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JOAQUIMDOLZ e EDMÉE 0LLAGNIER

E COUBORADORES
AUTORES

Joaquim Dolz (org.). Universidade de Genebra.


Edmée Ollagnier (org.). Universidade de Genebra.

Daniel Bain. Serviço de Pesquisa\ em Educação, Genebra.


François Conne. Universidade de Genebra.
0
ENIGMA A.
François Ropé. Universidadede Amiens.
Jean Brun. Universidade de Genebra.
mean-Michel Baudouin. Universidade de Genebra.
DA COMPETÊNCIA
.mean-Paul Bronckart. Universidade de Genebra.
Linda Allal. Universidade de Genebra.
Louis Durrive. Centro Regional de Formação em Alternância l 'Atelier'
Marcelle Stroobants. UniversidadeLivre de Bruxelas.
Estrasburgo.
EM EDUCAÇÃO
Philippe Perrenoud. Universidade de Genebra.
Samuel Johsua. Universidade de Provence.

Joaquim Dolz
Edmée Ollagnier
e colaboradores
Anoclaçáo Brasilelm para
Proteçáodos Direitos
Editoriais e Autorais

RKSPEIT Eo AUTO R
NAO FAÇA CÓPIA

Tradução:
Cláudia Schilling
Consultoria, supervisão e revisão técnica desta edição
Heloísa Schaan Solassi

E58 Liceu\dada ent portugLlês e francês


O enigma da competência em educação/ organizado
por Joaquim Dolz e Edmée Ollagnier; trad. Cláuclia pelcl Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Schilling - Porto Alegre : Artmed, 2004.

1. Educação -- Formação de profissionais - Competência


1. Dolz, Joaquim. ll. Ollagnier, Bdmée. 111.Título

CDU 371.13

Catalogação n:t publicação: Mõnica Ballejo Canto - CRB lO/1023

ISBN 85-363-0194-5

2004
Obra originalmente publicada sob o título
L' éilign\e de la cona)éteítce elt éducatiott

© De Boeck & Lacier s.a., 2002


z'
Bruxelas
SUMÁRIO
ISBN 2-8041 4019-9

Capa
Mário Róhltelt
Preparação do original INTRODUÇÃO
Márcia da Sitveira Sattíos
9
A NOÇÃO DE COMPETENCIA: NECESSIDADE OU MODA PEDAGOGICA?
Leitura final
Osvaido A rthLtr Me:tetas Vietta JoaquímDoloe EdméeOiiagníer
9
A emergência da lógica das competências nas ciências da educação ..
Supervisão editorial Abordagenscontrastadas 13
Mõiticcl Batlejo Callto 23
Organização
da obra
Projeto gráfico e edital'ação eletrõnica
A }exaltcLteMütter Ribeiro Parte l
ADIFICULDADEDECONCEITUAR
A NOÇÃO DE COMPETÊNCIA

1 - A NOÇÃO DE COMPETENCIA: QUAL E SUA PERTINENCIA


PARAO ESTUDO DA APRENDIZAGEM DAS AÇOES DE LINGUAGEM? 29

mean-Paul
Bronckarte JoaquímDoze
Reservados todos os direitos de publicação, em língua portuguesa,à 30
ARTMEDa EDITORA S.A. O projeto educacionalmoderno e suascontradições..
A competência ou as competências: origens e staMS epistemológico 33
Av. Jerõnimo de Ornelas, 670 - Santana
90040-340 Porto Alegre RS 35
A formação "dominada" pelas competências
Fine(5}) 3330-3444Fax(51) 3330-2378 Propostaspara um aparelho conceitual diferenciado 37
Um exemplo: o ensino da expressão oral 40
E proibida a duplicação ou reproduçãodeste volume, no todo ou em parte, sob quaisquer formas Retorno à "lógica dascompetências' 44
ou por quaisquer meios(eletrõnico, mecânico, gravação, fotocópia, distribuição na Web e outros),
sem permissão expressa da Editora.
2 - DE UMA METÁFORA A OUTRA:
TRANSFERIR OU MOBILIZAR CONHECIMENTOS? 47
SÃOPAULO
Av.Rebouças,1073- Jardins Phílfppe Perrenoud
05401-150 São Paulo SP Um sabermóvel ou os limites da metáfora da transferência 48

Pane(11)3062-3757#Fax(11) 3062-2487 A mobilizaçãode conhecimentos:uma metáfora fecunda 55

A dificuldade de conceituar coletivamente 61


SAC 0800 703-3444
3 - A QUALIFI(AÇÃO OU COMO SEVER LIVRE DELA 65
IMPRESSONO BRASIL
Marceile SÜ'oobants
PRINTEDINBRAZil
Os fundamentos discutíveis da promoção das competências 67

Os inegáveis desafios da lógica competência 70


Parte ll 9 - UMA AÇAO DE FORMAÇÃO NO AMBIENTE CARCERÁRIO=UM EXEMPLO
DE ABORDAGEM DAS COMPETÊNCIAS POR MEIO DA ERGOLOGIA ...... . -'''-''''-''-'. 173
AS COMPETENCIAS EM SITUAÇÃO ESCOLAR
.LouísDu7'ripa
4 - AQUISIÇÃO E AVALIAÇÃO DAS COMPETENCIAS EM SITUAÇÃO ESCOLAR 79 O contexto teórico 173
l,índaÁZiat 175
Uma ação inovadora no ambiente carcerário: apresentação do procedimento
Competências, capacidadese outros produtos da aprendizagem 80 A disciplina de "desconforto intelectual" posta à prova por meio de uma dinâmicade grupo 177

Procedimentos de avaliação das competências 87 Um casoconcreto: reflexões sobre as competências de um estagiário, gérard b. 180
Conclusão 93 Retorno ao processo ergológico .. 186

5 - A NOÇÃO DE COWPETENCib REVELADORA 10 - AS ARMADILHAS DA COMPETÊNCIA NA FORMAÇÃO DE ADULTOS 189


DE FENÓMENOSDE TRANSPOSIÇÃONO ENSINO DA MATEMAHCA 97 Edmée OZZagníer
Françoís CoRRe e mean Brun Asjustificativas da noçãode competênciano âmbito da formação de adultos 190
Introdução 97 As implicações do uso da competência .. 194
A cadeia da transposição didática: o nó de representações do ensino 99 198
As práticas da educação de adultos confrontadas com a competência
Breve descrição dos documentos considerados ..... 100 203
Mas onde está a armadilha anunciada?
Base teórica.... 101 205
Conclusão
A noção de competência é ambígua 108
Conclusão...... 113
1 1 - A VALIDAÇÃO DAS AQUISIÇÕES PROFISSIONAIS ENTRE EXPERIÊNCIA:
COMPETENCIASE DIPLOMAS : UM NOVO MODO DE AVALIAÇÃO .... 209
6 - A POPULARIDADE PEDAGÓGICA DA NOÇÃO DE COMPETÊNCIA
Françoíse Rapé
PODE SER COMPREENDIDA COMO UMA RESPOSTA
117 Relaçõesentre o diploma e as competências
INADEQUADA A UMA MAIOR DIFICULDADE DIDATICA? 213
adquiridas por meio da experiência: ruptura e continuidade
SamueZJohsua
A vap se insere no reconhecimento da atividade
Restituição e compreensão 120
profissional como importante fenómeno social 215

7 - DA AVALIAÇÃO AS COMPETENCIAS:
PERSPECTIVA DE PRATICAS EMERGENTES 131
DaníeZBiaín
Introdução: as competênciasou "quando dizer não significa (necessariamente)
fazer' 131
As competências experimentais realmente medem seu teste? 133
Uma prática avaliativa emergente: os testes práticos na área da biologia 137
Problemas e limites dessa abordagem do "teste sequencial de aprendizagem' 141
Conclusão: algumas sugestõespara uma avaliação a serviço
da construção das competências experimentais 143

Parte lll
AS COMPETÊNCIAS NA FORMAÇÃO PROFISSIONAL

8 - A COMPETENCIA E A QUESTÃO DA ATIVIDADE:


RUMO A UMA NOVA CONCEITUAÇÃO DIDÁTICA DA FORMAÇÃO .. 151
mean A4ícheZBaudouín
Competência, trabalho e atividade 152
Didática e atividade 154
A atividade em sua relação com o saber e com o aprendiz 156
A atividade na relação com o aprendiz e com o formador 160
A atividade e seus vínculos com o professor e com os saberes 165
Conclusão 167
l
A noção de competência:
qual é sua pertinência para o estudo da
aprendizagem das ações de linguagem?
Jean-Paul Bronckart e Joaquim Dolz

á uma década, a Zógícadas competênciasinvadiu o campo educacional;


Hela é apresentada como uma tentativa de redefinir e de organizamsob um
conceito generalizados (a própria noção de competência) e, ao mesmo tem-
po, capazde diferenciação (os tipos de competências), os objetos e objetivos
dosprocedimentosde formação, assim como as capacidadesadquiridas ou
exigidas dos aprendizes e de seus formadores. Essa emergência se insere em
um movimento cr(tacodo "estado das coisas" e, de modo mais específico, na
concepçãopredominante que estabeleceque a educação/formação visa es
sencialmente à transmissão de saberes coletivos formalizados. Essa concep-
ção ainda subsiste e, de fato, merece uma discussão aprofundada; porém os
múltiplos debates educativos que marcaram os séculos XIX e XX comprovam
que os problemas ligados à identificação e conceituaçãodos objetivos, con-
teúdos e métodos de formação são permanentes, complexos e portadores de
desafiosque não se reduzem apenas à oposição saberes/competências. Em
outra perspectiva, como ocorre com todas as correntes pedagógicas críticas e
inovadoras, cabe a interrogação sobre as "realidades" designadas pelos no-
vos conceitos gerados, bem como sobre o status político, social e epistemoló-
gico do movimento subjacentea essapromoção.
A primeira parte de nossacontribuição visa a fornecer elementosde
respostaa estas duas quastões: inicialmente, evocaremos os grandes deba-
30 . Dolz, Ollagnier e cols. O enigma da competência em educação. 31

tes que orientaram a aplicaçãodo projeto moderno de educaçãoe suas atestado pelo desenvolvimento das ciências e da indústria, que coincidiria
insuficiências, para tentar limitar a natureza dos problemas aos quais a com o progresso do ser humano, em seu permanente combate contra a igno-
lógica das competênciaspretende responder; depois abordaremos a histó- rância e contra as pressõesda natureza; o princípio de educabíZídade das
ria da construção do próprio conceito de competência no campo científico crianças,sobretudo dos aprendizes,que estabeleceque eles têm em si mes-
e apresentaremos os diversos, e mesmo contraditórios, significados que ele mos os recursos necessáriospara participar desse movimento de construção
adotou com o tempo; por fim, discutiremos os efeitos da transposição para dos conhecimentos; finalmente, o princípio de democracia iguaZítáría, o qual
o campo educativo de um conceito-slogan com uma semântica tão instável. requer que todo cidadão possa encontrar na educação a forma de desenvol-
Na segunda parte, proporemos um aparelho conceitual substituto, o qual ver sua própria autonomia e, assim,participar da coesãosocial. lbdavia,
permita ao mesmo tempo diferenciar e articular as propriedades das ativi- como o mesmo autor demonstrou, essesprincípios suscitaram interrogações,
dades-alvo da formação, a partir das quais é possível definir os objetos e os resistênciase mesmo contraprincípios explícitos. Ninguém, é claro, questio-
objetivos de ensino e as capacidades exigidas dos aprendizes em potencial, na o progresso dos conhecimentos, mas realmente se trata de um progresso
bem como as efetivas capacidadesdos aprendizes,tal como elas se mani- do ser humano? Será que ele necessariamente "melhorou"? Educabilidade
festam antes, durante e depois de um procedimento explícito de formação. talvez, mas as aptidões iniciais dos aprendizes são diferentes e parecem ter
Nesse segundo nível, também tentaremos esclarecer as articulações entre uma base genética; por outro lado, a experiência do ensino escolar mostraria
as dimensões práticas dos savoír-/bife e as dimensõesrepresentativas dos que é preciso usar uma certa quantidade de pressãotanto para a educação
saberes e/ou conhecimentos. Essa proposta será ilustrada pela análise de como para a instrução. A democratização é necessária,sem dúvida; porém é
uma intervenção didática ligada ao ensino da expressãooral. preciso levar em conta que a sociedade continua sendo economicamente
desigual e que só podemos preparar alguém para encontrar um lugar que,
em vez de 'ljusto", continua sendo socialmente predeterminado.
O PROJETO EDUCACIONAL MODERNO E SUAS CONTRADIÇÕES Os sistemas educativos estáticos aplicados a partir do final do século XIX
e do início do século XX foram marcados ao mesmo tempo pela ideologia
Embora tenha tido prestigiosos ancestrais (especialmente Comenius, modernista e pelas resistências provocadas pelas realidades económicas,
1657/1981), o projeto educacionalmoderno só se solidificou realmente políticas e sociológicas. Na aplicação dos ideais modernos, as estruturas es-
no decorrer do Século das Luzes, no contexto de uma contestação global colarespassaram por uma unificação generalizada que, em princípio, garan-
da visão de mundo e da concepçãoda educação que prevaleciam desde a tia a acessibilidadede qualquer cidadão a uma formação básicae a possível
Idade Média, e que o Renascimentosó tinha polido um pouco: livre passagemde cada um deles para os níveis de estudos superiores. Por
outro viés, os programas da escola obrigatória foram concebidos com uma
a visão fixa de um universo estável e organizado de forma lógica, lógica que combinava os objetivos de instrução (transmissão de saberescole-
cujas regras eram enunciadasem um corpo de textos intangível (e tivos básicos) e de educação (formação de pessoas autónomas e capazes de
controlado pela Igreja); adotar os valores da sociedade). Finalmente, foram aplicados mecanismos
a concepção escolástica da educação que decorria naturalmente dessa de regulação e de avaliação que desembocaramnos diplomas controlados
visão: a formação significa tomar conhecimento dos textos do sabei pelo Estado, os quais visam a conceder a todo indivíduo um sfaMS"social
memoriza-los e confirmar sua pertinência por meio de exemplos ou escolar"independente de sua origem socioeconómicae sociocultural.
exercícios.
No seio dessedispositivo, devido aos ânus antes mencionados, emer-
giram problemas e diversos mecanismos traduzidos pela atenuação ou
Como Hameline (1986) destacou de forma notável, a ideologia moder- mesmopela anulação dos objetivos gerais da educaçãomoderna. Estessão
na se constituiu no séculoXVlll com baseem três princípios contrários que, bastante conhecidos, e só evocaremos,de forma resumida, os principais.
sob o efeito da RevoluçãoFrancesae das evoluçõeseconómicase políticas
do século XIX, assumiram o papel de "evidências" para a maioria dos pensa- No mesmo tempo em que se encarrega dos sistemasescolares,o
dores da área da educação: o princípio do progresso dos conhecimentos, Estadovisa a formar cidadãos adaptados à "sua realidade", isto é, a
32 . Dolz, Ollagnier e cais. O enigmada competênciaem educação 33

um sistema político e económico desigual, o qual gera representa- ACOMPETENCIAOU ASCOMPETENCIAS


ções coletivas do ser humano também desiguais. ORIGENS E S7ZTUS EPISTEMOLOGICO
As propriedades de educabilidade dos aprendizes continuam sendo
inexploradas, pois a ideologia coletiva sempre resiste ao velho dita- O termo competência aparece na língua francesa no final do século XV;
do que estabeleceque "Discar a quero magÍsrer",porque, tecnica- naquele momento, designava a legitimidade e a autoridade outorgadas às
mente, a própria identificação dessaspropriedades continua sendo instituições para tratar determinados problemas (um tribunal é competente
problemática e porque subsisteuma tensão irresoluta entre objeti- em matéria de...); a partir do final do século XVlll, seu significado se am-
vos de "auto-realização" e de adaptação à sociedade tal qual ela é. pliou para o nível individual e passou a designar "toda capacidadedevida
Os métodosde formaçãocontinuam impregnadospela tradição es- ao saber e à experiência". Como essa acepção de sentido comum era bas-
colástica: ensino frontal e verbal, aprendizagem por memorização, 'diante"Gaba, diversas correntes das ciências humanas tentaram atribuir ao
dedução e exercícios de aplicação. termo um significado mais preciso, em um processo de reapropriação que
A natureza dos processosde avaliação e certificação é tal que, em vez se realizou em quatro etapas principais.
de corrigir as desigualdades sociais, o sistema escolar as reproduz, es- A expressão compez:anciã ZíngüÊz:íca foi introduzida por Chomsky (1955)
pecialmente porque os saberes escolares possuem uma taxa de obsoles- emum artigo'qiiê constitui uiü dos textos primordiais da "revoluçãocogni-
cência inevitável e porque, com fteqüência, as capacidadesque consti tiva'' na área das ciências humanas. O objetivo do autor era combater o
tuem a garantia do verdadeiro sucessosocial são adquiridas fora dele. behaviorismo lingüístico e, mais especificamente, a tese que afirmava que
a linguagem se aprende por tentativa e erro, condicionamento, reforços,
As ondas de reformas e de projetos de reorientação que se sucederam etc. Segundo ChomskB a extrema rapidez da aquisição pela criança das
durante o século XX podem ser analisadascomo tentativas de corrigir esse principais unidades e estruturas lingüísticas, assim como a rapidez de re-
estado de coisas, para Hnalmente realizar os objetivos da educação moderna. cuperação da linguagem após lesões orgânicas periféricas, não podiam ser
De forma sempre lapidar ingeriram-se nesse processo as teses dos "novos pe- explicadasem termos de aprendizagem ou de determinismo do ambiente;
dagogos" do início do século (ver lbrriêre, 1921) para transformampor meio ao contrário disso, essesfenómenoscomprovavama existênciade uma
da educação, as organizações sociopolíticas e as representações coletivas, bem "disposição de.linguagçQ= jpata .ç .universal. A competência linguística
como seus esforços no tocante ao desenvolvimento de métodos pedagógicos designa essadisposição; ela implica a existência, no seio das estruturas do
baseados nas capacidades de ação e na lógica dos aprendizes. Em tempos esliífítõ7céfêbfÕhumano, de um "órgão mental" que dá a cada sujeito uma
mais recentes, dentro do mesmo enfoque, passoua ser contestada a neutrali- capacidadeideal e intrínseca de produzir e compreender qualquer língua
dade social dos saberes (ver a teoria dos "campos de produção" de Bourdieu, natural. Essacapacidadeideal constitui o "explicans" último de todo feno
1980), assim como surgiram alternativas para tentar remediar a obsolescência meno relacionãd(i'àlinguagem, o qual se realiza por meio de desempenhos
dos programas escolares,isto é, estudos sobre os efeitos da autonomia versus conCfetós due não apresentam esse caráter ideal, porque esses desempe
adaptação exercidos pelos processosde mediação aplicados na sala de aula. lhos também dependem da presença de outros órgãos mentais (sobretudo
A emergência da lógica das competências parece inserir-se nesse movi da memória) e porque são condicionados por diversas limitações compor-
mento permanente de adaptação, pois ela propõe uma apreensãodas ca tamentais,bem como por certos fatQresde ordem sociocontextual.
pacidades dos aprendizes menos ligada ao domínio dos saberes formais ou Embora a existência e as propriedades desse órgão inato não tenham
escolarizados, os quais pouco contribuem para a mobilidade social. Contu sido até hoje validadas cientificamente, o termo competência passou a ser
do, ela também parece proceder de um movimento antagónico, neoliberal, muito usado no campo da psicologia experimental. portal:gil..çlç..çç2Rgjações
indiferente aos objetivos de democratização e de socialização, o qual bus- positivas e marcando o "retorno do.indivíduo" depois-de meio..século de
ca, na verdade, formar agentes aptos para se mostrar eficazes em situações behaviorismo ele se tornou um dos termos de luta do racionalismo extre
de trabalho em constante mutação. Para compreender melhor os mecanis- mista, em particular dç cognitivismo modularista. De acordo com essacor-
mos dessalógica que o séculoXXI anuncia, é preciso analisar a origem e o rente ÜodoB 1983/1986), todas as funções psicológicas superiores (aten-
status da própria noção de competência. ção,percepção,memória, etc.) são sustentadaspor um dispositivo biológi-
34. Dolz,C)llagnier
e cols. O enigma da competência em educação. 35

CQinato (ou "modulação") e cada indivíduo dispõem, nesses domínios, de tomai ep: tempo real, decisõesde ação adaptadas.Nessecontexto, as compe
uma competência ideal da mesma ordem que a competência linguística. tências são apreendidas sobretudo no nível dos desempenhos exigidos dos agentes
Conforme essa perspectiva, o termo competência passou a substituir o de no contexto de uma detemunada tarefa; e essaspropriedadesde eficáda de
inteligência (na realidade, a inteligência passou a ser definida como a soma uma atividade-alvo coledva, por meio de um processo de avaliação social, são
das competências), e o desenvolvimento ontogenético passou a ser conce projetadas (ou imputadas) aos agentes. Embora a própria definição dessascom-
bodo como a aplicação e adaptação dessas capacidades ideais às limitações petências continue sendo eminentemente flutuante e hesite entre as categorias
e estimulações do ambiente, isto é, como um processode enfraquecimento do ''ser' e do "dever ser':(ver a seguir), a principal tonalidade consisteem con-
ou de realização parcial das potencialidades intrínsecas, processo este que siderar que elas realçam mal!;fqvoÍr::/bife .que saberes, e mais capacidades meta-
alguns não vacilaram em qualificar de "desaprendizagem"(Mehler e Be- cggnüvas que o domínio de saberes estáveis.
ver. 19b8)
Paralelamente a essemovimento de propagação, o termo foi retomado
por diversos lingüistas centrados nas dimensões pragmáticas da lingua- A FORMAÇÃO "DOMINADA" PELAS COMPETÊNCIAS
gem e na problemática do ensino da segunda língua. Na obra fundadora
dessacorrente, Hymes (1973/1991) afirma claramente que talvez não exista Essabreve história do conceito no campo científico evidencia dois movi-
uma competência sintática ideal, suficiente para desenvolver um domínio mentos de orientação contrária: UD y4i das propriedades do indivíduo à
funcional da linguagem; essedomínio envolve a capacidadede adaptar as adaptação ao ambiente, enquanto o outro vai das exigências do ambiente às
produções da !inguagem aos mecanismosde comunicação e às proprieda- capacidadesexigidas dQ$,indivíduos. Nq primeim caso, as competências são
des do contexto, e essascapacidadesnecessariamentesão objeto de uma definidas, a princípio, como propriedades biológicas do organismo humano,
aprendizagem social. Hymes propõe, então, que o ensino das línguas vise ãtBolutas ou independentes de qualquer contexto concreto (ver Chomsky e
ao déiênvolvimento dessas competências de comurlÍcação, as quais se divi- o$.modplaristas); depois, elas se estendem às capacidades requeridas para
dem em narrativa, conversacional,retórica, produtiva, receptiva, etc. Por ter acessoao domínio de práticas sociais;em sua forma geral, essascapaci-
mais que a psicologia cognitiva tenha retomado o conceito de Chomsky; dades sempre estão disponíveis no organismo (cf a competência de comuni-
Hymes o distorce de forma espetacular: a competência não é mais fundada çaçãe). mas devem:ajustar-se à realidade histórica dos modos de interação
biologicamente, mas se torna uma capacidadeadaptativa e contextualiza- de um grupo, e sua emergência requer mediação social e.aprendizagem. No
da, cujo desenvolvimentorequer um procedimentode aprendizagemfor- segundo caso ("lógica das competências"), parte-se da análise das tarefas ou
mal ou informal. O único vestígio da acepção chomskiana original é que a atividades coletivas, avalia-se a eficácia e a adequação dos desempenhosdos
êõmpetência é apreendida no nível das propriedades de um indivíduo. indivíduos confrontados com essastarefas e se deduz as competências exigi-
A última etapa do processo de propagação se caracteriza justamente pela das deles para que os desempenhos sejam mais satisfatórios, sem se preocu-
par muito com o caráter inato ou adquirido das mencionadascompetências.
perda desseúltimo nexo comum. Há uma década, o tempo retornou ao campo
da análise do üabalho e da fomlação profissional, no âmbito de um movimento A etapa inicial do pümeiro movimento constitui apenasuma metamorfo-
de contestaçãoda lógica das quaZÜcações. Segundoessaúltima, a formação se do positivismo psicológico; para garantir seu star:usde "ciência exata", os
equipa os aprendizes de conhecimentos cuja natureza e cujo nível são cerfÚca- partidários dessemovimento têm-se sentido tentados a reduzir o humano às
dos pelo Estado, e essa certificação qualifica o indivíduo por meio da obtenção suas dimensões biológicas. AlçÍD: de..sya epistemologia $er .refutável e suas
de um conjunto predeterminado de postos de trabalho. A lógica substitutiva se mêses não repousarem em nenhum corpo de dados em.píricosválidos, essa
baseia no fato de que o caráterjá particularmente flexível das situações ilêtãba- corrêiítdílãõ'apfésénta nenhum interesse para a educação-formação,na me-
Iho requer uma constante adaptação a novos objetivos e instrumentos(sobretu- dida em qüe não outorga staMSnem papel às aprendizagens,sejam elas natu-
rais ou formalizadas- escolarizadas. A segunda fase desse movimento compro
do informáticos); considera que, devido a seu éaráter estático e dedaratiVÓ, os
conhecimentos certificados não são mais suficientes para preparar os futuros +a uma reaçãosalutar a esseexageroao emanar naturalmente de correntes
profissionais; por isso visa a lhes oferecer competências, isto é, capacidades mais sensíveisaos problemas educativos; essa reação, porém, é confusa, pois se
gerais e mais flexíveis, as quais lhes pem)atam enítêntar a variedade de tarefas e propõe a completar o conceito de Chomsky com conceitos que, epistemologi-
36 . Dolz,Ollagniere cais. O enigma da competência em educação . 37

camente, são bastante incompatíveis com ele; também é pouco útil no âmbito como capacidadestransversais, agrupamentos de diversas dimensõesdo fun-
didático, na medida em que apenasmaquila em termos de competênciasos cionamento humano ou generalizações,de fato, metacognitivas. Por Hm,
objetivos da pedagogia do mesmo nome (cf as competênciasnarrativas, argu essascompetênciastambém podem transmutar-se em objetivos de ensino
mentativas, poéticas, etc.). Em sua orientação geral, o sçgundQ.movimento (Perrenoud, 1999b) e em capacidades exigidas dos professores (Perrenoud,
nos parece mais interessante (o que significa:.guqpode inserir-se nQ.Contexto 1999a). Sem cair no purismo conceitual, parece-nos evidente que não se
epistemológico que apoiados)! ã5ntra a ideologia do indiví(ii4o onipotente pode "pensar", de modo razoável, na problemática da formação usando um
proveniente do velho pensamento raciohãlista, apreséntãcomo dado primor- termo que acabadesignandotodos os aspectosdaquilo que outrora chamá-
dial a atividade coletiva humana (inclusive as tarêfãs de trabalho) e leva em vamos de "funções psicológicas superiores" (Bronckart e Friedrich, 1999;
conta o papel decisivo das avaliações sociais (Stroobants, 199ê), sob cujo efei- Bronckart e Schurmans,em fase de elaboração) e que acolhe e anula, ao
to as capacidades são imputadas aos agentes humanos e podem ser interiori- mesmo tempo, o conjunto de opções epistemológicas relativas ao status des-
zadaspor eles.Além dissoíessacorrente tem o mérito de tentar redefinir os sas funções (sabei savoír:/bife, comportamento, etc.) e às suas determina-
conteúdos de formação para adapta-los melhor Êtsefétivas situaçõesde vida, o ções (sociológicas ou biopsicológicas) .
que poderia contribuir para uma atenuação do imobilismo social gerado pêlos Essaconfusão é lamentável, sobretudo porque a lógica das competências
atuais modos de formação. No entanto, também apresentalacunas e-riscos; chegou a um momento em que a dariâcação dos mecanismosda fomlação é,
lacunas no caráter monolítico e instabilidade de seu conceito-sZogartlíí$cos mais do que nunca, necessária. A década que termina fói, acima de tudo, a da
porque a lógica das êompetênciái"próvérÜ"iiã'vgdgde, dos poderes económi- "queda do muro", da derrota económica e social do socialismo dito "real" e, por
cos e está associadaa um proJetQdêdesregulamentaçãoneoliberal ao qual conseguinte, a do capitalismo triunfante. Essasituação realimentou uma ideolo-
consideramos fundamental contrapor uma firme resistência.Portanto, se com- gia geral, desde já muito operante, que estabelece que, como as classessociais
preendermos que a formação, hoje em dia, está "dominada pelas competên "desapareceram",as leis de mercado constituem o fundamento primordial da
das" (segundo a Hrmula de Perrenoud, 1999b), parece-nos indispensável de ordem social, e o comércio globalizado desempenha o papel de vínculo natural
nunciar não apenas as condições de uso desse conceito, como também os entre os amores.A desregulação económica (destruição dos mecanismos de con-
objetivos sociopolíticos aos quais alguns pretenderão que ele sirva. trole do Estado e do contrapeso dos sindicatos) se insere nessa perspectiva, e é
O que se entende anualmente por competência(s)? Segundo Levy-Le- prolongada naturalmente aos oUetivos de desregulação educativa; na Suíça e
boyer (1996), elas são "repertórios de comportamentos [que tornam as pes- em ouros lugares, os anuaisprojetos de integração dos sistemas de formação a
soaseficazes] em uma determinada situação"; de acordo com 'lhrdi# (1994), uma lógica de mercado participam desse empreendimento, assim como a lógica
a competência é "um sistema de conhecimentos, dec]arativos [.. .], condicio- das competências também o fàz, pois ela emana do patronato. E claro que,
á'
q nais [...] e procedimentais [...] organizados em esquemasoperatórios" que como já havíamos mencionado, a problemática visada por essa lógica é real e
permitem a solução de problemas; conforme Le Boterf (1994), trata-se de importante. Naturalmente, essepredomínio também se deve à repugnânciae à
um "saber-agir reconhecido"; segundo 'lbupin (1995),' ela consiste na "ca- lentidão dos sindicatos em assumir a realidade das mudanças económicase a
pacidade de selecionar e agrupamem um todo aplicável a uma situação, os intimidade das situaçõesde trabalho. Portanto, não se trata de contestar o inte-
saberes, as habilidades e as atitudes"; para outros autores, as competências resse dos especialistas em fomlação por essa problemática. No entanto, a menos
são "esquemas geradores", "forças simbólicas estruturadoras" e, além disso, que adira ao neoliberalismo brutal, esseinteresse deve ser combinado com a
por que não, "hábitos". A única característica comum a todas essasdefini- rebmlulação de um prometopolítico-educativoque defina valores e objetivos
çõesé o fato de apreender a problemática de intervençõesem tarefas situa- que não sereduzam aos induzidos pela lógica de mercado.
das. Considerando-se essabase, sem realmente tratar da questão da relação
entre o "dever ser" da tarefa e o "ser" dos agentesnela envolvidos, as compe-
tências são imputadas (e explicadas por) Tformatos" cujo elemento'êijjÕítu- PROPOSTAS PARA UM APARELHO CONCEITUAL DIFERENCIADO
i=ãdõté de ordem sociológica ("forças simbólicas", "hábitos") ou proprieda-
des psicolóÉiêas dos indivíduos. Nesse último caso, essaspropriedades po- Nossaspropostas foram inspiradas por uma reavaliação e por uma nova
dem indicar comportamentos, conhecimentos, atitudes ou savoír:/bife, bem hierarquização dos princípios da Nova Educação. O primeiro dessesprincí-
3q. PeE:911geÉL!!eE

pios reafirma o caráter democrático e igualitário dos empreendimentosde maiores detalhes, ver Bronckart, 1997), coloca a preexistência de uma atí-
educação/armação; eles devem visar ao aumento da coesãosocial, permi- vídade de Zínguagemcoletiva, a qual se concretiza por meio de múltiplos
tindo que todas as pessoasse insiram e invistam eficazmentenas múltiplas géneros de textos dt&rentes, adaptados às situações e a determinados meca-
redes de atividade coletiva; em nível das formações básicas,isso incita a nismos comunicativos.Do ponto de vista técnico ou lingüístico, ela tam-
aprendizagem do domínio de atividades gerais (em especialda atividade de bém pressupõe que essesgêneros constituem as unidades de nível superior
linguagem) e, nos níveis posteriores, a aprendizagem de práticas mais espe- pois determinam, pelo menos em parte, os processosde estruturação sin
cíficas, pré-orientadas por papéis profissionais particulares. 'lbdavia, qual- tática e as decisões léxicas. Portanto, a./inaZídadegeral do ensino de línguas
quer prática social é permanentemente objeto de avaliações verbais e, dessa visa ao domínio dosgéneros,como instrumentos de adaptação e participa-
forma, está associada a um estoque de conhecimentos e saberes; o domínio ção na vida social/comunicativa, e as aprendizagens ligadas à sintaxe ou
real das práticas resulta, portanto, em uma compreensãoe uma aprendiza- ao léxico representariam apoio técnicopara essafinalidade global.
gem dos saberesa ela ligados. O segundoprincípio tem relaçãojustamente No plano da programação didática, como os gêneros são de número
com o status dessessaberes.A ideologia do progressoteve muito sucesso, ilimitado e nem todos podem ser ensinados, inicialmente, é preciso esco-
pois implicava que os avançoscientíficos permitiriam solucionar os proble- lher aqueles que se tornarão oUetos de ensino. Se os critérios dessa escolha
mas socioeducativos; nos dias de hoje, acentua-se,em particular a íncom- forem múltiplos e "discutíveis", eles sempre devem basear-se na represen'
pZetudeinevitável dos conhecimentos cientíHcos, a diversidade dos regimes tatividade (deve-seselecionar exemplares de cada uma das grandes famílias
de saber e os mecanismos de valorização social que são o objeto dessesúlti- de gêneros) e na complexidade (é preciso selecionar exemplares adapta-
mos. A incompletude e a diversidade dos conhecimentos fazem com que os dos ao suposto nível dos aprendizes).
programas de formação só possam ser elaborados com registros de saberes No plano de intervenção em situação de sala de aula, o procedimento
diferentes, por meio de sua transposiçãoe ressolidarizaçãono contexto de se decompõe em quatro etapas A primeira delas consiste em elaborar um
um projeto didático coerente(cf. infra, os "modelosdidáticos"). O impacto modelodMátÍco do gênero escolhido como objeto de ensino. Esse modelo
da valorização dos saberestambém requer que os aprendizes sejam confron- contém os conhecimentos adquiridos sobre o gênero, selecionando-os e
tados com essesjulgamentos sociais e aprendam a participar deles,de forma adaptando-osàs propriedades do sistema didático em questão (especial-
autónoma e/ou crítica. Quanto ao último princípio, o da educabilidade, logi- mente ao suposto estado dos saberese savoÍr-/bIFede alunos e professo-
camente, ele continua sendo levado em conta; porém há uma nítida diferen- res). Somado a isso, pretende facilitar o trabalho dos professores, fome
ça de ênfase. Os promotores da Nova Educação, com o intuito de realizar um cendo-lhesos ingredientes que permitam organizar as situações de apren'
procedimento didático, insistiam na necessidadede conhecer os mecanis- dizagem e as seqüências de ensino. Naturalmente, os modelos didáticos
mos e as etapas do desenvolvimento psicológico da criança. A partir de en- dos gênerossão modelos provisórios capazes de evoluir e não prejulgam
tão, foram realizadas diversas pesquisas nesse âmbito, demonstrando que as formas efetivas do ensino, apenas abrem um leque de possibilidades.
toda aprendizagem, mesmo quando visa ao domínio prático, envolve um Assim, o modelo contribui para esclarecer os conteúdos "ensináveis" e per-
processo permanente de conceituação e re-conceituação. Essas pesquisas, mite delimitar, a priori, três grandes categorias de o»etivos de ensino:
no entanto, são insuficientes, já que criam um impasse sobre os processos
de mediação social, formal ou informal, que orientam as aprendizagens e as ' os objetivos ligados à anão de Zínguagem: saber escolher um gênero de
tornam eficazes.Para fundamentar esseprincípio, também é preciso saber texto adaptado a uma determinada situação de comunicação; saber
como educar, e o principal objetivo da didática contemporânea é analisam no elaborar uma posiçãode agente produtor (intenções,motivos); saber
detalhamento das situações concretas, as formas de ensino que tornam mais mobilizar os conhecimentos pertinentes relacionados à situação, etc.;
eficazes os procedimentos de apropriação dos aprendizes. ' os objetivos ligados à escolha e gestão dos tios de discursoque entram na
Com base nessesprincípios, o aparelho conceptualrelativo ao ensino composição de um texto e que conde(:ionam sua unha-estrutura global;
da língua materna distingue os seguintes níveis de abordagem: ' os objetivos ligados ao domínio dos mecanismos Zíngüíktícos (sintéti-
Em primeiro lugar convém contar com uma concepçãodo status e das cos, lexicais, prosódicos, etc.) que garantem a coerência e a coesão
propriedades do funcionamento da linguagem. Nossa concepção (para de um texto.
40. Dolz,Ollagniere cols.

As três fasesseguintesse decompõemda seguintemaneira: em primeiro situem objetos empíricos sobre os quais trabalham alunos e professores, o
lugar identificam no contexto de uma atividade de produção íínalizada de texto, gênero textual constitui a unidade que articula essesobjetos concretos em
as capacidades adquiüdas pelos aprendizes com relação aos três domínios evo- um todo coerente; ele define um sistema de limitações, de diversa nature
cados anteriomiente: capacidades de anão; capacidades discursivas; e capacidades za, no interior das quais se inserem os textos singulares. Dessemodo, um
Zingtiútico-ramais (Dolz, Pasquier e Bronckart, 1993; Dolz e Schneuwl$ 1998) ; gênero oral como a "exposição" - ou, na terminologia escolar suíça: a "pa-
sobre essabase, selecionar os aspectosmais especúicosde uma das capacidades lestra" - pode ser definido como uma tomada de palavra em público que
que será objeto do procedimento de ensino, elaborar e realizar atividades ou desenvolve de maneira explicitamente estruturada um tema da ordem do
exercícios (os "módulos" das sequências didáticas) centrados nesses aspectos; saber. A exposição se realiza em uma situação de comunicação relativa-
por fim, no âmbito de uma nova atividade de produção de texto, avaliar asnovas mente formal, de caráter bipolar, a qual reúne um orador "especializado"
capacidadesdos aprendizes, assim como a eíícácia do procedimento de ensino. em um domínio particular do saber e seu público. As finalidades sociais da
Também verificamos que os módulos de ensino devem constituir lega exposição são bastante conhecidas: trata-se de transmitia compartilhar e
res de pesquisa; sua análise permite identificar os processosde ensino e as aumentar os saberes de um determinado público sobre um domínio parti-
formas eficazes de interação, bem como identificar os momentos e as con- cular (geografia, ciências naturais, etc.) . Assim, a exposição constitui uma
dições nas quais a introdução de saberes./brmaZizados(conceitos) efetiva- ferramenta semiótica que permite a mediação e o acessoa novos saberes.
mente contribui para o desenvolvimento dos savoír-:/bifepráticos.
A construção de um modelo didático

UM EXEMPLO: O ENSINO DA EXPRESSÃO ORAL Elaborado com base nos saberes de referência existentes (saberes cien
tíficos, escolares e de especialistas, formalizadas e validados) e na observa-
Esseexemplo foi extraído de uma pesquisaem curso sobre o ensino da çãoe análisede um corpo de exposiçõesorais autênticas, o modelo didáti-
expressão oral em francês (Dolz e SchneuwlX 1998) e, particularmente, sobre co da exposição oral permite identificar as propriedades específicas de três
os procedimentos de aprendizagem da exposição oral nas escolasde Genebra. grandes categorias de oUetívos de ensino:

A escolha do objeto de ensino . no plano da anão da linguagem, a exposição constitui uma estrutura
comunicativaparticular mas com um grande número de conven-
Domínio reconhecido com unanimidade nos dias de hoje como indis- ções: presençade um expositor especializado que domina saberese
pensável para o sucesso dos aprendizes, o aspecto oral raras vezes é consi- de um público, real ou fictício; vontade de reduzir a falta de simetria
derado um objeto escolar autónomo, diferente do escrito, e os numerosos de conhecimentos entre essesdois agentes; avaliação das novidades
conhecimentos adquiridos há algumas décadas sobre o francês falado, e das dificuldades dos conteúdos durante o próprio transcurso da
muitas vezes, têm sido negligenciados. Para tentar precisar o objeto quali- exposição; uso do corpo e incorporação de sistemas semióticos que
ficado como "oral" nos programas escolares,tentamos identificar as carac- não fazem parte da linguagem (atitudes corporais, gestos, olhares,
terísticas plurais das formas específicas que assumem os principais gêneros mímica facial, ocupação e gestão dos lugares), etc.;
textuais orais. De acordo com diversos autores (para uma síntese,ver Bron- ' no plano discursivo, a exposição é um monólogo cuja organlização
cl<art, 1997; Canvat, 1996; Schneuwly e Dolz, 1997), postulamos que, em interna geralmente comporta as seguintes etapas: abertura, delimi-
uma determinada cultura, as representaçõesassociadasaos textos orais e tação do tema, apresentaçãodo resumo ou plano a ser seguido, de-
escritos são, em grande parte, genéricas. Os gênerostextuais, como a en- senvolvimento de diferentes temas anunciados que contenham fa-
trevista, o debate, etc., são ferramentas semióticas complexas que permi- ses descritivas, fases argumentativas e de recapitulação ou síntese,
tem que os agentes realizem determinadas açõesde linguagem; sob esse conclusão ou mensagem final e encerramento;
ponto de vista, aprender a se exprimir oralmente é se apropriar das ferra- ' no plano das propriedadesZíngiiútíco-textuais,a exposição mobiliza
mentas para falar em diversas situações de comunicação. Se os textos cons- um repertório de unidades lingüísticas particulares (anaforismos,
42 . Dolz, Ollagnier e cais.

reformulações, marcadores do discurso oral, organizadores textuais, marcadores lingüísticos que permitem evocar explicitamente as partes do
exemplificações, etc.), assim como dimensões sonoras característi- texto, nem as reformulações que permitem esclarecero vocabulário técni-
cas da tomada de palavra (dicção, entoação, acentuação, pausas, co ou erudito, nem as perguntas ou enunciados metalingüísticos dirigidos
ritmo, etc.). ao público para facilitar o acompanhamento da exposição. Por outro lado,
não usam suportes, com exceção de anotações que por vezes são lidas. As
Odesenrolardasequênciadidática pausas não são suficientes para marcar as partes da exposição nem para
dar tempo ao público de assimilar as informações-
Em uma classe com alunos de 10 a ll anos, após a escuta da gravação Durante os módulos de seqüênciadidática, o professor enfoca seu tra-
de uma exposição realizada por um aluno sobre o escorpião, o professor balho em algumas capacidades:1) compreensão e análise dos textos orais
propõe a realizaçãode uma série de exposiçõessobre animais,as quais complexos da ordem' do saber; 2) documentação sobre um determinado
serão gravadas e escutadas pelos outros alunos. Após essaprimeira produ- tema; 3) organização das partes da exposição; 4) uso das anotaçõespara
ção, o professor anuncia a realização de um trabalho coletivo para melho- auxiliar a memória; 5) reformulação para facilitar a compreensão do ou-
rar o hábito de falar em público. Com essafinalidade, os alunos acompa- vinte; 6) realização de pausas,controle do volume da voz, da forma de
nham uma seqüência didática de cinco módulos de ensino (l - escuta e falar e da entoaçãoexpressiva.Os módulos de ensino dão uma grande
análise de uma exposição de adulto; 2 - anotações para preparar uma importância aos savoír-/bife ligados à tomada de palavra em público com a
exposição oral; 3 - documentação e anotaçõessobre o animal escolhido ajuda de palavras-chave (capacidadede ação), à estruturação dasinforma-
por cada um; 4 - treinamento na reformulação dos termos técnicos; 5 - ções da exposição (capacidade discursiva), ao uso dos procedimentos de
planejamento da exposição e treinamento da dicção antes de tomar a pala- textualização característicos da exposição oral (capacidade lingüístico-dis-
vra em público). Depois do ensino, os alunos gravam de forma sucessiva cursiva). Além disso, essessavoír-/bife são objetivados graças a atividades
(em grupos de dois, perante a classe)uma exposiçãosobre o animal de sua de metalinguagem. Por exemplo, antes de treinarem o uso da reformula-
escolha.
As exposições e interações que ocorrem nos diferentes grupos são to- exposições ouvidas, analisam as funções e elaboram sua própria definição
talmente gravadas e transcritas a fim de estudar quais são as condições Nem sempreessesaber é suficiente para uma utilização eficaz da reformu-
propícias para suscitar a atividade dos alunos, como os saberese os sal'oír- lação. Por não compreenderem o que está em jogo na ação, a tendência
.Mire a serem ensinados são tratados nas práticas de ensino, quais são as dos alunos é aplicar com rigidez os procedimentos de reformulação.
tensões que servem como fontes de aprendizagem e as capacidadesque se A análise dos processosinterativos efetivamente aplicados no âmbito
transformam em função do ensino. de uma seqüência didática nos ajuda a identificar as capacidadesexibidas
Durante as produções orais iniciais, os alunos exibem capacidadesad- de forma progressiva pelos alunos nos diferentes níveis evocados. Ela per-
quiridas previamente, as quais podem ser resumidasda seguinte maneira. mite criar as condições necessáriaspara permitir que se apropriem de um
As exposições realizadas são muito similares e relativamente curtas (um gênero textual, como a exposição oral. As observações realizadas durante
minuto e quarenta e cinco segundos,em média). Os parâmetros da toma a realização desse ensino nos parecem indispensáveis para compre.ender
da de palavra em público (volume da voz, modo de falai articulação e como são forjadas concretamente as capacidades dos alunos, exigidas e
expressividade da palavra), na maior parte das vezes,não constituem um mobilizadas para que essegênero de exposição oral seja dominado. Assim,
handicap importante, mas podem melhoramEm contrapartida, surgem al- por exemplo, pudemos observar que o saber compartilhado em classepe'
gumas dificuldades no nível da gestão dos recursos lingüísticos e pára- los jovens alunos sobre a reformulação permite que eles usem esseproce'
lingüísticos e no nível da organização geral da exposição. Os alunos não dimento lingüístico de forma mais eficaz, além de possibilitar, nas sessões
anunciam as partes da exposição (sob a forma de resumo). Repetem de de balanço e de auto-avaliação, que compreendam e expliquem a lógica
forma sistemática os mesmos organizadores orais para garantir a continui- dos atos que realizam.
dade da tomada de palavra: então eu vou.azar:... / então sua de/tnÍção.../ No momento das produções finais, as novas capacidadesdos alunos são
então a reprodução.../ então a relação com o ser humano... Não utilizam apresentadasda seguinte maneira. A duração total da exposição é de dez
44 . Dolz,Ollagnlere cais. O enigma da competência em educação . 45

minutos e trinta segundos.Em geral, graças ao treinamento, os alunos se Feita essa reserva sociopolítica (que, sem dúvida, seria apoiada por di-
sentem à vontade quando tomam a palavra em público e alternam suas versospromotores da "lógica das competências"), por que, então, não con-
intervenções de forma equilibrada, o que torna a exposição mais animada. servar o próprio termo competência?A nosso veB há dois motivos para isso.
A organização explícita das partes temáticas e a adoção de uma tomada de O primeiro é que a competência atualmente se aplica a níveis de aná-
palavra vibrante marcada pelas variações de volume da voz, pelo modo de lise que nos parece indispensável distinguir e designar de forma diferencia-
falai pela entoação expressivae pelo acento de insistênciasão as mais da: nível dos objetos sociais e das finalidades a eles associadas;nível dos
importantes novidades que eles introduzem. As pausasna alternância da objetos e objetivos de ensino elaborados no contexto dos modelos didáti-
tomada de palavra e entre as partes da exposição são bem exploradas. Os cos; nível das capacidades (saberes, savoir-@íre, atitudes, etc.) demonstra-
alunos põem em prática os conhecimentosadquiridos por ocasião da se- das pelos aprendizes antes, durante e depois de um procedimento de ensi-
quência didática: o tema é anunciado de forma clara para envolver o públi- no. A adição de um vocábulo único constitui uma fonte de confusão per-
co: "Nunca vi uma crista listrada, mas gostaria muito de ver uma algum manente, a qual aumenta ainda mais quando essemesmo vocábulo tam-
dia, porque é muito assustadormuito curioso,vocêjá viu?". Nas produ- bém é aplicado às capacidadesprofissionais dos professores.
ções finais, todos os alunos utilizam procedimentos de reformulação, fre- Supondo que se aceite a necessidadedessadiferenciação, poderíamos
qüentemente com introduções como "isto é", "para os que não sabem", objetar que o termo competência equivale ao termo capacidade e que poderia
marcadores que assinalam as diversas partes e os temas tratados ("a propó- servir para designar apenas as propriedades adquiridas pelos aprendizes ou
sito de...': "no focarlte a...", etc.) e organizadores textuais. O novo vocabu- aquelas deles exigidas. Aqui aparece nosso segundo motivo. Apesar da opi-
lário técnico (insectúora,bosque,etc.) é reformulado para facilitar a com- nião de alguns, a competência continua contendo algumas conotações que
preensão. Durante a exposição, eles utilizam diversos suportes: fotos, gra- acentuam as dimensões inatas ou, pelo menos, as propriedades inerentes a
vuras, selos, gravaçõessonoras ou eslaides. O destinatário também é leva- uma pessoa. O termo capacidade nos parece mais apropriado nesse debate,
do em consideração por meio de numerosos dêiticos pessoais utilizados na medida em que está ligado a uma concepção epistemológica e metodoló-
para questiona-lo ou envolvê-lo durante a exposição.As transformações gica que estabelece que as propriedades dos agentes só podem ser inferidas
observadas são um primeiro indicador da pertinência dos diferentes mó- por meio das ações que eles realizam, por meio de um processo permanente
dulos de ensino propostos. de avaliação social. Dito isso, as conotações sempre podem transformar-se e,
se, nos próximos anos, o termo competênciaadorar um significado equiva-
lente ao que hoje damos a capacidade,teremos de apoia-lo. No entanto,
RETORNO A ''LOGICA DAS COMPETENCIAS" enquanto isso não ocorre, permanece nossa exigência crítica.

O procedimento que acabamosde descrever sucintamentese insere


apenas de forma parcial na "lógica das competências". Sua inserção só
seria plena na medida em que seu movimento se iniciasse pela análise das NOTA
propriedades das tarefas ou das atividades coletivas, continuasse com a
elaboração de objetos de ensino associadosa objetivos a priori (modelo 1. Extraímos essapequena lista de definições de outro artigo de Toupin (1998, p.33-44)
didático) e desembocasse nos procedimentos de transformação das capaci-
dades adquiridas pelos aprendizescom relação a essesobjetivos, sem se
REFERENCIAS
preocupar com seu caráter inato ou adquirido. Ele se insere apenasem
parte porque a própria escolha dos objetos e objetivos de ensino não é
BOURDIEU, P (1980). Le sens pratique. Paris: Minuit.
efetuadaem função de "propriedades"exigidasde um aprendizpara se BRONCKART,J. P (1997) . Activité langagiêre, textes et discours: pour un interacionism
adaptar ao caráter flutuante das situações de trabalho, mas de uma análise socio-discursif. Paria: Delachaux et Niestlé.
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professionnels. Lyon: Conférence dans le cadre du Colloque intemational sur le que a transferência apareçade forma espontânea,pois deve ser aprendida
transkrt des connaissances. e trabalhada. Com relação a esseaspecto, os professores continuam muito
TOUPIN, L. (1995) . De la fomlation au métieE savoir transférer sesconnaissances dans despreparados.E preciso criar "situações de transferência"? Deve-seexer-
I'action. Paus: ESF citar a descontextualização e a recontextualização dos saberes? Deve-se
TOUPIN, L. (1998). La compétence comme matiêre, énergie et bens.Éducation perma desenvolveruma "intenção de transferência", uma postura metacognitiva
nente,135,p.33-44. favorável ou mesmo uma cultura da transferência?
A abordagem por competências enfoca o mesmo problema com a aju-
da de outra metdhra, a da mobilização de recursos, entre os quais estão os
saberescompartilhados e os conhecimentos privados, próprios do indiví-
duo. A idéia de [ransPrêncía evoca um deslocamento do conhecimento do
lugar de suaconstrução para seulocal de uso, e a metáfora da mobilização
O enigma da competência em educação . 49
48 . Dolz,Ollagniere cais.

acentua a atividade do índíl,üuo. Por outro lado, enquanto o conhecimen- de cursos e com o provável destino dos alunos: cultura geral aosque reali-
to "se" transfere, é mobilizado pelo indivíduo em ação.Para essa"desreifi- zam estudos longos, saberes práticos aos que vão ingressar na "vida ativa"
Essasdiferenças clássicas podem mascarar uma constante: ninguém
cação" do processo, a metáfora da mobilização me parece mais fecunda,
mais fiel à complexidade dos mecanismosmentais. nunca defendeu um conhecimento ínuríZízáveZ fora do recinto escolar.Mes-
mo os saberesmais gratuitos, os quais não contribuem com a gestãoou
A mobilização não é apenas"uso" ou "aplicação", mas também adap-
tação, diferenciação, integração, generalização ou especificação,com- com a produção das coisas, referem-se a condições e práticas sociais. "Com-
binação, orquestração, coordenação; em suma, tzm coÜunto de opera' preendero mundo" é uma prática social que está no mesmonível que
;'cozinhar um ovo". Não existe nenhuma razão para limitar a noção de
iões mentais complexas que, ao liga-las às situaç.ões, [rans/armam os co-
nhecimentos em vez de desloca-los. Assim, insiste-se em uma química competênciaa savoír-/bife "práticos" sobre as coisas.Qualquer conheci-
ou em uma alquimia(Le Boterf; 1994) mais que em uma física dos sabe mento permite operar sobre o real e, portanto, sobre o próprio indivíduo,
sobre seu corpo e espírito.
res. Aproximamo-nos da realidade do trabalho humano, da forma em
ela é descrita pela ergonomia cognitiva e pela.psicossociologia do O desejo de que os conhecimentos adquiridos na escola sejam utilizá-
trabalho. Metáfora por metáfora, a referente à mobilização ultrapassa veis em outros contextos é indissociável da idéia de que a escola foi feita
o campoda psicologiacognitiva experimentalpara sedirigir a uma an- para "preparar para a vida", no sentido amplo. Nesse sentido, a "transfe
rência'de conhecimentos" sempre foi um lema da escola.A psicologia cog
tropologia mais ampla da cognição e da ação situadas. Essa é uma for-
ma mais promissora de encarar a questão do indivíduo e do sentido e nativa apenas nomeou de forma erudita uma ambição de todo ensino, asso-
de colocar a questão das aprendizagens no âmbito mais amplo do inte- ciando-lheuma metáfora que continua sendo discutível: fazer com que o
racionismo simbólico. aluno use a cultura assimilada na sala de aula fora dos limites da escola.
A metáfora da mobilização está no centro da atual concepçãodas com- Ninguém tem a intenção de dizer que a escola foi fundada para transmitir
conhecimentosque, em última instância, diretamente ou por meio do seu
petências no campo do trabalho (Guillevic, 1991; Le Boterí1 1994, 1997;
embasamento,
não têm nenhum sentidofora do espaçoe do "tempo de
Leplat, 1997) e no campo escolar (Perrenoud, 1995, 1998a e b, 1999a, b,
estudos" (Vérret, 1975).
c) A abordagem por competências, na medida em que prolonga e amplia .a
reflexão sobre a transferência, parece-nos uma nova forma de expor o mais Em contraposição, podemos duvidar da concretização dessaintenção
no dia-a-dia. A preocupação com a preparação do ciclo de estudos pouco a
antigo problema da escola.
Com certeza, um novo paradigma ajuda apenas a colocar melhor os poucoultrapassoua finalidade primordial da escola,que é a formação
problemas e a construir hipóteses explicativas mais fecundas. Não faz emer- para a vida. Outras lógicas, como a da seleção, a da transposição e a das
disciplinas,com freqüência, embaralham as cartas. O fato de a transferên-
gir fenómenos totalmente desconhecidos,modifica um pouco a paisagem
cia estar no programa da escolaridade não garante sua aplicação.
e a posição dos problemas, reorganiza o campoconceituaZpara pensar me-
Talvez possamosafirmar que os limites da transferência dos conheci-
lhor as antigas observações.No máximo, podemos esperar do conceito de
mentosescolaresfora da escolanão representem a mais dramática carên-
competência um valor agregado, e não uma revelação. Um conceito é um
cia. Em grande parte dos países do mundo, a escola pode apenas acolher
constructo provisório, seu valor é um valor de uso, que é medido por sua
fecundidade teórica, e não por sua verdade absoluta. todasas criançase adolescentesou fazer isso em condições suficientemen-
te propícias ao estudo (locais, material, efetivo das classes,formação do-
cente) . Nas sociedades desenvolvidas e fortemente escolarizadas, todos ou
UM SABER MÓVELOU OSLIMITES quasetodos os alunos vão à escola; porém uma parte deles não se apropria
DAMETÁFORADATRANSFERENCIA de fo.rmacompleta e sólida dos saberese savoír-/bife básicos.
E verdade que instruir todo mundo é prioritário; uma criança que nao
Conforme as épocas, os programas escolares têm privilegiado o utilita- aprendeu a contam a ler ou a se apropriar de algumas noções de gramática
rismo ou o conhecimento ';gratuito" (lsambert-Jamati, 1990). Em cada ou ciênciasnão saberiatransferir o que construiu. Podemosconcluir daí
que, se todos os alunos "soubessem suas lições" e pudessem utilizar os
época, utilitarismo e gratuidade são declinados de acordo com as opções
50 Dolz.Ollagníere cais. O enigma da competênciaem educação . 51

conhecimentos adquiridos na escola em outros contextos, poderíamos dar teremos de adotar uma metáfora provas(iria,assumida como tal, mas, pelo
nos por satisfeitos. menos, crível no estado atual das teorias e da pesquisa.
No entanto, não podemos basear-nosnessahierarquia de prioridades Por longos anos, ainda será provisório e metafórico o status mais ho-
para argumentar que, em primeiro lugar, seria preciso aprender e só se nesto de toda teoria psicológica da atividade mental, pelo menos se quiser-
preocupar posteriormentecom a transferência. No entanto (Perrenoud, mos que ela sqa suficientemente global para fundar práticas de formação
1997), pode acontecer que uma parte dos alunos não aprendeporque a em toda a sua complexidade. Sem dúvida, as neurociências proporão, de
runs/êrêncía não é Z:rabaZhada
de antemão, a partir da escolaelementar. forma progressiva, modelos psicofisiológicos mais próximos do real; cada
Como dar sentido às aprendizagens se elas não têm outro horizonte senão o vez mais conseguirão associar processos e estados bioquímicos e elétricos
da sala de aula? De acordo com Rey (1996, 1998), a transferência pode ser a processoscomo a conceituação, a abstração, a inferência, a memoriza-
associadaa uma intenção e a um desejo.Pois bem: muitas vezes, a escola ção, a compreensão, a assimilação, a acomodação, a mobilização, a apren'
não favorece nem um nem outro. Tudo acontece como se a presença de um dizagem, o esquecimento... No entanto, ainda não chegamoslá. De ime
saber nos programas fosse suficiente para justificar sua utilidade e para Ihe diato, temos de nos contentar com a metáfora menos ruim.
dar sentido, sem a necessidadede perder tempo para debater os vínculos A metáfora da transferência me parece, ao mesmo tempo, pobre e fa-
entre os saberes ensinados, sua gênese na história humana e as práticas laciosa. A própria linguagem é flutuante. Por vezes, fala-se de transferên-
sociais para as quais eles, nos dias de hoje, preparam. cia de conhecimentos,outras vezesde aprendizagensou competências('lãr-
Podemosconcluir portanto, que a problemática da transferência se diC 1999) . Essaampliação provoca algumas confusões.'Vamosreferir-nos
refere a z:idosos alunos: àqueles que aprendem,mas não fazem grande apenasà transferência de conhecimentos. Essametáfora é.hZacíosaporque
coisa com o que aprenderam fora do contexto de aprendizagem, e àqueles pertence à ordem ./Bica e espacial Ela evoca um conhecimento gerado em
que não aprendem grande coisa, mas que talvez aprendessemmais com o um tempo e um lugar, depois [rarisportado para outro tempo e lugar. Não é
estímulo de um desejo ou de uma intenção de transferência. a mesma coisa conceber essesespaços-tempos como contextos, tarefas ou
Restasaberse essametáfora funciona do ponto de vista teórico e do situações.Em todos os casos,insistimos em um vínculo direto entre tem-
ponto de vista pedagógico e didático. pos e lugares diferentes, o da gênesee o do uso.
A noção de transferência (salvo em seu sentido psicanalítico, que não
Umduplo enigma é debatido aqui) evoca um conhecimento portátil, já que sabemos cada vez
melhor que o conhecimento é produto de uma construçãonunca termina-
Meirieu (1998) qualifica a transferência como "um objeto enigmático",
da, que sempre pode ser remanejada, que, em geral, depende fortemente
mas nem por isso obscuro: todos compreendem rapidamente que se trata de do "contexto" em que se constrói e que é incorporada ao sujeito. O conhe
reinvestir as aprendizagens em outra situação, ao mesmo tempo semelhante cimento não é uma mercadoria que pode ser transportada, porque, senão,
e diferente. O enigma teórico fundamental é compreender "como isso fun- se transformaria em um saber separado de sua fonte, colocado em pala-
ciona". Os modelos do espírito e da aprendizagem humanos ainda são bas-
vras (ou em equações,gráficos ou símbolos), o que o colocaria à disposi-
tante frágeis. Além disso, o cognitivismo "computacional", o construtivismo
ção de outros atores. A transferência de saberes,portanto, poderá.aser as-
e o conexionismo disputam terreno (Raynal e RieunieB 1997, 1998). similada à circulação social e à partilha dos bens, tecnologias e informa-
A primeira tentação seria deixar essesproblemas em aberto e esperai
ções.Entretanto, não falamos de transferência de conhecimentos na área
em média, trinta anos para a pesquisaprogredia Infelizmente, precisamos
da psicologia cognitiva nesse sentido; supõe-seque ela ocorra no seio de
de imediato de um modelo,pelo menosprovisório, para pensartanto a uma única e mesma pessoa.
formação como o trabalho. Não podemos pedir que os professores"traba- Pode-secompreender a tentação de representar o conhecimento como
lhem a transferência" e lhes dizei ao mesmo tempo, que duvidamos do uma substância ou uma informação que poderia ser reconstituída no seio
sentido desse conceito e, talvez, da própria existência de uma transferên-
do sistemacognitivo, de uma zona de memória para a outra, como um
cia diferente da aprendizagem ou ainda dos mecanismoscognitivos subja-
radiologista reconstitui o trânsito do óxido de bário através do organismo,
centes. Se quisermos que uma grande parte deles se preocupe com isso,
ou um hidrólogo encaminha um colorante da fonte para a desembocadura
52 . Dolz.Ollagniere cais. O en gma da competência em educação . 53

de um curso d'água. Os primeiros modelos de inteligência artificial refor- possamos reinvestir aquisições anteriores. Essas semelhanças, porém, não
çavam essaanalogia, pois em um computador efetivamente existe transfe- seriam úteis se não fossemos capazes de reconhece-Zas,
de forma consciente
rência de informações de um sistemaperiférico para uma memória de tra ou não, e de mobilizam com discernimento, esquemasde ação e conheci-
balho e desta para uma memória de longo prazo, ocorrendo depois a trans- mentos já constituídos. Piaget descreveu a dialética da assimilação e da
ferência inversa, no momento em que o programa "precisa" dessainforma acomodação.Assimilamos o mundo a nossasestruturas, por vezes sem a
çao e a recupera. menor adaptação (assimilação "pura"), e, outras vezes, por meio de uma
A metáfora da transferência não evoca nenhuma transformação, ape- acomodaçãoque, se conseguir estabilizar-se, se transforma em aprendiza-
nas um movimento, uma espéciede "viagem". Proponho renunciar a uma gem (Frenay; 1996).
imagem tão estática e materialista do conhecimento subjetivo. De bom
grado, reconheço que os pesquisadores especializados construíram uma Os limites da metáfora espacial
visão muito mais matizada, dinâmica e transformacional da transferência.
Eles só conservam a palavra por comodidade. lbdavia, na escala do siste- A idéia de transferência esclareceos mecanismosmentais subjacentes
ma educativo, a palavra organiza o pensamento. a essereinvestimento? Sem dúvida, ela destaca que uma parcela dos recur
Ao insistir na idéia de um conhecimentosituado e (re)construído, não soscognitivos utilizados hic eZ:nunc provém de outra parte e de um mo-
estaria na hora de escolheruma metáfora mais adequada,mais próxima mento precedente. Será que eles, todavia, são "transferidos" assim como o
da área bioquímicaque da geométricaou física?A noçãode "transmuta- conteúdo de uma zona da memória de um computador é transferido para
ção" dos conhecimentos poderia servir para essefim, bem como a de trans- r
outra?
posição; porém o termo já possui outro significado na sociologia do currí- Quando abordamos uma nova situação, as situações em que cons-
culo e na didática. truímos os recursos utilizados provêm do passado.Nossos conheci-
O que temos de conceituar? Um hto ao mesmo tempo elementar e muito mentos não "residem" em experiências que contribuíram com sua gê
importante em uma espécie aprendiz: abordamosas simaçõesda vida com co- nese.Elas residem em nosso cérebro, talvez sob a forma de redes neu-
nhecimentos, esquemas,conceitos e atitudes que são produto de experiências an- rânicas complexas, e não sob a forma de pequenas gavetas bem-arru-
[eríores.Outra forma de mencionar essabanalidade: asoperaçõesmentais e as madas. A psicologia cognitiva demonstra que, com freqüência, esses
açõessempre são produto de um encontro, de uma interação, freqüentemente conhecimentos ficam presos na memória global das situações em que
complexa, entre a situação e as estruturas anteriores do indivíduo. se forjaram e nas ações e decisões que inspiraram. Por isso são chama-
No início de sua vida, o ser humano é bastante desvalido e enfoca o dos de "contextualizadas". Compreendemos,então, uma das razões
mundo com alguns esquemasgeneticamente programados. No entanto, pelas quais seu reinvestimento em outros "contextos" não ocorre de
com rapidez, ele aprende, e seu hábito (ou sistema de esquemas) se enri- forma natural; por isso Tardif e Meirieu (1996) insistem no treina-
quece e se torna mais complexo. Esseprocesso dura a vida inteira, ainda mento nesseduplo movimento de descontextualizaçãoe recontextua-
que fique mais lento ao chegar à idade adulta, pelo menos no caso dos lização de conhecimentos, assim como Barth (1987, 1993) insiste na
indivíduos que vivem em um ambiente estável. Essaestabilidade relativa "aprendizagem da abstração"
do ambiente é condição para uma aprendizagem que possa ser reinvestida O cenário de todos essesprocessosé o espírito do indivíduo. Uma par
em uma experiência posterior. Se todas as experiênciasnão tivessem nada te dessesconhecimentos é descontextualizada e conservada na memória
em comum com as precedentes,o ser humano, para sobrevivemteria de de longo prazo sob uma forma abstrata, pronta para ser contextualizada
ínverzfar íncessanfemerlferespostas que fossem ao mesmo tempo novas e em outras situações. No entanto, esta não é a regra: uma parte de nossos
adaptadas. 'lhlvez essa adaptação gerasse aprendizagens; contudo, elas conhecimentos se conserva junto com seu contexto. Eles só são descontex-
seriam inúteis, pois não haveria oportunidade de reinveste-las. tualizados mais tarde, para serem recontextualizados, praticamente com o
Se nos tornamos capazes de enfrentar o real sem precisar inventar mesmomovimento. O novo contexto exerce uma determinada pressão,
tudo dia-a-dia, isso significa que, embora as situações que confrontemos sem a qual os conhecimentos permaneceriam presos na memória global das
sejam todas elas singulares, apresentam semelhançassuficientes para que situaçõesonde estão arraigados.
O enigma da competência em educação . 55
54 Dolz,Ollagniere cais.

Por que falar de transferência para descrever esseduplo processo? Para torizam um console e uma adaptaçãomais ou menos flexíveis de sua efetiva
aplicação na memória de trabalho, quando isso se hz necessário
insistir na analogia entre as situações?Sem dúvida. Entretanto, dessafor-
ma, são mascaradosdiversos elementos importantes:
Por que não falar em assimilação/acomodação ou em resolução de
A fonte da transferência nem semprepode ser associadaa situações problemas?Ou mesmo falar em mobilização?Essaúltima metáfora,no
precisas. Para resolver um problema, podemos apelar a conhecimentos cerne da atual concepção das competências, leva-nos, na verdade, a ques-
desenvolvidospor meio de situaçõesmúltiplas e diversas,e cadauma tionar "a disponibilidade, o grau de generalidade ou de acessoa conhecimen-
delas possui apenas alguns traços comuns com a presente situação. tosjá codÜcados na memória de longo prazo" diante das categorias de gare
Nem todas as situações em que os conhecimentos se constroem são fas ou problemas.
situações de formação, enquanto a problemática da transferência,
em geral, remete a uma filiação entre uma situação de formação e
uma de transferência. AMOBILIZAÇÃO DE CONHECIMENTOS
Cada nova situação pode modificar os conhecimentos nela investi- UMAMETÁFORAFECUNDA
dos, os quais são, dessaforma, matizados, generalizados, confirma-
dos, ou, ao contrário disso, são fragilizados ou sofrem uma desesta- A noção de competência não pode modificar por completo a posição
bilização. A idéia de transferência não exclui - mas também não dos problemas e muito menos tornar imediatamente inteligíveis os proces-
sugere - que o que foi transferido seja transformado durante o pro soscognitivos complexos e ainda obscuros.Entretanto, ela permite colocar
cesso de forma mais fecunda a questão de saber de onde vem o que nos permite
Uma ação complexa toma elementos emprestados de diversos cam- agia por que vias o aprendemos e como conseguimos reinvesti-lo em novas
pos de conhecimentos e orquestra múltiplos recursos cognitivos cona situações.
truídos de forma separada.A idéia de transferência não permite, O que é uma competência? A palavra é de uso corrente e é utilizada
em diversos sentidos. Ela tem um senso jurídico, do qual não trataremos
como tal, pensar essesprocessosde orquestração e integração.
Os conhecimentos descontextualizados, por de/iníção, não estão mais aqui. Para ChomskB ela possui um sentido lingüístico, o qual serve para
ligados a uma situação de aprendizagem definida. Os investimentos designar uma virtualidade biológica da espécie ou a faculdade de aprender
não são uma transferência entre situações. a falar. Não há qualquer dúvida de que essafaculdade existe e distingue a
espéciehumana das animais. Não sabemos seé oportuno denomina-la com-
Sem dúvida, podemos ampliar a noção de transferência para abranger petência se não quisermos afastar-nos muito do senso comum. Por outro
todos os funcionamentos mentais. Dessemodo, a metáfora se dilui e não lado. a faculdade mencionada por Chomsky só se atualiza graças a um
desenvolvimento e a aprendizagens muito desiguais de uma pessoapara
significa mais nada. Por outro lado, esta é a conclusãode Mendelsohn
(1996, p.20) sobre a transferência: outra. Assim, a competência chomskiana se reduz a uma virtualidade que
só a história do indivíduo pode desenvolver. Chomsky tem direito de pro-
por que uma competência, no campo científico, seja concebida como uma
Essesresultados nos sugerem que, por um lado, não existem conhecimentos aula
faculdade inata que caracteriza o conjunto de uma espécie. Mas por que se
senados em alguma parte do cérebro de nossosalunos e que, por outro, não exis-
tem aptidõesa seremtransferidas,mais ou menosindependentesda forma em
afastar aqui do senso comum e de múltiplos outros usos? Mesmo a psico-
que esses conhecimentos foram adquiridos. Nà verdade, nossosconhecimentos não lingüística considera que as competências de comunicação são adquiridas
passam do ríguo dos processospelos quais os codÜcamos, e toda nova aprendiza- e variam de um indivíduo para outro e, no mesmo indivíduo, de um perío-
gem dependeda maneira como osconhecimentosanteriores.foram adquiridos. O que do de vida para outro.
chamamos de "transferência de aprendizagens" não passaria de umjuízo de valor Não pretendo debater a visão da linguagem de Chomsky; mas não ado-
sobre a disponibilidade, o grau de generalidade ou de acesso dos conhecimentosjá to sua concepçãodas competênciase dou a essanoção de competênciaum
codificados na memória de longo prazo Sabemosque todas essasqualidadesau- sentido mais próximo de seususos correntes e eruditos em outras discipli-
56 . Dolz,Ollagniere cais. O enigma da competência em educação 57

nas. Para o senso comum, uma competência se adquire por meio da apren- Esta é a visão dos ergonomistas:
dizagem, mesmo se admitirmos que certas competências se baseiam em
E por isso que, na área da ergonomia, foi proposto o conceito unificador de
características morfológicas ou biológicas inatas, as quais exprimem o pa- competência para caracterizar o que explica as atividades do operador. E preciso
trimónio genético ou são adquiridas graças ao amadurecimento e às even- destacarque aqui o termo não tem necessariamenteuma conotaçãopositiva,
tualidades da vida pré-natal. O sensocomum também afirma que uma pois as competências podem corresponder a saberes grosseiros, que levam a
competência não caracteriza a espécie ou o grupo, mas os indivíduos. Al- atividades hesitantes ou erróneas.
guns desenvolveram essaou aquela competência, mas os outros não, ainda
Frisemos de imediato o plural: para o ergonomista, as competências são os sabe-
que, geneticamente, ela esteja ao alcance de todo ser humano.
res aplicados (ou como são aplicados) pelo operador em diversas situaçõesde
Apesar da diversidade dos usos, encontramos um núcleo comum que trabalho. Dizemos "competências para", o que obriga a uma imediata precisão
liga competência e desempenho.O desempenho é uma ação situada, data- Cada operador dispõe de todas as que necessitaem seu trabalho (embora algu-
da e observável. A competência é "o que subjaz ao desempenho", uma mas possam [evá-]o ao fracasso [...]). Em cada caso, e]e ap]ica saberes específi-
qualidade mais duradoura do indivíduo, que não pode ser observada como cos; portanto, cada vez transforma simultaneamente sua competênciacom rega
tal. Por conseguinte,a competênciaé medida por meio de uma série de ção à situação. A análise encontra aqui saberes teóricos (conhecimentos declara-
desempenhos comparáveis, a fim de neutralizar os fatores aleatórios, como. tivas e procedimentais, em geral, verbalizáveis) e saberesde ação (savoír-bife,
em um estádio, são analisadosa forma, o moral, o clima, o terreno, a no limite das rotinas que, com frequência, são, poucas vezes, verbalizáveis - mas
umidade ou a velocidade do vento... felizmente o analista dispõe de comportamentos observados). É preciso acres-
centar a isso os metaconhecimentos, indispensáveis para, de fato, agir. Por esse
Uma parte da psicometria tenta modelar as inferências que podem ser [ermo, entendemos os conhecimentos do operador sobre seus próprios conheci-
efetuadas a partir dos desempenhos,da teoria clássicados testes à teoria
mentos, o que permite sua gestão aqui e agora, devido à evolução das situações.
da generalização. No entanto, podemos multiplicar os modelos sem per- Eles poderiam ser caracterizados como os saberes de aplicação dos saberes; são
guntar como uma competência produz um desempenho. Isso, porém, é o saberesde ação por excelência (De MontJnoUin, 1996, p.193).
que interessa às ciências cognitivas.
Entre essesrecursos, no sentido amplo, alguns deles são externos ao
A mobilização dos recursos indivíduo: bases de dados, documentos, ferramentas, materiais ou outros
Le Boterf (1994) propõe que a competênciasejaconcebidacomo a atores. Limitar-nos-emos aqui aos recursosínz:errosdo índívüuo: conheci-
capacidadede mobÍZízarum colljunro de recursoscognitivos para enfrentar mentos, capacidades cognitivas gerais, esquemas de ação ou de operação,
uma situação complexa. 'n. competência não reside nos recursos (conheci- savoír-/bife, lembranças, conceitos, informações, relação com o sabei rela-
çãocom o real, auto-imagem,cultura. A lista dos recursoscognitivosde
mentos, capacidades...) a serem mobilizados, mas na propria mobilização
dessesrecursos.A competência pertence à ordem do "saber mobilizar" (p. 16) . um indivíduo também representa um problema, pois cada conceito precisa
Ele adota a visão dos psicólogos do trabalho, como Guillevic (1991, de um esclarecimento.Ainda não conseguimosdistinguir entre saberese
p.14), por exemplo: conhecimentos, identificar diversos tipos de saberes (declarativos, prece
dimentais, condicionais), contrapor savoir-/bife e "savoír-/bIFeaplicado":
saberesna prática (Vérgnaud, 1995), saberes de ação (BarbieB 1996) e
A competência dos operadores será considerada como o conjunto dos recursos
outros saberes,skíZZs
e capacidades,etc. Sem subestimar essesproblemas,
disponíveis para enfrentar uma nova situaçãono trabalho. Essesrecursossão
vamos coloca-los brevemente entre parênteses para nos determos em dois
constituídos por conhecimentos armazenadosna memória e por meios de ativa-
ção e coordenação deles. conceitos: recursos e mobilização.
Portanto, a noção de "competência" é tomada em seu sentido clássico (as poten- A idéia de recursotem a vantagem de agrupar todos os tipos de aqtzísí-
cialidades do indivíduo), contraposta à noção de "desempenho", que é a tradu- çõesque têm em comum, para além de sua heterogeneidade em termos de
ção total ou parcial da competência em uma determinada tarefa. processosde aquisição, de grau de consciência e de modo de conservação,
o fato de ser mobíZízáveís
quando o sujeito enfrenta novas situações. Esses
58 . Dolz,Ollagníere cais. O enigma da competência em educação. 59

recursos e os meios de ativá-los constituem um componente importante do do em uma situação e reinvestido em uma situação análoga representa
capital intelectual de uma pessoa. apenas um caso para:ícuZar.
Se a situação, de forma imediata ou graças a um trabalho mental mais Além disso, a noção de competênciapermite apreender melhor (ou
visível, está ligada a uma família de situaçõesjá constituída pelo indivíduo, formular de outra maneira) o fracasso da ação, distinguindo, pelo menos,
os recursos pertinentes serão observados de imediato. Caso contrário, ha- dois tipos de falhas: a ação pode fracassar porque o indivíduo não consti-
verá um processode busca,durante o qual os recursospertinentes serão tuiu os recursos necessários ou porque dispõe deles, mas não os consegue
progressivamente identificados e mobilizados. mobilizar em tempo hábil. "Assim como uma coZeçãode pares de bolas não
Não devemos surpreender-nos se aqui encontrarmos alguns aspectos constituí uma partida de rocha, um coÚurito de saberesou de savoir-faire
da problemática da "transferência de conhecimentos", mas com algumas não.»rma uma competência",afirma Le Boterf (1994, p 16). Ou ainda:
diferenças:
A competência não é um estado ou conhecimento possuído. Não se reduz a um
Os recursoscognitivos que uma competênciamobiliza incluem os saber nem a um savoír-/bife. Não pode ser assimilada a uma aquisição de forma-
conhecimentos,no sentido clássicodesseconceito; porém não se ção. 'lér conhecimentos ou capacidades não significa ser competente. Podemos
reduzem a eles. conhecer técnicas ou regras de contabilidade e não saber aplica-las no momento

Os recursos são definidos por seu uso (mobilização), mais que por oportuno. Podemosconhecero direito comercial e redigir mal os contratos rela-
cionadosa ele.
referência a situações análogas em que seriam construídos. Perma-
nece em aberto a questão de saber de onde eles vêm.
Os recursos também abrangem conhecimentos abstratos e descon Esseúltimo elemento nos fàz lembram de maneira diferente, de que não
textualizados quanto à memória de situações concretas,raciocínios é suficiente acumular conhecimentos para poder utiliza-los na ação. Enquanto
e atos que permitiram enfrenta-las. a transferência insiste em um mecanismo anaZógíco,a noção de mobilização
leva em conta todos os funcionamentos cognitivos que operam na assimila-
Por esse motivo, a metáfora da mobíZízação de recursos cognitivos nos ção/acomodação,na identificação e resoluçãode problemas.
parece mais fecunda que a de trens/êrêncía de conhecimentos:
Os problemas em aberto
Sem exclui-la, ela não postula a existência de analogias, mesmo par-
Os mecanismosde mobilização ainda não são bem conhecidos: "Essa
ciais, entre situação atual e situações passadas.
alquimia ainda continua sendouma terra incógnita", afirma Le Boterf (1994,
Abrange tanto a criação de respostasoriginais como a simples re-
p.43). Assim, a competência designa um mistério, mas é melhor um misté
produção de respostasrotineiras.
rio bem-fundado que uma aparente evidência, como a evocada pela idéia
Descreveum trabalhodo espírito,mais ou menos]ongo,difíci] e de transferência.
visível.
Le Boterf (1994) evoca a competência como um "saber-mobilizar". Po
Evoca mais uma dinâmica que um deslocamento. demos colocar essa idéia em dúvida. Logicamente, o indivíduo competente
Encontra diversos obstáculos, tanto cognitivos como afétivos ou re-
lacionais. mobiliza seusrecursoscom discernimento, em tempo hábil. No entanto,
ele não demonstra ter um "saber-mobilizar" polivalente, por mais que não
Deixa em aberto a questão dos conceitos, das representaçõese dos
exista um "saber-transferir" universal subjacente a toda transferência de
conhecimentos criados em função da situação. conhecimentos.
Sugere uma orquestração, uma coordenação de recursos múltiplos e
heterogêneos. A mobilização não tem nada de mágico, pois se trata de um trabalho
do espírito, que passa por observações, hipóteses, inferências, analogias,
comparaçõese outras operações cognitivas e metacognitivas. Essetraba-
Esseúltimo ponto é essencial:nossoespírito pratica uma recombina-
lho necessita recursos mais gerais, existentes em todo processo de decisão,
ção permanente de recursos.A transferência de um conhecimento construí.
60 . Dolz. Ollagnier e cols. O enigma da competência em educação 61

de resolução de.problemas ou de realização de uma tarefa complexa, que Essassão as problemáticas de pesquisa. Portanto, seria absurdo pre
provêm da "lógica natural" e mesmoda "inteligência" de um indivíduo. tender que a mudança de metáfora pudesse resolver os problemas de fun-
Sem dúvida, podemos considerar que todo indivíduo dispõe de esquemas do de uma teoria da cognição.No máximo, ela as renovae ofereceum
operatórios poZívaZenz:es
(recursos) que Ihe permitem mobilizar recursos contexto menos exíguo para a modelação dos processos subjacentes à ação.
mais especializados... Não podemos mais imaginar nosso espírito como Essamudança também cria outros vínculos, com as teorias da forma-
um "Solucionador geral de problemas" (GeneralProbZemSolver). O profis- ção,por um lado, e com as teorias do trabalho humano, por outro.
sional experiente também mobiliza esquemasespecÜcos, constitutivos de
uma especializaçãopari:ícuZar,como a de um clínico, um advogado,um
radiologista,um geólogo,um crítico de arte, um marceneiroou um joga- A DIFICULDADE DE CONCEITUAR COLETIVAMENTE
dor de futebol. Os esquemas mais polivalentes estão presentes nas opera-
ções de abstração, generalização, inferência, busca de analogias, descon- Na área das ciências humanas, os pesquisadores têm dificuldades para
textualização e recontextualização comuns a todos os tipos de especializa- chegar a um acordo sobre os modelos de funcionamento cognitivo, sobre
ções. 'lbdavia, a distinção nítida entre essas duas categorias de recursos é as disciplinas, epistemologias, teorias e sobre os métodos de pesquisa em
discutível: clássicana área da inteligência artificial, onde funda a distinção jogo. Essesdesacordose essascontradições faze.mparte do campo científi-
entre base de conhecimentos e motor de inferência, ela é contestada pelas co e não provocam graves conseqüências sobre o funcionamento do mun-
abordagens conexionistas, as quais insistem na colocaçãoem rede em vez do, pelo menos, a curto prazo.
do tratamento de informações por meio de um "processador" No entanto, as coisas são diferentes quando essesconceitos têm vín-
Sendo assim, a concepção das competências como mobilização de culo com as representaçõessociais e norteiam as escolhascurriculares e
recursos cognitivos deixa vários problemas em aberto, em especial os pedagógicas dos atores da educação escolar assim como dos responsá-
seguintes : veis pelos recursos humanos e pela organização do trabalho nas empre'
sas.Nada está totalmente claro no âmbito dos saberes,de sua gênese,
A conceituação e a denominação dos recursos cognitivos: saberes, seusmodos de construção, de conservação, de transformação e uso. En
conhecimentos, capacidades, esquemas,representações,informações, tretanto, "fazemos de conta" que isso acontece.Para ensinar saberes,a
savotr-/abre, etc. escolase contenta com uma psicologia cognitiva de sentido comum. Os
A conceituação e a denominação mais aguda dos múltiplos proces- professores não consideram necessário compreender, de fato, o que acon-
sos de mobilização (ativação, acomodação,transferência, transposi- tece na cabeça do aprendiz.
ção, especificação, coordenação, extrapolação, generalização...). 'Í'rabalhar a transferência, treinar a mobilização, desenvolver as com-
A natureza da gênesee da conservaçãodos "esquemasde pensa- petências: essesnovos desafios exigem uma conceituação mais sofisticada
mento" subjacentes a essesprocessos. e aguçada.Além disso, para fundamentar políticas e programas, essacon-
A questão de saber se esses esquemas de mobilização fazem parte ceituação deve ser comparrÍZhada.
da própria competência ou constituem uma "metacompetência", um Assim, as ciências humanas se deparam com um duplo desafio:
'saber-mobilizar" que é avivado cada vez que uma competência es-
pecífica se manifesta, isto é, quando mobilizamos recursos. Fazer com que coexistam e interajam em seu seio diversos paradig-
O controle metacognitivo que o indivíduo exerce sobre a mobiliza- mas teóricos, iniciar o diálogo entre Piaget, Bruneç VygotskX várela
ção de seus recursos. e vários outros.
A possibilidade de uma educaçãocognitiva e mesmo de uma apren- Propor um consenso provisório bastante simples para ser acessível
dizagem metodológica que otimize a mobilização. aos professores e aos responsáveis pelas escolas. Um leigo que abris-
Os móbiles ou o motor da mobilização, de um ponto de vista energé- se,hoje em dia, um livro de neurociênciasficaria aterrorizado com a
tico, mas também em termos de projeto, intenção, cultura. tecnicidade, com o jarrão, com a abstração, o que o levaria a retornar
ao "velho bom senso" ou a se converter à "gestão mental" ou à PNL
62 . Dolz,Ollagniere cola. O enigma da competência em educação 63

(Programação Neuro-Lingüística), "teorias" desacreditadas pelos pes- MENDELSOHN, P (1996). Le concept de transfért. In Ph. Meirieu, M. DevelaX C. Durand,
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continue (p. 11-20). Lyon: CRDP
Aqui há um duplo desafio: continuar construindo saberessobre os PERRENOUD,Ph. (1995) . Enseigner des savoirs ou développer des compétences: I'école
entre deux paradigmes. In A. Bentolila (Éd.), Savoirs et savoir-paire (p. 73-88).
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cias e compartilha-los em uma escala relativamente ampla. Os pesqui- PERRENOUD, Ph. (1997). Vérs des pratiquei pédagogiques favorisant le transfert des
sadores devem admitir que o debate público, as políticas educacionais, acquis scolaireshors de I'école. Pédagogiecollégiale (Québec),IO (3), 5-16
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de conceitos mais simples que as ferramentas de trabalho de laborató- (p. 53-71). Paria: ESF).
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rio. Em contrapartida, os profissionais têm de admitir que não se pode
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não quer dizer ausência de rigor e de abstração. Não será possível am- voyage.Paras:ESF
pliar o debate sem uma elevação do nível de formação e sem uma coo- PERRENOUD,ph. (1999b). E école saisie par les compétences. Université de Genêve,
peração mais íntima entre pesquisadorese profissionais no tocante a Faculté de psychologie et des sciences de I'éducation.
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3
qualificação ou como se ver livre dela
Marcelle Stroobants

á cerca de quinze anos, a noção de competência prolifera nos ambien-


H tes de trabalho e de formação, e suas aplicações internacionais se
multiplicaram. A crescentefreqüência dessetermo familiar deveria, ao
mesmo tempo, refletir novas práticas e responder a novas exigências
conceituais.
A observação dos efeitos iniciais dessa confusão terminológica, am-
plamente inspirada pela efervescênciadas ciências cognitivas, tem-nos
provocado uma constante perplexidade. A súbita predileção por essano
ção nos anos de 1980 não encontra nenhuma justificativa empírica. As
complexastransformaçõesdas situaçõesde trabalho observadasno de
correr dessa mesma década não se resumem a uma brusca virada no uso
dascompetências. Apesar das ambições relacionadas à noção de compe
tência,ela não parece resultar de um avanço científico nem estar prestes
a produza-lo. A competência tem sido tratada como uma dimensão efeti-
va ou potencial da qualificação, como seu sinónimo, complemento ou
concorrente.O termo flexível e ambíguo continua sendo objeto de tenta-
tivas de esclarecimento, de tateios múltiplos e contraditórios, e seu prin-
cipal modo de existência parece ser vítima de uma intensa atividade de
redefinição. Por outro lado, a propagação da noção parece ter sido mais
favorecida do que travada por sua inconsistência (Stroobants, 1993).
Embora a pertinência e a necessidadedessanoção possam ser coloca-
dasem dúvida, a boa sorte da competência continuou durante a décadade
r
66 Dolz,Ollagniere cais. O enigmada competênciaem educação. 67

de 1990, e seus usos se consolidaram na análise e aplicação das situações OSFUNDAMENTOS DISCUTÍVEIS
de trabalho e formação. Apesar ou devido à polissemia do termo, seu uso DAPROMOÇAODASCOMPETENCIAS
finalmente se fortaleceu. Associadaa práticas concretasde gestão, a com-
petência agora é apresentada como "modelo"; para alguns, ela seria capaz Competênciasinqualificáveis?
de reconfiguraB de modo positivo, as relações sociais (Zarifian, 1997, p.430) .
No entanto, para outros, toda a retórica pseudo-erudita da competência e Muitas vezes, associa-sea noção de competência a uma mutação do
da autonomia tende a tornar insignificantes as atividades às quais ela pre- sistemaprodutivo em respostaa pressõeseconómicasmais fortes (versatili-
tende dar sentido (Le Goff, 1999, p.3). dade dos mercados) e às oportunidades da informatização. Com o objetivo
De maneira mais concreta, a competência se impõe como uma necessi- de flexibilizar a produção, seriam impostas técnicas e organizações também
dade, uma inovação indispensável, uma forma de superar as insuficiências mais flexíveis, concebidas para reduzir os prazos de fabricação. A mobiliza
de um regime obsoleto: o da qualificação. Essaeventualidade se fortalece ção mais intensa dos recursos humanos, valorizando responsabilidade e au-
em sua versão mediática: "Na atualidade, é preciso se render à evidência: tonomia, é apresentada como uma evidente conseqüência da produção des-
um emprego não corresponde necessariamente a um diploma preciso. Cada centralizada, automatizada, com fluxo abundante, conseqüência considera-
vez mais, a competência parece superar o diploma e a qualificação" (Le- da positiva em comparação com as Mrmulas tayloristas e fordistas.
Esseraciocínio formado no final dos anos de 1980 continua sendo atual,
baube, 1997, p.123). Entretanto, será que a correspondência entre forma-
ção e emprego sempre foi evidente? Essapergunta nos incita a aprofundar por meio de alguns refinamentos acrescentados após algumas controvérsias
os fundamentos e as modalidades dessa ofensiva da competência contra o sobre o futuro do trabalho. Assim, nas alas do colóquio "Objetivo competên-
diploma e a qualificação. cias" organizado pelo patronato francês, essesfatores técnicos e económicos
Partimos da hipótese de que a promoção das competências não cons- externos sempre são apresentados como causas do movimento das compe
tências (Movimento das Empresas da França [MEDEF], 1998); entretanto, a
titui a conseqüência lógica das carências de um sistema ultrapassado,
mas uma maneira estratégica de enfraquecê-lo. Em apoio a essahipóte- opinião de especialistas vem acrescentar um ingrediente fundamental - e de
se, tentaremos descobrir o grau de incompatibilidade entre qualifica- pesointernacional: -: o grande crescimento do nível de instrução da popula
ção e competência. Adotaremos uma definição ampliada da qualifica- ção economicamente ativa (MEDEM t. 12, p.36). Esse argumento matiza de
forma considerávelo mecanismo inicial, pois nos faz lembrar de que a de-
ção e passaremos a considerar a equivalência entre as qualidades que
os trabalhadores consideram que possuem e as qualidades que os traba- manda de competências é indissociável da oferta.
lhos requerem.Essaformulação pretenderestituir o caráter socialmen- As implicaçõesdessetipo de raciocínio podem ser percebidasclara-
te construído dessaarticulação e de cada um de seuscomponentes,o mente quando Ginsbourger (1992, p.222) apresenta os resultados de um
julgamento social que intervém em seu reconhecimento respectivo, as- programa de pesquisas:
sim como a construçãoparticular de uma relação entre formação e
emprego Mesmo que possamoscom facilidade substituir "qualidade" A atual mutação do mundo do trabalho,em especialsob o efeito da introdução das
por "capacidade"ou "competência",o termo "julgado" insiste no rótu- tecnologias de informação, implica a valorização de uma crescente parcela de compe-
tências que não estavam codificadas no sistema industrial taylorísta da qualiHcação.
lo, no juízo de valor, e impede assimila-las a características intrínsecas
Ela questiona um modelo de gestão dos empregosbaseado no nível escolar base de
das pessoas ou das tarefas.
medida de diversos conhecimentos explícitos, k)moais, gerais, mensuráveis e testáveis.
A análise que propomos não se baseia em uma nova pesquisa empíri-
ca, masvisa a atualizar a discussãoa partir de um confronto entre contri-
buições recentes, geralmente centradas na experiência francesa.' Em pri- Da tecnologia ao trabalho e do trabalho à qualiHcação, nenhuma relação
é reduzida a cadeias detemtinistas. Da mesma arma, as caracterizações do
meiro lugar, tentaremos verificar quais são os argumentos em prol da pro-
moção das competências e depois recapitularemos os atuais desafios das antigo regime industrial não são menos discutíveis, como demonstraram os
práticas desenvolvidas na área da gestão das competências. debates sobre o pós ou o neo-taylorismo-fordismo.3 Consideremos o que é
apresentadocomo critério de novidade, essadimensão inefável do trabalho:
r
68 . Dolz,Ollagnierecais. O enigma da competência em educação . 69

A transformação da natureza das competências aplicadas na atividade de trabalho managers,no período entre asguerras, tinham de adquira nas busíüesssc/look,
se caracteriza essencialmente pelo reforço do peso assumido pelas competências, de acordo com os conselhos de Mayo e sua equipe (Desmarez, 1986, p.43).
que (ainda não?) podemos prescrevemque (ainda não?) podemos transpor para Nos anos de 1950, a "qualificação social", segundo Tburaine, definia
uma formação, que (ainda não?) podemosavaliam(GinsbourgeB1992, p.223)
capacidades de compreender o sistema social de uma empresa automatiza
da, de participar da realização de seus objetivos, com um staMs reconhecido.
Embora ainda se duvide da possibilidadede prescrevemformal avaliar ou Para Dubar (1996, p.179), essa"qualificação social" está ligada a maioria
apenas definir essas competências, as tentativas de codi6cação já são aplicadas das atuais características das competências. Nesse sentido, as competências
às reformas educativas e às empresas(veB por exemplo, Rapé e 'lhnguX 1994) . sociais seriam qualificações sociais ao quadrado, e esse poder sempre crer
Ehtivamente, na década de 1990, multiplicaram-se as definições de competên- cente do social traz à lembrança as tendências à prcÜssíonaZízação,com as
cia, com a finalidade de prescrevê-las(soba fomta de olãetivos, qualidades confusõesinerentes a esse teFmo.4No entanto, não é suficiente mobilizar
requeridas ou normas ISO, por exemplo), de transpâ-lasa uma fomlação (reh- competências para que elas sejam acompanhadas de um status reconhecido.
renciais de competências) e de avalia-las (por meio dos balanços, entrevistas ou Por fím, a expressão "qualificação social" permitiu que se insistisse sobre a
observação de desempenhos). Sob esse ângulo, as novas competências não maneira como esse rótulo de qualidade contribuiu para legitimar as hierar-
seriam incompatíveis com as codi6caçõescaracterísticasdo antigo sistema. quias salariais (Comissariado Geral do Plano, 1978) . Aqui, o adjetivo "social"
Desde sua origem, as ciênciasdo trabalho não deixaram de mostrar alguns não é aplicado a categorias de qualidades, a comportamentos, mas pretende
sinais de competências inesperadas, desconhecidas ou apenas incompatíveis como evocaro conjunto do sistemasocial, a figura do assalariado,dando origem a
os lemas do trabalho. Na verdade, a prescrição era indissociável das práticas uma abordagem mais ampla da qualificação, como "relação social"
inhmlais, as quais atualmente assinalam "novas" competências. Sabe-se que o Para além das competências "sociais" adquiridas pelos "processos globais
tayloüsmo em estado puro constitui uma abstração; seusprincípios nunca fo- de socialização", também há outras que parecem deixar de lado toda forma-
ram aplicados sem que os executantesde alguma maneira os transgredissem, çãoformal; por um lado, os savoír-:/bifeconsiderados indissociáveisda prática
tomando iniciativas, assumindoresponsabilidades,mostrando-semais autóno- e, por outro, as competênciasditas "cognitivas", procedimentos mentais emi-
mos na prática que na teoria. Portanto, não é de surpreender que essasmanifes- nentemente escolares,cuja aquisição continua sendo incompreendida (Gins-
tações de competências pareçam multiplicar-se ao serem observadas; também é bourgeE 1992, p.228) . Pois bem, a partir do momento em que a qualificação é
surpreendente que essaspráticas, a partir do momento em que são estimuladas considerada como o desafio das lutas dé classe entre grupos sociais, a identifi-
sobretudo pela insistência na prevenção das eventualidades na produção - cação das competências parece ser tributária dessas manobras classificatórias.
entrem em um processode formalização.Por sua vez, essaformalização, na Há bastante tempo, as defasagens entre as competências certificadas
verdade, incompleta, evoca, na falta de algo mais definido, outras competências pelodiploma escolar as adquiridas pelos trabalhadores e as requeridaspelo
aparentemente irredutíveis, até nova ordem. Pareceque, em vez de uma mula posto de trabalho têm sido revistas e analisadas não como perturbações-
ção, temosaqui um novo episódiodessaespéciede dialéticafomtal-informal. que teriam de ser retificadas -, mas como defasagensestruturais, inerentes
às relaçõesentre formação e emprego (Bourdieu e Boltanski, 1975). Dessa
Capacidades sempre mais sociais perspectiva,o sistemaeducativonão teria o monopólio da formaçãodas
competências,mas apenaso de sua certificação. O diploma escolar por ga-
Será que a ruptura viria com essascompetências ditas "sociais"? Esse ter-
rantir uma "competência de direito que pode ou não corresponder a uma
mo abrange comportamentos autónomos, manifestações de iniciativa, atitu-
correspondência de fato", detém um "valor universal e relativamente atem
des motivadas e responsáveis esperadas dos assalariados "atires", bem como
poral", o qual confere certa autonomia aos assalariadosdiplomados, uma
capacidadesde relacionamento ordinárias, com grau zero de empregabilida-
proteçãocoletiva durante a vida inteira, em princípio. A essapossibilidade
de. Esse epíteto "social" - aposto às competências, às qualificações ou a qual-
de transferênciado diploma - e da "competência de direito" - contrapõem-
quer outra construção social - pode parecer redundante. Nesse caso, essas
seas tentativas efetuadas pelas empresas para elaborar algumas denomina-
competênciasparecemtão "sociais"que escapamde toda formaçãoformal
ções(Bourdieu e Boltanski, 1975, p.98). Assim, em pleno reinado da quali-
inicial. Em primeiro lugar deixam de lado as "qualificaçõessociais"que os
ficação,essadiqunção entre "competência de direito" e "de fato" não é con
70 . Dolz, Ollagnler e cais. O enigma da competência em educação 71

siderada uma fraqueza que prenuncia a crise dessaconstrução social, mas Um novo exemplo dessetipo de naturalização é o do repertório opera-
seu modo intrínseco de funcionamento, relativizando antecipadamente seu cional dasprcl/tssõese dosempregose, em particular o volume destinado à
questionamento em nome das competênciasefétivas. "mobi]idade profissiona]" (Agência Naciona] de Emprego [ANPE], 1993) .
Além disso, essa análise permite evidenciar as principais implicações Nele, as oportunidades de mobilidade não são representadas a partir de
decorrentes dessa construção e, portanto, uma parte dos desafios da ofen- uma base de dados baseada em movimentos reais, mas em vias mais abs
siva competência. tratas. Com efeito, considerando os critérios "cognitivos", são definidas e
quantificadas as traletórias entre empregos.Em primeiro lugar. pressupõe-
1) Se a competência "de fato" foi relegada a uma espécie de caixa se que a passagemde um emprego para outro representa uma transferên-
preta, isso se deve ao juridicismo dessa construção social. Essacons- cia de competências; depois, que as competências cognitivas, os procedi-
trução exclusiva não é necessariamentepertinente para o sociólo- mentos mentais e as estratégias de resolução de problemas sejam "transfe
go, nem a separaçãoda qual precede. Em geral, a categorização em ríveis" e, por último, que essa transferência pode ser inferida a partir de
competências reais ou formais, técnicas ou sociais, faz parte dessa competências "transversais", isto é, comuns a diversas atividades. Nesse
construção social, constitui uma matéria a ser analisada, e o pesqui- caso, a análise consiste em representar os empregos de acordo com esses
sador não poderia toma-la emprestadaa título de instrumento de critérios cognitivos, em compara-los e elaborar um mapa das distâncias e
análise sem correr o risco de naturalizar essascategorias. proximidades entre um emprego "fonte" e potenciais empregos-alvo. A partir
2) A relação construída entre o diploma e o posto de trabalho é o desafio dessa base, descobre-se- com alguma surpresa - que um funcionário téc
de lutas nas quais os empregadores- ao contrário dos assalariados- nacodo serviço funerário, por exemplo, dispõe de várias possibilidades de
estão interessados, para limitar o alcance coletivo e o espaço-temporal reconversão,como preparador de fórmulas farmacêuticas,testador sen-
do diploma. Nessesentido, a "formação ao longo da vida inteira", im- sorial, pedicuro, pedreiro, funcionário de empresa de mudanças, etc. Essas
perativo ao qual estariam sujeitos todos os indivíduos - diferentemen- relações são simétricas, mas não necessariamente transitivas (o pedreiro
te do direito à educação permanente -, preconizada em nome da obso- pode reciclar-se em uma empresa funerária e mesmo em uma empresade
lescênciado diploma em uma "sociedadecognitiva", representauma mudanças, mas não pode tornar-se pedicuro). Em contraposição, a área de
orientação estratégicae parcial (ComissãoEuropéia, 1995). mobilidade de um pesquisador no âmbito das ciências humanas é muito
3) A autonomiado assalariadonão decorreda qualidadedascompe mais restrita, pois ele apenas dispõe - apesar da suposta polivalência de
tências aplicadas à sua tarefa, mas do alcance espaço-temporal do seudiploma - de um emprego-alvo (ANPE, 1993). Dessemodo, o método
diploma que atesta, para além da tarefa ou da empresa, competên- parece romper com os parâmetros que organizam os mercadosde trabalho
cias supostamente adquiridas. Portanto, uma competência só pode (tamanho das empresas,ramo, diploma, idade, sexo, experiência profis-
ser transferida pela transferibilidade do título que a atesta. sional e outras "competências sociais") e pretende, de modo explícito, ul-
trapassaros critérios associadosà qualificação. No entanto, esserecuo pa-
OS INEGÁVEIS DESAFIOS DA LOGICA COMPETENCIA rece não passar de um desvio que, em última instância, provoca a natura-
lização da classificação dos empregos: "Com essa abordagem, é possível
Naturalização mostrar que os empregos não-qualificados podem mobilizar tantas compe
tênciascognitivas quanto qualquer emprego qualificado ou muito qualifi
A tentação de apresentar as qualificações como qualidades efetivas cada, só que não se trata das mesmas competências" (ANPE, 1993, p.7).
representa uma regressãoteórica cujos desafios são muito imediatos, pois Dizer que os graus de qualificação correspondem a competênciasdiferen-
se tende a naturalizar os ingredientes de uma construção que envolve for- tes significa, então, basear uma hierarquia profissional na construção pseu-
ças sociais. Nesse caso, a identificação das competências supostamente ad- do-erudita, o que leva a reproduzir de forma singular a hierarquia preexis-
quiridas pela mão-de-obra e supostamente exigidas pelos empregos, assim tente, socialmente construída, que se tentava ultrapassar. Será que a socie
como seu confronto no mercado de trabalho, é assimilada a operações dade que construiu o "sistema industrial taylorista da qualificação" já teria
meramente técnicas, as quais dependem de especialistas. sido, sem sabei essa sociedade cognitiva tão esperada?
72 Dolz,Ollagníere cais. O enigma da competência em educação. 73

Para além da reflexão irónica, é válido analisar as dificuldades para for- Portanto, essagestão por meio das competências corresponde mais a um
malizar as competências "reais", apesar das codificações sociais em vigor Su- problema demográfico que a uma ruptura com a organização taylorista. Sem
postamente, nem o diploma nem a qualificação esgotamtodas as competên- dúvida, as importantes reduções de efétivos dos anos de 1980, conjugadas
cias individuais. No entanto, nenhuma ciência cognitiva parece chegar a essa com o aumento da oferta de formação, contribuíram para bloquear as opoml
conclusão. Como era de se esperar (Stroobants, 1994), a hipótese da transfe- nidades de promoção e a reduzir a presença dos assalariados em numerosos
ribilidade das competências não resiste à análise (Relê 1996) nem à observa- setores. Dentro desse contexto, devem ser compreendidos os discursos sobre a
ção (Benarrosh, 1999). Por outro lado, a mensagemdos pesquisadoresche- lealdade dos assalariados e todas as intervenções destinadas a retribuir os
gou aos empregadores, que passarama admitia para todos os fins úteis (volta- desempenhos, apesar do posto e da antiguidade (Campinos-Dubernet, 1995).
remos a esse ponto), que as competências são testadas na prática (MEDEl! À primeira vista, essamudança de perspectiva parece adotar o sentido da
1998). Portanto, parece que o acessoàs competências dependeria de episódi- reivindicação salarial de reconhecimento das qualificações dos trabalhadores.
os de avaliações escolares e profissionais, como se essascompetências só pu- Essaeventualidade estimulou diversasilusões,como a de que cadaum seria
dessemser invocadas, designadase verificadas por meio da interpretação des- pago por aquilo que "realmente fazia", ou a de que a organização teria de se
ses dispositivos, como se, de forma mais geral, não houvessecompetências adaptar às competências. Somado a isso, seria possível pensar que o sistema
mais reais que as envolvidas nos sistemas de avaliação. Nessesentido, a qua- seria orientado para a função pública, valorizando o diploma e a antigüidade
lificação é que determina a competência, e não o contrário. como indicadores das competências adquiridas. O acompanhamento dessas
Nesseestágio, confirma-se que a competência não representa uma al- experiênciasconfirmou (Stroobants,1998) as dúvidas relacionadasà leitura
ternativa para a qualificação, nem a título de construção conceitual nem do texto do acordo emblemático ('langue 1994). Com efeito, a competência
como construção social. Cabe agora perguntar se a competência, como adquirida, na medida em que deve refletir uma realidade imersa na açãosin-
parte do antigo sistema de qualificação, poderia ser associada a práticas gular distancia-se da denominação controlada para se aproximar da interpre-
capazesde minar essesistema a partir do interior. tação arbitrária. Desvia-sede referências coletivas, como a duração da forma-
ção implicada na qualificação, e objetiváveis, sob a forma da antigüidade e do
A gestão por meio das competências diploma. Outra importante diferença com a qualificação é que a competência
evita as distinções entre categorias para optar pelas particularidades pessoais,
A lógica competência designa uma estratégia de gestão dos recursos hu- fontes de crescente concorrência entre os assalariados.Assim, a identificação
manos inovadora, popularizada pelo célebre acordo A. Cap 2000, assinado no dessacompetência - desempenho, mérito, lealdade e todas as outras "capaci-
âmbito da indústria siderúrgica â'ancesaem dezembrode 1990. A principal dades"para realizar atos talvez exigidos dependerá da parcialidade das ava
inovação anunciada no texto consiste em suscitar uma dinâmica intema que nações,durante um episódioparticularmente seletivo, a entrevistaindividual.
inverte a relação habitual entre a organização do trabalho e as competências. Isolado diante de seu superior hierárquico, o assalariadodeverá, à semelhan-
Com efeito, tradicionalmente uma divisão do trabalho taylorista/fordis-
ça dos funcionários mais importantes, desenvolver as "competências sociais" à
ta permitia uma separaçãoestrita dos postos de trabalho. Essespostoscons- medida dessaavaliação. Essasprovas, que multiplicam e diversificam as con-
tituem uma basepadronizada bastante ampla para negociar na escaladas
dições de promoção e remuneração, também contribuem para intensificar o
categorias, classificações de emprego baseadasnas hierarquias salariais. De trabalho (Gollac e V)lkofC 1996). Quanto às organizações sindicais, elas per-
acordo com essatradição, o princípio da igualdade dos salários para traba- dem uma parte do controle das modalidades da remuneração e se envolvem
lhos equivalentes serve de referência para reproduzir ou transformar a or- cadavez mais na defesa de interessesparticulares.
dem salarial.s A lógica competência pretende ultrapassar essatradição "taylo- Entretanto, a referência às competênciasexigidas - e, portanto, aos
rista", desconectando
o posto de trabalho da valorizaçãoda contribuição postos de trabalho -, continua sendo fundamental, tanto na avaliação das
dos assalariados.Em outros termos, a norma de referência que justifica a funções como nas tra;Jetóriasprofissionais. Em vez de romper com a divi-
hierarquia salarial não se baseadamais no valor atribuído ao posto, mas no são do trabalho e com as tradições de classificação, a lógica competência
valor do indivíduo. Por outro lado, essesatributos individuais - e não a dis- se baseia em um forte trabalho de redefinição das competências exigidas e
ponibilidade de um posto - passariam a condicionar o percurso profissional. em uma recomposição-segmentaçãodos empregos de acordo com a antiga
r
74 . Dolz,Ollagniere cais. O enigma da competência em educação 75

classificação da metalurgia. Portanto, onde está a novidade? Pareceria que, NOTAS


em nome da lógica competência,foram desenvolvidasdiversaspráticas
que contribuem com o enfraquecimento das relações coletivas. 1. 0 interesse pelos savoír:/bife que organizam a transição enfie qualificação e competência
O recurso a procedimentos quantitativos, a critérios de classificação, representou a matéria-prima de nossa tesede doutorado (Stroobants, 1993). Seulado em-
representa uma inovação que remonta às classificações dos anos de 1970, pírico se constituiu de observaçõese pesquisasrealizadasna indústria belga e se baseia
sobretudo em estudos de caso de automatização flexível (máquinas-ferramentas com co-
negociadas na escala da categoria. (tomo destaca Saglio (1999), a origem mando numérico). Os efeitos teóricos foram estudados por meio do acompanhamento dos
e a justificativa das hierarquias salariais não têm relação com os cálculos movimentos de propagação da noção de competência nas ciências do trabalho, nas ciências
realizados pelos técnicos, mas com a decisão negociada coletivamente cognitivas e nas concepções da fomlação. Os resultados desse estudo puderam ser compro-
(p.29). Por isso os métodos de avaliação das competências repertoriadas vados mais tarde, durante o seminário organizado por Rapé e Tanguy (1994). Tendo medi-
do a amplitude da lógica competênciaassociadaao acordoA. Cap 2000, realizamosuma
se tornaram tão sofisticados que, com freqüência, passaram a ser confia-
pequena pesquisa sobre os sistemas de classiHcaçãobelgas (Süootbants, 1998). Desde en-
dos a consultores privados que não divulgam os fundamentos de seu méto- tão, o sucessoconfirmado da noção de competência nos incitou a continuar com o exame
do. Assiste-se,assim, a uma privatização e a uma maior tecnicidade de das publicações, acompanhando principalmente as pesquisasdos sistemasde avaliação. Os
parte do que antes provinha da negociaçãocoletiva. procedimentos que apóiam nossahipótese figuram entre as fontes deste artigo.
Mais do que isso, essasgrades de critérios classificatórios ampliaram 2. O enfraquecimento do vínculo entre diploma e competências supostamente requeridas
as práticas de individualização das carreiras e remunerações.Além de ser- também é apresentadocomo uma tendência internacional. O CEDEFOPorganizou um de-
virem de instrumentos de gestão das trajetórias profissionais, elas se arti- bate sobre essa questão, caos ecos podem ser encontrados na revista européia lbrmadon
proPssíonnneZZe,
n' 1 (1999).
culam aos procedimentos de avaliação das competências individuais (en-
3. Um grande número das práticas associadasà gestãodas competênciasnão se destacapor
trevista individual, carteira de competências,boletim de carreira). A ex-
sua novidade. A polivalência, a descentralizaçãoda organização, a terceirização, o recurso
plosão dos acordos de empresa com essasdisposições (Kogut-Kubiat e Quin- ao mercado íntemo, a qualidade total, todas essassão fómlulas já testadas na história do
tero, 1996) ampliou o movimento geral de descentralizaçãoda negociação trabalho. Já no período entre as duas guerras mundiais, Dubreil (1936) 1ouvava os méritos
coletiva. Por outro lado, a negociaçãopor categoria não foi totalmente das relações cliente-fomecedob desenvolvidas nas fábricas Bata para aliar qualidade e quan-
tidade na produção.
abandonada; porém seu conteúdo se modificou. A classificação dos em-
pregos e os procedimentos de avaliação e de validação continuam sendo 4. Assim. como destacavaNaville (1962), a profissionalização poderia equivaler a uma des-
matérias coletivas, mas a qualificação do trabalhador passou a depender profissionalização, "na medida em que dissocia o staus do trabalhador de seus desempe'
nhos diretos de trabalho"(p.239) .
da apreciação da empresa (Besuccoe 'lãillard, 1999).
5. Ideal que não estimula as lutas de classificação, após as quais, como se sabe,as trabalha-
A incertezasobre a noção de competênciateria podido ser superada
doras, particularmente, com grande freqüência foram desclassiHcadas.
pela negociação coletiva, na medida em que essanegociaçãovisa à transfor-
mação do que é arbitrário em convenções. Em nome do fato de que a compe-
tência só pode ser avaliada na ação, prevaleceuo julgamento unilateral, REFERENCIAS
local e particular Essatendência à descentralização ainda é evidenciada pela
multiplicação das regras e procedimentos produzidos de maneira autónoma
pelas empresas,levando à "criação de um verdadeiro direito interno, prove- AGENCEnationa]e pour ]'emp]oiIANPE] . (1993) . Les abresde mobilité professionnelle.
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