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Da Obra de Rainer Maria Rilke Cartas A U
Da Obra de Rainer Maria Rilke Cartas A U
PERSONAGEM:
O poeta com cerca de 30 anos de idade.
Um quarto íntimo grande, semelhante a um quarto de hotel, desses antigos, por onde não se fica
por muito tempo. Uma poltrona grande, uma escrivaninha. Abajur e um vaso de flores brancas,
tinteiro, caneta e papéis. Malas e baú de viagem espalhados pelo aposento. Duas janelas. Uma
cadeira em frente a uma das janelas. Alguma luz penetra muito tênue no quarto
PRÓLOGO- sonho
VOZ EM OFF – Quem nos desviou assim, para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que
fazemos? Como aquele que, partindo, se detém na última colina para contemplar o vale na distancia
e ainda uma vez se volta e aguarda. Assim vivemos nós, numa incessante despedida.
pobre ou indiferente. Mesmo que se encontrasse numa prisão, cujas paredes impedissem todos os
ruídos do mundo de chegar a seus ouvidos, ficaria sempre sua infância, essa esplêndida riqueza,
esse tesouro de recordações. Volte sua atenção para a infância e reforce assim a sua personalidade.
Se depois dessa volta para dentro brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for
se são bons.
Uma obra de arte é boa quando nasceu por necessidade, nesse caráter de origem está o seu critério,
o único existente.
Sonho
O POETA - É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra, abandonar os hábitos apenas
aprendidos, às rosas e a outras coisas singularmente promissoras não atribuir mais o sentido do vir-
a-ser humano; o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas não mais o ser; abandonar até mesmo o
próprio nome como se abandona um brinquedo partido. Estranho, não desejar mais nossos desejos.
Estranho, ver no espaço tudo quanto se encadeava, esvoaçar, desligado. E o estar-morto é penoso e
quantas tentativas até encontrar em seu seio um vestígio de eternidade. – Os vivos cometem o
grande erro de distinguir demasiado bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem se caminham
entre vivos ou mortos. Através das duas esferas, todas as idades a corrente eterna arrasta. E a ambas
domina com seu rumor.
II.
VOZ EM OFF – Que eu não chame mais este dilema, de um dilema que se instaura entre o amor e o
trabalho. Percebi de uma vez por todas que meu trabalho é amor.
III.
Toque do Mensageiro.
Viareggio, perto de Pisa, Itália, 23 de abril de 1903.
O POETA - Sua carta de Páscoa me disse muita coisa boa a seu respeito. A maneira como fala da
arte de Jacobsen mostra que não me enganei na sugestão de leitura. Concordo com sua opinião
contra os comentários de quem escreveu a introdução deste livro. O senhor tem toda razão. Vou
fazer aqui um pedido: leia o menos possível trabalhos de estética e crítica. Ou são opiniões
partidárias petrificadas e tornadas sem sentido em sua rigidez morta, ou hábeis jogos de palavras
inspirados hoje numa opinião, amanhã noutra. É sempre a si mesmo e a seu sentimento que deve
dar razão contra toda explicação, comentário ou introdução dessa espécie. Mesmo que se engane, o
desenvolvimento natural de sua vida interior o levará devagar e, com o tempo, a outra compreensão.
É preciso deixar amadurecer cada impressão e cada germe de sentimento, no âmago de si, nas
trevas do inconsciente, num lugar inacessível a seu próprio intelecto. Aí o tempo não serve de
medida: um ano nada vale, dez anos não são nada. Ser artista não significa calcular e contar, mas
sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranqüila as tempestades da
primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só
para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a
eternidade. Aprendo diariamente em meio a dores a que sou agradecido: a paciência é tudo. Quanto
a meus livros, mal publicados meus livros não me pertencem mais. Eu mesmo não posso comprar,
nem dar, portanto – como gostaria de fazer. Por isso escrevo num papel os títulos e os editores de
meus livros mais recentes. Deixo a seus cuidados encomendar alguns deles.
Silêncio.
sonho -
Não sei porque não consigo deixar de dormir de janela aberta. Bondes passam disparando pelo meu
quarto, apitando. Automóveis rodam sobre mim. Uma porta bate. Uma vidraça parte-se em algum
lugar, tilintando, ouço os grandes cacos de vidro dando risadas, os menores dão risadinhas. Depois,
de súbito, um ruído surdo do outro lado, dentro da casa. Alguém vem subindo a escada. Vem vindo,
vem vindo sem parar… Chega, pára longo tempo, depois passa. Novamente a rua. Uma moça grita:
Ah tais-toi, je ne veux plus. O bonde vem correndo, todo excitado, e passa por cima de tudo.
Alguém chama. Pessoas correm passando umas pelas outras. Um cão late. Que alívio: um cão…
Pela madrugada até um galo canta; isso traz um bem-estar...... Esses são os ruídos. Aqui, porém,
existe algo mais terrível: o silêncio. Acho que nos grandes incêndios por vezes irrompe um
momento assim, de máxima tensão. Recolhem-se os jatos d’água, já não há bombeiros trepados em
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suas escadas, ninguém se mexe. Lá em cima, um madeirame negro desliza quieto para diante, e,
também sem ruído, inclina-se um alto muro, atrás do qual prossegue o fogo. Tudo se imobiliza,
ombros encolhidos, rostos retraídos sobre os olhos, aguardando o golpe terrível.
Assim é o silêncio nesta casa.
Toque do Mensageiro.
IV.
V.
Toque do Mensageiro.
Roma, 23 de dezembro de 1903.
O POETA - Não quero que fique sem uma saudação minha pelo Natal, quando, no meio da festa,
carregar a sua solidão mais dificilmente do que nunca. Mas, se verificar, nesse momento, que a sua
solidão é grande, alegre-se com isso. O que seria uma solidão que não tivesse grandeza? – faça essa
pergunta a si mesmo. Quase todos, em certas horas, gostariam de trocá-la por uma comunhão
qualquer, por mais banal e barata que fosse; por uma aparente concordância com quem quer que
seja; com a pessoa mais indigna. Mas tudo isso não deve desorientá-lo. O que é necessário, no
fundo, é isso: Fazer uma viagem interior, não encontrar ninguém durante horas – eis o que se deve
saber alcançar. Estar sozinho como se estava quando criança, enquanto os adultos iam e vinham,
ligados a coisas que pareciam importantes e grandes, porque esses adultos tinham um ar tão
ocupado e porque nada se entendia de suas ações. Se depois um dia a gente descobre que suas
ocupações são mesquinhas e suas profissões petrificadas, sem ligação alguma com a vida, por que
não olhar para eles como uma criança olha para uma coisa estranha, das profundezas de seu próprio
mundo, dos longes de sua solidão? Por que querer trocar a sábia não-compreensão de uma criança
pela atitude defensiva e pelo desprezo (uma vez que a não-compreensão é estar sozinho, ao passo
que a atitude defensiva e o desprezo equivalem a tudo o se quer afastar?) Pense, caro senhor, no
mundo que leva em si e chame o seu pensamento como quiser: reminiscência da sua própria
infância ou saudade do futuro – o que importa é que os seus acontecimentos interiores merecem
todo o seu amor; neles deve trabalhar e não perder demasiado tempo e coragem em esclarecer sua
posição perante os outros. Quem disse, aliás, que o senhor tem que ter uma posição? Eu sei, sua
profissão é dura, cheia de contradições; previ sua queixa e sabia que ela viria um dia. Agora que
chegou não posso tranqüilizá-lo, mas apenas aconselhar que examine se todas as profissões não são
assim cheias de exigências, de hostilidade contra o indivíduo, como que ensopadas do ódio
daqueles que, mudos, resmungando, tiveram de se conformar com o simples dever. O que agora
deve experimentar, em sua qualidade de oficial, teria sentido em qualquer das profissões existentes.
Mesmo que, fora de qualquer posto, tivesse procurado apenas contatos leves e independentes com a
sociedade, este sentimento de opressão não lhe seria poupado. Por toda parte as coisas são assim.
Mas isso não é motivo de angústia ou tristeza. Não tendo nenhuma comunhão com os homens,
procure ficar perto das coisas, que não o abandonarão. Ainda há as noites e os ventos que passam
pelas árvores e percorrem muitos países. No mundo das coisas e dos bichos tudo está ainda cheio de
acontecimentos de que o senhor pode participar. As crianças são ainda como o senhor era quando
criança, tão tristes e tão felizes – e, quando pensar na sua infância, torne a viver entre elas, as
crianças solitárias: os adultos voltarão a não ser nada, e suas dignidades não terão nenhum valor. Se
for angustiante pensar na sua infância, na simplicidade e no silêncio ligados a ela, porque o senhor
não mais acredita em Deus que lá estava por toda parte, então pergunte a si mesmo, caro Sr.
Kappus, se realmente terá perdido a Deus. Não será, antes, que o senhor nunca o possuiu? Aliás,
quando teria isso acontecido? É possível que uma criança possa segurá-lo, a Ele, que os homens só
suportam com esforço e cujo peso esmaga os anciãos? É possível que alguém que realmente o
possui possa perdê-lo como se perde uma coisa qualquer? Se porém reconhece que Ele não existia
na sua infância, nem antes; se admite que Cristo foi deslumbrado por sua missão e Maomé
enganado por seu orgulho; se percebe com certo temor que Ele não existe nem mesmo nesta hora
em que falamos d'Ele – que coisa então o autoriza a sentir a falta de alguém que nunca existiu e a
procurá-lo como se estivesse perdido? Por que não pensar que Ele é o vindouro, aquele que está por
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vir desde a eternidade, o futuro, o fruto final da árvore de que nós somos as folhas? Se Ele é o mais
perfeito, não deve ter havido algo menor antes d'Ele. Não deverá ser Ele o último, para encerrar
tudo em si? Que sentido teria a nossa vida se Aquele a que aspiramos já tivesse sido? Como as
abelhas reúnem o mel, assim nós tiramos o que há de mais doce em tudo para o construirmos.
Começamos pelo pormenor, por algo insignificante – desde que feitos com amor –depois pelo
trabalho e pelo repouso, por um silêncio ou por uma pequena alegria íntima iniciamos Esse que não
podemos compreender, do mesmo modo que os nossos antepassados não puderam compreender a
nós mesmos. No entanto, esses seres há muito desaparecidos estão em nós, pesando sobre nosso
destino, zumbindo em nosso sangue. Existe algo que possa tirar a esperança de estar futuramente
n'Ele, no mais longínquo, no extremo? Festeje o Natal, caro sr. Kappus, com o sentimento de que
talvez Ele, para começar, aguarde do senhor justamente essa angústia de viver. Talvez justamente
esses dias de transição sejam o tempo em que tudo no senhor trabalha n'Ele, como outrora, quando
criança o senhor n'Ele trabalhou palpitante. Tenha paciência e boa-vontade e lembre-se que o
mínimo que podemos fazer é não Lhe resistir mais do que a terra resiste a primavera quando esta se
aproxima. E tenha fé.
…
Sinos de Igreja. Silêncio.
SEGUNDO ATO
VI.
O POETA – Dos versos seus que tenho lido são estes os melhores. Ofereço esta cópia, porque sei
como é importante rever um trabalho próprio escrito com a letra de outra pessoa. Leia os versos
como se fossem alheios e no fundo da alma sentirá como são seus. Sobre a sua carta, não se deixe
enganar em sua busca porque existe algo aí querendo fugir dela. As pessoas resolveram tudo
facilmente e pelo lado mais fácil. Mas tudo o que é vivo se agarra ao difícil, tudo na natureza cresce
e se defende, segundo a sua maneira de ser; e procura existir a qualquer preço e contra qualquer
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resistência. Sabemos pouca coisa, mas que temos de nos agarrar ao difícil é uma certeza que não
nos abandonará. É bom estar só, porque a solidão é difícil. O fato de uma coisa ser difícil deve ser
um motivo a mais para que seja feita. Amar também é bom: porque o amor é difícil. O amor de uma
pessoa por outra talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi dada, a maior e última prova, a obra
para a qual todas as outras são apenas uma preparação.
VOZ EM OFF – Lou, gosta de rosas? Parece-me que todas as rosas do mundo florescem para ti e
graças a ti.
O amor é um período para trabalhar em si mesmo, uma ocasião sublime para o indivíduo
amadurecer. O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra
pessoa. Que sentido teria a união com algo não esclarecido, inacabado, dependente? Essa comunhão
é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana nem seja o suficiente. Aí está o erro tão
grave e freqüente daqueles cuja juventude se mistura com a impaciência – atiram-se uns aos outros
tais como são com seu desgoverno, sua desordem, sua confusão. Depois procuram se salvar,
agarrando-se a uma das inúmeras convenções que se oferecem a todos nesse caminho. Nenhum
terreno da experiência humana, aliás, é tão cheio de convenções como este, toda espécie de refúgios
preparados pela opinião que, inclinada a considerar a vida amorosa um prazer, teve de torná-la fácil,
barata, sem perigos e segura. Mas aqueles que amam sem preservarem o que é seu, sentem o peso do
erro cometido. Sua natureza lhes diz que as questões do amor não podem ser resolvidas
publicamente, como se houvesse um acordo qualquer sobre o assunto; são perguntas íntimas feitas
diretamente de um ser humano para outro, que em cada caso exigem outra resposta, específica,
estritamente pessoal. Mas como podem eles, que não mais se delimitam nem se distinguem, quer
dizer, nada mais possuem de seu, encontrar uma saída em si mesmos, no fundo de sua solidão já
derramada? Eles agem num desamparo comum e, ao quererem evitar com a maior boa vontade do
mundo a convenção que lhes ocorre – como o casamento –, vão dar em outra solução menos
clamorosa, mas de um convencionalismo não menos mortal. Tudo o que parte de uma comunhão
mal coagulada é convencional, a própria separação seria aí um passo convencional, uma decisão
fortuita e impessoal, sem força nem fruto.
Como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não foi encontrado até hoje uma luz,
uma solução, um aceno ou um caminho... As exigências feitas à nossa evolução pela difícil tarefa do
amor são sobre-humanas e, quando estreantes, não podemos estar à altura delas. Mas se aceitarmos
esse amor como um período de aprendizado em vez de nos perdermos no jogo fácil e leviano atrás
do qual os homens se escondem da questão mais grave de sua existência – então, talvez, um dia, um
leve progresso e alguma facilidade sejam experimentados por aqueles que chegarem muito tempo
depois de nós, e isso já será muito. Ainda mais: não pense que o grande amor que um dia fez parte
da sua adolescência, tenha-se perdido. Lembre-se no quanto amadureceu desde então e como a
solidão que sentia moldou o que o senhor é hoje. …
Silêncio.
VOZ EM OFF - Tira-me a luz dos olhos: continuarei a ver-te/ Tapa-me os ouvidos, continuarei a
ouvir-te/ E embora sem pés caminharei para ti /E já sem boca poderei ainda invocar-te./Arranca-me
os braços: continuarei abraçando-te / Com o meu coração…/Arranca-me o coração: ficará o
cérebro / E se o cérebro me incendiares também por fim/ Hei-de então levar-te no meu sangue...
Sino
VII.
interior. E se o seu ser não se modificou enquanto estava triste. Só são perigosas e más as tristezas
que levamos por entre os nossos para prejudicá-los. Como as doenças tratadas superficialmente e à
toa, elas se escondem e, depois de leve pausa, irrompem ainda mais terríveis. Juntam-se no fundo
da alma e formam uma vida não vivida, repudiada, perdida, de que se pode até morrer. Se nos fosse
possível ver além dos limites de nosso saber, talvez suportássemos nossas tristezas com maior
confiança que nossas alegrias. São esses os momentos em que algo de novo entra em nós, algo
desconhecido: nossos sentimentos se calam tímidos, tudo em nós recua, levanta-se um silêncio, e a
novidade, que ninguém conhece, ergue-se aí, calada, no meio. É por isso que a tristeza também
passa: a novidade em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, penetrou no seu mais íntimo
recanto. E mesmo ali já não está mais – já passou para o sangue. Não sabemos o que houve.
Simplesmente nos fariam crer que nada aconteceu; no entanto, ficamos transformados, como se
transforma uma casa em que entra um hóspede. Não podemos dizer quem veio, talvez nunca o
venhamos a saber, mas muitos sinais indicam que é o futuro que entra em nós dessa maneira para se
transformar em nós mesmos.... Quanto mais silenciosos, pacientes e receptivos formos quando
estamos tristes, tanto mais profunda e imperturbável entra a novidade em nós, tanto mais ela se
tornará nosso destino. É preciso reconhecer, aos poucos, que isso que chamamos destino sai de
dentro dos homens em vez de entrar neles. Como os homens durante muito tempo se iludiram
acerca do movimento do sol, assim se enganam ainda em relação ao movimento do que está para
vir. O futuro está firme, caro Sr. Kappus, nós é que nos movimentamos no espaço infinito. Como,
pois, não seria difícil esse nosso caminho? ....
Por isso temos que aceitar a nossa existência em toda a plenitude possível; tudo, inclusive o
inaudito, deve ser possível dentro dela. No fundo, só essa coragem nos é exigida: a de sermos
corajosos em face do estranho, do maravilhoso e do inexplicável com que podemos nos deparar.
Por serem os homens covardes nesse sentido, a vida foi imensamente prejudicada. As experiências
a que chamamos de “aparecimentos”, todo o pretenso mundo “sobrenatural”, a morte, todas essas
coisas tão próximas de nós têm sido tão excluídas da vida, por uma atitude defensiva cotidiana, que
os sentidos com os quais poderíamos apreendê-las se atrofiaram. Não, eu nem falo de Deus. Mas o
medo do inexplicável não empobreceu apenas a existência do indivíduo, como também as relações
de homem para homem. Não é apenas a preguiça que faz as relações humanas se repetirem numa
indizível monotonia em cada caso; é também a timidez diante do novo, do incalculável, diante do
qual não nos sentimos bastante fortes. Se imaginarmos a existência do indivíduo como um quarto
mais ou menos amplo, veremos que a maioria não conhece senão um canto do seu quarto, um vão
de janela, uma faixa no chão por onde caminham para lá e para cá, para assim possuir certa
segurança. É muito mais humana aquela perigosa incerteza que faz os prisioneiros dos contos de
Edgar Allan Poe tatearem as formas de suas terríveis prisões e não desconhecerem os horrores de
sua permanência ali. E no entanto, nós não somos prisioneiros. Não há ao redor de nós armadilhas e
laços, nada que nos deva angustiar ou atormentar. Estamos colocados no meio da vida como no
elemento que mais nos convém.
Nosso mundo não está contra nós. Havendo nele terrores, são os nossos terrores; abismos, eles nos
pertencem; perigos, devemos procurar amá-los. Como esquecer aqueles mitos antigos que se
encontram no começo de cada povo: os mitos dos dragões que num momento supremo se
transformam em princesas? Talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas que aguardam
apenas o dia de nos ver belos e corajosos. Talvez todo horror não passe de um desamparo que
implora o nosso auxílio.
…
Silêncio.
Talvez, querida Lou, talvez… Mas minha situação não está bem pior do que se fosse preparada no
âmago do meu ser, uma vez que eu me desenvolvi até formar algo também estagnado? O intervalo
de um ano separa o meu poema “Narciso” e o poema do outro dia, que lhe enviei. De um ano
apático e, quando eu olho para trás, tenho a impressão de estar como estou aqui, porém mais
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entorpecido ainda, mais impenetrável, mais morto. Até que semelhante tarefa me faça somente
levantar o braço; mas com tal rapidez ele recai e eu fico sem poder me restabelecer. Meu corpo se
tornou semelhante a uma armadilha; aí, onde ele recebia para transmitir, ele engana e prende;
superfície cheia de armadilha, na qual impressões agitadas desfalecem, zona congelada incondutível
e, nas profundezas mais recuadas, como no seio de um astro resfriado, o fogo maravilhoso que
quase não pode mais jorrar de maneira vulcânica, aqui e ali, em fenômenos que, pela indiferente
aparência, são como uma devastação, semeando a confusão e o perigo. Esta decomposição da vida
em três zonas, na qual a mais superficial exige excitações pelo que ela não pode mais ser atingida
nem sacudida pela violência de forças internas, não é o esquema de uma doença real. Ah! eu era um
em minha juventude, apesar de todas as minha angústias. Sem dúvida irreconhecível no conjunto,
mas logo totalmente reconhecível, levado a sério. Mau até a vileza e, no entanto, tão
misteriosamente apto, também, à cura. Uma alegria pairava em meu rosto, no mesmo instante que
investigava a mais secreta região de minha alma; eu respirava o ar matinal, ele me embriagava... e a
leveza e a maneira de andar inicial da manhã galgavam todos os degraus de minha natureza; se
algumas vezes eu degustava um fruto, ele se derretia sobre minha língua, e era, semelhante a uma
palavra do espírito, que se liquefazia, a sensação de seu indestrutível efeito em si mesmo, e o puro
prazer deste fruto excitava com uma igual intensidade todos os vasos visíveis e invisíveis de
minh’alma…
Toque do Mensageiro.
Mostrar a um médico este corpo, cheio que está de não ser usado, eis que, afinal de contas, será a
única saída. Não a um psicanalista… mas melhor mostrar a um médico… que a partir do corporal
saberia segui-lo bem longe até ao espiritual.
Toque do Mensageiro.
Eu lamento não poder estar aí desde já, pois aqui eu me atormento como um cachorro que tem um
espinho enterrado no pé e que manca e que se lambe, e que, a cada vez que ele apóia seu pé, não é
mais cachorro, mas espinho, alguma coisa que ele não compreende nem saberia ser.
Toque do Mensageiro.
Estou aprendendo a ver. Não sei o que provoca isso, tudo penetra mais fundo em mim, e não pára
no lugar em que costumava terminar antes. Tenho um interior que ignorava. Agora tudo vai dar aí.
E não sei o que aí acontece. Hoje escrevi uma carta e me ocorreu que faz apenas três semanas que
estou aqui. Três semanas em outro lugar - por exemplo, no campo - poderiam ser como um dia;
aqui são anos. Também não quero mais escrever cartas. Para que diria a outra pessoa que estou me
modificando? Se me modifico, já não sou aquele que fui, sou algo diferente do que até agora era,
então é evidente que não tenho conhecidos. E é impossível escrever cartas para gente desconhecida,
gente que não me conhece.
Estou aprendendo a ver. Será que já contei isso?
VIII.
Se um ser humano deve a outro uma qualquer dádiva muito preciosa, tal agradecimento deve
permanecer um segredo entre eles. Talvez de nada sirva que eu analise palavra por palavra a sua
longa carta. O que poderia dizer acerca de sua tendência para a dúvida ou de sua incapacidade de
harmonizar a vida externa e a interna, ou tudo aquilo que o oprime ainda, seria sempre a repetição
do que já disse: é preciso ter paciência em si para suportar, simplicidade para crer e confiar cada vez
mais no que é difícil, sobretudo na solidão. No mais, deixe a vida acontecer. Acredite: a vida tem
razão em todos os casos. Tudo o que pode pensar a respeito de sua infância é bom. Tudo o que o
torna algo mais do que foi até agora em suas melhores horas é bom. Toda intensificação é boa,
quando está em todo o seu sangue, quando não é turva ebriedade, mas alegria cujo fundo se vê.
Compreende o que quero dizer? Sua dúvida pode se tornar uma qualidade se o senhor a educar.
Deve-se transformar em saber, em crítica. Cada vez que ela quiser estragar uma coisa sua, pergunte
a ela: por que aquilo é feio? Exija provas, examine; talvez a deixe indecisa e confusa, talvez
revoltada. Mas não ceda, exija argumentos. Passe a agir assim, atenta e conseqüentemente, cada
vez, e dia virá em que, de destruidora, a sua dúvida se tornará sua melhor colaboradora, talvez a
mais sábia de todas as que cooperam na construção de sua vida. Eis tudo o que lhe posso dizer hoje,
caro sr. Kappus.
IX.
…
Silêncio.
Ó árvores da vida, quando atingirão o inverno? Ignoramos a unidade. Não somos lúcidos como as
aves migradoras. Precipitados ou vagarosos nos impomos repentinamente aos ventos e tornamos a
cair num lago indiferente. Conhecemos igualmente o florescer e o murchar. No entanto, em alguma
parte, vagueiam leões ainda, alheios ao desamparo enquanto vivem seu esplendor. Nós, porém,
quando pensamos totalmente o Uno, logo sentimos o lastro do Outro. A hostilidade aguarda, muito
perto. Os amantes não hesitam, sem cessar, entre limites – eles que aspiravam refúgio, espaço,
busca? Compõe-se, então, para a fugitiva imagem de um momento um fundo de oposição, para que
penosamente a possamos ver; que clareza é (proporcionada) dada a nós que ignoramos o contorno
da sensação, aderidos ao exterior de sua forma. – Quem desconhece a angustiosa espera diante do
palco sombrio do próprio coração? Olhem: ergue-se o pano sobre o cenário de um adeus. Fácil de
compreender. O jardim habitual a oscilar ligeiramente. Só então aparece o bailarino. Ele não. Basta.
E enquanto se move com desenvoltura, muda de aspecto; torna-se um burguês e entra na casa pela
porta da cozinha. Não quero essas máscaras ôcas, prefiro o boneco de corpo cheio. Susterei o títere,
os corcéis e o rosto feito de aparência. Estou aqui, à espera. Ainda que as lâmpadas se apaguem,
ainda que me digam: “acabou-se”, - ainda que do palco se evole o vácuo na corrente de ar cinzento,
ainda que os antepassados silenciosos não estejam ao meu lado, nem mulher, nem mesmo a criança
de olhos castanhos e estrábicos, - ficarei à espera. Sempre há o que ver. Não tenho razão? Tu, que
por mim provaste a amargura da vida, pai, penetrando a minha, tu, que provaste a infusão turva de
meu destino, quando ao teu lado crescia e, inquieto pelo ressaibo de futuro tão estranho, puseste à
prova meu olhar velado ainda; - tu, meu pai, que desde que morreste, tantas vezes na esperança que
levo em mim, tens medo, e que por meu destino incerto abandonas a serenidade dos mortos, reino
de serenidade, – não tenho razão? Não tenho razão, mãe? Mãe, mãe? E tu – não tenho razão? – tu
que me amaste pelo tímido início de amor que eu tinha e do qual me evadia, pois o espaço que
amava em teu rosto em espaço cósmico se transformava. – Enquanto aguardo diante do palco dos
títeres, – não, quando me transformar inteiramente num intenso olhar, um Anjo surgirá para refazer
o equilíbrio, como o ator que anima os títeres. Anjo e boneco: haverá por fim espetáculo. Congrega-
se então o que, sem cessar, nossa existência mesma desagrega. E nasce das nossas estações o ciclo
da transformação total. Muito acima de nós, o Anjo brincará.
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Silêncio.
EPÍLOGO
Agora volto a estar sozinho. Recordo-me de quando, aos dez anos, saí de casa cheio de mimos...
Quando era criança, estive uma vez na Itália. Não me lembro de muita coisa. Mas quando lá no
campo se pergunta a um agricultor: “A que distância fica a próxima aldeia?”, ele responde: “um
mezza ora”. E o seguinte diz o mesmo e o terceiro também, como se o tivessem combinado. E anda-
se o dia todo, sem se conseguir chegar à aldeia. É assim que acontece na vida. Mas no sonho está
tudo muito perto. Aí não há medo. No fundo, nós somos feitos para o sonho, não temos os órgãos
necessários à vida. Somos como peixes que querem a todo o custo voar.
Para que sempre essas tentativas?
…
FIM
Traduções consultadas: Paulo Rónai, Pedro Süssekind e Fernando Jorge – Português e Reginald
Snell e B. D. Herter Norton – Inglês.
Os trechos das obras a seguir, foram adaptados a partir dos seguintes tradutores: “Elegias de
Duíno”, Dora Ferreira da Silva, “Os Cadernos de Malte Laurids Brigge”, Lya Luft, “Ewald Tragy”,
Claudia Fischer, “O Testamento”, Tércio Redondo.