conhecê-la (lembre-se de que nesse período
não havia a palavra objeto) de forma verdadeira e não de forma fantasiosa.

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Além da metafísica, encontram-se outras obras do filósofo e, dentre elas, duas


que apresentam uma ideia de educação: Ética a Nicômacos e A política. Para ele, a
ética e a política se constituem em ciências práticas porque nelas está a ação humana.
Conforme Nogueira Junior (2009, p. 45):
Aristóteles propôs uma análise da vontade humana tomada como
escolha deliberativa, refletida e racional. As ciências práticas
tratam de nossas ações e de suas condições de possibilidade [...]
a educação tem como objetivo a felicidade, também conhecida
como o bem supremo.

A educação está, nesse sentido, no campo da filosofia prática porque tem como
finalidade a formação de virtudes no homem e a virtude é o caráter formado pela
moral. No pensamento aristotélico é com o exercício da moral que se adquire a
virtude e com ela o bem supremo, que é a felicidade. A ideia de bem tem o sentido
de controle racional de todos os impulsos. E como se consegue isso? Pela prudência
que está no equilíbrio das ações (na mediania).
Pois bem: já vimos que o projeto educacional na filosofia de Aristóteles tem um
caráter ético e moral. Mas tem também um caráter político porque somente o homem
virtuoso poderia governar a pólis mantendo-a feliz. Para ele, o homem é naturalmente
um animal político por não conseguir viver sozinho e o Estado deve promover o bem‑
-estar de todos. Esse pensamento está registrado na obra A política.
O Estado deve legislar e garantir o cumprimento das leis e em vistas
de seu objetivo deve criar condições suficientes para propiciar aos
cidadãos a felicidade. E nessa tarefa, a educação tem o papel de
suma importância porque deve promover a virtude. De modo geral,
o uso da razão cultivado desde a infância é capaz de propiciar o
desenvolvimento da moralidade, solidificando hábitos adequados
e virtudes (NOGUEIRA JUNIOR, 2009, p. 46).

Diferente de Platão, que acreditava em um caráter nato, Aristóteles postulava a


ideia de uma educação que introjetasse no sujeito a ideia de bem e que construísse
virtudes. Isso quer dizer que a pessoa (o sujeito) teria um comportamento natural‑
mente voltado para a realização do bem. O caráter, para Aristóteles, é desenvolvido
na pessoa, e não uma característica natural (inata), desde o nascimento.
Esse modelo de conhecimento permaneceu até a Idade Média. Isto quer dizer
que durante o período medieval o verdadeiro conhecimento estava norteado pela
Metafísica e, no conceito essencialista de Platão, fundamentado no modelo teológico.
Toda forma de conhecimento considerado válido nesse período tinha que ter sua
fundamentação nas verdades reveladas. Essa concepção fundamentou a educação
em toda a Idade Média.
Qual foi, então, a especificidade do conhecimento na Idade Média? A resposta está
no pensamento adotado pelo filósofo e religioso Tomaz de Aquino, que se preocupava
em entender a natureza e os homens e, mais especificamente, a natureza humana. A
educação teria como especificidade, digamos assim, “melhorar o ser humano”. Pela
educação, o sujeito desenvolveria bons hábitos que o levariam às virtudes. Dessa

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24  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

forma, o homem poderia servir a Deus em toda a sua plenitude. A especificidade da


educação é formar o cristão devoto para servir à causa e o primeiro princípio: Deus.
O pensamento de Aquino tem sua fundamentação em Aristóteles:
[...] seguindo os passos do Filósofo, os homens vivem sempre em
comunidade e nelas desenvolvem determinados hábitos que o
conduzem para os vícios ou para as virtudes. Esses hábitos estão
relacionados à forma como os homens travam as relações entre si.
[...] esses hábitos não são inatos aos homens. Ao contrário preci‑
sam ser aprendidos e ensinados por meio de instrução (OLIVEIRA,
2009, p. 243).

A citação acima nos ensina que Aristóteles não acreditava em um conhecimento ante‑
rior ao ser, à pessoa. O conhecimento não nasce conosco, mas é preciso instruir. Tomaz de
Aquino interpretou Aristóteles e levou para a sua obra o pensamento desse filósofo antigo.
Logo, o projeto educacional visto com as lentes de Aquino tinha por objetivo
ensinar comportamentos e “[...] promover a construção de homens que pratiquem
hábitos virtuosos” (OLIVEIRA, 2009, p. 244). A educação pretendida aqui tem seu
pressuposto filosófico em Aristóteles, que também não aceitou o pensamento platô‑
nico de ideias inatas. Ou seja, o bom comportamento para se alcançar as virtudes e
com elas a felicidade poderia e deveria ser ensinado. As virtudes dependem de um
exercício constante empreendido pelo sujeito.
Tomaz de Aquino foi representante do movimento medieval conhecido como
escolástica, que podemos entender como filosofia da escola, o ensino cristão que
tinha por finalidade alcançar a verdade por meio da razão. Ou, de forma resumida,
a escolástica foi um movimento da Igreja para conciliar a fé e a razão. Além de
representar a escolástica, Aquino deixou o seu legado registrado na obra Suma teo-
lógica, onde ele constrói seu pensamento em busca da prova da existência de Deus
postulando cinco evidências ou provas:
1. Prova de movimento
2. Prova da causalidade eficiente
3. Prova da contingência
4. Prova dos graus de perfeição do ente
5. Prova da existência de Deus pelo governo do mundo
A ideia da existência de Deus é ponto fundamental no programa educacional
cristão da Idade Média, por ser a única forma de se alcançar o verdadeiro conhe‑
cimento. A ideia de movimento é de inspiração aristotélica — ato e potência. Uma
coisa se transformando em outra. Por exemplo: a semente tem a potência de uma
árvore, uma flor. Uma árvore tem a potência de uma cadeira, mesa etc.
Até aqui vimos que a Filosofia sempre esteve no âmbito da formação social, isto
é, a Filosofia, que nascida com os antigos manteve-se com vocação formadora do
sujeito e assim permaneceu até o final da Idade Média.
Como ficou, então, durante a Idade Moderna? Esse é um assunto para mais uma
subdivisão nesta unidade.

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   25

  Seção 4  Filosofia dos modernos


Com a Idade Moderna, muita coisa mudou e
muitas outras coisas começaram a existir, como por
exemplo a infância. É claro que as crianças sempre Para saber mais
existiram, mas o conceito de infância só surgiu na
O historiador francês Philipe Áries
modernidade. Antes disso não havia uma preocu‑
escreveu História social da criança e
pação em fazer roupas apropriadas para elas, o
da família. Tradução Dora Flaksman.
primeiro brinquedo só foi surgir na Alemanha do
Rio de Janeiro: Guanabara, 1981.
século XVIII e as crianças brincavam entre adultos
nos afazeres domésticos dos quais ela participava No livro, Áries resgata a história da
porque era considerado um adulto em miniatura: família desde a Antiguidade até a
um homúnculo. modernidade.
No início alguns intelectuais começaram a
disseminar a ideia de que a criança tinha uma constituição diferente do adulto. Leiam
a citação abaixo.
Nos “novos tempos”, pelo menos no Ocidente, os intelectuais — pa‑
dres, juristas, moralistas etc. — começaram a dizer que as crianças
eram seres diferentes dos adultos, e começaram a falar isso em
um sentido bastante específico. Passaram a fomentar um novo
sentimento dos adultos em relação às crianças, um sentimento de
cuidado, de cultivo da criança. [...] a infância passou a ser vista
como uma fase natural e necessária à vida do ser humano (GHI‑
RALDELLI, 2002, p. 8, grifo do autor).

O conceito de infância gerou grandes modificações em muitos sentidos, incluindo


roupas, distribuição de tarefas domésticas mais adequadas à idade e, mais impor‑
tante, os sentimentos também foram sendo reconfigurados. A partir desse período a
infância passa ser vista como uma fase em que o ser humano pensa e age de forma
diferente do adulto e para isso seria preciso reservar um lugar especial para elas. Foi
assim que nasceu a escola.
É muito importante ressaltar que há várias interpretações, explicações ou justi‑
ficativas para o surgimento da escola. Todas significativas, mas vamos nos apropriar
da interpretação de Ghiraldelli (2002, p. 9, grifo do autor) porque compactuamos
com ela:
A escola na modernidade não nasceu, propriamente para ensinar,
no sentido de instruir, mas antes de tudo para ser uma local no qual
a infância pudesse ocorrer. Os intelectuais disseram que a infância
não aconteceria nos lares, nas mãos dos pais e de outras figuras que
“apenas paparicavam as crianças” ou as tratavam como “coisas”; só
aconteceria se as crianças estivessem nas mãos de especialistas — os
educadores, os homens de letras, enfim, os professores. O professor
deveria ser o guardião da infância e da juventude.

Podemos compreender que tanto a infância quanto a figura do professor se con‑


figurou, de fato, no período moderno. Mas se de um lado a maneira de ver a criança

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26  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

foi se modificando de forma positiva, por outro lado, essa fase, embora considerarem
natural e necessária, era vista como um período negativo na vida do sujeito. Porque
entendia-se que no período infantil as crianças não internalizaram as regras e por
isso deveriam ser conduzidas da heteronomia à autonomia por meio de regras pos‑
tas pelo adulto. A autonomia nasce de fora para dentro com a ajuda de um adulto
competente, ou seja, pelo professor.
Por isso compreendemos que a escola no início da modernidade não tinha um
caráter de ensino, mas de disciplina. A escola tinha que promover a saída do sujeito
de uma fase negativa — a infância — e conduzi-lo ao mundo dos adultos, da racio‑
nalidade, da individualidade, da autonomia.
Dentre os intelectuais que construíram essa ideia de infância, temos o filósofo Renè
Descartes, que acreditava ser a infância o pior período do ser humano. Segundo ele,
a criança precisa ser duramente disciplinada para alcançar rapidamente o status de
adulto na sociedade. Ser adulto significava para o filósofo, entre outras coisas, o uso
pleno de sua razão.
No século XVIII, considerado o século das luzes, Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
dedicou uma obra ao projeto educacional: Emílio. Rousseau foi considerado um român‑
tico por ter criticado de forma contundente o projeto racionalista iluminista. Para ele as
emoções deveriam ser consideradas na formação
humana e no projeto de conhecimento. No Emílio,
Para saber mais ele registra a ideia da infância como um período
positivo e a educação deve ser a mais natural e longa
Podemos perceber que essas con- possível para promover tudo o que sujeito traz de
cepções filosóficas aparecem na positivo em seu nascimento. Conforme Ghiraldelli, a
contemporaneidade nas teorias e infância é um período de pureza, de criatividade, e a
tendências educacionais porque a autonomia deve vir de dentro para fora. O professor
partir delas efetivaram-se concei- não é um disciplinador, como a concepção anterior,
tos de infância e de educação que mas um amigo.
passaram a se colocar como funda- Por isso e muito mais, Rousseau é considerado
mentos dos processos pedagógicos um marco na educação do período moderno por
ou da Pedagogia. mudar o eixo do projeto educacional, colocando
o aluno no centro do processo de aprendizagem e
valorizando a infância. Se antes a criança era con‑
siderada um homúnculo, um adulto em miniatura,
Saiba mais agora ela ganha o seu espaço e lugar.
Se na antiguidade a Filosofia surge com “sin‑
Jean-Jacques Rousseau deixou uma toma” de educação, podemos afirmar que no
grande obra sobre educação: Emí- período moderno, com os iluministas e o projeto
lio, que está disponível na biblio- de filosofia romântica de Rousseau, ela toma
teca digital no seguinte endereço: corpo como pedagogia. Além disso, o projeto car‑
<www.unopar.br/bibli01/catalo- tesiano — Renè Descartes — e o rousseniano —
gos.htm>. Rousseau — se constituíram em pedagogias que
se reconfiguraram como modelos educacionais
ao longo da história.

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Também promove) a- 06:43:51
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- January da tirosinase,
10, 2014 - PG-37 provavelm
pela

a transição do mito ao logos 27

A filosofias modernas representados por Descartes e Rousseau, bem como as tra‑


dições que delas originaram, podem ser consideradas filosofia da educação porque:
Pretendem fundamentar todo e qualquer saber e, também, o saber pedagógico.
Determinam o caminho da busca da verdade como um percurso filosófico‑
‑pedagógico.
O projeto pedagógico moderno constrói o ethos, imprescindível, para a for‑
mação humana.
A metade final do século XIX foi abalada pelo pensamento do filósofo alemão F.
Nietzsche. Seu projeto educacional é, ao contrário de todos os sistemas filosóficos até
aquele momento, desconstruir o ser humano. Mas ele vai além: desconstruir “a marte‑
ladas” (não no sentido literal). Isso quer dizer que a Filosofia tem a função de quebrar
os ícones e as ideias construídas desde os antigos. Ou seja, para superar a dicotomia
entre alma e corpo, mundo real e mundo aparente (Platão), a educação deve provocar
a desconstrução, que é dolorosa, para a superação do próprio homem. Sua proposta é
a desconstrução dos valores humanistas, que para ele são enfraquecedores do sujeito,
para uma superação a partir dos valores reformulados pelo homem em sua existência
real, e não como projeto ideal pretendido dos antigos até os modernos.
Nietzsche é considerado o filósofo da contrarrazão por criticar e descontruir o
modelo de racionalidade nascida na antiguidade e reformulada pelos modernos.
Também, desconstrói o modelo de moral socrático e críticas ferrenhas ao modelo
cristão. Segundo Nogueira Junior (2009, p. 83‑84, grifo do autor):
O filósofo alemão endereçou críticas às instituições de ensino do
século XIX e, por extensão, ao projeto pedagógico moderno. Em
linhas gerais, para Nietzsche, o projeto moderno de educação
tinha como objetivo preparar o ser humano para acatar o Estado,
adequar‑se ao mercado e acreditar na ciência. Afinal, a educação
escolarizada é pensada na modernidade como a personificação
das noções de progresso contínuo através de uma “razão universal
e toda poderosa”.

Isso quer dizer que o filósofo rompe com a ideia de universalidade porque para
ele a busca por uma verdade universal é perigosa porque soa inquestionável. Assim,
a educação não deve se nortear por um conceito de verdade universal e nem por
uma ideia de bem maior ou universal.
Por fim, compreendemos que o pensamento de Nietzsche é construído em uma
crítica ao modelo de racionalidade moderna, que para ele tem sua gênese (e tem
mesmo, já o mostramos nesta unidade) no pensamento antigo. Para ele, está em franca
decadência. Isso ele pensava em meados do século XIX.

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Aprofundando o conhecimento
O texto que você irá ler a seguir é um clássico da literatura filosófica: Teeteto
(PLATÃO, s.d.). Trata-se de um diálogo escrito por Platão em que ele discute,
através de Sócrates, o problema do conhecimento. Platão escrevia em diálogos
como uma forma didática para apresentar suas teorias.
Aproveite, aprenda e, ao mesmo tempo, divirta-se!

Teeteto
I
Euclides — Voltaste há pouco do campo, Terpsião, ou já faz tempo?
Terpsião — Faz bastante tempo; procurei-te na praça do mercado e estranhei não
encontrar-te.
Euclides — É que não me achava na cidade.
Terpsião — Por onde andavas?
Euclides — Havia baixado ao porto, quando encontrei Teeteto, que transportavam
do acampamento de Corinto para Atenas.
Terpsião — Morto ou vivo?
Euclides — Vivo, porém muito mal; ressente-se bastante dos ferimentos recebidos.
Porém o pior éter apanhado a doença que atacou as tropas.
Terpsião — Disenteria, talvez?
Euclides — Exato.
Terpsião — Pelo que dizes, estamos na iminência de perder um homem e tanto!
Euclides — De muito merecimento, Terpsião. Agora mesmo, ouvi fazerem-lhe os
maiores elogios, pelo modo por que se houve na batalha.
Terpsião — Não é de admirar. Estranho seria se ele fosse diferente. Mas, por que não
ficou aqui em Mégara conosco?
Euclides — Tinha pressa de chegar a casa. Insisti com ele e o aconselhei muito; porém
não se deixou convencer. Por isso, o acompanhei: e, ao retornar, lembrei-me, com admi-
ração, de como Sócrates foi bom profeta a respeito de muita coisa e também de Teeteto.
Se mal não me lembro, pouco antes de morrer ele encontrou Teeteto, que ainda era
adolescente. Ambos a se conhecerem, e logo a conversar, tendo ficado Sócrates encantado
com a natureza do rapaz. Quando estive em Atenas, Sócrates me falou pormenorizada-
mente na conversa que então mantiveram, muito digna de ouvir, tendo acrescentado que
se ele chegasse a ser homem, fatalmente se tornaria célebre.
Terpsião — Só falou a verdade, como parece. E a respeito de quê conversaram, po-
derias dizer-me?
Euclides — Não, por Zeus! Assim, de improviso, não me seria possível. Porém logo
que cheguei a casa, tomei alguns apontamentos sobre o que mais me impressionara,

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   29

havendo posteriormente redigido mais de estudo o que me acudia à memória. Além do


mais, sempre que ia a Atenas, interrogava Sócrates acerca do que não me recordava com
minúcias e, de regresso, corrigia meu trabalho. Foi assim que, praticamente, consegui
reproduzir todo o diálogo.
Terpsião — É verdade; já te ouvira falar nisso, e sempre tinha intenção de pedir que
mo mostrasses, o que vinha diferindo até hoje. Mas, que nos impede de o lermos agora
mesmo? Tanto mais, que preciso descansar, pois acabo de chegar do campo.
Euclides — Eu, também, acompanhei Teeteto até Erínio; por isso, uma pausa, agora,
não seria nada mal. Vamos entrar; enquanto repousamos, meu escravo nos fará essa leitura.
Terpsião — Ótima ideia.
Euclides — Aqui tens, Terpsião, o livro. Porém redigi de tal modo o diálogo, que em
vez de Sócrates me relatar o ocorrido, como o fez, entretém-se com os que ele próprio
declarou terem tomado parte na conversação. Referia-se ao geômetra Teodoro e a Teeteto.
Para não sobrecarregar o escrito com tantas fórmulas intercaladas no discurso, sempre
que Sócrates fala: Digo, ou Afirmo, ou, com referência aos interlocutores: Concordou,
Não concordou, dei ao trabalho feição de um diálogo direto entre ele e os dois oposito-
res, com exclusão de tudo aquilo.
Terpsião — Foi uma excelente ideia, Euclides.

II
Sócrates — Se eu me interessasse, Teodoro, particularmente pelas coisas de Cirene,
não deixaria de interrogar-te sobre seus homens e o que acontece por lá, como, por
exemplo, se entre os jovens há quem se dedique ao estudo da geometria ou a outros
ramos do saber. Porém como me preocupo menos com eles do que com os de casa tenho
muito mais curiosidade de saber quais dos nossos adolescentes revelam maior probabili-
dade de distinguir-se. É do que sempre procuro informar-me com o maior empenho, e
para isso interrogo as pessoas cuja companhia eles frequentam. Ora, és tu quem reúne
à tua volta o maior número de rapazes, e com razão, não só pelo merecimento próprio
como pela atração da geometria. Por isso, caso tenhas encontrado algum jovem digno
de menção, com muito prazer ouvirei o que disseres.
Teodoro — Efetivamente, Sócrates, vale tanto a pena eu falar como ouvires a respeito
de um adolescente que descobri entre vossos concidadãos. Se se tratasse de um belo
rapaz, teria medo de manifestar-me, para não pensarem que eu o fazia como apaixonado.
Porém a verdade — sem querer ofender-te — é que ele não é nada belo; parece-se
contigo em ter o nariz chato e os olhos saltados, aliás em grau menos acentuado. Por
isso, falo sem o menor constrangimento. Sabe, pois, que no meio de tantos jovens que
até agora conheci — e não têm conta os com que já tenho conversado — não encontrei
nenhum com tão maravilhosa natureza. A facilidade de aprender como apenas se en-
contraria em mais alguém, uma docilidade única, associada a singular valentia são
qualidades que nunca imaginei pudessem existir ou que ainda venhamos a encontrar. De
fato, os que são dotados de igual vivacidade, entendimento rápido, boa memória, de
regra são sujeitos a acessos de cólera e se deixam levar à matroca, como navio sem lastro,
sobre se revelarem mais impulsivos do que realmente corajosos. Os mais ponderados são
algum tanto preguiçosos e sumamente esquecidos. Este, pelo contrário, avança com

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30  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

naturalidade e segurança na senda do saber e da pesquisa, com doçura igual ao do óleo


que escorre sem bulha, que admira com tão poucos anos já tenha feito o que fez.
Sócrates — Ótima notícia! Mas de qual dos nossos concidadãos ele é filho?
Teodoro — Já lhe ouvi o nome, porém não me ocorre neste momento. Mas ali vem
ele, no meio daquele grupo que se aproxima. Agora mesmo, na galeria externa, ele e
seus amigos acabaram de passar óleo no corpo. Concluída essa parte, tenho a impressão
de que vêm para cá. Vê se o conheces.
Sócrates — Conheço; é filho de Eufrônio, de Símio, um homem, meu caro, exatamente
como disseste ser o filho, de reputação excelente e que, ademais, deixou um patri-
mônio considerável. Porém não sei como o filho se chama.
Teodoro — Chama-se Teeteto, Sócrates. Quanto ao patrimônio, tenho ideia de que
os tutores se incumbiram de gastar, o que não o impede, aliás, de ser de uma liberalidade
incrível em matéria de dinheiro.
Sócrates — Pelo que dizes, é pessoa de caráter. Convida-o para vir sentar-se ao nosso
lado.
Teodoro — Agora mesmo. Teeteto, vem para perto de Sócrates!
Sócrates— Isso mesmo, Teeteto, para que eu próprio me contemple e veja como
tenho o rosto. Diz Teodoro que é parecido com o teu. Porém, se cada um de nós tivesse
uma lira e ele declarasse que ambas estavam com igual afinação, dar-lhe-íamos crédito
de imediato, ou primeiro procuraríamos certificar-nos se ele entende de música, para
falar com autoridade?
Teeteto — Sim, primeiro nos certificaríamos disso.
Sócrates — E uma vez confirmada sua competência, aceitaríamos de pronto o que
dissesse; em caso contrário, não.
Teeteto — Isso mesmo.
Sócrates — E agora, segundo penso, se nos interessa de algum modo tal parecença,
precisaremos decidir se ele entende de pintura e, consequentemente, se pode opinar
nessa matéria.
Teeteto — É também o que eu penso.
Sócrates — Porventura Teodoro é pintor?
Teeteto — Que eu saiba, não.
Sócrates — Nem entende de geometria?
Teeteto — Entende, e muito, Sócrates.
Sócrates — Entenderá, também, de astronomia, cálculo, música e o mais que se
refere à educação?
Teeteto — Acho que sim.
Sócrates — Logo, quando ele disse que fisicamente nós temos um quê de parecença,
ou seja isso à guisa de reparo ou como elogio, não devemos atribuir maior importância
a suas palavras.
Teeteto — Talvez não.
Sócrates — Porém suponhamos que fosse a alma de um de nós que ele elogiasse
para o outro, no que respeita à virtude ou à sabedoria: não seria justo que o ouvinte se
apressasse a examinar o elogiado, e este, por sua vez, se prontificasse a exibir-se?

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Teeteto — Perfeitamente, Sócrates.

III
ócrates — Pois então, amigo Teeteto, chegou a hora de te exibires e eu de
examinar-te. Convém saberes que Teodoro já me fez o elogio de muita gente, assim
estrangeiros como Atenienses, porém nunca em termos tão calorosos como agora
mesmo a teu respeito.
Teeteto — É desvanecedor, Sócrates, se não se tratar de alguma brincadeira.
Sócrates — Não é do feitio de Teodoro. Porém não quebres teu compromisso, sob o
pretexto de que ele quis pilheriar, para não o obrigarmos a depor. Bem sabes que
ninguém o recusaria como testemunha. Reveste-te de confiança e não desfaças tua pro-
messa.
Teeteto — É como terei de proceder, se pensas desse modo.
Sócrates — Dize-me o seguinte: não é verdade que estudas geometria com Teodoro?
Teeteto — É.
Sócrates — E também astronomia e harmonia e cálculo?
Teeteto — Pelo menos, esforço-me nesse sentido.
Sócrates — Eu também, jovem; com ele e com quem mais eu considere competente
nesses assuntos. Não obstante, dado que eu apanhe regularmente bem semelhantes
questões, há um ponto insignificante que eu desejaria examinar contigo e estes aqui.
Dize-me o seguinte: aprender não significa tornar-se sábio a respeito do que se aprende?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Logo, é pela sabedoria, segundo penso, que os sábios ficam sábios.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — E isso difere em alguma coisa do conhecimento?
Teeteto — Isso, quê?
Sócrates — Sabedoria. Não se é sábio naquilo que se conhece?
Teeteto — Como não?
Sócrates — Então, é a mesma coisa conhecimento e sabedoria?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Eis o que me suscita dúvidas, sem nunca eu chegar a uma conclusão
satisfatória: o que seja, propriamente, conhecimento. Será que poderíamos defini-lo?
Como vos parece? Qual de nós falará primeiro? Quem errar ou atrapalhar-se, como burro
irá assentar-se, à maneira do que dizem as crianças no jogo de bola; quem não cometer
nenhum erro, será rei e ficará com o direito de apresentar-nos as perguntas que entender.
Por que não respondeis? Espero, Teodoro, que o meu amor às discussões não me torne
importuno, pelo desejo de estabelecer entre nós um diálogo capaz de deixar-nos íntimos
e apertar mais os laços de amizade.
Teodoro — De nenhum jeito, Sócrates, chegarás a ser importuno. Porém pede a
um destes meninos que te responda, pois não estou habituado a esse tipo de conver-
sação e já passei da idade de aprender. Tudo isso fica bem para eles, que só terão a
lucrar; quando se é moço, tudo é fácil. Porém, uma vez que já começaste, não largues
Teeteto, interroga-o.

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Sócrates — Ouvistes, Teeteto, o que disse Teodoro? Creio que não pensas em deso-
bedecer-lhe, além de não ficar bem a um jovem, em assuntos dessa natureza, não acatar
as prescrições de um sábio. Cria coragem, pois, e responde à minha pergunta: No teu
modo de pensar, que é conhecimento?
Teeteto — Terei de obedecer, Sócrates, uma vez que o ordenais. De qualquer forma,
se eu cometer algum erro, vós ambos me corrigireis.

IV
Sócrates — Perfeitamente; no que for possível.
Teeteto — Então, a meu parecer, tudo o que se aprende com Teodoro é conhecimento,
geometria e as disciplinas que enumeraste há pouco, como também a arte dos sapateiros
e a dos demais artesãos: todas elas e cada uma em particular nada mais são do que co-
nhecimento.
Sócrates — És muito generoso, amigo, e extremamente liberal; pedem-te um, e dás
um bando; em vez de algo simples, tamanha variedade.
Teeteto — Que queres dizer com isso?
Sócrates — Talvez nada; porém vou explicar-te o que penso. Quando te referes à arte
do sapateiro, tens em mira apenas o conhecimento de confeccionar sapatos, não é ver-
dade?
Teeteto — Exato.
Sócrates — E a marcenaria, será outra coisa além do conhecimento da fabricação de
móveis de madeira?
Teeteto — Não.
Sócrates — E em ambos os casos, o que defines não é o objeto do conhecimento de
cada um?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Mas o que te perguntei, Teeteto, não foi isso: do que é que há conheci-
mento, nem quantos conhecimentos particulares pode haver; minha pergunta não visava
a enumerá-los um por um; o que desejo saber é o que seja o conhecimento em si mesmo.
Será que não me exprimo bem?
Teeteto — Ao contrário; exprimes-te com muita precisão.
Sócrates — Considera também o seguinte: se alguém nos perguntasse a respeito de
alguma coisa vulgar e corriqueira, por exemplo: o que é lama, e lhe respondêssemos que
há a lama dos oleiros, a dos construtores de fornos e a dos tijoleiros, não nos tornaríamos
ridículos?
Teeteto — É provável.
Sócrates — Para começar, por imaginarmos que nosso interlocutor compreende o
que dizemos quando falamos em lama, muito embora acrescentemos que se trata da
lama de fabricantes de bonecas ou a de qualquer outro artesão. Ou achas que alguém
entenderá o nome de alguma coisa, se desconhece sua natureza?
Teeteto — De forma alguma.

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   33

Sócrates — Não compreenderá, pois, o conhecimento do sapateiro quem não souber


o que seja conhecimento.
Teeteto — Sem dúvida.
Sócrates — Logo, não compreenderá a arte do sapateiro nem qualquer outra arte,
quem não souber o que seja conhecimento.
Teeteto — Exato.
Sócrates — É, por conseguinte, ridícula a resposta de quem é perguntado o que seja
conhecimento, sempre que acrescenta o nome de determinada arte. Falou em conheci-
mento de alguma coisa; porém não foi isso que lhe perguntaram.
Teeteto — Realmente.
Sócrates — Em segundo lugar, embora pudesse dar uma resposta simples e curta,
fez um rodeio de nunca mais acabar. Assim, quando perguntado a respeito de lama,
poderia ter respondido por maneira trivial e simples, que lama é terra molhada, sem dar-
-se ao trabalho de dizer quem a emprega.

V
Teeteto — Agora, Sócrates, ficou muito fácil a questão. Quer parecer-me que é
igualzinha à que nos ocorreu recentemente, numa discussão entre mim e este teu
homônimo.
Sócrates — Qual foi a questão, Teeteto?
Teeteto — A respeito de algumas potências, Teodoro, aqui presente, mostrou que a
de três pés e a de cinco, como comprimento não são comensuráveis com a de um pé. E
assim foi estudando uma após outra, até a de dezessete pés. Não sei por que parou aí.
Ocorreu-nos, então, já que é infinito o número dessas potências, tentar reuni-las numa
única, que serviria para designar todas.
Sócrates — E encontrastes o que procuráveis?
Teeteto — Acho que sim; examina tu mesmo.
Sócrates — Podes falar.
Teeteto — Dividimos os números em duas classes: os que podem ser formados pela
multiplicação de fatores iguais, representamo-los pela figura de um quadrado e os desig-
namos pelos nomes de quadrado e de equilátero
Sócrates — Muito bem.
Teeteto — Os que ficam entre esses, o três, por exemplo, e o cinco, e todos os que
não se formam pela multiplicação de fatores iguais, mas da multiplicação de um número
maior por um menor, ou o inverso: a de um menor por um maior, e que sempre são
contidos em uma figura com um lado maior do que o outro, representamo-los sob a figura
de um retângulo e os denominamos números retangulares.
Sócrates — Ótimo. E depois?
Teeteto — Todas as linhas que formam um quadrado de número plano equilátero
definimos como longitude, e as de quadrado de fatores desiguais, potências ou raízes,
por não serem comensuráveis com as outras pelo comprimento, mas apenas pelas super-
fícies que venham a formar. Com os sólidos procedemos do mesmo modo.

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34  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Sócrates — Melhor não fora possível, meninos. Acho que Teodoro não pode ser
acoimado de falso testemunho.
Teeteto — No entanto, Sócrates, a questão por ti apresentada a respeito do conhe-
cimento, não saberei resolvê-la como fiz com a da raiz e do comprimento, conquanto
pense que seja mais ou menos isso o que procuras. Do que se colhe que, mais uma vez,
Teodoro não falou a verdade.
Sócrates — Como? Se ele te houvesse elogiado por correres bem, afirmando nunca
ter encontrado entre os moços quem te vencesse na carreira e, depois, nalguma compe-
tição fosses vencido por um homem feito e de pés velozes achas que seu juízo teria sido
menos verdadeiro?
Teeteto — Não, decerto.
Sócrates — E agora, parece-te que descobrir o conhecimento tal como o apresentei
há pouco, seja tarefa secundária e não um tema da mais alta responsabilidade?
Teeteto — Não, por Zeus; é dos mais difíceis.
Sócrates — Sendo assim, readquire a confiança em ti próprio e não desfaças no
testemunho de Teodoro, esforçando-te quanto puderes para encontrar a explicação das
coisas, principalmente do que venha a ser conhecimento.
Teeteto — Quanto a esforçar-me, Sócrates, podes ficar tranquilo.

VI
Sócrates — Então, vamos. E já que indicaste o caminho, toma como modelo o que
tu mesmo disseste a respeito das potências, e assim como reduziste a uma única forma
aquela multiplicidade, designa agora por um só termo todos esses conhecimentos.
Teeteto — Convém saberes, Sócrates, que já por várias vezes procurei resolver essa
questão, por ter ouvido falar no que costumas perguntar sobre isso. Porém não posso
convencer-me de que cheguei a uma conclusão satisfatória, como nunca ouvi de ninguém
uma explicação como desejas. Apesar de tudo, não consigo afastar da ideia essa questão.
Sócrates — São dores de parto, meu caro Teeteto. Não estás vazio; algo em tua alma
deseja vir à luz.
Teeteto — Isso não sei, Sócrates; só disse o que sinto.
Sócrates — E nunca ouviste falar, meu gracejador, que eu sou filho de uma parteira
famosa e imponente, Fanerete?
Teeteto — Sim, já ouvi.
Sócrates — Então, já te contaram também que eu exerço essa mesma arte?
Teeteto — Isso, nunca.
Sócrates — Pois fica sabendo que é verdade; porém não me traias; ninguém sabe
que eu conheço semelhante arte, e por não o saberem, em suas referências à minha
pessoa não aludem a esse ponto; dizem apenas que eu sou o homem mais esquisito, do
mundo e que lanço confusão no espírito dos outros. A esse respeito já ouviste dizerem
alguma coisa?
Teeteto — Ouvi.
Sócrates — Queres que te aponte a razão disso?

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   35

Teeteto — Por que não?


Sócrates — Basta refletires no que se passa com as parteiras, para apanhares facil-
mente o que desejo assinalar. Como muito bem sabes, não servem para exercer o ofício
de parteira as mulheres que ainda concebem e dão à luz, mas apenas as que se tornaram
incapazes de procriar.
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Dizem que a causadora disso é Ártemis: por nunca haver dado à luz,
recebeu a missão de presidir aos partos. As estéreis de todo, ela não concede a faculdade
de partejar, por ser fraca em demasia a natureza humana para adquirir uma arte de que
não tenha experiência. As que já passaram de idade foi que ela concedeu esse dom, para
honrar nelas sua imagem.
Teeteto — Compreende-se.
Sócrates — E não é também compreensível e até mesmo necessário, que as parteiras
conheçam melhor do que as outras quando uma mulher está grávida?
Teeteto — Perfeitamente.
Sócrates — Sim, por meio de drogas e encantamentos, elas conseguem aumentar as
dores ou acalmá-las, como queiram, levar a bom termo partos difíceis ou expulsar o
produto da concepção quando ainda não se acha muito desenvolvido.
Teeteto — Isso mesmo.
Sócrates — E não observastes, outrossim, que são casamenteiras muito hábeis, por
conhecerem a fundo qual é a mulher mais indicada para este ou aquele varão, porque
possam ter filhos perfeitos?
Teeteto — Disso nunca ouvi falar.
Sócrates — Pois fica sabendo que elas se envaidecem mais desse conhecimento do
que de saber cortar o cordão. Basta refletires: És de parecer que compete à mesma arte
cultivar e colher os frutos e também conhecer que planta ou semente irá melhor neste
ou naquele terreno? Ou será diferente?
Teeteto — Não; é a mesma.
Sócrates — E para a mulher amigo, és de opinião que uma arte ensinará isso, e outra
a colher os frutos?
Teeteto — É pouco provável.
Sócrates — Não; o certo seria dizer: nada provável. Mas por causa do comércio de-
sonesto e sem arte de acasalar varão com mulher, denominado lenocínio, abstêm-se da
atividade de casamenteiras as parteiras sensatas, de medo de no exercício de sua arte
incorrerem na suspeita de exercerem aquelas práticas. Nada obstante, só às verdadeiras
parteiras é que compete promover as uniões acertadas.
Teeteto — Parece.
Sócrates — Eis aí a função das parteiras; muito inferior à minha. Em verdade, não
acontece às mulheres parirem algumas vezes falsos filhos e outras vezes verdadeiros, de
difícil distinção. Se fosse o caso, o mais importante e belo trabalho das parteiras consis-
tiria em decidir entre o verdadeiro e o falso, não te parece?
Teeteto — Sem dúvida.

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36  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

VII
Sócrates — A minha arte obstétrica tem atribuições iguais às das parteiras, com a
diferença de eu não partejar mulher, porém homens, e de acompanhar as almas, não os
corpos, em seu trabalho de parto. Porém a grande superioridade da minha arte consiste
na faculdade de conhecer de pronto se o que a alma dos jovens está na iminência de
conceber é alguma quimera e falsidade ou fruto legítimo e verdadeiro. Neste particular,
sou igualzinho às parteiras: estéril em matéria de sabedoria, tendo grande fundo de
verdade a censura que muitos me assacam, de só interrogar os outros, sem nunca apre-
sentar opinião pessoal sobre nenhum assunto, por carecer, justamente, de sabedoria. E
a razão é a seguinte: a divindade me incita a partejar os outros, porém me impede de
conceber. Por isso mesmo, não sou sábio não havendo um só pensamento que eu possa
apresentar como tendo sido invenção de minha alma e por ela dado à luz. Porém os que
tratam comigo, suposto que alguns, no começo pareçam de todo ignorantes, com a
continuação de nossa convivência, quantos a divindade favorece progridem admiravel-
mente, tanto no seu próprio julgamento como no de estranhos. O que é fora de dúvida
é que nunca aprenderam nada comigo; neles mesmos é que descobrem as coisas belas
que põem no mundo, servindo, nisso tudo, eu e a divindade como parteira. E a prova é
o seguinte: Muitos desconhecedores desse fato e que tudo atribuem a si próprios, ou por
me desprezarem ou por injunções de terceiros, afastam-se de mim cedo demais. O resul-
tado é alguns expelirem antes do tempo, em virtude das más companhias, os germes por
mim semeados, e estragarem outros, por falta da alimentação adequada, os que eu
ajudara a pôr no mundo, por darem mais importância aos produtos falsos e enganosos
do que aos verdadeiros, com o que acabam por parecerem ignorantes aos seus próprios
olhos e aos de estranhos. Foi o que aconteceu com Aristides, filho de Lisímaco, e a outros
mais. Quando voltam a implorar instantemente minha companhia, com demonstrações
de arrependimento, nalguns casos meu demônio familiar me proíbe reatar relações;
noutros o permite, voltando estes, então, a progredir como antes. Neste ponto, os que
convivem comigo se parecem com as parturientes: sofrem dores lancinantes e andam dia
e noite desorientados, num trabalho muito mais penoso do que o delas. Essas dores é
que minha arte sabe despertar ou acalmar. É o que se dá com todos. Todavia, Teeteto, os
que não me parecem fecundos, quando eu chego à conclusão de que não necessitam de
mim, com a maior boa vontade assumo o papel de casamenteiro e, graças a Deus, sem-
pre os tenho aproximado de quem lhes possa ser de mais utilidade. Muitos desses já
encaminhei para Pródico, e outros mais para varões sábios e inspirados. Se te expus tudo
isso, meu caro Teeteto, com tantas minúcias, foi por suspeitar que algo em tua alma está
no ponto de vir à luz, como tu mesmo desconfias. Entrega-te, pois, a mim, como o filho
de uma parteira que também é parteiro, e quando eu te formular alguma questão, pro-
cura responder a ela do melhor modo possível. E se no exame de alguma coisa que dis-
seres, depois de eu verificar que não se trata de um produto legítimo mas de algum
fantasma sem consistência, que logo arrancarei e jogarei fora, não te aborreças como o
fazem as mulheres com seu primeiro filho. Alguns, meu caro, a tal extremo se zangaram
comigo, que chegaram a morder-me por os haver livrado de um que outro pensamento
extravagante. Não compreendiam que eu só fazia aquilo por bondade. Estão longe de
admitir que de jeito nenhum os deuses podem querer mal aos homens e que eu, do meu

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A t r a n s i ç ã o d o m i t o a o l o g o s   37

lado, nada faço por malquerença pois não me é permitido em absoluto pactuar com a
mentira nem ocultar a verdade.
VIII
Volta, pois, para o começo, Teeteto, e procura explicar o que é conhecimento. Não
me digas que não podes; querendo Deus e dando-te coragem, poderás.
Teeteto — Realmente, Sócrates, exortando-me como o fazes, fora vergonhoso não
esforçar-me para dizer com franqueza o que penso. Parece-me, pois, que quem sabe
alguma coisa sente o que sabe. Assim, o que se me afigura neste momento é que conhe-
cimento não é mais do que sensação.
Sócrates — Bela e corajosa resposta, menino. É assim que devemos externar o pen-
samento. Porém examinemos juntos se se trata, realmente, de um feto viável ou de
simples aparência. Conhecimento, disseste, é sensação?
Teeteto — Sim.
Sócrates — Talvez tua definição de conhecimento tenha algum valor; é a definição
de Protágoras; por outras palavras ele dizia a mesma coisa. Afirmava que o homem é a
medida de todas as coisas, da existência das que existem e da não existência das que não
existem. Decerto já leste isso?
Teeteto — Sim, mais de uma vez.
Sócrates — Não quererá ele, então, dizer que as coisas são para mim conforme me
aparecem, como serão para ti segundo te aparecerem? Pois eu e tu somos homens.
Teeteto — É isso, precisamente, o que ele diz
Sócrates — Ora, é de presumir que um sábio não fale aereamente. Acompanhemo-
-lo, pois. Por vezes não acontece, sob a ação do mesmo vento, um de nós sentir frio e o
outro não? Um ao de leve, e o outro intensamente?
Teeteto — Exato.
Sócrates — Nesse caso, como diremos que seja o vento em si mesmo: frio ou não
frio? Ou teremos de admitir com Protágoras que ele é frio para o que sentiu arrepios e
não o é para o outro?
Teeteto — Parece que sim.
Sócrates — Não é dessa maneira que ele aparece a um e a outro?
Teeteto— É.
Sócrates — Ora, este aparecer não é o mesmo que ser percebido? [...]

Nesse texto, Sócrates estimula seu interlocutor a compreender de forma racional a


forma de conhecimento para se alcançar a verdade. Para ele, o verdadeiro conhecimento
está no alcance dos conceitos imutáveis e universais.
Nossa sugestão é que você leia o texto inteiro, que não é tão extenso (é menor do
que este livro didático), para aprender mais.
Você poderá baixá-lo no site <www.dominiopublico.org.br> .

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38  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Resumo
Nesta unidade você aprendeu sobre a tradição do pensamento mitológico e o
início do pensamento filosófico na Grécia Antiga. Aprendeu um pouco sobre os
primeiros filósofos considerados naturalistas porque interpretavam os fenômenos
naturais. Conheceu o movimento sofista, tão importante para o desenvolvimento
do modelo político consolidado na Grécia. Por fim, conheceu a filosofia clássica
representada por Platão e Aristóteles. Eles não foram os únicos a figurarem no
pensamento clássico, mas são os principais representantes daquela época. Esta
unidade apresentou, também, o pensamento medieval que representa a nossa
formação ocidental cristã.
Na próxima unidade você irá aprender um pouco da Filosofia moderna e
o que ela representa em nossa sociedade ocidental e nossa formação cultural.

Atividades de aprendizagem
1. O que é o pensamento mitológico e quais são as suas características?
2. Faça uma lista de pensamentos mitológicos que ainda permeiam as explicações
da realidade.
3. Como aconteceu a passagem do mitos ao logos?
4. Como se deu e o que representou o movimento sofista?
5. Qual foi a importância de Sócrates na formação da cultura ocidental?
6. Como se caracterizou o pensamento medieval e quais foram os filósofos que o
representaram?

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Unidade 2
O pensamento
moderno
Márcia Bastos de Almeida

Objetivos de aprendizagem: A modernidade representa uma rup-


tura epistemológica para o modelo de cultura ocidental. Assim, esta
unidade tem por objetivo promover uma reflexão sobre o conhe-
cimento e como fazemos uma relação entre o sujeito e o mundo
concreto, objetivado. Aqui, você poderá aprender sobre as teorias
epistemológicas que fundamentam nossa sociedade, isto é, a forma
como conhecemos o conceito de ciência e os valores influenciados
desse modelo científico. Com isso, essas teorias estão presentes —
por mais incrível que pareça — em nossa vida cotidiana, porque é
a partir do modelo de conhecimento introjetado pela cultura que
se desenvolve o ethos que norteia nossas ações e relações sociais.

Seção 1: Concepção de ciência moderna


Nesta seção você vai aprender como se constituiu o
modelo de conhecimento científico que conhecemos.
O modelo de ciência que fundamenta nossa ação do-
cente, nossos valores, nossa cultura e nosso modelo
de sociedade.

Seção 2: O racionalismo
Nesta seção você vai conhecer o modelo de conhe-
cimento que fundamenta as teorias inatistas (aprio-
ristas) de educação. Esse modelo está presente em
algumas concepções da Psicologia.

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Seção 3: O empirismo
Nesta seção você irá fazer uma análise das principais
características do modelo empírico de conhecimento
e compará-lo com as práticas docentes em várias
dimensões, por exemplo, o modelo de avaliação do
sistema educacional.

Seção 4: O mundo máquina


Nesta seção você aprenderá sobre as implicações da
visão de um mundo interpretado como máquina no
processo e sistema de educação.

Seção 5: O criticismo kantiano no


movimento iluminista
Nesta seção você terá oportunidade de conhecer e
aprender o modelo de conhecimento que causou
grandes mudanças nas questões epistemológicas
do mundo moderno e contemporâneo.

Seção 6: O positivismo
Nesta seção você poderá aprender como e por que
a Filosofia positivista influenciou o pensamento
brasileiro e, principalmente,no projeto educacional
da Primeira República.

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O p e n s a m e n t o m o d e r n o   41

Introdução ao estudo
Com esta unidade, compreenderemos o movimento epistemológico a partir da
Idade Moderna e suas implicações no modelo social. A importância de se estudar,
aprender, conhecer e compreender o processo de conhecimento de conhecimento
que foi se construindo na história da humanidade é porque tais modelos direcionam
todo nosso modo de viver. São esses modelos que vão dando dimensão e formato a
nossa visão de mundo, de homem e de sociedade. Cada modelo norteia nossa prática
profissional e nossas escolhas diárias. A postura que adotamos diante do mundo para
avaliar e escolher tem seu fundamento em uma concepção epistemológica. Por isso,
entendemos que há uma relação intrínseca entre conhecimento, valores e formação
humana.
Cada modelo epistemológico ou modelo de conhecimento é como se fossem
óculos coloridos que escolhemos: cada lente é um modelo de conhecimento e cada
uma com uma cor. De acordo com a cor escolhida será o tom da nossa visão de
mundo. Mas, geralmente, “esses óculos” não são escolhidos de forma espontânea,
eles são impostos por um modelo de conhecimento que fundamenta os interesses
de uma classe hegemônica (uma classe que tem mais poder sobre as outras classes).
O que ocorre é que não temos consciência disso. Apenas vamos fazendo, es‑
colhendo, julgando e aprendendo. Depois ensinamos da mesma forma, ou seja,
vamos reproduzindo uma forma de interpretar o mundo, da mesma forma que nos
foi ensinado.
Por isso, esta unidade complementa as outras. Nossa prática reflexiva e filosófica
tem uma fundamentação epistemológica. Isto quer dizer que o nosso fazer profissional
tem, antes de tudo, que responder à questão: Por quê e para quê estamos fazendo isso
e não aquilo? Escolhendo essa e não aquela ação. Quando fazemos essas perguntas
é porque estamos buscando significado às nossas ações, ou estamos buscando um
estatuto de conhecimento (estatuto epistemológico) para as nossas ações. Assim,
convidamos você para mais uma viagem no tempo. Vamos para a Idade Moderna no
século XVI.

  Seção 1  Concepção de ciência moderna


Nesta seção você vai conhecer o modelo de ciência inaugurado na Idade Mo‑
derna que refutou a racionalidade metafísica dos medievais fundamentada no modelo
aristotélico de conhecimento. Para isso, vamos começar entendendo o significado da
palavra ciência. Ciência é conhecimento. Para os gregos a ciência ou conhecimento
estava representado por episteme, ou seja, ciência grega é episteme. Daí a palavra
epistemologia. É importante apresentar essa palavra com esse conceito porque com
ou pela episteme os antigos interpretavam os fenômenos naturais a partir da própria

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42  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

natureza. Foi dessa forma que, aos poucos, o conhecimento científico foi se desvin‑
culando do conhecimento mitológico e passou a ser conhecido como filosófico. A
Filosofia, portanto, nasceu como uma episteme, ou, uma ciência. Portanto, a filosofia,
antes de ganhar o seu nome, era entendida como o modo científico de conhecer e
interpretar a realidade. Atualmente, quando nos referimos a algum “modelo científico”
estamos nos referindo à ciência moderna.
Assim, o modelo de conhecimento que temos na atualidade foi uma herança
deixada pelos filósofos da Idade Moderna. Antes disso, vamos repetir para você não
esquecer: conhecimento era episteme — epistemologia. Com a Idade Moderna a
episteme ganhou o nome de teoria do conhecimento e, com esse conceito, algumas
correntes filosóficas que postulavam a pergunta norteadora da nova ciência: como
podemos conhecer? Como é possível alcançar o verdadeiro conhecimento? Foram as
principais concepções de conhecimento, ou teoria do conhecimento que nos interes‑
sam na Pedagogia: o racionalismo; o empirismo; o criticismo kantiano; o positivismo
e as teorias consideradas emergentes.
A mudança de conceito episteme para teoria do conhecimento aconteceu porque,
entre a Antiguidade e a Idade Moderna, o mundo ocidental se tornou cristão. A nova
religião fecundou e se cristalizou durante a Idade Média. O cristianismo introduz con‑
ceitos e problemas que eram desconhecidos pelos filósofos da antiguidade clássica.
O cristianismo fez distinção entre fé e razão, verdades reveladas e
verdades racionais, matéria e espírito, corpo e alma; afirmou que
o erro e a ilusão são parte da natureza humana em decorrência
do caráter pervertido de nossa vontade, após o pecado original
(CHAUI, 2002, p. 113).

Para os gregos, que viveram muito tempo antes do advento cristão, o homem es‑
tava totalmente integrado à natureza e tinha com ela uma participação harmoniosa.
O homem estava integrado ao mundo em sua totalidade e, assim, não formulavam os
problemas que o cristianismo passou a formular. Ou seja, os antigos não fizeram as
mesmas perguntas que os gregos fizeram. Os problemas e as perguntas dos modernos
geraram outros problemas e outras perguntas com novas soluções.
Influenciados pelo modelo de pensamento cristão, os modernos continuaram no
projeto de separação. Gostamos de dizer que a “palavra de ordem” ou a palavra que
norteou todo o projeto de ciência moderna é: s-e-p-a-r-a-ç-ã-o. Eles começaram, de
saída, a separar fé e razão. Cada uma em seu devido espaço para o seu exercício. Se
a fé ficou separada da razão, surgiu daí outro problema: a alma-consciência. Vejamos
como ensina Chaui (2002, p.114): “[...] consideram que a alma-consciência, embora
diferente dos corpos, pode conhecê-los”.
Consideraram que a alma pode conhecer os corpos porque os representa intelec‑
tualmente por meio das ideias e estas são imateriais como a própria alma (CHAUI,
2002). Isto quer dizer que os modernos atribuíram à alma a função de conhecer o
mundo concreto, em sua materialidade, e formular ideias abstratas (imaterial). Isso
Platão também já dizia lá no século VI a.C. Mas qual é a diferença entre o conceito
de alma em Platão e alma para os modernos? Platão não conheceu o cristianismo, é

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O p e n s a m e n t o m o d e r n o   43

bom reforçar essa ideia. Os modernos foram fortemente influenciados pela tradição
cristã, por isso a importância, para eles, da separação entre alma e corpo.

Saiba mais
Dicas de filmes:
O nome da rosa: Em 1327 William de Baskerville (Sean Connery), um monge franciscano, e
Adso von Melk (Christian Slater), um noviço que o acompanha, chegam a um remoto mosteiro
no norte da Itália. William de Baskerville pretende participar de um conclave para decidir se a
Igreja deve doar parte de suas riquezas, mas a atenção é desviada por vários assassinatos que
acontecem no mosteiro. William de Baskerville começa a investigar o caso, que se mostra bastante
intrincando, além dos mais religiosos acreditarem que é obra do Demônio.
Em nome de Deus: Os Lares Madalena, na Irlanda, eram de responsabilidade das Irmãs da
Misericórdia, em nome da Igreja Católica. Jovens mulheres eram mandadas para lá por suas
famílias ou pelos orfanatos e, uma vez lá, ficavam confinadas e obrigadas a trabalhar na lavagem
de roupa, onde poderiam expiar seus pecados.

A Filosofia, então impregnada do modelo cristão, precisava resolver outro pro‑


blema: como a razão pode se tornar mais forte do que a vontade e evitar o erro? Como
pode conhecer a realidade de modo seguro? Como alcançar a verdade sem interferên­
cia dos pré-conceitos construídos pelas paixões e desejos presentes no sujeito?
O problema do conhecimento torna-se, portanto, crucial e a Filosofia
precisa começar pelo exame da capacidade humana de conhecer,
pelo entendimento ou sujeito do conhecimento. A teoria do conhe‑
cimento volta-se para a relação entre o pensamento e as coisas, a
consciência (interior) e a realidade (exterior), o entendimento e a
realidade; em suma, o sujeito e o objeto do conhecimento (CHAUI,
2002, p. 114).

Esses foram os principais problemas levantados pelos modernos no início do novo


modelo científico. O que hoje, para nós é muito simples, naquele período era extre‑
mamente difícil de entender e aceitar, por exemplo, o conhecimento de que a Terra
se movimenta em torno do Sol. Aprendemos isso na escola e pronto! Aprendemos
de forma teórica porque não sentimos esse movimento sob nossos pés. Imagine você
como foi a reação das pessoas quando Nicolau Copérnico (1473-1543) afirmou que
os planetas, inclusive a Terra, estavam em movimento e o Sol em repouso.
A ciência moderna, a nossa ciência, se constituiu com uma revolução de pensa‑
mento na busca da interpretação dos fenômenos naturais e a dominação da natureza.
A frase clássica desse período que “caiu” no gosto popular e até hoje é repetida é a
seguinte: “Saber é poder!”. Essa frase é de autoria de Francis Bacon e com isso estava
dizendo que o conhecimento agora dá poder ao homem para dominar a natureza e

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depois dominar o homem. Rompendo com a razão metafísica dos medievais (razão
metafísica), que buscava os princípios em modelos fora do mundo sensível, a ciência
moderna passou a ditar novos modelos de compreensão do mundo.
Foram os filósofos Galileu Galilei, Renè Descartes, Francis Bacon que inicia‑
ram a Revolução Científica, como ficou conhecido o movimento de mudança de
conhecimento dos modernos. O primeiro confirmou o movimento dos planetas em
torno do Sol e retirou a Terra do centro do universo, figurou na história como mártir,
porque, preso pela Igreja (detentora do conhecimento), foi obrigado a retirar suas
conclusões sobre o posicionamento da Terra em favor da explicação aristotélica que
fundamentava a metafísica. O segundo, Descartes, foi o tematizador da ciência mo‑
derna, considerado o “pai” do racionalismo. Bacon, da mesma forma que Descartes,
criou um método, mas a partir da experiência sensível (do mundo corpóreo); mas o
filósofo que propôs uma teoria do conhecimento foi o inglês John Locke.
Foi a partir daí que a Teoria do Conhecimento passou a ser uma área, ou tema
filosófico. O tópico seguinte irá tratar do filósofo que, talvez, seja o mais repre‑
sentativo do período moderno e para a educação, porque seu projeto filosófico de
conhecimento inspirou muitas tendências pedagógicas.
Todo conhecimento, para esses filósofos, devia estar a serviço do homem, que a
partir da revolução passa a figurar como centro da razão e a sociedade passa a ser
antropológica. Isto quer dizer que é o homem que consegue alcançar o conhecimento
(na Idade Média, a verdade era revelada e o homem não tinha todo esse poder). De
acordo com Japiassu (2001, p. 67, grifo do autor), interpretando o pensamento de
Bacon, era assim o entendimento sobre a relação homem e natureza:
Todo o conhecimento deve estar a serviço da instauração do “reino
do homem”, visando a felicidade para todos. Se quisermos utilizar
tal projeto, precisamos reconhecer as causas das leis naturais,
forçar a natureza a submeter-se ao novo poder da Razão para que
se ponha a serviço do “reino do homem”. Porque, doravante, não
podemos abrir mão da nossa condição de senhores (mestres) do
mundo: precisamos exercer nosso poder sobre as coisas a fim de
transformá-las e pô-las a nosso serviço. De posse de uma nova
magia, da magia natural fundada na técnica, temos condições
de transformar o mundo, não mais com meios absurdos, mas, à
maneira de Alexandre e Julio César, obtendo vitórias reais e con‑
quistando concretamente a superfície da terra.

Esse projeto de conhecimento surge com a mudança de modo de produção. Há


entre eles uma relação de simbiose, de dependência, porque a burguesia em ascensão
e em busca de poder econômico e político passa a se utilizar da ideia de que o co‑
nhecimento traz riqueza e poder. Essa ideia toma corpo e todas as pessoas começam
a se entusiasmar pela ideia de que a ciência moderna é a solução para todos os males
e pelo qual todo e qualquer sujeito poderia alcançar riqueza e poder. A ideologia da
ciência moderna sustentou, e muito bem, o projeto capitalista, modificando todas
as relações e costumes sociais.

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Para saber mais


Simbiose significa uma associação de dois ou mais seres de espécies diferentes, que lhes permite
viver com vantagens recíprocas e os caracteriza como um só organismo: o líquen é a simbiose
de uma alga e de um cogumelo. É uma relação de dependência um do outro.

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  Seção 2  O racionalismo
Renè Descartes dedicou seu tempo e sua obra na busca da real possibilidade de
se alcançar o verdadeiro conhecimento e, também, na fundamentação da ciência.
Todo projeto de conhecimento começa com uma pergunta que irá nortear todo o
trabalho do filósofo ou do cientista. Para Descartes a pergunta foi: como podemos
errar? Ele fez essa pergunta pois durante séculos todos acreditaram que a Terra era um
planeta fixo e o centro do Universo e, com os modernos, descobriu-se que não era
bem assim, como já dissemos. Portanto, Descarte começou por aí: por que erramos?
Ele considerava que a racionalidade é natural no sujeito. Sua obra mais conhe‑
cida é O discurso do método, onde ele registra essa ideia. Ou seja, para Descartes
o sujeito é dotado de uma racionalidade desde o seu nascimento. Daí a teoria das
ideias inatas. Mas logo ele concluiu que o sujeito erra porque faz uso da razão, da
racionalidade de forma errada. É preciso, “ensinar” a mente para que a razão possa
encontrar as ideias verdadeiras de forma clara. Claras e distintas, ou seja, de forma
separada para não serem confundidas.

Saiba mais
Você pode acessar a biblioteca digital e ler o livro citado: O discurso do método. Esse livro é
muito importante para saber por que o modelo educacional ficou durante muito tempo se
constituindo de forma fragmentada. Hoje falamos interdisciplinaridade porque durante muito
tempo ensinava-se como se o sujeito tivesse uma porção de gavetinhas onde os conhecimentos
eram introduzidos separadamente.
Acesse: <www.unopar.br/bibli01/catalogos.htm>.

Como, então “ensinar” a mente a encontrar o caminho do verdadeiro conheci‑


mento? Descartes criou um método que ficou como modelo até hoje.
A finalidade do método é precisamente pôr a razão no bom ca‑
minho, evitando assim o erro. O método, portanto, é o caminho,
um procedimento que visa garantir o sucesso de uma tentativa de
conhecimento, da elaboração de uma teoria científica. Um método
se constitui de regras e de princípios que são as diretrizes desse
procedimento (MARCONDES, 2000, p. 162).

As regras do método de Descartes se dividem em: evidência, análise, síntese,


enumeração e revisão. Cada parte desse método deverá ser seguida “à risca” para
evitar os erros da mente e, assim, alcançar o verdadeiro conhecimento cuja base
é o novo modelo de ciência. Com isso, o filósofo quer garantir a confiança na
ciência moderna.

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o pensamento moderno 47

Para saber mais


Era comum os intelectuais adotarem um nome em latim. Assim, o nome de Descartes ficou
Renatus Cartesios, em latim. Quando ele escreveu o Discurso do método, assinou com o seu
segundo nome. Por isso, o seu projeto ficou conhecido como Projeto Cartesiano e seu método
como Método Cartesiano.

Vamos entender a divisão e a finalidade do método cartesiano.


A primeira parte a ser seguida no método é a evidência: “ja‑
mais aceitar uma coisa como verdadeira que eu não soubesse ser
evidentemente como tal”.
A segunda parte é a análise: “dividir cada uma das dificuldades
que eu examinasse em tantas partes quantas possíveis e quantas
necessárias para melhor resolvê‑las”. Analisar é dividir. Eis aqui o
modelo de conhecimento fragmentado, dividido em partes que as
ciências biológicas utilizam com muita propriedade e as ciências
humanas, em especial a Educação se inspiraram na construção das
teorias e currículos educacionais.
A terceira parte: “Conduzir por ordem meus pensamentos, a
começar pelos objetos mais simples e mais fáceis de serem co‑
nhecidos, para galgar, pouco a pouco, como que por graus, até o
conhecimento dos mais complexos”.
A quarta parte: “fazer em toda parte enumerações tão completas
e revisões tão gerais que eu tivesse a certeza de nada ter omitido”
(CHALITA, 2005, p. 236, grifo do autor).

Esse é o projeto Cartesiano de conhecimento, responsável pela fragmentação


tão refutada na contemporaneidade. Mas é importante reconhecer a importância
de Descartes para o desenvolvimento científico quando ele desenvolveu o método
acima descrito. Mas esse projeto não para por aqui porque conforme já expusemos
a Filosofia sempre procura problemas que devem ser resolvidos.
Descartes construiu um método. Mas quem pode conhecer? O sujeito dotado de
razão. Somente ele e mais ninguém que consideramos “viventes” no mundo. Assim ele
desenvolveu a teoria do cogito, que em latim significa pensar. Se apenas o sujeito está
dotado da racionalidade e por isso pode pensar e conhecer, logo não se pode duvidar
dessa condição humana. Podemos duvidar de tudo o que existe. Podemos concordar
com os Céticos, que achavam ser impossível o alcance do verdadeiro conhecimento.

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Saiba mais
Os céticos representavam uma corrente filosófica que desconfiava da possibilidade plena do
conhecimento do todo. A palavra “ceticismo” está incorporada em nossa linguagem de maneira
reduzida. Dizer-se cético sobre algum tema significa não acreditar ou desconfiar da validade do
tema ou do conceito apresentado. No entanto, os céticos existem desde a antiguidade clássica
e há várias concepções de ceticismo.
Para saber mais sobre essa corrente, pode-se utilizar algum dicionário de Filosofia ou recorrer ao
site: <www.suapesquisa.com/filosofia/>.

Penso! Logo, existo.


Essa frase é muito conhecida e às vezes até banalizada, mas ela contém um sig‑
nificado tão profundo que irá nortear a concepção de sujeito no mundo Ocidental.
É a partir desse modelo que a ciência vai se constituir, a educação irá se organizar e
a sociedade irá se formar sobre os valores que esse modelo de sujeito irá sustentar.
Portanto, vamos entender o porquê dessa afirmação.
Para a utilização do método cartesiano que já vimos anteriormente, é preciso
retroceder e duvidar de tudo que existe. No entanto, para duvidar é preciso exis‑
tir. Daí a frase: penso, logo existo! Poderia ter sido assim: duvido, portanto existo.
Dessa forma, Descartes coloca a condição da existência no ato de pensar. Ele bem
que poderia ter dito assim: sinto, logo existo! Amo, logo existo! Mas não foi assim,
a condição da existência limita-se ao ato de pensar.
O que o Descartes procurava, era um fundamento sólido, uma fundamentação
consistente para o conhecimento, que, aliás, não era um conhecimento qualquer e
sim o conhecimento científico. Era o novo conhecimento desvinculado das verdades
ou da racionalidade metafísica presente na Idade Média. Esse modo de pensar influen‑
ciou profundamente o nosso modo de conhecer, de pensar e de interpretar o mundo.
É na modernidade que o caráter ou o conceito de ciência mudou. Agora, a ciên‑
cia precisa buscar bases solidadas por um método, pois, encontrando um princípio
metodológico seguro, o conhecimento será reconstruído, agora em bases sólidas.
A etapa principal na utilização desse método é a dúvida. A dúvida metódica! É
preciso duvidar de todos os conhecimentos constituídos até aqui. Mas não uma
dúvida qualquer, mas uma dúvida que gerasse outras dúvidas até que a verdade
viesse à tona. Mas seria preciso ter um começo, ou algum elemento do qual não
se pudesse duvidar. Esse elemento principal é, justamente, o pensar duvidoso que
garante a existência.
Segundo ele, é preciso esvaziar a mente de todos os conhecimentos e crenças
que não são confiáveis. Mas para saber quais são esses conhecimentos falsos, dos
quais não podemos confiar, precisa-se passar pelas seguintes etapas:

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o pensamento moderno 49

O primeiro diz respeito aos nossos sentidos que nos enganam. Além dos ob‑
jetos nos enganarem com relação a tamanho, peso etc., é preciso colocar em
dúvida nossa capacidade cognitiva para conhecê‑los;
O segundo diz respeito à nossa percepção do real enquanto estamos dormindo.
Nossos sonhos nos parecem muito reais e quando acordamos percebemos que
o real não passou de sonho. Como saber então se estou dormindo ou acordado?
Com o terceiro argumento, que deve consistir em dúvida, Descartes surpreende:
ele parte da ideia de um Deus criador que “[...] tudo pode e que me criou
como sou”. Poderia, então, acreditar na existência do céu, na Terra, e em todas
as coisas sem que isso, de fato, existisse. Portanto, ele teria sido criado na por
um Deus, mas por um gênio maligno. Nesse caso é preciso suspender todos os
juízos sobre tudo, suspeitar de tudo e preparar o espírito para as “artimanhas
de um deus enganador”.
Portanto, a dúvida é o motor do método cartesiano para se alcançar o verdadeiro
conhecimento. “A dúvida visa, portanto à certeza, sendo precisamente um critério
para se testar a validade dessa certeza” (MARCONDES, 2000, p. 167).
O pensamento de Descartes tem como contexto ou pano de fundo as grandes
transformações ocorridas na Modernidade. Várias coisas aconteceram e continuaram
a acontecer que mudaram profundamente a sociedade e a história da humanidade.
Nos séculos XVI e XVII as grandes navegações expandiram de forma considerá‑
vel o mundo. Dessa forma, o conhecimento prático dos navegadores foi reavaliado.
O sistema feudal entrou em decadência por várias razões: a peste matou número
considerável de homens que trabalhavam na terra; as guerras empreendidas pelas
Cruzadas também fizeram com que parte da população masculina fosse exterminada.
Muitos soldados e senhores feudais não retornaram suas terras porque morreram e,
dessa forma, muitos feudos ficaram abandonados.
Do caos que se constituíram todos esses elementos, outra classe começou a
emergir: a burguesia. O modo de produção começou a mudar. Era o capitalismo que
acenava com sua chegada e acabou ficando até os nossos dias.
Para um modo de produção se efetivar é preciso um novo modelo de teoria política
e um novo modelo de teoria econômica. Para isso, é preciso mudar o modo de conhe‑
cer. Nesse cenário, com todos esses fatores, os filósofos que estavam insatisfeitos com
o conhecimento, ou a racionalidade metafísica, passaram a propor um novo tipo de
conhecimento. Inaugurou‑se, portanto, no início da Idade Moderna, o conhecimento
científico. A racionalidade científica passou a determinar o conhecimento.
Descartes deixou esse legado na história da humanidade por fundamentar a pos‑
sibilidade do conhecimento científico garantido por uma verdade inquestionável. Por
isso ele adota o racionalismo como fonte segura para alcançar a verdade. A razão
natural é o ponto de partida do processo de conhecimento e criando um método
para “bem conduzir esta razão”.

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  Seção 3  O empirismo
Outra teoria de conhecimento também propôs uma forma segura de se alcançar
verdadeiro conhecimento, desvinculado da racionalidade metafísica e diferente do
racionalismo. O modelo Empírico de conhecimento parte das propriedades quantifi‑
cáveis como fonte segura do conhecimento. “O empirismo valoriza a experiência hu‑
mana, a realidade concreta, a atividade do individuo” (MARCONDES, 2000, p. 176).
Os nomes que marcaram esse modelo de conhecimento que se constituiu entre
os filósofos ingleses foram: Francis Bacon (1561-1753), Thomas Hobbes (1588-1679),
John Locke (1632-1704), George Berkeley (1685- 1753) e David Hume (1711-1776).
No entanto, o empirismo clássico — que é o que iremos tratar aqui — está repre‑
sentado por Bacon, Locke e Hume. Então, vamos conhecer o pensamento de Bacon,
que também elaborou um método para se alcançar o conhecimento. Junto com Des‑
cartes, Bacon é considerado um dos inauguradores da modernidade.
Assim como Descartes, Bacon se norteia pela ideia de encontrar o conhecimento
verdadeiro por um método que evite erros e ilusões. Vejamos o que nos ensina Mar‑
condes (2000, p. 178, grifo do autor):
Este é um dos sentidos primordiais do pensamento crítico, que
marcará fortemente a filosofia moderna, vendo a tarefa da filosofia
como a liberação do homem de preconceitos, ilusões e supersti‑
ções. É nesse contexto que encontramos sua teoria dos Ídolos. Os
ídolos são ilusões ou distorções que, segundo Bacon, “bloqueiam a
mente humana”, impedindo o verdadeiro conhecimento. Os ídolos
podem ser de quatro tipos: ídolos da tribo; ídolos da caverna; ídolos
de foro e ídolos do teatro.

Os ídolos da tribo resultam da natureza humana. Para Bacon, o homem está total‑
mente desvinculado com o universo, nada lhe é compatível. Isto significa, para ele,
que há limites do homem para o conhecimento do real. O homem, naturalmente, não
tem competência para acessar o mundo, o verdadeiro conhecimento, “[...] o intelecto
humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas
e, dessa forma, as distorce, e corrompe” (NOVUM ORGANUN apud MARCONDES,
2000, p. 178).
O ídolo da caverna é aquilo que constitui o homem em sua individualidade, suas
características físicas, as influências que recebe do meio que vão significando o seu
mundo. O sujeito é singular.
Os ídolos de foro são as relações de comunicação que o homem constitui durante
a vida. São as ideias divergentes, os discursos, as palavras que vão dando sentido à
sua vida particular.
Os ídolos do teatro são as doutrinas filosóficas e científicas que vão influenciando
o modo de agir e de pensar do homem que, para Bacon, figuram mundos fictícios e
teatrais. “Bacon examina os diferentes tipos de ídolos e desenvolvendo uma crítica
dos sistemas tradicionais filosóficos e de ciência, sobretudo o aristotélico” (MAR‑
CONDES, 2000, p. 179).

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O p e n s a m e n t o m o d e r n o   51

Para alcançar o verdadeiro conhecimento — o científico — o homem deve despir‑


-se de todos os pré-conceitos e de todo conhecimento adquirido para ter a mente
limpa e, assim, chegar à verdade. Bacon também criou uma frase que conhecemos:
“Saber é poder”! “Ele acredita na possibilidade real do progresso pela ciência, pois
[...] ao conhecer as leis que explicam o funcionamento da natureza, podemos fazer
previsões e tentar controlar os fenômenos de modo que nos seja proveitoso” (MAR‑
CONDES, 2000, p. 179).
No empirismo, o conhecimento está no objeto e nas propriedades quantificáveis:
peso, comprimento, espessura; enfim, nas propriedades que podem ser acessadas
pelos órgãos dos sentidos e, ainda, podem ser colocadas em fórmula matemática.
Ficaram de fora, desse modelo as propriedades qualificáveis, quais sejam, o belo e
o feio, o bom e o ruim. Tudo o que não pode ser quantificado, como por exemplo
a Arte e os sentimentos. Esse modelo está presente nas ciências biológicas e exatas
como método para alcançar a precisão das pesquisas.
Bacon defende a ideia de uma razão instrumental, que foi marcante na moder‑
nidade e da qual somos herdeiros. A razão passa a ser instrumento em busca do
projeto de vida burguês que o progresso. Nesse caso, o progresso significa mudança
radical de sociedade e, principalmente, de valores. Hoje esse modelo é questionado
pela filosofia contemporânea, em especial, a escola de Frankfurt, que faz uma crí‑
tica ao modelo de sociedade gerada pela razão instrumental inaugurada na idade
moderna. Outras escolas vão mais longe propondo teorias sistêmicas na superação
dessa racionalidade.
Tanto o racionalismo quanto o Eempirismo influenciaram profundamente o modelo
de educação até a contemporaneidade. Vale lembrar que o modelo de educação que
conhecemos surgiu justamente na modernidade para atender a um modelo de modo
de produção que precisava de mão de obra disciplinada para executar o trabalho nas
grandes fábricas que surgiram por toda a Europa, em especial na Inglaterra. A escola
foi revisitada e transformada para disciplinar a mente o corpo.
Outro ponto fundamental do empirismo é entender que o sujeito nasce como
um “tábula rasa” (diferente do racionalismo que defende o inatismo, as ideias são
inatas no sujeito), ou seja, nasce como uma folha em branco e as impressões das
experiências serão ali registradas durante a vida.
Toda educação tem por base um princípio norteador epistemológico e uma
concepção de sujeito. Em todo projeto pedagógico está contemplado o pressuposto
epistemológico, mesmo que não o saibamos. O modelo de conhecimento norteia
toda a nossa vida em todos os sentidos. Quando fazemos nossas escolhas, quando
adotamos uma postura diante do certo, do errado, das leis e das regras. Inclusive, as
leis e as regras que constituem nossa sociedade estão fundamentadas em um pres‑
suposto epistemológico.
Vamos entender um pouco mais imaginando nossa prática de ensino. Como gos‑
tamos de ensinar? Em uma sala com alunos comportados, dirá muitos professores,
inclusive esta que aqui coloca as ideias e os pensamentos. A nossa sala de aula ideal

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é a mesmo dos anos 1940, 1950 ou 1960: queremos silêncio, o que atualmente é
impossível, para poder ensinar bem. Porque para o professor ensinar bem é ter condi‑
ções para fazê-lo. A classe deve, portanto, se constituir em espaço propício para que
o professor fale e o aluno ouça, o professor pergunta e o aluno responde (de forma
ordenada), a sala deve ser organizada de forma linear, onde as carteiras devem ficar
organizadas possibilitando a visualização de toda classe pelo professor. O professor
é quem decide o que irá ensinar porque é ele o detentor do conhecimento. Apren‑
demos nesse modelo e deu certo! Sempre dizemos isso. Não queremos aqui levantar
disputas sobre modelos de ensino. Queremos mostrar que nesse modelo apresentado
há um pressuposto epistemológico embutido. Existe uma teoria de conhecimento
fundamentando essa prática de ensino, mesmo que o professor ou professora desco‑
nheça. Esse modelo é o empirismo. O professor considera o aluno como uma tábula
rasa, portanto o objeto, que terá que “preenchido” com o conhecimento que ele, o
“sujeito”, tem. Nada do que o aluno traz consigo é valorizado e reesignificado.

Saiba mais
Dica de filme:
Clube do imperador: O filme conta a história de um colégio interno onde um professor chamado
Hundert (Kevin Kline) forma “o Clube do Imperador” para estudar cultura greco-romana. No
clube, o mestre tenta moldar a personalidade dos alunos usando os bons exemplos dos perso-
nagens históricos.

Do projeto cartesiano, herdamos a fragmentação dos saberes na organização do


modelo pedagógico. É como se houvesse várias gavetinhas no sujeito e lá o professor
“embutisse” o conhecimento: Português, Inglês, Matemática, Química e por aí afora.
Não existe uma visão do todo, mas das partes e suas especificidades. Esse modelo de
ensino permaneceu presente no sistema de ensino durante anos — talvez séculos — e
somente nos dias atuais estamos falando e tentando construir um modelo educacional
a partir de interdisciplinaridade e, talvez até, da transdisciplinaridade.

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O p e n s a m e n t o m o d e r n o   53

  Seção 4  O mundo máquina


Nesta seção você poderá compreender como o projeto moderno ao reconfigurar
a ideia de mundo irá influenciar nos modelos e práticas educativas. O mundo do
século XVIII estava completamente mudado e muito diferente do mundo do início
da Era Moderna. A crença na superioridade da Razão, que projetava luzes — daí a
palavra iluminismo — no mundo obscurecido pela Idade Média estava se consoli‑
dando. O modelo burguês de vida também está prestes a ser definitivamente con‑
solidado, como de fato aconteceu no século seguinte, na França. O pensamento de
Isaac Newton (1643-1727) consolidou todo o movimento científico inaugurado por
Galileu, Descartes e Bacon, entre outros. O modelo de mundo máquina newtoniano
permanece até nos dias atuais.
O modelo de conhecimento empirista que entende que conhecimento só pode
ser validado se for devidamente comprovado a partir dos sentidos foi aceito pelos
filósofos franceses. Vejamos o que nos ensina Chalita (2005, p. 270):
O escritor naturalista francês Georges-Louis Leclerc Buffon (1770­
‑1788) é exemplo disso. Voltando-se para a natureza, ele concentra
a sua observação sobre os seres vivos, suas características físicas e
fisiológicas, e produz, com uma equipe de colaboradores, uma
monumental História natural, em 44 volumes. Além de classificar
o reino animal em grupos de seres semelhantes entre si — as es‑
pécies —, ele organizou essas espécies numa série contínua, rea‑
lizando um trabalho precursor da teoria da evolução das espécies.

Segundo a teoria evolucionista, todas as espécies vivas teriam um antepassado


comum e com o passar do tempo foram passando por transformações de geração
em geração. De acordo com Chalita, o cientista Jean-Baptiste de Monet postulou
essa teoria com a hipótese de que as transformações ocorridas nas espécies seriam
resultados dos hábitos adquiridos pela necessidade. À medida que os seres vivos vão
modificando os hábitos, seus corpos e configurações físicas, também, vão passando
por profundas mudanças. Como por exemplo: quando o homem primitivo descobre
o fogo e passa a utilizá-lo para se aquecer, os pelos do seu corpo vão diminuindo e
a sua estrutura corporal também se modifica em função dos hábitos adquiridos pelas
transformações geradas pelo fogo.
Charles Darwin (1809-1882), que formulou a primeira teoria científica evolucio‑
nista, postula que não são as necessidades que modificam as espécies, mas a luta
pela sobrevivência dos mais aptos num processo de seleção natural. Tais concepções
colocam em xeque a noção de Deus e a teoria criacionista registrada na Bíblia sagrada
e aceita pela maioria das, senão todas, religiões.
Nesse sentido, e apenas nesse, os iluministas retomam o pensamento aristotélico‑
-tomista que postula a constituição da natureza como materialista. Nessa tendência
de concepção de natureza materialista, figura o médico francês Julien Offroy de
Lamettie­ afirmando que até a alma é constituída pela matéria e concebe.

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[...] a realidade como uma cadeia contínua que vai da matéria


inanimada até homem [...] alia a seu materialismo um mecanicismo
de inspiração cartesiana, pois para ele a natureza não passa de uma
máquina (CHALITA, 2005, p. 271).

Essa ideia de que o universo é como uma máquina surgiu com Descartes e foi
consolidada por Newton, que postulou formação do universo por átomos e com mo‑
vimento idêntico a uma máquina, regular e previsível, fundamentada e expressa por
um racionalismo calculador e quantificador. A natureza, conforme Japiassu (2001,
p. 71, grifo do autor):
[...] passa a ser concebida como devendo obedecer a uma ordem
racional determinada por uma “filosofia experimental” impondo-se
contra todas as demais formas de saber. [...] O mundo apresenta-se
como uma espécie de sistema mecânico funcionando como uma
máquina. Aos poucos, o mecanicismo converte-se em programa
geral da ciência moderna.

A ciência moderna se instalou no contexto histórico visando a racionalização da


vida, da existência. Além disso, a burguesia ascendente necessita de um sistema de
produção que lhe permita uma exploração mais eficaz das coisas. Nesse contexto,
surge outro tipo de trabalhador: o cientista, que tem como objeto e objetivo de seu
trabalho a responsabilidade de detectar as leis
gerais da Natureza.
Saiba mais Este foi, em linhas gerais, o projeto de conhe‑
cimento instalado na Modernidade. Dentre os fi‑
Leia os livros:
lósofos iluministas, precisamos destacar Condillac
CAPRA, Fritjof. O ponto de muta- por sua importância na Educação. Étienne Bonnot
ção. Cultrix, 2004. de Condillac (1715-1780) foi leitor de J. Locke
SANTOS, Boaventura de Souza. e dele recebeu muita influência na formação de
Pela mão de Alice. Cortez, 2010. seu pensamento. Para Condillac, o conhecimento
era um conjunto de sensações transformadas na
mente do homem e fixadas pela linguagem. Assim,
ele formulou uma teoria que denominou sensualista (a partir das sensações). Para ele
vêm das sensações todas as ideias.
Agora leia com atenção o pensamento do filósofo francês Claude-Adrien Helvétius
(1715-1771), registrado em suas obras: Sobre o espírito e Sobre o homem.
Para ele, todos os homens têm a mesma “sensibilidade física” [...] e
é uma espécie de tábula rasa que sendo gravada pelo meio em que
vive desde o momento do nascimento. Por isso, ele propunha uma
educação dos indivíduos baseada no conhecimento dos mecanis‑
mos do comportamento humano e voltada para o interesse geral [...]
que seria proporcionar o máximo de felicidade a todos e o mínimo
de dor a cada indivíduo (CHALITA, 2005, p. 272, grifo do autor).

No entanto, para o pensador, seria preciso superar o cristianismo, que seria o maior
obstáculo para a apropriação desse conhecimento.

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  Seção 5 O criticismo kantiano no


movimento iluminista
Imannuel Kant (1724-1804) é um nome marcante na filosofia ocidental. Nascido
na Alemanha no século XVIII, deixou seu nome registrado na história por mudar e
superar todo o conceito de conhecimento até então. Dentre as suas obras, a que se
destaca é a Crítica da razão pura. Com essa grande obra ele questiona tanto o mé‑
todo empírico quanto o método racionalista cartesiano. Em sua obra Kant formula a
concepção de uma filosofia transcendental, ou seja, uma concepção da possibilidade
de conhecermos os objetos. Ou ainda, como o sujeito e o objeto se relacionam.
Vamos nos lembrar do que já aprendemos nesta unidade: a modernidade separa
tudo. O racionalismo de Descartes coloca toda a possibilidade de conhecer no Sujeito
e o empirismo de Locke (e outros) no Objeto. Mas Kant quer saber como acontece
essa relação e, dessa forma, ele aproxima sujeito e objeto. Para isso ele ensina assim
(vamos tentar simplificar sem banalizar): o conhecimento do objeto resulta na con‑
tribuição de duas faculdades de nossa mente — a sensibilidade e o entendimento.
Ou então vamos tentar assim, como vi um professor amigo ensinar: a nossa mente é
como um vaso vazio e transparente que à medida que vamos colocando a água esta
vai tomando a forma do vaso. A nossa mente compreende o que os sentidos apreen‑
dem. Marcondes (2000, p. 211) ensina:
A sensibilidade nos fornece os dados da experiência (o múltiplo),
a imaginação completa estes dados e os unifica, e o entendimento
lhes dá unidade conceitual, permitindo-nos pensá-los. O conheci‑
mento resulta da contribuição desses três elementos.

Diferente de Descartes, o pensar em Kant não está independente da experiência,


não é puro. A razão e a experiência é que dão unidade ao conhecimento. Um não
pode ficar desvinculado de outro. Todos os nossos conhecimentos começam com
a experiência, mas o sujeito possui as faculdades que possibilitam a identificação
dos objetos. É essa possibilidade de conhecer que irá determinar a experiência e
o conhecimento e uma dessas faculdades é a sensibilidade, conforme explicamos
anteriormente. Vejamos como Chalita (2005, p. 20, grifo do autor) explica o pensa‑
mento kantiano.
O processo de conhecer o mundo, para Kant, é mais ou menos como
fotografar uma festa animada, com muita música e dança. As fotos
registram apenas aquilo que a câmera é capaz de captar: imagens
congeladas, sem sonoridade nem movimentação. Nessa analogia,
a festa representa a “coisa em si”, o número; a máquina fotográfica
é o sujeito com suas formas, seu aparelho próprio de conhecer; a
imagem corresponde à “coisa para nós”, o fenômeno, aquilo que
aparece para nós; e a foto constitui a experiência possível, a repre‑
sentação do fenômeno.

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Com essa forma de compreender a possibilidade de conhecimento, Kant está


fazendo uma crítica severa à racionalidade metafísica que postulou a possibilidade
de conhecer “o ser enquanto ser”. As “coisas em si”.
De todos os filósofos iluministas, consideramos Kant o mais intrigante, senão
interessante. Senão vejamos: Kant considerou que a pretensão de conhecer aquilo
que ultrapassa a experiência possível — como queriam os metafísicos — não torna
esse exercício ilegítimo. O homem não consegue provar aquilo que nos é estranho e
inatingível pelas sensações, como, por exemplo, a existência de Deus, da alma, da
infinitude do universo. Quando a razão tenta fazer isso, sempre irá encontrar juízos
que se contradizem em tese e antítese sem que haja falhas lógicas de raciocínio.
Enfim, aqueles que querem provar a existência de Deus sempre irão encontrar teses
legitimadas pela razão que os contradigam. Por outro lado, aquele que quer provar a
não existência de Deus também encontra essas teses que refutam tal posição. Mesmo
assim, ele não descarta essas questões da esfera da filosofia porque o homem sempre
irá querer saber de onde vem e para onde vai. São questões inerentes ao ser humano
e à própria razão.

Questões para reflexão


Para Kant, não podemos conhecer o mundo como ele é em si. O que é que
podemos conhecer?

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O p e n s a m e n t o m o d e r n o   57

  Seção 6  O positivismo
O pensamento positivista fundamenta-se no modelo científico moderno, na orga‑
nização técnica e industrial da sociedade moderna considerando o método científico
o único caminho válido para o conhecimento. O positivismo postula a legitimidade
da ciência moderna para a organização da sociedade.
Inaugurada por Auguste Comte e, embora se constitua como uma corrente de
pensamento filosófico, foi apropriada pelos socialistas utópicos em 1830. Já no final
do século XIX, sua mentalidade, a positivista, constitui a terceira e definitiva men‑
talidade em relação às outras (teológica/mitológica e metafísica). Para Comte, a hu‑
manidade passou por duas formas de pensamentos ou duas mentalidades formadoras
da cultura ocidental: o período teológico/mitológico (Idade Clássica) e o metafísico
(Idade Média). No entanto, seria preciso, pela ciência fazer com que a humanidade
fosse guiada pelo positivismo.
O modelo positivista tem sua inspiração no empirismo inglês e no sucesso dos
avanços das ciências experimentais como a química e a biologia.
O surgimento dos primeiros argumentos evolucionistas e o de‑
senvolvimento das ciências sociais, baseadas na observação dos
fatos, conduziram à classificação de determinadas estruturas, que
antes eram consideradas naturais, como circunstâncias culturais.
Ou seja, passa-se a explicar todos os componentes da realidade
cultural a partir de um método próprio das ciências naturais. Temos
assim o domínio da chamada relação da causalidade (CHALITA,
2005, p. 338).

Essa ideia significa que o positivismo postula que tudo o que acontece tem uma
causa. Dessa forma, o cientista aplicando esse princípio espera a repetição do fenô‑
meno. O ositivismo se apropria dos princípios da ciência experimental, ou empírica,
para compreender e organizar a sociedade.
O estado positivo é o coroamento do modelo científico moderno, a consoli‑
dação da concepção mecanicista de universo e o reforço da teoria empirista de
conhecimento.

Links
Acesse:
<www.mundodosfilosofos.com.br/comte.htm#ixzz1fF6YZqzw>.
No site indicado, você terá mais informações sobre o tema tratado e indicações de outros textos
e links para aprender mais.

A sociedade tem por objetivo privilegiar o espaço para a formação da mentali‑


dade positivista. O conhecimento tem como finalidade atingir a maturidade e formar
homens com espírito e mente positiva. Em sua obra Discurso, de 1844, Comte or‑

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ganizou (para o positivismo o conceito de organização remete à ideia de divisão) a


noção de positivo. Para ele positivo quer dizer real, útil, certo, preciso (de precisão
matemática, contrário de vago), construtivo e relativo.
Augusto Comte elaborou uma noção de infância que pode ser compreendida na
ideia da Lei dos Três Estados: o teológico, metafísico e o positivo, que demonstram
em sua caminhada o movimento progressivo da humanidade. Essa Lei indica que
cada uma das nossas concepções ou cada área dos nossos conhecimentos passa por
esses três estados. O ponto de partida, fundamental para o desenvolvimento da inte‑
ligência, da racionalidade humana, está no estado teológico, mítico ou fantasioso. A
esse estado (de fantasia) segue-se o estado de transição, que é o metafísico, em que a
humanidade desenvolve a racionalidade abstrata, ou um período de pura abstração.
A racionalidade desenvolvida e formadora da mentalidade, durante o grande período
da Idade Média, não busca um conhecimento objetivo, ativo, útil (positivo), mas per‑
manece norteada pela mentalidade ou noção de verdade revelada. O estado positivo
se constituíra, para Comte, num estado fixo e definitivo. Esses estados (teológico,
metafísico e positivo) exigem diferentes métodos de investigação por se tratar de três
interpretações diferentes da realidade ou do conjunto de fenômenos que se apresen‑
tam no mundo real. Cada um desses estados (ou estágios) tem o papel de nortear ou
dar o fio condutor na organização social, no conjunto de saberes — cultura, política,
valores — da humanidade. Em especial da cultura ocidental.
Comte ainda continua ensinando que cada um dos estados do desenvolvimento
da mentalidade humana apresenta características particulares, conforme já foi ex‑
plicado anteriormente e aqui reforçamos: no estado teológico o ser humano busca
conhecer a natureza íntima dos seres em seus nexos causais (causas primeiras e
finais dos fenômenos naturais), para obter conhecimentos absolutos e alcançar os
agentes sobrenaturais. Esse modo de interpretar o real se fundamenta na crença de
que as forças sobrenaturais influenciam os eventos que cercam a vida dos homens.
Nesse caso, esse período é visto pelos olhos de Comte como o período infantil
da humanidade. Sendo a fase do mundo do faz-de-conta da criança, o filósofo
compara-a à fase da humanidade em que o homem não pensava, ou não se utili‑
zava de uma racionalidade madura para a compreensão do real e, portanto, vivia
segundo uma explicação infantil.
No estado metafísico, o homem busca as forças abstratas. Veja que aqui o ho‑
mem da história já não se utiliza de elementos sobrenaturais e fantasiosos para a
explicação do real, mas tenta se utilizar de uma racionalidade que opera de forma
abstrata. No entando, ainda não representa um desenvolvimento satisfatório porque
busca as forças abstratas personificadas capazes de engendrar todos os fenômenos
por si mesmas e que são apreendidas pela racionalidade humana. É tudo o que o
estado positivo despreza. Isto é, no estado metafísico, há entidades fora do mundo
concreto e objetivado que “orquestram” o mundo natural.
No estado positivo, apresenta-se a vocação do homem em renunciar a busca
das noções absolutas, as causas íntimas, origens e destino das coisas, vindo corrigir

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a anarquia especulativa ou os exercícios fáceis do espírito humano, que precisa de


uma base objetiva para entender e organizar o seu mundo.
Dessa forma, os homens no estado positivo se sentem estimulados a conhecer
os fenômenos pela descoberta das leis universais que organizam o mundo e a si
mesmo. Esse conhecimento é possivel pelo raciocínio e pela observação. Podemos
entender que o conhecimento verdadeiro, para o positivismo, é aquele constituído
pela observação e experimentação, próprio da ciência moderna.
Ainda no sentido de compreender a noção de infância, em Comte, podemos
partir da ideia de que para ele o processo de maturação da humanidade mostra uma
preponderância do coração sobre o espírito (mente), considerando que o sentimento
sociocêntrico vai ganhando maior expressão prevalecendo gradativamente sobre o
egocêntrico. Mas o espírito não pode se tornar escravo do coração.
Mesmo em estado de contemplação e mantendo a atividade intelectual desvin‑
culada do social, o espírito se apresenta comprometido com o egoísmo, a vaidade e
o orgulho. Comte entende que esses sentimentos já estão arraigados no ser humano
e é fortalecido pela mentalidade que cultua a abstração pura, própria da racionali‑
dade metafísica. Esses instintos, no entanto, devem ser podados ou redefinidos pela
educação, que tem por objetivo final a ampliação do altruísmo (em contraste com
o egoísmo) nas relações morais, intelectuais e nas práticas sociais humanas. Para o
positivismo, a educação precisa preservar a sua vocação de formadora moral.
A compreensão é no sentido de que os seres humanos, no princípio, têm a ten‑
dência para o sentimento egoísta, mas apresentam uma disposição para o amor uni‑
versal. Cabe à educação promover a ampliação desse aspecto ou dimensão humana.
Assim, o espírito humano precisa investigar as questões do coração. De acordo
com Comte (2005, p. 82): “[...] o verdadeiro amor demanda sempre ser esclarecido
sobre os meios reais de atingir o fim que persegue. O reino do verdadeiro sentimento
deve ser habitualmente favorável tanto à sã razao quanto à sábia atividade”.
Para ele, o mundo objetivo (concreto) nos oferece a compreensão de fenômenos
que ocorrem independentemente de nós e que regem a humanidade pelas suas leis
invariáveis, e que podem ser por nós compreendidos, permitindo disciplinar os sen‑
timentos contraditórios. Trata-se de colocar a razão como disciplinadora dos instintos
e sentimentos egoístas.
Para que a filosofia positiva se efetive de forma universal (em todos os lugares e
tempo) em uma trajetória traçada na busca da maturidade humana, é de fundamental
importância uma consolidação do modelo científico e da formulação de uma clas‑
sificação das ciências. Essa concepção — classificação científica — remete à ideia
de uma ordem enciclopédica das ciências, em que o positivismo irá determinar um
conjunto organizado e homogênio de ideias e de conhecimentos que foram produ‑
zidos pela humanidade.
Nessa classificação, o homem deverá desenvolver o seu entendimento sobre os
fenômenos naturais por esses conhecimentos enciclopédicos a partir dos 14 anos de

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idade. Antes disso, o homem não está preparado em suas funções intelectuais para
a apreensão desse conjunto de conhecimentos científicos.
A educação positiva opera por ações das mães, pensando que no estado positivo
as mulheres se ocupam da educação física, moral e estética durante a formação in‑
fantil. É na infância e sob os cuidados da mãe — mulher com os conceitos positivos
introjetados — que devem ensinar a cuidar do corpo, os costumes e regras morais da
sociedade (positiva), a apreciação do belo e o desenvolvimento da criatividade que
acontecem durante o estágio latente e na primeira infância. Na adolescência, o ho‑
mem já pode dar início aos conhecimentos cientificistas e organizados positivamente.
Entre 14 e 21 anos de idade, o adolescente deveria receber uma educação siste‑
mática (organizada), não mais ministrada pela mãe no domicílio, mas por sacerdotes
positivistas em uma escola anexa ao templo, onde se estudaria o conjunto das sete
ciências: matemática, astronomia, física, química,
biologia, sociologia e moral. Essa organização
Para saber mais curricular obedece a uma ordem hierárquica, da
ciência mais importante a menos importente. Ao
O modelo de organização hierár- longo dessas etapas o aluno reproduziria os está‑
quica dos conhecimentos está re- gios de evolução intelectual da humanidade até
presentado por uma pirâmide. Na atingir o estágio positivo de maturidade intelec‑
base da pirâmide está a matemá- tual para uma interpretação racional da realidade
tica, seguida da astronomia, física, e organização social.
química, biologia e sociologia. Por- A educação é a base fundamental sob a qual
tanto, a área de conhecimento se assenta a formação do indivíduo que, em sua
mais importante é a matemática e marcha ascendente de desenvolvimento, é in‑
depois as outras. corporado à humanidade. Essas propostas são
as metas do positivismo para a reorganização da
humanidade.
O positivismo se apresenta, dessa forma, como uma doutrina fundamentada na
fixidez (fixo) de ideias na garantia de uma comunhão dos seus princípios por toda
a humanidade. Essa filosofia positivista possibilita a descoberta racional das leis do
espírito humano.
E assim podemos compreender que o pensamento positivista de Augusto Comte
tem uma vocação pedagógica porque é na educação que o homem se desenvolve
para alcançar uma consciência positiva que conduza a sociedade ao estado positivo.
A Filosofia positivista influenciou de forma significativa a educação brasileira,
principalmente durante a primeira República. Comte foi insperado na construção
de seu pensamento, por acreditar que a sociedade norteada pelos ideais sociais e
burgueses modernos seria marcada pelo anarquismo, resultado do fim da unidade
espiritual após a separação entre Estado e Igreja.
Essa separação seria um acelerador de degradações que somente uma educa‑
ção, nos moldes positivistas, seria capaz de promover uma aprimoramento social e
humano. Embora ele nunca tivesse escrito uma obra, especificamente pedagógica,

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as pistas para essa intencionsalidade se encontram no conjunto de sua obra em frag‑


mentos de pensamentos nela publicados.
Em sua obra, encontram-se várias tentativas de explicar a sociedade e o mundo
aos homens por um programa de educação científica e enciclopédica onde ele propõe
a uitlização de uma educação a partir de um filtro (para eliminar impurezas) onde
seriam eliminadas as influências metafísicas de todo o conhecimento científico. O
conhecimento sistematizado no âmbito escolar deve privilegiar tão somente as ba‑
ses racionais e científicas. A sociedade, portanto, seria governada por uma elite de
técnicos e cientistas.
Tempos depois, influenciado por sua grande paixão e amor, Clotilde de Vaux,
Comte fundou uma religião fundamentada no amor com a intenção de atrair para o
positivismo as mulheres e os proletários.
O mérito do positivismo se encontram na propaganda de um modelo positivista
da ciência experimental. Ou seja, o positivismo imprimiu o aspecto positivista na
experiência. A sua contribuição, além disso, foi a adoção de um método científico
como base para organização política da sociedade industrial. O positivismo é, por‑
tanto, fruto da revolução burguesa e da hegemonia capitalista. Com ele, as ciências
empiricas (experimentais) passaram a tomar frente às especulações filosóficas essen‑
cialmente idealistas.
O objetivo de Comte era promover uma refor‑
mulação do quadro social afogado nos conflitos ge‑
rados das novas relações de trabalho do capitalismo
Para saber mais
industrial. É importante assinalar que Comte rejeita No Brasil, o positivismo encontrou
de forma radical o pensamento de Marx e qualquer adeptos e influenciou a formação
tipo de proposta de eliminação da propriedade. As‑ do ideal republicano a partir da se-
sim, ele faz uma consagração à propriedade privada gunda metade do século XIX. É
como resultado da ordem social. possivel perceber em nossa pri-
O que apresentamos neste espaço foram as meira constituição republicana de
mudanças que ocorreram no campo das teorias 1891, dispositivos de evidente ori-
de conhecimento. Assim, pudemos perceber que gem positivista. A marca mais visí-
não há UMA teoria que represente a verdade ab‑ vel dessa influência podemos notar
soluta. Aliás, podemos recordar aqui o caráter ou em nossa bandeira nacional, que
característica da filosofia é justamente seu espírito estampa um lema de inspiração
crítico e é esse espírito que promove mudanças e
positivista: “Ordem e progresso”.
rupturas científicas.
Passar dos modelos racionalistas e empiris‑
tas para o construtivismo representou, no mundo científico, uma grande revolução
epistemológica. Mas por que acontecem essas mudanças nos modelos científicos? A
consolidação da ideia de que o conhecimento científico e a sociedade “evoluem e
progridem” de forma linear e em movimento ascendente. Ou, evolução e progresso
são conceitos compreendidos em uma perspectiva mecanicista que não compreende
outros movimentos, por exemplo, o circular ou o retroativo. Progredir, no imaginá‑

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rio popular, significa inclusive alcançar uma ascenssão social sustentada por uma
aquisição financeira mais representativa. O modelo científico moderno introjetou na
sociedade essa ideias. Nesse sentido, o tempo está representado de forma relojoeira:
de forma contínua e com um acúmulo das fases que ao final promove um “aperfeiçoa­
mento” em todos os seres vivos. Reinvidaremos o pensamento de Chaui (2002, p. 256):
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente
em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim,
os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índis,
a física galilaico-newtoniana seria superior à aristotélica, a física
quântica seria superior à de Galileu e de Newton.

Assim, o que ficou registrado em nosso imaginário foi a ideia de que evoluir é se
tornar “superior” e progredir é ir sempre em direção a uma finalidade superior. Assim,
nos empenhamos em buscar uma formação melhor e, de preferência, que tenha uma
representação social mais valorizada, queremos sempre um modelo de transporte
superior ao que utilizamos. Por exemplo: deixamos de caminhar quando compramos
uma bicicleta que abandonamos por uma motocicleta que é abandonada por um carro
que será abandonado por outro mais potente e assim por diante. Mas agora a ciência
nos alerta: caminhar faz bem à saúde! Os engenheiros de trânsito avisam: não há
espaço para tanto carro e é preciso retomar a velha bicicleta há muito encostada e,
mais, utilizar o velho mecanismo corporal mais conhecido como PERNAS para ir e vir.
A ideia de evolução e progresso está representada pelo modelo científico vigente,
de forma linear e mesmo na história estão refletidos o pensamento e método utilizados
nas ciências biológicas:
O germe, a semente ou a larva são entre que contêm neles mes‑
mos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o futuro já está contido
no ponto inicial de um ser cuja história ou tempo nada mais é do
que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era
potencialmente (CHAUI, 2002, p. 256).

Esse modelo de ciência influenciou a ideologia (que veremos em unidade poste‑


rior) presente nos países hegemônicos. Essa ideologia está plenamente cristalizada
no ideário brasileiro. Sempre consideram os “países” do “primeiro mundo” melhores
porque lá eles conseguiram alcançar a finalidade a que estavam destinados desde
que surgiram. Com relação ao nosso país e outros também não tão desenvolvidos
também contemplam o mesmo princípio, mas irá alcançar o devido progresso a que
se destina no devido tempo. Chaui (2002) explica que as expressões desenvovlvidas
e subdesenvolvidas substituíram outras formas de expressar e designar que foram
consideradas pejorativas como: países adiantados e atrasados, evoluídos e não evo‑
luídos, com progresso e sem progresso.
Enfim, essa ideia se fundamenta na concepção de tempo em um continuum cres‑
cente. Essa ideia foi disseminada com muita eficiência e de forma camuflada por
países que se consideram os melhores porque são mais evoluídos, em personagens
como o Super-Homem, o herói americano. O Supe-Homem, no início da carreira
heroica, tinha um mote que era: Avante para o alto!

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Nesse filme você poderá ver a ideia de um ideal de sujeito “melhorado” para uma
sociedade organizada dentro dos princípios de evolução e progresso.
No entanto, essa ideia de progresso e evolução a partir de um contínuo ascendente
caiu por terra quando a filosofia da ciência compreendeu que as ideias científicas
contemplam diferenças e descontínuos. Essa é a grande revolução das ciências a
partir do século passado, do século XX.
De acordo com Chaui (2002), ao comparar, por exemplo, os pressupostos da
geometria clássica — espaço plano — e a contemporânea — que opera com espaço
tridimensional, percebe-se que são duas geometrias com princípios, objetos, concei‑
tos e demonstrações diferentes e não partícipes de um processo de evolução sucessiva.
Dessa forma, compreendeu-se que há uma “descontinuidade” representada por
diferentes estágios de tempo entre as teorias científicas. O que está contida nessa
ideia é a refutação da ideia de evolução. Essas teo­
rias são consequência de mudanças conceituais.
Por isso acontecem as rupturas epistemológicas
(expressão criada pelo filósofo Gaston Bachelar). Para saber mais
Aqui você deve estar se perguntando: por que É preciso retomar o conceito de
temos que estudar isso? E respondemos: porque a
epistemologia.
Pedagogia, que reivindica para si o estatuto cien‑
tífico, é a ciência que sistematiza o conhecimento Esta palavra é composta de dois
científico. Portanto, não há ensino desprovido de termos gregos: episteme, que sig-
um pressuposto epistemológico. Como vemos, o nifica ciência, e logia, vinda de lo-
nosso sujeito que aprende depende do modelo de gos, significa conhecimento.
conhecimento no qual estamos inseridos. Epistemologia é o conhecimento
Mas voltando à nossa “ruptura epistemoló‑ filosófico sobre as ciências.
gica”. Foi durante o século passado, portanto o
século XX, que ocorreu uma nova ruptura a partir
da percepção dessa descontinuidade do tempo e do espaço. Isso foi percebido pelo
cientista Einstein, entre outros. Os físicos deram o nome de física quântica para
expressar o modelo físico que postula a não linearidade dos fenômenos incluindo o
tempo e o espaço.
É nesse postulado que surgiram outras teorias que são conhecidas como emer‑
gentes, mas existem outros nomes: holística, sistêmica e complexa. Cada uma repre‑
sentada por um arcabouço teórico de diferentes teóricos. Quem criou a expressão
teoria emergente foi o filósofo Boaventura de Sousa Santos.

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Aprofundando o conhecimento
O texto escolhido para a próxima leitura é de um filósofo que representou
de forma significativa a ciência inaugurada na Idade Moderna: Thomas Hume.
Assim, apresentamos um pequeno trecho de uma de suas obras. O ensaio sobre
o entendimento humano (HUME, s.d.) é o desenvolvimento de uma teoria de
conhecimento que influenciou de forma fundamental o pensamento de Kant e
com este houve uma “virada” epistemológica. Ou seja, houve uma virada na
forma de compreensão do conhecimento. Na Idade Moderna, o grande dilema
foi a busca de compreensão sobre o conhecimento. A pergunta norteadora de
todo o pensamento ocidental foi: como conhecemos?
Aproveite a leitura e aprenda mais!

Ensaio sobre o entendimento humano


SEÇÃO I
DAS DIFERENTES CLASSES DE FILOSOFIA

SEÇÃO II

DA ORIGEM DAS IDEIAS


Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as percepções
do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor mode-
rado, e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de
sua imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, porém
nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo
que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, é que representam
seu objeto de um modo tão vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos.
Mas, a menos que o espírito esteja perturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal
grau de vivacidade que não seja possível discernir as percepções dos objetos. Todas as cores
da poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que
se tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sen-
sação mais embaçada. Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras
percepções do espírito. Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneira
muito diferente da de um outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeis que
certa pessoa está amando, compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma
concepção precisa de sua situação, porém nunca posso confundir esta ideia com as desor-
dens e as agitações reais da paixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões

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passadas, nosso pensamento é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém
as cores que emprega são fracas e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam
nossas percepções originais. Não énecessário possuir discernimento sutil nem predisposição
metafísica para assinalar a diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir
todas as percepções do espírito em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus
diferentes graus de força e de vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente
denominadas pensamentos ou ideias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma
e na maioria dos outros, porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário
compreendê-las sob um termo ou nomenclatura geral. Deixe-nos, por tanto, usar um pouco
de liberdade e denominá-las impressões, empre gando esta palavra num sentido de algum
modo diferente do usual. Pelo termo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções
mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou que remos.
E as impressões diferenciam-se das ideias, que são as percepções menos vivas, das quais
temos consciência, quando refletimos sobre quais quer das sensações ou dos movimentos
acima mencionados. A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento
humano, que não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também
nem sempre é reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e
juntar formas e aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que
conceber os objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num
só planeta, sobre o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode
transportar-nos num instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do
Universo, para o caos indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total
confusão. Pode-se conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que
esteja fora do poder do pensamento, exceto o que implica absoluta contradição. Entretanto,
embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada, verificaremos, através
de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro de limites muito
reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de combinar, de
transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos sentidos e
pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas ideias
compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um cavalo
virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude e
podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em resumo,
todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas; mas
a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para expres-
sar-me em linguagem filosófica: todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias
de nossas impressões ou percepções mais vivas. Para prová-lo, espero que serão suficientes
os dois argumentos seguintes. Primeiro, se analisamos nossos pensamentos ou ideias, por
mais compostos ou sublimes que sejam, sempre verificamos que se reduzem a ideias tão
simples como eram as cópias de sensações precedentes. Mesmo as ideias que, à primeira
vista, parecem mais dis tantes desta origem mostram-se, sob um escrutínio minucioso,
derivadas dela. A ideia de Deus, significando o Ser infinitamente inteligente, sábio e bom,
nasce da reflexão sobre as operações de nosso próprio espírito, quando aumentamos in-
definidamente as qualidades de bondade e de sabedoria. Podemos continuar esta investi-
gação até a extensão que quisermos, e acharemos sempre que cada ideia que examinamos

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é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que dizem que esta afirmação não é uni-
versalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um método, e em verdade fácil,
para refutá-la: mostrar uma ideia que, em sua opinião, não deriva desta fonte. Incumbir-
-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a impressão ou percep-
ção mais viva que lhe corresponde. Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive
uma pessoa de uma classe de sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para
formar ideias correspondentes. Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um
surdo dos sons. Restaurai a um deles um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as por-
tas às sensações, pos sibilitais também a entrada das ideias, e a pessoa não terá mais difi-
culdade para conceber aqueles objetos. O mesmo fenômeno ocorre quando o objeto
apropriado para estimular qualquer sensação nunca foi aplicado ao órgão do sentido. Um
lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma noção do sabor do vinho. Apesar de
haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência no espírito, em que uma pessoa
nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um sentimento ou paixão próprios de
sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação ocorre em menor grau. Um
homem de modos brandos não pode formar uma ideia de vingança ou de crueldade obs-
tinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os ápices da amizade e da ge-
nerosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir muitos sentidos dos
quais não temos noção, porque as ideias destes sentidos nunca nos foram apresentadas
pela única maneira por que uma ideia pode ter acesso ao espírito, isto é, mediante o sen-
timento e a sensação reais. Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar
que não é absolutamente impossível que as ideias nasçam independentes de suas impres-
sões correspondentes. Acredito que se concordaria facilmente que as várias ideias de cores
diferentes que penetram pelos olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são
real­mente diferentes umas das outras, embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é
verdadeiro a respeito das diferentes cores, deve sê-lo igualmente para os diversos matizes
da mesma cor; e cada matiz produz uma ideia diversa, independente das outras. Pois, se
se negasse isto, seria possível, por contínua gradação dos matizes, passar insensivelmente
de uma cor a outra completamente distante de série; se vós não admitis a distinção entre
os intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a identidade dos extremos. Suponde,
então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante trinta anos e se tornou perfei-
tamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto com um matiz particular do
azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos os diferentes matizes daquela
cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo gradualmente do mais
escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta este matiz, terá o
sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores contíguas, mais
do que em qualquer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua imaginação,
preencher este vazio e dar nascimento à ideia deste matiz particular que, todavia, seus
sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não
pode; e isto pode servir de prova que as ideias simples nem sempre derivam das impres-
sões correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não
merece que, unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral. Eis, portanto, uma
proposição que não apenas parece simples e inteligível em si mesma, mas que, se se fizer
dela o uso apropriado, pode tornar toda discussão igualmente inteligível e eliminar todo

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O p e n s a m e n t o m o d e r n o   67

jargão, que há muito tempo se apossou dos raciocínios metafísicos e os desacreditou. Todas
as ideias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e obscuras; o espírito tem
sobre elas um escasso controle; elas são apropriadas para serem confundidas com outras
ideias semelhantes, e somos levados a imaginar que uma ideia determinada está aí anexada
se, o que ocorre com frequência, empregamos qualquer termo sem lhe dar significado
exato. Pelo contrário, todas as impressões, isto é, todas as sensações, externas ou internas,
são fortes e vivas; seus limites são determinados com mais exatidão e não é tão fácil confundi-
-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo
empregado sem nenhum significado ou ideia — o que é muito frequente — devemos
apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta ideia? E, se for, impossível
designar uma, isto servirá para confirmar nossa suspeita. E razoável, portanto, esperar que,
ao trazer as ideias a uma luz tão clara, removeremos toda discussão que pode surgir sobre
sua natureza e realidade. [...]

Hume queria saber: como conhecemos? Como recordamos? Qual é a diferenção


entre sensações e razão? Aprendemos primeiro com as experiências ou somente com
a razão? Estes foram os pontos de partida que nortearam toda a pesquisa e toda a
obra desse grande filósofo.
Você quer saber mais? Então já sabe: <www.dominiopublico.org.br>.

Resumo
Nesta unidade você aprendeu sobre as teorias epistemológicas. Foram mui‑
tas que ainda são estudadas. Todas influenciaram nossa cultura, nossa visão de
mundo, de homem e de sociedade. Todas fazem parte, indiretamente, de nossas
práticas profissionais.
Assim, acreditamos que com esta unidade tenhamos contribuído de forma
significativa com a formação de todos que se dispuseram a ler este livro didático
que foi escrito para você.

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Atividades de aprendizagem
1. Qual foi a importância da Idade Moderna para o nosso mundo contemporâneo?
2. Qual é a teoria que fundamenta a sua prática profissional?
3. O que significou o criticismo kantiano?
4. O que significa o termo ruptura epistemológica?
5. O que é ciência e quais são as suas características?
6. Qual é a relação entre conhecimento e formação humana?

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Unidade 3
Cultura e
ideologia
Giane Albiazzetti
Okçana Battini

As condições gerais de vida das pessoas são


ordenadas hegemonicamente enquanto forma
social e destino coletivo pelas disposições par-
ticulares dos poderes estabelecidos.
Marshall Sahlins (Ilhas de História)

Objetivos de aprendizagem: Nesta unidade você será levado a com-


preender o processo de surgimento do modo de produção capitalista
e seu rebatimento na formação da cultura e da sociedade. Nesse
sentido, descobrirá que existe uma relação direta entre a forma como
a cultura é produzida e sua relação com a ideologia capitalista, no
sentido da configuração dos sujeitos e de suas atividades cotidianas.

Seção 1: Ideologia e cultura: uma relação


indissociável e espaço de contradição
Nesta seção discutiremos como a ideologia pode ser
vista como um processo inerente ao modo de pro-
dução capitalista, sendo necessário compreender seu
processo de contradição.

Seção 2: O surgimento do modo de produção


capitalista e a formação da nossa
sociedade
Nesta seção levantaremos as principais características
do modo de produção capitalista e sua relação com
a formação cultural da sociedade e do ser humano.

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Introdução ao estudo
Pensar nas relações culturais existentes em nossa sociedade muitas vezes nos
deixa perplexos, visto que nos deparamos com um emaranhado de fenômenos que
nos colocam em xeque: Como é possível existir uma enormidade de padrões cultu‑
rais em uma mesma sociedade? Como sujeitos de grupos distintos podem viver em
sociedade, de forma coletiva? E se pensarmos em uma sala de aula: quantos alunos,
quantas histórias de vida, quantas experiências... Nesse momento realmente a única
certeza que existe é que somos diferentes culturalmente! E saber dessa diferença
muitas vezes assusta ou nos faz procurar saber mais sobre ela. E para traçar este
caminho, convido vocês a seguirem comigo pela fascinante estrada, produzida pelo
homem, que ao transformar a natureza a seu favor criou símbolos e signos que nos
auxiliam a viver hoje em dia.

  Seção 1 Ideologia e cultura: uma relação


indissociável e espaço de
contradição
O termo cultura se destaca no campo das ciências humanas como um dos mais
plurais, assim como o termo ideologia. Seus significados assumem as mais diversas
interpretações, o que gera muitas vezes uma ambiguidade e esvaziamento do con‑
ceito, pois ao passo que é utilizado para “explicar quase tudo” perde seu contexto
científico de especificidade e precisão metodológica.
Uma primeira leitura do termo ideologia surge em 1801, através do trabalho de Destutt
de Tracy, intitulado Elementos de ideologia, que propunha a elaboração de uma ciência
da gênese das ideias, sendo que essas ideias seriam fenômenos naturais, produtos
da interação entre o organismo vivo e o meio ambiente. Esse tratado visa elaborar
uma teoria sobre a relação dos sentidos dos homens com o meio ambiente, sendo
que dessa relação resultariam um conjunto de ideias.
Mas foi com Marx que a questão da ideologia passa a ter uma nova leitura, visto
que ele busca compreender que as ideologias não são apenas conjuntos de ideias de
um determinado momento histórico, mas uma forma de fetichizar as relações sociais
existentes. Marx busca em sua análise compreender a estrutura do capitalismo para
detectar as fontes e as origens das ideias que fornecer sustentação a sociedade. Ou
seja, a produção das ideias para Marx está fundamentalmente baseada na materialidade
social, no modo como vivem os homens. Nesse sentido as origens da ideologia estão
no próprio modo de organização da vida material de uma determinada época histórica.
A produção das ideias, das representações e da consciência está,
a princípio, direta e intimamente ligada à atividade material e ao
comércio material dos homens; ela é a linguagem da vida real. As
representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   71

aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu comporta‑


mento material. O mesmo acontece com a produção intelectual
tal como se apresenta na linguagem da política, na das leis, da
moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo. São os
homens que produzem suas representações, suas ideias etc., mas
os homens reais, atuantes, tais como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das re‑
lações que a elas correspondem, inclusive as mais amplas formas
que estas podem tomar. A consciência nunca pode ser mais que o
ser consciente; e o ser dos homens é o seu processo de vida real
(MARX; ENGELS, 2001, p. 18) .

Essa relação pode ser vista como uma relação pautada na divisão entre os sujeitos
sociais, oriundas de práticas históricas, sendo que Marx observou que a sociedade
nasce pela estruturação de um conjunto de divisões: divisão sexual do trabalho, divi‑
são social do trabalho, divisão social das trocas, divisão social das riquezas, divisão
social do poder econômico, divisão social do poder militar, divisão social do poder
religioso e divisão social do poder político. Por que divisão: porque em todas as
instituições sociais (família, trabalho, comércio, guerra, religião, política) uma parte
detém poder, riqueza, bens, armas, ideias e saberes, terras, trabalhadores, poder po‑
lítico, enquanto outra parte não possui nada disso, estando subjugada à outra, rica,
poderosa e instruída (CHAUI, 1995).
Notamos que esses conjuntos de divisões têm se tornado cada vez mais amplos e
complexos, multiplicando-se em muitas outras divisões sob forma de instituições. Elas
desenvolvem o que conhecemos como nossas estruturas sociais, sendo essas estruturas
fundadas na divisão de classes sociais. Marx e Engels (2001) chamam essa divisão de
condições materiais de existência, uma vez que se referem às práticas sociais que os
homens realizam por meio do trabalho e esse trabalho é o que garante nossa existência.
Segundo Marx e Engels (2001), existem variações dessas condições materiais de
existência, oriundas do momento histórico em que os homens realizam as ações des‑
critas acima, produzindo os chamados modos de produção. Chaui (1995) utiliza-se
de Marx para discutir que é através da história que existem as mudanças, passagens
ou transformações de um modo de produção para outro.
Tal mudança não se realiza por acaso nem por vontade livre dos
homens, mas acontece de acordo com condições econômica, so‑
ciais e culturais já estabelecidas, que podem ser alteradas de uma
maneira também determinada, graças à práxis humana diante de
tais condições dadas (CHAUI, 1995, p. 172).

Nesse contexto Marx e Engels (2001) colocam que as mudanças de uma sociedade
estabelecem-se em condições determinadas em que os homens fazem a história, mas
o fazem em condições determinadas, isto é, que não foram escolhidas por eles. Assim
ele fundamenta: “[...] os homens fazem a História, mas não a sabem que a fazem”
(CHAUI, 1995, p. 172).
Podemos chamar isso de alienação social, sendo que essa questão
pauta-se no desconhecimento das condições histórico-sociais con‑

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cretas em que vivemos produzidas pela ação humana também sob


o peso de outras condições históricas anteriormente determinadas.
Há uma dupla alienação: por um lado, os homens não se reconhe‑
cem como agentes e autores da vida social com suas instituições,
mas, por outro lado e ao mesmo tempo, julgam-se indivíduos livres,
capazes de mudar suas vidas individuais como e quando quiserem,
apesar das instituições sociais e das condições históricas. No pri‑
meiro caso, não percebem que instituem a sociedade; no segundo
caso, ignoram que a sociedade que a sociedade instituída determina
seus pensamentos e ações (CHAUI, 1995, p. 172).

Continuando a linha de pensamento de Chaui (1995), podemos determinar três


tipos de alienação em nossa sociedade: alienação social: na qual os humanos não
se reconhecem como produtores das instituições sociopolíticas e oscilam entre duas
atitudes: ou aceitam passivamente tudo o que existe, por ser tido como natural, divino
ou racional, ou se rebelam individualmente, julgando que, por sua própria vontade
e inteligência, podem mais do que a realidade que os condiciona, sendo que nos
dois casos, a sociedade é o outro (alienus), algo
externo a nós, separado de nós, diferente de nós

Saiba mais e com poder total ou nenhum poder sobre nós;


alienação econômica: na qual os produtores não
Um dos textos mais significativos se reconhecem como produtores, nem se reco‑
de Marx sobre a questão da aliena- nhecem nos objetos produzidos por seu trabalho;
ção é A ideologia alemã. É um e a alienação intelectual: que resulta da separação
texto denso, com significados es- social entre trabalho material (que produz merca‑
senciais para a compreensão da dorias) e trabalho intelectual (que produz ideias),
nossa realidade social. Acredito ser sendo que a divisão social entre as duas modali‑
essencial à sua leitura. dades de trabalho leva a crer que o trabalho ma‑
terial é uma tarefa que não exige conhecimentos,
<www.dominiopublico.gov.br/do-
mas apensa habilidades manuais, enquanto o
wnload/texto/cv000003.pdf>.
trabalho intelectual é responsável exclusivo pelos
conhecimentos.

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   73

  Seção 2 O surgimento do modo de


produção capitalista e a formação
da nossa sociedade
A questão da alienação está vinculada, em nosso recorte, ao modo de produção
capitalista, pois é ela que fundamenta a vida dos indivíduos nos dias atuais. Quando
falamos do modo de produção capitalista da nossa sociedade de hoje, devemos nos
remeter ao processo de desenvolvimento histórico que discutimos no início do texto.
Alguns acontecimentos marcaram o surgimento do capitalismo, acontecimentos
esses que datam do início do século XV até o final do século XVIII, que desemboca
em uma nova forma de produzir a realidade social.
As transformações ocorridas a partir do século XV estão todas vin‑
culadas entre si e não podem ser entendidas de forma isolada. Desse
modo, a expansão marítima, as reformas protestantes, a formação
dos Estados nacionais, as grandes navegações e o comércio ultra‑
marino, bem como o desenvolvimento científico e tecnológico, são
o pano de fundo para uma visão melhor desse movimento intelec‑
tual de grande envergadura que irá alterar profundamente as formas
de explicar a natureza e a sociedade daí para a frente (TOMAZI,
2000, p. 1).

Com a expansão marítima, os europeus am‑


pliaram sua perspectiva de mundo, ao esta‑
belecer contato com novos povos, culturas e
mercadorias. Uma nova estruturação estatal
Saiba mais
acompanha esse processo de expansão marítima, Para compreender melhor como as
com a formação e o fortalecimento dos Esta‑ Grandes Navegações influenciaram
dos nacionais, dotados de orçamento e aparato no processo de transformação da
jurídico-burocrático-militar próprios. sociedade, ver o filme: A missão
O renascimento (século XVI) trouxe no‑ (The Mission, ING, 1986) Direção:
vamente a figura do homem como elemento Roland Joffé, Elenco: Robert de
central da sociedade, visto que coloca como Niro, Jeremy Irons, Lian Neeson,
paradigma a perspectiva antropocêntrica em 121 min., Flashstar.
detrimento do teocentrismo. Esse ideal pode
ser entendido como a valorização do homem
e da natureza, em oposição ao divino e ao sobrenatural, conceitos que haviam
impregnado a cultura da Idade Média. Nesse momento Galileu Galilei, Leonardo
da Vinci e Copérnico desenvolveram novas formas de compreender a realidade so‑
cial, utilizando-se da experiência para comprovar os fenômenos da sociedade e da
natureza. É o início do conhecimento científico que mais tarde com Francis Bacon
e René Descartes ficará conhecido como o único responsável pelas explicações
dos fenômenos naturais e sociais.
A Reforma Protestante, com Martinho Lutero e João Calvino, instituiu uma nova
forma de mediar a questão com o divino, rompendo com a hegemonia da Igreja

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Católica, ao entrar em conflito com a autoridade


Para saber mais papal e a estrutura da igreja. Isso propiciou uma
tendência que contribuiu de modo significativo
O filme O nome da rosa mostra para a valorização do conhecimento racional, em
um retrato bastante fiel do poder contraposição à revelação, ao permitir a livre leitura
da Igreja Católica no século XIV. das Escrituras Sagradas e, dessa forma, o confronto
Direção de Jean-Jacques Annaud. com o monopólio do clero na interpretação baseada
Elenco: Sean Connery, Christian na fé e nos dogmas (TOMAZI, 1993).
Slater, F. Murray Abraham, Valen- No século XVIII o processo de transformação
tina Vargas, Ron Perlman, Michael da vida social, econômica e política europeia
Lonsdale, William Hickey, Elya é consolidado, principalmente em decorrência
Baskin, Feodor Chaliapin Jr., Helmut das inovações trazidas pela Revolução Industrial
Qualtinger, Volker Prechtel, Michael na Inglaterra, quanto à esfera econômica e pela
Habeck, Urs Althaus. substituição da nobreza pela burguesia, no dire‑
cionamento político, na França.
A Revolução Industrial ocorrida na Inglaterra a
partir de 1750 significa o coroamento de um processo iniciado no século XVII, que
fez da burguesia comercial, formada principalmente por comerciantes e banqueiros,
uma classe economicamente poderosa e influente. Essa classe foi a responsável pela
introdução da produção manufatureira, inicialmente, e por seu desenvolvimento,
marcado pela maquinofatura e pela produção industrial, num momento posterior.

Para saber mais


Outro filme interessante que demonstra o processo de mudança social através da Revolução
Industrial é Tempos modernos (Modern Times, EUA, 1936). Direção: Charles Chaplin. Elenco:
Charles Chaplin, Paulette Goddard, 87 min. preto e branco, Continental.

A compra de matérias-primas e a organização da produção [...]


levavam ao desenvolvimento de um novo processo produtivo em
contraposição ao das corporações de ofício. Ao se desenvolver a
manufatura, os organizadores da produção passaram a se interessar
cada vez mais pelo aperfeiçoamento das técnicas de produção,
visando produzir mais com menos gente, aumentando significati‑
vamente os lucros. Para tanto, procuravam investir nos inventos,
isto é, financiar a criação de máquinas que pudessem ter aplicação
no processo produtivo (TOMAZI, 2000, p. 3).

Na França, por sua vez, as mudanças provocadas pela Revolução Francesa cen‑
tralizavam-se no âmbito político. A burguesia contou com a colaboração efetiva dos
filósofos iluministas, que criticavam duramente a nobreza feudal e o sistema (desigual)

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   75

de privilégios que até então a sustentara. Essas críticas foram muito importantes para
mobilizar os trabalhadores e dar sustentação à proposta burguesa de reorganização
da sociedade, efetivada com a Revolução Francesa.
A burguesia, ao tomar o poder em 1789, investiu decididamente contra os fun‑
damentos da sociedade feudal, procurando construir um Estado que assegurasse sua
autonomia em face da Igreja e que protegesse e incentivasse a empresa capitalista.
Para a destruição do antigo regime, foram mobilizadas as massas, especialmente os
trabalhadores pobres das cidades (MARTINS, 1987).
Pode-se perceber, portanto, que tanto a Revolução Industrial quanto a Francesa
trouxeram novas condições de sobrevivência — econômicas, políticas e sociais — para
o mundo europeu. Embora estes dois acontecimentos históricos tenham sido extrema‑
mente importantes para a organização da sociedade que temos hoje, suas consequências
sociais marcaram significativamente a população europeia. Na verdade, o principal
“mérito” dessas revoluções foi o de possibilitar a plena e absoluta consolidação do
modo de produção capitalista, inicialmente na Europa, e em seguida em todo o mundo.
A população, no entanto, sofreu muito com todas essas transformações. A adap‑
tação ao meio urbano e à disciplina imposta pelo trabalho fabril foi um processo
muito doloroso aos trabalhadores, principalmente porque eles estavam completamente
habituados à dinâmica da vida no meio rural.
As consequências da rápida industrialização e urbanização levadas
a cabo pelo sistema capitalista foram tão visíveis quanto trágicas:
aumento assustador da prostituição, do suicídio, do alcoolismo, do
infanticídio, da criminalidade, da violência, de surtos de epidemia
de tifo e cólera que dizimaram parte da população etc. (MARTINS,
1987, p. 13-14).

Em outras palavras, a sociedade europeia do século XVIII passou a conviver com


problemas até então inexistentes, já que a sociedade era bastante estável. E são jus‑
tamente estes “novos” problemas sociais que irão preocupar os pensadores da época,
que passam a dedicar-se a estudá-los, com o objetivo de compreender como “me‑
lhorar” ou resolver estes problemas.

Para saber mais


Esses novos problemas sociais estão presentes na sociedade capitalista até hoje, visto que a base
da nossa sociedade (desigualdade social, classes sociais, trabalho assalariado) permanece a mesma
do início do século XIX, sendo que as mudanças se dão somente ao entorno da sociedade, por
exemplo: tecnologia, medicina, alimentação.

[...] A profundidade das transformações em curso colocava a so‑


ciedade num plano de análise, ou seja, esta passava a se constituir
em “problema”, em “objeto”, que deveria ser investigado. Os

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pensadores da época [...] não desejavam produzir um mero conhe‑


cimento sobre as novas condições de vida geradas pela revolução
industrial, mas procuravam extrair dele orientações para a ação,
tanto para manter, como para reformar ou modificar radicalmente
a sociedade de seu tempo (MARTINS, 1987, p. 15).

Essa sociedade capitalista fundamenta-se na separação entre o trabalho manual do


trabalho intelectual, a propriedade privada, as classes sociais e a divisão do trabalho.
Com a divisão do trabalho capitalista, fruto da Revolução Industrial, que separou o
trabalho manual do intelectual, a consciência (pensamento) passa a ser considerada
algo exterior a prática, a ação, deslocando-se para fora do mundo real, como um
conjunto de ideias separadas e independentes da realidade social.

Questões para reflexão


Será que não podemos relacionar o modo de produção capitalista com a questão
da alienação? Lembram a questão de que o homem produz a sua realidade, mas
em virtude da manipulação de uma classe sobre a outra, essa leitura é fetichizada,
ou seja, escondida sob um véu de fumaça, que impede os sujeitos de compreender
a realidade da forma que ela é!

O capitalismo é um modo de produção, ou seja, uma forma de organizar a pro‑


dução em uma sociedade, definindo quem, quanto e como trabalha; o que e quanto
produzir, e para quem vender. Possui características bem específicas, que podemos
identificar olhando para nossa própria sociedade contemporânea, enquanto o capi‑
talismo:
a) Baseia-se na propriedade privada dos meios de produção;
b) Pressupõe a existência de duas classes sociais: os capitalistas (ou burgueses)
e os trabalhadores (ou proletários);
c) Utiliza-se do trabalho assalariado;
d) Tem como preocupação central o lucro;
e) Transforma todas as relações em mercadorias.
A primeira característica acima exposta nos é bastante familiar: sabemos da
existência da propriedade privada em nossa sociedade. Nesse sentido, as pessoas
quase sempre trabalham para que possam adquirir bens diversos, que se tornam sua
propriedade: um carro, uma casa, uma roupa, um sapato... Assim é também nas
empresas, quanto ao trabalho: elas são privadas, ou seja, pertencem a alguém, seja
a uma pessoa apenas ou a um grupo.
Uma segunda característica da sociedade capitalista refere-se à divisão existente
em seu interior. Os indivíduos são separados em classes sociais distintas: os capita‑
listas, que são os proprietários dos meios de produção; e os trabalhadores, que são

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os proprietários da força de trabalho. Assim, os capitalistas, que possuem as empre‑


sas (a estrutura física, a matéria-prima etc.), empregam os trabalhadores que, com
sua mercadoria (a força de trabalho), produzem de fato os bens (produtos) a serem
comercializados.
O modo de produção capitalista destaca-se,
também, por utilizar-se do trabalho assalariado, Para saber mais
isto é, por pagar um salário ao trabalhador. Já que
o trabalhador não possui os meios de produção e Germinal (França, 1993 — Drama
precisa empregar-se para poder trabalhar, ele será 158 min.) é um filme que aborda
contratado mediante o pagamento de um salário, com muita clareza essa relação en-
para satisfazer suas necessidades básicas e sociais. tre as classes sociais existentes na
O capitalismo tem como objetivo a obtenção sociedade capitalista, bem como o
de lucro. É interessante observar que, na socie‑ movimento dos trabalhadores em
dade em que vivemos, esta é uma preocupação prol de melhores condições de tra-
generalizada: todos querem saber o que vão lucrar balho, mostrando o contraste exis-
com suas ações. Até mesmo na situação de sala de tente em nossa sociedade.
aula encontramos manifestações que demonstram
o quanto esta perspectiva (de obtenção de lucro)
está impregnada nos indivíduos: ao solicitarmos que os alunos executem alguma
atividade, é comum eles brincarem dizendo “Quanto vai valer, professora?”, ou “Só
vale um ponto? Então não farei, porque não compensa.”
O capitalismo transforma todas as relações em mercadorias. A mercadoria tem
papel fundamental nesse modo de produção, já que o lucro só pode ser obtido atra‑
vés de sua comercialização. Assim, as relações sociais passam a ser relações de troca
de mercadorias. Nas relações de produção (as relações de trabalho), o trabalhador
“vende” sua única mercadoria — a mão de obra ou força de trabalho — para que
outras mercadorias sejam produzidas. Poderíamos listar inúmeros exemplos que de‑
monstram como as relações sociais são mediadas pela mercadoria.
É em virtude deste modo específico de organizar a produção social — o capita‑
lismo — que a sociedade europeia dos séculos XVIII e XIX vê-se atingida por inúme‑
ros problemas sociais, os quais, por sua vez, irão determinar a necessidade de uma
ciência específica para estudá-los.
Em outras palavras, não partimos do que os homens dizem, ima‑
ginam e representam, tampouco do que eles são nas palavras, no
pensamento, na imaginação e na representação dos outros, para
depois se chegar aos homens de carne e osso; mas partimos dos
homens em sua atividade real, e a partir de seu processo de vida
real que representamos também o desenvolvimento dos reflexos
e das repercussões ideológicas desse processo vital. São os ho‑
mens que, desenvolvendo sua produção material e suas relações
materiais, transformam, com a realidade que lhes é própria, seu
pensamento e também os produtos de seu pensamento. Não é a
consciência que determina a vida, mas sim a vida que determina
a consciência (MARX; ENGELS, 2001, p. 19).

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Dentro desse contexto, as ideologias agem nos sentido de inverter a realidade


e transformá-la em ideais de mundo da classe dominante, tornando-se representa‑
ções universais, autônomas, justamente para poder camuflar sua origem: a divisão
da sociedade em classes, em proprietários e não proprietários, a separação dos que
pensam e daqueles que executam, ocultando assim as contradições internas ao modo
de produção capitalista.
Mas... por que falar de ideologia e alienação para discutir cultura?
Não é raro ouvirmos a expressão comumente usada para se referir a pessoas com
pouca ou nenhuma instrução escolar formal: “Ele (a) não tem cultura”; obviamente
essa “afirmativa” nada tem de verdadeiro ou concreto, dado que mesmo sem ter tido
a oportunidade de sentar-se em um banco escolar a referida pessoa possui cultura,
já que está inserida em sociedade, em um grupo, em uma religião, em uma comuni‑
dade, enfim, tem passado, tem história, portanto tem cultura, uma vez que partilha
de valores, crenças, costumes, hábitos com seus interlocutores sociais.
Evidente que a referida afirmação citada acima está intimamente ligada à divisão
da sociedade em classes desiguais, e que tem seu motor na dominação econômica,
mas que, no entanto, passa fundamentalmente pela dominação cultural, ideológica,
moral, espiritual... Isso pode ser visto quando relacionamos a separação entre cultura
popular e erudita, a questão do etnocentrismo, a indústria cultural, a relação direta
de cultura com escolarização... Enfim, em todas as relações sociais temos, mesmo
que veladamente, a relação alienação e cultura imposta. Esses itens serão discuti‑
dos adiante, mas já posso indicar algumas reflexões para vocês: Qual representa a
“verdadeira” cultura? Será mesmo que só tem cultura quem frequenta a escola? Para
iniciar a sua reflexão deixo aqui uma frase do Marx sobre isso...
Os pensamentos da classe dominante são também, em todas as
épocas, os pensamentos dominantes; em outras palavras, a classe
que é o poder material dominante numa determinada sociedade
é também o poder espiritual dominante. A classe que dispõe dos
meios da produção material dispõe também dos meios de produção
intelectual, de tal modo que o pensamento daqueles aos quais são
negados os meios de produção intelectual está submetido também
à classe dominante (MARX; ENGELS, 2001, p. 48).

Questões para reflexão


Por que o conhecimento antropológico é necessário às pessoas que trabalham
diretamente com grupos da sociedade?

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C u l t u r a e i d e o l o g i a   79

Aprofundando o conhecimento
O texto Considerações sobre a neutralidade da ciência, de Marcos Bar‑
bosa de Oliveira, ajuda a compreender o atual debate sobre a neutralidade
das ciências, levando-nos a refletir sobre a própria Antropologia, ciência que
historicamente surgiu com um forte apelo ideológico. O autor se baseia no
conteúdo dos Parâmetros Curriculares Nacionais, e analisa a tese da suposta
neutralidade científica a partir dos aspectos relativos à imparcialidade, neutra‑
lidade aplicada e neutralidade cognitiva (OLIVEIRA, 2003, p.166-168).

Considerações sobre a neutralidade


da ciência
O conceito de neutralidade da ciência, num sentido amplo, deve ser analisado em
alguns componentes, um dos quais é a imparcialidade. Outro dos componentes da neu-
tralidade no sentido o amplo é a neutralidade no sentido estrito, que por sua vez é formada
pela neutralidade aplicada e a neutralidade cognitiva. O relativismo é evitado pela afir-
mação da tese da imparcialidade, ou seja, a tese de que a ciência, nos termos a serem
especificados, é imparcial; o espírito crítico é mantido pela tese da não neutralidade no
sentido estrito, ou seja, pela afirmação de que a ciência não tem como atributos nem a
neutralidade cognitiva nem a neutralidade aplicada.
Vejamos então em que consiste a imparcialidade. A imparcialidade diz respeito ao
processo de seleção de teorias no interior da ciência, ou seja, dado um conjunto de teo-
rias rivais sobre um domínio da realidade, como decidimos qual delas é a melhor, qual
deve ser aceita como parte do conhecimento científico? A resposta de Lacey para esta
pergunta baseia-se numa distinção muito fundamental, a distinção entre valores cogni-
tivos e valores não cognitivos. Os valores não cognitivos são os valores sociais e morais,
ou, em outras palavras, os valores subentendidos quando se afirma que a ciência é livre
de valores. Os valores cognitivos formam um conjunto do qual o mais importante, seguindo
a tendência empirista que acabou prevalecendo na epistemologia moderna, é a adequa-
ção empírica, a capacidade de uma teoria de dar conta dos dados observacionais e ex-
perimentais disponíveis. Outros valores cognitivos importantes: são a consistência lógica,
o poder explicativo, a simplicidade etc.
Com isso podemos definir o conceito de imparcialidade: a imparcialidade consiste no
uso exclusivo de valores cognitivos na seleção de teorias. Na medida em que há interfe-
rência de valores não cognitivos, a ciência deixa de ser imparcial. Com o conceito de
imparcialidade podemser formuladas duas teses sobre a ciência: uma normativa – a ciên-
cia deve ser imparcial –; outra descritiva, ou factual – a ciência é imparcial.
A tese normativa por um lado pressupõe que a ciência pode ser imparcial, por outro
ela é compatível com a negação, pelo menos até certo ponto, da tese factual, ou seja, o

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fato de a ciência às vezes se afastar doideal de imparcialidade não implica que o ideal
deva ser abandonado – da mesma forma, por exemplo, que o fato de o mandamento
“não matarás” nem sempre ser obedecido não implica que ele deva ser revogado. As
versões mais radicais da tese da não neutralidade são as que abrem mão inclusive do ideal
de imparcialidade, sustentando ser impossível excluir os valores não cognitivos do processo
de seleção de teorias no interior da ciência. Nesta linha de pensamento, a ciência não
apenas sempre foi e continua sendo parcial, mas o próprio ideal de imparcialidade deixa
de fazer sentido.
O grande problema com este radicalismo é o que já foi apontado, a saber, que ele
implica uma forma de relativismo. Se quisermos evitar o relativismo, devemos, portanto,
preservar a imparcialidade como um ideal, ou seja, como um valor. É apenas desta
maneira, inclusive, que se terá uma base para fazer uma crítica da ciência quando ela
deixa de ser imparcial. Com isso dou por encerrada a discussão da imparcialidade, e
passo à neutralidade no sentido estrito, que, como vimos, divide-se em neutralidade
aplicada e neutralidade cognitiva.
A neutralidade cognitiva constitui um tema bem mais complexo que, devido à limi-
tação de tempo, escapa dos limites desta apresentação, e será tratado numa outra opor-
tunidade. A neutralidade aplicada diz respeito às aplicações da ciência, ou seja, à
tecnologia. Os termos em que a discussão é posta nos dias de hoje derivam em grande
parte de uma versão particular da tese da neutralidade no sentido amplo, surgida num
momento histórico determinado.
Trata-se de uma versão em que a neutralidade da ciência é afirmada em contraste
com a tecnologia, cuja não neutralidade é admitida. O momento histórico é o do pós-
-segunda-guerra-mundial, e neste ponto vou recorrer a um livreto recentemente publicado,
Thomas Kuhn and the Science Wars, de Ziauddin Sardar. Sardar diz o seguinte:

Na percepção popular da ciência, a segunda guerra mundial


completou o que a primeira havia iniciado. Desta vez, via-se a
ciência dirigindo o espetáculo no campo de batalha, e partici-
pando dos governos. Os cientistas eram responsáveis não apenas
pela invenção de formas novas e mais letais de armas químicas
e biológicas, mas por conceber, produzir e finalmente lançar a
bomba atômica. As nuvens em forma de cogumelo das bombas
jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki significaram o fim da era
da inocência científica. Agora a conexão entre ciência e guerra
havia se tornado mais que evidente, a cumplicidade entre a ci-
ência e a política tinha vindo à tona, e todas as noções de auto-
nomia científica haviam evaporado. O público, que até então
havia prestado atenção em grande parte nos benefícios da ciên-
cia, viu-se de repente tendo de encarar seu lado devastador. O
processo contra a ciência militarizada começou com o lança-
mento da publicação dissidente chamada Bulletin of the Atomic
Scientists por um grupo de físicos nucleares totalmente desen-
cantados com o Projeto Manhattan nos Estados Unidos, e se

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consolidou com o surgimento do CND (a Campanha pelo De-


sarmamento Nuclear) no fim do anos 50. [...] Muitos cientistas
estavam preocupados, querendo que a Bomba não fosse vista
como uma consequência inevitável da física. [...] A tática consis-
tia em alegar que a ciência é neutra; é a sociedade que a pode
usar para o bem ou para o mal. Este argumento da neutralidade
tornou-se a principal defesa da ciência durante as décadas de
50 e 60; e permitiu que muitos cientistas trabalhassem em física
atômica, até mesmo aceitando financiamentos de órgãos mili-
tares, sem que deixassem de se considerar politicamente radicais.
(Sardar, 2000, p. 13-4)
Como se pode ver então, a conjuntura histórica pós-segunda-guerra mundial gerou uma
formulação particular da tese da neutralidade da ciência em que ela aparece contrastada com
a não neutralidade de suas aplicações, que podem ser voltadas para o bem ou para o mal.
Esta perspectiva tem em princípio certa validade. Não há dúvida de que não apenas
a ciência, mas qualquer artefato humano admite diferentes formas de utilização. Uma
faca de cozinha, por exemplo, pode ser usada “para o bem” – para, digamos, descascar
batatas – ou para torturar ou assassinar uma pessoa, e neste sentido ela é neutra. Entre-
tanto, como um ponto de vista para a avaliação dos benefícios e malefícios da ciência
aplicada, ela deixa muito a desejar. Deixa a desejar porque de acordo com ela, como no
caso paradigmático da bomba atômica, o mal figura como intenção explícita. Se nos li-
mitarmos a casos desta natureza, deixaremos de enxergar os aspectos perniciosos das
utilizações da ciência que não fazem parte das intenções daqueles que as promovem,
mas nem por isso são menos importantes.
O autor defende a ideia de que as ciências não podem se sujeitar ao relativismo,
conceito tão importante para os antropólogos na contemporaneidade, mas que muitas
vezes leva a concepções equivocadas de que tudo pode ser permitido e realizado em
nome do desenvolvimento da humanidade. Segundo ele, as ciências, incluindo a Antro-
pologia, precisam manter uma posição de imparcialidade, o que não pode ser confundido
com a pretensa neutralidade aplicada. Assim, é preciso que todos os pesquisadores se
posicionem criticamente em relação ao papel social das ciências e das tecnologias, espe-
cialmente no mundo de hoje.

Saiba mais
Existem muitos elementos que nos ajudam a analisar e compreender essa relação alienação x
sociedade x cultura, dentre eles documentários, livros, sites...
Um documentário interessante é Ilha das flores, do diretor Jorge Furtado, ano 1989, com du-
ração de 13 minutos, produzido no Brasil. Esse documentário aborda como as relações sociais
pautadas na questão do trabalho estão presentes em simples atos do nosso dia a dia.

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Para concluir o estudo da unidade


Temos que ter em mente que a nossa sociedade capitalista é fruto das relações
entre os homens que culminaram, até o presente momento, na sociedade em
que vivemos. Essa sociedade é constituída pela relação entre aspectos econô‑
micos, políticos, sociais e culturais. Como vimos, esses aspectos se relacionam
ideologicamente para a manutenção da estrutura social vigente, uma vez que a
cultura é um importante instrumento para a formação e manutenção da realidade
social, sendo muitas vezes utilizada de forma contraditória: impondo e repro‑
duzindo determinados valores e ao mesmo tempo instituindo novas formas de
compreender a realidade através de elementos de resistência entre os diversos
grupos culturais existentes em nossa sociedade.

Resumo
Nesta unidade discutirmos o surgimento do modo de produção capitalista, por
ser ele o responsável por instituir um “novo” padrão social, pautado na divisão de
classes sociais, na desigualdade e na propriedade privada dos meios de produção.
Nesse sentido, analisamos o pensamento marxista que desvela o processo de
alienação imposto sobre os indivíduos, buscando romper com o processo hierar‑
quização social.

Saiba mais
Existem muitos livros que trabalham essa questão, e indicamos alguns para vocês, dentre eles:
O que é alienação, de Wanderley Codo, da série Primeiros Passos da Editora Brasiliense; Marx:
a teoria da alienação, de István Mészáros, e o próprio texto do Marx Ideologia alemã.

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Atividades de aprendizagem
1. Por que precisamos discutir a questão do surgimento do modo de produção ca‑
pitalista para falarmos de alienação e cultura?
2. Explique, com suas palavras, dois pontos centrais do capitalismo: a importância
da propriedade privada e a existência de duas classes sociais.
3. Analise o impacto da divisão de classes sociais (burguesia e proletários) na for‑
mação da cultura e da sociedade.
4. O que podemos fazer para romper com a alienação imposta sobre nossa socie‑
dade?
5. Discuta como podemos relacionar conceitos como ideologia e cultura para a
interpretação da realidade social?

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Unidade 4
Antropologia
e cultura Giane Albiazzetti
Okçana Battini

Isso nos ensina que as crises em nível de teorias são sanáveis: ou pela elimi-
nação de uma por outra; ou pela articulação das mesmas [...]; ou, ainda, pela
convivência pacífica de teorias contrárias, porém não contraditórias, das quais,
aliás, a antropologia está plena. [...] Apesar de muitas delas, ou todas, serem
passíveis de restrições e de críticas, particularmente quando constroem modelos
diferentes sobre uma mesma sociedade e/ou cultura, isso não significa que essas
teorias não convivam de algum modo, compulsoriamente, uma vez que uma
não dispõe de força suficiente — isto é, de argumentos — para eliminar a outra.
Roberto Cardoso de Oliveira

Objetivos de aprendizagem: Nesta unidade você vai ser levado a


analisar o desenvolvimento da Antropologia como ciência e seus
desdobramentos teóricos oriundos das transformações históricas da
sociedade, pautado nas seguintes correntes teóricas: evolucionismo,
escola sociológica francesa, difusionismo, funcionalismo e estrutu-
ral–funcionalismo, culturalismo norte-americano, estruturalismo, an-
tropologia interpretativa ou hermenêutica. Assim, torna-se essencial
discutirmos as principais propriedades da cultural. Vamos a elas?

Seção 1: Cultura: o “cimento” que possibilita a união


social
Nesta seção vamos discutir as características da cultura
e seu impacto na formação do sujeito. Discutiremos
também o caráter social da cultura, visto ser fruto do
desenvolvimento do homem.
Seção 2: Antropologia: as correntes teóricas e
a interpretação sobre a construção da
cultura
Nesta seção vamos trabalhar as correntes teóricas
da Antropologia e a forma como estas discutem o
processo de formação cultural da sociedade.

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86  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Introdução ao estudo
Sabemos que o termo cultura é muito amplo e cheio de significados. Muitas vezes
ouvimos: “Nossa, esse sujeito é muito culto, ele tem muita cultura.” E por outro lado:
“Está vendo aquele indivíduo ali? Ele não tem cultura nenhuma, ou seja, não sabe se
comportar!” Quem já não se deparou com uma situação assim em nossa sociedade?
Será que falar em cultura é somente elencar as ações dos indivíduos conforme sua
formação? O que especificamente a cultura tem a ver com a nossa sociedade? Como
ela ajuda a explicar as relações existentes entre os homens?
Primeiro devemos refletir que o termo cultura traz muitos significados, dentre eles:
Originalmente, esta expressão [cultura] vem do latim — colere — e
significa cultivar. Com os romanos, na Antiguidade, a palavra cul‑
tura foi usada pela primeira vez no sentido de destacar a educação
aprimorada de uma pessoa, seu interesse pelas artes, pela ciência,
filosofia, enfim, tudo aquilo que o homem vem produzindo ao
longo de sua história (CALDAS, 1986, p. 11, grifo nosso).

No processo de desenvolvimento da civilização a sociedade e os indivíduos se


transformaram, e o termo cultura também sofreu grandes modificações, não ficando
preso somente ao ato de estudar, ou seja, à educação aprimorada de uma pessoa.
Holanda (2000) pode nos indicar algumas definições para o termo cultura:
O conjunto de características humanas que não são inatas, e que
se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e
cooperação entre indivíduos em sociedade. O conjunto dos códigos
e padrões que regulam a ação humana individual e coletiva, tal
qual como se desenvolvem em uma sociedade ou grupo específico,
e que se manifestam em praticamente todos os aspectos da vida:
modos de sobrevivência, normas de comportamento, crenças,
instituições, valores espirituais, criações materiais etc.

  Seção 1   ultura: o “cimento” que


C
possibilita a união social
Podemos falar que toda realidade fundamenta-se nos aspectos culturais produzidos
pelos homens? Sim, e para ficar mais fácil a compreensão dessa relação, torna-se
importante conhecermos a ciência que estuda essas manifestações: a Antropologia.

Saiba mais
Podemos definir Antropologia como uma ciência que estuda o homem como ser biológico, social
e cultural, buscando investigar o desenvolvimento, as semelhanças das sociedades humanas
assim como suas diferenças. A palavra Antropologia, etmologicamente, vem de anthropos que
quer dizer homem, e logos, que significa “pensamento” ou “razão”. Para mais informações
acesse o site da Associação Brasileira de Antropologia (ABA): <www.abant.org.br>.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   87

A esses símbolos e signos que fundamentam a ação humana é dado o nome de


cultura. Nesse sentido, podemos falar que cultura engloba formas de linguagem,
pensamentos, modos de agir, os costumes, as instituições, enfim, todas as esferas da
atividade humana.
Ela é o “cimento” que dá unidade a certo grupo de pessoas que dividem as mesmas
ações, costumes e valores. Deste ponto de vista, portanto, podemos dizer que tudo
o que faz parte do mundo humano é cultura, ou seja, a cultura surge das relações
que os seres humanos estabelecem entre si e com o meio em que vive, em busca de
formas de sobreviver.
Podemos falar que a cultura tem uma relação tão intrínseca ao homem, que se
pode chegar a afirmar que não existe ser humano sem cultura. O homem é produto
e produtor da cultura. A cultura compreende os bens materiais, como utensílios, fer‑
ramentas, moradias, meios de transporte, comunicação e outros; e também os bens
não materiais, como as representações simbólicas, os conhecimentos, as crenças e os
sistemas de valores, isto é, o conjunto de normas que orientam a vida em sociedade.
Outro autor que nos ajuda a iluminar, e, portanto, melhor compreender a in‑
terpretação de cultura é Émile Durkheim, pois segundo ele as normas, as regras de
comportamento e conduta são produzidas e apreendidas socialmente, transmitidas de
geração em geração com o objetivo de manter ou criar uma coesão social. Quando
elabora o conceito de fato social, nos revela que a sociedade produz e impõe seus
valores através da coerção com o objetivo de autopreservação, mesmo que muitas
vezes (ou na maioria delas), isso possa gerar desconforto para alguns indivíduos na
coletividade (DURKHEIM, 1988).
Chaui (1995, p. 294, grifo do autor) define muito claramente a cultura em três
sentidos:
1) Criação da ordem simbólica da lei, isto é, de sistemas de interdições e
obrigações, estabelecidas a partir da atribuição de valores e coisas (boas,
más, perigosas, sagradas, diabólicas), a humanos e suas relações
(diferença sexual, e proibição do incesto, virgindade e fertilidade,
puro-impuro, virilidade; diferença etária e forma de tratamento dos
mais velhos e mais jovens; diferença de autoridade e formas de relação
com o poder etc...) e aos acontecimentos (significado da guerra, da
peste, da fome, do nascimento e da morte, obrigação de enterrar os
mortos, proibição de ver o parto etc.)
2) Criação de uma ordem simbólica da linguagem, do trabalhado,
do espaço, do tempo, do sagrado e do profano, do visível e do
invisível. Os símbolos surgem tanto para representar quanto para
interpretar a realidade, dando-lhe sentido pela presença do hu‑
mano no mundo.
3) Conjunto de práticas, comportamentos, ações e instituições pelas
quais os humanos se relacionam entre si e com a natureza e dela
se distinguem, agindo sobre ela ou através dela, modificando-a.
Este conjunto funda a organização social, suas transformações e
sua transmissão de geração para geração.

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88  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Dentro dessa discussão, podemos tirar algumas considerações e características


da cultura:
1. a cultura é simbólica — se organiza em torno de símbolos e signos, cujos sig‑
nificados são constituídos pela sociedade, isto é, envolve a elaboração e aceitação
de padrões, normas, hábitos e costumes, histórias, cujo significado é partilhado por
indivíduos em sociedade.
2. a cultura não é inata — o fato de não ser inata concede à cultura um caráter
de aprendizado, isto é, os indivíduos não nascem portadores de cultura, mas eles
apreendem as capacidades, habilidades e valores que são definidos pela sociedade
como importantes.
3. a cultura pressupõe uma linguagem — sendo a cultura algo que é aprendido,
ela necessita, obrigatoriamente, de uma linguagem, de um instrumento de comuni‑
cação. Não estamos dizendo que a cultura necessita somente da escrita, sendo que
as formas de comunicação utilizadas para a transmissão cultural são inúmeras (fala,
gestos, símbolos).
4. a cultura possui um caráter social — ela se refere sempre a um grupo do qual
o indivíduo faz parte. Não há cultura produzida por um indivíduo isoladamente.
Para que haja a produção da cultura, é essencial o engajamento dos indivíduos no
grupo, na coletividade.
5. a cultura é um instrumento de coesão social — a cultura mantém os indi‑
víduos unidos em torno de determinados ideais que são socialmente constituídos.
Sendo assim, a cultura é um elemento indispensável à manutenção da ordem social,
na medida em que envolve o aprendizado de hábitos, normas, tradições, valores e
comportamento por parte dos indivíduos. Nesse sentido, a cultura pode ser vista
como socializadora.
6. a cultura é dinâmica — a cultura está sempre em movimento, mesmo que de
maneira imperceptível, pois muitas vezes essas mudanças são lentas e não aparecem
de imediato a nossos olhos.
O termo cultura é realmente cheio de especificidades, visto que aborda questões
que muitas vezes estão escondidas sob as relações de nossa sociedade. Não podemos
pensar em nossa sociedade sem pensar nas relações culturais que a construíram e as
que a modificam, sendo que a realidade existente hoje em nossa sociedade é muito
diferente de vinte, trinta anos atrás. Só podemos compreender essas mudanças, se le‑
varmos em consideração os aspectos sociais, históricos e culturais da nossa sociedade.
Para sabermos um pouco mais sobre como essas categorias explicativas sobre
a cultura se efetivam, necessitamos saber como historicamente a cultura e a diversi‑
dade cultural entre os indivíduos foram tratadas. Vamos a elas?

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   89

  Seção 2   ntropologia: as correntes


A
teóricas e a interpretação sobre a
construção da cultura
A antropologia surge para estudar o “outro”. Esse “outro” nasce como fruto do
descobrimento de novos povos para além da europa.
A antropologia social ou cultural é a responsável por interpretar esse mundo tão
distante e diferente. Torna-se importante lembrarmos que devemos compreender
os processos sociais na perspectiva histórica discutida na primeira unidade, pois o
homem, através dos tempos, desenvolve formas de agir e pensar pautado nessa his‑
tória, em sua materialidade... esse pensar e agir transforma-se na medida em que as
próprias condições materiais se modificam, exigindo novas explicações econômicas,
políticas, culturais e sociais.
Tentaremos demonstrar como esse processo ocorreu com a Antropologia, visto
que sobre ela incidiram novas leituras através dos tempos, mas todas muito impor‑
tantes e significativas para o conhecimento de nossa sociedade. Vamos procurar ver
as principais formas pelas quais a Antropologia pensou a diferença ao longo de sua
história e reflexões. Sua história inicia-se no século XVI, marcando sua “estreia” em
uma perspectiva etnocêntrica, mas, pouco a pouco, essa leitura vai cedendo lugar
para novos conjuntos de ideias. Mais adiante discutiremos a questão do etnocentrismo
e seu impacto em nossa realidade.

2.1 Por que a Antropologia surgiu?


A história, tal como a conhecemos, sempre nos mostrou, desde a pré-história até
os dias atuais, a luta incessante do homem pela sobrevivência, pela superação de
suas limitações físicas frente à natureza, pelo enfrentamento de adversidades e pelo
esforço em desenvolver suas capacidades. Na sua interação com a natureza e o meio
ambiente, o homem teve que dominar as forças naturais por meio da inteligência,
da criatividade e do trabalho, mas seu sucesso enquanto espécie parece derivar,
sobretudo, de sua capacidade gregária, ou seja, do fato de associar-se com outros
homens, estabelecendo relações de cooperação e de ajuda mútua, formando assim
diversos grupos sociais. Segundo Auzias (1976, p. 28), “[...] é pelo trabalho que o
homem, sujeito a agrupamentos naturais, entra na cultura”.

Questões para reflexão


Será que podemos pensar a vida humana sem levar em conta a cultura?

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90  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Quando analisamos a historiografia dos diferentes povos que já habitaram o


planeta, os chamados “povos ou civilizações extintas”, e mesmo dos povos que
continuam existindo, observamos que nem sempre as relações entre grupos sociais
diferentes se revela pacífica e amistosa, mas, ao contrário, o que se observa é uma
sucessão de conflitos e confrontos, com menor ou maior intensidade, motivados por
uma infinidade de razões. Entre os inúmeros exemplos possíveis, destacaremos a seguir
alguns que representam importantes marcos históricos (CAMPOS; MIRANDA, 2005):
a) na Antiguidade grega, no século I a.C., a luta entre os estados helenísticos e o
exército romano, que marcou o início da dominação de Roma sobre a Grécia;
b) na Idade Média, as invasões turcas na região da Ásia Menor e a conquista de
Constantinopla em 1453, marcando o fim da era bizantina;
c) a Revolução Francesa, em 1789, que marcou o início da ascensão política
burguesa sobre as monarquias absolutistas europeias durante a consolidação do
capitalismo;
d) a Primeira Guerra Mundial, no início do século XX, entre os países da Tríplice
Aliança (Alemanha, Itália e Império Austro-Húngaro) e a Tríplice Entente (França,
Reino Unido e Rússia), que culminou com a derrota dos alemães e seus aliados em
1917;
e) a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, que opôs os países intitulados
“Aliados” (Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, União Soviética e China) aos países
“do Eixo” (Alemanha, Itália e Japão);
f) a chamada “Guerra Fria”, que durou quase cinquenta anos (de 1945 até 1991),
e representou o conflito político-ideológico entre os Estados Unidos, expoentes do
capitalismo, e a União Soviética, representante dos países socialistas;
g) os conflitos político-ideológicos entre os países fundamentalistas muçulmanos
e os demais países, especialmente os capitalistas e sua cultura ocidental.
Estes são apenas alguns exemplos que retratam a tendência conflituosa das re‑
lações inter-étnicas.

Questões para reflexão


Será que o homem é um ser conflitivo por natureza?

Apesar desses inúmeros exemplos registrados pelos historiadores que revelam


a dificuldade de se estabelecerem contatos pacíficos entre diferentes sociedades
e grupos étnicos, a necessidade de encontrar respostas capazes de explicar cienti‑
ficamente os motivos desses confrontos começou a surgir somente no século XIX,
quando pensadores europeus passaram a se interessar pelas culturas não europeias,
“descobertas” através das viagens marítimas dos espanhóis e portugueses entre os
séculos XV e XVI.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   91

Dentre as ciências que se lançaram na explicação do homem e das sociedades,


a Antropologia — ciência que nasce no século XIX — destacou-se por eleger como
seu objeto de estudos a diversidade humana em seus aspectos biológicos, sociais
e culturais. Costa (2003, p. 106) afirma que enquanto a Sociologia, que também é
uma ciência social, se dedicava à compreensão da sociedade europeia de sua época,
a Antropologia se voltava para “o estudo dos povos colonizados da África, Ásia e
América”, utilizando métodos de observação direta e de coleta de dados sobre essas
outras sociedades, que em muito se diferenciavam da cultura dos países europeus.
Nesse sentido, a autora afirma que o pensamento antropológico surge através da
descoberta da “alteridade”, isto é, da relação dos europeus com os outros povos.
Antes de falarmos da Antropologia é necessário entender o que estava acontecendo
no mundo, mais especificamente na Europa, entre os séculos XI e XIX. Esse período cor‑
responde à lenta e definitiva passagem da Idade Média para a Moderna, devido ao
surgimento e desenvolvimento do capitalismo.
Conforme Campos e Miranda (2005), o capitalismo é uma ordem social que se inicia
com as relações econômicas estabelecidas ao longo desse período, e que se estabe‑
lece em consequência da ampliação das novas formas de comércio e de produção do
território europeu, fruto do aumento populacional e da produção agrícola, da cria‑
ção de rotas comerciais terrestres (após o movimento das Cruzadas), e da formação
dos burgos e das cidades, onde se davam as trocas econômicas entre os diferentes
povos. Pode-se dizer que durante a chamada Baixa Idade Média os comerciantes se
tornaram verdadeiros mestres na arte de vender e de trocar mercadorias, enquanto os
artesãos, por sua vez, dedicaram-se ao aperfeiçoamento e à criação de técnicas de
produção, fatos estes que desencadearam profundas transformações na composição
da sociedade europeia.

Questões para reflexão


Por que será que a atividade produtiva passou a depender da atividade comercial
a partir desse período?

É importante destacar que durante o feudalismo o poder era centralizado nas mãos
dos reis, os quais dividiam o governo de seu povo com a nobreza e o clero. Como
legítimos representantes dos reis, os senhores feudais detinham parte desse poder, à
medida que comandavam porções do território que lhes eram destinadas por seu rei.
O governo absolutista dos reis e a divisão social baseada em estamentos (reis, nobres,
clero, servos e escravos) eram amplamente aceitos pelas pessoas, pois a ordem social
era determinada pela tradição e pela crença de que os reis eram os legítimos repre‑
sentantes de Deus na Terra.

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92  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Além do movimento de caráter econômico, surge outra forma de entender o


mundo, que buscava compreender a realidade por meio da valorização da ação hu‑
mana e das forças da natureza, bem como a desmistificação das explicações míticas e
religiosas tão enraizadas nesse período (COSTA, 2003). Essas novas formas de pensar
começam com o renascimento e desenvolvem-se até o iluminismo, formando uma
cultura racional que impulsionou os ideais liberais e a tomada do poder político e
econômico pela burguesia.
Todo esse contexto histórico representa, na verdade, uma sucessão de eventos
de caráter econômico, político, social e cultural que produziram profundas trans‑
formações na sociedade europeia entre a Idade Média e a Modernidade, resultando
no enfraquecimento da cultura feudal e no consequente fortalecimento da cultura
capitalista.

Para saber mais


O Iluminismo pode ser entendido como o conjunto de ideias e valores que se desenvolveu em
alguns países da Europa entre os séculos XVII e XVIII (especialmente França e Inglaterra), após o
movimento renascentista. Os pensadores iluministas, filósofos e intelectuais ligados às artes e
às ciências, passaram a lutar, ao lado da burguesia, pela liberdade política e econômica, o que
vai inspirar a Revolução Francesa no ano de 1789, em meio à Revolução Industrial (BARBOSA
FILHO; STOCKLER, 1993).

Questões para reflexão


Quais as principais características da cultura capitalista?

O capitalismo se estrutura, portanto, em decorrência de diversos fatores, sobretudo


o crescimento intelectual e científico da sociedade europeia, a invenção de novas
técnicas de produção, as descobertas de novos territórios e continentes por meio
das Grandes Navegações, o comércio marítimo e a consequente expansão europeia,
a dominação e colonização dos territórios descobertos, a Revolução Francesa, que
no ano de 1789 estabeleceu o início da dominação política e econômica da classe
burguesa, e, finalmente, a consolidação plena do capitalismo durante a Revolução
Industrial — a revolução das forças produtivas que reorganizou o modo de fazer
comércio e de acumular riquezas entre os países (HOBSBAWM, 2001).

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   93

2.2 O
 pensamento científico como base para o
surgimento da Antropologia
Em uma sociedade que baseava suas verdades fundamentalmente no pensamento
mítico e religioso, é possível imaginarmos a revolução intelectual e cultural que re‑
presentou a introdução de concepções científicas acerca do mundo e da realidade
social. O pensamento científico se distingue do teológico (religioso), do senso comum
e da filosofia, e pode ser entendido, em linhas gerais, como o conjunto de verdades
ou de respostas que se estabelecem a partir do estudo sistematizado das leis e regras
que explicam um determinado fenômeno, sendo necessário, para tanto, a utilização
de uma metodologia de observação, experimentação, comparação, análise e inter‑
pretação (MENDES et al., 2006). Se quisermos, por exemplo, compreender de fato
como uma determinada sociedade se originou e se desenvolveu, será necessário
estudarmos sua história e seus elementos concretos, que são passíveis de observação
e análise. Nesse sentido, nenhuma afirmação sobre tal sociedade que decorra de
ideias metafísicas ou sobrenaturais poderá ser reconhecida como científica. Daí a
refutação ou negação das verdades e dos dogmas difundidos pela fé e pelas crenças
religiosas, os quais não podem ser comprovados concretamente.

Questões para reflexão


Por que a ciência e a religião são formas de pensamento tão diferentes entre si?
Por que a ciência contesta as “verdades” religiosas?

Além disso, todas as concepções fundamentadas na ciência são, a priori, questio‑


náveis, pois uma das principais características desse tipo de pensamento é o fato de
levantar diversas hipóteses, possibilitando, assim, diferentes análises acerca de um
mesmo fenômeno, dependendo do método de investigação utilizado pelo cientista
e da teoria que fundamenta sua pesquisa. As verdades científicas não são, portanto,
definitivas, porque se resumem ao estudo e à interpretação de um fenômeno sob a
óptica de um determinado pesquisador, ainda que este faça sua análise tendo como
base estudos científicos anteriores e teorias desenvolvidas por outros cientistas.
No campo das ciências humanas e sociais o desenvolvimento do pensamento
científico pode ser considerado tardio se comparado com outros campos, como nas
ciências exatas e biológicas. Foi apenas no século XIX que alguns pensadores e inte‑
lectuais se interessaram em explicar os diversos fenômenos que configuravam a nova
ordem social capitalista, pois ainda não conseguiam entender o caos em que a Europa
havia mergulhado depois de tantos acontecimentos e revoluções.

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94  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Questões para reflexão


Mas como a Europa podia estar “mergulhada” em um caos se estava tão desen‑
volvida do ponto de vista científico e tecnológico?

Por um lado surgem os pensadores empenhados em estudar a própria sociedade


europeia, os quais deram origem à Sociologia. Por outro lado, e ao mesmo tempo,
surgem alguns intelectuais mais dedicados em compreender os povos não europeus,
movidos pela curiosidade em descobrir os motivos do que eles entendiam por “atraso
cultural” dessas sociedades. Serão estes os primeiros representantes da Antropologia,
ciência que surge no século XIX juntamente com a Sociologia, mas que tem como objeto
de estudos a compreensão das sociedades não europeias (COSTA, 2003). É exatamente
neste contexto de plena efervescência intelectual que surge a ciência antropológica.

2.2.1 Mas o que a Antropologia estuda exatamente?


Para respondermos a esta questão, vamos fazer primeiro um exercício de imagina‑
ção. Imagine que você está fazendo uma viagem pela Amazônia e tem a oportunidade
de conhecer uma comunidade indígena que vive no interior da floresta, mantendo
pouco contato com a população urbana. Ao se deparar com essas pessoas — os in‑
dígenas — e com o modo como vivem é bastante provável que você estranhe alguns
costumes, crenças, hábitos de alimentação e vestuário, os rituais que praticam, a
língua, as moradias, seus jeitos de ser, de pensar e de se expressar, a religiosidade,
o modo como estabelecem ligações afetivas e como educam as crianças, o jeito de
cuidarem da saúde, a divisão do trabalho, as tradições que cultivam, como contam
sua história, a relação que estabelecem com a natureza e com os outros povos, enfim,
todas as suas particularidades.

Questões para reflexão


Por que será que a humanidade se desenvolveu de modo tão diversificado, isto
é, diversas etnias e diferentes culturas?

Imagine quanto os perceberia como diferentes e estranhos em um primeiro mo‑


mento, tamanha a distância cultural em relação a tudo aquilo a que você está acos‑
tumado. Mas, digamos que você resolve ficar mais alguns meses nessa região, e passa
a conviver mais de perto com a comunidade indígena. Aos poucos irá conhecê-los
melhor, podendo, assim, entender certos aspectos de sua cultura. Em relação a esta
experiência, Laplantine (1988, p. 21, grifo do autor) afirma que:

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Apenas a distância em relação à nossa sociedade [...] nos permite


fazer esta descoberta: aquilo que tomávamos por natural em nós
mesmos é, de fato, cultural [...]. Disso decorre a necessidade, na
formação antropológica, daquilo que não hesitarei chamar de
“estranhamento” (depaysement), a perplexidade provocada pelo
encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo
encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre
si mesmo.

O autor se refere à experiência da “alteridade”, ou seja, do contato com pessoas


que são de uma cultura diferente, que possibilita conhecer melhor o “outro” e, ao
mesmo tempo, a si mesmo:
A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência)
leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada
a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos é habitual,
familiar, cotidiano, e que consideramos “evidentes”. Aos poucos,
notamos que o menor dos nossos comportamentos [...] não tem
realmente nada de “natural”. [...] O conhecimento (antropológico)
da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das ou‑
tras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma
cultura possível entre tantas outras, mas não a única (LAPLANTINE,
1988, p. 21, grifo do autor).

Diante disto, poderíamos perguntar: em que medida os indígenas podem ser con‑
siderados diferentes ou iguais aos demais habitantes de todo o planeta Terra? Para a
Antropologia esta é uma questão essencial, pois todas as sociedades se assemelham
no sentido de que possuem cultura (ainda que culturas diferentes), e seus integrantes
pertencem ao gênero humano (dotados de todas as capacidades humanas, como a
inteligência, a razão, as emoções e a criatividade). Mas as culturas não são idênticas,
porque têm especificidades, e é isso exatamente que faz com que as sociedades e os
grupos humanos mantenham diferenças entre si (RODRIGUES, 1989).

Questões para reflexão


O que mais diferencia os povos tribais (como os indígenas, por exemplo) dos
povos ocidentais?

A Antropologia é a ciência que estuda o homem na sua totalidade, ou, mais


especificamente, nas suas dimensões biológicas, sociais e culturais, procurando
compreender o modo como estas dimensões interagem e o que resulta dessa inte‑
ração. Podemos dizer que é o estudo do homem pelo próprio homem, ou, ainda, o
estudo do “outro” (da alteridade) e de si mesmo (LAPLANTINE, 1988). Sendo uma
ciência que trata do homem e da cultura, tem um campo de estudos abrangente, e
por isso abarca três dimensões essenciais: o tempo, através do estudo da história da
humanidade (desde os primeiros ancestrais hominídeos até os dias de hoje); o espaço,
com suas especificidades geográficas e ambientais; e as populações organizadas

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enquanto contingentes sociais e culturais. De acordo com Leach (1982), embora


haja diversidades biológicas de pouca ou mesmo nenhuma importância distintiva, a
principal característica da humanidade é ser tão diversa no que se refere aos aspectos
históricos, sociais e culturais.

Questões para reflexão


Será que a história é contada da mesma forma por todos os povos? Pensem em
sociedades como a nossa, com cultura ocidental, e nas sociedades ágrafas, que
não utilizam a escrita.

Links
Para mais informações sobre a Antropologia acesse o link: <www.antropologia.com.br/>.

A Antropologia pensa o homem como um ser que age sobre a natureza, apro‑
priando-se dela e transformando-a de acordo com suas necessidades e interesses.
Este modo de ser e de agir no mundo é fruto do aprendizado cultural: aprende-se no
cotidiano, através das experiências vividas no dia a dia, e também pelos costumes e
tradições passados de geração em geração. Isto
quer dizer que todos os seres humanos aprendem,
de uma forma ou de outra, a seguir regras, desem‑
Saiba mais penhar papéis sociais, respeitar certos valores e
Proponho que conheçam o livro de manter o padrão de comportamentos cultural‑
François Laplantine, intitulado mente aceitos por seus pares, fazendo com que
Aprender antropologia. Consta haja semelhanças nos modos de ser, de pensar,
das referências e é leitura obriga- de sentir e de agir no mundo por parte dos indi‑
víduos que compartilham uma mesma cultura.
tória para os estudantes que estão
iniciando nesta ciência. A Antropologia é, portanto, a ciência que es‑
tuda a diversidade cultural e social existente na
humanidade, quer seja analisando os diferentes
povos e sociedades que existiram no passado (extintos), os povos e sociedades que
existem no presente (países do Ocidente e do Oriente, sociedades tribais e demais
comunidades étnicas espalhadas pelo globo), ou uma mesma sociedade, debruçando‑
-se sobre sua diversidade cultural e social interna (um país, por exemplo). Os grandes
ramos nos quais se divide são: “Antropologia Biológica ou Física”, por um lado, e a
“Antropologia Social, Cultural e a Etnologia”, por outro.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   97

Segundo Costa (2003), a Antropologia Biológica ou Física dedica-se ao estudo


dos registros e dados históricos sobre os povos da Pré-História e da Antiguidade (os
ancestrais do homem contemporâneo e as grandes civilizações do passado), utili‑
zando-se dos achados da Arqueologia (vestígios, ossadas, fósseis, objetos e achados
arqueológicos), com a finalidade de reconstruir os modos de vida dos grupos huma‑
nos extintos. Panoff e Perrin (1973) afirmam que este ramo da Antropologia também
procura analisar os aspectos genéticos e biológicos do homem, inclusive do homem
contemporâneo, procurando identificar semelhanças e diferenças entre as diversas
etnias, além de investigar as semelhanças e diferenças entre o homem e os outros
animais, sobretudo os primatas.

Questões para reflexão


Será mesmo que o homem e os primatas evoluíram biologicamente a partir de
um mesmo tronco genético? Que tal pesquisar sobre isto?

Em relação à Antropologia social, cultural e etnologia, são denominações uti‑


lizadas para especificar o ramo da Antropologia que se direciona para o estudo das
sociedades contemporâneas, as diversas formas de organização social e de cultura
espalhadas pelo globo, especialmente no que se refere à linguagem, organização
social, política e econômica, relações de gênero e de parentesco, instituições em
geral (família, casamento, religião etc.), sistemas simbólicos, mitos, rituais, crenças,
modos de agir e de se expressar, as particularidades históricas, a arte, a produção do
conhecimento, entre outros aspectos.
Sobre a Etnologia, trata-se de um termo que se relaciona com o estudo das diversas
etnias ou “raças”, através do uso da metodologia etnográfica, da observação direta
e da coleta de dados junto à sociedade estudada:
A etnografia é a coleta direta, e o mais minuciosa possível, dos
fenômenos que observamos [...]. Esses fenômenos podem ser
recolhidos tomando-se notas, mas também por gravação sonora,
fotográfica ou cinematográfica (LAPLANTINE, 1988, p. 25).

Os termos Antropologia e Etnologia, embora possam ser pensados como sinôni‑


mos, são identificados como distintos em alguns aspectos: na tradição terminológica
francesa encontra-se mais o uso do termo “Etnologia”, enquanto o termo “Antropo‑
logia” corresponde à escola anglo-saxônica. Laplantine (1988) seguindo a linha de
Lévi-Strauss, afirma que a Etnologia e a Antropologia são momentos distintos “de
uma mesma abordagem”, os quais são posteriores à Etnografia:
A etnologia consiste em um primeiro nível de abstração: analisando
os materiais colhidos, faz aparecer a lógica específica da sociedade
que se estuda. A antropologia, finalmente, consiste em um segundo
nível de inteligibilidade: constrói modelos que permitem comparar
as sociedades entre si (LAPLANTINE, 1988, p. 25).

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Outros autores, como Leach (1982), preferem distinguir uma da outra. Os antro‑
pólogos sociais podem ser pensados como aqueles pesquisadores mais voltados ao
estudo do funcionamento das instituições sociais, como a família, a religião, a polí‑
tica, a economia, as relações entre os diferentes grupos a atores sociais no interior
de uma sociedade etc.

Questões para reflexão


Quando comparamos diferentes tipos de sociedade encontramos muitas seme‑
lhanças entre elas, por exemplo, o fato de que em todas há algum tipo de ma‑
nifestação religiosa ou de organização familiar. Por que será que todos os povos
desenvolveram, cada um a seu modo, a religiosidade e a família?

Panoff e Perrin (1973, p. 21) entendem que o maior objetivo da Antropologia social
é “estabelecer leis gerais da vida em sociedade” que possam ser aplicadas na análise
de toda e qualquer sociedade. Além disso, os antropólogos sociais estariam menos
interessados na perspectiva diacrônica, isto é, na busca por elementos históricos da
população estudada. Com isso, os antropólogos sociais estariam mais empenhados
em análises sincrônicas, voltadas para os elementos do tempo presente. Os principais
nomes da Antropologia Social são: Bronislaw Malinowski, Radcliffe Brown, Evans‑
-Pritchard, Fortes, Raymond Firth, Max Glukman, Victor Turner e o próprio Edmond
Leach.
Ainda segundo Leach (1982) os antropólogos culturais, por outro lado, sempre
se debruçaram mais sobre os problemas relativos às questões de etnia e de compor‑
tamentos culturalmente aprendidos em cada sociedade pesquisada, principalmente
as chamadas “sociedades tribais” e as não ocidentais. Ao contrário dos antropólogos
sociais, os culturais reconhecem a necessidade de se analisar a história dos diversos
povos e etnias. Para Panoff e Perrin (1973) os antropólogos culturais sempre estive‑
ram mais preocupados com os “problemas de relativismo cultural”, defendendo a
necessidade de respeitar as especificidades culturais de cada sociedade. Entre os
representantes da Antropologia cultural estão: Franz-Boas, Margaret Mead e Ruth
Benedict, da escola culturalista norte-americana.

2.2.2 O desenvolvimento da ciência antropológica


A Antropologia é uma ciência que vem se desenvolvendo desde o século XIX,
mas é possível afirmar que os primeiros “registros etnográficos” começaram a ser
produzidos já no século XVI, quando os europeus começaram a viajar por terras dis‑
tantes. É claro que nessa época não se falava ainda em Antropologia ou Etnologia,
mas para os pensadores desta ciência essas etnografias representam o marco inicial
do saber antropológico.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   99

Etnografia é um método de coleta de dados que possibilita identificar as carac‑


terísticas específicas de uma determinada sociedade ou grupo humano, através da
observação direta, descrição (anotações e registros) e análise dos modos de vida
e da cultura. Sua finalidade é reconstituir, o mais fielmente possível, os diversos
aspectos e elementos da organização e da dinâmica social. Embora atualmente o
método etnográfico seja utilizado em pesquisas sobre qualquer sociedade (inclusive
a nossa), durante o século XIX e nas primeiras décadas do século XX as etnografias
foram direcionadas mais para o estudo dos povos chamados “primitivos”, ou seja,
as sociedades tribais e nativas que vivam nos continentes colonizados pelos países
europeus, ainda distantes do modo de produção industrial (PANOFF; PERRIN, 1973).

2.2.2.1 P
 rimeiros registros etnográficos feitos por viajantes
europeus (séculos XVI a XIX)
Durante o período que compreende os séculos XVI e XIX, na transição histórica
entre o mundo feudal e o capitalista, houve a produção e o acúmulo de um grande
volume de informações e descrições sobre as culturas não europeias, obtidas através
dos registros etnográficos realizados durante as viagens feitas pelos exploradores, co‑
lonizadores, missionários, comerciantes e militares europeus aos territórios situados
fora da Europa. Esses viajantes eram incumbidos de fornecer aos governos de seus
países (sobretudo Portugal, Espanha, Inglaterra e França), uma série de descrições
acerca dos recursos naturais disponíveis nesses territórios, bem como dos povos que,
segundo se acreditava na época, eram selvagens e atrasados, e, portanto deveriam
ser civilizados de acordo com os padrões impostos pela cultura europeia. Nesse
período havia muitos interesses econômicos e políticos em jogo, levando os países
exploradores a investir muito nessas viagens. Esses investimentos de caráter explo‑
ratório acabaram favorecendo a produção de conhecimentos sobre os povos nativos
que viviam nas áreas colonizadas (LAPLANTINE, 1988).

Questões para reflexão


É correto afirmar que os europeus tinham “consciência” do abuso que estavam
cometendo ao impor sua cultura sobre os povos nativos dos territórios do Novo
Mundo?

Segundo Pelto (1967, p. 27) outro fato importante foi o fortalecimento da Filo‑
sofia iluminista, que defendia “[...] ideias de progresso e evolução que passaram a
ser centrais para a teoria antropológica do século XIX”, e a publicação da obra de
Charles Darwin, A origem das espécies, em 1859, que revolucionou o pensamento
científico sobre a relação do homem com a natureza, levando muitos pesquisadores

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e estudiosos da cultura humana a explicarem as diferenças entre as sociedades por


meio dos princípios da evolução natural.
Os filósofos do iluminismo, especialmente Turgot e Condorcet, são
as principais fontes de muitas das ideias que constituíram a teoria
da evolução cultural. Afirmavam que a história dos seres humanos
pode ser descrita como progresso (melhoria) desde o início simples
até a nossa civilização complexa. Apresentavam supostos estágios
através dos quais teria progredido a cultura humana [...] até a ci‑
vilização moderna (PELTO, 1967, p. 30, grifo do autor).

A sociedade burguesa europeia, embora fosse bastante heterogênea na sua confor‑


mação étnica, linguística e cultural, acreditava ser mais evoluída que as demais pelo
fato de ter desenvolvido formas de pensamento e costumes que eram decorrentes da
concepção científica/racional do universo e do modo de produção capitalista. Essas
formas de pensar e de agir não faziam parte da cultura dos povos colonizados, por
isso os europeus se colocaram como o modelo de civilização que devia ser seguido.
Como exemplos dos registros etnográficos sobre os povos indígenas do Brasil,
nesse período, destacam-se a “Carta do Descobrimento do Brasil”, de Pero Vaz de
Caminha, e a obra “Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil”, de Jean Baptiste Debret.
Nesses registros era comum a referência aos indígenas brasileiros como homens que,
apesar de serem “selvagens” e de andarem nus, eram puros pacíficos. Embora esses
primeiros etnógrafos tenham manifestado uma concepção totalmente etnocêntrica,
por entenderem a cultura europeia como a mais evoluída e civilizada, seus registros
são reconhecidos como fundamentais para se compreender os caminhos percorridos
pela Antropologia após o século XIX.

Questões para reflexão


Nós, brasileiros, ainda temos o hábito de pensar que as culturas estrangeiras,
principalmente a norte-americana e a europeia, são melhores do que a nossa.
Por que fazemos isto?

2.2.3 Evolucionismo
Uma primeira forma de entender a diversidade cultural existente é conhecida
como evolucionismo, sendo essa ideia (evolução) um ponto importantíssimo para o
pensamento antropológico. Podemos pensar essa leitura baseada em uma pergunta:
“O ‘outro’ é diferente porque possui diferentes graus de evolução?”.
Segundo Rocha (1994), evolução, no seu sentido mais amplo, equivale a desen‑
volvimento. É a transformação progressiva no sentido da realização plena de algo
latente. É a manifestação plena do que estava oculto. Evolução em outras palavras é o
desenvolvimento obrigatório de uma determinada unidade que revela, pelo processo

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evolutivo, uma segunda forma, mostrando, então, sua potencialidade. É um processo


permanente onde uma unidade qualquer se transforma numa segunda que, por sua
vez, se transforma numa terceira e assim sucessivamente.
A partir do século XIX os primeiros pensadores da Antropologia começaram a rea‑
lizar estudos sistematizados sobre os povos não europeus, denominados “primitivos”
(não civilizados). Baseavam seus estudos nos conhecimentos da Arqueologia e das
Ciências Naturais, principalmente a Biologia, e nos registros etnográficos produzidos
desde o século XVI.
Com uma perspectiva diacrônica unilinear (valorização da evolução do homem ao
longo da história), os evolucionistas procuravam compreender as origens do homem
e suas várias formas de evolução cultural, concentrando-se principalmente no estudo
da organização social, sistemas de parentesco, crenças e religiões.
Nesse momento os estudos biológicos e naturais é que buscavam explicar o de‑
senvolvimento dos homens, sendo que o livro “A origem das espécies” de Darwin
passa a ser o principal referencial. Essa noção biológica de evolução se uniu ao
pensamento e discussões filosóficas dos estudos iluministas do século XVIII, dando
uma leitura de organismo social.
Esses intelectuais, também conhecidos como “darwinistas sociais” preferiam
permanecer dentro de seus gabinetes, desenvolvendo teorias que pudessem explicar
os modos de vida desses povos, comparando-os entre si, e o porquê de não terem
conseguido se desenvolver como sociedades civilizadas, a exemplo dos europeus.
A Europa se vê confrontada com uma conjuntura inédita. Seus
modos de vida e suas relações sociais sofrem uma mutação sem
precedente. Um mundo está terminando, e um outro está nascendo.
Se o final do século XVIII começava a sentir essas transformações,
ele reagia ao enigma colocado pela existência de sociedades que
tinham permanecido fora dos progressos da civilização [...]. Ora, no
século XIX, o contexto geopolítico é totalmente novo: é o período
da conquista colonial [...]. É no movimento dessa conquista que se
constitui a Antropologia moderna, o antropólogo acompanhando
de perto, como veremos, os passos do colono (LAPLANTINE, 1988,
p. 64, grifo do autor).

Nesse sentido o evolucionismo antropológico institui que a noção de progresso


passa a ser essencial, pois é através do desenvolvimento da história e do tempo que
o homem e a sociedade se constroem. Nesse momento acredita-se na unidade básica
da espécie humana (um desenvolvimento único para todos os homens e sociedade,
sendo o fator tempo importantíssimo para a explicação social).
A direção é a de um estágio superior de civilização. Saindo de
estágios mais primitivos numa trajetória de permanente progresso
onde o tempo é a teia onde se tece a evolução. Assim, a origem da
humanidade tem de ser num passado longínquo para que as etapas
se sucedam na direção de uma civilização mais e mais avançada,
mais e mais absoluta em suas conquistas (ROCHA, 1994, p. 28).

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Diante desse contexto, esses “pesquisadores-eruditos do século XIX”, como afirma


Laplantine (1988, p. 63), desenvolvem uma postura etnocêntrica, pois suas análises
partiam do referencial de superioridade do povo europeu sobre os demais. Para esses
teóricos todos os povos não civilizados teriam que passar, necessariamente, pelos
mesmos estágios de desenvolvimento para chegar até a civilização. Apenas a cultura
europeia era considerada por eles como desenvolvida no maior estágio evolutivo.
A primeira geração de antropólogos buscava estabelecer as etapas de evolução
das sociedades encontradas pelo mundo, sendo eles Sir James George Frazer e Sir
Edward Burnett Tylor (na Inglaterra) e Lewis Morgan (nos Estados Unidos).
Esses estudos pautavam-se na busca por compreender os estágios mais primitivos
de uma sociedade, sendo que eles afirmavam que todas as formações humanas têm
origens remotas e caminham no mesmo sentido, na direção do progresso. Esses es‑
tudiosos começaram a relacionar os “povos primitivos” e os “povos civilizados” para
traçar um paralelo de desenvolvimento para a sociedade, sendo que todos sairiam de
um estágio de barbárie, passando pela selvageria e finalmente chegando à civilização,
esta fundada nos princípios da Europa e dos Estados Unidos.
Essa definição dos estágios da civilização pode ser baseada na definição de cultura
de Tylor, em seu livro A origem das culturas, que fundamenta-se que:
Cultura ou civilização, no seu sentido etnográfico estrito, é este
todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, artes, leis,
moral, costumes e quaisquer outras capacidades e hábitos adqui‑
ridos pelo homem enquanto membro da sociedade (TYLOR apud
ROCHA, 1994, p. 30).

Esses itens estão presentes em todas as culturas, umas mais “civilizadas” do que
outras, uma vez que esses itens eram pensados como uma linha de evolução, a partir
do “polo primitivo”, e por via do progresso, chegando ao “polo da civilização”.
Morgan, antropólogo norte-americano, institui alguns pontos que “moldaram”
essa linha de evolução: “governo”, “meios de subsistência”, “arquitetura”, “religião”,
“família”... Dividindo o período da história em três grandes períodos básicos da so‑
ciedade: selvageria, barbárie e civilização.

2.2.4 Escola sociológica francesa


Paralelamente à escola evolucionista, surge no final do século XIX, na França, uma
corrente de pensamento antropológico fundamentada na Sociologia, mas que ainda
se limitava em estudar as sociedades ditas “primitivas”. Os teóricos procuravam se
debruçar sobre os fenômenos sociais que se expressavam na forma de representações
coletivas de caráter biológico, psicológico e social, dando início, assim, à Antropo‑
logia social, que se desenvolveu posteriormente com os antropólogos funcionalistas
britânicos.
Os pensadores da chamada escola sociológica francesa, representados especial‑
mente por Émile Durkheim, autor de Regras do Método Sociológico (1895); As formas
elementares da vida religiosa (1912); e Algumas formas primitivas de classificação

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(1901), escrito em conjunto com Marcel Mauss, que também publicou Ensaio sobre
a Dádiva (1923). Nessas obras, esses teóricos procuraram analisar as manifestações
de solidariedade mecânica e orgânica, o totemismo, o fato social total, o sistema
de trocas e a reciprocidade, considerando-os como conceitos fundamentais para se
conhecer a ordem social em qualquer sociedade.
Também pensavam nas sociedades “primitivas” de modo similar aos evolucionis‑
tas, de tal forma que o processo de desenvolvimento da ordem social necessariamente
deveria passar pelos estágios da selvageria, barbárie e civilização, concentrando suas
análises na comparação com a sociedade industrializada e capitalista (MAIR, 1979).
Um aspecto fundamental desta escola é que se privilegiou o conhecimento
científico através do rigor metodológico, e para isso procuraram utilizar o método
comparativo da Sociologia positivista, o que serviu de base para os antropólogos
ingleses do início do século XX.

Questões para reflexão


Quando afirmamos que um povo é mais culto e educado do que outro, estamos
manifestando, de certa forma, uma visão evolucionista e etnocêntrica, na medida
em que supervalorizamos um e desvalorizamos outro. Por que fazemos isso?

2.2.5 Difusionismo
A escola difusionista foi contemporânea à evolucionista e à sociológica francesa,
mas procurou focalizar sua atenção em outras dimensões da cultura. Teve maior ex‑
pressão nos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, e foi crítica do pensamento evolu‑
cionista. Os antropólogos difusionistas dedicaram-se ao estudo das origens e extensões
de todas as culturas, e estabeleceram alguns conceitos específicos para explicar as
semelhanças e diferenças entre uma sociedade e outra. Um conceito importante
desta escola antropológica é o de “empréstimo cultural”, através do qual procuravam
demonstrar que as diversas sociedades, interagindo entre si por meio de encontros
e de “áreas culturais” comuns, teriam desenvolvido uma mistura de características
e modos de ser, como resultado de uma tendência humana natural à imitação e à
absorção de elementos culturais, quer as tornaria muito semelhantes em alguns
aspectos (PANOFF; PERRIN, 1973). Os difusionistas defendiam que alguns traços
culturais estariam presentes em todos os povos, e estudando a história da humani‑
dade, chegaram à conclusão de que existiram “centros de difusão” em determinadas
regiões, especialmente no Egito, que foram responsáveis pela disseminação desses
traços culturais pelo mundo, embora cada sociedade os tivessem desenvolvido de
modo específico (MAIR, 1979).
Mas as ideias desses pensadores foram superadas pelas escolas seguintes, não
sendo mais aceitas na Antropologia contemporânea. Entre os autores mais conhecidos

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estão: A. Bastian; F. Ratzel; G. Elliot Smith; W. J. Perry; W. H. R. Rivers; F. Graebner;


e F. W. Schmidt (fundador da Revista Anthropos).
Queremos deixar claro que aqui estamos indicando somente como a Antropo‑
logia com ciência se desenvolveu, pontuando as correntes teóricas oriundas dessas
transformações. Intrinsecamente a isso, temos processos críticos sobre as teorias
em um debate construtivo para a cultura como um todo, pois podemos analisar a
preocupação dos estudiosos em não se acomodar com certas explicações, mas sim
sempre buscar novas leituras sociais.

2.2.6 Funcionalismo e estrutural-funcionalismo


A escola funcionalista, cujo maior representante é Bronislaw Malinowski, e sua
variante estrutural-funcionalista, de Radcliffe-Brown (1973), se consolidou na Grã‑
-Bretanha, nas primeiras décadas do século XX. Esses antropólogos, em especial
Malinowski e seus seguidores, passaram a criticar a Antropologia evolucionista e a
difusionista. Fizeram uma ruptura com os estudos teóricos de gabinete (nos quais os
estudiosos limitavam-se a teorizar sobre os vários povos sem conhecê-los de perto),
e elaboraram análises empíricas, procurando co‑
nhecer as diversas culturas humanas por meio de
pesquisas de campo. Resgataram, portanto, a et‑
Saiba mais nografia, ou seja, as observações e registros in
Proponho que conheçam o livro de loco, bem como entrevistas com informantes na‑
Malinowski, um clássico da Antro- tivos (LAPLANTINE, 1988).
pologia, intitulado Argonautas O que importava para os funcionalistas e para
do Pacífico Ocidental. Consta os estrutural-funcionalistas era o modo como as
das referências e é uma leitura sociedades se organizavam e se expressavam
muito interessante, pois o autor no tempo presente, por isso abdicaram da pers‑
relata sua experiência junto aos pectiva diacrônica (histórica), concentrando-se
habitantes das Ilhas Trobriand. É nas instituições sociais e sua interdependência
muito curioso! Recomendo tam- funcional observadas no tempo presente, por‑
bém que tenham contato com a tanto, uma perspectiva sincrônica (PELTO, 1967;
obra de Radcliffe-Brown, sobre- LAPLANTINE­, 1988).
tudo Estrutura e função na so- Nesse contexto temos outra explicação, agora
ciedade primitiva. denominada de funcionalismo, que discorda de
uma leitura unicamente histórica como eixo para
compreensão do presente. Não existe a necessidade
de explicação dos fatos presentes pela história, ou seja, a sincronia — presente — não
está submetida à diacronia — história.
Os funcionalistas propunham a leitura da cultura baseada nos estudos funcionais
das sociedades, ou seja, não mais uma leitura historicista mas sim uma abordagem
funcional. Nesse contexto estão presentes Radcliffe Brow, Bronislaw Malinowski.

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Aqui a Antropologia se desvincula unicamente da história e fundamenta-se em


estudar a sociedade sem se preocupar exclusivamente com o seu passado. Assim
torna-se importante compreender o “funcionamento” de uma sociedade.
Vamos deixar mais claro: a sincronia (presente) deve ser analisada por alguns
conceitos bem estabelecidos, como “processo”, “estrutura” e “função”, sendo que
esses itens formam um esquema interpretativo da realidade social. A união dos itens
acima formaria um processo social, como um encadeamento das relações, das ações,
das interações entre os seres humanos que passam a ocupar “papéis sociais”.
Aqui podemos colocar a noção de função, pois cada processo e estrutura social
teriam sua funcionalidade na sociedade. Assim existe uma comparação entre o sis‑
tema social e o corpo humano. No que se refere à sociedade, segundo Durkheim
(1988), ela pode ser comparada a um organismo vivo. O que isto significa? O que é
um organismo vivo? Vejamos: para ele a sociedade é como um “corpo humano”: é
composto por diferentes partes, cada qual com sua função específica a desempenhar
e que são interdependentes, isto é, que dependem umas das outras. Além disso, o
estado “natural“ deste “corpo” seria a saúde, que seria obtida através da integração
das partes. Na sociedade, algumas instituições desempenham uma “função” crucial
na manutenção dos “processos” e “estruturas”, sendo que essas instituições e suas
funções podem varia de sociedade para sociedade.
A outra corrente advém de Radcliffe-Brown, reconhecido como um estrutural‑
-funcionalista por focalizar sua atenção nas estruturas sociais que determinavam
o funcionamento das instituições culturais. Menos preocupado com os trabalhos
de campo, e mais influenciado pela cientificidade positivista de Durkheim (escola
sociológica francesa), este antropólogo se destacou por reconhecer cada sociedade
como um sistema natural, autossuficiente, e que existia independentemente dos in‑
divíduos que o compunham. Concentrava-se na classificação das instituições sociais
e no seu papel determinante das relações entre os homens. É identificado como um
dos precursores da Antropologia Social contemporânea.
Aqui se faz presente uma nova leitura antropológica. Com o funcionalismo a
sociedade dos “outros” deixam de ser pensadas por noções da sociedade do “eu”.
Nesse momento a Antropologia tornou-se capaz de pensar igualmente a nossa so‑
ciedade e aquelas que dela diferem, sendo que a noção de tempo (linear, histórico)
passa a não ser a única a explicar as diferenças. Existem muitas formas de conceber
e interpretar o tempo.
Os maiores representantes do funcionalismo são: B. Malinowski (Argonautas do
Pacífico Ocidental — 1922); Radcliffe-Brown (Estrutura e função na sociedade pri-
mitiva — 1952 e Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento — 1950);
Evans-Pritchard (Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande — 1937 e Os Nuer —
1940); R. Firth (Nós, os Tikopia — 1936 e Elementos de organização social — 1951);
M. Glukman (Ordem e rebelião na África tribal — 1963); V. Turner (Ruptura e con-
tinuidade em uma sociedade africana — 1957 e O processo ritual — 1969); e E.
Leach (Sistemas políticos da Alta Birmânia — 1954).

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2.2.7 Culturalismo norte-americano


No início do século XX surge nos Estados Unidos uma corrente que, utilizando-se
do método histórico (diacrônico), das pesquisas de campo e da etnografia, reconhe‑
cia também o princípio da difusão cultural, mas criticava a concepção generalista
dos difusionistas, entendendo que as trocas culturais entre sociedades diferentes
ocorriam somente em regiões próximas geograficamente. Através da perspectiva
diacrônica (histó­rica) e com influência da Psicologia, os culturalistas defendiam que
era necessário “[...] descobrir as características de uma cultura mediante o estudo
das suas manifestações através dos indivíduos e das suas influências sobre o seu
comportamento” (PANOFF; PERRIN, 1973, p. 50). Tal premissa esteve, sobretudo,
ligada às ideias de Ruth Benedict e de Margaret Mead, ambas discípulas de Franz
Boas, antropólogo alemão que desenvolveu sua carreira nos Estados Unidos, e um dos
grandes nomes da geração que precedeu a Antropologia moderno-contemporânea.
Boas (2005, p. 25), precursor da corrente culturalista, afirma que:
A Antropologia moderna descobriu o fato de que a sociedade
humana cresceu e se desenvolveu de tal maneira por toda a parte,
que suas formas, opiniões e ações têm muitos traços fundamen‑
tais em comum. Essa importante descoberta implica a existência
de leis que governam o desenvolvimento da sociedade e que são
aplicáveis tanto à nossa quanto às sociedades de tempos passa‑
dos e de terras distantes; que seu conhecimento será um meio de
compreender as causas que favorecem e retardam a civilização;
e que, guiados por esse conhecimento, podemos ter a esperança
de orientar nossas ações de tal modo, que delas advenha o maior
benefício para a humanidade.

Segundo Boas (2005), uma das grandes tarefas da Antropologia, e que depende
do método diacrônico, é desvendar os processos históricos responsáveis pelo desen‑
volvimento de certos estágios culturais, afirmando que:
Os costumes e as crenças, em si mesmos, não constituem a fina‑
lidade última da pesquisa. Queremos saber as razões pelas quais
tais costumes e crenças existem — em outras palavras, desejamos
descobrir a história de seu desenvolvimento (BOAS, 2005, p. 33).

Questões para reflexão


Por que o ser humano se tornou, historicamente, tão dependente de tradições,
costumes, crenças, valores, regras etc.?

O culturalismo americano, como é chamado, toma como premissa essencial à


apreensão da cultura em sua totalidade (CASTRO apud BOAS, 2005), mas foi muito
criticado pelos antropólogos sociais britânicos (os funcionalistas e estruturais-funcio‑
nalistas). Uma das principais contribuições desta escola é o fato de terem elaborado
e difundido o conceito de “relativismo cultural”, cujo significado corresponde à ati‑
tude de respeito às diferenças por meio da ampla compreensão do “outro”. Também

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defendiam que era necessário conhecer as diversas características de uma cultura


por meio da análise das ações individuais, identificando suas influências sobre o
comportamento humano (PANOFF; PERRIN, 1973).
Sobre o método culturalista, o próprio Boas (2005, p. 45) afirma que:
Antes de mais nada, todo o problema da história cultural se
apresenta para nós como um problema histórico. Para entender a
história é preciso conhecer, não apenas como as coisas são, mas
como elas vieram a ser assim.

A preocupação central dos culturalistas, como se pode observar na citação an‑


terior, é direcionar suas análises para as mudanças e as dinâmicas próprias de cada
sociedade, a fim de que se possa esclarecer a ocorrência dos processos culturais que
são específicos.
Em primeiro lugar, a história da civilização humana não se nos
apresenta inteiramente determinada por uma necessidade psicoló‑
gica que leva a uma evolução uniforme em todo o mundo. Vemos,
ao contrário, que cada grupo cultural tem sua história própria
e única, parcialmente dependente do desenvolvimento interno
peculiar ao grupo social e parcialmente de influências exteriores
às quais ele tenha estado submetido. Tanto ocorrem processos de
gradual diferenciação quanto de nivelamento de diferenças entre
centros culturais vizinhos. Seria completamente impossível en‑
tender o que aconteceu a qualquer povo particular com base num
único esquema evolucionário (BOAS, 2005, p. 47).

Boas (2005) foi um crítico contundente às correntes etnocêntricas que se baseavam


na tese da divisão da humanidade em grupos raciais, considerando que a ideia de “raças”
fortalecia atitudes sectárias e antipatias entre os povos. Para este pesquisador tais atitudes
são decorrentes de ideias socialmente construídas, não explicadas em nível biológico.
Não importa quão fraco o argumento em favor da pureza racial
possa ser, nós compreendemos seu apelo social em nossa sociedade.
Embora as razões biológicas aduzidas possam não ser relevantes, a
estratificação da sociedade em grupos sociais de caráter racial irá
sempre levar à discriminação de raça. Tal como em todos os outros
agrupamentos humanos bem marcados, o indivíduo não é julgado
como um indivíduo, mas como membro de sua classe. Podemos
ter uma razoável certeza de que, onde quer que os membros de
diferentes raças formem um único grupo social com laços fortes, os
preconceitos e antagonismos raciais irão perder sua importância. Eles
podem mesmo vir a desaparecer inteiramente. Enquanto insistirmos
numa estratificação segundo camadas raciais, devemos pagar um
preço alto na forma de luta inter-racial (BOAS, 2005, p. 47).

Saiba mais
Sugerimos que procurem conhecer também um dos livros mais importantes da obra de Franz
Boas, básico para os estudantes de Antropologia Cultural. O título é Antropologia cultural e
está mencionado nas Referências.

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Nesse sentido parece muito justo atribuir a Boas e a seus seguidores a introdução
do conceito de relativização cultural no pensamento antropológico, e a defesa de se
considerar todos os diferentes grupos sociais como igualmente pertencentes à hu‑
manidade. Boas (2005) chega a lançar uma importante questão, que nos faz pensar
em nossa própria forma de conceber a diversidade humana, ainda definida a partir
de critérios raciais, e essa construção social da desigualdade étnica: “Será melhor
para nós continuar como estamos, ou devemos tentar reconhecer as condições que
levam aos antagonismos fundamentais que nos atormentam?” (BOAS, 2005, p. 85).

Questões para reflexão


O que quer dizer “relativismo ou relativização cultural”? Por que este conceito
se tornou tão importante para a Antropologia?

Os principais representantes do culturalismo são: Franz Boas (Os objetivos da etno-


logia — 1888; e Raça, língua e cultura — 1940); Margaret Mead (Sexo e temperamento
em três sociedades primitivas — 1935); Ruth Benedict (Padrões de cultura — 1934 e
O crisântemo e a espada — 1946).

2.3 Estruturalismo
É essa leitura que o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss vai trabalhar. Segundo
Strauss não são todas as sociedades que utilizam a forma de tempo como a nossa (cro‑
nológico, histórico, linear), sendo que para muitas sociedades o tempo e a sua passagem
não podem ser vistos como uma cadeia de acontecimentos. “Aqui a Antropologia se
coloca como uma ciência interpretativa, que busca apenas conhecer os significados
que os seres humanos, tanto da sociedade do “eu” quanto do “outro”, dão às formas
pelas quais escolheram viver suas vidas” (ROCHA, 1994, p. 87, grifo do autor).
O estruturalismo antropológico teve sua origem na França, em meados da década de
1940, com Claude Lévi-Strauss, conhecido por ser um teórico revolucionário pela forma
como buscou compreender as culturas humanas (SILVA, 2008). Contrapondo-se às esco‑
las anteriores, sobretudo o funcionalismo, e colocando-se no limite entre a antropologia
social e a antropologia cultural (LEACH, 1982) seu pensamento se baseia na Psicologia,
na Mitologia e na Linguística (teoria de Saussure), concebendo a noção de que todas
as sociedades possuem uma estrutura comum, cuja lógica se fundamenta na maneira
como o cérebro humano (a mente) processa as informações e os códigos da linguagem.

Questões para reflexão


É possível imaginar nos dias de hoje alguma sociedade que não utilize a linguagem
como forma de expressão? Impossível, não é mesmo?

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Lévi-Strauss retoma a análise sincrônica, focalizando a atenção nos elementos


culturais que são persistentes e recorrentes em toda e qualquer sociedade, indepen‑
dentemente das mudanças observadas ao longo da história. Lévi-Strauss (1998) também
introduz conceitos como os de “sociedades quentes” (que se preocupam com a análise
de sua própria história) e “sociedades frias” (que não se preocupam em analisar sua
história), explicando tal distinção da seguinte forma:
Ela não postula, entre as sociedades, uma diferença de natureza,
não as coloca em categorias separadas, mas se refere às atitudes
subjetivas que as sociedades adotam diante da história, às ma‑
neiras variáveis com que elas a concebem. Algumas acalentam
o sonho de permanecer tais como imaginam ter sido criadas na
origem dos tempos. É claro que elas se enganam: essas sociedades
não escapam mais da história do que aquelas — como a nossa — a
quem não repugna se saber históricas, encontrando na ideia que
têm da história o motor de seu desenvolvimento. Nenhuma socie‑
dade pode, portanto, ser dita absolutamente “fria” ou “quente”.
São noções teóricas, e as sociedades concretas deslocam-se no
correr do tempo, em um sentido ou em outro, sobre um eixo cujos
pólos nenhuma delas jamais ocupará. Depois de ter salientado
que sociedades outrora frias se aquecem quando a história as
traga e as arrasta (como se observa nas duas Américas, onde os
povos indígenas, assumindo seu passado, descobrem que têm
interesses comuns e se agrupam em nações para defendê-los), eu
me perguntei se, nesse fim de século, nossas próprias sociedades
não mostravam sinais perceptíveis de esfriamento (LÉVI-STRAUSS,
1998, grifo do autor).

Lévi-Strauss (1996, p. 49) afirma que “[...] a recorrência, em regiões afastadas


do mundo e em sociedades profundamente diferentes [...], faz crer que, em ambos
os casos, os fenômenos observáveis resultam do jogo de leis gerais, mas ocultas”.
Assim, a estrutura que permite analisar as diversas sociedades se situa no nível do
inconsciente coletivo, e se traduz em mitos que são recorrentes.

Questões para reflexão


Mitos são falsas-verdades, isto é, “verdades” em que as pessoas acreditam, mas
que a ciência não comprova, por exemplo: é perigoso para a saúde tomar banho
depois de fazer uma refeição. Isto é um mito, mas muita gente acredita, não é
mesmo? Que outros exemplos de mito vocês conhecem?

Além dos mitos, Lévi-Strauss dedicou-se à análise da estrutura das linhagens


familiares e parentesco, o tabu do incesto, a religião, a reciprocidade (trocas) e a
linguagem, procurando estabelecer leis gerais capazes de explicar os sistemas sobre
os quais desenvolvem-se as estruturas sociais.

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110  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Para este pensador a linguagem humana é a base de sustentação de uma cultura,


e por isso é carregada de signos, símbolos e significados. Estes, por sua vez, sempre
seguem uma lógica binária, compondo pares de oposição, do tipo: feio/bonito, alto/
baixo, certo/errado etc. Segundo Lévi-Strauss (1996, p. 63, grifo do autor), a análise
estrutural permite identificar os “[...] pares de oposições que são necessários para a
elaboração do sistema”, daí a importância atribuída ao estudo da linguagem e dos
mitos em qualquer sociedade. O trecho a seguir, extraído de sua obra de referência
Antropologia estrutural, sintetiza a tese do autor sobre a importância da análise
linguística para a compreensão da vida social:
Procedendo assim, o antropólogo vai do conhecido ao desco‑
nhecido [...]. Pois estaria aberta a rota para a análise estrutural e
comparada de costumes, instituições e condutas sancionadas pelo
grupo. Estaríamos aptos a compreender certas analogias funda‑
mentais entre manifestações da vida em sociedade, aparentemente
muito afastadas umas das outras, como a linguagem, arte, direito,
religião. Ao mesmo tempo, finalmente, poderíamos esperar superar
um dia a antinomia entre a cultura, que é coisa coletiva, e os indi‑
víduos que a encarnam, porque, nesta nova perspectiva, a pretensa
“consciência coletiva” se reduziria a uma expressão, no nível do
pensamento e condutas individuais, de certas modalidades tem‑
porais de leis universais em que consiste a atividade inconsciente
do espírito (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 82, grifo do autor).

Claude Lévi-Strauss (1996) faz questão de afirmar que os povos antes chamados de
“primitivos” são, na verdade “povos sem escrita”, e suas formas de pensar a realidade
são diferentes das sociedades que utilizam a escrita e a ciência — os povos modernos,
mas não são menos desenvolvidas por conta disso, como afirmavam os antropólogos
das escolas anteriores. Neste sentido, Lévi-Strauss rompe com o paradigma evolu‑
cionista, e também com o funcionalismo, atribuindo às sociedades ágrafas atributos
que não as desqualificam se comparadas com as demais. O autor defende que o
pensamento “selvagem”, ou a mente “primitiva” revelam um profundo interesse em
explicar a realidade, isto é, esses povos “[...] são movidos por uma necessidade ou
um desejo de compreender o mundo que os envolve, a sua natureza e a sociedade
em que vivem” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 26), e para isso utilizam a razão, a intelec‑
tualidade, mas de um modo diferente do pensamento científico.
Enquanto a ciência moderna se ocupa da investigação de recortes, de “pedaços”
da realidade, para melhor compreendê-la e conseguir desenvolver mecanismos de
controle do homem sobre a natureza, os povos ágrafos se valem de explicações tota‑
lizantes fundamentadas em mitos, os quais não lhes possibilitam controlar os eventos
naturais, embora os expliquem a seu modo.
Nesse sentido pode-se perceber o caráter relativizador do estruturalismo de Lévi‑
-Strauss, na medida em que reconhece a diversidade das formas de pensar e de existir
sem, contudo, qualificá-las. O autor chega, inclusive, a duvidar que no futuro essa
diversidade deixará de existir, pois acredita que cada grupo se adapta às mudanças
sem perder sua identidade cultural.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   111

Questões para reflexão


Então a diversidade entre os povos e sociedades continuará existindo, mesmo
que o mundo esteja vivendo sob o império da lógica capitalista e da globalização
da economia?

Provavelmente, uma das muitas explicações que se podem extrair


da investigação antropológica é que a mente humana, apesar das
diferenças culturais, entre as diversas frações da Humanidade, é
em toda parte uma e a mesma coisa, com as mesmas capacidades.
Creio que esta afirmação é aceita por todos. Não julgo que as cul‑
turas tenham tentado, sistemática ou metodicamente, diferenciar-se
umas das outras. A verdade é que durante centenas de milhares
de anos a Humanidade não era numerosa na Terra, e os pequenos
grupos existentes viviam isolados, de modo que nada espanta
que cada um tenha desenvolvido as suas próprias características,
tornando-se diferentes uns dos outros. [...] Na realidade, as dife‑
renças são extremamente fecundas. O progresso só se verificou a
partir das diferenças (LÉVI-STRAUSS, 1978, p. 30-31).

É claro que ele reconhece o pensamento científico como mais elaborado e eficaz
no sentido de permitir o domínio do homem sobre a realidade, mas isto não o torna
melhor ou mais evoluído do que o pensamento “selvagem”. Este pensar “primitivo”,
ou mítico, segundo Lévi-Strauss (1978, p. 28) “[...] dá ao homem a ilusão, extrema‑
mente importante, de que ele pode entender o universo”, pois para essas sociedades
é isto o que realmente importa: entender o mundo, ainda que não possam controlá‑
-lo. Além disso, o autor defende que, apesar de serem tão diferentes entre si, as
sociedades humanas podem conviver perfeitamente bem, ainda que se julguem por
vezes superiores e melhores que as demais: “Nada impede, com efeito, que culturas
diferentes coexistam e que prevaleçam entre elas relações relativamente tranquilas”
(LÉVI-STRAUSS, 1983, p. 23).
Interessante como o autor destaca em seu livro “Mito e significado” que a mente
humana, independentemente da condição sociocultural, é extremamente competente
na observação e compreensão das coisas, e seletiva ao dirigir sua atenção para a
realidade, o que explica o fato de que muitos povos sem escrita (ágrafos) conseguem
“enxergar” e explicar eventos da natureza sem, contudo, utilizar instrumentos com‑
plexos e elaborados como fazem os cientistas. Frequentemente os chamados nativos
apenas observam e sentem o mundo à sua volta, reconhecendo suas propriedades
e sua dinâmica, o que lhes possibilita conviver com os eventos da natureza de uma
maneira harmônica e produtiva, e para isso se utilizam dos mitos (a linguagem
metafórica e mitológica que, do ponto de vista científico, não é verdadeira) e do
pensamento mágico para tentar resolver os problemas lógicos que não conseguem
abstrair de outra forma.

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112  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Portanto, em lugar de opor magia e ciência, seria melhor colocá-las


em paralelo, como dois modos de conhecimento desiguais quanto
aos resultados teóricos e práticos (pois, desse ponto de vista, é ver‑
dade que a ciência se sai melhor que a magia, no sentido de que
algumas vezes ela também tem êxito), mas não devido à espécie
de operações mentais que ambas supõem e que diferem menos
na natureza que na função dos tipos de fenômeno aos quais são
aplicadas (LÉVI-STRAUSS, 2008, p. 28, do autor).

Lévi-Strauss (2008) estabeleceu em seu estruturalismo algumas bases essenciais,


presentes em toda e qualquer sociedade: a linguagem, os aspectos inconscientes do
pensamento e os mitos, que formam uma rede de representações e significações. Em
suas pesquisas — na maioria com povos tribais — ele reconhece a existência dessa
estrutura comum, de um eixo central por meio do qual se desenvolvem todos os de‑
mais elementos que caracterizam os modos de vida humanos, e este eixo universal
se fundamenta na esfera do pensamento e da linguagem, através da representação
do mundo e das coisas por meio de símbolos e significados que são arbitrariamente
atribuídos por cada sociedade.
Lévi-Strauss critica e sintetiza a definição de cultura mais utili‑
zada: “hábitos; atitudes; comportamentos; maneiras próprias de
agir sentir e pensar de um povo” e enfatiza a “estrutura subcons‑
ciente de pensamento”. Para o estruturalismo de Lévi-Strauss,
a diversidade humana não é importante, e sim a similaridade
humana de pensamento. Nesta teoria, o conceito de cultura
ganha um sentido residual. “Residual, porém irredutível”, como
coloca Carneiro da Cunha (1986), em que a identidade de grupo
é fundamental na construção da Pessoa Humana (VERANI, 2008,
p. 1, grifo do autor).

Sua abordagem é sincrônica e sistêmica, focada na observação do presente e


do modus operandi das atitudes humanas e seus respectivos termos, utilizando-se
da linguística para fazer a análise estrutural das culturas. Lévi-Strauss rejeita a
pesquisa histórica como fonte exclusiva de dados para a compreensão dos diversos
grupos sociais, afirmando que “[...] o conhecimento histórico, qualquer que seja
seu valor (que não se pensa em contestar), não merece ser oposto às outras formas
de conhecimento como uma forma absolutamente privilegiada” (LÉVI-STRAUSS,
2008, p. 291, grifo do autor), e acrescenta que a história cronológica, linear, tão
valorizada pelos antropólogos das escolas ante‑
riores, acaba por ignorar “[...] uma natureza
Links muito mais complexa do que se imagina” (LÉVI‑
Para mais informações sobre a -STRAUSS, 2008, p. 287), uma vez que privilegia
fatos e ocorrências específicas em detrimento da
Antropologia no Brasil, acesse:
infinidade de aspectos envolvidos no comporta‑
<www.abant.org.br/>.
mento social do homem.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   113

Saiba mais
Não deixem de conhecer alguns dos mais importantes livros de Lévi-Strauss, todos citados nas
Referências: Antropologia estrutural, onde apresenta seu método; Mito e significado, onde
discute a importância dos mitos nas diversas sociedades; e O pensamento selvagem, que trata
da especificidade do conhecimento dos povos tribais. Belíssimas obras!

Segundo Goldman (1999), Lévi-Strauss se contrapôs à supervalorização da história


por parte de muitos antropólogos, que restringiram suas análises à historicidade de
povos que nem eles mesmos reconheciam. Chega a comparar diferentes sociedades
em relação à importância que atribuem ao passado, concluindo que algumas dão
mais valor que outras à sua história (que ele acaba conceituando como sociedades
quentes aquelas que reconhecem sua própria história, e sociedades frias, que não se
prendem ao seu passado).

Questões para reflexão


Nem todos os povos contam sua história a partir de registros escritos. Nas socie‑
dades ágrafas (sem escrita) a história é contada oralmente, de uma geração para
outra. Será que no “mundo ocidental” isso seria possível?

A abordagem levistraussiana defende a valorização do pensamento e da lógica exis‑


tente em cada cultura como um caminho mais seguro para se analisar e se compreender
a sociabilidade humana em seu sentido mais geral, uma vez que seu método permite
analisar diferentes sociedades identificando nelas elementos que lhes são comuns,
isto é, os sistemas universais que explicam a natureza estrutural de todas e quaisquer
culturas. Em relação a isto, o próprio Lévi-Strauss (1996) considera que as tradições, os
costumes, as crenças e todos os demais aspectos de uma cultura têm que ser pensados
como um complexo sistema, o qual “[...] deve ser considerado em seu conjunto, para
se perceber sua estrutura” (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 63). Por exemplo, aplicando seu
método na análise das relações de parentesco e dos vínculos familiais em diversas
sociedades tribais estudadas por outros antropólogos (Radcliffe-Brown, Malinowski,
Lowie, Kroeber, entre outros). Lévi-Strauss (1996, p. 64) acaba por concluir que:
Para que uma estrutura de parentesco exista, é necessário que se
encontrem presentes nela os três tipos de relações familiais sempre
dados na sociedade humana, isto é, uma relação de consanguini‑
dade, uma relação de aliança, uma relação de filiação.

Deixando evidente que, independentemente dos modelos de parentesco ou de


família, e da importância que isto assume em cada grupo humano, essas três condi‑

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114  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

ções básicas necessariamente se apresentam. Outro exemplo de uma estrutura comum


presente em todas as sociedades e que envolve os sistemas de parentesco é o tabu do
incesto, a proibição de relações sexuais entre parentes consanguíneos de primeira
linhagem, como pode ser observado nos estudos deste antropólogo.
Finalmente, pode-se dizer que Lévi-Strauss foi um otimista, no sentido de acreditar
que a humanidade tende a preservar sua diversidade cultural, ainda que esta diver‑
sidade se fundamente em estruturas universais e que exista o risco da imposição
de algumas sociedades sobre outras. Isto pode ser observado em sua resposta a um
questionamento sobre o risco de algumas culturas tribais desaparecem em função do
contato com as sociedades maiores, quando afirma que nenhuma cultura desaparecerá
totalmente, pois elas se misturam com outras e assim vão formando uma nova cultura,
que carrega em si os elementos particulares que se misturaram por meio do contato.
Pouco antes de sua morte, aos noventa anos, fez questão de deixar claro que
não se pode afirmar com certeza o quanto de uma cultura pode ser preservado ou
transformado, a não ser que o antropólogo se proponha a conhecê-la profundamente,
concluindo que a diversidade humana sempre existirá (MOISÉS, 1999).
As obras mais conhecidas de Lévi-Strauss são: As estruturas elementares do pa-
rentesco — 1949; Tristes trópicos — 1955; Pensamento selvagem — 1962; Antropo-
logia Estrutural — 1958 e 1973; O cru e o cozido — 1964; O homem nu — 1971.

2.4 Antropologia interpretativa ou hermenêutica


Escola representada por Clifford Geertz, cujas ideias se tornaram tão importantes
para o pensamento antropológico quanto as de Malinowski e Lévi-Strauss. O autor é
considerado um dos fundadores da Antropologia contemporânea (SILVA, 2008). Geertz
realizou uma série de pesquisas de campo colocando em prática um método desenvol‑
vido por ele próprio — o método hermenêutico em Antropologia. Sua compreensão de
cultura é assim definida: “Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal
amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo
essas teias e a sua análise” (GEERTZ, 1973, p. 15), sendo que para fazer essa análise
o homem não precisa necessariamente lançar mão de métodos experimentais, ou de
procurar as leis gerais capazes de explicar a cultura, mas sim realizar “uma ciência
interpretativa”, capaz de encontrar os significados dos elementos culturais.
Para o a antropologia atual, cultura é um sistema simbólico (Geertz,
1973), característica fundamental e comum da humanidade de
atribuir, de forma sistemática; racional e estruturada, significados e
sentidos “às coisas do mundo”. Observar; separar; pensar e classi‑
ficar; atribuindo uma ordem totalizadora ao mundo, é fundamental
para se compreender o conceito de cultura atualmente definido
como “sistema simbólico”, e sua diversidade nas sociedades huma‑
nas, mesmo neste período atual de modernidade tardia (VERANI,
2008, grifo do autor).

A cultura, para o autor, é pública e é produzida por seus próprios membros, e para
ser interpretada deve ser analisada em todas as suas dimensões — somente assim o

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   115

pesquisador poderá fazer uma “leitura” e compreender qual a sua importância para
os próprios indivíduos que dela fazem parte.
Tal visão de como a teoria funciona numa ciência interpretativa
sugere que a diferença [...] que surge nas ciências experimentais ou
observacionais entre “descrição” e “explicação” aqui aparece como
sendo [...] entre “inscrição” (“descrição densa”) e “especificação”
(“diagnose”) — entre anotar o significado que as ações sociais
particulares têm para os atores [...] e afirmar, tão explicitamente
quanto nos for possível, o que o conhecimento assim atingido
demonstra sobre a sociedade na qual é encontrado e, além disso,
sobre a vida social como tal. Nossa dupla tarefa é descobrir as
estruturas conceptuais que informam os atos dos nossos sujeitos,
o “dito” no discurso social, e construir um sistema de análise [...]
no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer so‑
bre ele mesmo — isto é, sobre o papel da cultura na vida humana
(GEERTZ, 1973, p. 37-38, grifo do autor).

Retomando a perspectiva diacrônica, e defendendo a etnografia, esta escola prio‑


riza a “leitura” das sociedades em todas as suas manifestações, que são carregadas de
significados, através de “descrições densas” acerca da compreensão dos habitantes
sobre sua própria cultura. Ao dialogar com outros estudiosos do comportamento
sociocultural humano, Geertz (1973, p. 47) afirma que:
O que quer que seja que a antropologia moderna afirme [...] ela
tem a firme convicção de que não existem de fato homens não
modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca exis‑
tiram e, o que é mais importante, não o poderiam pela própria
natureza do caso.

O antropólogo é, portanto, um intérprete do “outro”, um pesquisador que procura


explicar a cultura que não lhe é a mais familiar (por isso do “outro”) sob um prisma
científico. Neste sentido, ao falar sobre a tarefa da interpretação antropológica,
Geertz (1973, p. 24-25, grifo do autor) afirma que:
Nada mais necessário para compreender o que é a interpretação
antropológica, e em que grau ela é uma interpretação, do que a com‑
preensão exata do que ela se propõe dizer — ou não se propõe — de
que nossas formulações dos sistemas simbólicos de outros povos
devem ser orientadas pelos atos. [...] Elas devem ser encaradas em
termos de interpretações às quais pessoas de uma determinada
denominação particular submetem sua experiência, uma vez que
isso é o que elas professam como descrições. São antropológicas
porque, de fato, são os antropólogos que as professam. [...] Resu‑
mindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações
e, na verdade, de segunda e terceira mão. Por definição, somente
um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.

Assim, Geertz (1973, p. 321) conclui: “[...] as sociedades, como as vidas, con‑
têm suas próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas”. Desta
forma, compete ao antropólogo estudar profundamente as diversas culturas e suas
respectivas redes de símbolos e significados, os quais fazem todo o sentido para as

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116  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

pessoas que participam dessas culturas (os intérpretes de primeira mão, como afirma
Geertz), mas que devem ser analisados e compreendidos também através da pers‑
pectiva antropológica (científica, portanto), por meio do trabalho do pesquisador (o
intérprete de segunda e de terceira mão).
Visto sob esse ângulo, o objetivo da antropologia é o alargamento
do universo do discurso humano. De fato, esse não é seu único
objetivo [...] e a antropologia não é a única disciplina a persegui‑
-los. No entanto, esse é um objetivo ao qual o conceito de cultura
semiótico se adapta especialmente bem. Como sistemas entrela‑
çados de signos interpretáveis (o que eu chamaria de símbolos,
ignorando as utilizações provinciais), a cultura não é um poder,
algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimen‑
tos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos;
ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos
de forma inteligível — isto é, descritos com densidade (GEERTZ,
1973, p. 24, do autor).

Questões para reflexão


Então é preciso valorizar o saber popular, isto é, o conhecimento que cada so‑
ciedade tem acerca de si mesma e sobre o mundo à sua volta?

Com sua concepção hermenêutica, ou interpretativa, este autor rompe com


qualquer tentativa de explicar o universo cultural do homem por meio de leis gerais,
como muitos antropólogos filiados a outras escolas teórico-metodológicas fizeram
(ele menciona a teoria estruturalista de Claude Lévi-Strauss como exemplo). Geertz
reconhece que cada sociedade (e, portanto, cada sistema cultural) se desenvolve ao
longo da história segundo seus próprios parâmetros:
O que é importante nos achados do antropólogo é sua especifici‑
dade complexa, sua circunstancialidade [...] que possibilita pensar
não apenas realista e concretamente sobre eles, mas, o que é mais
importante, criativa e imaginativamente com eles (GEERTZ, 1973,
p. 33, grifo nosso).

Neste caso, “eles” são os indivíduos que falam sobre sua própria sociedade e
sobre sua própria cultura, isto é, os “nativos”. Sendo assim, a tarefa do antropólogo
é, ao mesmo tempo, desvendar as concepções que os próprios “informantes” têm
acerca de sua realidade sociocultural, e “construir um sistema de análise” (GEERTZ,
1973, p. 38) que estabeleça uma correlação entre aquilo que é dito pelos informantes
locais e aquilo que é observado e interpretado pelo próprio pesquisador.
Resumindo, precisamos procurar relações sistemáticas entre fe‑
nômenos diversos, não identidades substantivas entre fenômenos
similares. E para consegui-lo com bom resultado precisamos
substituir a concepção “estratigráfica” das relações entre os vários
aspectos da existência humana por uma sintética, isto é, na qual os

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   117

fatores biológicos, psicológicos, sociológicos e culturais possam ser


tratados como variáveis dentro dos sistemas unitários de análise.
[...] É uma questão de integrar diferentes tipos de teorias. [...] Na
tentativa de lançar tal integração do lado antropológico e alcançar,
assim, uma imagem mais extada do homem, quero propor duas
ideias. A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como
complexos de padrões concretos de comportamento — costumes,
usos, tradições, feixes e hábitos –, como tem sido o caso até agora,
mas como um conjunto de mecanismos de controle — planos,
receitas, regras, instruções [...] para governar o comportamento.
A segunda ideia é que o homem é precisamente o animal mais
desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle,
extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para or‑
denar seu comportamento (GEERTZ, 1973, p. 56, grifo do autor).

Neste trecho o autor explicita sua compreensão de que a cultura, com sua
complexa rede de símbolos e significados, existem em todas as sociedades com a
finalidade de governar e controlar os comportamentos individuais, e assim assegurar
o convívio harmonioso entre os homens. Talvez seja esta a única conclusão genera‑
lizante a respeito do homem na obra de Clifford Geertz, a de que a cultura impõe a
todos os indivíduos determinados parâmetros por meio dos quais cada um pode se
auto-orientar ao longo de sua fiexistência. As obras mais conhecidas de Geertz são:
A interpretação das culturas — 1973 e Saber local — 1983.

Saiba mais
Não deixem de ter acesso também ao clássico de Clifford Geertz, o livro A interpretação das
culturas. Consta das Referências.

Saiba mais
Vejam os comentários do Professor Vagner Gonçalves da Silva sobre a ciência antropológica
acessando o link <www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html>.

2.5 
Diversidade cultural: etnocentrismo e
relativização
A partir da leitura da Declaração sobre a Diversidade Cultural da UNESCO e
de nossa discussão, de que o indivíduo vive em sociedade e que muitas vezes nos
deparamos com várias informações vindas de todos os cantos do mundo, e essas
informações nos ajudam a formar uma opinião sobre os diversos assuntos que cons‑
tituem a realidade social, torna-se imprescindível a compreensão da sociedade em

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118  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

sua totalidade, ou seja, formar opiniões sobre os países, os povos, a maneira de viver
de outros grupos sociais etc.
Não é apenas as crenças culturais que diferem através das culturas. As diversidades
das práticas e do comportamento humano também fazem parte desse “jogo” cultural.
Existem várias formas de comportamento, que variam amplamente de cultura para
cultura e, com frequência, contrastam drasticamente com o que as pessoas que não
fazem parte desse grupo consideram “normal”.
Giddens (2001) dá um exemplo bem significativo para ilustrar essa questão: o
casamento. Em nossa sociedade o casamento é um momento em que duas pessoas
adultas resolvem se unir por amor, paixão e construir uma vida a dois “até que a morte
os separe!” Se observarmos em nossa sociedade ocidental moderna, consideramos essa
atitude vinculada a vida adulta, com responsabilidades... Mas em algumas culturas,
casamentos são arranjados para crianças de 12, 13 anos e deve ser considerado nor‑
mal. Se pensarmos na questão da alimentação, da vestimenta, da música, da dança,
das formas de trabalho... Iremos perceber que existem inúmeras representações que
são inerentes a determinado grupo cultural.
Mas, nesse contexto, é muito comum “julgarmos” o comportamento de outros
grupos diferentes do nosso, a partir da nossa realidade, dos nossos valores e hábitos.
Lembram da leitura do evolucionismo como padrão explicativo da cultura? Pois bem,
dessa leitura desenvolveu o que chamamos de
etnocentrismo. “Etnocentrismo é uma visão do
mundo de onde o nosso próprio grupo é tomado
Para saber mais como centro de tudo, e todos os “outros” são
Etimologicamente a palavra etno- pensados e sentidos através dos nossos valores,
centrismo que dizer: etno (etnia, nossos modelos, nossas definições do que é a
grupo, sendo unidos por um fator existência” (ROCHA, 1994, p. 7).
comum, tal como a nacionalidade, Para entendermos melhor a questão do etno‑
religião, língua, bem como demais centrismo precisamos entender a constituição do
afinidades históricas e culturais), e eurocentrismo. No final do século XIX e início do
século XX, em plena era da expansão colonia‑
centrismo (centro).
lista dos países industrializados, a conquista de
territórios teve como principal objetivo a busca
de matérias-primas e a ampliação de mercados para as mercadorias produzidas e os
excedentes de capital. Segundo Bruit (1994, p. 5):
Entre 1870 e 1914 a Europa e os Estados Unidos arquitetaram a
conquista política, econômica e cultural da África, Ásia, Oceania
e América Latina. Repartiram o mundo entre si e organizaram
poderosos impérios coloniais que só tinham em comum o desen‑
volvimento da acumulação capitalista.

Ao longo da segunda metade do século XIX, as principais potências capitalistas


consolidaram seu domínio com um amplo movimento de conquista militar e eco‑
nômica, promovendo uma divisão geopolítica dos continentes africano e asiático.
Esses países desenvolveram uma economia internacional baseada na concorrência

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   119

de mercados, na ampliação do consumo e no aumento de investimento em capi‑


tais, fortalecidos por ideais nacionalistas. Paralelamente intensificou-se a produção
armamentista, considerada estratégica para garantir o processo de colonização e
dominação.

Questões para reflexão


Interessante: a dominação capitalista depende do investimento em armas, o que
nos leva a crer que ela somente é possível mediante o uso da força, certo? Então,
quem detém maior poderio bélico (de armas) tem também maior potencial do‑
minador? Será que é por isso que os Estados Unidos investem tanto na indústria
armamentista?

Outro aspecto importante desse contexto é que as indústrias conquistaram rapi‑


damente os mercados de muitos países latino-americanos, causando, nestes últimos,
uma dependência econômica típica do imperialismo. A industrialização permitiu um
grande enriquecimento dos países europeus e, consequentemente, uma melhora das
condições de vida da população, que passou a incorporar os padrões de consumo
burguês-capitalista (HOBSBAWM, 2001).
Contudo, a ocupação de diversas áreas da África e da Ásia levou a uma série de
revoltas que simbolizaram a indignação e resistência dos povos colonizados, e ao
surgimento, nos territórios coloniais, de uma elite intelectual “nativa” ocidentalizada,
que acabaria tendo um papel fundamental nos processos de independência ocorri‑
dos nesse período, como na Argentina em 1816 e no Brasil em 1822, e ao longo do
século XX, na África e Ásia.
Nesse contexto político-econômico, estabeleceu-se um posicionamento etnocên‑
trico por parte das nações europeias, na medida em que intensificaram a imposição
de sua cultura. A Europa, considerada “berço” da civilização ocidental, difundiu os
valores da cultura burguesa capitalista sobre os demais territórios do globo, fortale‑
cendo seus mecanismos de dominação. No Brasil, por exemplo, a chegada da família
real em 1808 reforça ainda mais a introdução dos costumes europeus nas maiores
cidades do país, começando pelo Rio de Janeiro, transformada em capital da província.

Questões para reflexão


Etnocentrismo é um conceito que representa a imposição de uma determinada
etnia (ou “raça”) sobre as demais. Lembram dos nazistas, no período da Segunda
Guerra Mundial, com sua tentativa de promover a “raça” ariana perante o mundo?

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120  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Do ponto de vista antropológico, o maior mal


causado pelas práticas colonialistas foi o fato de
difundirem as ideias de superioridade racial e cul‑
Links tural das nações europeias, sobretudo porque isso
O nazismo representou um exem- provocou uma série de consequências sobre a cul‑
plo do que estamos tratando, isto tura e os costumes dos povos dominados. Segundo
é, do etnocentrismo. Acesse o site: Quijano (2005), tais práticas inauguraram uma
forma de poder fundamentada na ideia de raça e na
<www.historiadomundo.com.br/
divisão da humanidade a partir das características
idade-contemporanea/nazismo/>.
biológicas, linguísticas e culturais de cada povo,
estabelecendo de modo arbitrário a superioridade
dos europeus e do estilo de vida capitalista.
A difusão de uma concepção racial permitiu, desta forma, explicar e justificar
o processo de dominação e de imposição de costumes burgueses como meio de
contribuir com o problema do “atraso” civilizatório em que os povos colonizados
pareciam se encontrar. Para o autor, a ideia de diferenças raciais “[...] foi assumida
pelos conquistadores como o principal elemento constitutivo, fundacional, das relações
de dominação que a conquista exigia” (QUIJANO, 2005, p. 227-278), possibilitando,
portanto, classificar as sociedades nativas das Américas, primeiramente, e depois as de
outras regiões colonizadas, estabelecendo parâmetros distintivos e discriminatórios entre
os diversos grupos humanos existentes.
A ideia de raça, em seu sentido moderno, não tem história conhe‑
cida antes da América. Talvez se tenha originado como referência
às diferenças fenotípicas entre conquistadores e conquistados,
mas o que importa é que desde muito cedo foi construída como
referência a supostas estruturas biológicas diferenciais entre es‑
ses grupos. A formação de relações sociais fundadas nessa ideia,
produziu na América identidades sociais historicamente novas:
índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. Assim, termos com
espanhol e português, e mais tarde europeu, que até então indi‑
cavam apenas procedência geográfica ou país de origem, desde
então adquiriram também, em relação às novas identidades, uma
conotação racial. E na medida em que as relações sociais que se
estavam configurando eram relações de dominação, tais identi‑
dades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais
correspondentes, como constitutivas delas, e, consequentemente,
ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras,
raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos
de classificação social básica da população (QUIJANO, 2005, p.
227-278, grifo do autor).

A classificação dos povos em categorias raciais é compreendida por Quijano


(2005) como resultado de uma construção social (arbitrária, portanto) por parte dos
colonizadores, que, durante os primeiros séculos de práticas colonialistas, autodefi‑
niram-se como “brancos” em oposição aos grupos nativos, cujos tipos físicos tinham
características distintas e as peles outras tonalidades. O chamado “homem branco” se

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   121

colocou em posição de superioridade na “escala evolutiva”, impondo-se como uma


raça dominante, mais forte e civilizada, tendo como base as explicações científicas
(darwinismo social). Desta forma, “[...] novas identidades históricas e sociais foram
produzidas” (QUIJANO, 2005, p. 227-278), facilitando a exploração do trabalho
humano escravo em benefício do capitalismo colonial.

Questões para reflexão


Vejam que coisa incrível: a partir da colonização europeia e da expansão da
dominação capitalista o mundo passou a conhecer uma nova lógica nas relações
interétnicas: a supremacia da chamada “raça branca” e a desvalorização das
demais. E hoje, será que podemos afirmar com toda a certeza que a humanidade
em geral já superou essa concepção etnocêntrica?

Quijano (2005) observa que a distribuição dos postos de trabalho, ao longo da co‑
lonização, esteve diretamente vinculada à origem racial, de tal forma que aos brancos
eram reservados os postos mais nobres, como a administração das colônias e outros pos‑
tos de poder, e o trabalho livre assalariado; por outro lado, aos “negros” e aos “índios”,
considerados inferiores, foram destinados os trabalhados braçais e escravos, necessários
à exploração dos recursos naturais e à produção colonial.
Essas formas de organização e controle do trabalho foram elaboradas em torno da
lógica de acumulação capitalista e do mercado mundial, representando, do ponto de
vista histórico, um novo padrão de organização e controle do trabalho com vistas a
fortalecer o poder dos países colonizadores. Esse padrão de dominação foi, portanto,
ao mesmo tempo político, econômico e cultural, fundamentado na equivocada ideia
de superioridade e inferioridade racial.
A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais
a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse
mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersub‑
jetiva, equivalente à articulação de todas as formas de controle
do trabalho em torno do capital, para estabelecer o capitalismo
mundial. Com efeito, todas as experiências, histórias, recursos e
produtos culturais terminaram também articulados numa só ordem
cultural global em torno da hegemonia europeia ou ocidental. Em
outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a
Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas
as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial
do conhecimento, da produção do conhecimento (QUIJANO,
2005, p. 227-278).

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122  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Aprofundando o conhecimento
Apresentamos a você, caro leitor, o documento intitulado Declaração Uni-
versal sobre a Diversidade Cultural, da UNESCO – Organização das Nações
Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, publicado em 2002, no qual os
povos são conclamados a reafirmarem o compromisso com a plena realização
dos direitos humanos e das liberdades fundamentais proclamadas na Declara‑
ção Universal dos Direitos Humanos e em outros instrumentos universalmente
reconhecidos (UNESCO, 2002).

Declaração universal sobre a


diversidade cultural
UNESCO – 2002

A Conferência Geral
Reafirmando seu compromisso com a plena realização dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais proclamadas na Declaração Universal dos Direitos Humanos e
em outros instrumentos universalmente reconhecidos, como os dois Pactos Internacionais
de 1966 relativos respectivamente, aos direitos civis e políticos e aos direitos econômicos,
sociais e culturais, Recordando que o Preâmbulo da Constituição da UNESCO afirma “[...]
que a ampla difusão da cultura e da educação da humanidade para a justiça, a liberdade
e a paz são indispensáveis para a dignidade do homem e constituem um dever sagrado
que todas as nações devem cumprir com um espírito de responsabilidade e de ajuda
mútua”,
Recordando também seu Artigo primeiro, que designa à UNESCO, entre outros ob-
jetivos, o de recomendar “os acordos internacionais que se façam necessários para faci-
litar a livre circulação das ideias por meio da palavra e da imagem”,
Referindo-se às disposições relativas à diversidade cultural e ao exercício dos direitos
culturais que figuram nos instrumentos internacionais promulgados pela UNESCO,
Reafirmando que a cultura deve ser considerada como o conjunto dos traços distin-
tivos espirituais e materiais, intelectuais e afetivos que caracterizam uma sociedade ou
um grupo social e que abrange, além das artes e das letras, os modos de vida, as manei-
ras de viver juntos, os sistemas de valores, as tradições e as crenças,
Constatando que a cultura se encontra no centro dos debates contemporâneos sobre
a identidade, a coesão social e o desenvolvimento de uma economia fundada no saber,

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   123

Afirmando que o respeito à diversidade das culturas, à tolerância, ao diálogo e à


cooperação, em um clima de confiança e de entendimento mútuos, estão entre as me-
lhores garantias da paz e da segurança internacionais,
Aspirando a uma maior solidariedade fundada no reconhecimento da diversidade
cultural, na consciência da unidade do gênero humano e no desenvolvimento dos inter-
câmbios culturais,
Considerando que o processo de globalização, facilitado pela rápida evolução das
novas tecnologias da informação e da comunicação, apesar de constituir um desafio para
a diversidade cultural, cria condições de um diálogo renovado entre as culturas e as civi-
lizações,
Consciente do mandato específico confiado à UNESCO, no seio do sistema das Nações
Unidas, de assegurar a preservação e a promoção da fecunda diversidade das culturas,
Proclama os seguintes princípios e adota a presente Declaração:

IDENTIDADE, DIVERSIDADE E PLURALISMO


Artigo 1 – A diversidade cultural, patrimônio comum da humanidade
A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa diversidade se
manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades que caracterizam os grupos e
as sociedades que compõem a humanidade. Fonte de intercâmbios, de inovação e de
criatividade, a diversidade cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a di-
versidade biológica para a natureza.
Nesse sentido, constitui o patrimônio comum da humanidade e deve ser reconhecida
e consolidada em beneficio das gerações presentes e futuras.

Artigo 2 – Da diversidade cultural ao pluralismo cultural


Em nossas sociedades cada vez mais diversificadas, torna-se indispensável garantir
uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com identidades culturais a um só
tempo plurais, variadas e dinâmicas, assim como sua vontade de conviver. As políticas
que favoreçam a inclusão e a participação de todos os cidadãos garantem a coesão social,
a vitalidade da sociedade civil e a paz. Definido desta maneira, o pluralismo cultural
constitui a resposta política à realidade da diversidade cultural. Inseparável de um contexto
democrático, o pluralismo cultural é propício aos intercâmbios culturais e ao desenvolvi-
mento das capacidades criadoras que alimentam a vida pública.

Artigo 3 – A diversidade cultural, fator de desenvolvimento


A diversidade cultural amplia as possibilidades de escolha que se oferecem a todos;
é uma das fontes do desenvolvimento, entendido não somente em termos de crescimento
econômico, mas também como meio de acesso a uma existência intelectual, afetiva,
moral e espiritual satisfatória.

DIVERSIDADE CULTURAL E DIREITOS HUMANOS


Artigo 4 – Os direitos humanos, garantias da diversidade cultural

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A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, inseparável do respeito à


dignidade humana. Ela implica o compromisso de respeitar os direitos humanos e as li-
berdades fundamentais, em particular os direitos das pessoas que pertencem a minorias
e os dos povos autóctones. Ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os
direitos humanos garantidos pelo direito internacional, nem para limitar seu alcance.

Artigo 5 – Os direitos culturais, marco propício da diversidade cultural


Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, que são universais,
indissociáveis e interdependentes. O desenvolvimento de uma diversidade criativa exige
a plena realização dos direitos culturais, tal como os define o Artigo 27 da Declaração
Universal de Direitos Humanos e os artigos 13 e 15 do Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Toda pessoa deve, assim, poder expressar-se, criar e di-
fundir suas obras na língua que deseje e, em partícular, na sua língua materna; toda
pessoa tem direito a uma educação e uma formação de qualidade que respeite plenamente
sua identidade cultural; toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e
exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos di-
reitos humanos e às liberdades fundamentais.

Artigo 6 – Rumo a uma diversidade cultural accessível a todos


Enquanto se garanta a livre circulação das ideias mediante a palavra e a imagem,
deve-se cuidar para que todas as culturas possam se expressar e se fazer conhecidas. A li-
berdade de expressão, o pluralismo dos meios de comunicação, o multilinguismo, a igual-
dade de acesso às expressões artísticas, ao conhecimento científico e tecnológico – inclusive
em formato digital - e a possibilidade, para todas as culturas, de estar presentes nos meios
de expressão e de difusão, são garantias da diversidade cultural.

DIVERSIDADE CULTURAL E CRIATIVIDADE


Artigo 7 – O patrimônio cultural, fonte da criatividade
Toda criação tem suas origens nas tradições culturais, porém se desenvolve plenamente
em contato com outras. Essa é a razão pela qual o patrimônio, em todas suas formas,
deve ser preservado, valorizado e transmitido às gerações futuras como testemunho da
experiência e das aspirações humanas, a fim de nutrir a criatividade em toda sua diversi-
dade e estabelecer um verdadeiro diálogo entre as culturas.

Artigo 8 – Os bens e serviços culturais, mercadorias distintas das demais


Frente às mudanças econômicas e tecnológicas atuais, que abrem vastas perspectivas
para a criação e a inovação, deve-se prestar uma particular atenção à diversidade da oferta
criativa, ao justo reconhecimento dos direitos dos autores e artistas, assim como ao ca-
ráter específico dos bens e serviços culturais que, na medida em que são portadores de
identidade, de valores e sentido, não devem ser considerados como mercadorias ou bens
de consumo como os demais.

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Artigo 9 – As políticas culturais, catalisadoras da criatividade


As políticas culturais, enquanto assegurem a livre circulação das ideias e das obras,
devem criar condições propícias para a produção e a difusão de bens e serviços culturais
diversificados, por meio de indústrias culturais que disponham de meios para desenvolver-
-se nos planos local e mundial. Cada Estado deve, respeitando suas obrigações internacio-
nais, definir sua política cultural e aplicá-la, utilizando-se dos meios de ação que julgue mais
adequados, seja na forma de apoios concretos ou de marcos reguladores apropriados.

DIVERSIDADE CULTURAL E SOLIDARIEDADE INTERNACIONAL


Artigo 10 – Reforçar as capacidades de criação e de difusão em escala mundial
Ante os desequilíbrios atualmente produzidos no fluxo e no intercâmbio de bens
culturais em escala mundial, é necessário reforçar a cooperação e a solidariedade inter-
nacionais destinadas a permitir que todos os países, em particular os países em desenvol-
vimento e os países em transição, estabeleçam indústrias culturais viáveis e competitivas
nos planos nacional e internacional.

Artigo 11 – Estabelecer parcerias entre o setor público, o setor privado e a sociedade


civil As forças do mercado, por si sós, não podem garantir a preservação e promoção da
diversidade cultural, condição de um desenvolvimento humano sustentável. Desse ponto
de vista, convém fortalecer a função primordial das políticas públicas, em parceria com o
setor privado e a sociedade civil.

Artigo 12 – A função da UNESCO


A UNESCO, por virtude de seu mandato e de suas funções, tem a responsabilidade de:
a) promover a incorporação dos princípios enunciados na presente Declaração nas
estratégias de desenvolvimento elaboradas no seio das diversas entidades intergo-
vernamentais;
b) servir de instância de referência e de articulação entre os Estados, os organismos
internacionais governamentais e não governamentais, a sociedade civil e o setor
privado para a elaboração conjunta de conceitos, objetivos e políticas em favor da
diversidade cultural;
c) dar seguimento a suas atividades normativas, de sensibilização e de desenvolvimento
de capacidades nos âmbitos relacionados com a presente Declaração dentro de
suas esferas de competência;
d) facilitar a aplicação do Plano de Ação, cujas linhas gerais se encontram apensas à
presente Declaração.

LINHAS GERAIS DE UM PLANO DE AÇÃO PARA A APLICAÇÃO DA DECLARAÇÃO


UNIVERSAL DA UNESCO SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL

Os Estados Membros se comprometem a tomar as medidas apropriadas para difun-


dir amplamente a Declaração Universal da UNESCO sobre a Diversidade Cultural e fomen-

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tar sua aplicação efetiva, cooperando, em particular, com vistas à realização dos
seguintes objetivos:

1. Aprofundar o debate internacional sobre os problemas relativos à diversidade


cultural, especialmente os que se referem a seus vínculos com o desenvolvimento e a sua
influência na formulação de políticas, em escala tanto nacional como internacional;
Aprofundar, em particular, a reflexão sobre a conveniência de elaborar um instrumento
jurídico internacional sobre a diversidade cultural.
2. Avançar na definição dos princípios, normas e práticas nos planos nacional e in-
ternacional, assim como dos meios de sensibilização e das formas de cooperação mais
propícios à salvaguarda e à promoção da diversidade cultural.
3. Favorecer o intercâmbio de conhecimentos e de práticas recomendáveis em ma-
téria de pluralismo cultural, com vistas a facilitar, em sociedades diversificadas, a inclusão
e a participação de pessoas e grupos advindos de horizontes culturais variados.
4. Avançar na compreensão e no esclarecimento do conteúdo dos direitos culturais,
considerados como parte integrante dos direitos humanos.
5. Salvaguardar o patrimônio linguístico da humanidade e apoiar a expressão, a
criação e a difusão no maior número possível de línguas.
6. Fomentar a diversidade linguística – respeitando a língua materna – em todos os
níveis da educação, onde quer que seja possível, e estimular a aprendizagem do plurilin-
guismo desde a mais jovem idade.
7. Promover, por meio da educação, uma tomada de consciência do valor positivo da
diversidade cultural e aperfeiçoar, com esse fim, tanto a formulação dos programas es-
colares como a formação dos docentes.
8. Incorporar ao processo educativo, tanto o quanto necessário, métodos pedagógi-
cos tradicionais, com o fim de preservar e otimizar os métodos culturalmente adequados
para a comunicação e a transmissão do saber.
9. Fomentar a “alfabetização digital” e aumentar o domínio das novas tecnologias
da informação e da comunicação, que devem ser consideradas, ao mesmo tempo, disci-
plinas de ensino e instrumentos pedagógicos capazes de fortalecer a eficácia dos serviços
educativos.
10. Promover a diversidade linguística no ciberespaço e fomentar o acesso gratuito
e universal,por meio das redes mundiais, a todas as informações pertencentes ao domínio
público.
11. Lutar contra o hiato digital – em estreita cooperação com os organismos compe-
tentes do sistema das Nações Unidas – favorecendo o acesso dos países em desenvolvi-
mento às novas tecnologias, ajudando-os a dominar as tecnologias da informação e
facilitando a circulação eletrônica dos produtos culturais endógenos e o acesso de tais
países aos recursos digitais de ordem educativa, cultural e científica, disponíveis em escala
mundial.
12. Estimular a produção, a salvaguarda e a difusão de conteúdos diversificados nos
meios de comunicação e nas redes mundiais de informação e, para tanto, promover o
papel dos serviços públicos de radiodifusão e de televisão na elaboração de produções

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   127

audiovisuais de qualidade, favorecendo, particularmente, o estabelecimento de mecanis-


mos de cooperação que facilitem a difusão das mesmas.
13. Elaborar políticas e estratégias de preservação e valorização do patrimônio cul-
tural e natural, em particular do patrimônio oral e imaterial e combater o tráfico ilícito de
bens e serviços culturais.
14. Respeitar e proteger os sistemas de conhecimento tradicionais, especialmente os
das populações autóctones; reconhecer a contribuição dos conhecimentos tradicionais
para a proteção ambiental e a gestão dos recursos naturais e favorecer as sinergias entre
a ciência moderna e os conhecimentos locais.
15. Apoiar a mobilidade de criadores, artistas, pesquisadores, cientistas e intelectuais
e o desenvolvimento de programas e associações internacionais de pesquisa, procurando,
ao mesmo tempo, preservar e aumentar a capacidade criativa dos países em desenvolvi-
mento e em transição.
16. Garantir a proteção dos direitos de autor e dos direitos conexos, de modo a fo-
mentar o desenvolvimento da criatividade contemporânea e uma remuneração justa do
trabalho criativo, defendendo, ao mesmo tempo, o direito público de acesso à cultura,
conforme o Artigo 27 da Declaração Universal de Direitos Humanos.
17. Ajudar a criação ou a consolidação de indústrias culturais nos países em desen-
volvimento e nos países em transição e, com este propósito, cooperar para desenvolvi-
mento das infraestruturas e das capacidades necessárias, apoiar a criação de mercados
locais viáveis e facilitar o acesso dos bens culturais desses países ao mercado mundial e
às redes de distribuição internacionais.
18. Elaborar políticas culturais que promovam os princípios inscritos na presente
Declaração, inclusive mediante mecanismos de apoio à execução e/ou de marcos regula-
dores apropriados, respeitando as obrigações internacionais de cada Estado.
19. Envolver os diferentes setores da sociedade civil na definição das políticas públi-
cas de salvaguarda e promoção da diversidade cultural.
20. Reconhecer e fomentar a contribuição que o setor privado pode aportar à valo-
rização da diversidade cultural e facilitar, com esse propósito, a criação de espaços de
diálogo entre o setor público e o privado.

Os Estados Membros recomendam ao Diretor Geral que, ao executar os programas


da UNESCO, leve em consideração os objetivos enunciados no presente Plano de Ação e
que o comunique aos organismos do sistema das Nações Unidas e demais organizações
intergovernamentais e não governamentais interessadas, de modo a reforçar a sinergia
das medidas que sejam adotadas em favor da diversidade cultural.

[1] Entre os quais figuram, em particular, o acordo de Florença de 1950 e seu Proto-
colo de Nairobi de 1976, a Convenção Universal sobre Direitos de Autor, de 1952, a
Declaração dos Princípios de Cooperação Cultural Internacional de 1966, a Convenção
sobre as Medidas que Devem Adotar-se para Proibir e Impedir a Importação, a Exportação
e a Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais, de 1970, a Convenção para a
Proteção do Patrimônio Mundial Cultural e Natural de 1972, a Declaração da UNESCO

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128  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

sobre a Raça e os Preconceitos Raciais, de 1978, a Recomendação relativa à condição do


Artista, de 1980 e a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular,
de 1989.
[2] Definição conforme as conclusões da Conferência Mundial sobre as Políticas
Culturais (MONDIACULT, México, 1982), da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvi-
mento (Nossa Diversidade Criadora, 1995) e da Conferência
Intergovernamental sobre Políticas Culturais para o Desenvolvimento (Estocolmo,
1998).

Como vimos, esse documento da UNESCO define parâmetros gerais para nortear
as leis dos países que compõem a Organização das Nações Unidas em relação ao
compromisso de respeito às diversidades humanas, em respeito ao que já estava
contemplado anteriormente na Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Para concluir o estudo da unidade


Ao tratarmos da alteridade e do relativismo cultural na contemporaneidade,
percebemos que nem sempre esses conceitos tão importantes para a Antropologia
e as demais ciências sociais nem sempre se traduzem em práticas cotidianas.
A proposta que fazemos em relação isso se dirige em dois sentidos: o da re‑
flexão teórica e da construção de novas formas de interação sociocultural. Ao
analisarmos a história das relações inter e intra povos desde a consolidação do
capitalismo moderno até o mundo globalizado dos dias atuais observamos um
grave problema, ou melhor, um grande desafio: a dificuldade que as sociedades
em geral têm de aceitar as diversidades humanas, bem como de lidar com as
diferenças, seja em termos étnicos, sociais ou culturais.
Destacamos no texto que toda análise que tenha a pretensão de contribuir
com a melhoria das relações sociais e dos padrões de aceitação, diálogo e
respeito entre os homens deve levar em conta os parâmetros da alteridade e da
compreensão relativista, os quais se colocam duramente contrários a todas as
formas de etnocentrismo, discriminação, preconceito, violência e desigualdades.

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A n t r o p o l o g i a e c u l t u r a   129

Resumo
Nesta unidade do livro você pode conhecer os conceitos de alteridade e de
relativismo cultural, e teve a oportunidade de compreender por que a Antropo‑
logia adota positivamente o seu uso. Com o texto foi possível refletir a respeito
de como vêm se dando as relações sociais entre os mais diferentes povos, so‑
ciedades e grupos, e os desdobramentos das práticas etnocêntricas com as quais
ainda convivemos nos dias de hoje. Nossa ênfase foi ampliar o entendimento de
como a noção de alteridade e de relativismo cultural pode auxiliar no estudo
das diversidades humanas em nossos dias, e também em nossas práticas diárias
e profissionais.

Atividades de aprendizagem
1. Explique as principais propriedades da cultura (a cultura é simbólica, a cultura não
é inata, a cultura pressupõe uma linguagem, a cultura possui um caráter social,
a cultura é um instrumento de coesão social, a cultura é dinâmica).
2. Por que podemos falar que a Antropologia é uma ciência que se transformou com
o desenvolvimento da sociedade?
3. A corrente evolucionista de explicação sobre a diversidade cultural deixou algumas
sequelas negativas em nossa sociedade? Explique e exemplifique.
4. Discuta sobre a questão da diacronia e da sincronia na perspectiva da Antropo‑
logia.
5. Explique as definições de etnocentrismo e relativização, e discuta como esses
dois conceitos nos ajudam a compreender a diferença entre os indivíduos em
sociedade.

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Unidade 5
Formação da
cultura brasileira
Giane Albiazzetti
Okçana Battini

Assim, do mesmo modo que o estrangeiro, o brasileiro apresenta seu


país (especialmente no exterior) como um território inigualável, talvez
o único local do planeta onde esta ideologia da tranquilidade, da paz
social e racial, das comidas quentes, das praias, mulheres e do samba,
é atualizada integralmente.
Roberto da Matta, Ensaios de antropologia estrutural.

Objetivos de aprendizagem: Nesta unidade você será levado a


discutir sobre a formação da cultura brasileira, levando em consi-
deração os aspectos econômicos, políticos e sociais, que influen-
ciaram a história do nosso país. Assim teremos claro que a nossa
formação é fruto de miscigenação das raças, oriundas do processo
de colonização, sendo que para isso devemos também compreender
a contradição existente nesse processo.

Seção 1: Aspectos históricos na formação


da cultura brasileira
Nesta seção discutiremos os aspectos históricos da
formação cultural brasileira, bem como os principais
autores: Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Hollanda,
Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro e suas discussões
sobre a formação cultural de nossa sociedade.

Seção 2: Diversidade cultural brasileira e


relações inter-étnicas
Nesta seção trabalharemos a diversidade cultura e
seus impactos na sociedade, elencando as políticas
afirmativas como eixo central para a superação do
pensamento etnocêntrico e do racismo.

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132  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Introdução ao estudo
Pensar a cultura brasileira é pensar na sua dinamicidade em relação a outros
grupos sociais existentes, pois esta tem certas especificidades que se apresentam no
desenrolar da história brasileira. Assim, torna-se importante discutirmos como se deu
esse processo e quais atores abordam essa questão.

  Seção 1 Aspectos históricos na formação


da cultura brasileira
Pensar em cultura brasileira é pensar em diversidade cultural, visto que basta
olharmos para nosso lado, para compreendermos que o Brasil é um país multicultural,
já que somos frutos do processo de miscigenação entre o povo europeu, indígena e
africano. Para compreendermos este processo, basta fazermos uma leitura do legado
cultural que herdamos desses povos que, ao se misturarem, deram origem ao povo
brasileiro.
Muitos autores, a partir do século XIX, buscaram interpretar esse processo de
formação da identidade brasileira. Como já vimos, ao falarmos do difícil processo
de definição do que seria a cultura, podemos repetir esse discurso, visto que ao se
falar em formação da cultura brasileira, temos também muitas interpretações no que
tange o discurso das ciências sociais.
Podemos dizer que a cultura brasileira é fruto de um legado cultural (processo de
transmissão cultural que ocorrem ao longo da história, nos quais as gerações mais
velhas transmitem às gerações mais novas a cultura de um grupo) e intercultural,
visto que os grupos que fazem parte da sociedade brasileira têm características cul‑
turais e sociais diversas, o que explica o grande número de manifestações culturais
existentes no Brasil.
Para compreendermos como se inicia a formação da nossa identidade, devemos
voltar um pouco na história para analisarmos o processo de colonização, a partir do
século XVI. Os europeus entraram em contato com o povo indígena, e logo após com
os africanos (em virtude do trabalho escravo), iniciando um processo de mudança
social, onde diferentes manifestações culturais entram em conflito, moldando-se,
agrupando-se dando início à formação do chamado “povo brasileiro”. No final do
século XVIII e início do século XIX, muitos grupos étnicos (italianos, japoneses, por‑
tugueses, alemães e espanhóis) migraram para o Brasil para o trabalho nas lavouras
de café e na indústria.
Como afirma Pedrão (1995), esse colonialismo moderno, desenvolvido a partir
das Grandes Navegações, fundamentou-se na dominação e na exploração de pessoas
e de recursos naturais, ambos tratados igualmente como mercadorias que muito in‑
teressavam ao capitalismo emergente.

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   133

Os mecanismos de exploração colonial fundamentaram-se no uso de armas e


aparatos militares, respaldados por uma forte ideologia religiosa: a da Igreja Católica.
Portugal, representando um dos maiores países católicos da Europa, fundou sua colônia
brasileira impondo sobre os povos nativos impondo sua força, sua religião e sua cultura.
No caso do Brasil, além da religião e das ambições de riqueza e
poder, nascemos também de uma Renascença portuguesa de vida
curta, frágil, mas, no seu tempo, de uma prodigiosa eficiência.
Mais do que na literatura e nas artes, a opera magna do renasci‑
mento português foi a de superar os limites do Mediterrâneo,
conquistar o Atlântico e o Índico. A grande obra da Renascença
portuguesa estava no mar e sua glória nas conquistas de além mar
(WEFFORT, 2005, p. 10, grifo do autor).

O Brasil é um país cujo passado colonial se


mantém presente em muitos aspectos. Guillen
e Couceiro (2000), ao analisarem as relações Links
entre os colonizadores portugueses e os po‑ Sobre a imposição da religião cató-
vos nativos do Brasil, afirmam que havia uma lica na América portuguesa, acesse:
grande dependência dos primeiros em rela‑ <www.historianet.com.br/con-
ção aos segundos, pois precisavam conhecer teudo/default.aspx?codigo =667>.
o extenso território brasileiro, suas riquezas e
perigos naturais.

Questões para reflexão


Então quer dizer que os portugueses dependiam muito mais dos índios do que
o contrário? Como assim?

As autoras sugerem que o contato entre os “brancos” e os “índios” foi marcada‑


mente ambíguo: por um lado carregado de conflitos e violência, e por outro estabele‑
ceu-se uma relação de interdependência, na medida que estabeleceram trocas entre si.
Quase sempre os livros didáticos relacionam as contribuições das
etnias que formam o povo brasileiro, entre as quais as dos índios,
mencionando hábitos como a utilização da rede, alimentos como
a mandioca ou a origem de algumas palavras. Na verdade esses
aspectos são acessórios, e pensamos que é mais enriquecedor
discutir uma história social da miscigenação, mostrando como
foi o cotidiano do (des)encontro entre os povos — que, afinal, se
casavam, trabalhavam, tinham crenças e festas, ora conviviam pa‑
cificamente e ora lutavam entre si. A mistura racial era vista pelas
autoridades portuguesas de uma forma negativa [...]. No século XIX,
no entanto, a ideia da miscigenação passou a ser vista de forma
positiva, atribuindo-se a ela papel de relevância na construção da
identidade nacional. Isso se observa, por exemplo, na abordagem
dada pelos românticos ao indianismo, como José de Alencar em
O Guarani (GUILLEN; COUCEIRO, 2000, p. 27, grifo do autor).

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134  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Intermediando esse contato estavam os jesuítas, com seu papel evangelizador.


Embora movidos por uma boa intenção (acreditavam que era preciso difundir o cris‑
tianismo e a fé monoteísta junto aos povos “primitivos”), sua ação foi muito mais
prejudicial do que benéfica, pois forçaram um processo de aculturação que acabou
por desintegrar as culturas e sociedades nativas em muitos aspectos. Um fator re‑
levante das missões evangelizadoras, e que deve ser levado em conta, é que esses
jesuítas passaram a defender os indígenas nos conflitos com os colonizadores, pois
os interesses econômicos se distanciavam dos interesses morais e religiosos.
Para pensar a formação da identidade brasileira, este ponto de partida da relação
entre colonizadores e nativos é essencial, mas não se pode dizer que a cultura bra‑
sileira seja unicamente pautada no contato entre as tradições e costumes europeus
e indígenas, pois depois chegaram também outros povos, sobretudo os africanos
escravizados, que aqui se misturaram, contribuindo com diferentes referenciais
culturais.
O fato é que uma das principais características da nossa identidade é a mescla
de modos de ser, de pensar e de agir, comumente chamada de miscigenação, que
foi definindo, ao longo de séculos de colonização e de exploração, a base da nossa
sociedade — uma sociedade que mostra, até hoje, relações de dominação e de hie‑
rarquia, de práticas voltadas para interesses particulares, e imposições etnocêntricas
(MORAIS, 1989).

Questões para reflexão


Nesse caso, pode-se dizer que a história da miscigenação foi uma coisa boa para
o país, correto? Mas, por que então a sociedade brasileira é tão marcada pelo
preconceito e pela discriminação, tanto em termos sociais quanto raciais?

Pedrão (1995) destaca que o governo português desejava fortalecer seu poder
por meio do mercantilismo, porém sem desintegrar sua estrutura feudal. Assim,
estabeleceu com as colônias uma relação meramente extrativista, que não agregou
os valores de produção industrial e de acumulação capitalista que já começavam a
fazer parte de outros países, como a Holanda e a Inglaterra. Para tanto, foi preciso
utilizar a forma de trabalho escravo, e este teve que ser comercializado da África.
Neste contexto, a Coroa passou a investir na formação de elites rurais — os se‑
nhores de engenho — responsáveis por assegurar a produção açucareira com fins de
exportação. Esses senhores de engenho tornaram-se os principais representantes da
monarquia portuguesa no Brasil, e sua participação na vida social caracterizava-se
pela lealdade à metrópole em troca de poder econômico e político, determinando
relações de dominação e de hierarquia social em um contexto escravocrata, racista
e predatório.

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   135

Sobre o período da escravidão é necessário salientar que os povos africanos


eram submetidos a formas explícitas de violência, pois muitas vezes não conseguiam
ou mesmo não queriam se adaptar, resistindo em se submeter aos mandos de seus
“proprietários”, que deles exigiam as mais duras e indesejáveis tarefas — tarefas
estas condicionadas às piores condições de vida possíveis. Aos que não resistiam,
por aceitarem resignadamente ou por se adaptarem ao trabalho escravo — os bons
escravos — eram dadas condições menos aversivas, em reconhecimento por sua
conduta humilde, obediente e fiel (GUILLEN; COUCEIRO, 2000).

Questões para reflexão


Então havia muitos negros escravizados que não se conformavam com as vio‑
lências às quais se viam submetidos? Quem se lembra da história do Zumbi dos
Palmares?

A formação da sociedade brasileira nesse período colonial teve como base a


supremacia dos interesses econômicos do colonizador em virtude do capitalismo
internacional, não vinculando valores de respeito à terra e ao povo. Levou muito
tempo até que alguns grupos sociais, identificados por uma identidade genuinamente
brasileira e outro referencial ideológico, começassem a se insurgir contra a subordi‑
nação do Brasil a Portugal, reivindicando a independência (PEDRÃO, 1995).
Nesse período, o povo brasileiro já expe‑
rimentava a acumulação capitalista primitiva,
ainda mercantilista, em uma composição social Links
heterogênea em termos de valores culturais, ori‑ Para ter mais informações sobre a
gens étnicas e classe (RIBEIRO, 1995). Apesar formação do povo brasileiro, acesse:
disso, a mentalidade colonialista, respaldada pela <www.brasilescola.com/historiag/
Igreja Católica em muitos aspectos, manteve-se brasileiro.htm>.
presente mesmo no período imperial e republi‑
cano, disfarçada na imagem de um país indepen‑
dente politicamente.
Outro ponto fundamental da formação da identidade brasileira é o medo, fruto
das ações violentas por parte dos dominadores: “O medo não era exclusividade do
negro escravizado. Ao contrário, o medo estava presente em todas as camadas da
sociedade colonial” (GUILLEN; COUCEIRO, 2000, p. 8), pois as tentativas de resistên‑
cia, quando oriundas das camadas pobres e subjugadas, eram duramente combatidas
pelos nobres senhores que representavam a monarquia.
Apenas o movimento de emancipação política disparado pelo próprio príncipe regente
do Brasil, D. Pedro, em 1822, representou uma forma de resistência “aceitável” (embora,
obviamente, a Coroa portuguesa tenha se posicionado de modo contrário), porque foi

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136  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

elaborada e articulada do ponto de vista político-econômico, atendendo aos interesses


de Portugal nas suas relações com os países industrializados, sobretudo a Inglaterra, que
cobravam o fim do pacto colonial. Além disso, a independência do Brasil teve inspiração
burguesa, cujos ideais iluministas de liberdade e emancipação combinavam perfeitamente
bem com os pressupostos do capitalismo liberal.
Segundo Fonseca (1999), o processo de independência do Brasil não chegou
a descolonizar o país, visto que o trabalho escravo não foi abolido e a monarquia
continuou a constituir o poder político, permanecendo uma sociedade formada por
privilégios à elite e discriminação racial. Além disso, a Proclamação da República,
em um momento seguinte, também não foi capaz de eliminar a colonização, pois
as classes dominantes continuaram exercendo o poder sob uma forte inspiração
eurocêntrica.

Questões para reflexão


Sempre as elites se manifestando na disputa pelo poder... De que forma os pro‑
fessores de História podem trabalhar esse momento histórico em sala de aula a
fim de despertar maior interesse entre os alunos?

A aristocracia rural do país, na época da independência, não permitiu que seus


privilégios políticos e econômicos fossem afetados, e procurou se articular interna‑
mente no sentido de evitar que as classes populares (escravos e trabalhadores pobres)
assumissem posições políticas e sociais mais elevadas.
Conforme destacado por Guillen e Couceiro (2000), no final do século XIX a
sociedade brasileira conheceu outra variante etnocêntrica que ainda hoje repercute,
de certa forma, no pensamento e no imaginário brasileiro: as tentativas de “branquea­
mento” da população diante das teorias científicas que explicavam as diferenças
raciais, atribuindo aos europeus e seus descendentes uma condição de superioridade
étnica e cultural (eurocentrismo).
Este é o contexto histórico de surgimento das primeiras escolas antropológicas,
como a evolucionista e a sociológica francesa, que defendiam a tese de que todas
as sociedades humanas necessariamente se encontravam em algum ponto da escala
evolutiva, sendo a “civilização europeia” a representante do mais alto nível de de‑
senvolvimento cultural (LAPLANTINE, 1988).
Para Fonseca (1999), o chamado “projeto de branqueamento” da população
brasileira foi realizado através de políticas de incentivo à imigração europeia. Esses
imigrantes se instalaram mais ao sul e sudeste do país e tiveram a possibilidade de
trabalhar em terras e adquiri-las em condições facilitadas, diferentemente do que
ocorreu com os descendentes de escravos africanos, que se mantiveram submetidos
às piores condições e oportunidades de trabalho. Fonseca (1999) salienta que até hoje

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   137

os descendentes de europeus continuam ocupando os melhores espaços no mercado


de trabalho e na sociedade. Segundo ela, os “negros e mestiços” ainda se mantêm
em condição de marginalização social, submetidos ao preconceito e ao racismo.
Alguns importantes intérpretes do Brasil precisam ser mencionados, pois suas
leituras são até hoje muito utilizadas nas pesquisas sobre a cultura e a identidade do
povo brasileiro, entre os quais se destacam Gilberto Freyre (Casa-Grande & Senzala),
Sérgio Buarque de Holanda (Raízes do Brasil), Caio Prado Júnior (Formação do Brasil
Contemporâneo), Darcy Ribeiro (O povo brasileiro), Florestan Fernandes (A revolução
burguesa no Brasil), e Roberto DaMatta (Carnavais: malandros e heróis).

1.1 Gilberto Freire


Fundado nesse contexto, torna-se importante discutir alguns autores que buscaram
compreender a formação desse provo. Um dos principais autores que discutem esse
processo é Gilberto Freire (1900 — 1987), em seu livro Casa Grande e Senzala. Freire
aborda que essa integração social entre o negro,
branco e índio estabeleceu-se de forma harmo‑
niosa, sendo que essa miscigenação proporcio‑
nou um equilíbrio entre os diferentes grupos
Links
culturais. Segundo Freire (2001), as relações so‑ Acessem o site:
ciais fundamentavam-se no trabalho escravo, no <bvgf.fgf.org.br/portugues/obra/
poder e mando do senhor de engenho e da famí‑
livros/pref_brasil/casagrande.htm>
lia patriarcal, o que identificava o processo de
para ler o prefácio do livro Casa-
colonização portuguesa no Brasil.
-Grande & Senzala que aborda
Feito o recorte necessário sobra a discussão
como o livro foi pensado e produ-
de raça e etnia, torna-se importante levantar
zido. Vale a pena!
que alguns autores contradizem essa visão “ro‑
mântica” do processo de surgimento do povo
brasileiro e de sua cultura, proposto por Freire. Segundo Sergio Buarque de Holanda
(1902-1982) e Florestan Fernandes (1920-1995) essa leitura imprime uma visão sobre
os diferentes grupos sociais como algo natural, sem estabelecer os conflitos de classe
existentes entre o dominador e os dominados.

1.2 Sérgio Buarque de Holanda


Para Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Raízes do Brasil (2003), a formação
da cultura brasileira tem relação com o período de transição do Brasil tradicional
para uma ordem moderna, onde o modelo agrário, rural e patriarcal dava lugar para
o modelo industrial, urbano e democrático.
A formação da cultura brasileira tem relação com o período que
o Brasil atravessava desde o século XIX sob uma prolongada crise
de transição de uma ordem tradicional a uma ordem moderna.
Tratava-se de uma revolução lenta, com a superação de um mo‑
delo agrário, rural e patriarcal, por um outro modelo — industrial

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138  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

urbano e democrático. A dificuldade de ultrapassagem para esta


última fase se originava de uma série de entraves que a estrutura
colonial havia legado e que se manifestava desde então no modo
de ser do brasileiro. Premido entre os novos imperativos da civi‑
lização ocidental e os condicionantes arcaicos da sua formação
histórica, o Brasil assistia a um impasse na definição de seu destino
(HOLLANDA, 2004).

Dentro desse contexto, Holanda (2003) estabelece a relação entre o português, o


índio e o negro, fundado na questão da dominação legal do branco sobre as outras
culturas, instituindo uma relação de superioridade e de poder sobre o homem simples
(fruto da mistura de raças). Com isso, institui-se culturalmente o homem cordial, que
aceita as estruturas sociais vigentes, sem questionar, pois é muito forte culturalmente o
domínio de uma classe sobre a outra. Aqui podemos relacionar novamente a questão
da cultura e da ideologia presente no início do nosso texto.

Saiba mais
Um site interessante que aborda toda a obra de Sergio Buarque de Holanda é <www.unicamp.
br/siarq/sbh/>.
Bastante interessante também é o filme: Raízes do Brasil — Uma cinebiografia de Sérgio
Buarque de Holanda
Informações Técnicas
Título original: Raízes do Brasil — Uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda
País de origem:  Brasil
Gênero:  Documentário
Tempo de duração: 148 minutos
Ano de lançamento:  2003
Estúdio/Distrib.: Estação Filmes
Direção: Nelson Pereira dos Santos

Prado Júnior (1990), outro grande intérprete do Brasil, discutiu as relações sociais
no país sob um referencial histórico-crítico (marxista), afirmando que a sociedade
brasileira foi constituída, desde o período da colonização, a partir dos interesses da
economia capitalista, servindo os trabalhadores e os mais pobres às necessidades e
interesses da classe burguesa dominante.
Para este pensador, o passado de exploração e de dominação dificultou o desen‑
volvimento de um senso de nacionalismo entre os brasileiros. O autor concorda com
Sérgio Buarque de Holanda no sentido de que o país teria que se modernizar, mas

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   139

sobretudo a partir de uma reconstrução histórica de suas relações sociais, políticas


e econômicas em uma perspectiva socialista.

1.3 Florestan Fernandes


Já Fernandes (1978), em seu livro a Integração do negro na sociedade de classes,
analisa o processo de exclusão social do negro na formação da cultura brasileira.
Segundo Fernandes (1978), o negro e sua cultura sempre participaram do processo
de desenvolvimento do país, mas sempre em posição de inferioridade dentro da es‑
trutura social, visto que no início do processo de colonização eles eram vistos como
mercadorias, e depois da abolição da escravidão em 1888 a presença do negro sempre
foi vinculada ao trabalho não capacitado.
Para Fernandes (1978), o negro sempre esteve presente no processo de construção
da sociedade brasileira e essa participação também influenciou os padrões culturais
do povo brasileiro.
Mas a sociedade, histórica e ideologicamente, colocou o negro à margem do pro‑
cesso social, visto que, com o desenvolvimento das relações de trabalho assalariado
nas cidades, os negros passaram a concorrer com os trabalhadores imigrantes, que já
estavam acostumados com o trabalho estipulado pelo modo de produção capitalista.
Esses aspectos incidem diretamente no fator cultural, visto que a cultura negra foi
estereotipada como exótica, sendo sempre vista sob um olhar etnocêntrico.
Ribeiro (1995), nome de destaque na Antropologia brasileira, retoma a discussão
sobre a mestiçagem física e de costumes na formação da cultura brasileira, concluindo
que o povo brasileiro poderia ser pensado a partir da constituição histórica de uma
“etnia nacional”, pois no Brasil formou-se uma espécie de unidade cultural em meio
à diversidade étnica que o originou.

Questões para reflexão


Etnia nacional? Será que podemos concordar com a idealização de uma “raça
brasileira”?

A obra de Darcy Ribeiro é uma das mais importantes referências teóricas aos que
se interessam em discutir o problema dos índios, pois foi um grande pesquisador e
defensor da causa indígena brasileira. Mindlin (1998) o define como um etnólogo
clássico, um cientista rigoroso, que busca na história as respostas para a compreensão
da sociedade brasileira.
Outro grande intérprete da cultura brasileira é o antropólogo Roberto DaMatta
(1979), que produziu estudos de caráter estruturalista sobre as características e cos‑
tumes típicos de nosso país. Em seus livros discute uma infinidade de elementos que,
em seu conjunto, formam nossa sociedade, como o universo simbólico do país e seus
inúmeros rituais (aniversário, casamento, velório, entre outros), o imaginário social,

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140  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

as crenças e valores do povo; os diversos rituais urbanos que se desenvolveram em


função da diversidade étnica e cultural que originaram o Brasil; as festas e o espírito
alegre do brasileiro; as músicas e danças que são cultivadas pela população; as co‑
midas e os pratos típicos do Brasil; a religiosidade e as diversas práticas cultuadas
pelas religiões existentes no país, incluindo o sincretismo; o gosto por certos tipos
de esportes — como é o caso do futebol, a “paixão” nacional; as relações sociais
estabelecidas entre um modelo tradicionalmente patriarcal e os papéis assumidos
pela mulher brasileira; a morte e seus rituais; a maneira como os brasileiros utilizam
o espaço privado e o espaço público; a noção e o uso do tempo nas várias popu‑
lações e grupos sociais espalhados pelo território; e os estereótipos e preconceitos
comumente presentes nas relações interpessoais.

Questões para reflexão


Adoro filmes, e vocês? Conseguem pensar em algum filme que possa ajudar futu‑
ramente no trabalho de vocês em relação à formação da nossa sociedade? Quem
assistiu, por exemplo, a Xica da Silva, dirigido por Cacá Diegues?

Segundo DaMatta (1979), todo esse conjunto de elementos próprios da cultura


brasileira ajudam a entender as particularidades de cada região, de cada classe e de
cada grupo social. O autor entende que o Brasil é um país de grande diversidade
cultural, mas que se singulariza na forma como se estabelecem as relações entre o
indivíduo e a sociedade, destacando-se as hierarquias e tradições sociais, o respeito/
desrespeito às leis (o jeitinho brasileiro), a submissão à autoridade do “outro” (você
sabe com quem está falando?), e a distinção entre
a noção de indivíduo (qualquer um) e pessoa
(alguém que assume alguma importância social).
Saiba mais Um aspecto interessante da obra de Roberto
DaMatta­ é seu olhar relativista sobre o “jeito de
Não deixem de conhecer os livros
ser” do brasileiro.
mais indicados de Gilberto Freyre,
Sérgio Buarque de Holanda, Dentro desse breve recorte teórico sobre a
formação do povo brasileiro, devemos ter claro
Caio Prado Júnior, Darcy Ri-
que a educação adquire aqui um papel impor‑
beiro, Florestan Fernandes e
tantíssimo dentro do processo de discussão da
Roberto DaMatta, todos referen-
cultura brasileira, bem como na formação de
ciados neste livro de Antropologia
nossa identidade enquanto povo. É por meio dela
Cultural. Leituras obrigatórias,
que vamos colaborar na formação de indivíduos
heim?
comprometidos com a busca pela compreensão
da sua própria história.

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   141

  Seção 2 Diversidade cultural brasileira e


relações inter-étnicas
As políticas afirmativas surgem com o intuito de minimizar a questão da desigual‑
dade social existente. Assim, coloco nosso primeiro momento de reflexão:

Questões para reflexão


O Brasil é um país de conflitos raciais? Existem o preconceito e a discriminação
no contexto escolar? Como isso se efetiva?

Pensar sobre essa questão nos ajuda a compreender como o processo de divisão
de culturas reflete na inserção dos sujeitos na sociedade vigente e, por consequência,
na escola. O racismo resultante da divisão de culturas e das relações étnico-raciais
impõe a necessidade das minorias se organizarem contra a perpetuação da hierarqui‑
zação da sociedade. Romper com ideologias presentes há anos em nossa sociedade é
um desafio, principalmente porque para muitos essa é uma das maneiras de justificar
o domínio de uns sobre os outros.
Mais que resgatar as dívidas que a sociedade brasileira tem com esses grupos
sociais e étnico-raciais, as ações afirmativas devem ser uma forma de democratização
da sociedade e do acesso a bens materiais e oportunidade de crescimento das pessoas.
Para Gomes (2005, p. 1), a discriminação é um componente:
[...] indissociável do relacionamento entre os seres humanos, reveste‑
-se inegavelmente de uma roupagem competitiva. Afinal, discriminar
nada mais é do que uma tentativa de se reduzirem as perspectivas
de uns em benefício de outros. Quanto mais intensa a discrimina‑
ção e mais poderosos os mecanismos inerciais que impedem o seu
combate, mais ampla se mostra a clivagem entre discriminador e
discriminado. Daí resulta, inevitavelmente, que aos esforços de
uns em prol da concretização da igualdade se contraponham os
interesses de outros na manutenção do estatus quo. É curial, pois,
que as ações afirmativas, mecanismo jurídico concebido com vistas
a quebrar essa dinâmica perversa, sofram o influxo dessas forças
contrapostas e atraiam considerável resistência, sobretudo da parte
daqueles que historicamente se beneficiaram da exclusão dos grupos
socialmente fragilizados.

Daí, a necessidade da atuação ativa do Estado com a implantação de ações


afirmativas como um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compul‑
sório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação
racial, de gênero, por portadores de necessidades especiais e de origem nacional,
sintetizando-se como uma política e mecanismos de inclusão social (GOMES, 2005).

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142  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

A ação afirmativa também é uma forma de implantar a diversidade e a represen‑


tatividade das minorias nas diferentes atividades profissionais, tanto na esfera pública
como privada.
Partindo da premissa de que tais grupos normalmente não são
representados em certas áreas ou são sub-representados seja em
posições de mando e prestígio no mercado de trabalho e nas ativi‑
dades estatais, seja nas instituições de formação que abrem as por‑
tas ao sucesso e às realizações individuais, as políticas afirmativas
cumprem o importante papel de cobrir essas lacunas, fazendo com
que a ocupação das posições do Estado e do mercado de trabalho
se faça, na medida do possível, em maior harmonia com o caráter
plúrimo da sociedade (GOMES, 2005, p. 1).

Portanto, o efeito dessas políticas afirmativas, além da implantação da diversidade


e representatividade, é o fato de acabar com barreiras “invisíveis” que impossibilitam
o avanço dos grupos minoritários. Nesse sentido,
o pluralismo que se implanta por conta das ações
Para saber mais afirmativas traz inúmeros avanços e benefícios,
principalmente, para os países que se denominam
O termo preconceito refere-se a opi- como multirraciais e que assistem ao aumento do
niões ou atitudes defendidas por multiculturalismo.
membros de um grupo em relação Se estamos falando de inclusão, via políticas
a outro grupo. Os pontos de vista afirmativas e diversidade cultural, temos que co‑
preconcebidos de uma pessoa pre- nhecer os princípios que instituíram a desigual‑
conceituosa, em geral, se baseiam dade em nossa sociedade. A palavra preconceito
em boatos, ao invés de em evidên- deriva do latim prejudicium, que designa um julga‑
cias diretas, e resistem a mudanças, mento ou decisão anterior, um precedente ou um
mesmo diante de novas informa- prejuí­zo. Segundo Outhwaite e Bottomore (1996)
ções. As pessoas podem nutrir pre- no uso moderno, o termo veicula muitos signifi‑
conceitos favoráveis em relação a cados, sendo comum à maioria deles, contudo,
grupos com os quais se identificam as noções de julgamento prévio desfavorável, efe‑
e preconceitos negativos contra ou- tuado antes de um exame ponderado e completo,
tros. Quem é preconceituoso em e mantido rigidamente mesmo em face de provas
relação a um grupo específico se que o contradizem.
recusará a escutá-lo de maneira Inúmeras pesquisas mostram que as atitudes
justa. Se o preconceito define atitu- rotuladas como preconceituosa podem ser especí‑
des e as opiniões, a discriminação ficas para um grupo ou generalizadas para muitos;
refere-se ao comportamento con- podem ser primordialmente cognitivas, afetivas
ou avaliatórias; podem referir-se unicamente a
creto em relação a um grupo ou
intervenções sociais pessoais ou dirigir-se a am‑
indivíduo. A discriminação pode ser
plas políticas públicas. Diante dessas variações,
percebida em atividades que ex-
Outhwaite e Bottomore (1996) colocam que, na
cluem membro de grupos as opor-
área de ciências humanas e sociais, concentram‑
tunidades abertas a outras pessoas
-se, de modo geral, em orientações desfavoráveis
(GIDDENS, 2001, p. 208).
dirigidas a grupos e categorias.

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Formação da cultura brasileira 143

Assim, levantamos algumas conclusões importantes para pensarmos o preconceito


em nossa sociedade:
Tais preconceitos negativos, embora generalizados, não são universais;
O preconceito não é monopólio desta ou daquela sociedade, desta ou daquela
cultura;
O preconceito não é inato, mas deve ser
aprendido;
Os preconceitos em relação a diferentes
grupos tendem a andar juntos: as pessoas
Links
que manifestam preconceito para com um Estudo da Universidade Federal do
grupo étnico mostram tipicamente atitudes Rio de Janeiro demonstra os refle-
semelhantes para com outros “grupos de xos do etnocentrismo em nossa
fora”; sociedade:
Os indivíduos variam imensamente na in‑ <www.estadao.com.br/especiais/
tensidade espécie de seus preconceitos; os-numeros-da-desigualdade-ra-
Os preconceitos encorajam os comporta‑ cial-no-brasil,36780.htm>.
mentos discriminatórios e as orientações
dadas às políticas públicas.
Torna‑se importante realizarmos aqui um recorte para discutirmos um pouco a
relação entre raça e etnia, visto que essa questão é muito importante para a com‑
preensão da diversidade cultural brasileira. O conceito de raça é um dos conceitos
mais complexos, devido à contradição em seu uso cotidiano e sua base científica.
Segundo Giddens (2001, p. 205) “[...] raça pode ser entendida como um conjunto de
relações sociais que permitem situar os indivíduos e os grupos e determinar vários
atributos ou competência como base em aspectos biologicamente fundamentados”.
Muitas vezes, o termo raça é utilizado para classificar ideologicamente (hierarquizar)
os indivíduos, ou seja, o racismo. Por isso é um termo contraditório, e devemos ter
clareza para não utilizarmos de forma pejorativa. Uma categoria que melhor aju‑
daria a compreender a questão da formação da sociedade é o conceito de etnia. A
etnia ou etnicidade refere‑se às práticas e às visões culturais de uma determinada
comunidade, que partilham bens culturais comuns, como a linguagem, a comida,
manifestações religiosas...
Mas sabemos que as consequências do etnocentrismo estão presentes até os dias
de hoje. No Brasil podemos verificar a existência de grupos minoritários que muitas
vezes sofrem com o etnocentrismo presente em nossa cultura. Aqui cabe uma expli‑
cação sociológica. É comum empregarmos o termo “minoria” em um sentido não
literal quando se referem à posição subordinada de um grupo dentro da sociedade,
e não à sua representação numérica. Segundo Giddens (2001), em algumas regiões
geográficas, como em áreas urbanas decadentes, os grupos de minoria étnica com‑
põem a maioria da população, mas, no entanto, são citados como “minorias”, já que
o termo expressa sua situação de desamparo. Ex.: As mulheres, às vezes, são descri‑
tas como um grupo minoritário, embora constituam a maioria numérica em muitos

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144  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

países. Porém, em comparação com os homens (os “majoritários” quer pela força
física, quer pelo preconceito existente socialmente), as mulheres tendem a ser des‑
favorecidas.
Giddens (2001) continua sua explicação alegando que o termo “minorias” para
referir-se coletivamente a grupos que tenham so‑
frido preconceito nas mãos da sociedade “majori‑
tária”. Este termo traz a atenção para a difusão da
Links discriminação. Podemos utilizar aqui, também, o
Um texto interessante sobre essa exemplo das crianças e adolescentes, dos idosos,
questão da democracia racial é o dos homossexuais, dos negros, índios... ou seja,
da Profa. Dulce Maria Pereira, cha- grupos minoritários dentro da sociedade.
mado A face negra do Brasil Na busca por igualdade cultural, os movi‑
multicultural. Disponível em: mentos sociais tornam-se instrumentos essen‑
ciais para a garantia dos direitos sociais. Hoje o
<www.dominiopublico.gov.br/
Movimento Negro tem forte participação na luta
download­/texto/mre000073.pdf>.
contra o preconceito e o racismo existente em
nossa sociedade.
Como fruto dessa mobilização popular, não somente por parte do Movimento
Negro, mas pela atividade crescente dos Movimentos Sociais (MST, Movimento LGBT,
Movimento Indigenista, Movimento Feminista, Movimento a favor dos Direitos da
Criança e do Adolescente) são criadas políticas de ações afirmativas, no intuito de
assegurar às minorias o processo de inclusão social.
Nosso foco é discutir como as políticas afirmativas impactam no processo edu‑
cativo e na inclusão e diversidade. Para isso, temos que discutir o que se tem feito,
no âmbito legal, para garantir esses direitos.

Para saber mais


Leia a dissertação de mestrado de Luiz Carlos Paixão da Rocha (2006), Políticas afirmativas e
educação: a Lei 10639/03 no contexto das políticas educacionais no Brasil contemporâneo.
Uma leitura interessante é Movimento Negro brasileiro: alguns apontamentos históricos, de
Petrônio Domingues.

Essas definições introduzem a ideia da necessidade de promover a representa‑


ção de grupos inferiorizados na sociedade e conferir-lhes uma preferência a fim de
assegurar seu acesso a determinados bens, econômicos ou não.
Antonio Sergio Guimarães (1997) apresenta uma definição da ação
afirmativa baseado em seu fundamento jurídico e normativo. A
convicção que se estabelece na Filosofia do Direito, de que tratar
pessoas de fato desiguais como iguais, somente amplia a desigual‑
dade inicial entre elas, expressa uma crítica ao formalismo legal

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   145

e também tem fundamentado políticas de ação afirmativa. Estas


consistiriam em “promover privilégios de acesso a meios funda‑
mentais — educação e emprego, principalmente — a minorias
étnicas, raciais ou sexuais que, de outro modo, estariam deles ex‑
cluídas, total ou parcialmente” (1997, p. 233). Além disso, a ação
afirmativa estaria ligada a sociedades democráticas, que tenham no
mérito individual e na igualdade de oportunidades seus principais
valores. Desse modo, ela surge “como aprimoramento jurídico de
uma sociedade cujas normas e mores pautam-se pelo princípio
da igualdade de oportunidades na competição entre indivíduos
livres”, justificando-se a desigualdade de tratamento no acesso
aos bens e aos meios apenas como forma de restituir tal igualdade,
devendo, por isso, tal ação ter caráter temporário, dentro de um
âmbito e escopo restrito (1997, p. 233). Essa definição sintetiza o
que há de semelhante nas várias experiências de ação afirmativa,
qual seja, a ideia de restituição de uma igualdade que foi rompida
ou que nunca existiu. Na explicitação desse objetivo, também se
diferencia de práticas discriminatórias raciais, étnicas ou sexuais,
que têm como fim estabelecer uma situação de desigualdade entre
os grupos (MOEHLECKE, 2002, p. 200, grifo do autor).

Para saber mais


Se quiser se aprofundar mais nessa discussão, leia o texto de Sabrina Moehlecke, intitulado:
Ação afirmativa: história e debates no Brasil: <www.scielo.br/pdf/cp/n117/15559.pdf>.

No material desenvolvido pelo Grupo de Trabalho Interministerial


para a Valorização da População Negra no Brasil encontramos essa
distinção, em que a ação afirmativa é definida como uma medida
que tem como objetivo: [...] eliminar desigualdades historicamente
acumuladas, garantindo a igualdade de oportunidades e tratamento,
bem como compensar perdas provocadas pela discriminação e
marginalização, decorrentes de motivos raciais, étnicos, religio‑
sos, de gênero e outros (SANTOS, 1999, p. 25 apud MOEHLECKE,
2002, p. 200).

Nesse sentido, temos uma vinculação entre as Ações Afirmativas e as Políticas


Públicas Educacionais. As tensas relações entre brancos e negros fazem parte do
universo das escolas e inúmeras vezes são simuladas como harmoniosas ou tratadas
como singulares e normais. Segundo a professora Silva (estudiosa da questão do negro
no Brasil), a sociedade brasileira precisa conhecer a história brasileira sob o ponto
de vista não dos vencedores, mas daqueles que realmente foram os protagonistas
(SILVA, 2005).

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146 H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

No bojo das Políticas Afirmativas, referente ao


papel do negro, juntamente com a atividade do
Saiba mais Movimento Negro no Brasil, temos a promulgação
Conheça a Lei 10.639/03 — Lei do da Lei 10.639/03 — Lei do Ensino da História e
Ensino da História e Cultura Afro- Cultura Afro‑Brasileira e Africana (BRASIL, 2003)
-Brasileira e Africana: — que representa um avanço no sentido da pro‑
moção da igualdade racial, pois coloca o tema na
<www.planalto.gov.br/ccivil_03/
pauta do professor e da escola.
leis/2003/l10.639.htm>.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) alterou a Lei
9394/96 — Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira — ao incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática de História e Cultura Afro‑Brasileira. A
relevância do estudo da história e cultura afro‑brasileira e africana dizem respeito a
todos os brasileiros, uma vez que devem educar‑se enquanto cidadãos atuantes no
seio de uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação
realmente democrática.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) exige um repensar das relações étnico‑raciais,
dos conteúdos pedagógicos e dos procedimentos de ensino na perspectiva de uma
ampliação do foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social
e econômica brasileira.
A partir da lei, tornou‑se obrigatória a inclusão nos currículos dos estabelecimen‑
tos de ensino fundamental e médio de conteúdos relacionados à história da África
e à cultura afro‑brasileira, até então quase inexistentes ou, quando apresentados,
com visões distorcidas, além de buscar corrigir versões desvirtuadas no processo
didático‑pedagógico, bem como inserir as histórias da população afrodescendente
de maneira mais ampliada dentro do contexto educacional.
Além disso, não podemos esquecer os Parâmetros Curriculares Nacionais que con‑
templam em um de seus documentos a pluralidade cultural, conhecido como temas
transversais que norteiam o ensino fundamental com seus objetivos, habilidades e
competências, elencando a delimitação de conteúdos para o ensino de cultura afro‑
‑brasileira e africana. Os denominados PCNs também buscam o fim do preconceito
contra as minorias étnicas em nosso país e aponta alguns princípios norteadores para
a ação docente.
Assim, os PCNs de Pluralidade Cultural apontam os seguintes objetivos:
conhecer a diversidade do patrimônio étnico‑cultural brasileiro,
tendo atitude de respeito para com pessoas e grupos que a
compõem, reconhecendo a diversidade cultural como um di‑
reito dos povos e dos indivíduos e elemento de fortalecimento
da democracia;
valorizar as diversas culturas presentes na constituição do Brasil
como nação, reconhecendo sua contribuição no processo de
constituição da identidade brasileira;

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Formação da cultura brasileira 147

reconhecer as qualidades da própria cultura, valorando‑as


criticamente, enriquecendo a vivência de cidadania;
desenvolver uma atitude de empatia e solidariedade para com
aqueles que sofrem discriminação;
repudiar toda discriminação baseada em diferenças de raça/
etnia, classe social, crença religiosa, sexo e outras caracterís‑
ticas individuais ou sociais;
exigir respeito para si, denunciando qualquer atitude de dis‑
criminação que sofra, ou qualquer violação dos direitos de
criança e cidadão;
valorizar o convívio
pacífico e criativo dos
diferentes componen‑
Saiba mais
tes da diversidade cul‑
Vale a pena conhecer os Parâme-
tural;
tros Curriculares Nacionais para
compreender a desi‑
gualdade social como Pluralidade Cultural:
um problema de todos <portal.mec.gov.br/seb/arquivos/
e como uma realidade
passível de mudanças pdf/pluralidade.pdf>.
(BRASIL, 1997, p. 40).

Cabe ao professor adequar as temáticas propostas do documento à sua reali‑


dade escolar, não se esquecendo de levar em consideração concomitantemente a
Lei 10.639/03.
Portanto, a relevância do estudo da história e cultura afro‑brasileira e africana diz
respeito a todos, pois faz parte da história brasileira, como a história dos indígenas e
a dos colonizadores europeus. Conhecer nossos costumes, heranças, tradições cul‑
turais é uma forma de nos conhecermos, de afirmar nossa identidade. Além disso, a
escola deve formar para que todos possam se reconhecer enquanto cidadãos atuan‑
tes, em uma sociedade multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação
igualitária e democrática.
O termo multiculturalismo, todavia, pode indicar diversas ênfases:
a) atitude a ser desenvolvida em relação à pluralidade cultural;
b) meta a ser alcançada em um determinado espaço social; c)
estratégia política referente ao reconhecimento da pluralidade
cultural; d) corpo teórico de conhecimentos que buscam entender
a realidade cultural contemporânea; e) caráter atual das sociedades
ocidentais (CANEN; MOREIRA, 2001, p. 66).

Sintetizando, o multiculturalismo representa uma condição inescapável do mundo


ocidental, à qual se pode responder de diferentes formas, mas não se pode ignorar.
Por isso, a importância na escola de se trabalhar com um currículo que promova
uma educação multicultural para compreender a pluralidade de valores culturais,
resultantes de trocas culturais dentro de cada sociedade e entre várias sociedades.
A educação, nesse propósito, busca eliminar preconceitos/discriminações na
busca de um mundo menos opressivo, desigual e injusto e que se propõe compreen‑

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148  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

der o processo de construção das diferenças e das desigualdades, ainda que estas
sejam complexas e conflituosas (CANEN; MOREIRA, 2001).
A obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana nos
currículos da Educação Básica trata-se de uma lei, com repercussões na base pe‑
dagógica, inclusive no que tange a formação de
professores. Assim, para que uma história multi‑

Saiba mais culturalista seja efetiva, deverá ter como maior


propulsor os professores, os disseminadores do
Leia a entrevista com a professora conhecimento no ambiente escolar que podem
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva contribuir para romper com o preconceito, e
sobre essa questão: propiciar atitudes de respeito às diversas culturas.
<negraldeia.blogspot.com/2007/01/ Portanto, o docente para atender esses anseios
deve ser um pesquisador/professor, desprovido de
perfil-petronilha-beatriz-gonalves-
preconceitos, trabalhando-as de forma concisa,
-e_01.html>.
promovendo nos alunos um olhar novo olhar a
respeito das culturas existentes em nosso país.
A Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) tem como objetivo que todos os alunos negros
e não negros, bem como seus professores, precisam sentir-se valorizados e apoiados
no que se refere à sua cultura. Nesse sentido, a escola e o professor têm o papel
preponderante para proporcionar acesso aos conhecimentos científicos, a registros
culturais diferenciados que demonstram a valorização das relações sociais e raciais.
Nesse sentido, a escola e o professor não podem improvisar. Temos que superar a
visão etnocêntrica e discriminadora existente em nossa sociedade, reestruturando
relações étnico-raciais e sociais, desalienando os processos pedagógicos.
A obrigatoriedade da inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana nos
currículos da Educação Básica trata-se de decisão política, com fortes repercussões
pedagógicas, inclusive na formação de professores. Torna-se necessária uma “peda‑
gogia de combate ao racismo e à discriminação”. Claro que nosso foco aqui é com
relação à questão do negro. Mas será que só existe preconceito em relação ao negro?
Será que nas escolas e nos livros didáticos somente o negro é tratado de forma dis‑
criminatória? Como as “minorias” são tratadas dentro de nossa sala de aula?
É importante destacar que não se trata de mudar o foco etnocêntrico, marcada‑
mente de raiz europeia, por um africano, mas da necessidade de ampliar o foco dos
currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Outra questão vinculada a essa discussão é a educação indígena. Diferentemente
do negro, ainda não se estruturou efetivamente um sistema que atenda as necessidades
educacionais dos povos indígenas, de acordo com seus interesses, respeitando seus
modos e ritmos de vida. O que se busca discutir hoje não é se o índio tem ou não
tem que ter escola, mas, sim, qual o tipo de escola.
Além de ser garantido na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1991) o direito à
educação diferenciada, a educação indígena vem sendo regulamentada, além das Di‑
retrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, está contemplada no Plano Nacional

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F o r m a ç ã o d a c u l t u r a b r a s i l e i r a   149

de Educação, aprovado em 2001, e no projeto


de Lei que busca a revisão do Estatuto do Índio.
O Plano Nacional de Educação, que tem como Links
um de seus elementos a educação indígena, es‑ Para mais informações, um site
tabelece a necessidade de uma escola indígena, bem interessante é: <pib.socioam-
incluída no sistema nacional de ensino, e que biental.org>.
mantenha especificidades para o uso da língua
indígena, a sistematização de conhecimentos e
saberes tradicionais, o uso de materiais adequados e preparados pelos próprios pro‑
fessores índios, um calendário que se adapte ao ritmo de vida e das atividades coti‑
dianas e rituais, a elaboração de currículos diferenciados, a participação efetiva da
comunidade na definição dos objetivos e rumos da escola. A legislação educacional
indígena busca colocar o índio e sua comunidade como protagonistas da escola indí‑
gena, resguardando a eles os diretos de terem seus próprios membros indicados para
a função de professores a partir de programas específicos de formação e titulação.
Baseado nessa questão foi construído o Referencial Curricular Nacional para
Escola Indígena.
Assim, caberá aos sistemas de ensino, às man‑
tenedoras, à coordenação pedagógica dos estabe‑
lecimentos de ensino e aos professores, com base
na Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) e nas discussões
Saiba mais
realizadas pelos Referenciais Curriculares para Vamos conhecer o Referencial Curri-
Escola Indígena, estabelecer conteúdos de ensino, cular Nacional para Escola Indígena?
unidades de estudo, projetos e programas abran‑ Acesse: <www.dominiopublico.gov.
gendo os diferentes componentes curriculares. br/download/texto/me002078.pdf>.
Sabemos que a institucionalização da Lei
10.639/03 (BRASIL, 2003) e os Referenciais da
Educação Indígena são um grande avanço no atendimento às demandas da sociedade
em busca da equidade entre os grupos sociais. Sabemos também da dificuldade em
trabalhar esses quesitos em sala de aula, visto que somos fruto do processo de etno‑
centrismo existente em nosso país.
Nesse sentido, é essencial o fortalecimento de identidades e de direitos, sendo
que esse princípio deve orientar para o esclare‑
cimento a respeito de equívocos quanto a uma
identidade humana universal, buscando o com‑
bate à privação e violação de direitos. Deve-se Saiba mais
buscar o rompimento com imagens negativas Esse vídeo retrata bem a questão
forjadas por diferentes meios de comunicação,
da sociedade brasileira:
contra o negro e os povos indígenas, ampliando
o acesso a informações sobre a diversidade da <www.youtube.com/watch?v=dw
nação brasileira e sobre a recriação das identi‑ GrIUGKi8U&feature =related>.
dades, provocada por relações étnico-raciais.

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150  H o m e m , c u lt u r a e s o c i e d a d e

Links
Um texto superinteressante de uma pesquisa realizada sobre a leitura dos professores sobre a
diversidade cultural dos alunos está disponibilizado no site: <www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
-73302001000400010&script=sci_arttext&tlng=es>.
O texto intitula-se Universos culturais e representações docentes: subsídios para a formação
de professores para a diversidade cultural, de Ana Canen.

Saiba mais
Um documentário interessante sobre a cultural e a diversidade cultural brasileira é O povo brasi-
leiro (2000), baseado na obra de Darcy Ribeiro, pois discute a formação dos brasileiros, sua origem
mestiça e a singularidade do sincretismo cultural que dela resultou. O site <www.forumeja.org.br/
book/export/html/1236> disponibiliza uma boa parte do documentário. Vale a pena conferir.

Aprofundando o conhecimento
O texto a seguir traz uma excelente discussão acerca da questão racial no
Brasil (GUIMARÃES, 2004). Trata-se de um debate central na atualidade, que
ajuda a refletir criticamente sobre o chamado “mito da democracia racial”, que
tanto vem imperando no imaginário do povo brasileiro. Vale a pena conferir!

Ora, o que muda nos anos de 1970 é justamente a definição do que é o racismo. E
isso não muda apenas no Brasil. Nem é produto da geração brasileira negra que estava
exilada na Europa ou nos Estados Unidos, como Abdias de Nascimento, como se tal
transformação conceitual fosse um fenômeno de imitação e de colonialismo cultural. A
mudança é mais abrangente. Permito-me traçar, com brevidade, as grandes linhas.
São vários os núcleos com base nos quais se processa a eleição do racismo em conceito
analítico central da vida social moderna. Tomemos por exemplo a historiografia sobre a
escravidão negra nas Américas, a começar por Boxer que, em 1963, já interioriza o modelo
sociológico para o tratamento das sociedades coloniais em seu Relações raciais no impé-
rio ultramarino português. Nos anos de 1970, essa historiografia já fala abertamente em
“racismo”. Em 1971, Genovese, por exemplo, referindo-se às várias sociedades escravis-
tas das Américas, escreveu: “Uma vez implantado o sistema escravista, o etnocentrismo

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e o preconceito de cor transformaram-se rapidamente, ainda que talvez não imediata-


mente, em racismo” (Genovese, 1971, p. 105).
Em 1973, Hoetink, um dos nomes mais respeitáveis dos estudos de relações raciais
nas Américas, diz: “Toda sociedade multirracial é racista no sentido de que a pertinência
a um grupo sociorracial prevalece sobre a realização na atribuição de posição social”
(apud Hasenbalg, 1979, p. 66). Nos Estados Unidos, a recepção do marxismo nas univer-
sidades (seja em sua variante historicista, seja em sua variante estrutura lista) pode ser
medida pela capacidade da teoria do capitalismo de absorver e dar explicações mais vi-
gorosas sobre o racismo americano, e, na Inglaterra, tanto o marxismo quanto as teorias
sobre o racismo se tornam instrumentos da nova esquerda em sua luta pelos direitos das
minorias étnicas e dos imigrantes.
Refletindo sobre a utilização do termo “racismo” nas ciências sociais e na política
dizem-nos Michael Banton e Robert Miles: “Até o final dos anos de 1960, a maioria dos
dicionários e livros escolares definiam [o racismo] como uma doutrina, dogma, ideologia
ou conjunto de crenças. O núcleo dessa doutrina era de que a raça determinava a cultura,
e daí derivam as crenças na superioridade racial. Nos anos 1970, a palavra foi usada em
sentido ampliado para incorporar práticas e atitudes, assim como crenças; nesse sentido,
racismo [passa a] denota[r] todo o complexo de fatores que produzem discriminação
racial e, algumas vezes, frouxamente, designa também aqueles [fatores] que produzem
desvantagens raciais” (Banton & Miles, 1994, p. 276). Em 1971, foi justamente o Mi-
nority Rights Group, de Londres, que publicou a brochura de Anani Dzidziyeno, The Po-
sition of Blacks in Brazilian Society. Nela, Anani registra, entre a esquerda brasileira, a
opinião uniforme de que a democracia racial era um mito, mas observa também que,
entre os marxistas brasileiros, ainda prevalecia a ideia de que o único meio de combater
o preconceito racial era a organização e luta da classe trabalhadora.
A brochura de Anani é importante, um marco, por ser uma das primeiras publicações
feita por um cientista social, além do mais, negro e africano, a falar de racismo no Brasil.
Naquele momento, em que o marxismo também conquistara a intelectualidade brasileira,
a relação entre “classe” e “raça” era ainda pensada segundo um modelo no qual “as
distinções entre grupos que se definem como racialmente diversos e desiguais exprimem,
em geral de modo mistificado, relações reais de dominação-subordinação”, para citar
Octávio Ianni (1972, p. 248).
Existia, portanto, no começo dos anos de 1970, uma certa defasagem teórico-meto-
dológica entre os estudos de relações raciais que se faziam no Brasil e aqueles no resto do
mundo, principalmente de língua inglesa. Tal defasagem só começa a ser superada com
o livro de Carlos Hasenbalg, Discriminação e desigualdades raciais, de 1979. Do mesmo
modo, esse livro pode ser também lido, na clave dos movimentos sociais, como a primeira
tentativa de introdução do racismo na agenda política da nova esquerda brasileira e do
novo marxismo, com a ressalva, entretanto, de que, ao contrário do que se passava na
Inglaterra ou nos Estados Unidos, será grande a reação a tal tentativa, e que a agenda da
luta de classes, e não do racismo, ainda predominará aqui, no Brasil, até recentemente,
pelo menos até os anos de 1990. Mas vejamos mais de perto as novidades teóricas.
Um dos traços mais marcantes do trabalho de Carlos foi o de deslocar a relação
marxista clássica entre “classe” e “raça”. Segundo ele, “o racismo, como construção

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ideológica incorporada e realizada através de um conjunto de práticas materiais de dis-


criminação racial, é o determinante primário da posição dos não brancos nas relações de
produção e distribuição” (Hasenbalg, 1979, p. 114).
Carlos, assim como os jovens marxistas dos anos de 1970, ao enfocar as desigualda-
des sociais, enfatiza a estrutura de classes e as hierarquias sociais em detrimento do
preconceito racial e dos modelos explicativos que tomam como ponto de partida os va-
lores e as atitudes construídos pelos sujeitos na interação social. Diz ele:
Como se verá, se o racismo (bem como o sexismo) torna-se parte
da estrutura objetiva das relações políticas e ideológicas capita-
listas, então a reprodução de uma divisão racial (e sexual) do
trabalho pode ser explicada sem apelar para o preconceito e
elementos subjetivos (Hasenbalg, 1979, p. 114). Poderia parecer,
portanto, que em seu modelo teórico, a discriminação racial, em
vez de ser pensada como comportamento efetivo, observável
pela ação dos sujeitos, passa a ser deduzida dos seus resultados
sobre a estrutura social.
No entanto, para contrapor-se a Florestan, à crença dos clássicos da sociologia euro-
peia e às descrições como raça ou sexo, que não eram funcionais para alocação de posi-
ções na sociedade de classes, Carlos vê-se também obrigado a teorizar sobre
comportamentos e crenças: (a) discriminação e preconceito raciais não são mantidos
intactos após a abolição, mas, pelo contrário, adquirem novos significados e funções
dentro das novas estruturas; e (b) as práticas racistas do grupo dominante branco que
perpetuam a subordinação dos negros não são meros arcaísmos do passado, mas estão
funcionalmente relacionadas aos benefícios materiais e simbólicos que o grupo branco
obtém da desqualificação competitiva dos não brancos (Idem, 1979, p. 85).
De certo modo, os anos de 1980 e 1990 serão tomados na sociologia brasileira pelo
avanço dessas novas teses e novidades conceituais que se irradiarão a partir do trabalho
conjunto de Carlos Hasenbalg e Nelson do Valle Silva (1988; 1992). Podemos mesmo ver
na ação institucional de ambos um certo programa de trabalho, no qual, ao lado dos
estudos de desigualdades raciais, que utilizam modelos matemáticos cada vez mais refi-
nados, se desenvolvem estudos especializados por áreas (educação e mercado de traba-
lho, principalmente), ou estudos que buscam descobrir os micromecanismos de
discriminação (no âmbito da escola, do livro didático, da sala de aula, da mídia, da pro-
paganda, dos locais de trabalho, dos locais de consumo e do mercado de trabalho etc.).
Mas se os estudos sobre o racismo no Brasil avançaram em termos empíricos, seu
crescimento deu-se sobre bases teóricas que, até os dias de hoje, não estão bem assentes
na sociologia. E é a isso que vou dedicar o restante do texto, exemplificando o que acabo
de dizer a partir de três problemas.
O primeiro advém do fato de que, por acharem que sua teoria deva se aplicar a todas
as sociedades multirraciais da América, alguns autores acabam por recusar qualquer es-
pecificidade às relações raciais no Brasil.

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Ou seja, ao negar o exclusivismo brasileiro em termos de raça, defendido por Freyre,


acabam também por negar a originalidade das condições em que se dão as relações raciais
no Brasil.
O segundo problema tem a ver com o estatuto teórico das desigualdades raciais. São
elas o resultado de processos de interação, acomodação, competição, conflito e luta
ideológica por classificação e formação de grupos raciais, de classe e de cor? Se assim
for, ao teorizar sobre mecanismos institucionais de reprodução ampliada ou retroalimen-
tação sistêmica, não podemos fazê-lo no vácuo das ações sociais. Para colocar de outro
modo: as desigualdades raciais, além de constatadas, precisam também ser compreen-
didas, sob o risco de dar-se margem a uma excessiva politização do tema e a uma certa
contaminação moral e ideológica, como se estes estudos pudessem ser reduzidos a dados
estatísticos a munir o ativismo e as políticas sociais.
O terceiro problema está na própria noção de “racismo”, tal como é usada em nos-
sos escritos, que se tornou por demais ampla e imprecisa.
Eis como Howard Winant define o racismo (1) práticas simbólicas que essencializam
ou naturalizam identidades humanas baseadas em categorias ou conceitos raciais; (2) ação
social que produz uma alocação injusta de recursos sociais valiosos, baseada em tais sig-
nificações; (3) estrutura social que reproduz tais alocações (Winant, 2001, p. 317). Ou seja,
sob o rótulo de racismo são tratados objetos tão distintos quanto os sistemas de classifi-
cação racial, o preconceito racial ou de cor, as formas de carisma (para usar o conceito de
Elias), que podem ser observadas em diversas instituições e comunidades, a discriminação
racial nos mais distintos mercados, e as desigualdades raciais e sua reprodução.
Sobre o primeiro problema que apontei, é ilustrativa a polêmica envolvendo Peter Fry
(1995-1996) e Michael Hanchard (1994), na qual o primeiro acusa o segundo de fazer
uso de categorias nativas americanas para entender as relações raciais no Brasil, despre-
zando, desse modo, as categorias nativas brasileiras e fazendo crer que as categorias
americanas pudessem funcionar como conceitos analíticos. Polêmica que chegou a Europa
pelas penas de Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant (1998).
Na verdade, o mal-estar dos antropólogos com a progressiva substituição dos estudos
sobre relações raciais, nas quais os sujeitos e os significados culturais eram realçados, por
estudos de desigualdades e de racismo, nos quais os aspectos estruturais são enfatizados,
já se manifestara antes, nos anos 1980, quando Roberto DaMatta (1990), em um artigo
que se tornou famoso – A fábula das três raças –, utilizando-se fartamente do estrutura-
lismo e das categorias de Dumont, procura explicar “o racismo à brasileira” como uma
construção cultural ímpar e específica.
A noção de pessoa e as relações pessoais, no dizer de Roberto, substituem, no Brasil,
a noção de indivíduo, para recriar, em pleno reino formal da cidadania, a hierarquia racial,
ameaçada com o fim da escravatura e da sociedade de castas. A proposta teórica de
DaMatta é clara: o Brasil não é uma sociedade igualitária de feição clássica, pois convive
bem com hierarquias sociais e privilégios, é entrecortada por dois padrões ideológicos,
ainda que não seja exatamente uma sociedade hierárquica de tipo indiano.
Por seu turno, aqueles que recusam tal “exclusivismo” e tentam analisar a sociedade
brasileira segundo os mesmos moldes teóricos das sociedades modernas e individualistas

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do Ocidente não desenvolveram, contudo, um sistema teórico que dê conta do modo


preciso em que se articulam os diversos elementos ou aspectos do racismo. No mais das
vezes, o seu esquema interpretativo reduz todas as demais esferas a uma espécie de “falsa
consciência”, representada pelo “mito da democracia racial”, urdido e nutrido pelas
elites e pelo Estado. Contra o que, mais uma vez, se voltam os antropólogos a reivindicar
um esforço sério de pensar a democracia racial enquanto mito fundador da sociabilidade
entre brasileiros. De fato, ao tratar a “democracia racial” como uma “superestrutura”,
os marxistas acabaram por reforçar a ideia de mito, transformando-a em construto su-
praconjuntural, própria a uma formação social, muito próxima dos processos de longa
duração, de que nos fala Braudel. Deixaram de investigar o modo concreto e as circuns-
tâncias em que tal ideologia foi produzida por intelectuais, que procuraram dar sentido
a práticas e experiências também concretas, respondendo a conjunturas bem específicas.
Por outro lado, os críticos estruturalistas do marxismo e dos ativistas negros acabaram
por levar a sério o mito, vendo nele permanências e características estruturais típicas da
sociedade brasileira, reforçando, mais uma vez, a sua a-historicidade.
Parte do meu trabalho nos últimos anos tem sido devolver a “democracia racial” aos
seus criadores e à época em que nela se acreditou mais profundamente. Posta assim, no
contexto dos interesses culturais e materiais que a motivaram nos anos 1940, 1950 e
1960, a democracia racial não é nem mais nem menos duradoura que o “racismo cientí­
fico”. As décadas em que se acreditou que a democracia poderia ser reduzida à convivên­
cia pacífica entre pessoas de diferentes cores, raças e credos, e que tal convivência
poderia ser garantida pelas leis e pelos costumes, foram encerradas com os golpes de
Estado de 1964 e 1968. A partir desse momento, a democracia racial já não serve nem
mesmo como ideal ou inspiração: não por acaso, a luta contemporânea dos negros pelos
direitos sociais inerentes à democracia brasileira passou a ter como mote a luta por cida-
dania e respeito aos direitos humanos.
E o que acontece na militância encontra rápida resposta na academia e vice-versa.
Tome-se o abstract de uma tese defendida, no ano passado, nos Estados Unidos. Segundo
o autor:
Esta dissertação analisa o obstáculo mais saliente para a
consolidação da democracia no Brasil, qual seja a exclusão
racializada profundamente enraizada naquela sociedade. Tal
exclusão tornou-se “normal” na sociedade brasileira e faz
parte do senso comum ordinário. A brancura simbólica tem
sido utilizada pelas elites para justificar os seus próprios pri-
vilégios e para excluir a maioria dos brasileiros do exercício
de seus direitos de cidadãos plenos e iguais (Reitner, 2003,
p. iv). Nesse sentido, as enormes desigualdades raciais brasi-
leiras são o que realmente importa, fazendo com que a esfera
das relações raciais pareça pura ilusão provocada por um
plano muito bem urdido de dominação e opressão sociais.

Enfrentar o segundo e terceiro problemas, que apresentei anteriormente, significa,


pois, superar o hiato criado entre os estudos de interação social e os de estrutura social,

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entre aqueles da cultura e os da sociedade, um hiato que ganhou contornos disciplinares,


cada vez mais rígidos, com a separação entre sociologia e antropologia, e o crescente in-
teresse de ambas em estudar os mesmos espaços territoriais. Essa tarefa é também difícil
porque requer que elaboremos uma trama narrativa mais densa, circunscrevamos com
maior precisão o tempo e os eventos a serem tratados em nossos estudos, o que, ainda
que esteja nas origens da nossa tradição disciplinar, nos desabituamos a fazer na sociolo-
gia. Mas, felizmente, outros fazem: sem esconder a ironia, poderíamos, hoje, reencontrar
a inspiração na historiografia contemporânea sobre a escravidão no Brasil, a mesma que
adotou o paradigma das “relações raciais” há 40 anos. Estão aí os trabalhos de João Reis
(2003), Sidney Chaloub (1990), Manolo Florentino (1997), Laura de Mello e Souza (1989),
Hebe Mattos (2000) e outros, que têm enfrentado com absoluto êxito esse desafio.
Na teoria sociológica, podemos optar por construir uma teoria sistêmica ou estrutu-
ral do racismo, como queriam os marxistas; ou podemos tratar as relações raciais como
um processo de classificação social teoricamente autônomo da estrutura de desigualdades
de classe, como sugeriram Blumer (1965) e Blumer e Duster (1980). No entanto, em qual-
quer dos casos, é certo que a reprodução das desigualdades raciais se articula com três
diferentes processos: primeiro com a formação e atribuição de carismas, algo que não se
limita apenas ao racial, mas que atinge praticamente todas as formas de identidade social;
segundo com o processo político de organização e representação de interesses na esfera
pública; e terceiro, justamente por se tratar de uma estrutura, há que se ter em mente
os constrangimentos institucionais que funcionam como verdadeiros mecanismos de
retroalimentação. Chegou a hora de concluir. O que faço, sintetizando quatro tempos.
Para a geração de Pierson, Wagley e Harris, nos Estados Unidos, as desigualdades
raciais de classe entre negros e brancos se perpetuavam graças ao preconceito, à discri-
minação e à segregação raciais. Porque, no Brasil, havia as mesmas desigualdades, mas
os fatores causais acima referidos eram relativamente fracos, os autores americanos
concluíram que tais desigualdades dever-se-iam apenas a diferenças de pontos de partida,
devendo desaparecer no futuro (ou seja, os negros provinham de castas subordinadas).
Para Florestan e sua geração, entretanto, o preconceito não só existia como, de certo
modo, impedia que a nova ordem competitiva se desenvolvesse em sua plenitude. Tratava-
-se, entretanto, de preconceitos e discriminações fora do lugar, uma espécie de consciên­
cia alienada dos agentes sociais. Para Carlos, Nelson e a minha geração, não apenas tais
preconceitos eram funcionais para o desenvolvimento do capitalismo brasileiro, como a
reprodução do sistema de desigualdades raciais prescindia, até certo ponto, da consciên-
cia dos atores.
O nosso desafio atual, ao formar as novas gerações, é teorizar a simultaneidade
desses dois fatos aparentemente contraditórios, apontados por todos os que nos prece-
deram: a reprodução ampliada das desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavi-
zação crescente das atitudes e dos comportamentos racistas. Para alguns, como DaMatta,
trata-se de uma sociedade semi-hierárquica e dual; para outros, assiste-se à reatualização
de mitos (Fry, 1995-1996); Livio Sansone (2003), recentemente, teorizou sobre a existên-
cia de áreas moles e áreas duras nas relações raciais (as barreiras e distâncias raciais re-
produzindo-se apenas nas últimas); Edward Telles (2003), por seu turno, falou de relações
raciais horizontais e verticais (constatando a ambiguidade das primeiras e a rigidez das

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últimas); os ativistas, por seu turno, realçam a pouca força política dos grupos antirracis-
tas e a grande resistência das elites brancas como responsáveis pelas desigualdades.
Antes de contraditórias, é preciso tratar tais soluções e sugestões como os temas relevan-
tes de nossa agenda atual. Uma agenda que, para responder aos desafios políticos de
nosso tempo, tem de ultrapassar não apenas o encapsulamento da discussão acadêmica
por categorias nativas do presente, mas, também, por fórmulas que deram legitimidade
intelectual às categorias nativas do passado.

Como vimos, o texto contribui com um melhor entendimento acerca do problema


das relações sociais no Brasil, especialmente porque a sociedade brasileira, em geral,
se revela, do ponto de vista histórico, como profundamente desigual e preconceituosa
diante de questões relacionadas às diversidades étnico-raciais.

Para concluir o estudo da unidade


Nesta unidade apresentamos o percurso da Antropologia brasileira e algumas
interpretações sobre a formação da sociedade e da cultura do Brasil por meio
de alguns autores reconhecidos nas ciências sociais. Levamos em consideração
as particularidades da formação histórica de nossa sociedade, eixo principal
de nossa análise. Esse percurso teórico ajuda a compreender nossa realidade
social e a entender a importância de superar os preconceitos, desigualdades e
limitações existentes em nossa sociedade, por meio de uma ação profissional
ética, educativa e transformadora.
Dentro desse breve recorte teórico sobre a formação do povo brasileiro, de‑
vemos ter claro que a educação adquire aqui um papel importantíssimo dentro
do processo de discussão da cultura brasileira, bem como na formação de nossa
identidade enquanto povo. É por meio dela que vamos colaborar na formação
de indivíduos comprometidos com a busca pela compreensão da sua própria
história e das transformações sociais que se fizerem necessárias ao bem comum.
Aqui vale ressaltar o papel dos profissionais que, de alguma forma, lidam com a
educação dos grupos sociais, pois são mediadores desse processo. Em seu trabalho
torna-se primordial fazer com as pessoas reconheçam a importância de si próprias,
de sua cultura, suas origens e história, compreendendo-se como sujeitos construtores
e potencialmente transformadores da realidade social. É essa a verdadeira função
da educação em uma sociedade: possibilitar a formação crítica do ser social.

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Dentre outras coisas, devemos recuperar o papel ético e político dos pro‑
fissionais “educadores”, os quais devem promover a crítica transformadora dos
grupos sociais. Nesse sentido, compete contribuir para uma re-ordenação da
discussão sobre a história, a política, a economia e a cultura, com todas as suas
nuances e implicações, na formação do homem contemporâneo, possibilitando
o rompimento de uma ideologia cultural fundada na naturalização das desigual‑
dades existentes entre os grupos sociais presentes em nossa sociedade.
Mas essa é uma tarefa que não pode se resumir aos espaços formais da educa‑
ção, pois esse processo pedagógico se concretiza no cotidiano das relações sociais.
Sabemos que esse processo emancipador do homem por meio da ação pedagógica
e da mudança não é fácil, nem imediatista. Mas acreditamos no empoderamento
dos grupos sociais, nos mais diversos contextos, a fim de que o homem assuma,
cada vez mais, seu papel de sujeito construtor da realidade social.
Então para isso apresentamos alternativas: a busca, por meio da educação e
da crítica transformadora, do engajamento ético-político no campo profissional,
mediante a negação das imposições da sociedade capitalista e de sua cultura
naturalizante das desigualdades, voltada para o consumo exacerbado, para a acu‑
mulação de capitais e para a supervalorização da vida material. Os profissionais
que lidam com pessoas e grupos devem auxiliar as pessoas a agirem, elas mesmas,
na realidade social, a fim de se fortalecerem enquanto membros de uma coletivi‑
dade e de desenvolverem ações proativas rumo às suas necessidades e interesses.
Deve-se fazer com que a prática profissional contribua com a universalização
dos direitos e da cidadania, fazendo com que as pessoas não aceitem como nor‑
mais as determinações e as consequências da lógica da acumulação capitalista.
Para tanto é necessário que os profissionais promovam espaços educativos em
seu contexto de trabalho, seja ele qual for, abertos à participação de todos os
envolvidos, à crítica e à livre manifestação, sem forçá-los ou induzi-los a um
ou outro resultado. Assim, a ação profissional educativa e transformadora pro‑
move condições mais efetivas para a autonomia dos grupos sociais na direção
da reconstrução permanente da sua realidade e na conquista de sua cidadania.

Resumo
O pensamento sobre a formação do povo e da cultura brasileira aparece
muitas vezes esvaziado de suas representações históricas e sociais. No texto
pudemos o perceber a diversidade de explicações sobre a nossa cultura, sendo
importante reconhecermos que somos, sim, frutos da diversidade e miscigena‑
ção das raças. Essa questão deve ser levada em consideração ao analisarmos
as relações políticas, ideológicas, culturais e sociais existentes em todos os
segmentos sociais.

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Atividades de aprendizagem
1. Sintetize os diferentes períodos que marcaram a Antropologia brasileira, desde
seu surgimento na década de 1930 até os dias atuais.
2. Discuta a diferente posição sobre a formação cultural do povo brasileiro, funda‑
mentado na leitura de Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan
Fernandes.
3. Na leitura de Florestan Fernandes, como podemos superar o racismo instituído
em nossa sociedade?
4. Será que ainda podemos ser chamados de homem cordial, segundo Sergio Buarque
de Holanda? Por quê?
5. Analisando o conteúdo geral do livro, responda: por que o estudante de hoje deve
aprender sobre a formação da nossa cultura?

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Referências

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Altera a Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de ______. O que é ideologia. São Paulo:
1996, que estabelece as diretrizes e bases da Brasiliense, 1992.
educação nacional, para incluir no currículo COMTE, August. Discurso preliminar sobre
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