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ĀCĀRYA

Reflexões ao professor de Yoga


Diego Koury
AMEY

1
“O Yoga deve ser aprendido pelo Yoga, o Yoga se manifesta pelo Yoga...”
Vyāsa YB III.6

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AGRADECIMENTOS A MEUS PROFESSORES

Inauguro este trabalho reverenciando aqueles que me ensinaram tudo o que sei sobre
Yoga. Também acho justo com quem lê informar a origem de minhas bases. Em minha
caminhada dentro desta cultura eu tive o privilégio de entrar em contato com diversos
professores de Yoga, porém nem todos foram, de fato, meus professores.

Entre outras definições, professor é aquele ou aquela que estabelece uma relação
direta e íntima com seu aluno, que acolhe suas carências e identifica suas
potencialidades. Que evoca no outro a vontade de aprender e se responsabiliza em
guiá-lo através de uma troca sincera e sem medir outros valores que não sejam o bem
de seu aprendizado.

Neste sentido, tive pessoas especiais em minha vida. Paulo Ricardo Almeida, o
Paulinho, foi meu primeiro professor. Ele era aluno de José Hermógenes. Hermógenes
iniciou sua trajetória no Yoga no final da década de cinquenta, sendo autodidata e
posteriormente se aprofundou na Índia. Suas experiências e sensibilidade se
materializaram em diversos livros e em uma maneira gentil e espiritualizada de se
aplicar as técnicas de Yoga. Paulinho iniciou sua jornada no Yoga ainda jovem. Além de
estudar Yoga e Vedānta, é formado em psicologia. Frequentei suas aulas regularmente
de 1993 a 1997. Nossa amizade e minha profunda admiração por ele ainda me
proporcionam muitos aprendizados.

A partir de 1997, minha mãe começou a ser instruída pelo professor Danilo Satya
Losso, que também me acolheu como aluno com todo seu carinho. Com Danilo,
trabalhamos uma abordagem mais intensa de se praticar āsana, a prática regular de
prāṇāyāma, mantra e aos valores que formam as bases do Yoga, conforme suas
próprias escrituras. Danilo instruía com bastante seriedade. Dizia estar me preparando
para que um dia eu me tornasse professor. Em junho de 2001, para minha surpresa,
ele me colocou para ministrar uma de suas turmas. Sua fé ardente pelo Yoga é uma
inspiração para mim.

Em abril de 2003, por sugestão de Paulinho, conheci o trabalho de Deborah Weinberg.


Deborah ensina Yoga segundo BKS. Iyengar e com ela aprendi caminhos importantes
para ajudar a direcionar minha prática pessoal de āsana, assim como instruir meus
próprios alunos.

Em agosto do ano de 2002 conheci Kausthub Desikachar, filho de TKV. Desikachar e


neto de T. Krishnamacharya. Kausthub me ajudou a conseguir uma bolsa de estudos
no instituto de Yoga fundado por seu pai em 1974, o KYM, Krishnamacharya Yoga
Mandiram. Lá tive a oportunidade de conhecer professores generosos e qualificados,
como Saraswathi Vasudevan, Sundar Ganesan, Ms. Rada, Shivarama, S. Sridharan. E a
oportunidade de ter aulas com TKV. Desikachar e seus familiares.

Esse contato construiu o que considero ser minha base sobre a pedagogia do Yoga. Foi
também no KYM que em abril de 2007 iniciei meus estudos com Sangeetha Kannan,
minha mentora.

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A todos eles minha mais profunda gratidão.

Sangeetha em dezembro de 2017, na Argentina

Obrigado Laura Chaloub, Guilherme Costa e Mateus Thompsom pela carinhosa


revisão deste texto. Obrigado Bruno Big pela arte da capa.

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Nota

O GÊNERO DOS TERMOS EM SÂNSCRITO

Peço licença para utilizar alguns termos em sânscrito mantendo seu gênero no
masculino. A razão é simples: é assim que eles aparecem com maior frequência nos
textos de Yoga. Essa observação é importante por diferentes motivos.

O mais controverso é a utilização do gênero masculino para nomear posições que hoje
são ocupadas em sua maioria por mulheres. Atualmente existem mais praticantes
mulheres e professoras do que praticantes homens e professores.

Mas nos textos mais conhecidos do Yoga o gênero masculino prevalece. Muitas
escrituras de Yoga foram elaboradas por linhagens compostas exclusivamente de
homens. Além disso, durante séculos as mulheres foram impedidas de ter acesso a
certos conhecimentos, como ocorre até hoje em sociedades machistas. Essas razões
fizeram com que os termos “professor” e “praticante” de Yoga, por exemplo, se
consolidassem muito mais no gênero masculino do que no feminino.

Sabemos que essa exclusão não ocorria no passado remoto. O texto YogaYājñavalkya
saṁhitā é um dos textos mais ancestrais do Yoga, sendo uma referência mais forte
para Krishnamacharya do que os textos de Haṭhayoga. Nele, o sábio Yājñavalkya
instrui Gārgi, que é uma mulher, descrita como a mais sábia entre os sábios ali
presentes. Pelos versos I.6 e 7 fica claro que existia uma igualdade entre os gêneros
naquela época e contexto.

Particularmente a utilização dos nomes no gênero masculino não é tão confortável


para mim, principalmente o termo ācārya, professor, já que minha mentora é uma
mulher.

Isso parece nunca ter gerado desconforto nela. Quando lhe perguntei sobre a
predominância do gênero masculino nos termos em Yoga, ela disse ser uma questão
cultural que se perpetuou de tal maneira que se convencionou falar no gênero
masculino. Ela disse não ligar tanto, pois na prática hoje são as mulheres as mais
aplicadas praticantes e professoras. Sem elas, o Yoga não se propagaria.

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INTRODUÇÃO AO ESTUDO

Toda cultura, por mais consolidada que possa parecer, recebe a influência do
movimento dinâmico do tempo. Sendo assim, inevitavelmente sofre modificações
durante o passar das gerações. No entanto, quando suas raízes estão fortemente
estabelecidas, sua base se preserva. Isso garante sua unidade e identidade.

Então, mesmo passando por novas contextualizações, essas pequenas mudanças são
as marcas do tempo sobre um núcleo que se mantém preservado. A base da cultura do
Yoga é a relação entre professor e aluno. Se isso se perde, o Yoga se torna em uma
outra coisa.

O Yoga, por ser uma cultura ancestral, inevitavelmente passou por diversas fases, mas
preservou sua essência graças a continuação de seu sistema de ensino, que é
justamente a relação direta entre professor e aluno.

As ideias trazidas neste trabalho são uma tentativa de ressaltar a importância desse
pilar. E espero que as reflexões que elas possam gerar ajudem a clarear o papel do
professor de Yoga e seus recursos.

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CAPÍTULO I – REFLEXÕES

1. yogi, sādhaka, guru e ācārya

YOGI

Atualmente o termo yogi é popularmente utilizado para definir aqueles que praticam
técnicas de Yoga. Ou assim se auto intitulam aqueles que incorporam a suas vidas os
principais valores desta tradição.

Embora o termo seja largamente utilizado, as descrições de um yogi, seja nos textos ou
nos relatos de grandes mestres, demonstram características que são raras a serem
atingidas.

Ser yogi vai bem além da afeição com os valores do Yoga e da aplicação, mesmo que
bem realizada e assídua, de suas técnicas.

Segundo Desikachar, T. Krishnamacharya afirmava ser praticamente impossível ser um


verdadeiro yogi na atual era.

Os versos escolhidos abaixo nos ajudam a entender o porquê desta afirmação.

DESCRIÇÃO DO YOGI SEGUNDO YOGAYĀJÑAVALKYA SAṀHITĀ

Yājñavalkya explica que o yogi possui o prāṇa contido e em equilíbrio em seu corpo.
Ter o prāṇa contido no corpo, e não disperso fora dele, significa que a mente está
estável, principalmente a mente sensorial (manas) e os vāyu-s funcionando
adequadamente. [YogaYājñavalkya saṁhitā IV.9 e 10]

O processo apresentado pelo sábio para a conquista do movimento do prāṇa, que


representa também a conquista de estabilidade mental e sensorial, ocorre pela
regulação do agni. Agni é o fogo que representa o equilíbrio do metabolismo, que
pode ser estabilizado por certas práticas.

Isso mostra um percurso possível, mas que não é simples. Para que ele ocorra é
necessário uma dedicação e precisão impecável.

Também nos primeiros versos do YogaYājñavalkya saṁhitā encontramos uma


descrição do sábio Yājñavalkya. Na visão de Krishnamacharya, essa descrição resume
todas as qualidades de um yogin e ācārya qualificado.

“Yājñavalkya era o melhor entre os sábios, onisciente e era sem defeito devido ao
conhecimento. Ele era bem versado nos princípios de todos os ramos do
conhecimento e sempre imerso em meditação.” – qualidades que demonstram a força
de sua presença, cultura e conhecimento.

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“Ele conhecia os princípios dos veda-s e seus textos auxiliares, e era completamente
hábil em todos os Yoga-s (práticas e vertentes do Yoga). Conquistara seus sentidos,
vencera a raiva e a luxúria por comida, e derrotara a fadiga. Ele praticou austeridade e
derrotou seus inimigos (referente a suas questões internas). Ele era piedoso, bem
versado nos veda-s e amigo de brāhmaṇa-s (classe sacerdotal, considerada a época
digna de sanga). Ele residia em um eremitério (vida simples). Era gentil por natureza e
dedicado à prática de sandhyā (adoração ao sol).” – exemplos de demonstração de
controle sobre a mente.

“Ele estava cercado por aqueles que haviam realizado Brahman e por grandes
sacerdotes. Ele via todos os seres iguais e era pacífico. Era sincero e livre de cansaço.
Ele reconhecia virtudes em todos os seres. O propósito de sua vida era servir aos
outros. Ele ensinou sobre Brahman (o absoluto) aos sábios que brilhavam em brilho
intenso.” [YYS I.1 ao 5]

DESCRIÇÃO DO YOGI SEGUNDO O HAṬHAYŌGAPRADĪPIKĀ

No texto Haṭhayōgapradīpikā, o yogi possui o corpo livre de bloqueios que impedem


os movimentos do prāṇa nos nādī-s, canais sutis. Inclusive pelo nādī suṣūmnā, o canal
central. Essa afirmação é também uma representação figurativa para transmitir a ideia
de firmeza interna, da capacidade da mente de não oscilar, permanecendo equânime
frente a opostos. [HYP II.4,5 e 6]

Nos seguintes versos podemos avaliar certas características peculiares do yogi e de sua
rotina:

“O yogi, atingindo firmeza no āsana, controlando seus sentidos e seguindo uma dieta
saudável e moderada, deve praticar prāṇāyāma-s como lhe fora instruído pelo
professor.” [HYP II.2]

● “Firmeza no āsana” significa estabilidade na rotina de prática, capacidade de


obter quietude nos āsana-s e firmeza em relação ao propósito da prática de
āsana.
● “controlando os sentidos” demonstra a capacidade de controle sobre os
instintos da mente sensorial, que se mantém em pratyahara.
● “seguindo uma dieta que é sadia e moderada” demonstra falta de apego sobre
os instintos mais básicos e que distraem e preocupam a mente, estando livre
para identificar com discernimento a alimentação adequada e a quantidade
adequada de comida.
● “deve praticar prāṇāyāma” que é o foco da rotina de prática por ser
considerada a mais eficaz ferramenta para regular os humores da mente e o
metabolismo como um todo. O verso explica que o yogi não perde tempo e
nem se apega a prática de āsana.
● E, finalmente, “como lhe fora instruído por seu professor” demonstrando
existência de um elo discipular, engajamento com uma tradição e instrução.
Existe uma cultura yogi, cultura necessária para transformar uma pessoa, não
só pela instrução, mas pelo exemplo.

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Em outro verso: o yogi se dedica a “praticar regularmente prāṇāyāma com a mente
pura, para então limpar as impurezas que bloqueiam o suṣūmnā nādī” [HYP II.6]. O
termo “mente pura” é a tradução para sāttvika-dhiyā, que, segundo o Jyotsnāyutā,
resume as seguintes qualidades mentais:

● Mente leve,
● Mente luminosa,
● Mente serena,
● Mente devotada.

Então, antes de praticar prāṇāyāma, o indivíduo deve previamente se livrar da:

● passionalidade,
● intolerância e
● desejos,

que são características do guṇa rajas. E também se desassociar da:

● letargia e
● descrença,

que são características do guṇa tamas.

Por essas explicações, entende-se que existe uma diferença técnica entre o yogi e o
praticante de Yoga. Essa realidade é de certa forma importante pois, embora se utilize
popularmente o termo yogi, isso pode gerar uma auto impressão equivocada e
consequentemente vir a atrapalhar o progresso do praticante de yoga em sua
caminhada.

O OBJETIVO DO YOGI SEGUNDO O HAṬHAYOGAPRADĪPIKĀ

O objetivo do yogi é distinto. Este objetivo também é o que define o yogi. Os textos
são enfáticos ao explicarem que as diferentes técnicas de Haṭha e Laya Yoga são
praticadas para possibilitar Rājayoga, e não por nenhum outro ganho. Qualquer outro
objetivo assumido não condiz com a ideia de progresso dentro da tradição do Yoga.

O yogi que aplica o conceito de haṭhayoga para atingir o estado de samādhi, ou


Unmanī, se concentra em trabalhar intensamente em três coisas, para assim prosperar
e vivenciar o RājaYoga. Essas três coisas são:

● Tattvaṁ, que se refere a potência da mente, que é comparada a uma semente.


● Prāṇāyāma é comparado a um campo.
● Audāsīnuaṁ, que significa o estado mais elevado de não-apego, comparado ao
estado de fluidez da água.

Assim, alinhando a potência da semente (citta), o campo fértil (prāṇāyāma) e


provendo água (audāsīnuaṁ), a “trepadeira” (como o verso IV.104 do

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Haṭhayōgapradīpikā coloca) do estado de Unmanī cresce rapidamente. Assim se
dedica o yogi segundo o conceito de haṭhayoga.

Algumas consequências deste estado:

● No estado de Unmanī, o corpo vira um tronco inerte, sem atividade ou reação a


outras coisas. [HYP IV.107]
● Livre de todos os outros estados, livre de ansiedade, o yogi permanece como
morto [HYP IV.107]. Morto no sentido de que os elos entre a mente e as
distrações externas findam . Livre dos outros estados significa livre da
influência dos cinco estados, que são: desperto, sonhando, sono profundo,
desmaiado e morto.
● O yogi em samādhi não é afetado pelo frio ou calor, felicidade ou miséria,
honra ou desonra. [HYP IV.111]
● O yogi em samādhi não é vulnerável a armas, ninguém o machuca. Também
não é influenciado por encantações (mantra) e nem por diagramas (yatra),
considerados armas. [HYP IV.113]

Pelas descrições de rotina, intenção e façanha, fica evidente o quanto o termo yogi,
segundo os textos de Haṭhayoga, possui hoje um outro significado.

CUIDADOS ESPECIAIS TOMADOS PELO YOGI

Seis ações a serem evitadas pelo yogi (i)

1º - Atyāhāraḥ – comer em excesso, ou obsessão por comida.


2º - Prayāsaḥ – excesso de trabalho, no sentido de realizar esforço acima da
capacidade, ou excesso de atividade física.
3º - Prajalpaḥ – falar em excesso, “fofocar”.
4º - Niyamagrahaḥ – obsessão por regras, inflexibilidade ou excesso de rigidez.
5º - Janasanghaḥ - ter más companhias, ou companhia promíscua.
6º - Laulyaṁ - instabilidade, no sentido de evitar tudo que torne a mente inconstante.

Seis cuidados especiais incorporados pelo yogi (ii)

1º - Utsāhāt – zelo, não expor a mente a excesso de estímulos.


2º - Sāhasāt – agir com rapidez e eficácia, e ainda respeitando a capacidade pessoal.
3º - Dhairyāt – coragem, perseverança, determinação. Não desistir.
4º - Tattvajñānāt – conhecimento do real. Referente ao processo do Yoga e suas
ferramentas, mas também relativo a uma visão realista das coisas, e não romanceada.
5º - Niścayāt – convicção. Convicção nas escrituras e no professor (comparado a
śraddhā).
6º - Janasaṅgaparityāgāt – abdicar de companhias inapropriadas.

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Sexualidade (iii)

Pelas escrituras, vemos que existiu e existe o cuidado do yogi em relação a


sexualidade. Embora o Yoga seja para todos, os textos de haṭhayoga trazem instruções
voltadas para praticantes homens. Neles encontramos inúmeras passagens que
orientam o praticante a ter cuidado para não atiçar a sexualidade, pois segundo esta
tradição, isso prejudica o processo de treinamento do foco mental e aprendizado das
técnicas. Para não estimular a sexualidade, era aconselhado aos jovens evitar estar na
presença de mulheres.

A afirmação acima merece esclarecimento. Pode parecer que a culpa pelos desvios do
homem seja a mulher. De modo algum. A orientação sobre evitar a companhia de
mulheres servia para que os homens jovens daquela época não desviassem sua
atenção dos estudos e das práticas, pois a sexualidade pode ser um impulso muito
forte para muitas pessoas.

O Jyotsnāyutā IV.114 esclarece este pensamento. Existe a correlação da atividade da


respiração, da mente e do fluido seminal (referente a sexualidade). A ideia é pacificar
ambos. Segundo esta visão, práticas que envolvam atividades sexuais não são
aconselhadas como ferramenta para evoluir no Yoga. “O estado da mente é decisivo
para indicar o estado do fluido seminal (sexualidade)”, ou seja, mente estável,
sexualidade estável.

"Quando a mente está estável, a respiração se torna estável. Há estabilidade no fluido


seminal (tanto masculino quanto feminino). Quando o fluido seminal está estável há
vitalidade, e assim a força no corpo se manifesta.” [HYP IV.28]

E no Śivasaṁhitā encontramos a seguinte passagem: “pessoas apegadas a objetos


sensuais e desejosas de prazeres sensuais descem da estrada do nirvāṇa (..)”
[Śivasaṁhitā II.52].

Não desperdiçar energia (iv)

De acordo com os textos de haṭhayoga, o yogi concentra toda sua vitalidade para
mergulhar profundamente em suas práticas, a fim de entrar em contato com o som
interior, chamado nāda. “A mente é o mestre dos sentidos. Prāṇa é o mestre da
mente. Laya, absorção, é o mestre do prāṇa, e nāda, o som interno, é o suporte da
absorção.” [HYP IV.29]

A mesma ideia de preservação da energia é encontrada no Yogasūtra II.38, referente


ao conceito de brahmacarya.

Obstáculos ao yogi (v)

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Para cuidar dos instintos primitivos e estabilizar a mente, a sexualidade e o prāṇa, e
não o desperdiçar, é preciso cuidar de certos obstáculos.

O Mārkaṇḍeya purāna [40.1-6] lista diferentes tipos de obstáculos para o yogin atingir
o mais alto estado de Yoga. Esses obstáculos são para muitas pessoas objetivos. E isso
demonstra o grau de comprometimento do yogi e sua interpretação sobre a vida.

Segundo o texto, ações que visam atingir algum tipo de ganho, como objetos,
mulheres, mérito por realizar caridade, conhecimento, mágica, diferentes tipos de
metal, dinheiro, fortuna, piedade, ser rei dos deuses, diferentes atos relacionados a
produtos químicos, se jogar de uma rocha, Yajña-s, entrar em água e fogo, jejum,
rituais prescritos no Kalpa sūtra-s e outros rituais para apaziguar os deuses, não são
recomendadas, pois quem as realiza tende a desenvolver desejo.

Segundo o texto, o yogi deve abdicar de todos esses empenhos, se apegando a


Brahman (o absoluto) e, assim, se livrando de todos os obstáculos. Uma observação
merece ser feita: Embora muitos desses fatores possam ajudar a maioria das pessoas a
sentir mais segurança e conforto, serenando suas mentes, estas ações provocam elos.
O yogi, que busca a mais alta liberdade, não deve se prender.

“Quando o yogin estabelece sua mente em determinação de qualidade sāttvica, e


medita no absoluto, se livra de todos obstáculos. O asceta que pratica desta forma,
que não deseja se tornar chefe entre os deuses ou conquistar poderes místicos, se
torna Jīvamukta (ser liberto).”

Antes disso:

“Enquanto prāṇa não fluir no canal central (suṣūmnā), ou entrar no brahmarandhra.


Enquanto o fluido seminal não se torna estável pelo controle da respiração. Enquanto
a mente não reflete o estado natural de meditação (em direção ao absoluto), aqueles
que falam sobre sabedoria espiritual se dedicam a tagarelice, que é falsa e arrogante.”
[HYP IV.114]

OS SETE NÍVEIS DE CONHECIMENTO SEGUNDO A TRADIÇÃO DO HAṬHAYOGA

O Jyotsnāyutā I.3 explica sete níveis de conhecimento. Esses níveis descrevem um


percurso que os praticantes desta linhagem de haṭhayogi-s acreditavam existir até a
liberação. Desde o primeiro estágio, se percebe um alto grau de comprometimento,
reafirmando que o caminho do yogi não é algo trivial. Estes sete níveis são descritos no
Yogavāsiṣṭha:

1º - śubhecchākhā – o intenso desejo de atingir a liberação. Este não é qualquer tipo


de desejo e tal desejo provoca discernimento e não-apego, além de calma, entre
outras qualidades. Discernimento em relação a direção que se aponta a vida, e não-
apego pois mirar na liberação implica abandonar diversas coisas, como hábitos e
possivelmente todo um estilo de vida. Essa convicção traz uma calma na mente, entre
outras qualidades.

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2º- vicāraṇā – escutar, ter instrução nas escrituras e refletir sobre elas. Este é o
segundo nível: instrução adequada e reflexão intensa. Aqueles que têm êxito neste
nível avançam.

3º- nididhyānsana – profunda meditação, nível caracterizado por uma baixa influência
da mente sensorial.
Observação: aqueles que cumprem esses três estágios ainda não são considerados
yogi-s, mas sādhaka-s, ou seja, alunos.

4º- sattvāpatti – relativo ao estado de saṁprajñāta samādhi (absorção cognitiva), e


descrito pelo texto como a possibilidade de sensação íntima do absoluto. Existe a
capacidade de acessar este estado e permanecer nele.
Observação: os próximos estágios referem-se ao estado chamado de asaṁprajñāta
samādhi (absorção ultra cognitiva).

5º- brahmavidvarīyān - no estágio anterior, a mente desenvolve capacidades


diferenciadas, chamadas siddhis-s. O quinto estágio equivale à capacidade de não se
apegar a estas capacidades místicas. O nome brahmavidvarīyān revela conexão do que
é de fato mais elevado, pois, como consta no terceiro capítulo do Yogasūtra, a
identificação com os siddhis-s é um obstáculo. Neste estágio, o indivíduo não está em
transe, mas em plena consciência.

6º- parārthabhāvinī – trata-se de um estágio em que a mente do yogi não vê nada


além do absoluto e só volta à interação ordinária quando chamado por alguém.

7º- turyagā – neste estágio, o yogi não retorna ao estado normal de consciência. Tal
pessoa é considerada liberta mesmo em vida.

DEMONSTRAÇÕES DE PODERES

Pela Índia, pessoas realizam façanhas espetaculares, e mesmo que sejam chamados de
yogi-s, dentro da tradição do Yoga, essas façanhas não são enaltecidas. Na verdade,
são colocadas como obstáculos.

O terceiro capítulo do Yogasūtra traz inúmeras consequências que podem ocorrer


quando a mente desenvolve novas sensibilidades. Patañjali, por três vezes neste
capítulo, enfatiza o cuidado para que essas sensibilidades não sejam entendidas como
um ganho, e nem usadas para fins que não sejam o autodesenvolvimento interno [YS
III.37,50 e 51].

Segundo Krishnamacharya, o foco nestas capacidades diferenciadas ou suas


demonstrações não faziam o menor sentido. Demonstrações de bhūsamādhi – ser
enterrado vivo e depois desenterrado. Ou jalasamādhi – permanecer submerso na
água, além de deitar, mastigar e engolir vidro, e ingerir veneno são exibicionismo, que
não estão associados aos propósitos do Yoga.

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Outro engano pode ocorrer quanto a capacidade de praticar técnicas como vajrolī,
sahajolī, amarolī, ou Khecarī, descritas nos textos de haṭhayoga. Essas técnicas não
são objetivos em si, muito menos tornam uma pessoa evoluída simplesmente por
conseguir realizá-las. Trata-se de práticas que podem ajudar em alguns casos, mas que
dependem de um contexto específico para serem sadias.

Todas elas, assim como a demonstração de práticas de āsana ou de prāṇāyāma,


realizadas simplesmente por exibicionismo, não ajudam em nada o praticante em sua
jornada interna.

REFLEXÃO FINAL SOBRE O YOGI NO HAṬHAYOGA

Haṭhayoga é uma abordagem do Yoga que propõe um caminho intenso de purificação


da mente. O processo descrito acima e os versos aqui colocados dão a dimensão desta
intensidade. Existem diferentes pedagogias dentro da cultura do Yoga, pois existem
diferentes qualidades de pessoas.

As práticas destinadas a yogi-s compõem a pedagogia chamada śakti krama. Nem


todas as pessoas necessitam ou estão qualificadas a realizá-las. A tentativa audaciosa
de realizar śakti krama pode gerar malefícios ao aspirante. Dentro da tradição existem
práticas destinadas a yogin-s e práticas para quem não é yogin.

YOGIN NA GĪTĀ

Pela Gītā, também podemos entender as características e qualidades do yogi.

LIBERDADE AO AGIR

“Aqueles que realizam tarefas prescritas sem desejar os resultados de suas ações são
realmente sanyāsi-s (renunciantes) e yogin, não aqueles que simplesmente renunciam
os rituais (niragniḥ) e as outras atividades (akriyaḥ).” [BG VI.1]

“Quando alguém não está apegado a objetos dos sentidos nem a ações, diz-se que
essa pessoa é elevada na ciência do Yoga, por ter renunciado a todos os desejos pelos
frutos das ações.” [BG VI.4]

A ânsia em relação aos frutos das ações torna o agente dependentes deles. Os
renunciantes, ou os yogi-s, são aqueles que realizam as ações, mas não dependem, ou
não desejam por seus frutos. Esse conceito também aparece no Yogasūtra II.1 e IV.7.

MENTE EQUÂNIME, CONSTANTE E SATISFEITA

"Aquele cuja mente está satisfeita com a compreensão do conhecimento, é imutável e


que subjuga seus sentidos de percepção e de ação é dito ser um yukta ou alguém que
atingiu o estágio do Yoga. Para tal yogin um pedaço de terra, pedra e ouro são a
mesma coisa." [BG VI.8]

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“Ó Arjuna, aqueles que comem demais ou comem pouco, dormem demais ou muito
pouco, não podem obter sucesso no Yoga
Mas aqueles que são equilibrados em comer e recreação, equilibrados no trabalho e
regulados no sono, podem mitigar todas as tristezas praticando o Yoga.” [BG VI.16 e
17]

“Assim como uma lâmpada em um lugar sem vento não pisca, a mente disciplinada de
um yogin permanece constante em meditação sobre si mesmo.” [BG VI.19]

A DEDICAÇÃO DO YOGIN

“Vivendo em solidão, sozinho, com a mente e o ser controlados, livre de desejos, sem
possuir nada, o yogin deve se aplicar incessantemente ao Yoga.” [BG VI.10]

“O yogin deve colocar continuamente a mente inquieta e instável sob o controle


exclusivo do ser interno.” [BG VI.26]

“A ciência do Yoga é difícil de ser praticada por alguém cuja mente está descontrolada.
No entanto, aqueles que aprenderam a controlar a mente, e que se empenham
seriamente pelos meios adequados, podem alcançar a perfeição no Yoga. Esta é a
minha opinião.” [BG VI.36]

PRÉ-DISPOSIÇÃO

“Os yogin-s que não conseguiram cumprir o mais elevado propósito, após a morte, vão
para as moradas dos virtuosos. Depois de morar lá por muito tempo, eles renascem
novamente no plano terrestre, em uma família de pessoas piedosas e prósperas.
Senão, se eles desenvolveram desapego devido à longa prática de Yoga, nascem em
uma família de yogin. Tal nascimento é muito difícil de obter neste mundo.” [BG VI.41
e 42]

Essa mesma ideia de possibilidade de nascer com a mente propícia ao estado de Yoga
também ocorre no Yogasūtra IV.1.

YOGIN NO YOGASŪTRA

O Yogasūtra de Patañjali é um tratado sobre a mente humana. As práticas e conceitos


sugeridos por Patañjali servem de apoio para que o indivíduo consiga se trabalhar
internamente, a fim de libertar a mente do ciclo de sofrimento que obscurece a
experiência da vida.

O Yoga apresentado no Yogasūtra se destina a todas as pessoas, independente do


local, cultura e tempo em que vivem, não sendo exclusivo apenas aos yogi-s elevados.
Seu tema final é a liberdade, e, dependendo da situação de cada indivíduo, esta
liberdade pode vir a ser uma liberdade total em relação a influência da matéria, ou a
sensação interna de maior conforto em relação ao ciclo do sofrimento (kleśa – karma).

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O Yogasūtra é composto por 195 sūtra-s, divididos em quatro capítulos. Pelo
comentário do sábio Vyāsa, estes quatro capítulos que o compõem se encaixam
adequadamente aos diferentes tipos de praticantes, que são entendidos de forma
distinta, pois apresentam grau de comprometimento e esclarecimento diferenciados.

O PRIMEIRO CAPÍTULO – SAMĀDHI PĀDAḤ

Este primeiro capítulo do Yogasūtra apresenta um “mapa” para o estado de absorção.


O processo ocorre através da prática (abhyāsa) e do não apego (vairāgya), demanda
total entrega (śraddhā), e necessita, dentre outras capacidades, da purificação da
memória (smṛti-pariśuddhau).

Pela sequência de assuntos apresentados por Patañjali, entende-se que o praticante


próximo do estado de Yoga é capaz de entender o processo do yoga e o próprio
estado, necessitando apenas de um pouco mais de estabilidade mental para enfrentar
os obstáculos (antarāya-s), enumerados no Yogasutra I.30.

As pessoas qualificadas a atingir o estado de Yoga apenas pela orientação exposta no


primeiro capítulo do Yogasūtra de Patañjali possuem uma mente estável e desfrutam
de autoconfiança, clareza e paz. Devido a essas qualidades são chamadas de samāhita-
citta.

O SEGUNDO CAPÍTULO – SĀDHANA PĀDAḤ

Segundo a tradição do Yoga, o segundo capítulo serve de suporte principalmente para


aqueles cujas mentes encontram-se inquietas e inebriadas pelos kleśa-s. Pessoas nesta
condição são chamadas vyutthita-citta, e necessitam de ferramentas e de uma didática
que seja prática, para atenuar a influência das aflições.

Já no início do capítulo, Patañjali explica que o melhor caminho é trabalhar para a


purificação (tapas), autorreflexão (svādhyāya) e entrega (Īśvarapraṇidhāna). Esse
caminho pode ser trilhado através de práticas para desenvolver estas características e
de ações onde elas estejam embutidas.

O TERCEIRO CAPÍTULO – VIBHŪTI PĀDAḤ

Neste capítulo, as capacidades especiais do yogi são apresentadas. Em meio a elas,


Patañjali explica os perigos que essas capacitações especiais representam ao yogi, já
que podem se tornar impedimentos à libertação total quando interpretadas como um
ganho.

O QUARTO CAPÍTULO – KAIVALYA PĀDAḤ

No quarto capítulo, Patañjali, além de explicar as singularidades do Yoga em relação


aos outros Darśana-s, descreve o caminho final para a libertação, que ocorre pelo
estado de dharma-megha-samādhi, a “nuvem de virtudes” - o que para a maioria de
nós serve como uma referência de caráter ilustrativo - a ser eventualmente sentida.

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Neste estado descrito por Patañjali, o yogi possui imensa sabedoria e avança para a
total liberdade.

DEFINIÇÃO DE YOGIN NO YOGASŪTRA SEGUNDO SUA AÇÃO

No quarto capítulo, sūtra 7, Patañjali define o yogin pela maneira como age. A
descrição é sucinta, assim como na Gītā, mas através dela entende-se a principal
característica do yogin.

Pela descrição de Patañjali, as ações do yogin não são motivadas pelos frutos, seja a
vontade de ajudar algo ou alguém (śukla-karma), o desejo de se dar bem em cima de
algo ou alguém (kṛṣṇa-karma), nem a mistura destas intenções (śukla- kṛṣṇa-karma).

As ações do yogin não almejam frutos, pois não são motivadas por desejos ou
impulsos (vāsana-s). As ações do yogin são reflexos naturais de uma mente meditativa,
que se expressa espontaneamente e não acumula cargas.

YOGIN NO YOGA TĀRĀVALI

O Yoga Tārāvali é uma escritura atribuída a Śaṅkarācārya. Nela encontramos


descrições sobre o estado de Yoga. “Para aqueles [mestres] adeptos [às práticas do
Yoga] que vivem no estado de kevala kumbhaka, os obstáculos deixam de gerar
qualquer efeito [em seu estado interno]. Não há respiração irregular, os sentidos
encontram-se muito disciplinados e o prāṇa flui [pelo suṣūmnā]” [YT śloka 13].

“Quando a pessoa atingiu o estado de RājaYoga os sentidos não percebem


[distrações], a mente se desconecta [da identificação dos pensamentos], não há
sensação de tempo e lugar, e a respiração não se move. O yogi não precisa de esforço
para atingir dhāraṇā e dhyānaṁ” [YT śloka 14].

RājaYoga pode significar diferentes coisas:

- Rāja quer dizer rei, ou real. O estado de RājaYoga pode ser interpretado como o
estado em que a mente está conectada com o rei, aquele que governa o corpo, a
mente e os sentidos, que seria Deus ou a mais elevada consciência.

- RājaYoga refere-se ao que reluz, ou o que vem na frente. Sendo um estado de maior
refluência, ou que está a frente dos outros estados, ou dentre todas as expressões do
Yoga-s.

O texto Tārāvali ilustra como seria este estado afirmando que “o yogi imerso em
RājaYoga encontra-se totalmente livre de distrações que venham dos sentidos e da
mente, não tem sensação de cansaço ou sono, e não tem preocupação pela vida nem
pela morte. Isso é uma maravilha” [YT śloka 15].

E, para aqueles que permanecem firmes “no estado de RājaYoga a sensação de ‘eu’ e
‘meu’ deixa de existir. Não há percepção nem tendência de perceber aquilo que

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poderia ser visto. A pessoa permanece assim com a mais elevada sabedoria (Ātma
anubhava, sabedoria do Ātman]” [YT śloka 16].

“Ausente de padrões na respiração, com um corpo estável e os olhos como lótus


semiabertos, no estado de anamaska mudrā (com os olhos abertos para o externo,
mas o olhar voltado para o interno); essas são as expressões dos grandes yogi-s, que
permanecem silenciosos neste estado” [YT śloka 21].

GURU

A palavra guru costuma ser traduzida de duas maneiras: “aquele que é pesado, pesado
de sabedoria espiritual” ou “aquele que remove a escuridão”. Tradicionalmente guru
não é apenas um professor, mas mais do que isso: é uma fonte de inspiração.

Na tradição do Yoga, o período de instrução do aluno ocorre no regime chamado


Gurukula, no qual o professor recebe o aluno em sua morada e o instrui sobre todos os
assuntos necessários para seu autodesenvolvimento. Pela convivência e observação
sobre o progresso do aluno nas disciplinas e práticas, o professor entende o trabalho
interno realizado em seu aprendiz. Isso ocorre até que este esteja pronto para
continuar sua caminhada sozinho.

Guru é o mestre que nutre o estudante e, por isso, é colocado como “aquele que
remove a escuridão”, que é a ignorância. O termo para ser usado necessita de uma
relação entre ambas as partes. Ninguém é guru de alguém pelo simples fato de ser
considerado o guru de outra pessoa. E ninguém poderia se autodenominar guru, pois
trata-se de uma questão de perspectiva. Quem vê a luz é quem denomina que o outro
é inspiração.

O guru no Yoga não é aquele que escreve livros inspiradores e que é visto a distância.
Esses podem ser inspirações, como descrito no YS I.37. O guru está próximo, e devido
a convivência é capaz de motivar transformações.

OS DIFERENTES GURU-S

O YogaYājñavalkya saṁhitā explica que dentro da cultura védica existem cinco guru-s
[YYS I.58]:

1º - a mãe
2º - o pai
3º - o ācārya
4º - o tio (irmão da mãe)
5º - o sogro

A primeira observação que podemos fazer é que essa descrição apresenta uma
estrutura sociocultural da época. Outro ponto interessante é que, segundo o texto,
dentre esses cinco o ācārya é colocado como o mais importante. Há pelo menos duas
razões para isso:

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● O professor é isento., enquanto os parentes inevitavelmente passam seus
próprios valores e medos aos descendentes. O ācārya não se projeta no aluno,
o instruindo de acordo com sua necessidade e potencial. Isso evidencia ainda
mais sua importância.

● O professor possibilita o “segundo nascimento”. Embora a mãe e o pai sejam os


responsáveis pela vida e, juntamente com os parentes, são os que propiciam as
primeiras referências, o professor é o “obstetra” do conhecimento. Em diversos
textos encontramos o termo “o duas vezes nascido”. Este segundo nascimento
ocorre pelo despertar do aluno em relação ao conhecimento sobre si. Isso
acontece na tradição do Yoga graças ao trabalho realizado pelo professor.

DESMISTIFICAÇÃO O TERMO

Desikachar desmistificava o termo dizendo que todos com quem possuímos uma
relação direta e nos ensinam sem querer ensinar, simplesmente por estarem sendo
eles mesmos, podem ser nossos guru-s. Lembro-me dele se referindo a sua primeira
neta como sua atual guru.

O DESGASTE DO TERMO

O termo guru obviamente não se restringe apenas à tradição do Yoga, ele está
presente nas artes, como a música, por exemplo. O termo curiosamente acabou
sofrendo uma simplificação, ganhando o entendimento de ser alguém que sabe de
tudo ou muito de um assunto, e que irá nos dar as respostas.

Essa utilização do termo guru se distancia por completo do que um guru é e faz.
Segundo a tradição do Yoga, o guru não é quem dá as respostas, mas quem trabalha o
aprendiz para entender o processo que trará o esclarecimento das dúvidas. Dar
simplesmente as respostas é deixar o outro na escuridão. O guru não provoca
dependência, pelo contrário, incentiva a autonomia.

A partir da década de sessenta, o termo guru se popularizou no ocidente. Hoje a


palavra guru e a relação entre guru e discípulo sofreu um certo desgaste devido a sua
banalização. Escândalos envolvendo guru-s e seus discípulos, por diversos motivos, e a
consolidação do materialismo espiritual fazem com que muitas pessoas hoje escutem
a palavra guru com desconfiança. Ao nos voltarmos aos textos de Yoga, o guru é
sempre representado na mais alta conta.

GURU NO YOGASŪTRA

O termo guru aparece no Yogasūtra uma vez, no sūtra I.26, referindo-se a īśvara.
Īśvara é explicado como o professor ancestral que possui a distinção de não ser
limitado pelo tempo e nem afetado pelas aflições e seus resultados. Īśvara é a fonte de
toda sabedoria. Aqueles que dão inspiração são tratados por Patañjali como vītarāga,
sūtra I.37.

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Alguns praticantes de Yoga referem-se a seus professores como guruji, que significa
“querido guru”, como forma de carinho e respeito.

GURU NO HAṬHAYOGA

Devido à troca proporcionada pelo contato próximo e pela instrução que ilumina o
caminho do praticante de Yoga, o professor de Yoga muitas vezes é visto como um
guru por seu aluno.

Nos textos de Haṭhayoga, o professor é colocado como guru, por dar ao aluno a luz de
um conhecimento. Na tradição de haṭhayoga, os praticantes normalmente abdicam da
vida em sociedade e de bens materiais. A relação com o professor e a instrução que
recebem são uma das únicas coisas que esses praticantes possuem. “Não há dúvida
que o guru é o pai, a mãe, e até mesmo Deus, e como tal deve ser servido por todos
com pensamento, palavra e ações.” [SS III.13]

No texto Śivasaṁhitā, que faz parte da literatura de Haṭhayoga, o guru é sempre


reverenciado com a mais alta estima: "Somente a sabedoria comunicada pelo guru,
por seus lábios, é poderosa e útil. Caso contrário se torna inútil, fraca e dolorosa.” [SS
III11]

Mas no texto Haṭhayoga Pradipika, o guru é qualquer pessoa: “aquele que ensina os
mudrā-s segundo a tradição é o guru, o mestre e o próprio ser supremo.” [HYP III.129]

GURU NO YOGA TĀRĀVALI

O Yoga Tārāvali se inicia com um verso que ficou bastante popular, “vande gurūṇaṁ
caraṇāravinde saṁdarśitasvātmasukhāvabodhe”. Este verso significa “eu me prostro
aos pés de lótus da linhagem de sucessão de professores, pela qual é revelada a eterna
felicidade espiritual (sukha).”

GURU DAKṢIṆĀ - A RECOMPENSA

Ensinar Yoga não vale o preço da fama ou da riqueza. Ensinar Yoga é uma devoção aos
ensinamentos recebidos e é um serviço ao próximo.

O ato de ensinar serve ao professor como maneira de aprender ainda mais e


continuamente. Em 2007 minha professora me orientou para ensinar o Yogasūtra de
Patañjali. Eu relutei, e ela disse: “Diego, agora vá ensinar para você aprender melhor
tudo isso que lhe ensinei e ter dúvidas. Essas dúvidas irão lhe ensinar muito.”

O ato de ensinar Yoga permite que o professor esteja constantemente aprendendo e


mantendo sua mente fresca. Assim é possível cultivar uma mente devotada aos
ensinamentos que recebeu, ao aluno e ao momento.

Após todas as temporadas de estudos que tive com minha professora, Sangeetha
costumava me agradecer ao se despedir. Ela dizia que nessa relação entre professor e

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aluno, o professor é o que mais se beneficia, pois é quem mais aprende. Hoje consigo
entendê-la.

Mas, de fato, existe uma remuneração material. No passado, a remuneração era feita
de diferentes maneiras. Poderia ser a quantia de um valor simbólico, uma troca, um
serviço ou uma missão. Todas ligadas ao bem da continuidade da tradição.

Krishnamacharya, por exemplo, foi instruído por seu professor a pagar os sete anos e
meio de instrução com uma missão: trabalhar arduamente para transmitir o Yoga para
as pessoas que viviam em sociedade e assumiam um estilo de vida comum (tendo
ofícios, constituindo família, habitando capitais, etc.).

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MANTRA GURUVĀSTAKAM DE ŚAṄKARA

गु#वा&तकम ्
guruvāstakam

शर-रं स0
ु पं तथा वा कळ4ं

यश6चा# 8चतं ृ धनं मे#त=


ु यम ्।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं॥१॥

śarīraṁ surūpaṁ tathā vā kaḻatraṁ

yaśaścāru citraṁ dhanaṁ merutulyam|

manaścenna lagnaṁ guroraṁ ghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ ||1||

कळ4ं धनं प4
ु पौ4ाKद सवM

गह
ृ ं बा?धवाः सवPमेतE8ध जातं।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं॥२॥

kaḻatraṁ dhanaṁ putrapautrādi sarvaṁ

gṛhaṁ bāndhavāḥ sarvametaddhi jātaṁ|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ ||2||

22
षडUगाKदवेदो मख
ु े शा&4WवEया

कWवXवाKद गEयं सप
ु Eयं करोCत।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं॥३॥

ṣaḍaṅgādivedo mukhe śāstravidyā

kavitvādi gadyaṁ supadyaṁ karoti|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ ||3||

Wवदे शष
े ु मा?यः &वदे शष
े ु ध?यः

सदाचारवZ
ृ ेषु मZो न चा?यः।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं॥४॥

videśeṣu mānyaḥ svadeśeṣu dhanyaḥ

sadācāravṛtteṣu matto na cānyaḥ|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ ||4||

\माम]डले भप
ू भप
ू ाळव?ृ दै ः

सदा सेWवतं य&य पादारWव?दम ्।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं।५॥

23
kṣamāmaṇḍale bhūpabhūpāḻavṛndaiḥ

sadā sevitaṁ yasya pādāravindam|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ |5||

यशो मे गतं Kद\ु दानbतापात ्

cजगEव&तु सवM करे यXbसादात ्।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं।६॥

yaśo me gataṁ dikṣu dānapratāpāt

jjagadvastu sarvaṁ kare yatprasādāt|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ |6||

न भोगे न योगे न वा वािजराजौ

न का?तामख
ु े नैव WवZेषु 8चZम ्।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं।७॥

na bhoge na yoge na vā vājirājau

na kāntāmukhe naiva vitteṣu cittam|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ |7||

24
अर]ये न वा&व&य गेहे न कायh

न दे हे मनो वतPते मे Xवनiयh।

मन6चे?न लAनं गुरोरं CDपEमे

ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं ततः Gकं।८॥

araṇye na vāsvasya gehe na kārye

na dehe mano vartate me tvanarghye|

manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme

tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ |8||

गुरोरkटकं यः पठे Xप]


ु यदे ह-

यCतभप
ूP CतभPnमचार- च गेह-।

लभेEवािoछताथM पदं qnमसंrम ्

गुरो#sतवाsये मनो य&य लAनम ्॥९॥

guroraṣṭakaṁ yaḥ paṭhetpuṇyadehī

yatirbhūpatirbhahmacārī ca gehī|

labhedvāñchitārthaṁ padaṁ brahmasaṁjñam

guroruktavākye mano yasya lagnam||9||

Guruvāsṭakam é um poema de autoria de Śaṅkarācārya. Asṭakam significa “oito”.


Guruvāsṭakam são os oito śloka-s que reverenciam o guru.
Apesar do nome, o poema possui nove partes, sendo a última a explicação sobre os
benefícios de se dedicar a este canto.

Cada parte do poema lista inúmeras aquisições e razões para felicidade. Mas terminam
com a mesma mensagem, que é “manaścenna lagnaṁ guroraṁghripadme”,

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explicando que todas as aquisições “não servem em nada se a mente não estiver
centrada nos pés de lótus do guru”.

Os pés do guru representam sua base, simbolicamente está relacionado ao


conhecimento que lhe fora ensinado e que absorverá. Esse conhecimento o sustenta e
o permite caminhar e, por isso, os pés do guru são reverenciados.

A última frase do poema é “tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ”, que significa “de
que adianta?”, repetido quatro vezes para acentuar a importância da indagação. O
poema enfatiza a conexão com o guru, colocando-a como o verdadeiro ganho acima
de todos os outros.

O primeiro verso diz respeito ao físico de uma pessoa, que pode ter excelente forma,
assim como o de sua consorte. A fama, assim como a boa reputação, a riqueza, ou
possibilidade de ser tão alto quanto o Monte Meru.

O segundo verso toca no tema familiar e possíveis “conquistas”. Esposa, riqueza,


filhos, netos, lar e parentes; todas essas coisas relacionadas.

O terceiro verso menciona os Veda-s, com seus seis membros, e o conhecimento de


todas as ciências, que, mesmo que estejam nos lábios de alguém, não são decifrados
sem a intervenção do guru. E, mesmo que alguém possua o dom poético de compor
prosa e poesia finas, se a mente não estiver centrada nos pés de lótus do guru, de que
servem verdadeiramente?

O quarto verso diz que mesmo se obtendo realização em outras terras e prosperidade
em sua própria terra natal; tendo conduta justa em relação aos outros, de que isso
realmente adianta?

No verso cinco, o poema afirma que mesmo aquele que é constantemente elogiado e
sua presença é altamente honrada pelos anfitriões de imperadores e governantes
deste mundo, se a mente não estiver centrada nos pés de lótus do guru, de que
adianta?

O sexto verso explica que mesmo a fama de caridoso e suas recompensas também não
tem o mesmo valor que a conexão com o guru e tudo que ela representa.

Com o sétimo verso, o poema cita diferentes tipos de riquezas, seja a capacidade da
mente de não se distrair com prazeres externos, por desapego e realizações ocorridas
pelo Yoga, ou pelas posses de cavalos (que representa riqueza), ou a face encantadora
da pessoa amada. Mas, segundo o poema, “tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ tataḥ kiṁ”,
de que adianta?

Mesmo passando por todos os āśrama-s (fases da vida) e chegando a sanyāsi, mesmo
com desapego, se a mente não estiver conectada aos pés de lótus do guru, de que
adianta? De que adianta? De que adianta? De que adianta? Assim questiona o oitavo
verso.

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Por fim, o poema afirma que fixar a mente nesta louvação ao guru gera três coisas:
vāñchitārthaṁ - objeto desejado, padaṁ - o estado desejado e brahma saṁjñam – o
absoluto.

ĀCĀRYA

Ācārya é traduzido como professor. O termo é usado em diferentes áreas ligadas ao


conhecimento e às artes também.

ĀCĀRYA NO YOGA

Ācārya é alguém que instrui, mas não qualquer coisa e nem de qualquer jeito. O
professor de Yoga é quem acolhe o aluno e o nutre da cultura do Yoga, se fazendo
responsável pelo processo de aprendizagem e lapidação do aluno até que este esteja
pronto para caminhar sozinho.

A RESPONSABILIDADE DO ĀCĀRYA

O professor de Yoga é, antes de tudo, um praticante que se devota à manutenção de si


e à constante lapidação interna.

Seu papel é instruir, instigar, desconstruir, dar suporte, incentivar e, principalmente,


conduzir o aluno ao seu professor interno. Normalmente buscamos suporte externo
em pessoas, em mitos, em crenças que nos confortam. O ācārya é quem ensina o
aluno a entrar em contato com uma sabedoria interna. Segundo a tradição do Yoga, é
dessa sabedoria que se extrai a segurança para se viver.

De acordo com a linhagem de meus professores, o professor também deve instruir o


aluno ouvindo este professor interno que habita em seu coração. Chame-o de
inteligência emocional ou intuição.

Isso faz com que o aprendizado do Yoga ocorra a partir de um lugar especial. O
professor oferece ao aluno um compartilhamento de um caminho e de uma emoção.
Isso fica claro no sūtra IV.6 do Y.S. A experiência que transborda do professor deve
chegar ao aluno, que aprende através de uma experiência direta.

Quanto mais o professor instruir deste lugar interno, maiores as chances do aluno
sentir o que ele ou ela está transmitindo. Esse é um compromisso do professor.

Servir de exemplo é também uma de suas responsabilidades. Com a convivência, o


aluno aprende pelo que observa do professor, como sua conduta e reações.
Obviamente o ācārya ensina técnicas, o porquê delas e os conceitos do Yoga, mas o
aluno aprende mais porque entra em contato com alguém que vive o que ensina.

Obviamente o professor não é um exemplo da perfeição, mas um exemplo de


determinação. Por seu exemplo, o professor ensina a devoção e persistência, que são
valores cruciais para avançar no processo de autotransformação.

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Instruir sobre Yoga é, e sempre será, uma grande responsabilidade. O que ameniza
este peso é a dedicação sincera na qual o professor se entrega à prática integral do
Yoga. Estando íntegro nesta proposta a responsabilidade continua a existir, mas o foco
está mais direcionado no empenho para lapidar-se como praticante e o ato de ensinar
passa a ser um resultado de seu empenho.

Por esta razão, na linhagem de meus professores, reverenciamos Krishnamacharya e


Desikachar como ācārya-s, e não guru-s.

TRADICIONALMENTE

A intenção do professor de Yoga é instruir, não necessariamente agradar. E não


significa instruir a qualquer um, mas a quem demonstrar interesse sincero e estiver
realmente disposto.

Isso fica claro nos textos de haṭhayoga. Em diversas passagens, está ressaltado que os
ensinamentos precisam ser mantidos em segredo. Não devem ser ensinados a
qualquer pessoa. Assim não haverá mau uso e nem o risco de deturpação.

Hoje vivemos uma realidade diferente. No passado alguns mestres preferiam não
passar adiante seu conhecimento a dar ele a qualquer pessoa. Por diferentes razões, o
professor hoje tem que prometer inúmeras coisas ao aluno para que ele continue suas
práticas. Como dizia Desikachar, o professor se colocou em uma situação delicada,
muitas vezes de refém do aluno.

Hoje o professor nem sempre ensina segundo a tradição do Yoga, pois acaba seguindo
a demanda do aluno. A intenção do professor não é ser um prestador de serviço, e
nem um vendedor de produtos e promessas.

Ser professor de Yoga não é um ofício, mas uma devoção, uma vocação e um
comprometimento com a cultura do Yoga. A motivação do professor é transmitir,
ajustando a cada aluno o significado de uma tradição e suas possibilidades.

Assim a cultura do Yoga continua pulsando de coração para coração.

CRIAR O AMBIENTE FAVORÁVEL

Tradicionalmente o professor e o aluno sentam-se frente a frente, e a instrução ocorre


oralmente, através de cânticos. O professor recita o conhecimento que está exposto
em alguma escritura, e o aluno repete.

Após memorizar os versos ou sūtra-s, a concentração e memória do aluno estão


afiadas. O professor então separa as palavras e ensina o significado de cada uma delas.
Depois destrincha o conteúdo de cada verso ou sūtra.

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Este é o formato clássico de aprendizagem das escrituras, que é chamado adhyāya. Ele
reforça o elo entre professor e aluno.

Adhyāya literalmente significa um momento propício para se aprender. Professor e


aluno são corresponsáveis por construir este momento, mas o professor é o regente.
Sem o momento adequado o aprendizado não ocorre.

Treinamos no Yoga o estado ekāgratā, não simplesmente técnicas ou armazenamento


de conteúdo filosófico. Yoga é um processo para possibilitar transformação. O local a
ser acessado e trabalhado para possibilitar as transformações pessoais é o campo
emocional. A relação professor-aluno precisa ser franca. A proposta deve ser clara, os
meios, viáveis e o cuidado, contínuo.

É papel do professor criar um ambiente externo e interno favoráveis.

AUTONOMIA

Segundo a tradição do Yoga, após o período de instrução o mestre dá autonomia a seu


discípulo. Não poderia ser de outro jeito. Ao dispensar o aluno, o mestre demonstra
confiar no que o aluno se tornou e acredita que ele ou ela possa caminhar por si só.
Manter-se à sombra do mestre não lhe dá a chance de se lançar ao mundo e colocar
em prática o que lhe foi ensinado.

E, como consta no Śivasaṁhitā, após um certo momento, a sabedoria do guru não


pode mais ajudar o aluno a prosseguir [SS V.179], pois o processo é interno.

O professor de Yoga não é alguém que ajuda o aluno, mas alguém que serve de
suporte e alavanca uma transformação. Embora este suporte seja fundamental, o
empenho em avançar e provocar transformações é do aluno. E o mérito deste avanço
não é do professor, mas do aluno.

O PROFESSOR INTERNO

Segundo a linhagem de meus professores, o papel de quem instrui alguém é fazer com
que o aprendiz entre em contato com o professor interno.

Desikachar ficava pasmo com o conhecimento que seu pai tinha. Quando lhe
perguntava como sabia de tantas coisas, Krishnamacharya dizia que tinha aprendido
com seu professor. Desikachar insistia na pergunta e Krishnamacharya dizia “aprendi
com meu professor interno”.

O ĀCĀRYA KRISHNAMACHARYA

śrī kṛṣṇavāgīśa yatīśvarābhyām saṃprāpta cakrāṅkaṇa bhyāṣyasāram |

śrī nūtnaraṅgendra yatau samarpitsvam śrī kṛṣṇamāryaṃ guruvaryamīḍe |

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virodhe kārtike māse śatatārā kṛtodayam yogācāryaṃ kṛṣṇamāryaṃ guruvaryamahaṃ
bhaje ||

Alunos de Krishnamacharya lhe pediram uma saudação para reverenciá-lo.


Krishnamacharya fez esta composição que é na verdade uma louvação a sua tradição
de professores.

A evocação se inicia frisando uma qualidade, a disciplina, louvando essa capacidade de


comprometimento. Reverenciamos o disciplinado Śrī Krishnamacharya, cujos grandes
professores foram Śrī Kṛṣṇa, Śrī Vāgīśa, e Śrī Raṅganātha (Raṅgendra). Que nascera no
ano de Virodha, durante o mês de Kṛtika, sob a estrela Śatatāra, eu saúdo este
professor de Yoga, Guru Krishnamacharya.

Krishnamacharya nasceu no ano de 1888. A sociedade, os costumes e os valores das


coisas eram bastante diferentes. Krishnamacharya teve uma vida longa, atravessando
o século XX praticamente inteiro, e, por ter recebido uma instrução tradicional, que
cobria todo o campo do conhecimento védico, representa uma espécie de ponte entre
o passado e o presente.

Sabemos que Krishnamacharya foi um praticante de Yoga devotado independente das


provações e dificuldades. Sua fé no Yoga e determinação pessoal o levaram a
longínquas peregrinações na busca de conhecimento e ao acúmulo de experiências
empíricas e sabedoria.

Como professor de Yoga, Krishnamacharya acumulou vasta experiência, tendo contato


com diferentes tipos de pessoas. Entre seus alunos, instruiu e tratou de membros da
corte da Índia no período colonial, oficiais do exército, crianças e jovens, agricultores
indianos, executivos modernos e, nas últimas décadas de sua vida, estrangeiros com
cultura e hábitos bastantes diferentes dos seus.

No campo terapêutico, sua experiência com as ferramentas do Yoga, seu


conhecimento em Āyurveda e sua capacidade de leitura do indivíduo o permitiram
gerar saúde a pessoas com doenças que a medicina da época não conseguia tratar.

Alguns fatos sobre sua vida serão explorados no intuito de gerar reflexões e
inspirações.
Krishnamacharya vivia uma vida simples. Suas ações não eram voltadas à busca por
fama, reconhecimento ou lucro financeiro, mas à devoção ao próximo e à transmissão
do Yoga.

Krishnamacharya dedicou parte de seu tempo em propaganda explícita para


impressionar as pessoas com as técnicas do Yoga. Seus próprios familiares explicam
essa intenção. Nos anos trinta do século passado, Krishnamacharya excursionou por
diferentes lugares da Índia onde demonstrava façanhas incríveis para despertar
interesse da população pelo Yoga.

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Entre essas façanhas ele dava palestras em sânscrito, para demonstrar que esta língua
não estava morta. Realizava ou preparava seus alunos para demonstrar āsana-s
impressionantes. Ou controlava os movimentos da respiração a ponto de modificar
seus batimentos cardíacos.
Por diversas vezes, Krishnamacharya realizou publicamente, e também para médicos,
hṛdayaṁ kumbhaka, o controle total do movimento involuntário do coração. Estas
demonstrações foram realizadas apenas durante um período e devido a uma urgência.
Como ele mesmo explicou ao filho, Desikachar.

Desikachar contou que durante sua vida escutou pessoas relatando sobre a capacidade
de Krishnamacharya de parar voluntariamente o coração. Um dia, Desikachar, já
adulto, comentou com a mãe que achava que essas histórias não eram verdadeiras.

A mãe relatou isso ao próprio Krishnamacharya. Na semana seguinte Desikachar disse


que seu pai o chamou, realizou uns prāṇāyāma-s e lhe pediu para que observasse seu
pulso. Ao pegar no pulso de Krishnamacharya, Desikachar sentiu seus batimentos
cardíacos desacelerarem gradualmente, a ponto de não mais conseguir detectá-los.

Após alguns minutos, Desikachar estava prestes a gritar para sua mãe para informar
que seu pai havia morrido. Krishnamacharya abriu seus olhos e disse: agora você
acredita?

Desikachar ficou impressionado, e pediu a seu pai que lhe ensinasse controlar
voluntariamente seu coração. Krishnamacharya disse que realizava esse tipo de
demonstração em uma época que o Yoga necessitava de popularidade. Segundo ele,
essa técnica não possuía mais validade alguma atualmente, já que o Yoga já estava
bastante conhecido e não precisava de apelos.

Essa é uma boa reflexão para todos nós hoje. O trabalho de propagação já foi realizado
no passado. O momento atual demanda aprofundamento.

Alguns autores de nossa era classificam Krishnamacharya como um mestre de


haṭhayoga. O que, além de ser uma limitação, não condiz com o trabalho que ele
realizou.

Krishnamacharya se dedicava a estudar, praticar e ensinar todos os aspectos do Yoga.


E, segundo Desikachar, inovava ao mesclar práticas clássicas do Yoga para
potencializar seus efeitos. Um exemplo é sugerir a confluência da prática de āsana
com mantra. Outro exemplo é, ao invés de usar em um āsana específico para um
resultado específico, usar uma cadência de āsana-s para atingi-lo. Também explorava
o conceito de contra-pose, entre tantos outros exemplos.

Há algumas décadas, Krishnamacharya também recebeu um rótulo, o de “pai do Yoga


moderno”. Certa vez perguntei à minha mentora, Sangeetha, sobre o que ela achava
dessa ideia, e como ela acreditava que ele reagiria. Segundo ela, Krishnamacharya, na
realidade, era conservador e acreditava seguir os costumes, valores e práticas do

31
passado. E, dessa forma, o rótulo de “pai do Yoga moderno”, como qualquer outro
rótulo, não faria sentido para ele.

Outro fato interessante é que Krishnamacharya deriva de uma tradição de professores


de Yoga que constituem família, enquanto muitas outras linhagens de mestres do
Yoga são formadas por renunciantes. Isso é bastante significativo e serve de exemplo
para milhões de pessoas se inspirarem: é possível viver os ensinamentos do Yoga e
manter seus deveres sociais e familiares.

O ĀCĀRYA DESIKACHAR

Tirumalai Krishnamacharya Venkata Desikachar, mundialmente conhecido como TKV


Desikachar, nasceu em 21 de junho de 1938, em Mysore, no sul da Índia. Era filho de
Namagiriammal e Tirumalai Krishnamacharya.

Seus pais tiveram seis filhos e seus respectivos nomes eram escolhidos de acordo com
revelações que apareciam em sonhos para Krishnamacharya. Em uma das gestações,
Krishnamacharya sonhou com o sábio Vedanta Desika. Pelo sonho, ele teve a certeza
de que o bebê seria um menino e, em homenagem ao sábio, receberia o nome
Desikachar.

Na época de seu nascimento, a família de Desikachar vivia com certo conforto, pois
Krishnamacharya tinha como patrono e aluno o governante de Mysore,
Maharaja Krishnaraja Wadiyar IV.

Desikachar era um menino saudável e travesso. Cresceu entre a rigidez de seu pai e a
doçura de sua mãe, que costumava protegê-lo. Embora fosse filho de um grande
mestre de Yoga, Desikachar não demonstrava interesse em Yoga. Preferia brincar,
subir em árvores e estar com os amigos.

Dizia que, quando criança, brincava com crianças muçulmanas e as convidava para
frequentarem sua casa. Isso era algo inadmissível, pois, para o pensamento ortodoxo
da época, pessoas de outras religiões eram consideradas impuras. Isso já demonstra
um caráter questionador e também brincalhão, que eram umas de suas características
marcantes.

Ainda criança seu pai lhe aplicava alguns castigos, mas só quando conseguia apanhá-lo.
Normalmente, Desikachar conseguia correr e subir no galho mais alto de uma árvore
para não ser pego pelo pai. Mas, certa vez, Krishnamacharya o deixou amarrado em
padmāsana por algumas horas para que refletisse sobre seu comportamento.

Demoraria alguns anos para que ambos desenvolvessem uma relação afetiva íntima.

Após a independência da Índia, o príncipe de Mysore perdeu seu poder e a escola de


Yoga que Krishnamacharya dirigia ficou sem recursos e fechou. A família se mudou
para Chennai, no estado de Tamil Nadu, mas Desikachar permaneceu em sua cidade
natal para terminar seus estudos.

32
Desikachar se formou em engenharia e sentia que possuía uma mente científica.
Após se formar, conseguiu um bom emprego no norte da Índia. Antes de se mudar
para assumir seu novo emprego, ele foi a Chennai visitar e pedir a benção dos pais. O
ano era 1961. Durante essa visita, Desikachar presenciou uma cena que mudaria
completamente sua perspectiva sobre seu pai e sobre o Yoga.

Ele disse que lia o jornal na varanda da pequena casa de seus pais quando um carro
luxuoso parou na frente da casa. Carros luxuosos eram raros na Índia daquela época,
mas o mais impressionante foi que dele saiu uma senhora branca, que com um certo
entusiasmo chamava “professor, professor!”. Krishnamacharya saiu pela porta e a
senhora estrangeira lhe abraçou fortemente.

Desikachar relatou que ficou em choque! Ele nunca tinha visto uma cena como aquela
em toda sua vida. Um Brahmin, sem camisa, ser abraçado na rua por uma senhora
estrangeira era algo inimaginável para a época. Depois que a senhora se foi,
Desikachar disse que a única coisa que saiu de sua boca foi: por quê?

Krishnamacharya, então, disse que se tratava de uma aluna que estava fazendo aulas a
alguns meses. Seu nome era Mrs Kay Malvenan, da Nova Zelândia. Ela viera lhe
agradecer, pois aquela tinha sido a primeira noite em muitas décadas que ela tinha
conseguido dormir sem utilizar remédios.

Desikachar percebeu a relevância do trabalho de seu pai, reconhecendo nele um


grande mestre, e o poder do Yoga. Afinal, aquela senhora rica poderia se tratar com os
melhores especialistas.

O jovem engenheiro teve a certeza de que deveria ficar junto a seu pai e aprender seus
ensinamentos. Sendo assim, Desikachar recusou o emprego de engenheiro que lhe
esperava no norte, e tratou de arranjar um trabalho em Chennai para ficar perto de
Krishnamacharya e estudar Yoga com ele. Seus pais não aprovaram a ideia, mas
Desikachar não voltou atrás. Ele teve que ser insistente para que seu pai começasse a
lhe instruir.

Após muita insistência, as aulas começaram. Desikachar contava que seu pai era muito
intenso e disciplinado. Pelo relato de outros alunos, sabemos que era extremamente
exigente. Porém Krishnamacharya já havia aprendido a lidar com seu próprio
temperamento intenso. Era duro e cobrava, mas não cometia exageros.

Desikachar conta que seu irmão mais novo, Shribhashyam, tinha sido aluno de
Krishnamacharya desde cedo, mas não suportou a intensa disciplina imposta por seu
pai.

Desikachar começou seus estudos com a recitação do Yogasūtra de Patañjali, escritura


que estudou nove vezes durante os quase 30 anos de aulas ininterruptas que teve com
o pai. Também contou que passou por um período intenso de seis meses para
aprender os āsana-s mais complicados. Nesta fase inicial de estudo, Desikachar

33
participava de palestras de seu pai e realizava nelas demonstrações de āsana e
prāṇāyāma.

Desikachar começou a ensinar Yoga acidentalmente, e, de fato, na ocasião quase


ocorreu um acidente. Um dia seu chefe lhe pediu para que ficasse um pouco mais no
trabalho. Como Desikachar havia combinado com um grupo de amigos de ir ao cinema,
mentiu dizendo que não poderia, pois teria que dar uma aula de Yoga.

Para sua surpresa, o chefe ficou interessado e perguntou se ele poderia lhe ensinar.
Desikachar não teve como recusar e, no dia seguinte, o chefe estava em sua casa para
a aula.

O problema foi que Desikachar não sabia o que ensinar, então aplicou exatamente o
que ele mesmo praticava. O senhor simplesmente travou. Desikachar correu para
chamar o pai, que felizmente conseguiu tirar o homem daquela situação. Ele aplicou
algumas contra poses, o colocou para relaxar e instruiu a Desikachar a aplicar nos
outros o que for apropriado para os outros, independente do que é aplicável para si.

De certa forma, esse evento desastroso o iniciou em um novo caminho. E seu pai
começou a instruí-lo para dar aulas de Yoga e propagar sua proposta filosófica.

No final de 1964, Desikachar conheceu Jiddu Krishnamurti, 1895-1986, renomado


pensador e questionador indiano. J Krishnamurti era conhecido mundialmente por
suas palestras e livros, que convidavam o leitor e espectador a rever sua forma de
pensar, levantando questionamentos sobre o medo, amor e Deus.

J. Krishnamurti viajava pelo mundo, mas passava parte do ano em Chennai. Embora já
realizasse práticas e āsana prāṇāyāma, Krishnamurti estava interessado nos aspectos
terapêuticos do Yoga, e soube que Krishnamacharya era um grande mestre nesta arte.

Desikachar começou a instruir Krishnamurti sob as orientações de seu pai. Além da


relação professor-aluno, desenvolveram uma amizade que durou até a morte de
Krishnamurti, em 1986. Foi a convite de Krishnamurti que Desikachar viajou pela
primeira vez à Europa. E, por ser professor de Krishnamurti, o jovem Desikachar
consequentemente ganhou notoriedade.

Em 1967, Krishnamacharya lhe apresentou uma jovem chamada Menaka, já


apresentada como sua futura esposa. Desikachar aceitou. Os dois se casaram e
tiveram três filhos: Bushan, Kausthub e Mekhala. A esposa, Menaka, o filho Kausthub e
a filha Mekhala se tornaram professores de Yoga.

Embora Desikachar tivesse nascido nos anos trinta e seus pais fossem religiosos, estes
não o forçaram a seguir à risca todos os procedimentos tradicionais. Seus pais
pertenciam a tradições diferentes. Quando adulto, seu pai chegou aconselhá-lo a se
adequar a algumas normas religiosas, como por exemplo, usar a marca na testa,
característica aos seguidores de Viṣṇu.

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Desikachar explicou a seu pai que na sua tradição e na de sua mãe a marca é diferente.
E, dessa forma, não usaria a marca, pois seria desrespeitoso com um lado da família.
Segundo ele, essa foi uma saída “diplomática”, para não utilizar certos padrões que
para ele eram mais simbólicos. No entanto, Desikachar possui um profundo senso de
religiosidade. Assim como grande respeito e até curiosidade por todas as expressões
religiosas.

Minha professora, que conviveu com Desikachar por anos, disse ter percebido uma
grande diferença na forma com que explicava ao longo desses anos. No início de seu
aprendizado, escutava Desikachar embasar suas explicações em critérios mais
técnicos. Com o passar dos anos, embora continuasse a trazer suas explicações para o
campo prático, também sempre costurava os temas com o conceito de
Īśvarapraṇidhāna.

Em 1976 Desikachar, com a ajuda de outras pessoas, fundou a Krishnamacharya Yoga


Mandiram, KYM, uma instituição focada em transmitir o conhecimento do Yoga.

Através desta estrutura, mais pessoas poderiam se beneficiar dos conhecimentos


transmitidos por seu pai e mestre. Krishnamacharya instruiu Desikachar sobre os
diferentes aspectos do Yoga, como āhāra niyama, mantra, bhāvana, āsana,
prāṇāyāma e a aplicações de bandha-s, além de conceitos filosóficos do Yoga e
terapia.

A iniciativa de criar esta instituição em homenagem a seu professor também tinha


como finalidade servir a população local oferecendo um centro de aplicação das
terapias do Yoga. Krishnamacharya e Desikachar tinham nascido em uma linhagem de
curandeiros, e Krishnamacharya vinha desenvolvendo e aplicando os aspectos
terapêuticos do Yoga desde os anos 30.

Com a KYM, Desikachar fez um trabalho de aproximação das técnicas e abordagens


terapêuticas do Yoga com outras terapias, e também com a medicina moderna
alopática. Para ele, o tradicional e o moderno poderiam andar juntos para ajudar ainda
mais aos que sofrem.

A empreitada não foi fácil, mas Desikachar entendia que ensinar Yoga era uma missão.
Inicialmente, a KYM tinha como sede o terraço de sua casa, que recebeu uma
cobertura improvisada. Depois se mudaram para uma pequena casa, até que, no final
da década de 80, se instalou definitivamente no local onde hoje se encontra.

Até 2009, a KYM era uma casa simples, com uma atmosfera familiar. Mas, depois, deu
lugar a um prédio, para suportar a crescente demanda.

A presença de Desikachar fazia todo o local pulsar com uma vibração leve. Todos se
sentiam acolhidos. O acolhimento era uma impressão que Desikachar causava nas
pessoas. Eu tive o privilégio de frequentar cursos, palestras e sessões de cantos
védicos. Sentia-me acolhido e instigado. E percebia o mesmo sentimento nos demais.

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Vestido de roupas simples e comunicativo, ele encantava a todos. Desikachar chamava
os alunos de amigos e, apesar da intimidade, conseguia equilibrar proximidade e
respeito mútuo. Sua casa era na esquina da KYM, então, frequentemente, os alunos do
KYM o encontravam caminhando pelas redondezas de manhã cedo, ou trocavam
dedos de prosa na frente de seu portão.

Seu conhecimento abrangente sobre Yoga, sua seriedade e humildade como professor
e sua generosidade e bom humor como pessoa o fizeram requisitado em vários
lugares. Desikachar recebeu convites para que ensinasse, em diferentes partes do
mundo, os diferentes aspectos do Yoga. Quanto mais viajava e se deparava com
diferentes culturas, mais se certificava da importância de transmitir o Yoga de forma
universal, mas ao mesmo tempo de maneira personalizada.

Apesar do estimado valor que possuía pela tradição védica e pelo Yoga, a pessoa era
mais importante do que tudo. Dependendo do interesse e abertura do aluno, ele
abordava conceitos relacionados à tradição védica. Caso contrário, não fazia menção.

Segundo seu pai, é o Yoga que deve se adequar a necessidade da pessoa, não ao
contrário. Talvez por seguir este conselho, Desikachar tenha desenvolvido uma
maneira prática e mais aberta de transmitir os ensinamentos contidos nas escrituras,
upaniṣad. E, assim, pessoas com menos entendimento sobre costumes e simbolismos
ligados à cultura védica conseguiam ter maior acesso ao conteúdo contido nessas
escrituras.

Entre todos os alunos de Krishnamacharya, Desikachar foi o mais próximo. Ele estudou
e morou como aluno na mesma casa que Krishnamacharya por quase 30 anos e, por
isso, foi o aluno que mais absorveu seu conhecimento. Assim como seu pai, ele
ensinava os múltiplos aspectos do Yoga. Isso fazia com que o fluxo de pessoas que
frequentava a KYM fosse bastante variado.

Desikachar, de certa forma, representa um elo na tradição do Yoga, um elo entre


passado e presente. O mundo, na época em que seu pai e professor aprendeu Yoga,
era diferente do mundo no qual Desikachar aprendia Yoga. E, agora, pessoas de
diferentes culturas estavam mostrando crescente interesse nessa filosofia prática.
Desikachar codificou a linguagem e sabedoria do passado para o presente.

Inevitavelmente, também teve como trabalho codificar os escritos de seu pai, que
escrevia de uma maneira um tanto enigmática. Krishnamacharya compunha e
comentava as escrituras no idioma sânscrito, mas usava a escrita do idioma de sua
família, o Telugu.

Desikachar transpôs esse trabalho para o sânscrito e, posteriormente, para o inglês.


Além do trabalho envolvendo a língua, ainda existia toda uma decifração da linguagem
metafórica, que é comum nas escrituras.

Mesmo com todo conhecimento e experiência no campo filosófico e terapêutico do


Yoga, Desikachar comparava seu trabalho com o de um carteiro. Como se

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simplesmente entregasse encomendas a seus destinos. Para ajudar a transmitir o
conhecimento abrangente do Yoga, Desikachar também escreveu seus próprios livros,
sendo “O Coração do Yoga” aquele que se tornou o mais popular.

Por aulas, atendimentos terapêuticos e livros, além de ajudar a propagar a ideia de


que a prática de Yoga deve ser personalizada, ele trouxe maior lucidez sobre o
significado do que é praticar Yoga. Através de seus ensinamentos, contribuiu para a
quebra de estereótipos relacionados à prática de Yoga.

A prática de Yoga não se limita a execução de técnicas, e as possibilidades e


abordagens são múltiplas. Ao mesmo tempo, Desikachar propagou outras ferramentas
muito importantes, que fazem parte do repertório de ferramentas clássicas do Yoga,
mas que não possuem a mesma popularidade que āsana.

Praticar Yoga significa aplicar diferentes práticas, técnicas e atitudes que em conjunto
ajudam a alavancar transformações no corpo, na mente e nas emoções do praticante.

O cuidado com a alimentação e a recitação de cânticos, por exemplo, são prescrições


comuns dentro desta linhagem. Lembro-me que entrar na antiga casa da KYM era uma
experiência sensorial prazerosa. Era possível escutar cânticos védicos e do Yogasūtra
por toda a parte.

Em 2005, toda a família acompanhou Desikachar por seminários pelo mundo,


anunciado como sua última incursão pelo mundo, pois ele gostaria de ficar mais em
Chennai e, em breve, se aposentaria como professor. Em abril, Desikachar, esposa e
dois de seus filhos estiveram no sul do Brasil. Eu pude comparecer a este seminário na
companhia de minha mãe. Desikachar fez todos rirem já no primeiro encontro: “eu
amo o Brasil, pois tem muito mamão!”, sua fruta predileta.

Em 2013, eu regressei à Índia após um intervalo de praticamente três anos. Muitas


coisas haviam mudado. Desikachar já não dava mais aulas. Já há algum tempo sua
memória começou a falhar e depois sua mente bloqueou. Essa foi a explicação que
minha professora me deu quando cheguei.

Ninguém sabia realmente o que estava acontecendo com ele. Segundo a família, os
médicos não conseguiam fechar um diagnóstico preciso. As pessoas especulavam que
ele teria desenvolvido Alzheimer. Outras acreditavam que denúncias envolvendo seu
filho tinham provocado esse bloqueio mental. Acusações de ajustes inadequados por
parte de seu filho em algumas alunas vieram à tona e, logo depois, Desikachar
apresentou esse bloqueio.

Apesar de seu quadro se agravar, ele ainda guiou sessões de cânticos, mas isso não
durou muito tempo. Desikachar, então, saiu de cena deixando um grande vazio
abruptamente. Obviamente, a instituição criada por ele sofreu com sua falta e,
inevitavelmente, se modificou sem sua presença. No entanto, continua exercendo um
maravilhoso trabalho de disseminação dos ensinamentos trazidos por ele.

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Desikachar desencarnou em 8 de agosto de 2016. Neste dia recebi de minha
professora, Sangeetha, a seguinte frase:

“a luz agora se espalhou”.

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IDOLATRIA

Embora os textos de Yoga sejam recheados de louvações ao guru, esse respeito não
significa uma idolatria. A reverência é sobre a luz que a pessoa emana e que inspira, e
não a seu ego.

A idolatria é uma fabricação de vikalpa, o processo inventivo da mente, que cria uma
narrativa imaculada sobre alguém. Devoção e idolatria são relações e emoções
diferentes.

Louvar um aspecto memorável de alguém, se inspirar em suas atitudes e ser


aconselhado por pessoas mais experientes e lúcidas trarão maior clareza a mente.
Porém, a idolatria tende a gerar uma espécie de cegueira sobre a realidade do outro. E
o que se vê não é mais a pessoa, e sim uma idealização.

A idealização de alguém tende a gerar apego a sua presença e palavras, onde o que
mais vale é o que o outro diz. Isso gera uma relação de subordinação e dependência.
Elevar o professor a guru e colocar o guru em um pedestal não é sadio para ambas as
partes.

A reverência àquele ou àquela que gera luz ocorre em silêncio no coração. Essa
inspiração se materializa na aplicação dos ensinamentos recebidos, que se
materializam, por sua vez, em ações.

Desikachar foi uma figura luminosa na vida de muitas pessoas. Mesmo assim, fazia
questão de chamar seus alunos de amigos e desmanchava qualquer insinuação de
reverência que pudesse ser exagerada. Quando ele chegava para dar aulas, todos se
levantavam em sinal de respeito. Gentilmente nos pedia para sentar, e a aula fluía com
muita troca.

Nas aulas, ele utilizava exemplos pessoais e isso o colocava em uma posição de
equivalência em relação a todos que o assistiam. Sem hesitar, ressaltava falhas em
relação a diversas situações de sua vida, e contava fatos patéticos que lhe ocorreram.

A partir dessa reflexão de equivalência, quando estudamos o Yogasūtra de Patañjali,


entendemos que todas as pessoas se igualam em um aspecto: a possibilidade de não
sustentar aquilo que se atingiu. Independente do estado de luminosidade atingido, a
regressão sempre pode ocorrer.

Exemplos:

● A regressão é o último obstáculo ao Yoga, e pode acontecer com qualquer


pessoa. [YS I.30]
● Mesmo que se atinja uma mente com capacidades extraordinárias, a relação
com estas capacidades pode provocar desvios de conduta e de foco no
indivíduo. [YS III.37, III.50, III.51]

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● Em momentos de menos discernimento, perturbações na mente podem voltar
a ocorrer devido a força dos saṁskāra-s. [YS IV.27]
● A prática de Yoga é toda intenção de se aproximar do estado de nirodha, para
aqueles que se encontram longe deste estado, e é também a intenção de se
manter próximo a este estado, para aqueles que já o alcançaram [YS I.13]. A
prática não cessa, pois a vida é dinâmica e a regressão é possível mesmo para
quem já acessou o estado de Yoga.
● Todos nós nascemos com kleśa-s, aflições, que acabam sendo a motivação por
detrás de quase todas ações que realizamos. Essas aflições podem estar em
estágio de dormência, mas sempre existirão em nós. Patañjali explica que o
medo, por exemplo, que é um dos kleśa-s, está presente até nos homens de
sabedoria [YS II.3,9,13 e 14]. Mesmo que encontremos pessoas ilustres, sua
luminosidade não significa perfeição, mas o trabalho interno de amenizar a
influência de seus kleśa-s e mantê-los dormentes.
● Īśvara é apresentado como um Puruṣa viśeṣa. Todos que encarnam encontram-
se dentro do ciclo kleśa-karma-vipāka-āśayaiḥ, mesmo que tenhamos a chance
de amenizar esse ciclo e trabalhar para nos libertarmos dele, sua influência é
intrínseca a nossa realidade.
A única exceção dentro da tradição indiana que não estariam sob a influência
do ciclo kleśa-karma-vipāka-āśayaiḥ são os chamados de avatāra, considerados
encarnações divinas. Fora esta exceção, somos todos iguais frente a kleśa-
karma-vipāka-āśayaiḥ.
Na idolatria, aprendemos menos e nos decepcionamos mais.

TIRANIA

Durante a vida somos oprimidos por diferentes forças, tanto internas quanto externas.
Yoga é explicado no Yogasūtra de Patañjali como um processo para a libertação. Para
tal, podemos nos inspirar nos outros, mas não seguir e imitar. Se não, como seremos
livres?

No Yoga, não cabe ao guru ser um tirano. Aceitar ser dependente de alguém, mesmo
que seja do guru, é aceitar uma tirania. Essa realidade diverge da intenção do Yoga,
em que o papel do professor não é o de impor sua ideologia e fé ao aluno ou passar
seus saṁskāra-s adiante [YS IV.8].

Eu escutei algumas vezes de Desikachar a seguinte frase: “não leiam meus livros!
Descubram por vocês mesmos”.

Em relação à imposição de uma crença, o exemplo de Krishnamacharya é uma boa


referência. Mesmo sendo um Vaiṣṇava ortodoxo, ele não impunha sua fé pessoal a
seus alunos. Dizia que cada pessoa deveria encontrar sua representação de Īśvara e
entender sobre o praṇava de acordo com sua crença e cultura. Por pertencer a esta
linhagem, minha professora não ensina fórmulas. Ao invés de dar a receita do bolo, ela
ensina sobre os ingredientes.

40
SĀDHAKA, O PRATICANTE DE YOGA

Yogi é uma condição muito elevada. “Não tente ser um yogin! Se concentre em estar
consciente sobre suas ações!”. Esse foi um conselho que recebi da minha mentora,
ainda nas primeiras aulas de estudo do Yogasūtra. Ao invés de almejar algo distante,
nos concentremos no que está próximo e é urgente.

O estado de Yoga ocorre através da prática para suprir o que nos é deficiente,
chamada abhyāsa, e através do abandono do que é obstáculo a conexão interna,
vairāgya. Segundo a perspectiva do Yoga, o alcance de nosso controle se limita a
entrega e devoção a abhyāsa e vairāgya. Efetivamente, nada podemos fazer para
controlar qualquer resultado.

Tentar ser algo é o oposto de vairāgya. A aproximação do estado de Yoga ocorrerá


quando o praticante se concentrar em suprir suas deficiências e abandonar as
expectativas.

Ser um praticante sincero de Yoga hoje já é uma façanha. E, para entendermos melhor
o que é um praticante de Yoga sincero, precisamos nos voltar ao sūtra que inaugura o
segundo capítulo do Yogasūtra. O tema apresentado por Patañjali é kriyā-Yoga.

Kriyā-Yoga consiste em aplicar em todas as ações três qualidades: comprometimento


sincero, autoinvestigação e entrega. Além disso, implica incorporar na vida três
posturas: assumir atitudes purificatórias, constante autoestudo e devoção.
Aqueles que conseguem tal façanha por uma duração e continuidade consistente e se
aplicam com positividade e zelo [YS I.14], seriam os praticantes que se dedicam com
sinceridade ao Yoga.

SAMĀHITAMANĀ, A QUALIDADE FUNDAMENTAL PARA O APRENDIZADO

O termo samāhitamanā aparece no YogaYājñavalkya saṁhitā no verso I.11, e se


refere a principal qualidade que o aluno deve nutrir.

Samāhitamanā = mente calma e contemplativa

Esta qualidade é novamente requerida por Yājñavalkya a seus alunos antes de iniciar
sua explanação sobre Yoga, como consta no verso I.15.

QUATRO QUALIDADES FUNDAMENTAIS PARA PACIFICAR A MENTE

● Maitrī – amor fraternal


● Karuṇā – compaixão
● Mudita – positividade
● Upekṣa – não julgar

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OS YAMA-S E NIYAMA-S

O comprometimento em relação ao kriyāyoga, assim como às quatro características


descritas no sūtra I.33 e à aplicação dos yama-s e niyama-s servem de parâmetro para
classificar o praticante de Yoga e são as principais vias para qualificá-lo ao estado de
Yoga.

A estrutura dos yama-s e niyama-s mais conhecida é a apresentada no Yogasūtra. Mas


outros textos também abordam o tema, e de maneira diferente. É o que veremos
agora:

Yama e niyama no Yogasūtra

5 yama-s

● Ahiṁsā – cuidado em relação a violência


● Satya – ser verdadeiro e coerente no pensar, falar e agir
● Asteya – não tomar posse do que não lhe pertence
● Brahmacarya – moderação em todos os atos
● Aparigrahā – não cobiçar

5 niyama-s

● Śauca – cultivar a pureza interna e externa


● Santoṣa – reconhecer e estar contente com o que se tem
● Tapaḥ - austeridade
● Svādhyāya – autoestudo
● Īśvarapraṇidhāna – liberdade do egoísmo, paciência e abertura

A evolução do sādhaka irá gerar frutos equivalentes a sua dedicação e capacidade de


abertura.

42
CAPÍTULO II – INSPIRAÇÕES
Nesta parte de nosso estudo, proponho a leitura, com enfoque no papel do professor
de Yoga, de duas obras que são referências na tradição de meus professores, o
Yogasūtra de Patañjali e o Yoga Rahasya.

O YOGASŪTRA DE PATAÑJALI - Reflexões ao professor

O Yogasūtra de Patañjali é a obra mais completa sobre Yoga. Seu conteúdo é preciso e
não dá margem a ambiguidades, mesmo que cada sūtra proporcione múltiplas
reflexões.

A linguagem do Yogasūtra é respeitosa, seus temas concretos e suas aplicações


práticas. Nele, encontramos as referências e as mais elevadas inspirações sobre o
papel do professor de Yoga.

PRIMEIRO CAPÍTULO - SAMĀDHI PĀDAḤ

I.1 atha yoga-anu-śāsanam

A palavra atha remete a uma conexão entre professor e aluno. Atha é um marco,
refere-se a um momento em que a mente se desconecta de uma estrutura anterior, de
relações e possibilidades, para então se conectar com a tradição, yoga-anu-śāsanam.
Essa possibilidade de engajamento no Yoga depende mais do aluno do que do
professor. No entanto, a presença, a receptividade e a representatividade do professor
ajudam a despertar interesse no aluno e influenciam o processo de aprendizagem.

O professor é a representação da tradição, mas a transmite acolhendo e respeitando o


interesse do aluno e todas suas necessidades. Atha é também um chamado para o
professor, que deve fazer-se pronto para receber o aluno e disposto a compartilhar.
Sem esta relação recíproca, a transmissão do Yoga não ocorre.

I.2 yogaḥ citta-vṛtti-nirodhaḥ

Yoga é definido no sūtra I.2, sendo apresentado como um estado de ausência de


conflitos, samādhāna, e harmonia, nirodha. Sendo esta a definição apresentada, o
objetivo do professor e o processo que seu aluno deve percorrer estão delineados.

I.3 tadā draṣṭuḥ svarūpe-avasthānam


I.4 vṛtti-sārūpyam-itaratra

Estes dois sūtra-s apresentam realidades opostas. O I.3 explica o que acontece quando
a mente está no estado de Yoga, ou seja, que o ser interno, que é o verdadeiro
observador ou protagonista, se expressa quando os processos mentais estão em
harmonia. Já o sūtra I.4 explica que, quando a mente não assume esta qualidade,
acaba sendo regida por suas próprias tendências, ou seja, suas aflições e impulsos.
Mas vale observar a didática utilizada por Patañjali ao apresentar estes dois sūtra-s:

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1º - Patañjali coloca a explicação do estado de Yoga em primeiro lugar. Essa ordem
provoca um impacto maior sobre o valor “positivo”, que aparece antes, frente o
“negativo”.
2º - Patañjali após explicar o que ocorre no estado de Yoga afirma que “em outros
momentos” a mente se identifica com suas próprias tendências. Se refletirmos,
sentiremos que os momentos em que a mente não está no estado de Yoga não são os
“outros momentos”, mas sim praticamente todos os momentos da nossa vida.

Com sua apresentação, Patañjali nos incentiva e inverte a situação, como se o usual
fosse a mente estar no estado descrito no sūtra I.3 e o estado descrito no sūtra I.4
fosse os outros momentos que nos distraímos. Esse detalhe já demonstra a linguagem
positiva desta obra, como se Patañjali estivesse afirmando que o estado de Yoga é um
estado natural e possível.

Pelos sūtra-s I.3 e I.4 nos certificamos que não estamos tratando de algo místico. A
mente possui diferentes modos operacionais e pode funcionar assumindo diferentes
qualidades. Essas variáveis podem proporcionar o estado de Yoga ou impedi-lo. Para
que o estado de Yoga ocorra, a mente deve ser trabalhada para assumir uma
qualidade favorável - esta é a direção a ser tomada. Qualquer objetivo que fuja a este
propósito estará almejando um outro tipo de ganho.

Assim, a direção a ser tomada fica bem definida e o papel do professor também.
Segundo o Yoga, quando a mente assume as qualidades ekāgratā e nirodha, ela está
apta a servir de suporte ao ser interno. Neste sūtra, este ser interno é representado
pela palavra drṣṭā, fazendo alusão a potência de observar. O que impede que o
observador tenha uma percepção clara e direta? Esse é o tema do sūtra I.4. que explica
que na ausência das qualidades mentais favoráveis à conexão interna, a mente
naturalmente se limita a reagir de acordo com suas próprias identificações.

Dentro da tradição do Yoga, o professor é quem apresenta ao aluno esses dois


momentos e o orienta para migrar da condição descrita no sūtra I.4 em direção a
situação ilustrada no sūtra I.3.

I.5 vṛttayaḥ pañcatayyaḥ kliṣṭa-akliṣṭāḥ


I.6 pramāṇa-viparyaya-vikalpa-nidrā-smṛtayaḥ
I.7 pratyakṣa-anumāna-āgamāḥ pramāṇāni
I.8 viparyayaḥ mithyā-jñānam-atadrūpa-pratiṣṭham
I.9 śabda-jñāna-anupātī vastu-śūnyaḥ vikalpaḥ
I.10 abhāva-pratyaya-ālambanā tamaḥ vṛttiḥ nidrā
I.11 anubhūta-viṣaya-asaṃpramoṣaḥ smṛtiḥ

Desconectada ao ser interno, a mente assume um modo operacional reativo. Suas


expressões são simplesmente reflexos de memórias, atividades mentais e
condicionamentos reagindo a estímulos.

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No sūtra I.5, Patañjali elenca os cinco movimentos básicos da mente, que podem ou
não ser causas de aflições. Tudo depende se a mente está a deriva em meio às
experiências que vive, ou conectada ao ser interno. Do sutra I.6 ao I.11, Patanjali
explica cada um desses movimentos básicos. Estes vṛtti-s (movimentos da mente)
servem para mapear as direções que a mente toma, e assim entender sobre seu
estado.

Os 5 vṛtti-s:
Pramāṇa
Viparyaya
Vikalpa
Nidrā
Smṛti

Pramāṇa é possível de três maneiras:


Pratyakṣa
Anumāna
Āgamā

O professor representa āgamā, pois é quem oferece a instrução, como já foi entendido
no primeiro sūtra do Yogasūtra. Para que o professor seja a referência, deve instruir
de acordo com a tradição do Yoga. E, para que o professor consiga transmitir essa
instrução, precisa, primeiramente, ter sido iniciado nela, tendo experiência em suas
práticas e sendo também orientado por um professor.

Mas outro ponto merece reflexão. Apesar de ter suas próprias experiências, o
professor deve dar as orientações e incentivar seu aluno de acordo com a condição e
capacidade do mesmo.

Além de servir como referência, āgamā, o professor pode influenciar sobre a


capacidade de inferência do aluno (anumāna). Isso pode ser positivo ou não. Quando o
professor não é claro, ou omisso, o aluno tende a inferir o significado das práticas, dos
conceitos e até mesmo do objetivo de tudo isso. Essa inferência pode levar o aluno a
construir ideias equivocadas e especulações que não são sadias.

Quando a relação entre professor e aluno é boa, o professor instiga reflexões no aluno
e o educa para utilizar a inferência com uma linha de raciocínio que lhe ajude a,
futuramente, caminhar sozinho.

Um dos principais papéis do professor é capacitar o aluno a ter pratyakṣa, experiência


direta. Ou seja, a vivenciar os ensinamentos do Yoga por ele mesmo, para além da
inferência e das referências que o professor transmite.

O vṛtti pramāṇa (movimento para compreensão adequada de algo) é relevante para o


professor. O professor avalia seu aluno também pela experiência direta, inferência e
referências. Mesmo que haja a relação e o contato direto, muitas vezes o professor é
induzido ao engano, pois a percepção direta não é um movimento simples. Muitas

45
vezes os sentidos se enganam, e o que sentimos sobre o aluno não reflete exatamente
sua realidade.

A inferência, anumāna, e, principalmente, a busca por referências, āgamā, são


fundamentais.

Certa vez uma amiga trouxe um amigo seu para ter aulas comigo. Nesse primeiro
contato, eu conversei com esse homem para entender mais sobre ele. Nossa amiga em
comum esteve presente na entrevista e escutou todo seu relato. Quando nos
despedimos ela me sussurrou o seguinte: "Diego, sabe isso tudo que ele relatou sobre
si? Então, é exatamente o oposto do que ele disse”.

O relato de uma pessoa sobre si e sobre sua realidade pode não coincidir com o que
realmente está passando com ela. Isso ocorre por uma falta de percepção adequada
ou por uma fantasia sobre sua realidade.

É na convivência que o que somos se revela. O relato de um amigo, companheiro ou


familiar funciona para o professor como āgamā. Na presença do professor e de um
ambiente que seja tranquilo, o aluno pode estar calmo e positivo. Nossos humores
reagem dependendo do local e das pessoas com quem nos relacionamos. Por isso, no
momento da entrevista, ou da aula, o aluno pode se portar de um jeito, e isso não se
repetir em outros momentos da sua vida.

Conversar com parentes e amigos é um recurso que pode ser usado pelo professor
para entender melhor seu aluno.

Para citar outro exemplo, comecei a dar aulas para um aluno com aparente
agravamento de kapha. Ao conversar com seus pais, descobri que esta pessoa estava
em tratamento psiquiátrico e tomava diferentes medicamentos. Isso me ajudou a
repensar e reajustar suas práticas.

Sobre viparyaya (sūtra I.8): é semelhante ao movimento para o conhecimento


(pramāṇa), mas, devido a fatores como falta de clareza e instrução, se torna o
movimento que traz a ilusão.

O professor deve saber trabalhar com o erro do aluno. O erro, a sensação de dúvida e
de desorientação são importantes. Essa experiência pode construir a motivação para
sair do engano.

Minha professora trabalhava algumas vezes me induzindo ao erro. Isso serviu como
aprendizado de diferentes formas. As vezes ela me deixava construir uma ideia em
relação a um tema ou tipo de prática que não era a adequada e, mais a frente, eu
mesmo tinha a experiência de que aquilo não fazia sentido.

Em uma ocasião ela me induziu a mudar de opinião sobre um conceito que eu


acreditava ter entendido. Então, após alguns dias ela disse que meu entendimento

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sobre aquele conceito estava coerente e que eu deveria acreditar no que
verdadeiramente sinto. Não só no que ela fala.

Dependendo da situação do aluno, o professor pode deixar uma verdade ser


entendida posteriormente. Muitas vezes, o aluno ainda não está maduro para refletir
sobre fatos e temas sem que isso abale ainda mais seu estado mental.

No Yoga tratamos de temas bastante complexos, que podem nos abalar, pois
demonstram nossas limitações. Enquanto o aluno não tiver a firmeza suficiente para
lidar com realidades que o desestabilizem por completo, elas devem esperar o
momento oportuno. Manter viparyaya até que o aluno esteja pronto tem relação com
o conceito chamado dṛdha. Segundo este conceito, para que as mudanças ocorram e
sejam seguras, o praticante deve contar com um “porto seguro”.

O professor precisa entender o momento e respeitar a capacidade do aluno de reagir a


realidade. Se preciso, deve esperar o momento, e quando for possível, ajudar a criá-lo.

Esses são exemplos de como trabalhar com viparyaya para que os enganos possam
virar acertos.

O sūtra sobre viparyaya também merece atenção pelo fato de que o professor irá se
iludir sobre a realidade do aluno. Lembro-me de Desikachar nos dizer que já cometeu
inúmeros erros ao avaliar um aluno e aconselhar um tipo de prática. Inevitavelmente o
professor trabalha com erros e acertos. É necessário devoção para que os acertos
ocorram e humildade para reconhecer os enganos.

Sobre vikalpa (sūtra I.9): os ensinamentos do professor não devem gerar fantasias, dar
asas à imaginação ou gerar expectativas. Esse é um grande desafio, pois não podemos
ter o controle sobre o que falamos. Mas podemos contribuir para diminuir as fantasias
em relação ao processo do Yoga e às possíveis interpretações equivocadas sobre seu
progresso. Muitas vezes imaginamos algo que não somos ou estados que não
conhecemos. O professor pode ajudar a trazer ao aluno um senso de percepção que o
coloque mais próximo da realidade.

Por sua vez, o professor deve se orientar menos pela sua imaginação em relação ao
aluno e instruí-lo mais pela precisão de uma boa observação e intuição (lembrando
que imaginação e intuição brotam de lugares diferentes).

Sobre nidrā (I.10): uma reflexão relevante a ser conduzida pelo professor é sobre o
respeito em relação ao processo do sono. A instrução para respeitar o processo do
sono fará com que o aluno reavalie sua rotina como um todo. O sono profundo é um
momento reparador para todo o sistema. E pode ser um canal para a intuição e
presságios. Se o sono não é reparador, as práticas que este praticante realiza devem
ser voltadas para que essa realidade consiga ser transformada.

47
A qualidade do sono do aluno pode ser utilizada pelo professor como um indicativo
sobre sua condição. Sabendo como anda o sono do aluno, o professor consegue avaliar
o resultado das práticas que foram propostas por ele.

Sobre smrti (I.11): podemos trazer inúmeros aspectos. Tradicionalmente o professor


preparava a memória do aluno e, só então, o instruía sobre os aspectos mais
relevantes do Yoga. Isso demonstra como a memória possui um papel importante no
aprendizado.

A ideia é simples. Antes de construir uma horta é preciso preparar o terreno, revirar a
terra e tirar as ervas daninhas. Um processo sadio de praticar e ensinar Yoga
transcorre na seguinte ordem: limpar → gerar movimento → nutrir.

Limpar tem relação também com afastar as memórias que mantêm a mente presa a
negatividades, assim como afastar as reatividades que não ajudam no processo de
transformação interna.

O processo de positivar a mente necessita, inicialmente, do acesso a memórias


positivas. A relação entre professor e aluno é uma oportunidade de construção de
memórias positivas. Quando em dificuldades, o aluno tem o recurso de se recordar dos
ensinamentos, dos momentos de aprendizado e de construção de um estado de maior
clareza. Esse vínculo e lembranças podem ser cruciais para que o aluno consiga mudar
a chave do humor mental, do negativo para o positivo.

A lembrança da instrução, da troca e do convívio entre professor e aluno é


enriquecedor e forte combustível para o aluno. Desikachar uma vez comentou que seu
pai já não estava vivo, mas seu professor nunca havia morrido. Sabemos que se trata
da mesma pessoa. Krishnamacharya era pai e professor de Desikachar, mas os
ensinamentos e a presença do professor continuavam vivos em suas reflexões, pois
esteve próximo e influente na construção deste processo reflexivo.

Um outro passo, além da importância de construir memórias positivas, é a renovação


ou ressignificação do nosso banco de dados. Patañjali no sūtra I.43 explica esse
processo. O professor tem a oportunidade de propor reflexões que gerem gatilhos
para que memórias enrijecidas sejam reavaliadas e possam receber uma nova carga
emocional.

I.12 abhyāsavairāgyābhyāṁ tannirodhaḥ

No sūtra I.12 o conceito de abhyāsa e vairāgya é explicado. Este é um sūtra de


devoção. Abhyāsa e vairāgya tratam, respectivamente, de entrega e de abandono, que
são as duas intenções que constroem o caminho para o Yoga e que formam a maneira
de viver do praticante. O sūtra é um incentivo a um modo oposto do que somos
educados e fazemos.

Normalmente, nós usamos nossa energia para ir atrás do que desejamos, e não do que
necessitamos para nos lapidarmos. Vivemos acumulando memórias, ideias e

48
influências que se tornam tão fortes a ponto de não nos vermos desassociados delas -
que não necessariamente nos serão úteis no processo de autolapidação.

Coloco estes sūtra-s sobre abhyāsa e vairāgya como sūtra-s devocionais porque
tratam de reconstrução e abandono. Do resgate de uma força interna para provocar
ações que podem ser contrárias aos caminhos habituais da mente de busca por
desejos e associações com o já conhecido.

Estes sūtra-s tratam de uma força interna. Por eles, nós nos autoavaliamos e também
entendemos a situação do aluno.

I.13 tatra sthitau yatno`bhyāsaḥ

Patañjali explica que a mente atinge serenidade pela prática e pela entrega. Prática de
construir a serenidade e de abandonar tudo que prejudica a serenidade. Frente a este
desafio, āhāra niyama, vihāra niyama e vicāra niyama são alicerces para abhyāsa, que
consequentemente geram segurança para a entrega. Sem āhāra niyama, vihāra
niyama e vicāra niyama dificilmente conseguiremos construir e sustentar as mudanças
que necessitamos, e nem o caminho a ser seguido.

É papel do professor instruir e servir de exemplo sobre bons hábitos alimentares, boa
rotina e bom cultivo de atitudes mentais.

I.14 sa tu dīrghakāla nairantarya satkāra ādarā āsevito dṛḍhabhūmiḥ

No sūtra I.14, os resultados de abhyāsa serão sólidos e constantes quando nutridos de


quatro qualidades:

Dīrgha-kāla – longo tempo


Nairantarya – continuidade, constância
Sat-kāra – positividade, dedicação verdadeira, devoção
Ādara – zelo, respeito

Abhyāsa é todo empenho devotado a nirodha. O empenho não é sobre um tipo de


prática, porque, na verdade, praticamos qualidades. Essas qualidades representam o
conceito de Kṣema. Ao sustentar algo novo, o velho é deixado de lado. Assim bons
hábitos, valores e qualidades substituem maus hábitos, valores e características. O
professor atento observa essas qualidades no aluno, e as incentiva. E, através do
incentivo de bons hábitos que estejam ao alcance do aluno, incentiva a prática da
constância.

Ainda sobre abhyāsa, no fundo, quem ensina não é o professor, mas seu o resultado
de empenho. Por exemplo:
- é a força da prática do professor que serve de inspiração para o aluno.
- é a experiência direta do praticante que o permite transmitir aos outros algo
verdadeiro. Quem está dedicado a abhyāsa fala de um lugar de experiência própria.

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Quem ensina na verdade não é um professor teórico. No Yoga, quem ensina é o
praticante que existe no professor. A prática e o desprendimento do praticante é o
que faz com que os outros lhe deem crédito, confiança e é o que gera interesse em ser
seu aluno.

E sobre vairāgya, o grande desafio é conseguir se relacionar sem estar preso. Contar
com memórias e referências, sem se limitar ao que foi vivenciado no passado e nem
projetar ilusões para o futuro.

Desde o início, o professor deve direcionar o aluno a autonomia. E, pelos exemplos do


professor, o aluno pode entender e se sentir seguro para realizar os abandonos de
hábitos, ideias e “verdades” que não servem mais.

I.17 vitarka-vicāra-ānanda-asmitā-rūpa-anugamāt-saṃprajñātaḥ
I.18 virāma-pratyaya-abhyāsa-pūrvaḥ saṃskāra-śeṣaḥ anyaḥ
I.19 bhava-pratyayaḥ videha-prakṛti-layānām

Nestes sūtra-s, Patañjali explica o processo de samādhi. Ele se inicia em pratyakṣa,


progredindo dos aspectos grosseiros para o sutil. O abandono está em todos os
degraus desse processo.

Vitarka – rūpa: é a interação superficial, limitada apenas à dimensão intelectual, sobre


os aspectos grosseiros de um objeto. Para ir além é necessário desconectar do
conhecido.

O professor é quem encaminha uma direção e traz assuntos e objetos que ajudem a
purificar as redes de associações. É possível trazer temas relevantes que substituam os
assuntos de outrora, que possivelmente geravam agitação, e irão permitir o degrau
seguinte.

Vicāra – rūpa: é a interação com a essência do objeto. A percepção é interna, não


somente sensorial. O objeto de foco deve ser especial, luminoso e a conexão, especial.
Este é um grande desafio, pois normalmente nossas interações são superficiais, não
ocorrem de maneira especial e nem conseguem ser sustentadas a ponto de gerar
oportunidades para revelações ocorrerem.

Ānanda – rūpa: é uma plenitude que desabrocha pela experiência direta e especial
com um objeto, que gera a sensação de serenidade, pela fusão ou confluência.

Asmitā – rūpa: é o total abandono pelas formas anteriormente assumidas. Trata-se da


total imersão e confluência da mente, a ponto de perder sua própria identidade. A
liberdade ocorre como consequência.

A liberdade não é uma ideia. É a experiência de desprendimento ou não identificação


da mente com outra coisa que não seja o ser, Puruṣa. O professor não controla nem
pode dar essa liberdade, mas pode ajudar a engatilha-la.

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No sūtra I.18 o estado de samādhi sem semente é explicado. Ele ocorre sem um
processo racional, como o descrito no sūtra anterior, por ser desprendido de
condicionamentos.

No sūtra I.19 Patañjali explica que o samādhi sem semente é de certa forma acessível
ou natural para seres desencarnados ou para quem está totalmente imerso em um
processo de relação harmônica com a matéria. É um sūtra que demonstra uma
distinção: trata-se de seres especiais, espíritos luminosos, videha, ou seres especiais.
Observe a palavra pratyaya, que é uma qualidade da mente.

Este sūtra serve também para nós, praticantes, não nos iludirmos quanto ao nosso
estágio. Assim focamos no processo adequado a nós, que será descrito no próximo
sūtra.

I.20 śraddhā-vīrya-smṛti-samādhi-prajñā-pūrvakaḥ itareśām

Este pode ser entendido como o “sūtra do coração a frente da razão”. Ele apresenta a
pedagogia do Yoga, na qual, primeiro, vem a abertura, a entrega - e a entrega sem
saber a que. Da entrega vem vīrya, a força ou o entusiasmo. Se estamos falando de
Yoga, estamos falando de transformação e esta necessita de abertura e disposição.
Sendo a entrega, a abertura o primeiro quesito desta pedagogia, temos também o
primeiro objetivo do professor de Yoga. Śraddha é uma palavra cognata de hṛdayam,
coração. O professor deve trabalhar para abrir o espaço do coração, ou seja, sua
dimensão emocional (vijñānamaya kośa). Mas, para que isso ocorra, é necessário
construir confiança, já que, para a grande maioria de nós, a entrega ocorre quando nos
sentimos seguros.

Como o professor pode proceder para transmitir confiança do aluno?


Ele ou ela precisam:
● de sinceridade;
● de coerência;
● de transparência;
● de respeito;
● de lealdade;
● saber escutar;
● não diminuir ou ridicularizar a dor do outro;
● não criticar, diminuir ou ridicularizar o outro;
● não ser impositivo*;
● ser compassivo.

*Temos a imagem do professor de Yoga “durão”. Dependendo da fase da vida, o


professor muda a didática. Para crianças, o professor é um educador, podendo ser
“durão”. Mas, para adultos, o professor é um conselheiro. Não devemos misturar os
papéis.

51
Śraddha neste sūtra pode significar pelo menos 3 coisas.

● Confiança no professor;
● Confiança no processo do Yoga;
● Confiança em si.

O professor atua nesses três pontos!


1º - Dando motivos para possibilitar confiança e conexão;
2º - Servindo de exemplo e mostrando o caminho, o mapa;
3º - Além de instruir e trazer a possibilidade de uma melhor autopercepção, o
professor deve acreditar no aluno. Como? Dando-lhe autonomia. Instruir e dar
autonomia. Isso diz ao coração do aluno: “você pode, você consegue”.

E devemos estar cientes que o oposto a śraddhā é o medo. Sendo assim, o professor
deve trabalhar primeiro o medo. Obviamente, no primeiro contato o professor não
consegue sentir a relação do aluno com seus medos. E nem entender quais seriam
estes. Mas, enquanto este entendimento vai surgindo, o professor pode trabalhar, no
aluno, maturidade, capacidade de autopercepção e tudo que ajuda a deixá-lo mais
preparado para lidar com seus medos.

Śraddhā é também traduzida como fé. O professor deve entender no aluno sua relação
com a fé. A fé pode ser um medo. Exemplo: quanto mais medo uma pessoa sinta,
maior pode ser a fé em algo que a proteja. A fé pode ser um desejo. Exemplo: eu
tenho fé no que o professor diz, pois desejo um resultado, um ganho.

A fé ligada ao meio e sendo provocada por um desejo é limitada. O sūtra nos remete
ao contato com o lugar em nós de onde brota a fé. Onde há luz e não medo. Da
ausência de medo surge vīrya.

Sem śraddhā, vīrya é contaminado. Lembremos da relação entre kleśa-karma-vipāka-


āśayaih, sendo vipāka o resultado e āśayaih a impressão gerada. O empenho, tendo o
medo como propulsor das ações, gera como resultado sentimento de medo, pois a
vibração da ação se reverbera no resultado desta ação. Agindo assim não saímos desse
ciclo.

Depois de vīrya vem smṛti, que quer dizer memórias, mas também meditação.
Precisamos de memória para:
● não nos perdermos;
● para continuar sabendo ler o mapa;
● para lembrarmos que somos capazes;
● lembrar dos recursos que possuímos;
● saber de onde viemos, onde estamos e para onde vamos;
● lealdade ao propósito.
Em tudo isso o professor pode interferir sadiamente.

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Smṛti, nesse contexto, também quer dizer meditação, pois significa rever, rever, rever,
até ter uma revelação. E demonstra uma persistência, que é tão necessária para as
transformações.

Na sequência śraddha – vīrya – smrti, o que vem em seguida é samādhi-prajña, que


aqui significa a clareza que surge das experiências meditativas. O processo de
introspecção da mente proporciona aproximação entre a mente e o ser interno e
permite uma vivência direta com os objetos com os quais se interage. Essas
experiências devem ser depositadas no caminho do Yoga, ou seja, para ajudar no
processo de autodesenvolvimento.

Aqui podemos interpretar algo recorrente na didática de Patañjali, mesmo que não
esteja explícito neste sūtra. As experiências podem ser utilizadas para diferentes fins.
Patañjali reforça a ideia de que todas vivências e aprendizados sejam utilizados para
potencializar o processo de transformação interna, e seguir rumo ao mais elevado
estado de liberdade – pelo que entendemos na narrativa de Patañjali, śraddha, vīrya,
smrti e samādhi-prajña podem levar a asaṁprajñāta samādhi.

I.21 tīvra-saṃvegānām-āsannaḥ ||21||


I.22 mṛdu-madhya-adhimātratvāt-tataḥ api viśeṣaḥ ||22||

O caminho depende de quem o percorre e com qual recurso.

Os sūtra-s I.21 e I.22 falam da possível distância em que o estado de Yoga se encontra.
É uma reflexão ao professor sobre a qualidade do praticante. Vyāsa explica 9
possibilidades.

Para que o professor consiga instruir adequadamente o aluno, é necessário entender


sua realidade e necessidade. Diferentes abordagens podem ser usadas para isso e
algumas serão explicadas em outro capítulo.

I.23 Īśvara praṇidhānādvā

Īśvarapraṇidhāna é o sūtra da entrega, mas trata-se de uma entrega endereçada: a


entrega a uma força maior. Maior do que nossos desejos e intenções. A entrega a
Īśvara, uma força superior, é sem barganhas e interesses autocentrados.
Aqui cabem muitas reflexões:

● Nós não temos as respostas sobre todas as coisas;


● Nós não temos o controle sobre o destino das coisas;
● Nós não somos donos de nossa existência;
● Neste mundo o que realmente possuímos é a nossa capacidade de entrega, e o
que controlamos na vida é apenas a abertura do diafragma do coração;
● Nós não temos o poder de ajudar ou de mudar as pessoas, apenas de
influenciar de forma indireta.

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Em relação ao aluno, o professor não tem o controle de quem vem até ele. Também
não tem o controle de como emocional ou fisicamente essa pessoa vem, e não há o
controle sobre o seu progresso.

Reflexão sobre a palavra praṇidhāna: praṇidhāna é, primeiramente, uma profunda


meditação. Praṇidhāna trata de uma renúncia ao controle. Uma relação tão especial
com algo que as partes envolvidas interagem em simbiose. Refere-se a uma relação
que acontece com leveza, embasada na continuidade e na aceitação. Esse termo deve
inspirar a relação entre professor e aluno.

O sūtra também traz uma reflexão sobre a fé do professor, que não deve ser imposta
ao aluno. O sutra é Īśvarapraṇidhānādvā. “vā” significa “ou”, e isso é muito
significativo. Patañjali explica neste sūtra o que talvez seja a ferramenta mais eficaz
para pacificar a mente, mas ao mesmo tempo coloca esta relação como uma opção.
Isso é uma aula para o professor refletir sobre respeito e aceitação perante o rumo
que os outros tomam e suas crenças pessoais.

Por este sūtra entendemos por que Krishnamacharya, que era ortodoxo, não
impunha suas crenças pessoais e sua fé religiosa a seus alunos.

I.24 kleśa karma vipāka āśayaiḥ aparāmṛṣṭaḥ puruṣaviśeṣa īsvaraḥ

Īśvara é descrito como um princípio distinto. Por quê? Porque não é


tocado/influenciado/ limitado/contaminado pela sequência de fatores que envolve e
limita a todos. A sequência é:

kleśa-karma-vipāka-āśayaiḥ

● kleśa - tormenta, aflição, causa de sofrimento


● karma - ação, atividade e consequência
● vipāka - fruto, consequência sentida
● āśayaiḥ - consequências sutis, impressões que ficam registradas.
O trabalho do professor é cuidar desse ciclo e fazer seu aluno consciente do mesmo.
Īśvara seria, então, a representação da pureza, pois não é contaminada por essa
sequência. O professor pode utilizar essa referência de pureza para conduzir o aluno
a essa luz. Mirando na verdade, na luz, no néctar. Assim como é dito no mantra:

Asato ma sat gamaya


Tamaso ma jyotir gamaya
Mrtior ma amrtam gamaya

I.25 tatra niratiśayaṁ sarvajñābījam

Īśvara, essa luz, é apresentado como um professor ou guia espiritual. Sendo a


referência mais elevada, a semente (bījam) incomparável (niratiśayaṁ) de toda
sabedoria (sarvajña).

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I.26 sa eṣa pūrveṣāmapi guruḥ kālenānavaccedāt

Īśvara é intocado pelo tempo, como se tivesse sempre existido. É o primeiro guru, no
sentido de ser a fonte de toda luz. Isso é significativo para o professor: existe o
professor externo e o professor interno, e cabe ao professor externo conectar o
aluno a seu professor interno.

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I.27 tasya vācakaḥ praṇavaḥ

Patañjali apresenta o caminho para a conexão com essa luz pela evocação
vibracional. A ferramenta é praṇava.

Muitas reflexões podem ser feitas pelo professor.

1. Segundo Desikachar, o conceito praṇava não deve se limitar à tradição


indiana, já que a proposta do Yoga é universal.
2. O sūtra traz o conceito de Mantra-yoga e de Bhakti-yoga, sem separação
entre ambas abordagens.
3. O praṇava é um som, uma vibração. Vibração é a primeira manifestação do
imanifesto. A voz, ou vibração da voz do aluno, revela como está seu interior.
O professor pode assim entender muitas coisas sobre seu aluno. Coisas que
estão além das palavras que o aluno verbaliza. Segundo a Sangeetha, esse
sūtra é um dos mais importantes para o professor de Yoga.
4. O som é vibração e energia. Krishnamacharya aplicava som na prática de
āsana para incrementar o agni do corpo e da mente (atenção/foco),
potencializando a possibilidade de purificar o sistema.

I.28 tadjapaḥ tadarthabhāvanam

Neste sutra, Patañjali explica como utilizar o praṇava. O praṇava deve ser repetido
sem ser de forma mecânica, como tudo proposto pelo Yoga, assim como com
reflexão sobre seu significado e sentindo seu efeito. É uma meditação, ou seja, algo
vivo, não simplesmente uma revisitação de uma memória.

“Repetir-refletir-sentir” é uma sugestão de sequência a ser reproduzida também em


outras aplicações. O professor pode incentivá-la sem que seja explícita.

Desde o sūtra I.23, Patañjali está relatando, trazendo, um assunto delicado, com
reflexões e sugestões de práticas de mesma natureza. É importante que o professor
não esqueça e não deixe seu aluno esquecer que o Yoga trata de algo delicado, de
maneira sensível.

I.29 tataḥ pratyakcetanādhigamaḥ api antarāyābhāvśca

O sūtra I.29 é um sūtra “sincero”. A transparência de Patañjali é inspiradora.

Há quem ache que o Yoga é um caminho fácil e que trará as mais incríveis
recompensas. O professor não deve dar margem a interpretações românticas, já que
o Yogasūtra trata dos eventuais resultados com muita honestidade e simplicidade.

Aqui neste sūtra Patañjali explica o resultado de Īśvarapraṇidhāna e mantra-yoga:


1º - redução dos obstáculos que perturbam a mente;
2º - cetena (a consciência interna) se revela.

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Os resultados são concretos e simples, não místicos ou fantasiosos. A perturbação
diminui e, assim, o que está dentro de nós, em camadas mais profundas do que
nossa personalidade, se mostra. E, ainda, o segundo resultado depende do primeiro,
que é retirar algo inapropriado, mas de maneira apropriada.

Este segundo resultado, que usa o termo “se revela", indica que é um processo sob o
qual não temos controle. Isso demonstra o cuidado com a construção deste
caminho. Trabalha para possibilitar que os efeitos surjam.

I.30 vyādhi styāna saṁśaya pramāda ālasya avirati bhrāntidarśana


alabdhabhūmikatva anavasthitatvāni sittavikṣepāḥ te antarāuāḥ

Aqui são apresentados os obstáculos a serem retirados - e novamente surge a ideia de


retirar coisas, remover, de se livrar.

1. doença;
2. peso;
3. falta de direção (dúvidas);
4. pressa;
5. falta de energia;
6. atração por objetos;
7. percepção falsa (sobre ele mesmo e seu progresso);
8. incapacidade de manter a constância;
9. regressão;

Obstáculos estes que podem nos acometer a qualquer instante, tanto como
praticantes quanto como professores.

I.31 duḥkha-daurmanasya-aṅgam-ejayatva-śvāsa-praśvāsāḥ vikṣepa-sahabhuvaḥ

Patañjali apresenta sintomas de agitação. Este sūtra traz uma pauta para avaliar o
aluno, pois explica os sintomas da mente agitada:

1º- duḥkha – Campo emocional. Dor, desconforto emocional;


2º- daurmanasya – Campo mental. Negatividade, melancolia, desespero;
3º - aṅgamejayatva – Campo físico. Expressão corporal alterada;
4º - śvāsa – praśvasa – Campo energético. Respiração perturbada.

As dores do campo emocional são mais graves. Por isso o professor deve acolher seu
aluno. Mas o campo emocional e mental são mais difíceis de serem percebidos.
Corpo e respiração são mais fáceis de serem trabalhados inicialmente. Por isso é
que, na prática, o professor trabalha primeiramente com a respiração e com corpo,
mas é para chegar à mente e às emoções. Toda instrução e aplicação que fica
restrita apenas a dimensão física é limitada. A proposta do Yoga não se limita a isso.

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I.32 tat-pratiṣedha-artham-eka-tattva-abhyāsaḥ

A sugestão aqui é abandonar as pluralidades e focar em uma coisa só de cada vez.


Um passo de cada vez, uma abordagem de cada vez, cada fase da prática sendo
cumprida de cada vez, e cada fase da vida vivida no seu devido momento.

Quando o professor realizar um procedimento de cada vez, isso não sobrecarrega o


aluno.

I.33 maitrīkaruṇā muditopekṣāṇāṁ sukhaduḥkha puṇyāpuṇyaviṣayāṇāṁ


bhāvanātaḥ cittaprasādanam

O I.33 é o “sūtra do amor”.

As qualidades apresentadas para dissipar os obstáculos (descritos no I.30) também


devem ser qualidades do professor:
● ser amigo,
● ser piedoso,
● ser positivo,
● ser justo (upekṣa) – não diminuir/criticar. Liberar o aluno quando não há mais
o que lhe ensinar. E criar a distância que seja adequada.

I.34 praccardana vidhāraṇābhyāṁ vā prāṇasya


I.35 viṣayavatī vā pravṛttirutpannā manasaḥ sthiti nibandhinī
I.36 viśokā vā jyotiṣmatī
I.37 vītarāgaviṣayaṁ vā cittam
I.38 svapnanidrā jñānālambanaṁ vā
I.39 yathābhimata dhyānādvā

Do sūtra I.34 ao I.39, Patañjali apresenta meditações para livrar a mente dos
obstáculos. São exercícios para criar um movimento em direção a algo mais luminoso.

No sūtra I.34 Patañjali traz a palavra Pracchardana – novamente a ideia de eliminar,


um grande direcionamento do professor. Novamente, a primeira ideia para
tranquilizar a mente é a de limpar.

Antes da aula começar, o professor deve estar limpo de outras identificações que
não sejam a de professor. No início da aula, é necessário procedimentos que ajudem
o aluno a se desvincular com o fizera antes e focar. Uma conversa, uma recitação ou
um relaxamento são alguns exemplos. Após o término da aula o professor deve
buscar maneiras de se esvaziar. Fazendo alguns ciclos de prāṇāyāma ou tudo aquilo
que o ajude para não se apegar as cargas que a aula possa ter gerado.

O sūtra I.35 incentiva a rever valores e a retirar as ideias enrijecidas. A proposta é


investigar relação dos sentidos como os objetos. O professor precisa rever
constantemente valores para não ficar congelado em suas convicções.

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Em I.36, Jyotiṣmati – a sugestão é se conectar com a luz interna. O professor pode
influenciar o aluno a caminhar nesta direção interna, e, pela reflexão trazida no
sūtra, deve ensinar deste lugar interno onde há luz.

O ato de ensinar Yoga é uma possibilidade de manter-se devotado à conexão


interna.

Em I.37, vītarāga sugere buscar referências externas. O professor pode trazer boas
referências, ou ser ele mesmo uma boa referência para o aluno. Ao mesmo tempo, o
professor precisa de boas referências, pois haverá inúmeros desafios. Sem
referências, provavelmente nos perdemos.

No sūtra I.38, Patañjali explica a importância sobre investigação do sono. O sono


revela muito sobre nossa rotina. O professor de Yoga precisa cuidar de sua rotina,
pois, caso contrário, dificilmente evoluirá como praticante e como professor.

O sūtra I.39 é marcante. Patañjali explica que qualquer objeto que leve a serenidade
pode ser usado. A curto prazo podemos de fato utilizar tudo a nosso alcance que
diminua a dor emocional. Mas pensando a longo prazo não é qualquer ferramenta, e
sim qualquer uma que seja luminosa. O professor pode ajudar a orientar seu aluno
nesse sentido.

I.40 param-āṇu paramamahattvāntaḥ asya vaśīkāraḥ


I.41 kṣṇavṛtteḥ abhijātasyeiva maṇeḥ grahītṛ grahaṇa grāhyeṣu tatstha tadañjanatā
samāpattiḥ
I.42 tatra śabdārthajñānavikalpaiḥ saṇkīrṇā savitarkā samāpattiḥ
I.43 smṛtipariśuddhau svarūpaśūnyeva arthamātranirbhāsā nirvitarkā

A partir do sūtra I.40, se inicia a explicação sobre o processo de meditação profunda.


Nota-se que tudo é explicado com clareza, e os resultados descritos transcorrem
naturalmente. “Do menor objeto ao maior, tudo pode ser compreendido por uma
mente livre de obstáculos”. Também podemos entender este sūtra no sentido de que
tudo fica interessante, pois tudo gera aprendizado.

O sūtra I. 41 fala sobre liberdade em relação ao passado. Mente como um cristal


(novamente a ideia de limpar). O I.42 fala sobre o emparelhamento das ideias, da
percepção e do objeto. O professor mostra o espelho ao aluno e o permite ver
incoerências sobre sua autopercepção.
Nesse sūtra, também podemos perceber como o Yoga se assemelha em vários
aspectos a processos também entendidos na psicanálise.

No sūtra I.43, a importância do processo de purificação da memória para seguirmos


leves para novas experiências é explicada. Através de reflexões e de práticas que
permitam a introspecção, é possível realizar um passeio pelo passado. O processo de
ressignificar a memória, e principalmente as cargas a que elas remetem, traz a mente
novo brilho. Mas neste processo deve-se ir com calma e respeito. Muitas amarras

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afligem o campo emocional, que deve ser trabalhado gradualmente e com maturidade.
O apoio do professor é uma grande ajuda.
I.44 etayaiva savicārā nirvicārā ca sūkṣmaviṣayā vyākhyātā
I.45 sūkṣmaviṣayatvaṁ ca aliṇgaparyavasānam
I.46 tā eva sabījaḥ samādhiḥ
I.47 nirvicāravaiśāradye adhyātmaprasādaḥ
I.48 ṛtaṇbharā tatra prajñā
I.49 śrutānumānaprajñābhyām anyaviṣayā viśeṣārthatvāt
I.50 tajjaḥ saṁakāraḥ anyasaṁskārapratibandhī
I.51 tasyāpi nirodhe sarvanirodhāt nirbījaḥ samādhiḥ

A partir do I.44, o tema é o processo que leva à meditação profunda, primeiramente


relacionado a objetos grosseiros, sa-vitarka e nir-vitarka, e depois a objetos sutis, sa-
vicāra e nir-vicāra. Sendo com ou sem a análise, e relacionados a objetos sutis.

Então, no I.45, é explicado o resultado – chegar à essência, ao não manifesto (aliṅga),


mas o I.46 afirma que esses estados ainda são relacionados ao samādhi com semente.

No sūtra I.47, é dito que as experiências de samādhi trazem uma nova sabedoria.
Como resultado [I.48], é possível entrar em contato com uma nova verdade
(ṛtaṃbharā), a que condiz com os fatos, sendo livre de filtros que a distorcem. Mas é
preciso lembrar que esse processo se inicia em pramāṇa.

O sūtra I.49 explica que esta clareza é uma sabedoria diferente da sabedoria de
acúmulo de informação, e remete, então, a um dos maiores desafios do professor, que
é se guiar pela intuição, e não só pelos livros e métodos. Evocar, mais do que copiar
fórmulas e ideias.

A consequência é colocada no sūtra seguinte, I.50. Surgem novos saṁskāra-s, positivos


e luminosos, e uma nova relação com os condicionamentos, que se tornam suportes
para a liberdade e não mais motivos de aprisionamento. Estes novos saṁskāra-s se
sobrepõe aos antigos, servindo de propulsores para a dissolução total do conteúdo
mental, possibilitando a absorção sem semente (nirbīja samādhi) [I.51].

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SEGUNDO CAPÍTULO - SĀDHANA PĀDAḤ

Os sūtra-s iniciais do segundo capítulo definem de certa maneira o principal trabalho a


ser realizado pelo praticante e, consequentemente, incentivado pelo professor de
Yoga.

II.1 tapaḥ svādhyāya īśvarapranidhānāni kriyāyogaḥ


II.2 samādhibhavanārthaḥ kleśa tanūkaraṇārthaśca

Patañjali dedicou o primeiro capítulo para que aqueles que se encontram próximos do
estado de Yoga possam se aprofundar. Agora, um novo capítulo é apresentado, tendo
como foco a elevação da condição das mentes que estão em aflição, ou que caem
frequentemente em aflição. Enquanto o primeiro capítulo é dedicado à entrega, o
segundo capítulo se dedica à ação.

Patañjali então nos explica duas condições:

1. Uma condição de vida subjugada pelas aflições, que resulta em aprisionamento


em um ciclo de sofrimento;
2. A possibilidade de amenizar a influência das aflições e se libertar do ciclo do
sofrimento.

Nós temos a vocação para ambas situações, mas normalmente a primeira é a mais
presente. Portanto, precisamos saber o que em nós causa cada uma destas condições.

O curioso é que essas duas situações se relacionam. Patañjali diz que a diminuição de
uma naturalmente provoca o aumento da outra. Então temos uma equação:

(+ Kleśa) = ( - samādhi)
(- Kleśa) = (+ samādhi)

Pela reflexão do sūtra II.2, o professor de Yoga entende que não existem mágicas, e
que não é preciso adicionar algo para que o aluno se estabilize, mas sim retirar a
influência dos kleśa-s.

A eventual paz e conexão interna que o aluno venha a desfrutar é algo já existente em
potencial dentro dele. Este é um fato que merece atenção. O Yoga não é um processo
de conversão, mas de ressignificação das identificações; do sofrimento para a conexão
interna.

O processo para que isso ocorra é explicado por Patañjali. Este processo também conta
com recursos já existentes em nós. Basta trabalhá-los no sentido de os tornarem
constantes.

Patañjali explica que, através de tapas, svādhyāya e Īśvarapraṇidhāna é possível


substituir, bloquear ou remover a influência dos kleśa-s. O conjunto destas três
atitudes recebe o nome de Kriyā Yoga, o Yoga na ação.

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Precisamos então analisar o que cada uma dessas três intenções significa e como
incentivá-las no aluno, sempre levando em consideração que este trabalho de
refinamento é único para cada pessoa, pois depende das suas deficiências e
capacitações.

Tapas

Tapas é normalmente traduzido como ações purificadoras, mas também como


austeridade. Vale a pena explorar um pouco mais sobre essas visões, já que nem
sempre praticar austeridade significa efetivamente realizar atos de purificação. Pelo
comentário de Vyāsa, tudo que prejudica a saúde do corpo, ou que possa deixar o
sistema sem energia, enfraquecer a mente e os sentidos, deve ser evitado. Práticas de
austeridade que prejudicam o corpo são violência (hiṁsā), e, se levam os sentidos e a
mente ao estado mūḍham, nos deixam vulneráveis à influência dos kleśa-s.

Algumas vertentes do Yoga interpretam tapas como testes de privação. Combatendo


os intensos desejos da mente com intensas austeridades. Esse é um caminho possível,
porém árido, e que não se faz possível para todos. Na visão de meus professores,
tapas não é somente eliminar algo, mas propor uma coisa diferente. Substituir
perspectivas antigas por novas. De fato, existe a privação de algo, mas não como um
castigo ou gerando uma briga interna, e sim como um exercício de renovação. Isso é
importante para que o caminho não seja árido a ponto de não conseguir ser
sustentado. Por exemplo, substituir uma rotina não saudável por uma rotina mais
saudável. E pouco a pouco ir substituindo hábitos que foram formados a partir de
impulsos reativos ou inconscientes por hábitos que são reflexos de atitudes coerentes.

Outro ponto importante: O processo de queimar as impurezas que dificultam a mente


de manter a conexão interna possuem características:

● Queimar impurezas precisa ser uma intenção constante;


● Queimar impurezas requer intervenções específicas;
● As intervenções possuem uma validade.

Sem constância nada se sustenta. Não basta retirar as ervas daninhas da horta apenas
uma vez.

As abordagens no Yoga são cirúrgicas. A ação de purificar é pontual, e não genérica.


Existem coisas que devem ser queimadas, outras que devem ser reajustadas e outras,
preservadas. Assim como um cirurgião que abre o corpo no local específico e retira um
sinal de pele ou um cisto, por exemplo, as práticas purificadoras devem ser precisas,
sejam sobre um órgão, uma parte do corpo ou uma questão que esteja afligindo a
mente, por exemplo.

Obviamente o corpo reage de forma integral, e a relação corpo e mente é inseparável,


mas realizar purificações a esmo, sem que sejamos específicos quanto ao local e a
dosagem, pode ser uma perda de tempo e energia, debilitando e desestabilizando
áreas do corpo, da mente e de nosso campo emocional. A intenção precisa de
estratégia. Daí a necessidade de tapas e svādhyāya estarem juntas.

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Outro ponto importante: As intenções e ações para purificar, quando são assertivas,
possuem uma validade. A intenção de purificar precisa ser constante, mas o foco vai
mudando conforme a vida muda e também porque nós mesmos vamos apresentando
mudanças.

Embora o foco inicial normalmente se concentre no corpo, quando o trabalho do Yoga


é bem direcionado, o foco da progressão se volta para a mente, para purificar suas
tendências e condicionamentos. O corpo precisará sempre de manutenção, mas as
principais causas de aflições (kleśa-s) encontram-se na mente (devido a suas
interpretações, limitações e apegos).

Se o foco persiste no mesmo lugar por longos períodos, independente da fase da vida
e circunstâncias, é preciso refletir sobre alguns pontos:

● Talvez as ferramentas e estratégias para purificar não sejam efetivas.


● Ou a maneira com que estamos utilizando as ferramentas não está adequada (e
por isso svādhyāya não se separa de tapas).
● Encontraremos bloqueios que parecem crônicos. Questões que não
desaparecem de nossas vidas ou que reaparecem de tempos em tempos.
Algumas aflições estão profundamente enraizadas na mente, e a intenção de
purificação aplicada para reverter esta situação muitas vezes não é suficiente.
Talvez seja preciso realmente mais tempo de dedicação. Mas normalmente
quando nos deparamos com aflições cujas raízes são extremamente profundas,
neste caso, além de constância no empenho, tapas, o terceiro elemento do
KriyāYoga, que é Īśvarapraṇidhāna, será o fator principal a ser trabalhado.
● Ou nós estagnamos simplesmente porque nos apegamos às ferramentas. Se
isso acontecer, não conseguimos progredir pois ficamos restritos ao estágio
equivalente ao limite do alcance desta ferramenta. Isso é algo bastante
comum.

Pelo segundo capítulo do Yogasūtra, percebemos que a intenção de realizar práticas


purificadoras deve ser uma rotina em nossa vida. Mas, quando a disciplina é
sustentada simplesmente pela disciplina, o coração se enrijece. Então as práticas,
mesmo quando aplicadas com precisão, quando realizadas de forma totalmente
automática, como um hábito displicente, esfriam a chama interna a qual tapas tenta
acender.

A proposta do Yoga requer uma seriedade por parte do praticante. Mas isso não
significa se tornar em um praticante sério, com o coração petrificado.

A intenção de purificação e a aplicação de práticas que estimulem purificação devem


fazer parte da rotina, mas é preciso atenção para seguir ressignificando essa rotina e
renovando as intenções, cuidando assim constantemente para que ela não se
transforme numa repetição vazia de hábitos automáticos, pois isso acaba gerando
estagnação no processo do Yoga e pode levar a mente à negatividade (pessimismo,
intolerância, crítica, falta de entusiasmo, por exemplo).

Outro ponto importante: A intensidade e a efetividade nem sempre significam a


mesma coisa. Isso é importante principalmente para pessoas que possuem
63
naturalmente uma disposição intensa. Para elas, muitas vezes tapas pode significar
“pegar leve”.

O professor deve estar atento a todas essas situações e tendências, que só serão
notadas se houver proximidade. O cuidado do professor quanto às instruções
fundamentais do Yoga de certa forma define o engajamento do aluno neste processo.
A assistência é muito importante principalmente nas fases iniciais de dedicação, mas
também depois, para que as aplicações não virem ações automáticas, e cheguem até a
perder o sentido.

A palavra tapas refere-se a algo que queima. Por isso, pode ser usada até como
sinônimo de dor física ou mental. No sūtra, a palavra tapas diz respeito a queimar as
impurezas que prejudicam a mente em sua função de sustentar a conexão interna. O
professor pode ser específico ao educar seu aluno, pois a tradição do Yoga também é
bem específica.

No Yoga, o principal foco da purificação está voltado a tudo que projete a mente para
o externo de maneira reativa e provoque nela fortes identificações com as causas
destas reatividades e suas consequências. Quando isso ocorre, a mente se torna
incapaz de servir como um suporte adequado para o ser interno, Puruṣa.

Para ser específico, podemos dar nome ao que deve ser purificado:

Tendências (vāsana-s) e condicionamentos (saṁskāra-s) que nos deixam aprisionados


a memórias (smṛti) e desejos (tapa), e que estimulam ações aflitivas (Kleśa – karma),
formando um ciclo de sofrimento. Este ciclo deve ser constantemente purificado para
que o estado de Yoga floresça.

Segundo Vyāsa, o Yoga não pode ser acessado sem tapas. O papel do professor é
muito importante, pois é o primeiro incentivador deste processo. É possivelmente daí
que nascera o estereótipo do professor de Yoga como sendo uma pessoa durona,
impositiva. E esse ponto também merece esclarecimento.

Para entender sobre este estereótipo, melhor nos voltarmos para a tradição.
Tradicionalmente a instrução no Yoga se iniciava na juventude, ou até mesmo na
infância. Para este público, que normalmente ainda não possui um interesse ardente
por Yoga ou nem mesmo a capacidade de escolher a direção do foco mental e de
sustentá-lo, o professor atua como um educador. No passado, tanto no oriente como
no ocidente, entendia-se que a rigidez na maneira de educar trazia a seriedade
necessária para o estudo.

O professor de Yoga era um disciplinador para os praticantes jovens. A intenção nada


mais era do que incentivar tapas no aluno. Mas isso não serve para todos.
Dependendo do aluno, diferentes abordagens podem ajudar a acender essa chama.

No adulto, o estímulo adequado não seria através de imposições ferrenhas. O


professor, na intenção de provocar a vontade e curiosidade com āsana-s intensos, ou
falando de forma dura e impositiva, por exemplo, pode até colocar em risco a saúde
física e emocional de um aluno adulto iniciante. Nestes casos, outras abordagens são

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mais coerentes. Por exemplo, através de questionamentos e indagações, o professor
pode provocar combustão no praticante que inicia sua jornada no Yoga, estimulando
assim uma sede por transformações.

O professor tem responsabilidade sobre o aluno, e deve direcioná-lo a caminhos que


sejam seguros e duradouros.

Vamos agora expor exemplos clássicos de tapas na tradição do Yoga, e entender as


principais razões que tornam essas práticas em ações purificadoras:

- Dieta. Lembremos da visão holística do Yoga sobre o sistema humano, que entende
que somos formados por diferentes corpos. O mais grosseiro é o Annamaya kośa.
Anna significa comida, e a alimentação certamente é um dos fatores a ser cuidado
para purificar o corpo de impurezas.

Neste sentido, tapas envolve ingerir comida boa e em quantidade adequada. E


obviamente desenvolver a capacidade de resistir a ânsia por alimentos que não trazem
saúde ao corpo e que representam fortes apegos.

O jejum também é uma forma de tapas. Mas não o jejum simplesmente para perder
peso. E nem o jejum que deixa o corpo fraco. Os textos de haṭhayoga não incentivam o
jejum, e sim comer adequadamente. A explicação é simples. Para se engajar às
práticas clássicas do Yoga, que incrementam o metabolismo, é preciso estar
devidamente nutrido.

Tradicionalmente nos dias de lua cheia e nova se costumava realizar jejum. Mas nestas
datas a intensidade das práticas era reduzida, ou não se realizava nenhum tipo de
prática.

Se privar de um tipo de alimento para rever a relação que se tem com ele é um
exercício revelador e também uma forma de tapas. A maneira com que nos
alimentamos está diretamente ligada à nossa relação com os sentidos. Sendo assim, ao
regularmos a alimentação, purificamos também os impulsos sensoriais e suas
influências sobre as escolhas que tomamos.

- Āsana. A prática de āsana entra na categoria de tapas quando bem direcionada para
queimar as impurezas, tanto físicas, incrementando o metabolismo, como mentais,
eliminando tendências. Mas a prática de āsana também pode ser simplesmente
estética e não ter elemento algum de tapas. O professor deve orientar bem seu aluno
neste sentido.

Patañjali explica a prática de āsana nos sūtra-s II.46, 47 e 48. No II.46, āsana é o
empenho para equilibrar sthiram e sukham, relacionado diretamente a tapas.

Segundo Desikachar, Krishnamacharya incrementava a prática de āsana com algumas


associações.

Os āsana-s eram feitos sequencialmente, e não de maneira independente.

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Posturas pārśvatāna-s e paścimatāna-s assimétricas eram realizadas primeiramente
para o lado esquerdo, para estimular o funcionamento do fígado, que está ligado ao
agni, e a purificação do sistema. Este estímulo ocorre pela criação de espaço.

Pela mesma razão, as torções eram feitas primeiramente para o lado direito, também
para estimular o fígado.

A união da prática de āsana à prática de canto incrementa o agni e o foco da mente.


Essa ação potencializa a purificação.

É aconselhado iniciar o movimento da expiração primeiramente com o esvaziamento


da região do apāna vāyu (baixo ventre), para que o processo de purificação seja
acentuado.

- Mantra. Pela prática de recitação é possível afiar os sentidos, incrementar o agni e


purificar o apāna vāyu. A prática de japa (repetição) é uma tentativa de retirar um
padrão mental, o substituindo pela contemplação do mantra. Mas isso implica em
recitar utilizando as técnicas de entoação com vigor e com conexão intensa à
memória. A prática de recitação de cânticos sem a utilização de técnicas e de maneira
mecânica pode levar a mente à qualidade mūḍham.

- Bhāvana. Contemplação de assuntos e objetos que evoquem luminosidade na mente


também é uma forma de tapas. Já a visualização de apegos ou desejos não é tapas.

- Peregrinar. No passado a peregrinação era uma prática popular, entendida como


uma forma de purificação. O processo de peregrinar em si requer devoção e
desprendimento. E os eventuais obstáculos no caminho ajudam no processo de
purificação interna. Os lugares a serem visitados, como santuários e nascentes de rios,
por estarem relacionados à pureza, também influenciam transformações na mente.
Caminhar era uma prática diária de Desikachar. Lembro-me de encontrar com ele
pelos quarteirões próximos à sua casa realizando sua caminhada matinal. Ele fazia isso
independente do local onde estivesse, mesmo sob chuva ou até neve. Esse
comprometimento ritualístico, com vínculos ancestrais à prática de peregrinação,
também é uma forma de tapas, e não apenas um exercício físico.

A simples prática de exercício físico seria uma forma de tapas? Praticar exercício pode
ter diferentes funções. Se provoca incremento adequado ao agni, e ajuda a modificar
velhos hábitos, essas atividades podem ser consideradas formas de tapas,
principalmente se melhoram a imunidade e criam equanimidade frente às dualidades,
como frio e calor, letargia e euforia, etc. Caminhar todos os dias com uma meta
também pode ser entendido como uma forma de tapas.

- Prāṇāyāma. Vyāsa explica no comentário do sūtra II.52 que prāṇāyāma é a forma


mais eficaz de tapas. Sendo assim, como praticantes de Yoga, devemos trabalhar para
lapidar essas técnicas, que estão descritas nos sūtra-s II.49 ao 52. O professor deve
trabalhar seu aluno neste sentido, o que já deve acontecer até mesmo na prática dos

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āsana-s, desenvolvendo a capacidade de respirar profundo e sutil (dīrga e sūkṣma) nas
posturas.

- Sair do hábito. Queimar impurezas também ocorre quando se pratica algo diferente
do usual, já que desafia a atenção, possibilita a observação dos condicionamentos que
são inconscientes e dominantes, e ajuda a sairmos de suas influências. Quando se
realiza algo que não é o habitual, entendemos sobre nossos hábitos (saṃskāra) e
processos (pariṇāma). Ao nos colocarmos em situações inusitadas, obtemos indicações
sobre nossas fraquezas e natureza individual. Desikachar guiava práticas de āsana de
maneira contrária ao que ensinava como as mais coerentes como forma de tapas. Por
exemplo, orientando para expirar em movimentos expansivos. Krishnamacharya
incentivava seus alunos a viajar, por exemplo, para que a pessoa saísse de sua zona de
conforto. Tudo isso como maneiras simples para verificar a força dos hábitos e evocar
mudanças.

Yama-s e niyama-s são exercícios para sair da forma habitual de reagir. São reflexões e
construções constantes para não estarmos presos a viver somente de memória. Os
yama-s e niyama-s são descritos entre os sūtra-s II.30 e II.45. Ao explicá-los, Patañjali
não nos dá precisamente a forma de executá-los. São reflexões pessoais para manter
frescor na mente.

- Voto de provação. Tapas também é entendido como um voto, uma decisão de


compromisso com algo. A manutenção deste compromisso ajuda a trazer firmeza à
mente. Manter o compromisso com um voto, apesar das inúmeras influências
externas, dificuldades e adversidades, é uma vitória da firmeza da intenção frente aos
desejos e hábitos.

Existem inúmeras possibilidades para colocar essa intenção em prática. A mudança na


dieta, o compromisso de realizar uma prática meditativa todas as manhãs, a devoção
constante a um serviço, mesmo que não remunerado, ou preservar-se em silêncio
durante algumas horas ou dias são alguns exemplos.

Alguns são comprometimentos para a vida toda. Outros são tão austeros que desafiam
a integridade do corpo e a sanidade da mente. Muitos destes votos, que são
considerados extremos para a grande maioria das pessoas, vêm sendo praticados na
Índia há séculos.

Tapas, como um voto austero, é utilizado como um caminho para elevar a mente a
estados elevados de consciência, inclusive sendo trazido por Patañjali no sūtra IV.1
como uma possibilidade. Porém, pela apresentação de Patañjali, o caminho que
apresenta maior segurança para se culminar o estado de Yoga é a construção de uma
trajetória progressiva e sólida, através de abhyāsa e vairāgya (que se relaciona com o
conceito de kriyā Yoga e aṣṭāṅga Yoga), e que evolua de acordo com a capacidade e
realidade individual do praticante, como é descrito no sūtra III.6.

Esses são exemplos de práticas consideradas clássicas e que servem como tapas.

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Tapas é apresentado no contexto de kriyā Yoga no primeiro sūtra do segundo capítulo
do Yogasūtra. Mas tapas não é um objetivo em si. O objetivo de realizar práticas
purificadoras é acender e manter acesa a chama na mente, que a permite se engajar
por completo durante as ações. A devoção na presença durante a ação é tapas. Esse
engajamento protege a mente da influência do ciclo dos kleśa-s.

Tapas evoca uma poderosa força interna, que é “força da mudança”. Sem ela,
estagnamos ou regredimos, e não estaremos aptos a assumir um compromisso com a
vida, já que a vida é constante mudança.

● Precisamos de tapas para conseguir identificar a direção adequada a ser


tomada, em meio a inúmeras distrações.
● Precisamos de tapas para iniciar a caminhada.
● Precisamos de tapas para sustentar o caminhar.
● Mas precisamos de tapas principalmente para enfrentar as dificuldades. As
dificuldades é que testam essa força interna, e normalmente é frente a elas
que desistimos ou desviamos o rumo.

Em relação a esta força interna existem três tipos de pessoas:

● As que nem tentam.


● As que desistem.
● As que persistem.

Tapas é essencial ao Yoga, porque persistir é essencial para se estar vivo e progredir.
Progredir não é um destino, mas um movimento. As conquistas internas são
consequências da devoção em sustentar os caminhos adequados. E a direção
adequada é reconhecida através de svādhyāya.

Uma das consequências naturais de tapas, o comprometimento com a ação, é levar a


mente a svādhyāya, uma autoanálise realista.

Tapas para o professor

A meu ver, tapas para o professor é se colocar à prova de todas as ferramentas


disponíveis, ou acessíveis, como um exercício de experimentação, buscando diferentes
tipos de práticas. Também, ter como base o conhecimento que estão nas escrituras,
mas evocar as respostas diretamente de seu coração.

Svādhyāya

Tapas e svādhyāya são atitudes que se complementam. Isso porque não basta
esvaziarmos-nos por tapas sem nos preenchermos de diretrizes sadias. Para entendê-
las, é necessário investigação.

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“Sva” significa “de si mesmo”, e “adhyāya” significa “momento apropriado para se
estudar”, uma “sessão”, ou o que “me ajuda a saber de algo”, representando o
caminho que nos conduz a entrar em contato com nossa essência.

Cronologicamente, as práticas referentes a tapas eram ensinadas primeiramente aos


jovens. Através destas práticas - e conforme fossem tendo maturidade-, investigações
sobre si surgiam e também eram sugeridas pelo professor.

Svādhyāya possui diferentes significados, mas no fundo trata-se do resgate da


capacidade de investigar nossa natureza e sua manifestação.

Na prática, svādhyāya é a intenção de trazer o potencial analítico da mente, assim


como sua capacidade de observar e investigar, para que nos devotemos a estudar o
que acontece em nós e ao nosso redor. É um contínuo autoestudo, para sabermos
onde estamos e como estamos, internamente e externamente, e para nos mantermos
conectados com o “lugar” de onde viemos e com o “lugar” para onde precisamos nos
direcionar.
Svādhyāya não é apenas identificar problemas, mas refletir sobre como sair deles.
Neste sentido, o estudo de escrituras trazem maior esclarecimento nos ajudam.
Tradicionalmente, na Índia, essas escrituras são os Veda-s. Mas, segundo
Krishnamacharya, pode ser tudo aquilo que ilumine melhor nossa realidade.

Precisamos estudar:
● nossa natureza
● nossas fraquezas
● nossas obscuridades
● nossa relação com o meio
● nosso progresso, estagnação e regressão
● as influências dos kleśa-s

Muitas coisas podem servir como um espelho para demonstrar isso:

● O professor pode ser um bom espelho


● A investigação sobre a ação (sua intenção, duração e qualidade)
● Observar a própria fala (o que é dito, como é dito, de onde vem o impulso de
falar e a coerência do que se é falado)
● Observar a coerência entre o que se sente, se fala e se faz
● Āsana, que é descrito como a ação de identificar e desatar nós (YS II.47)
● Mantra - por gerar uma atenção - e seu processo de aprendizado (adhyāyam)
● Prāṇāyāma, que também evidencia o estado em que nos encontramos
● Pratyāhāra
● Dhāraṇā
● Dhyānam

69
Īśvarapraṇidhāna

Tapas e svādhyāya são intenções de controlar algo, atitudes autocentradas. Já


Īśvarapraṇidhāna é a entrega que regula tapas e svādhyāya. Agimos com empenho
para purificar as intenções (tapas), com autoanálise (svādhyāya), mas não temos o
controle sobre o destino. Essa paciência e devoção é Īśvarapraṇidhāna.

Īśvara refere-se a uma força superior. Praṇidhāna refere-se a uma relação respeitosa.
Desikachar relacionava Īśvarapraṇidhāna com a forma com a qual nós agimos e com a
relação que criamos com os frutos das ações.

Īśvara é apresentado por Patañjali como um professor espiritual. Sob uma visão
prática, Īśvarapraṇidhāna pode ser aplicado como ações devotadas a aprender, a
atitude de agir estando aberto ao aprendizado.

No Yoga Rahasya, nos é explicado que o desejo, mesmo o desejo por saber dos
benefícios de algo, ocorre por falta de Īśvarapraṇidhāna.

Quando se analisa os diferentes aspectos do Yoga através da analogia dos oito


membros, yama, niyama, āsana, prāṇāyāma e pratyahara incorporam a ideia de tapas
(sendo pratyahara uma transição). Dhāraṇā e dhyāna concentram a ideia de
svādhyāya. Īśvarapraṇidhāna equivale a samādhi, a meditação profunda.

O sūtra II.1, sobre kriyā Yoga, se relaciona com o I.12. Tapas e svādhyāya remetem a
abhyāsa, e Īśvarapraṇidhāna a vairāgya.

No sūtra II.2 Patañjali explica o propósito básico do Yoga:

II.3 avidyā asmitā rāga dveṣa abhiniveśāḥ kleśāḥ


II.4 avidyā kṣetram uttareṣam prasupta tanu viccinna udārāṇām
II.5 anitya aśuci duḥkha anātmasu nitya śuci sukha ātmakhyātiḥ avidyā
II.6 dṛgdarśanaśaktyoḥ ekātmatā iva asmitā
II.7 sukhānuśayī rāgaḥ
II.8 duḥkhānuśayī dveṣaḥ
II.9 svarasavāhividuṣo’ pi samārūḍhaḥ abhiniveśaḥ

O sādhana é um comprometimento preciso para reduzir os kleśa-s (ou aflições), que


podem estar dominantes, ativas, tênues e dormentes.

Os kleśa-s são:

Avidyā - A incapacidade de perceber a realidade. O que é realidade? Diferentes


filosofias explicam o que é a realidade. Patañjali define avidyā da seguinte maneira:

Avidyā é a interpretação equivocada, ou confusão, entre o que é temporário e o que é


eterno (anitya – nitya), o impuro pelo puro (aśuci – śuci), o sofrimento pelo prazer
(duḥkha – sukha), e o que é a essência (ātma-khyātiḥ) [YS II.5].

70
Avidyā é tomar por permanente algo que é temporário. E não estar apto a perceber
aquilo que não muda.

Sobre este ponto de vista:

● O Yoga não está dizendo o que é e o que não a realidade. Patañjali está nos
fazendo refletir sobre valores, e não sobre a veracidade das coisas. Outras
filosofias vão explicar sobre o que é real e o que é ilusão, mas o sūtra não trata
disso.
Entendemos prazeres e sofrimentos como eternos. Invertemos os valores em
relação ao que é essência e o que é suporte (saúde, corpo, personalidade,
etc...). O resultado virá na forma de outros kleśa-s e sofrimento.

● Tudo que damos a nossos alunos pode ser simplesmente avidyā, a não ser que
o aluno utilize o que recebeu e transforme em clareza para ir fundo em sua
percepção. O professor também não poderia então ser alguém que entrega os
valores que são os certos, e nem as respostas que são as corretas.

Asmitā - a palavra asmitā aparece quatro vezes no Yogasūtra.


I.17 – asmitā rūpa, como uma conexão interna da mente imersa na experiência.
II.3 e 6 – asmitā kleśa, como uma identificação equivocada.
III.43 – asmitā associado a saṁyama e a relação com os sentidos.
IV.4 – asmitāmātrāt, como conexão entre o coração do professor e o coração do
aluno.

Esses sūtra-s nos mostram o que a força da associação pode provocar.

Rāga e dveṣa – apegos e aversões são motivadores de nossas condutas. A relação com
as práticas será a mesma. Costuma se escolher a prática e o professor de acordo com
rāga e dveṣa, e o resultado provável é a consolidação dos mesmos apegos e aversões.

O professor começa com rāga e dveṣa e aos poucos ensina o aluno a “gostar do que
precisa”, no sentido de educá-lo a reconhecer o valor que existe em praticar o que é
adequado.

Se a prática estiver gerando ainda mais apego e aversão, o professor pode ter
responsabilidade sobre isso.

Abhiniveśa – o medo é um instinto de sobrevivência e possui seu próprio fluir –


svarasa vāhī.
Patañjali explica que o medo está presente até em pessoas ditas viduṣa – pessoas
sábias, mas no sentido de eruditas. O medo é um julgamento, que tende a aumentar
conforme pensamos mais e mais sobre ele.

O sábio entende que o medo está em todos e cria obstáculos. Os outros kleśa-s podem
ser controlados, enquanto o medo, não. Mas o medo possui duas faces: o sábio
consegue transformar o medo em atenção.

71
Os estágios dos kleśa-s e como trabalhá-los:

Dominante - acolher
Ativo – pacificar, reverter
Tênue – explorar causas
Dormente – manutenção

O desafio do professor é grande. Sendo o maior deles conseguir entender as aflições


quando em estágio tênue.

Para cuidar do aluno, Patañjali sugere uma ordem:

1º - reduzir (Śamanam) II.2 e 10


2º - erradicar (Śodhanam) II.10 e 11.

II.10 te pratiprasavaheyāḥ sūkṣmāḥ


II.11 dhyānaheyāḥ tadvṛttayaḥ
II.12 kleśamūlaḥ karmāśayo dṛṣṭādṛṣṭajanma vedanīyaḥ
II.13 satimūle tadvipāko jātyāyurbhogaḥ
II.14 te hlādaparitāpaphalāḥ puṇyāpuṇyahetutvāt

Esses sūtra-s nos incentivam a levar os kleśa-s ao estado de dormência, já que uma
mente tomada por aflições só é capaz de gerar pensamentos aflitivos. O professor é
muito importante nestes momentos por conseguir representar uma referência e poder
assessorar o aluno para tomar direções que eventualmente diminuam a influência
dessas aflições.

Quando os kleśa-s estiverem exercendo menos impacto na mente do sujeito (sūkṣma,


como está no sūtra), deve-se meditar (no sentido de investigar, ou analisar) nas causas
que provocam gatilhos na mente e a levam a aflição.

“Meditar na causa”, como coloca Patañjali, é estar atento ao que provocam o que é
descrito no sūtra I.4 e I.31, e precisamos agir logo (como descrito no sūtra I.33).
Sangeetha dizia “seja um bom observador, e olhe de forma abrangente”.

O sūtra também pode estar dizendo:

● Não é necessariamente para refletir na dor e tentar entender onde e como dói!
● Reflita na ação que provocou a dor (tanto na dor em nós quanto nos outros)
● Aprenda com o erro
● Agir com zelo para construir a mudança

Tudo isso cabe neste sūtra. E mais, a palavra dhyāna equivale a svādhyāya do kriyā
Yoga. A ordem Śamanam e depois Śodhanam é importante ser mantida, porque, sem
gerar um pouco de Śamanam, a atenção fica só na dor.

72
Mas atenção: utilizar técnicas meditativas para gerar Śamanam sem dar o passo
seguinte, que é Śodhanam, é uma fuga do dever pessoal de resolver as questões
internas.

Sendo assim, os sūtra-s II.11 e II.12 nos falam de um movimento contínuo de amenizar
e prevenir a influência dos kleśa-s, influência essa que é constante pois possui tantos
gatilhos quanto são os objetos com os quais nos relacionamos.

Os sūtra-s também nos trazem uma urgência para agirmos. O Yoga nos fala sobre uma
passividade em relação aos sinais da vida, mas não uma passividade em relação aos
kleśa-s! Se ficarmos esperando passivamente por sinais enigmáticos da vida ou de
alguém, e não estivermos engajados no sādhana (engajados no kriyā Yoga), as raízes
dos kleśa-s crescem.

É preciso ser:

- Atento e ativo em relação aos kleśa-s;


- Atento, mas passivo, em relação às diretrizes que a vida sugere.

Os sūtra-s II.12 e II.13 falam dos efeitos da influência dos kleśa-s.


Ações aflitivas geram frutos correspondentes. Então, quanto maior for a raiz do kleśa,
mais ele nos influencia e mais tempo levará para ser tratado. O professor deve ter
paciência, e explicar e cuidar do aluno lembrando disso. Nem sempre é falta de
dedicação do aluno, muitas vezes as dificuldades em mudar ocorrem por razões que
estão profundamente enraizadas em seu campo emocional, por isso, merece ainda
mais carinho.

O II.14 trata da relação Kleśa – karma, sublinhando as intenções que motivam as ações
e seus resultados. O professor pode trazer luz a estes assuntos para que o aluno
comece a renovar suas intenções e limpar o ciclo de ações de negatividades.

Sobre a intenção que motiva a ação, no Yoga não focamos na ação boa ou má. Bom e
mau são análises subjetivas. Com kriyāyoga o praticante se concentra em agir com
integridade e realizar a ação com efetividade. Aqui neste sūtra Patañjali nos fala sobre
uma ação que seja pura. Ela nasce de uma intenção genuína e é mantida pelo coração.

Muitas vezes as intenções são genuínas, mas ao serem colocadas em práticas e


virarem ações, acabam recebendo influências de saṁskhāra-s, e deixam de ser puras.
Um exemplo simples ocorre com o sentimento de amor, que muitas vezes vira ciúmes.

Um professor atento a seu aluno consegue obsrvar se suas intenções em relação a


prática e estudo são sinseras, e se a aplicação também é sinsera.

Neste sūtra Patañjali diz que a ação quando é pura leva a mente a uma leveza, hlāda.
Minha professora sempre me questionava sobre o que eu realmente estava sentindo e
de onde essa sensação vinha. Como professores não podemos ensinar ninguém a agir
pela pureza, mas é possível incentivar o aluno a melhorar sua capacidade de

73
comunicação interna. Assim será mais fácil se conectar com o lugar de pureza que
existe em todos nós.

Quando a ação é pura, ou genuína e despretensiosa de resultado, o resultado é a


sensação de leveza, tranquilidade. Patañjali também dá o resultado oposto para
termos um parâmetro. A palavra usada é paritāpa, que é uma sensação de que algo
está faltando, ou uma sensação de algo mal resolvido. Essa sensação é acompanhada
pela sensação de peso, ou de estar devendo. E também de dúvida sobre o que foi
feito. Se nossas ações foram efetivas ou não. Se deveríamos ter feito ou não. Ou se
deveríamos ter feito de outro jeito.

Quando as ações não são motivadas pela pureza, uma sensação esquisita perciste em
nossas mentes, ou eventualmente algum desconforto ligado a essa ação reaparece.
Paritāpa nos faz reativos pois são os frutos das ações que realizamos com
expectativas. E se há expectativa há kleśa.

Essas sensações podem virar remorso e angustia. Por outro lado, também podem nos
levar a fantaziar. Observe o seguinte: Com frequência percebemos nos outros o
quanto as pessoas mudam a narrativa e os fatos ocorridos para tentar “reescrever” o
que foi feito. Nós não mudamos o passado mas podemos mudar a forma de relembrar
o qe ocorreu. Pois é, se percebemos isso nos outros certamente os outros também
percebemem essa tentativa em nós. Fazemos isso de forma consciente ou
incosnciente, para tentar modificar a sensação estranha que carregamos.

A expressão “carregar a sensação” cabe bem a palavra paritāpa, que também indica
que os frutos das ações realizadas com expectativas são recebidos com apego. O
professor de Yoga atento aseu aluno consegue perceber e até trabalhar muitos dessas
pontos.

Primeiramente o professor trabalha para reduzir o desconforto. Depois direcionando o


aluno a observar este processo. Refletir que a sensação de desconforto persiste
mesmo se a forma aparente da ação tenha sido executada com precisão. E que seguir
reativo na tentativa de corrigir o que foi feito faz parte do ciclo de agir com
expectativas. E que assim a sensação de dúvida, dívida e de falta, além de apego ao
passado persistirá. O antíduto para essa sensação é a leveza, e ela acompanha quem
age com o coração.

O sūtra é precioso por trazer a reflexão que o mais importante não é a forma da ação,
mas a intenção que motiva a ação. O resultado vem de acordo com a intenção, e não
de acordo com a forma. A sinceridade é mais poderosa do que a formalidade.

Outro ponto a ser trabalhado pelo professor é conseguir orientar seu aluno sobre a
diferença entre os frutos apresentados neste sūtra. É comum que o aluno se confundir
entre o que é hlāda-phala e o que é paritāpa-phala.

Phala significa fruto, no caso, são frutos das ações. Como estamos vendo, são também
sensações. Isso merece atenção pois muitas vezes o praticante se encanta com

74
sensações e experiências prazerosas e pode achar que está no caminho certo. O
professor, por conseguir observar com maior distanciamento, consegue muitas vezes
entender o que essa sensação irá gera a longo prazo.

Muitas vezes, mesmo que a sensação presente seja boa, isso não significa que a longo
prazo ela irá ajudar o aluno. Essa sensação boa pode ser passageira e logo dar lugar a
uma dor, como em casos de āsana e praṇāyāmā, por exemplo. Essa experiência de
conforto em práticas meditativas, para citar outro exemplo, pode gerar estagnação,
apego ou prejudicar a clareza sobre a realidade. Acabando por mascarar questões que
precisam ser vistas ou anestesiando e assim prejudicando o cumprimento de deveres.

O professor atento pode perceber e atentar o aluno sobre suas ações. Levantar
reflexões sobre a intenção por detrás das ações e sobre os frutos de suas ações. Por
exemplo: lembro-me que quando eu perdia minha visão prática sobre Yoga minha
professora me trazia de volta ao chão com reflexões sobre o dia a dia. Então eu me
dava conta do quanto eu estava me distanciando da vida prática.

Já quando eu me empenhava de mais, e tinha receio de errar, fosse para responder a


sua pergunta ou para recitar um cântico, ela dizia “vamos querido, é para erra!”. E com
atitudes assim eu me sentia mais leves e com menos expectativas.

E quando ela achava que eu estava mais equilibrado ela falava “isso, continue
investigando por esse caminho”, ou “mantenha sua intenção”. Ela não dizia, “muito
bem”, ou “isso, você está ótimo! “. Esse tipo de comentário é delicado. Talvez em
alguns casos sirva de incentivo, mas no geral tende a criar no aluno expectativas.

Carregamos conosco um ideal de perfeição. temos em nós expectativas de atingir mais


perfeição e estarmos sempre evoluindo. Ao mesmo tempo, a ideia de perfeição nos faz
lamentar profundamente quando erramos. O que aprendi com minha professora neste
sūtra é que não devemos almejar a perfeição. Ela me disse algumas vezes “Diego, não
tente ser um yogī, apenas tente estar atento”.

As ações assumem formas. A aparência das ações é o que mais chama a atenção. Sua
aparência pode parecer adequada ou má adequada, mas devemos nos concentrar no
que está para além da forma. Por detrás da forma da ação existe a boa intenção e a
má intenção. Patañjali aqui fala de uma intenção que seja pura. E mesmo que a ação
não tenha uma boa forma, agir de um lugar de pureza é uma enorme conquista. Este é
o caminho da leveza.

II.15 parināma tāpa saṁskāraduḥkhaiḥ guṇavṛttivirodhācca duḥkhameva sarvaṁ


vivekinaḥ

O sūtra II.15 traz uma condição eminente a vida: funciona como uma “cartilha para
começar o dia”, ou pode ser entendido como a “aula número 1 sobre a vida”.

● Na vida, tudo está sujeito a mudança. O constante movimento inconstante da


vida desestabiliza a mente e prejudica o discernimento, e não estar ciente das

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inconstâncias da vida, e nem preparado para lidar com as suas mudanças, nos
fará sofrer. - Pariṇāma duḥkham
● Os impulsos dos desejos são muito fortes. Seu ardor tende a mudar a qualidade
da mente e as diretrizes da vida. Viver influenciado pelos desejos leva ao
sofrimento - Tāpa duḥkham
● A mente possui tendência ao automatismo, seguindo hábitos de
condicionamentos inconscientemente. Maus hábitos no pensar, se expressar e
agir provocam sofrimento - Saṁskāra duḥkham
● A mente recebe constante influência dos guṇa-s, e isso afeta a constância de
suas qualidades. Essa força e a incapacidade de lidar com ela acaba nos levando
ao sofrimento - Guṇa vṛtti virodha

Essas informações são como as 4 verdades de Buddha. Por ser tão urgente, todo
praticante de Yoga deve ser educado neste sentido.

A ideia do sādhana e o empenho em kriyā Yoga constroem no indivíduo uma firmeza


interna, dṛḍha. Através desta firmeza é possível perceber esses fatores descritos no
sūtra, e trabalhar para o discernimento – viveka.

Este trabalho, que é pessoal, recebe apoio do professor. O professor ensina técnicas,
mas, através delas, trabalha a firmeza. Assim, problemas presentes podem ser mais
facilmente resolvidos, e muitos problemas futuros serão evitados.

II.6 heyaṁ duḥkhamanāgatam

O sūtra II.16 é um conselho, “previna os problemas!”.


Os problemas que ainda não vieram, ou o sofrimento que ainda não aconteceu pode e
deve ser evitado.

Esse sūtra está no emblema que Desikachar projetou para o KYM (Krishnamacharya
Yoga Mandiram), sendo uma referência para nortear o professor. O Yoga é
primeiramente uma ferramenta para tratar o sofrimento.

1º ponto a ser refletido – Por mais que se tome os devidos cuidados, mexer com o
corpo, estimular a respiração e tratar de temas complexos apresentam riscos. O
professor de Yoga precisa ter uma boa ideia sobre a condição de seu aluno, para assim
instruir de acordo com sua necessidade e realidade. Além disso, é fundamental
acompanhá-lo com proximidade, pois, sem uma boa abordagem e assessoramento, o
aluno corre risco.

O Yoga serviria para tratar os problemas pessoais, mas hoje muitas pessoas se
machucam física, energética e emocionalmente praticando técnicas de Yoga. Boa
parte desta responsabilidade é do professor!

Enganos acontecem, mas, se os praticantes não sabem utilizar adequadamente as


técnicas, se praticam algo que não é apropriado ou se não entenderam a proposta do

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Yoga, a instrução que receberam e o acompanhamento do professor não foi
adequado.

2º e principal ponto – O Yoga é uma educação para conseguirmos identificar e sairmos


do ciclo de sofrimento. A dor é uma sensação, o sofrimento, uma associação, e o ciclo
do sofrimento uma prisão que nós construímos.

Através do Yoga, é possível reverter essa condição. A didática para diluir e evitar o
sofrimento será apresentada no sūtra II.27, mas a principal razão pela qual sofremos
será explicado a seguir.

Por que sofremos? O sūtra II.17 destrincha este tema.

II.17 draṣṭṛdṛśyayoḥ saṁyogo heyahetuḥ

Na visão do Yoga, essa a vida é possível graças a confluência entre duas potências, a
material e a espiritual, mas a trajetória pela vida se definirá dependendo de como
essas duas potências se relacionam.

Reflexões:

- Neste sūtra II.17, o conceito de saṁyoga é apresentado.


Na vida, a potência espiritual e a material confluem, mas esta confluência é
temporária. A não distinção desta temporalidade gera confusão, avidyā.
O problema surge pois, devido a falta de clareza na mente, a proximidade entre
a potência que vê, drṣṭṛ, e o que é visto, dṛśyayoḥ, prejudica a distinção entre
ambas potências, e essa incapacidade de distinguir o que é a essência espiritual
e o que é o suporte para esta essência leva a mente ao engano. Sendo assim,
este saṁyoga entre drṣṭṛ e dṛśyayoḥ tende a causar avidyā.

- A palavra Yoga normalmente é traduzida como união. No campo prático,


Patañjali primeiramente explica ser necessário separar coisas que não são
iguais, mas que por estarem muito próximas acabam se associando
indevidamente (II.5). Temos novamente a ideia de limpar aparecendo como a
primeira intenção.

- A distinção entre a potência que vê, drṣṭṛ, e o que é visto, dṛśyayoḥ, precisa
ocorrer não apenas no nível intelectual, mas na prática. Isso porque toda
projeção que for realizada a partir desta associação será incoerente, e por isso
trará sofrimento.

- As experiências da potência que vê, drṣṭṛ, com o que é visto, dṛśyayoḥ, geram
duas possibilidades:

● Aprisionamento (sem a aplicação de kriyā Yoga) ou


● Libertação (com kriyā Yoga)

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- O Yoga é uma educação para transformar experiências, de prazer e dor, em
conhecimento. Este é um caminho e prática para o discernimento, viveka.

Como realizar isso? O sūtra II.18 explica.

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II.18 prakāśakriyāsthitiśīlaṁ bhūtendriyātmakaṁ bhogāpavargārthaṁ dṛśyam

O sūtra II.18 elucida ainda mais a diferença entre drṣṭṛ e dṛśyayoḥ:

- Tudo que é objeto de observação é dṛśyayoḥ. O que inclui, além dos objetos
externos, percebidos pelos sentidos, a mente, seus pensamentos e os próprios
sentidos.

- Tudo que é objeto, dṛśyayoḥ, está sobre domínio da influência dos guṇa-s. Os 3
guṇa-s são raja, tamas e sattva.

- Quanto aos objetos externos, os guṇa-s estão presentes nos panca mahā
bhūta-s. Que são espaço (ākāśa), ar (vāyu), fogo (agni), água (ap) e terra
(pṛithivī). Sendo que sua manifestação representa a predominância do guṇa
tamas, por serem tangíveis.

- Na constituição de nosso corpo, os guṇa-s se expressam nos desequilíbrios,


doṣa, que são: vāta, pitta e kapha.

- Segundo a filosofia do Sāṃkhya, possuímos instrumentos para cognição, jñāna-


indriya-s e instrumentos para ação, karma-indriya-s. Suas funções e
características possuem natureza essencial sattva guṇa, por estarem
relacionados ao saber, ao descobrir a luz das coisas.

jñāna-indriya-s:
● śrota – ouvido/audição
● tvak – pele/tato
● cakṣu – olhos/visão
● jihvā – língua/paladar
● ghrāṇa – nariz/olfato
karma-indriya-s:
● vāk – voz
● hasta – mãos pra pegar
● pāda -pernas para locomoção
● upastha – órgãos reprodutores
● pāyu – órgãos excretores

A mente é entendida como o 11º órgão, responsável pela regência dos 5 jñāna-indriya-
s e 5 karma-indriya-s.

● Assim como as experiências causam consequências favoráveis ou


desfavoráveis, pelo sūtra II.18 entendemos que as influências dos guṇa-s na
mente também trazem duas possibilidades.

● a influência dos guṇa-s pode desestabilizar a mente


A qualidade kṣiptam ocorre pela dominância de rajas, e a qualidade mūḍham
pela predominância e tamas. Essa influência dificulta a regência dos 5 jñāna-

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indriya-s e 5 karma-indriya-s. Todo contato com o mundo realizado sob a
regência de uma mente dominada pela influência de raja e tamas trará
distorções e, consequentemente, haverá aflição e sofrimento.

● a influência dos guṇa-s pode estabilizar a mente


Pela colocação de Patañjali, rajas pode ser transformado em energia
propulsora, e tamas, em energia mantenedora.

No sūtra, Patañjali usa a palavra apavarga, liberdade, no sentido que as experiências


do mundo, bhoga, podem gerar libertação. Mas para que isso ocorra é necessário um
movimento (rajas, ou kriyā) contínuo (qualidade tamas, ou sthiti) para a clareza
(sattva ou prākāśa).

Então:

● o contato com o mundo pode gerar experiências e identificações com as


experiências. Isso provoca aprisionamento e sofrimento.
● o contato com o mundo pode gerar experiências e discernimento sobre o que é
experiência e quem é o experienciador, o que possibilita liberdade para seguir.

- Esse sūtra, de certa forma, resume o papel do Yoga.

- Pelo mesmo motivo, o sūtra resume o papel do professor de Yoga, que é


orientar o aluno sobre suas características, trabalhar em cima de suas
deficiências e exacerbações para adequar suas capacidades a distinguir drṣṭṛ de
dṛśyayoḥ.

- As informações contidas neste sūtra, e entre os sūtra-s II.19 ao 23, se


assemelham as bases do Sāṃkhya. A filosofia Sāṃkhya fora explicada pelo
sábio Kapila, e ela estruturou uma forma de pensamento, que também serve
de base para outras filosofias.

Os diferentes Darśana-s possuem similaridades. Por serem filhos da mesma cultura,


estas tradições se esbarram em muitos aspectos. As explicações de Kapila, que
formam a base do pensamento Sāṃkhya, antecedem o trabalho realizado por
Patañjali. O fato de Patañjali trazer no Yogasūtra elementos que também são
encontrados no Sāṃkhya significa uma confluência no pensamento de ambos
Darśana-s sobre alguns aspectos. Mas o Yoga e o Sāṃkhya são distintos em outros
pontos.

O Yoga e o Sāṃkhya se aproximam quanto ao entendimento sobre prakṛti. Mas não


são iguais quanto a seu propósito, meios e alguns conceitos. O Yoga se dedica a
purificação da mente através de meios práticos, e incentiva o caminho da
experimentação direta. O Yoga também se descola do Sāṃkhya quando trata de īśvara
e sua condição [YS I.24]. O Sāṃkhya explica a existência de Puruṣa e prakṛti, enquanto
Patañjali afirma que “īśvara é um Puruṣa diferenciado”.

80
81
II.19 viśeṣāviśeṣa liṅgamātrāliṅgāni guṇaparvāṇi
II.20 draṣṭā dṛśimātraḥ śuddho`pi pratyayānupaśyaḥ
II.21 tadartha eva dṛśyasya ātmā
II.22 kṛtārthaṁ pratinaṣṭam api anaṣṭam tadanyasādhāraṇatvāt
II.23 svasvāmiśaktyoḥ svarūpopalabdhihetuḥ saṁyogaḥ

No sūtra II.19, Patañjali faz uma síntese:

1- Existe um potencial em tudo, mas por ser um potencial, e não uma


manifestação, ele não pode ser percebido pela mente. Este estado é chamado
de aliṅga, e não há manifestação pois os guṇa-s se neutralizam uns aos outros.
2- Quando o potencial das coisas se manifesta, é apresentado um princípio
elementar, uma marca ou identificação. Essa dimensão é chamada liṅga-mātrā
e se manifesta dentro da influência dos guṇa-s.
3- Das manifestações surgem uma dimensão sublime, que é interno e pessoal.
Este mundo subjetivo é chamado aviśeṣa.
4- A dimensão objetiva é chamada viśeṣa, relativa a dimensão tangível das coisas.

Reflexões:

- Patañjali explica na ordem oposta ao o Sāṃkhya. O Sāṃkhya explica da


essência para a manifestação, e o Yoga da manifestação para a essência. Não
se tratam de ideias divergentes, mas de abordagens distintas. Enquanto o
Sāṃkhya tenta explicar a evolução da matéria, Patañjali explica como a mente
interage com ela. Ou seja, primeiramente percebendo seus aspectos mais
grosseiros, e eventualmente entrando em contato com os mais sutis.

- A razão pela qual Patañjali traz essa ideia não seria para afirmar uma teoria,
mas para nos levar para a prática. Precisamos estar cientes de que as coisas são
distintas (viśeṣa) pois possuem suas particularidades (aviśeṣa), que são reflexo
de seus princípios (liṅga), originários de um potencial imanifesto, o qual não
pode ser compreendido efetivamente (aliṅga).

- Normalmente a mente se distrai nos sinais tangíveis dos objetos, ou se perde


na dimensão subjetiva referente a ele.

- Independente da capacidade da mente de conseguir sustentar o foco e


interagir profundo com algo, sua compreensão e seu alcance possuem um
limite.

- Existe um caminho para que a mente interaja com a dimensão grosseira e flua
pela subjetiva, podendo ter a experiência da essência e a constatação de que
existe uma potência, mūla-prakṛti. Esse caminho ocorre por pramāṇa-vṛtti.

- Para o professor de Yoga:

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● isso é relevante, pois explica não ser possível saber a causa dos gatilhos que
despertam kleśa-s.
● o alcance do professor só consegue acompanhar o aluno nas dimensões viśeṣa
e aviśeṣa.
● o professor deve ser capaz de observar seu aluno atentamente. As causas das
aflições antecedem as manifestações no campo aparente e no campo
subjetivo. Normalmente, o professor só é capaz de entender seu aluno para
além do estereótipo e subjetividade quando há proximidade e
acompanhamento.
● Este sūtra, assim como o II.18, está intimamente relacionado com o I.17.

O sūtra II.20 traz luz sobre um ponto que hoje se tornou confuso:
- O sūtra reafirma a diferença entre a o observador e tudo que é observado.
- Contém a definição de Puruṣa, drṣṭā como “aquilo que percebe”, sendo “puro e
imutável”, śuddha.
- O sūtra esclarece que toda percepção e interação é sustentada pela mente.
- As qualidades da mente trarão a diferença em sua relação e percepção.
- A mente não é a culpada pelas distorções e sofrimento. A má gestão da mente
gera distorções, e consequentemente provoca sofrimento.
- A mente não deve ser eliminada, mas sua qualidade ajustada.
- De certa forma, o sūtra explica uma condição de Puruṣa, que não é afetado
pelos guṇa-s, estando cativo da qualidade da mente.
- E assim Patañjali resume o trabalho do Yoga, que é purificar o “vidro pelo qual
Puruṣa percebe”.

O sūtra seguinte, II.21, reafirma a visão do Yoga de que a mente é um instrumento


para percepção correta de Puruṣa, e que, portanto, ela não existe para si.
“Tudo que pode ser percebido possui apenas um propósito, que é ser percebido” [YS
II.21].

- A vida é colocada como uma experiência, e não como um fim em si.


- Tudo que existe e pode ser percebido não possuem um fim em si.
- Na visão apresentada pelo sūtra, o mundo não é ilusório e sem sentido. O
mundo existe e nele é possível liberdade para simplesmente experienciar
(prazer, dor, etc.)
- Inspirado neste sūtra, o professor pode refletir sobre sua aplicação em relação
ao aluno. As instruções e práticas sugeridas pelo professor, e o próprio contato
com o aluno só existem para um fim, ajudar a tornar a mente um suporte
adequado para Puruṣa.

Os objetos podem gerar experiências que aprisionam ou que libertam. O sūtra II.22
explica que o impacto do objeto e suas experiências são distintas para cada pessoa.
Essa ideia se relaciona intimamente com o sūtra III.6, sobre o conceito de viniyoga.

- Para o professor, esse tema reforça a tentativa de aplicar o Yoga de acordo com a
necessidade e capacidade do indivíduo, já que o que é aplicável a uma pessoa não é

83
necessariamente adequado a outra, seja uma técnica ou a maneira de abordar um
conceito do Yoga.
- O professor não deve menosprezar eventuais dificuldades que o aluno esteja
passando. Mesmo que estas mesmas dificuldades já tenham sido superadas pelo
professor e hoje sejam vistas como algo pequeno. Se essas dificuldades aparentam ser
grandes questões para o aluno, elas precisam ser respeitadas pela proporção dada por
ele.
- A relação entre professor e aluno deve ser contínua para que exista uma supervisão
contínua. As ferramentas e instruções podem merecer reajustes constantes.

O II.23 reforça algumas ideias:


Primeiramente, o propósito do Yoga, após amenizar a influência dos kleśa-s, é trazer
luz sobre “o que vê” e “aquilo que é visto”. O sūtra também explica que o que é visto e
o tudo que não é matéria, mas não está sob o campo de percepção do ser, existem por
si só (ou seja, não são ilusórios). Por fim, tudo que é percebido, independente do que
seja e independente do efeito que provoca no indivíduo, existe para um propósito
básico: possibilitar a distinção entre o “ser interno” e os objetos.

Todas as situações - sejam prósperas ou não - todas as relações que estabelecemos


com os objetos e todas as experiências que as mesmas geram - sejam leves ou intensas
- são potencialmente capazes de demonstrar as diferenças entre o “ser que vê” e “o
que é visto”.

Os resultados sentidos na mente demonstram o grau de identificação da mente em


relação aos objetos e também as características da relação que estabelece com os
mesmos. A capacidade svādhyāya permitirá esta percepção.

Pelo sūtra, podemos entender também que, através de saṁyoga, temos um problema
e uma solução: a proximidade de Puruṣa e prakṛti pode gerar confusão na mente. Mas,
por serem distintos e estarem tão próximos, a proximidade consegue justamente
trazer a distinção entre ambas potências. Como colocar duas cores parecidas lado a
lado, e, pela proximidade, ser possível distinguir que são diferentes.

Portanto, a ideia trazida no Yogasūtra é clara: essa percepção não ocorre


simplesmente pela racionalidade, com teorias e constatações intelectuais. Viveka, o
discernimento, ocorre após o trabalho efetivo em relação aos kleśa-s. O processo
apresentado pelo Yoga é o do campo da prática e experimentação. As vivências trarão
o discernimento. Essa é uma diferença entre que distingue o Yoga de algumas
vertentes filosóficas. A experiência direta (pratyakṣa) trará a prova (pramāṇa) sobre
algo. Conceber algo apenas intelectualmente, mesmo que faça total sentido, é uma
realidade imaginária (vikalpa).

II.24 tasya hetuḥ avidyā


II.25 tadabhāvāt saṁyogābhāvo hānaṁ taddṛśeḥ kaivalyam
II.26 vivekakhyātiḥ aviplavā hānopāyaḥ

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No II.24, o foco é novamente sobre avidyā [YS II.5]. Patañjali explica que, mesmo que o
saṁyama seja uma situação que permita a distinção entre coisas que estão próximas,
avidyā não permite esse discernimento.

Avidyā é novamente apresentado como “falta de clareza”, mas não se trata do


conceito de māyā. Os objetos e as razões que levam a mente a avidyā não deixam de
existir quando o indivíduo não mais se ilude com elas. O que muda é a clareza entre
draṣṭā e dṛśyasya.

A falta de clareza, avidyā, é o ponto de partida para a clareza. O sūtra não está apenas
dizendo que avidyā é um problema, mas que reconhecer avidyā é o início da solução.
Como disse Krishnamurti: “no momento que eu reconheço minha estupidez, estou
começando a ficar esperto”.

Possuímos a tendência de não reconhecer nossa ignorância sobre algo, ou a


incapacidade de lidar com coisas aparentemente tolas, e, por isso, as colocamos
debaixo do “tapete”. Olhar para essas coisas com honestidade é o início da construção
de vidyā, clareza. O professor pode incentivar esse reconhecimento, e o consegue
muitas vezes simplesmente proporcionando um ambiente favorável. Se o professor se
mostra disponível e sensível a detalhes, o aluno sente segurança para mexer no que
lhe parecia tolo ou no que não tinha confiança para ver ou reconhecer.

Do sūtra II.24 ao II.26, Patañjali reafirma a problemática sobre avidyā e sua influência.
O II.25 explica que, conforme avidyā é reduzida, proporcionalmente vidyā aumenta.
Novamente, aparece a ideia de que não é preciso a conversão em algo, ou injetar algo
externo em nós. Este processo é o caminho para a liberdade, kaivalyam.

A diminuição de avidyā (a raiz dos kleśa-s), que faz com que saṁyoga seja algo
negativo, provoca kaivalyam.

Kaivalyam é então definido como o estado de liberdade de duḥkham causado por


saṁyama. Kaivalyam é isolamento, ou distinção entre Puruṣa e prakṛti.

Na tradição do Yoga entende-se kaivalyam de duas maneiras:

Sadeha kaivalyam – a liberdade pode ser uma experiência em vida.


Videha kaivalyam – a liberdade só é experienciada após a morte.
O sūtra II.26 explica que o fim de saṁyama ocorre através de um contínuo
discernimento sobre o que é o sofrimento.

II.27 tasya saptadhā prāntabhūmiḥ prajñā

No sūtra II.27, Patañjali expõe os 7 degraus para viveka:

1- Heya – reconhecer os sintomas (duḥkha) – o professor precisa ter uma boa


leitura sobre seu aluno (I.31 é uma dica)
2- Hetu – identificar as causas dos sintomas (avidyā)

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3- Hānaṁ - traçar o objetivo (viveka)
4- Upāyam – escolher as ferramentas (kriyāyoga)

Os quatro primeiros são referentes à influência dos kleśa-s. Os três últimos são
referentes à influência dos guṇa-s.

5- Guṇavṛttiksinam – reduzir os desequilíbrios da mente melhorando sua relação


com os guṇa-s e suas influências.
6- Guṇa vṛtti pratiprasava – desatar os nós, os gatilhos, entre mente e guṇa-s.
7- Kaivalyam – clareza total entre a “potência que vê” e a que é “vista”.

Chegamos em um momento muito significativo do Yogasūtra. O segundo capítulo


iniciou explicando o kriyāyoga, que trata de ações emergenciais para primeiramente
pacificar as tormentas decorrentes dos kleśa-s e também para investigar e gerenciar
suas influências sutis sobre a mente.

Agora, Patañjali começa a descrever os membros do Yoga e como incorporá-los. O


kriyāyoga e o aṣṭāṅga yoga ocorrem em paralelo, um está no outro. O Yogasūtra serve
como guia para pessoas com diferentes condições. Primeiramente para aliviar a agonia
dos kleśa-s, depois para possibilitar viveka, e através desta estabilidade desaguar em
kaivalyam. Então, no início do segundo capítulo, kriyāyoga é apresentado para
diminuir avidyā, e em seguida Patañjali explica os passos para adquirir viveka.

A partir do sūtra II.28 até o final do capítulo, Patañjali expõe os 8 membros do Yoga.

II.28 yogāṅgānuṣṭhānāt aśuddhikṣye jñānadiptiḥ āvivekakhāteḥ

Patañjali explica que:

- as impurezas são reduzidas, aśuddhi, e eliminadas, kṣaya.


- a sabedoria vai aumentando, jñāna-dīptiḥ, como consequência.
- é possível assim alcançar a mais alta sabedoria, khyātiḥ.
- mas isso ocorre através da firme incorporação dos membros do Yoga.

Observação: Patañjali não usa o termo aṣṭāṅga yoga, mas aṣṭau-aṅgāni.

O capítulo se inicia com kriyāyoga. Do meio do capítulo em diante, Patañjali se dedica


a explicar aṣṭāṅga yoga. Existem diferenças, semelhanças e relação entre aṣṭāṅga
yoga e kriyāyoga?

A resposta é sim, e uma interpretação sobre a relação entre ambos pode ser a
seguinte:

● Kriyāyoga é voltado para fora, sendo uma aplicação. Kriyāyoga é uma via para
imunização da ação em relação a influência dos kleśa-s, ou a ação de amenizar
essas influências.

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● Aṣṭāṅga yoga é voltado para dentro, sendo uma incorporação de aspectos,
sentimentos, valores e meditações.

Ambos são apresentados no mesmo capítulo. Kriyāyoga é uma estratégia para


estancar a influência dos kleśa-s. Asṭāṅga yoga é a apresentação da estrutura, ou do
corpo, do Yoga. Ambos se complementam. O Kriyāyoga está no aṣṭāṅga yoga, e o
aṣṭāṅga yoga está no kriyāyoga.

Os oito membros do Yoga são apresentados com especificações a partir do sūtra II.29.

Explicações sobre Yama, niyama, āsana, prāṇāyāma e pratyahara se estendem até o


final do capítulo. Estes membros do Yoga são chamados de membros externos,
bahiraṅga. O trabalho para incorporar esses membros externos é chamado bahiraṅga
sādhana.

Por que yama, niyama, āsana, prāṇāyāma e pratyahara são entendidos como
membros externos do Yoga?

Comparados aos três membros restantes do aṣṭāṅga, que são dhāraṇā, dhyāna e
samādhi, que são temas do início do terceiro capítulo do Yogasūtra, yama, niyama,
āsana, prāṇāyāma e pratyahara estão ligados a um empenho e ao resultado deste
empenho. Yama, niyama, āsana, prāṇāyāma e pratyahara são práticas, sim, mas que
podem se tornar meditações.

Sobre yama-s e niyama-s:


● Os yama-s e niyama-s são a fundação para samādhi.
● Os yama-s e niyama-s são os elementos que qualificam uma prática a se tornar
uma prática de Yoga. Por exemplo, āsana sem yama e niyama deixa de ser uma
prática de Yoga.
● Os yama-s e niyama-s são meditações em si.

2.29 yama niyama āsana prāṇāyāma pratyāhāra dhāraṇā dhyāna samādhayaḥ aṣṭau
aṅgāni
2.30 ahiṁsā satya asteya brahmacarya aparigrahāḥ yamāḥ
2.31 jāti deśa kāla samaya anavaccinnāḥ sārvabhaumāḥ mahāvratam
2.32 śauca saṅtoṣa tapaḥ svādhyāya īśvarapraṇidhānāni niyamāḥ
2.33 vitarkabādhane pratipakṣabhāvanam
2.34 vitarkāḥ hiṁsādayaḥ kṛta kārita anumoditāḥ lobha krodha mohapūrvakāḥ
mṛdumadhyaadhimmatraa duhkha aajñaanantaphalāḥ iti pratipakṣabhāvanam
2.35 ahiṁsāpratiṣṭthāyāṁ tatsannidhau vairatyāgaḥ
2.36 satyapratiṣṭhāyāṁ kryāphala āśrayatvam
2.37 asteyapratiṣṭhāyāṁ sarvaratna upasthanam
2.38 brahmacaryapratiṣṭhāyāṁ vīryalābhaḥ
2.39 aparigrahasthairye janmakathaṁtā saṁbodhaḥ
2.40 śaucāt svāṅgajugupsā parairasaṁsargaḥ
2.41 sattvaśuddhi saumanasya aikāgrya indriyajaya ātmadarśana yogyatvani ca
2.42 saṅtoṣāt anuttamaḥ sukhalābhaḥ

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2.43 kāyendriyasiddhiḥ aśuddhikṣayāt tapasaḥ
2.44 svādhyāyāt iṣṭadevatāsaṁprayogaḥ
2.45 samādhisiddhiḥ īśvarapraṇidhānāt
Os cinco yama-s:

● Ahiṁsā – não violência. A investigação, meditação, experiência sobre o impulso


primitivo humano de violência. A violência é uma resposta reativa e
descontrolada. Sendo assim, o cultivo da “não violência” é uma importante
base para samādhi, pois hiṁsā e samādhi são antagônicos. Hiṁsā é
reatividade, e samādhi, confluência.
● Satya – ser verdadeiro. A liberdade, kaivalya, a percepção direta e a
possibilidade de comunhão entre o ser, a mente e o mundo, samādhi,
dependem da capacidade de sermos verdadeiros no pensar, falar, agir e
interagir. É o que nos torna mais íntegros. A veracidade é uma expressão da
não violência.
● Asteya – não roubar, não se apropriar de algo indevido ou indevidamente. A
possessividade é uma violência. Possessividade interfere na honestidade, satya,
sendo obstáculo à integridade. A ganância e a possessividade deturpam a
percepção. Na perspectiva do Yoga, tudo é ganho. Sob a regência de nossos
apegos, visamos um ganho específico, ou somos guiados por uma ganância
específica, que tende a violentar o rumo e o ritmo natural das coisas.
● Brahmacarya – moderação em todos os atos e concentrar a energia naquilo
que é mais elevado. Samādhi e kaivalya dependem da integridade de nossa
mente, de sua força estar inteira e bem direcionada.
● Aparigrahā – não cobiçar mais do que se precisa. Manter-se simples.
Moderação, brahmacarya, e ausência de cobiça, aparigrahā, geram paz. Desta
paz ocorre uma nova compreensão sobre si e sobre o mundo.
Como consta no sūtra II.31, a constante meditação e incorporação dos yama-s,
independente da condição (situação, lugar, período e circunstância), são
grandes compromissos, mahā vratam, que moldam o caráter e mantêm a
mente atenta e disponível.

Os cinco niyama-s:

● Śauca – o cultivo da pureza interna e externa, que é fundamental para a


jornada do Yoga.
● Santoṣa – contentamento. Reconhecer o que temos e como estamos traz
consciência. Saber lidar com a realidade traz paz, e utilizar isso como degrau
para a transformação deve ser uma reflexão e processo contínuo.
● Tapaḥ – contínua intenção de manutenção do corpo e sentidos.
● Svādhyāya – o contínuo autoestudo, autoinvestigação, autointeresse,
autoacompanhamento, autorreconhecimento, autorrespeito e autocrítica.
Permitem a compreensão do que é o “ser”, de como se “está” e o que é uma
força maior.
● Īśvarapraṇidhāna – liberdade do egoísmo, paciência e abertura. Samādhi.

88
Como curiosidade, os yama-s e niyama-s são apresentados no YogaYājñavalkya
saṁhitā de maneira diferente:

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10 yama-s:

● Ahiṁsā – cuidado em relação à violência.


● Satya – ser verdadeiro no pensar, falar e agir.
● Asteya – não tomar posse do que não lhe pertence.
● Brahmacarya – celibato.
● Dayā – compaixão.
● Ārjavam – franqueza.
● Kṣama – paciência.
● Dhṛti – firmeza moral, fortaleza de espírito.
● Mitāhāra – dieta moderada.
● Śauca – pureza do corpo e da mente.

10 niyama-s:

● Tapas – ações purificadoras.


● Santoṣa – satisfação com o que se tem.
● Āstikya – crer em Deus e nas escrituras.
● Dāna – generosidade, doar com sinceridade o que tiver para ser doado, pelas
vias adequadas, a aqueles que necessitam.
● Īśvarapūjana – adorar a Deus, de acordo com a capacidade pessoal, com
entrega e devoção (não por obrigação). Ou: cultivar sempre pureza mental, não
criticar e mentir ao falar e nem prejudicar fisicamente os outros.
● Siddhāntaśravaṇa – escutar dos mais sábios as escrituras e aprender seu
significado.
● Hrī – modéstia e saber reconhecer as más ações.
● Mati – sinceridade ao agir. Se envolver por completo nas ações (que estão
descritas nas escrituras).
● Japa – prática de repetição de mantra, que foi instruído pelo professor, que faz
parte da cultura védica e com o devido método.
● Vrata – voto. Aceitar e incorporar o que é dito pelo professor.

E como é descrito, tudo isso é pelo bem de todos.

Os yama-s e niyama-s se inter-relacionam e se complementam. A incorporação dos


yama-s e niyama-s não é simples, mas são a estrutura para a ascensão do praticante.
Quanto mais esses valores e reflexões se internalizarem, mais forte serão as raízes que
o sustentam.

O que torna uma árvore forte é sua raiz, embora ela não possa ser vista. Mesmo que a
copa de uma árvore seja frondosa e o tronco aparentemente robusto e firme, se as
raízes não forem fortes a árvore tombará em meio a tempestade. E, se não forem
profundas, não acharão água nas camadas do subsolo.

O sādhana é um processo. As raízes vão crescendo, a árvore, se desenvolvendo. As


folhas e os frutos, depois, nutrem o solo e a raiz. Yama-s e niyama-s são como as raízes
de uma árvore.

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Qual a grandeza dos yama-s e niyama-s? A maior possível. Patañjali apresenta sempre
os parâmetros e exemplos mais elevados. O faz ao tratar de temas como o estado de
nirodha e a condição de samādhi, e ao descrever īśvara, a luz acima de todas as outras.
Para citar alguns exemplos:

Patañjali coloca os yama-s e niyama-s como as bases do sādhana, e os coloca como


mahā-vratam, grandes votos. São bases, mas não são básicos. Observe sua colocação
no sūtra II.31. Esses votos são descritos por Patañjali como convicções a serem
mantidas independente de qualquer condição.

Olhemos para nós mesmos. Nossas verdades, interesses, ética e moral parecem firmes
e inabaláveis, mas somente em algumas situações, lugares, períodos e circunstâncias.
Apesar de termos convicções internas e, intelectualmente, compromissos com nossas
verdades, na prática somos frágeis perante a estrutura social que vivemos e o medo.
Quando confrontados, em algum momento, tendemos a ceder, sendo influenciados
por pressões internas ou externas. Não à toa, existe o ditado popular de que “todo
homem tem seu preço”. Ou seja, em algum momento se enverga e cede.

Patañjali está dizendo ser possível manter o compromisso em vencer os impulsos


violentos, manter o compromisso de sermos verdadeiros e de não provocarmos danos,
de não nos apossarmos do que não nos cabe, de sermos conscientes e ponderados e
de não sucumbir à ganância independente de situações, lugares, períodos e
circunstâncias.

Isso é lindo, mas agora pensemos com sinceridade. Sem nos autoiludirmos, quem
realmente está apto a ter essa força? A resposta pode ser desanimadora. Mas a ideia
de apresentar esses pontos não parece ser a de nos desanimar. Patañjali coloca a
referência, e nós podemos nos trabalhar nesse sentido. Conforme trabalhamos para
assimilar essas atitudes, essa força de resistência a situações, lugares, períodos e
circunstâncias tende a surgir e crescer.

Yama e niyama é o que molda o indivíduo em sua jornada à liberdade. É o que lhe dá
sustento. E esse é um momento do Yogasūtra que testa as intenções e atitudes. Ou
seja, quem se interessa ou não por essa construção, quem se identifica e quem
trabalha para transformar as ideias dos yama-s e niyama-s em realidade.

Embora possamos entender a mensagem dos yama-s e niyama-s, nem todos estarão
preparados para incorporá-los e colocá-los em prática. Nem todas as pessoas possuem
a qualificação imediata para viver sob a reflexão constante dos yama-s e niyama-s e,
quem sabe, tornar isso natural.

Essa incorporação pode acontecer a longo prazo ou não ocorrer. Às vezes, a instrução
e direcionamento do praticante não é suficiente, ou às vezes simplesmente não é seu
de interesse.

91
Para o professor, esse momento do Yogasūtra mostra uma “bifurcação”. Nem todos
encontram-se aptos a incorporar os yama-s e niyama-s. Muitas pessoas podem se
interessar e trabalhar neste sentido, mas o professor deve entender que nem todos
querem.

Algumas pessoas não querem praticar o Yoga pelo Yoga. Reduzir o estresse causado
pela influência dos kleśa-s, ter um momento de maior tranquilidade mental, ou aliviar
algum desconforto físico já é o suficiente. Ou é possível que se queira alcançar outros
fins com as práticas do Yoga, como alongamento e até mesmo utilizar as práticas para
autopromoção.

Quem somos nós para criticar isso? Patañjali dá a referência. Segue esse caminho
quem o sente necessário. O professor deve encontrar o discernimento necessário para
prosseguir seu trabalho com o aluno se sentir que vale a pena fazer isso, ou
simplesmente não querer trabalhar com quem não se propõe a se aprofundar.

Eu particularmente acho justo deixar a porta sempre aberta para que, quem sabe em
um futuro próximo, o trabalho superficial desperte um interesse maior no aluno. Isso
pode ocorrer pois tudo que fazemos deixam marcas em nós, e essas marcas podem
virar novas tendências.

Eu conheço casos de pessoas que permaneceram praticando āsana-s limitadas a


interesses físicos e de maneira irregular, mas que em um determinado momento da
vida sentiram uma sede de aprofundamento.

Mas, ao mesmo tempo que o professor pode seguir orientando alunos sem que estes
estejam realmente interessados em se aprofundar no que existe para além das
práticas, não é seguro aprofundar as práticas de Yoga sem que elas sejam
acompanhadas dos alicerces que as fazem seguras, que são justamente os yama-s e
niyama-s. Este é um ponto delicado, mas que, para o bem do professor, do aluno e do
Yoga, merece ser respeitado.

O professor dedicado à prática e aos estudos do Yoga precisa estar atento ao


julgamento em relação ao outro. Antes de criticar os outros, olhemos para nós
mesmos. Os yama-s e niyama-s em nós são uma ideia e uma identificação intelectual
ou já são uma realidade presente em nosso olhar e ações? Essa reflexão não é para
nos tornarmos mais humildes, e sim realistas sobre nós mesmos.

Mas seriam os yama-s e niyama-s regras e normas já estruturadas que devem ser
seguidas, ou tratam-se de reflexões pessoais?

Não existe uma resposta, pois, dependendo da pessoa, os yama-s e niyama-s podem
ser entendidos como uma instrução ou uma meditação. Quando começamos a
caminhar no Yoga, escutamos falar sobre os cinco yama-s e cinco niyama-s, e eles
soam como um código de conduta fixo. Não violência, não mentir, não roubar, não
desperdiçar energia e não cobiçar. E os incorporamos primeiro intelectualmente.

92
Somente com a devida sensibilidade que os yama-s e niyama-s se tornam reflexões
pessoais, e que conversam conosco constantemente.

No início normalmente não temos essa sensibilidade e experiência, e nem a liberdade


para tornar as coisas internas. Então, são tratadas como normas. Mas é importante
que os yama-s e niyama-s sejam seus. Não do livro, não do professor, mas de cada um.
E que se renovem.

Uma vez minha professora disse que um dia iria se aposentar do instituto de Yoga
onde trabalha para que outros professores possam ter a chance de se expressarem e
se desenvolverem. De assumirem o posto de professores sêniores. Para ela, esse ato
tem relação com asteya, assumir algo, mas pelo tempo adequado.

Todos os yama-s podem ser entendidos como reflexos de ahiṁsā. Na prática, esse é
um tema a ser considerado pelo professor. Desde o princípio, a relação entre professor
e aluno e a instrução devem zelar por ahiṁsā, pois o impulso de violência é algo
extremamente forte em nós. É comum utilizar a força bruta, forçar a passagem de ar e
forçar o progresso.

Sem precisar atuar de maneira explícita, o professor deve trabalhar para desarmar
essa tendência no aluno. Lembrando que impor algo ao aluno também é uma
expressão de violência.

Patañjali parece cuidadoso, e, ao refletirmos sobre os yama-s e niyama-s, entendemos


que o Yoga nos alerta para o caos. O mundo é caótico e o ser humano é dotado de
obscuridades.

Como é descrito no sūtra II.34, possuímos impulsos negativos, como agressividade,


entre outros, e que geram ações que são expressões diretas ou indiretas, que toleram
ou consentem violência, ações que estão enraizadas na ganância (lobha), raiva
(krodha) e confusão, ou cegueira (moha).

O trabalho não é simples, pois é difícil reconhecer nossas sombras, e os efeitos nem
sempre são imediatos. Patañjali explica que os efeitos são:

Madhya – efeitos visíveis e imediatos. É o que podemos chamar de “karma


instantâneo”, brincando com o termo. Embora exista a intensidade do momento,
quando os efeitos das ações impulsionadas por nossas obscuridades chegam quase de
imediato, o engano fica mais evidente. Assim, entendemos também sobre nossa
condição e o trabalho que devemos realizar para nos lapidarmos.

Adhymātrā – efeito indefinido, ou permitido, mas que não é adequado. Quando nossas
obscuridades se apontam sem estarem muito afiadas, nós e talvez nem os outros
percebam. Algum desconforto pode ocorrer, e lá na frente começa a haver desafetos,
e torna-se difícil entender o porquê.

93
Mṛdu – efeito sublime, escondido em palavras e olhares, ou em um comportamento
que se escora nas normas e padrões aceitáveis.

Para quem expressa suas obscuridades, como a agressividade, dessa forma, é dificílimo
reconhecer em si essas atitudes.

O professor de Yoga tem o grande desafio de trabalhar isso em si, e instigar e oferecer
suporte para que o aluno consiga reconhecer e trabalhar esses impulsos obscuros que
todos nós possuímos.

O trabalho do professor de Yoga vai na base da estrutura da vida. Tanto na estrutura


interna da relação de cada ser consigo mesmo, quanto nas suas expressões para o
mundo e com o mundo.

Esse trabalho é urgente pois essas obscuridades podem surgir a qualquer momento.
Possuímos tendências e condicionamentos adormecidos e suprimidos, que podem
eventualmente explodir e nos dominar. O ser humano é violento por natureza! A vida
é aparentemente caótica pois não segue uma regularidade. A própria vontade de
direcionar e controlar o rumo da vida é uma prova do nosso instinto de violência. Ao
invés de nos moldarmos ao momento, tentamos controlá-lo.

Patañjali aconselha estarmos atentos a esses impulsos obscuros. Eles aparecerão. E,


assim que forem detectados, devemos imediatamente colocar a mão no leme e mudar
a direção do barco. Se não, cedo ou tarde os resultados virão. E serão danosos.

Esse conceito chama-se pratipakṣa bhāvanam, ou seja, substituir a diretriz. Para o


professor de Yoga pode ser interpretado como a capacidade de perceber o erro e
consertar imediatamente. O professor assume um cargo que tende a gerar vaidade.
Não reconhecer o erro para não se expor é uma violência.

Eu escutei Desikachar dizer diversas vezes “eu cometi muitos equívocos como
professor”, mas dizia estar seguindo aprendendo.

Patañjali segue então explicando os resultados dos yama-s e niyama-s. Isso também
pode ser uma narrativa a ser seguida pelo professor de Yoga, a de explicar os
processos e motivar o aluno. Mas, como Patañjali, oferecendo explicações sucintas e
claras.

O II.35 explica que uma mente violenta estabelece relações violentas e todo o entorno
se torna conturbado. Na ausência da expressão do instinto violento, as relações são
harmoniosas e, à nossa volta, os conflitos com os quais nos associamos cessam.

A animosidade entre professor e aluno, e a impossibilidade de dissolução de conflito


ou tensão, mesmo que pequena, evidenciam como está o coração do professor.

Outro ponto a ser refletido pelo professor é que há inúmeras maneiras sutis de ser
violento com o aluno. Quando o professor não lhe oferece o devido suporte, quando o

94
aluno não é visto com suas peculiaridades, quando o professor impõe seu próprio
ritmo e não respeita o do aluno, quando o professor ensina o que lhe é conveniente,
ou o que serve para si, mas que não necessariamente se adequa ao aluno... Todos
esses exemplos são expressões de violência.

II.36 traz que a incorporação de satya ocorre pela coerência entre sentimento,
pensamento e fala. Quando a intenção é clara, a expressão dos atos é clara e, como
consequência, haverá clareza e transparência, que serão sentidos por todos.

Satya está relacionado diretamente à comunicação. Erros de comunicação são


comuns, e por isso o professor deve estar atento ao que fala e como sua fala será
recebida pelo aluno. A comunicação do professor deve ser clara, mas não para os
critérios do professor, e sim devotada ao aluno, à sua linguagem e humor mental. As
palavras precisam ser bem escolhidas para serem acolhidas pela interpretação do
aluno.

O sūtra II.37 fala do resultado da honestidade, coerência e integridade em nossas


ações. Quando se age para além da ganância e desejos, tudo é ganho. Podemos dar
aulas de Yoga para ajudar os outros, para recebermos remuneração e pagar contas, e
até mesmo para conquistar reconhecimento.

Na interpretação do Yoga, o ganho está na possibilidade de sentir-se íntegro e, através


desta integridade, descobrir, redescobrir e seguir aprendendo sobre tudo. Ganhando
em todos os momentos a oportunidade de renovar-se.

Ganha quem aprende. Trabalhar com Yoga é uma possibilidade de ganho constante.

Outros pontos sobre asteya: O professor não é dono das respostas. O professor pode
ajudar o aluno a encontrá-las. O que o professor ensina não é dele, simplesmente
passa por ele, ou seja, é expressado por ele. Trata-se de um conhecimento já
existente. Por mais que receba uma linguagem de quem a transmite, o professor é
apenas um canal.

O professor não tem posse do aluno. A relação entre professor e aluno deve ser de
respeito e lealdade, mas não de posse. As práticas que o professor ensina não são do
professor, elas precisam ser do aluno, e para o aluno.

E todo mérito pelas conquistas do aluno é do próprio aluno, não do professor. O


professor é apenas um ingrediente que fermenta o processo da mudança.

Ainda sobre o sūtra II.37, Desikachar define que “alguém que é digno de confiança,
porque não cobiça o que pertence aos outros, naturalmente tem a confiança de todos
e tudo é compartilhado com ele, por mais precioso que seja”. Quem menos deseja,
mais recebe.

Ao citar Desikachar, não posso deixar de mencionar o quanto é natural em nós a


tendência de copiarmos o estilo e didática de um bom professor. Desikachar foi um

95
professor excepcional. Suas aulas encantavam as pessoas, mesmo quando saíamos
com questionamentos fortes para digerirmos. Sabendo de nossa natureza humana de
copiar fórmulas que dão certo, ele incentivava a cada professor que encontrasse sua
própria maneira de entender o Yoga e ensinar Yoga.

Patañjali nos aconselha a buscar referências [YS I.37]. Se inspirar em alguém é


diferente de copiar alguém. Para ser um professor eficiente não é necessário copiar
professores eficientes, mas ensinar de um lugar sincero. Desikachar teve aulas com
Krishnamacharya por quase três décadas, e desenvolveu sua própria maneira de dar
aula. Sangeetha conviveu com Desikachar, e possui uma didática diferente da dele. E
ela espera o mesmo de mim.

Uma vez um eu apresentei um amigo querido a Sangeetha. Ele tinha interesse em ser
professor de Yoga. Na primeira aula Sangeetha lhe disse: “sabe, o mundo não precisa
de dois Diegos”.

Cada um deve encontrar seu caminho e seus meios para ensinar. E o professor deve
cuidar para que seu aluno não fique preso a sua didática.

O sūtra II.38 é sobre brahmacarya, que em suma nos faz refletir sobre moderação. O
que é moderação? Estamos falando de algo um tanto pessoal. Cada indivíduo deve
sentir para onde direciona sua energia, o quanto se desgasta e o quanto contribui para
repô-la. Seja por técnicas que ajudem a incrementar a energia interna ou pelo
descanso.

Moderação diz respeito a não desperdiçar energia desnecessariamente com coisas que
não nos elevarão. E depositar energia adequadamente naquilo que pode nos elevar. A
reflexão é importante pois é possível cometer exageros até mesmo com as
ferramentas do Yoga.

O professor que não é tão aplicado em sua rotina deve zelar pelo bom senso. Utilizar o
Yoga para gerar energia, e “gastar” toda essa energia em outras direções não propicia
progresso no caminho do Yoga.

O professor extremamente aplicado deve cuidar para não se exaurir pelo excesso de
empenho nas práticas e estudos. Mesmo que se queira acelerar o processo de
autolapidação, isso pode exaurir nossa vitalidade.

O “tesão” para seguir aprendendo e se aprofundando, a disposição e interesse em


continuar investigando as tendências, ações e situações em que se vive, mas sem que
isso seja um estresse, é um medidor sobre nosso comportamento, porque nos mostra
se nosso empenho está adequado ou não.

A aplicação do professor perante seu aluno também deve respeitar este conceito de
moderação. Se somente o professor coloca energia no processo, enquanto o aluno
permanece passivo ou indiferente, é desgastante para o professor. Mesmo que isso
ocorra no início, a médio e longo prazo isso precisa mudar. A dedicação deve ser

96
bilateral. Puxar um aluno ou uma turma por um grande período de tempo gera
desgaste. Se o professor se exaure, suas práticas definham e sua mente se enfraquece.

O professor será sempre o incentivador, claro, mas deve descobrir maneiras de


incentivar o aluno ou a turma sem ter que estar os puxando constantemente. Dar aula
de Yoga é se doar, mas existem diferentes maneiras para fazer isso. Se exaurir
constantemente é um indício de que erramos a mão.

Independentemente de como foi o contato com a turma ou aluno, após as aulas o


professor deve reservar alguns minutos para si. Realizar algumas respirações ou utilizar
um mantra para relaxar o físico, mental e emocional. Isso também conta como
moderação. Se não nos cuidarmos, a longo prazo o cansaço virá.

O sūtra II.39 explica que quando há ausência de ganância, é possível estar disponível
mentalmente e emocionalmente para reflexões profundas. O processo de observar e
instruir necessita de calma. Podemos responder aos sinais que o outro apresenta, ou
podemos intuir o que o outro necessita. A segunda opção tende a ser mais profunda,
além de aproximar a relação entre professor e aluno.

Para isso, ao olhar o aluno, ao invés de desejar ajudá-lo ou resolver algo,


primeiramente observe. Na ânsia por soluções, o que achamos são nossas próprias
respostas, que são reações de nossas memórias. Às vezes, o que o outro precisa está
além do que temos acumulado em nosso banco de dados.

Por incrível que pareça, a ausência de desejo de querer ajudar e resolver abre mais
espaço para a intuição vir.

Lembro-me de Desikachar. Às vezes ele recomendava coisas a alunos que fugiam à


“regra lógica” do Yoga. Seu desejo era ajudar, sim, mas para isso ele se dedicava a
observar, a sentir. E intuía o caminho e aplicação que sentia serem adequados ao
aluno. Mas para isso a mente deve estar serena.

Antes de encontrar o aluno ou a turma, um bom exercício para o professor é se


preparar para a aula. Dispor de alguns minutos para se esvaziar, utilizando alguma
técnica, ou simplesmente relaxando internamente.

“Na ausência de desejo é possível se fazer atento e aberto para sentir a causa e
consequências das coisas”.

A partir do sūtra II.40, Patañjali explica os resultados que ocorrem quando os niyama-s
estão bem estabelecidos em nós.

O primeiro resultado é sobre o niyama śauca, que, entre as explicações dos yama-s e
niyama-s, é o único que recebe dois sūtra-s dedicados a explicá-lo.

Śauca é a pureza. Patañjali explica que, ao estabelecer pureza, naturalmente ocorre


um desinteresse por aproximações inadequadas com os outros. Ou seja, pela pureza

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não há mais atração superficial. Não há interesse e desejo pela forma do corpo do
outro pois a mente e os sentidos quando puros não são seduzidos por sinais externos.

O sūtra não parece estar condenando a atração sexual, mas explica que conforme nos
purificamos, os impulsos por sexo deixam de guiar o indivíduo. Isso abre espaço para
uma discussão polémica. Práticas sexuais seriam boas ferramentas para ajudar no
processo do Yoga? Pelo que observamos nos textos, a resposta é não.

Relações sexuais entre professor e aluno, além de não ajudar no processo do Yoga,
não são seguras para a integridade emocional de ambos, principalmente do aluno.

Pelo sūtra, Patañjali explica que quando a mente se encontra pura, não há intenção de
aproximação e atração pelo corpo do outro. Por quê? Porque o corpo é entendido
como um veículo, e que possui seus próprios impulsos, vega-s. Seguir os impulsos do
corpo leva a mente à agitação.

Pelo sūtra, entendemos que não se trata de ter disciplina para não se render à sedução
que o corpo do outro desperta em nós. Independente de o outro querer ou não utilizar
seu corpo para a sedução. Patañjali diz que, ao experienciar a pureza, naturalmente
este valor se torna mais elevado do que qualquer impulso dos sentidos ou da mente
por engajamento sensual.

Na minha opinião, este sūtra demonstra uma certa característica que deve estar
presente no professor de Yoga que trabalha com o corpo. O corpo deve ser visto como
śarīra, carcaça. Como professor, é necessário conseguir olhar o corpo para além de
suas aparências, o que chamamos de dimensão vitarka. Se isso não ocorre ainda,
melhor se trabalhar internamente antes de trabalhar com Yoga. Caso contrário, a
mente pode se render aos sinais do corpo e responder a suas atrações.

Novamente, isso não é algo condenável, mas inapropriado para quem está interessado
em se dedicar ao processo do Yoga, e será um desrespeito para com o outro.

O que o sūtra explica é que, pela pureza da mente, é possível observar a beleza interna
dos outros, sem ficar preso pela aparência. E também entender o funcionamento do
seu próprio corpo, respeitando suas características, cuidando de sua manutenção e se
expressando com dignidade através dele.

No sūtra II.41, ainda dedicado a śauca, “há pureza na mente (sattva – śuddhi),
hombridade (saumanasya), habilidade de foco (ekāgrya), controle natural dos sentidos
(indriya – jaya) e contemplação do ser interno (ātma – darśana)”.

O sūtra II.42 descreve o resultado de santoṣa, que é “sensação de extrema felicidade”.


Estudar, praticar Yoga, e aplicar Yoga são ações e atitudes infinitas. Isso pode gerar
alguma frustração. O Yoga é um universo e o que sabemos é muito pouco. O que
conseguimos aplicar é menor ainda, e o que temos para oferecer aos alunos muitas
vezes é menos do que gostaríamos.

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Essa sensação pode ser uma angústia ou simplesmente um lamento. Normalmente,
quanto mais nos aplicamos e percebemos a dimensão do Yoga, menor nos sentimos.

Embora nunca tenhamos tudo, sempre possuímos algo, e algo a oferecer. Na vida
sempre trabalharemos com limitações: as nossas e as das circunstâncias.
Reconhecendo e aceitando-as, devemos aproveitá-las.

Trabalhar com Yoga é trabalhar com as limitações. E, dentro de toda situação,


podemos extrair o melhor dela. De todo mínimo podemos fazer o máximo. Podemos
aprender muito com o mínimo. Mas precisamos olhar com carinho o pouco que temos.

Um dia, no início de 2009, eu acompanhei Sangeetha, minha querida professora, para


uma aula em uma escola exclusiva para crianças com “limitações”. A turma era grande,
formada por aproximadamente cinquenta crianças. As “limitações” variavam. Percebi
que algumas eram surdas, umas não possuíam um dos braços e outras possuíam
alguma síndrome.

Em toda minha vida, eu nunca vi crianças tão felizes em ver alguém. As crianças
vibravam ao ver Sangeetha. Se chamam esta escola de “especial”, deveria ser pelo
interesse e entusiasmo especial que aquelas crianças demonstravam.

Sangeetha tinha sob sua responsabilidade muitas crianças, cada uma com uma
questão que merecia ser acompanhada de perto. O local era “inapropriado”, pequeno
para tanta gente, com apenas um chão duro e frio.

Ela se colocou à frente da turma. Nós nos olhamos de longe, e com o olhar eu dizia:
“Como você vai fazer?”. Dentro de mim, eu só via limitações. Mas seu olhar parecia
dizer: “Vamos dar um jeito”. Então, apesar de tudo, Sangeetha conduziu uma aula de
āsana que envolveu todas as crianças, e me comoveu profundamente.

No final da aula ela olhou para mim, com um olhar doce que me dizia: “Entendeu?”

Pelo que eu aprendi ali, podemos olhar para as limitações, ou podemos olhar para o
que temos, mesmo que seja pouco. No fim da aula, a felicidade de todos era elevada.

Quem vê as limitações hesita e se frustra. Quem aproveita o que tem, é feliz. No fim,
nada é pouco ou pequeno demais que ainda assim não possa gerar aprendizado.

Nos sūtra-s II.43, 44 e 45, Patañjali apresenta os resultados de tapas, svādhyāya e


Īśvarapraṇidhāna. Essas palavras são exatamente os componentes do kriyā-yoga, que
é uma espécie de fórmula. Aqui são apresentados como atitudes a serem
incorporadas, e que geram os seguintes resultados:

A purificação que limpa a mente é tapas, que envolve todas as dimensões da vida de
uma pessoa. Quando se vive dedicado a esta causa, o corpo e os sentidos atingem sua
magnitude.

99
Por mais que o professor estude, será sua dedicação a tapas que irá permitir que seus
sensores leiam os sinais do aluno a sua frente. Sem tapas, não há Yoga e não há
professor de Yoga.

Sobre svādhyāya, no sūtra II.44, Patañjali diz que pela capacidade de se autoestudar
constantemente é possível perceber não só a inspiração que vem de dentro, mas
também as forças externas que trabalham conosco. Patañjali as chama de devatā, que
pode ser entendido como uma espécie de guia.

Neste sentido trabalhamos sempre em equipe. Nunca sozinhos. E podemos receber


inspirações extras. Fiquemos atentos para escutá-las.

Samādhi siddhiḥ é descrito no sūtra II.45. A absorção, ou integração da mente em sua


relação, é natural a quem se entrega completamente ao princípio mais elevado.

No fim, a única coisa que realmente possuímos é nossa capacidade de entrega. Esse é
o primeiro siddhi, poder, ou capacidade especial, apresentado por Patañjali no
Yogasūtra.

REFLEXÃO SOBRE ĀSANA

Patañjali dedica três sūtra-s exclusivamente ao tema āsana. Podemos interpretar sua
narrativa da seguinte maneira:
• Sūtra II.46 – apresenta uma espécie de pré-requisito para se realizar āsana, ou, qual
seu princípio básico.
• Sūtra II.47 – traz a definição do que acontece no processo do āsana.
• Sūtra II.48 – apresenta o resultado das experiências das práticas de āsana.

Vamos comentar um pouco sobre esses sūtra-s e refletir sobre como o professor pode
utilizar a ferramenta āsana para beneficiar a caminhada do aluno.

II.46 sthirasukhamāsanam
II.47 prayatnaṣaithilya anantasamāpattibhyām
II.48 tato dvaṅdvānabhighātaḥ

O FUNDAMENTO DO ĀSANA

No sūtra II.46, Patañjali explica com apenas duas palavras o fundamento da prática de
āsana. O āsana é um equilíbrio entre sthira e sukha. Sthira literalmente indica firmeza,
permanência. E sukha, conforto, prazer.

Sthira e sukha não possuem medidas universais. As diferentes partes do corpo se


equilibram em sthira e sukha. O corpo e a respiração se equilibram em sthira e sukha.
A intenção e ação da mente se equilibram em sthira e sukha. A vida que levamos e a
prática que devemos realizar se equilibram em sthira e sukha.

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O QUE OCORRE NO ĀSANA

No sūtra II.47, Patañjali explica o que ocorre no āsana, quando sthira e sukha se
alinham: a prática de āsana é um processo de desatar os nós. Interpretando de
maneira prática, o sūtra nos ajuda a entender duas coisas:
● Āsana é meditação
● Āsana é terapia

ĀSANA E MEDITAÇÃO

Por que āsana é meditação? A palavra ananta significa infinito, ou seja, a sensação de
ausência de tempo. A ausência do antes e depois. Das amarras com o passado e as
expectativas do futuro (o que lembra a ideia trazida no sūtra I.15). Ao desatar os nós, a
mente medita no movimento do presente. Meditando em ananta não há medo, pois,
acolhidos em um “tempo” interno, só há segurança.

O sūtra também sugere meditar em ananta-śeṣa, que, segundo a mitologia, é a


serpente que serve de cama para Viṣṇu. Meditemos sobre sua representação e
atributos:
● Ananta-śeṣa é a serpente que flutua no oceano cósmico.
● Seu corpo é seguro e oferece um assento confortável.
● O formato da cabeça da serpente acoberta e protege o que se encontra
debaixo dela.
● Seu conhecimento é universal. Suas inúmeras cabeças representam a
pluralidade do ensino, que é para todos.
● A serpente é encantadora. Provoca um magnetismo na mente.
● Seus movimentos são suaves, cautelosos e, quando necessário, velozes, mas
precisos.

ĀSANA E TERAPIA

Por que āsana é terapia? Porque o desatar dos nós provoca abertura no campo
emocional.

O Yoga é fundamentalmente uma terapia. Uma terapia para a mente. Āsana também
ajuda a cuidar das partes do corpo. Mas essa função talvez seja uma apropriação desta
ferramenta. Mesmo que exerça papel fundamental para muitas pessoas,
essencialmente essa função é secundária. Āsana é primeiramente uma ferramenta
para tratar a mente.

A ideia de terapia aparece no Haṭhayogapradīpikā, como uma ferramenta para gerar


ārogyaṁ, saúde, através de sthairyam, firmeza no corpo e na mente,
e aṅgalāghavam, leveza no corpo e na mente.

Āsana é terapia para reduzir rajas e tamas [HYP I.17], pois é capaz de gerar:
● sthairyam, firmeza – para reduzir excesso de rajas

101
● aṅgalāghavam, leveza – para reduzir excesso de tamas

TERAPIA PARA O CICLO CRÔNICO DA MENTE INFLUENCIANDO O CORPO E DO CORPO


INFLUENCIANDO A MENTE

A interrelação entre o corpo e a mente faz com que questões psíquicas e físicas
conversem constantemente. Algumas reações são sentidas no corpo, mas podem ter
origem no campo emocional.

Carregamos em nós algumas questões crônicas, que, por serem antigas, possuem
causas difíceis de serem identificadas com precisão. Āsana é uma ferramenta bastante
útil para tratar os ciclos crônicos de efeitos psicossomáticos. Mesmo que a causa não
seja identificada, a prática de āsana ajuda a reestruturar o “diálogo” entre os impulsos
do corpo e da mente.

RESULTADO DOS ĀSANA-S

Pelo sūtra II.48, entendemos qual é o resultado da prática de āsana. O sūtra é


significativo pois encontramos nele a referência para orientar a direção de nosso

empenho. Āsana, segundo Patañjali, possui um objetivo final. Podemos, então, mirar
nesse objetivo. E o sūtra define também o limite de alcance desta
ferramenta. Āsana não irá servir para tudo, e não possui a força para resolver tudo.
Segundo Patañjali, ao equilibrarmos sthira e sukha, e realizarmos “prayatna-śaithilya-
ananta-samāpattibhyām”, ou seja, conseguirmos desatar os nós e mergulhar no
presente, a prática de āsana possibilita o seguinte resultado:
tataḥ dvandva anabhigātaḥ

“Então, as influências são minimizadas. A dualidade não mais ataca a mente”.


Podemos traçar paralelo entre sthira e sukha e o conceito de haṭha. Quando duas
qualidades ou energias opostas se equilibram, naturalmente o prāṇa flui, há
estabilidade na mente. As situações mais extremas e adversas (dvandva) não mais
abalam o indivíduo. Assim como situações de prosperidade ou aparente
fracasso. Fisicamente, situações extremas como frio ou calor, por exemplo, não geram
agitações.

Então Patañjali define algo bastante significativo: āsana é uma ferramenta para levar a
mente à estabilidade. A utilização da prática de āsana voltada para outro fim deixa de
ser prática de Yoga. E, quando o resultado da prática de āsana não contribui para esta
estabilidade, a prática deve ser revista.

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DIFERENTES INTERPRETAÇÕES E UTILIZAÇÕES DE ĀSANA DENTRO DA TRADIÇÃO DO
YOGA

Durante minha vida, eu escutei algumas vezes a seguinte interpretação: āsana é


essencialmente uma postura para sentar-se e meditar, e que os diferentes tipos de
posturas, sendo várias delas quase contorcionismos, surgiram posteriormente.
Eu entendo a razão desse argumento, já que, em alguns textos, āsana é realmente
apresentado como uma posição sentada com a coluna ereta e confortável
(sthira e sukha). Mas isso não quer dizer que os mais diversos āsana-s não tenham um
papel importante e essencial para a saúde, bem-estar e treino mental para muitas
pessoas. E nem que esses diferentes āsana-s sejam algo mais recente dentro da
tradição.

Vyāsa ilustra, como exemplo em seu comentário sobre o sūtra II.46, mais de
dez āsana-s, e explica que existem muitos mais, e que são tipos de āsana-s variados.
Nos Veda-s existem registros de praticantes de āsana-s, e não eram apenas āsana- s
sentados. Como Uttanapāda, que era assim chamado pois realizava āsana-
s invertidos (viparīta).

Para enriquecer a reflexão, vamos ver o que outras escrituras dizes sobre āsana-s:
● Na Gītā, āsana é um lugar para sentar-se, e a postura sentada para nela
permanecer e focar a mente em uma direção.
● Nos textos de haṭhayoga, āsana é apresentado como uma ferramenta para
estabilizar a saúde [HYP I.17], e como preparação para prāṇāyāma [HYP II.1].
● YogaYājñavalkya saṁhitā traz āsana como um pilar a fazer parte da rotina do
praticante [YYS III.18].
● O Yoga Rahasya explica diferentes utilizações para a prática
de āsana. Sṛṣṭikrama, para jovens, sthitikrama para adultos, antyahkrama, para
pessoas que estão no último estágio da vida (sanyāsi), e cikitsā krama para
terapia.

ĀSANA PARA OS DIFERENTES ESTÁGIOS DA VIDA, SEGUNDO O YOGA RAHASYA

Segundo o Yoga Rahasya, na juventude o foco é āsana. Na fase adulta, na qual existem
inúmeras responsabilidades e que tende a ser ativa e estressante, o foco passa a ser
prāṇāyāma. O foco para o praticante mais velho é a meditação.
O texto explica que estes são os focos para cada fase, mas isso não quer dizer que
āsana seja deixado de lado na fase adulta.

Na fase adulta ativa, a prática de āsana é mantida com regularidade, pois ajuda
em prāṇāyāma, mas o objetivo não é simplesmente realizar āsana, mas utilizar āsana-
s que ajudem o processo respiratório e melhorem a circulação do prāṇa.
Após uma certa idade, o foco é meditação. A prática de āsana continua sendo
aplicada, só que como uma meditação. É possível introduzir cânticos, visualizações,
longas permanências, etc.

103
Na fase jovem, alguns momentos dedicados a prāṇāyāma são benéficos, assim como
exercícios meditativos. Prāṇāyāma e meditação não são exclusividades da prática de
adultos, mas não são o foco principal, pois dependem de uma maturidade e de
interesse que vêm com a necessidade.

SOBRE A ABORDAGEM DE PRATICAR ĀSANA NA FORMA SṚṢṬIKRAMA PARA TODOS

“O processo (krama) que gera força para os músculos, sentidos e corpo é


chamado sṛṣṭikrama” [YR II.4]. Sṛṣṭikrama é definido como práticas intensas e
musculares. Essa abordagem é marcada pelo excesso de dinamismo e poucos
intervalos entre os āsana-s. A composição de sua sequência não dedica muito tempo
para preparação e nem para compensação, por se tratar de uma aplicação para o
público jovem e saudável.

Sṛṣṭikrama possui seus benefícios, mas é apresentada com restrições. Segundo o Yoga
Rahasya, práticas mais dinâmicas e musculares são aconselhadas para pessoas “até se
completar 25 anos, que é chamado a fase da vida brahmacāri”.

Segundo o texto, isso é aplicável apenas para aqueles jovens que se dedicam
exclusivamente para obtenção do conhecimento que é descrito nas escrituras
(chamados dvijā), enquanto para outras pessoas a aplicação é flexível. [YR II.5]
Observação: dvijā são assim chamados pois receberam iniciação, e são “os nascidos
duas vezes”. Estas crianças ou jovens não praticam apenas āsana-s, mas também os
outros aṅga-s do Yoga.

Mas que fique claro: não é uma regra utilizar apenas a abordagem sṛṣṭikrama para o
público jovem. E também não é proibido adultos realizarem práticas de āsana-s fortes,
intensas, com excesso de dinamismo e sendo focadas mais na camada muscular do
corpo.

O fato é que os adultos, mesmo que apreciem atividades assim, precisam, ou


merecem, outro tipo de prática. Isso não significa que não podem ser dinâmicas e
intensas, mas a maneira de se praticar muda. Principalmente a composição da prática.

A COMPOSIÇÃO DA PRÁTICA DE ĀSANA

Adultos e jovens possuem práticas de āsana diferenciadas pois possuem estilos de


vida, condição e objetivos diferentes. Para que a prática de āsana gere o máximo de
benefícios e o mínimo de risco, ela deve seguir a seguinte composição:

Pūrvāṅga – parte da prática de āsana preparatória, composta por āsana-s que


combinados ajudam o corpo e a mente a se prepararem gradualmente para executar
os āsana-s que são os objetivos da prática. Por exemplo, se śīrṣāsana é o āsana mais
difícil para o praticante, ou, se o objetivo da prática é realizar śīrṣāsana, deve existir
uma preparação para este āsana. Essa preparação, obviamente, é diferente para cada
pessoa pois depende de sua condição.

104
Para o público jovem essa fase preparatória é mais dinâmica e pode ser mais rápida
em duração. Os jovens precisam de menos tempo para adaptar seu corpo e perderão o
interesse caso a preparação seja muito longa.

Pradhanāṅga – toda prática deve ter um objetivo específico. Pūrvāṅga é a parte que
prepara para se chegar ao objetivo, e pradhanāṅga é a parte da prática de āsana em
que se trabalha objetivo em si. No adulto, o objetivo da prática é algo muito peculiar,
pois inúmeras questões na vida precisam ser cuidadas com total carinho, e a prática de
āsana se volta para essas questões.
Na fase jovem, o foco da prática não é ajudar a solucionar as questões internas, pois
muitas vezes elas nem existem, ou ainda não estão tão claras. Na maioria das vezes,
são questões passageiras e, mesmo quando são crônicas, a maneira de se tratar essas
questões é menos intensa, se comparada à abordagem feita na fase adulta.

Uttāna – parte da prática de āsana dedicada à finalização. Nela se realizam


compensações e descanso. O jovem em geral necessita de menos compensações, e
pode realizá-las entre um āsana e outro, o que ajuda a flexibilizar sua coluna vertebral.
Por exemplo, após cada āsana, pode realizar vinyāsa-s intensos e seguir assim durante
toda a prática.
Já para um adulto a compensação é essencial para que não acumule efeitos
exagerados ou colaterais. E realizar vinyāsa-s intensos em todos os momentos da
prática não faz tanto sentido pois corre o risco de enfraquecer a coluna vertebral e não
permitirá que a composição da prática de āsana conduza seu corpo a um relaxamento
profundo e a mente a uma introspecção estável.

O cuidado com essa composição é, muitas vezes, o que evita que a prática de āsana
seja catastrófica para inúmeras pessoas com questões sérias, como hipertensão e
depressão, por exemplo.

OBSERVAR ATENTAMENTE O ALUNO ANTES DE AGIR

O Yoga Rahasya explica que o professor deve observar atentamente seu aluno e,
somente após compreender suas características e questões, deve orientá-lo sobre as
técnicas que serão úteis para si. [YR I.31,32 e 33]

O verso do Yoga Rahasya pode dar a entender que o professor não deve realizar
nenhum tipo de prática antes de conhecer profundamente a condição e necessidade
do aluno, mas o trabalho deve começar de algum lugar e de alguma maneira. Então
podemos entender este verso da seguinte maneira:

Para compreender a condição do aluno, e suas urgências, o professor utiliza algumas


técnicas, mas é importante que estas sejam aplicadas sempre de forma gentil. E,
através da observação de como o aluno reage a elas, o professor entende melhor a
realidade e necessidade do aluno. Após esse período experimental, o professor então
inicia seu trabalho, focando nos principais temas a serem tratados.

105
Se o professor não respeita esse período de observação e já parte para aplicação
indiscriminada de técnicas, sem o cuidado de que as mesmas sejam realizadas de
maneira branda, o aluno corre riscos e o trabalho realizado provavelmente não trará
ajuda às questões do praticante.

A prática de āsana é uma ferramenta que ajuda o professor a entender as tendências,


condições e necessidades do aluno, e no início deve ser aplicada de maneira branda,
simplesmente como parte da avaliação sobre o aluno.
Então, após observar atentamente o aluno, o trabalho verdadeiramente se inicia.

SŪRYA NAMASKAR E ŚAVĀSANA

Curiosamente, a aplicação da sequência do sūrya namaskar (saudação ao Sol) é


entendida como uma sequência obrigatória para todos. Caso o aluno necessite desse
estímulo essa sequência pode ser válida, mas existem diferentes maneiras de
estimular o sistema.

Nós temos a tendência de simplificar demais as coisas e generalizar tudo. Não há uma
fórmula que sirva para todos e que sirva sempre. E não existe uma ferramenta que dê
conta de tudo.

Querer apontar um tipo de sequência que possa sintetizar todos os estímulos que nós
precisamos, ou ainda, que todas as pessoas precisam, independente de sua condição e
necessidade, é uma interpretação muito simplista.

Existem diferentes interpretações do sūrya namaskar, com variações de respirações e


até mesmo de posturas. Elas podem ser adaptadas e executadas em diferentes
momentos da prática de āsana. Mas só se forem realmente necessárias.

Śavāsana, conhecido como o relaxamento final, é um āsana especial. Nele, o corpo


tem tempo para absorver os efeitos dos āsana-s que foram realizados anteriormente e
a mente relaxa. Mas śavāsana não é necessariamente um āsana colocado apenas no
final das sequências de āsana. E também não é uma obrigatoriedade em todas as
sequências.

O Haṭhayogapradīpikā I.32 explica śavāsana como um āsana para relaxar o corpo e a


mente da fadiga, e deve ser usado quando há fadiga ou se houver fadiga.

Śavāsana possui grande importância em rotinas caóticas e aceleradas. Que são traços
de nosso modo de vida moderno. Sempre que for o caso, śavāsana deve ser utilizado,
mas na medida adequada. Quando o praticante excede o tempo adequado, a mente é
tomada por tamas.
Relaxamento e languidez são coisas diferentes.

106
AJUSTES E ALINHAMENTO

O professor deve instruir seu aluno sobre o cuidado para manter o alinhamento por
dois principais motivos: diminuir o risco de lesão e trazer maior foco à prática, mas
todo ajuste por parte do professor é uma intervenção. Essa intervenção pode ser
verbal ou física.

Tudo o que é dito pelo professor deve ser pensado. As palavras podem confundir.
Então, cada palavra, e o momento de se falar, deve ser o mais preciso possível. A fala
do professor em momentos indevidos, ou na linguagem indevida, pode gerar distração
ao aluno.

As intervenções físicas, em que o professor realiza um ajuste tocando no corpo do


aluno, precisa ser respeitosa e precisa, pois toque do professor no corpo do aluno
pode gerar reações. É importante que, antes que as intervenções físicas ocorram, o
professor tenha conquistado o respeito do aluno.

O toque e o ajuste devem ocorrer se houver realmente necessidade. Não há nunca


razão para tocar partes íntimas e também não faz sentido o professor aplicar ajustes
no corpo do aluno simplesmente para colocá-lo numa postura que ele não conseguiria
fazer sozinho, como se fosse esse o objetivo final da prática de āsana, e ainda
forçando os limites de seu corpo.
Os ajustes são para refinar a atenção e melhorar o alinhamento. Se o professor ajusta
o aluno a ponto de realizar por ele todas as ações dos āsana-s, a prática deixa de fazer
sentido e provoca dependência.

O professor não deve realizar o āsana pelo aluno, exceto em casos de pessoas que
possuam necessidades motoras e que realmente necessitem dessa abordagem.

CADA ĀSANA É UMA OPORTUNIDADE DE RESPIRAR ESPECIAL

Como respirar nos āsana-s? A resposta para essa pergunta não é genérica. Cada āsana
é uma oportunidade de descobrir e conquistar um espaço diferente para a respiração
acontecer.

Dependendo do āsana, diferentes áreas do corpo irão naturalmente se beneficiar com


espaço. Essas áreas devem ser ocupadas pela respiração, mas as áreas que não são
contempladas com espaço também devem receber atenção. Na medida do possível,
deve-se realizar um trabalho para que essas áreas também recebam estímulo.

Exemplo: em paścimatānāsana, as laterais do tronco oferecem espaço para a


inspiração. Podemos não notar esse espaço, mas, se estivermos atentos, podemos nos
beneficiar desta condição. Mas a região do coração tende a se fechar um pouco.
Em paścimatānāsana, devemos nos concentrar em aproveitar a área lateral para
expandir ainda mais, e também estimular a inspiração na área do coração para
trabalhar este local.

107
A prática de āsana segue o conceito de prāṇa-sthāna. Podemos, através da posição do
corpo e do movimento da respiração, contemplar diferentes áreas com consciência e
vitalidade. Se interpretarmos cada āsana como uma oportunidade para se respirar de
maneira especial, potencializamos os efeitos dos āsana-s sobre o sistema.

POSSIBILIDADES PARA TRABALHAR COM ĀSANA

Āsana é uma ferramenta versátil. Dependendo de como o praticante está e do que ele
precisa, āsana pode ser usado de diferentes maneiras. Podemos utilizar os elementos
que compõe o kriyā-yoga para nos inspirarmos. Por exemplo:
● Āsana como tapas – como processo de limpeza de condicionamentos.
● Āsana como svādhyāya – como processo de investigação de condicionamentos.
● Āsana como Īśvarapraṇidhāna – como processo de entrega.

STHIRA E SUKHA NO ALUNO

Ao olhar para seu aluno, o professor pode refletir sobre esse equilíbrio. Devemos
observar como estão as diferentes partes do corpo e como elas se complementam e
devem se entrosar. Devemos observar se há dominância de um lado em relação ao
outro; se a força (sthira) e a sua mobilidade (sukha) estão em equilíbrio; se a vida está
muito intensa ou muito estagnada. A abordagem na prática de āsana deve variar para
ajudar o praticante a achar estabilidade.
Alguns exemplos simples:
● Se a vida está muito dura e intensa, as práticas devem ser desenvolvidas para
proporcionar mais a qualidade sukha.
● Se a vida está estagnada, se há preguiça ou nos falta energia, vale ressaltar a
qualidade sthira.
● Se a rotina está muito conturbada, caótica, devido à falta de rotina estável, na
prática de āsana podemos primeiro trabalhar um relaxamento, sukha, e depois
trabalhar estabilidade, sthira.

A AJUDA DO ANTAGONISTA

Não é sempre que conseguimos relaxar profundamente. Um recurso curioso a ser


usado na prática de āsana é gerar dificuldades para que o corpo reaja e, assim, respire
melhor e relaxe, ou seja, incrementando o elemento sthira, para depois potencializar o
elemento sukha.

Por exemplo: ao propor uma retroflexão, como śalabhāsana, ou até mesmo ūrdhva
dhanurāsana, o corpo é desafiado. A respiração pode ficar intensa demais, e até se
descontrolar. A musculatura também pode se tencionar, mas esses efeitos podem ser
úteis. Às vezes, momentos como esses de intensidade podem ser usados para ajudar a
respiração a assumir um novo ritmo, mais profundo, e fazer com que o corpo relaxe.

Como isso ocorre? Dependendo do corpo e de como está a respiração, escolhe-se um


āsana, ou uma breve sequência de āsana-s, que gere um pico de intensidade.
Obviamente este pico de intensidade nunca deve criar riscos ao praticante, apenas

108
estímulo. Após este pico, a respiração que antes estava curta, ou preguiçosa, tende a
se tornar mais consciente e profunda.

Muitas vezes não conseguimos assumir esse ritmo respiratório mais consciente e
profundo, mesmo que nos esforcemos para isso. Então podemos utilizar um āsana
desafiador, que inclusive leve a respiração ao seu limite. Como um antagonista, esse
āsana nos provoca, nos tirando da condição em que estávamos. Então, após essa
provocação, colocamos um momento de repouso, ou de contra-pose. O corpo, por ele
mesmo, reage para repor a respiração, que naturalmente passa a assumir um
movimento mais profundo. O mesmo ocorre com a musculatura: após um estímulo, a
musculatura naturalmente tende ao relaxamento. Então podemos utilizar esse
recurso, mas somente quando for necessário e na medida certa.

A EQUAÇÃO ADEQUADA

Como entender qual a prática perfeita para cada pessoa? Essa pergunta jamais
possuirá resposta. Afinal, a perfeição é uma ideia abstrata. Como professores podemos
encontrar práticas adequadas ao aluno, e não precisamos inventar nada, apenas
observar.

Neste sentido, a mesma equação apresentada no sūtra II.27 cabe aqui. Para entender
o que cada pessoa necessita observe: (sua condição + suas questões) + (característica
da prática langhana ou brahmana + viniyoga) = qualidade samāna, mais harmonia
interna e nas relações externas.

O objetivo é claro: maior harmonia interna e externa. Em termos práticos, isso significa
que a capacidade de observar, interagir e nos expressarmos no mundo se torna mais
clara e fluida. Medimos a evolução das práticas de Yoga por nossas ações e reações.

OS SINTOMAS DA MENTE VIKṢEPĀ

Podemos ter dificuldades em perceber como realmente estamos. Normalmente temos


uma impressão distorcida de nós mesmos. Isso porque imaginamos mais do que
sentimos. Convivemos mais com nossa autoimagem do que com a realidade.
Patañjali explicou no sūtra I.31 os sintomas que se expressam quando a mente assume
qualidade vikṣepā, caracterizada por ser uma mente que carrega agitação ou aflição.

Os sintomas de uma mente agitada são:


● Duḥkha – dor, dor emocional, desconforto, aperto, sensação de sufocamento.
● Daurmanasya – negatividade, falta de fé, desanimo.
● Aṅgamejayatva – mudança no padrão corpóreo.
● Śvāsa praśvasa – mudança no padrão respiratório.

O corpo “fala”. Esses quatro pontos nos ajudam a perceber externalizações de


questões internas, que possivelmente encontram-se disfarçadas.

109
Esses são os quatro pontos que o professor deve observar constantemente em seu
aluno. A prática de āsana, não só ajuda a identificar essas expressões de citta vikṣepā
(agitação mental), como também ajudam a desfazer essa condição.

ĀSANA COMO FERRAMENTA TERAPÊUTICA

Āsana possui um limite de alcance. Yogaterapia se utiliza de āsana-s, mas āsana não
possui a força para solucionar todos os problemas do corpo. A ideia de utilizar āsana- s
para fins terapêuticos se deve pela possibilidade de melhorar o fluxo de prāṇa.

Hoje, inúmeras técnicas de terapias podem se mostrar mais eficazes para tratar de
partes do corpo. O professor de Yoga deve lembrar que os āsana-s foram elaborados a
partir de uma visão peculiar que os yogi-s tinham sobre o corpo, além de ser voltado
para melhorar o fluxo de prāṇa e ajudar a trazer estabilidade mental.

Atualmente, a ciência moderna evoluiu em termos do entendimento minucioso de


como a mecânica do corpo funciona. Surgiram muitas abordagens terapêuticas que
podem inclusive trazer melhor resultados ao corpo, e em menor tempo, comparadas
às possibilidades oferecidas pela prática de āsana.

Não é porque praticamos e damos aulas de Yoga que só devemos utilizar ferramentas
que estão dentro da tradição do Yoga. Como já dito, āsana possui limitações de
alcance. Se outras ferramentas ajudam, que sejam usadas.
Mas não podemos esquecer que a principal força dos āsana-s está na sua ajuda em
reorganizar as funções dos sentidos, os conduzindo para um estado de atenção e à
introspecção. E, por esta razão, geram efeitos profundo na mente e em sua
organização interna.

ORQUESTRAÇÃO DOS SENTIDOS

Āsana possui grande efeito sobre a mente, pois propõe uma orquestração dos
sentidos. Mas, para que a prática gere introspecção e uma concentração aguçada, ela
deve estar adequada ao praticante. Dependendo do que se pratica e como se pratica,
e principalmente de como se respira, a prática de āsana pode agitar a mente e os
sentidos.

O professor pode contribuir para essa agitação sensorial ao fazer propaganda e gerar
expectativa sobre a prática. E o local em que se realiza a prática também pode ser
repleto de distrações para os sentidos. Isso pode fazer com que a aula fique cheia, mas
não necessariamente irá favorecer o aluno a atingir uma introspecção profunda e,
principalmente, duradoura.

No KYM as salas de prática eram as mais simples possíveis. Contendo no máximo uma
pequena foto de Krishnamacharya. O foco para a prática de āsana de adultos é servir
de suporte para prāṇāyāma. E o objetivo é pacificar as tendências sensoriais de se
voltarem para fora e de maneira impulsiva e reativa. Quando a respiração consciente e

110
profunda serve de fio condutor durante a prática de āsana, os impulsos reativos dos
sentidos se acalmam.

DOS VEGA-S AOS VĀYU-S

O corpo possui seus próprios impulsos naturais, que são chamados de vega-s. Segundo
o Asṭāṅga Hṛdayam IV.1, os treze vega-s do corpo são:
● O impulso natural de eliminar gases
● O ato de defecar para eliminar os dejetos sólidos
● Urinar para eliminar os líquidos que o corpo não necessita
● O impulso de espirrar quando algo incomoda as narinas
● O desejo de beber para se hidratar
● O desejo de comer para alimentar o corpo
● O desejo de dormir para se recompor
● O impulso de tossir quando algo irrita a garganta
● O reflexo de respirar mais intenso durante ou após exercício para recompor a
oxigenação do sangue
● O ato de bocejar para oxigenar o cérebro quando há sono
● O impulso de lacrimejar, e também de chorar
● O reflexo de vomitar quando algo irrita o estômago
● O impulso por sexo

O excesso ou a ausência desses impulsos indicam falta de saúde, e prática de āsana


pode ajudar a balancear esses impulsos naturais do corpo. A maior estabilidade desses
reflexos naturais do corpo é um dos primeiros efeitos sentidos pelo praticante de
āsana.

Os efeitos sobre o campo físico são inegáveis e preciosos. Āsana provoca sensações e
efeitos musculares. Naturalmente isso gera sensações na mente e efeitos sobre a
respiração. Esses efeitos são favoráveis e bem-vindos, mas são os efeitos grosseiros.

Pela prática de āsana, a respiração tende a melhorar, se expandindo e ganhando


consciência, mas isso também é um efeito derivado do trabalho muscular dos āsana-s
na musculatura do aparelho respiratório. Conseguir desbloquear emocionalmente o
corpo, fazer com que a respiração transcenda os padrões viciados de comportamento
e desbloquear o corpo para que o prāṇa flua pelos vāyu-s, e, ainda, sentir o efeito de
tudo isso é algo mais sutil.

Embora as sensações se tornem mais vivas e o comportamento dos impulsos naturais


do corpo encontrem maior equilíbrio - e isso indique saúde -, isso não quer dizer que a
saúde se limite unicamente a essa manutenção dos vega-s, e nem que āsana se limita
a ajudar este processo. Tratam-se apenas efeitos externos da prática de āsana.

Ao ir mais fundo e, principalmente, ao desenvolver melhorias no movimento da


respiração, a prática pode ajudar a trazer maior harmonia nos vāyu-s, que são os
movimentos internos e sutis responsáveis pela distribuição e assimilação do prāṇa em
nosso sistema.

111
Observar e tratar o corpo dos vega-s aos vāyu-s, ou seja, gerando harmonia nos
impulsos naturais do corpo e estimulando beneficamente os impulsos responsáveis
pela vitalidade do corpo, é uma boa forma do professor trabalhar e orientar seu aluno.

EFEITOS A CURTO, MÉDIO E LONGO PRAZO

Como saber se as práticas de āsana estão sendo assertivas?


O fato de nos sentirmos bem momentaneamente com uma prática não significa que
ela realmente irá nos fazer bem a médio e longo prazo. A prática de āsana não é um
movimento isolado, e sim parte de uma construção.

Embora seja mais natural avaliar os efeitos de nossas práticas simplesmente pelo
resultado imediato que elas provocam, devemos observar outros pontos. Por exemplo:
● O quanto esses resultados da prática de āsana duram durante o dia?
● No que esses resultados se transformam durante o dia?
● Como estou lidando com a fase atual que estamos vivendo?
● Como estou hoje, fisicamente, mas principalmente mentalmente e
emocionalmente em relação a fases anteriores?
● E como minhas tendências, tanto as luminosas quanto as obscuras, têm se
comportado?

O Yoga, a sabedoria e a vida são projetos de longo prazo. A observação dos resultados
de nossas práticas, a curto e médio prazo, deve estar sempre relacionada aos projetos
e objetivos a longo prazo.

POR QUE ĀSANA É TÃO POPULAR?

Precisamos começar nossa jornada de algum lugar e de alguma forma. De onde


começamos? Começamos de onde estamos, que normalmente é um lugar com
turbulências, com falta de foco profundo e até estresse. Desse lugar é difícil incorporar
valores, realizar profundas meditações e modificar nossas atitudes perante o mundo.

Āsana então é um bom ponto de partida para muitas pessoas. Através desta prática,
muitos valores podem ser associados e assim incorporados pouco a pouco, além de ser
capaz de ajudar no processo introspectivo.

Quando coloco que āsana é um bom ponto de partida não quero limitar essa
ferramenta a um objetivo restrito, como se servisse apenas para iniciantes. Āsana é
uma ferramenta que deve acompanhar o praticante independente de onde ele esteja
na caminhada do Yoga, pois possui muitos benefícios. Só precisamos entender que seu
propósito vai mudando conforme caminhamos.

Āsana acabou sendo visto com muito encantamento pelo ocidente. Suas sensações,
formas e possibilidades agradaram. No oriente āsana não é uma novidade, mas parte
de uma cultura. Talvez no ocidente, os filhos de praticantes de Yoga de hoje já
enxerguem āsana como parte da cultura da família. Isso ocorre na minha família, por

112
exemplo. Meu filho acha normal a ideia de acordar e em seguida realizar uma prática
de āsana. Seus pais fazem isso e sua avó também. Então seu valor prático é visto como
outras atividades “normais”, que equivale, por exemplo, a escovar os dentes, talvez.

O encantamento pelo āsana é interessante pois demonstra o quanto um aspecto


do Yoga pode ser tão transformador. A parte negativa dele é que este encantamento
pode gerar uma relação desproporcional em relação a essa prática, que pode receber
maior interesse do que o próprio Yoga, e até virar uma mania.

A ideia de performar āsana e de alongar o corpo, simplesmente por entender que


quanto mais se alongar, melhor, é algo que merece ser trabalhado pelo professor. Se
essa utilização ganhou popularidade, muito se deve também à instrução passada pelos
professores, ou à falta dela. Cabe ao professor educar seus alunos nesse sentido. Mas
lembrando: as pessoas fazem do āsana o que bem entendem.

Dentro da tradição do Yoga existe um lugar especial ao āsana e as maneiras de se


utilizar essa ferramenta para gerar estabilidade na saúde, focar os sentidos e preparar
para prāṇāyāma e se tornar uma prática meditativa.

INSTRUÇÃO E INCENTIVO

Praticar āsana envolve técnica, movimento, respiração e propósito. A orientação de


um professor é totalmente necessária. Mas lembremos que a ideia não é
simplesmente ensinar e aprender āsana, e, sim, entender como os diferentes āsana-s
podem ajudar cada indivíduo em suas peculiaridades.

A quantidade e profundidade das instruções variam de acordo com o nível do


praticante. Por exemplo, o excesso de instrução dificilmente será captado pelo
praticante que está iniciando suas práticas, e as instruções podem simplesmente virar
um ruído. Instruir sobre conceitos sutis, como prāṇa-sthāna, pode ser um tanto
abstrato também.

A instrução serve acima de tudo para conduzir a mente ao foco. A quantidade e


profundidade dos temas, além de gerar instrução, são possibilidades de suprir a
urgência da mente de atender ao estado de introspecção.

Para o professor, ensinar é um exercício de respeito ao próximo. Instruir āsana é


ensinar os caminhos que cada corpo, com suas possibilidades, deve executar em cada
āsana.

A instrução precisa estar voltada para a autonomia do aluno. Ou seja, cada praticante,
embora necessite de um professor para orientá-lo, deve ser capaz de realizar suas
práticas sozinho. E posteriormente se tornar independente, entendendo o que
necessita e elaborando sua própria prática pessoal.

O professor precisa incentivar o aluno neste sentido, pois dificilmente o aluno constrói
por si só essa autonomia. Essa emancipação é necessária para o praticante e para sua

113
relação com o professor. Sem uma boa instrução, o praticante corre riscos não só de
se lesionar, mas também de se perder em relação ao propósito desta prática e de
como utilizá-la assertivamente.

ĀSANA E DEVOÇÃO

As práticas devem ser realizadas como uma reza, como um momento especial de
entrega. O corpo é considerado um templo. Através da prática de āsana é possível
desenvolver autocuidado e respeito. Ao praticar āsana-s não se deve explorar os
limites mecânicos do corpo, mas aumentar nossos limites de respeito e conhecimento
sobre o corpo.

A devoção é um elemento central no Yoga, que envolve todos seus aspectos. Sem
entrega, a mente tende ao automatismo. Praticar āsana é uma atitude devocional.
As ferramentas do Yoga são veículos para nos ajudar a alcançar um lugar interno
especial. Embora a aplicação das ferramentas deva ser feita com devoção, o foco da
devoção não são as ferramentas do Yoga. Por mais que elas nos ajudem, a dedicação e
devoção possuem um endereço, que é o estado de Yoga, o lugar interno de conexão.

A devoção à prática de āsana pode nos tornar praticantes assíduos e fervorosos desta
ferramenta, porém isso não necessariamente nos conduz a um lugar interno de
conexão. Sejamos devotos do Yoga, devotos de um estado interno de conexão. Não
nos apegando a meios, e seguindo em direção ao mais elevado.

PRĀṆĀYĀMA

Nos sūtra-s II.49 ao II.53, Patañjali trata especificamente do tema prāṇāyāma.

II.49 tasminsati śvāsapraśāsayoḥ gativicchedaḥ prāṇāyāmaḥ


II.50 bāhya ābhyantara stambhavṛttiḥ deśa kāla saṁkhyābhiḥ
paridṛṣṭo dīrghasūkṣmaḥ
II.51 bāhya ābhyantara viṣayākṣepī caturthaḥ
II.52 tataḥ kṣīyate prakāsāvaraṇam
II.53 dhāraṇāsu ca yogyatā manasaḥ

Na primeira parte do sūtra II.49, Patañjali explica que a prática de prāṇāyāma possui
pré-requisitos. Tasmin-sati significa que um trabalho preliminar deve ser realizado. Pela
sequência dos aṅga-s entendemos que este trabalho prévio é composto pelo empenho
em refletir e incorporar os yama-s e niyama-s e preparar o corpo e os sentidos através
da prática de āsana.

Nos textos de haṭhayoga também encontramos a orientação sobre pré-requisitos para


realizar prāṇāyāma. Como, por exemplo, no verso II.1 do Haṭhayogapradīpikā:

“O yogin, tendo atingido firmeza nos āsana-s, controlando seus sentidos e seguindo
uma dieta sadia e moderada, deve praticar os prāṇāyāma-s como lhe fora ensinado
pelo professor.” [HYP II.1]

114
Vamos destrinchar esses pré-requisitos:

1º ponto - “tendo atingido firmeza nos āsana-s”, se refere ao sentido de ter


conquistado uma rotina de prática de āsana estável, e à capacidade de adquirir
quietude nos āsana-s. O corpo precisa estar aberto, estável e sensível para que o
movimento da respiração possa ser o principal foco do praticante. A conquista da
rotina estável de prática e da capacidade de permanecer com estabilidade nos āsana-s
demonstra que o praticante possui determinação e adquiriu foco mental. Isso está
diretamente relacionado com o segundo ponto.

2º ponto – “controlando seus sentidos” significa que, durante a prática de āsana-s, a


respiração já foi trabalhada para que os sentidos se aquietem e se sensibilizem.
Devemos lembrar que não é qualquer prática de āsana que promove esse resultado. A
sensibilização e pacificação dos sentidos também é trabalhada pela alimentação, que é
o ponto seguinte.

3º ponto – “seguindo uma dieta sadia e moderada” é um pré-requisito à prática de


prāṇāyāma, pois, antes de se dedicar a esta prática sensível, deve-se limpar o corpo de
toxinas e a mente sensorial da impulsividade.

4º ponto – “praticar os prāṇāyāma-s como lhe fora ensinado pelo professor” ressalta
que prāṇāyāma não deve ser aprendido pelo processo autodidata. Alguém deve nos
instruir e supervisionar.

Sem professor, o processo do Yoga será incompleto e arriscado. “Assim como leões,
elefantes e tigres são gradualmente controlados, assim [gradualmente] deve a
respiração ser controlada. Caso contrário, [quando se força a respiração] ela pode
matar o praticante” [HYP II.15]. E: “através da prática adequada do prāṇāyāma, todas
as doenças são destruídas. Através da prática incorreta, todos os tipos de doenças são
gerados” [HYP II 16].

Vamos fazer uma ponte com outro texto, o YogaYājñavalkya saṁhitā. Nele é dito que
pela prática do Yoga o prāṇa não se dissipa para além da dimensão do corpo. E o que
regula o prāṇa no corpo é o fogo interno [YYS IV.9 e 10].

As características do prāṇa são atribuídas aos elementos fogo e ar. E, para mexer com
o fogo, é preciso saber o que se está fazendo. Todas as técnicas de prāṇāyāma podem
facilmente desequilibrar o sistema humano pois mexem com o elemento fogo
(metabolismo) e ar (vāyu, circulação).

Além disso, segundo o mesmo texto, o prāṇa é o dá que suporte a jīva, o ser interno
[YYS IV.20]. Prāṇa é colocado como ātmasakhā, amigo íntimo do ser interno. Mexer
com o prāṇa é mexer na relação do ser interno com a mente.

Prāṇa é definido como prakarṣeṇa anati gaccati (prakarṣeṇa – luz, anati – que torna
vital, gaccati – ir, verbo de movimento). Prāṇa é o que dá vida. Como uma luz, é

115
expansivo e se espalha em todas as direções. Para perceber e conseguir se relacionar
com esta energia sutil e expansiva, é necessário preparo.

Sem esses pontos de apoio, que são os pré-requisitos, o praticante dificilmente


conseguirá manter o engajamento na prática de prāṇāyāma, e provavelmente os
resultados que são apontados pela tradição não acontecerão.

Uma vez entendido que a prática de prāṇāyāma tem pré-requisitos, Patañjali explica
que prāṇāyāma é a dissolução (gati-vicchedaḥ) do movimento descontrolado, ou
irregular, da respiração (śvāsa-praśvāsayoḥ). Segundo Krishnamacharya, em
prāṇāyāma a inalação e a exalação são ininterruptas, ou seja, os condicionamentos
que as tornam irregulares não estão presentes.

No sūtra II.50, Patañjali disseca o que é prāṇāyāma.

Primeiro, os componentes da respiração são descritos:

- exalação (bāhya-vṛtti)

- inalação (ābhyantara-vṛtti)

- suspensão do movimento da respiração (stambha-vṛtti)

Depois, os meios para regular o fluxo da respiração através do prāṇāyāma são


apresentados:

- Deśa, que significa local. Deśa diz respeito ao local no corpo onde a técnica é
realizada e onde o prāṇāyāma é realizado.

Diferentes prāṇāyāma-s atuam em diferentes partes do corpo e o foco das diferentes


técnicas são realizadas em diferentes locais. Exemplo: o foco pode ser na garganta ou
em uma das narinas.

O local onde o praticante se dedica a realizar prāṇāyāma deve ser um local apropriado.
Para a maioria das pessoas, isso significa que deve haver ar fresco e ausência de
estímulo externo.

- Kāla, tempo. Kāla refere-se à duração de cada vetor da respiração. Assim como a
combinação do prāṇāyāma com a época do ano, o clima e o horário em que se pratica.

- Saṁkhyā é o número, a contagem de ciclos, que se realiza.

Dependendo do praticante e das circunstâncias, Deśa, Kāla e Saṁkhyā variam para


melhor suprir as necessidades de cada um.

O sūtra ainda ensina como o movimento da respiração deve ocorrer:

116
- Dīrgha: o movimento da respiração deve ser longo, profundo.

- Sūkṣma: o movimento da respiração deve ser sutil.

Essas duas qualidades são alcançadas com a prática. No início, o praticante realiza as
técnicas de prāṇāyāma de uma forma mais mecânica. Conforme o praticante vai
evoluindo e aumentando sua sensibilidade, essas duas qualidades (dīrgha e sūkṣma)
são aplicadas. Isso torna a prática de prāṇāyāma uma meditação e um ato de entrega.

A palavra prāṇāyāma pode ser interpretada de diferentes maneiras:

Para alguns, a palavra prāṇāyāma é composta por prāṇa + yama. Onde prāṇa é
normalmente traduzido como respiração, ou energia vital. E yama, como controle.
Mas também pode-se interpretar prāṇāyāma como prāṇa + ayama, ou seja, o não
controle do movimento do prāṇa.

Se refletirmos sobre o processo de aplicação do prāṇāyāma, ambas interpretações são


exatas, pois ambas ocorrem.

Nos primeiros anos de dedicação a prāṇāyāma, o que prevalece é de fato um


empenho, uma disciplina. Então, pensar prāṇāyāma como controle da respiração faz
sentido. Posteriormente, conforme as qualidades dīrgha e sūkṣma são incorporadas, o
praticante passa a movimentar não só o ar, mas o prāṇa.

Quando as qualidades dīrgha e sūkṣma são realmente incorporadas, o movimento da


respiração ocorre sem tensão. A ausência de tensão no processo respiratório permite
que a diferença de pressão interna dos pulmões e pressão externa da atmosfera guiem
o processo. Isso ocorre sem que seja necessário a interferência utilizada
anteriormente, que é a intenção de controle. Então a respiração se torna tão fluida
que, ao carregar o prāṇa, o prāṇa nos carrega.

Ao explicar as qualidades dīrgha e sūkṣma, Patañjali orienta o trabalho do professor.


Durante āsana e prāṇāyāma, o foco deve ser observar e conduzir o movimento da
respiração para assumir essas qualidades.

Podemos entender que dīrgha e sūkṣma são os fatores que realmente definem
prāṇāyāma. Enquanto dīrgha e sūkṣma não ocorrem, o praticante movimenta ar.
Quando dīrgha e sūkṣma acontece, o praticante movimenta prāṇa.

Pelas informações trazidas no sūtra II.50, podemos nos inspirar para guiar nossa
própria prática e a prática de nossos alunos. Patañjali nos dá uma aula.

Para realizar prāṇāyāma e obter os benefícios explicados pelo Yoga, é preciso preparar
o terreno, trabalhando o corpo e a atenção com yama, niyama e āsana. Sabemos que
o papel da alimentação também é fundamental neste sentido.

117
O primeiro elemento explicado por Patañjali é a exalação (bāhya-vṛtti), que faz
analogia com a necessidade de relaxar o sistema das cargas excessivas. Então, o
trabalho se inicia através do cuidado depositado no movimento da exalação.

Após relaxar e trabalhar a expiração, intensificando o processo de purificação do


sistema, o passo seguinte é trabalhar o movimento da inspiração (ābhyantara-vṛtti).

Então, com a inspiração e expiração trabalhadas, podemos focar na suspensão do


movimento destes vetores (stambha-vṛtti).

E em relação à técnica:

A técnica é escolhida de acordo com a necessidade e capacidade do praticante, do


local, do clima, assim como a hora e o momento. A quantidade de ciclos a serem
realizados e a quantidade de vezes a praticar prāṇāyāma durante o dia variam.
Na aplicação do Yoga não há protocolos fixos. Patañjali parece dar sugestões. O
professor deve observar seu aluno e entender o que ele necessita. Todas as técnicas
do Yoga são aplicadas de acordo com o praticante. O professor aplica o que está no
alcance de seu aluno, não impondo algo que esteja acima de sua capacidade física e
também além de sua possibilidade de incorporar em sua rotina o que lhe foi passado.
Existem inúmeras técnicas que são eficazes, mas, se forem muito avançadas para o
aluno ou se forem muito difíceis de serem mantidas como rotina pelo praticante, elas
irão atrapalhar seu desenvolvimento.

O professor deve conseguir entender o que é sensato e qual dosagem o aluno precisa.
O processo de transmissão deve contar com paciência de ambas as partes. Começar
com brandura e com segurança, e a intensidade pode ir aumentando.

A medida para entender o desenrolar do processo é a qualidade da respiração. Dīrgha


e sūkṣma são os valores a serem respeitados, e também o objetivo. Quando estes
fatores são respeitados, o processo de ensinar e aprender prāṇāyāma é seguro, e o
progresso, efetivo.

Para termos mais inspiração podemos buscar referência no conceito de kriyāyoga.

Tapas – limpar
Svādhyāya – gerar movimento
Īśvarapraṇidhāna – buscar nutrição sutil

Em termos práticos:
Tapas – prática de nāḍīśodhana para limpar
Svādhyāya – prática de antah kumbhaka longa, retenção com pulmão cheio, para
gerar movimento
Īśvarapraṇidhāna – prática de bāhya kumbhaka longa, retenção com pulmão vazio,
para gerar entrega e desprendimento e, assim, uma conexão interna ainda mais forte.

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Existem diversas técnicas de prāṇāyāma, e existem incorporações de ações que
incrementam os efeitos dos prāṇāyāma-s. A aplicação de bandha-s, por exemplo, é
uma dessas formas de potencializar, mas Patañjali não toca nesse tema. Trata-se de
algo a ser trabalhado diretamente pelo professor, uma vez à frente de seu aluno.

Fazendo uma conexão com o sūtra II.16: não devemos correr riscos. Existe uma
hierarquia dentre as técnicas, e existe a reação de cada praticante a cada uma dessas
técnicas.

Ensinar prāṇāyāma-s muito elaborados para a capacidade do aluno, não seguir uma
evolução gradual e não acompanhar de perto o desenvolvimento do aluno é correr
riscos. Longas retenções, a incorporação de bandha-s, e a realização de técnicas muito
elaboradas são ações seguras apenas para praticantes avançados e em momentos de
total atenção.

As técnicas descritas nos textos de haṭhayoga são ilustrações de práticas muito


avançadas. Exigem precisão e dependem fundamentalmente dos pré-requisitos que
estão tão bem ressaltados nesses mesmos textos.

Voltando à análise do Yogasūtra, através de um engajamento adequado e de uma


progressão gradual, um novo padrão na respiração e na mente se estabelece. Assim é
descrito no sūtra II.51, que explica que o padrão de respiração errático deixa de existir.

Nesse sūtra Patañjali descreve um estado. Explica que, uma vez que se transcende
(ākṣepī) o domínio (viṣaya) da inspiração e expiração, um novo estado surge. Este
estado muitas vezes é entendido como a suspensão total da respiração. Para meus
professores, o sūtra explica que o movimento da respiração continua a existir, mas “o
movimento da respiração transcende seu condicionamento”. O padrão inadequado do
movimento da respiração é que deixa de existir.

A explicação é a seguinte:

No sūtra II.51 Patañjali usa a palavra caturthaḥ, que significa “quarto”. Anteriormente,
Patañjali explicou três domínios: o da inspiração, o da expiração e o da retenção. Uma
vez trabalhados esses três vetores, através das qualidades dīrgha e sūkṣma, o
praticante transcende a intenção de controle e de técnica. Não há mais a intenção de
controle e nem há mais a submissão da mente aos comandos dos antigos
condicionamentos.

Este quarto estágio é colocado por Patañjali como uma consequência, e dificilmente
pode ser explicado em detalhes, pois trata-se de uma sensação indescritível.

No Haṭhayogapradīpikā, o que Patañjali chama de caturthaḥ é apresentado como


kevala-kumbhaka. Mergulhando neste texto, entende-se que a dedicação aplicada nas
diferentes técnicas é focada em acessar este estado de kevala-kumbhaka, em que a
respiração transcende seus próprios padrões de movimento.

119
No sūtra II.52, Patañjali explica o que acontece ao acessar o “estado de prāṇāyāma”:
“então, o véu que [encoberta] a luz interna é retirado”.

Essa analogia é belíssima pois passa a impressão de que o trabalho é retirar algo, para
o que já existe brilhar. O foco não é adicionar coisas, e, para retirar esse véu, utiliza-se
uma ferramenta sutil, como o vento que limpa o céu de nuvens.

Nas palavras de Vyāsa, prāṇāyāma é “paraṁ tapaḥ”, a forma mais eficaz de


purificação. Fazendo novamente uma ponte com o YogaYājñavalkya saṁhitā, agora
VI.79, “nada é mais eficaz do que prāṇāyāma para ajudar a cruzar o inferno”. E
“aqueles que se dedicam à prática de Yoga e também cumprem suas obrigações, pela
prática de prāṇāyāma, se libertam” [YYS VI.22].

Continuando a explicação sobre os resultados de prāṇāyāma, Patañjali afirma, no


sūtra II.53, que “a mente enfim encontra-se apta para engajar-se em concentrações”.

A palavra usada no sūtra para se referir à mente é manas. Como resultado de


prāṇāyāma, a mente sensorial, responsável pelas atividades sensoriais e pelos
impulsos que estimulam os pensamentos, encontra-se enfim preparada para
diferentes concentrações (dhāraṇāsu).

Devido a sua eficácia, a prática de prāṇāyāma possui destaque na tradição do Yoga.


No Yogasūtra, sua importância é evidente. Prāṇāyāma é apresentado com maior
destaque do que a prática de āsana, por exemplo, e, além dos sūtra-s do segundo
capítulo, Patañjali também aponta prāṇāyāma como ferramenta para diminuir e
eliminar os obstáculos que agitam a mente [YS I.34].

Na tradição do Haṭhayoga, prāṇāyāma é apresentado como a principal prática para


purificar o sistema. Podemos inclusive afirmar que Haṭhayoga equivale a prāṇāyāma.

Haṭhayoga:

ha → prāṇa, inalação

ṭha → apāna, exalação

yoga → confluência harmônica

No texto Yoga Rahasya, a prática de prāṇāyāma é indicada como a ferramenta mais


adequada e eficaz para as pessoas que se encontram na fase gṛhastha (adultos que
possuem diferentes deveres sociais, como emprego e família).

Voltando à análise do Yogasūtra, quando a mente se desconecta da relação de


aprisionamento em relação aos objetos, os sentidos se aquietam e se comportam
como sensores, sua verdadeira função. Isso é pratyāhāra, sūtra II.54.

120
II.54 svaviṣaya asaṁprayoge cittasya svarupānukāra iva indriyāṇāṁ pratyāhāraḥ
II.55 tataḥ paramā vaśyatā indiyāṇām

Prāṇāyāma está associado com a possibilidade de equilibrar as energias rajas e tamas,


que fazem a mente oscilar e os sentidos se perderem de sua real função. Isso só ocorre
se a prática for realizada com maestria. E irá gerar “maestria absoluta sobre os
sentidos”, sūtra II.55.

Pratyāhāra no YogaYājñavalkya saṁhitā aparece de três formas:

1- Pratyāhāra como a habilidade de manter os sentidos sob controle. Sentidos


que “naturalmente vagueiam na direção dos objetos” [YYS 7.2]
2- Pratyāhāra como uma habilidade de observar os objetos, mas manter a
conexão da mente com o ser interno. Então, os objetos não são vistos como
mundanos, e sim como ferramentas para introspecção e como reflexos do ser
interno.
3- Pratyāhāra também como a capacidade de realizar as ações sem desejar
resultados (karma-Yoga).
4- Pratyāhāra como a prática de dhāraṇā nas 18 partes vitais, movendo a atenção
gradualmente do dedão do pé, passando pelo calcanhar, canela, parte interna
da perna, joelho, meio da coxa, anus, assoalho pélvico, genitália, umbigo,
coração, ponto entre as clavículas, base do palato, base do nariz, olhos, ponto
entre as sobrancelhas, testa e finalmente o topo da cabeça.

Pela interpretação do Gheraṇḍa saṁhitā, no capítulo quatro, pratyāhāra também é a


capacidade da mente de manter-se neutra frente a elogios ou censuras, a boas ou más
narrativas. A cheiros e gostos. Assumindo uma condição capaz de “destruir paixões
como a luxúria, etc.”.

O final do segundo capítulo do Yogasūtra, intitulado sādhana pādaḥ termina com a


descrição de uma mente serena, cujos sentidos encontram-se pacificados. O sādhana
pādaḥ é um capítulo dedicado à paz. Como inspiração, o professor deve pautar seu
trabalho para este fim.

Os excessos de estímulos desnecessários que estejam presentes na mente do aluno


devem ser retirados, e tudo que for proposto pelo professor deve ser introduzido com
o maior cuidado. O objetivo é pacificar a mente e torná-la apta a introspecção e a
concentração.

A quantidade de técnicas ensinadas ao aluno e o conteúdo explicado a ele precisam


estar de acordo com sua necessidade e capacidade de absorção. Os excessos tendem a
se tornar distrações.

A palavra pratyāhāra pode ser interpretada da seguinte maneira: praty – algo oposto;
e āhāra: alimento.

121
Os objetos sensoriais motivam a mente, e tudo que a motiva é um alimento.
Normalmente, somos regidos por estímulos externos e vivemos presos a relação que
desenvolvemos durante a vida com os objetos externos. Pratyāhāra é a intenção de
dar a mente o alimento oposto. Ou seja, a intenção do sādhana é propor outro
alimento, a nutrição interna, como a absorção do prāṇa e a proximidade com cit.

Refletindo sobre essa interpretação de pratyāhāra, o professor deve ter o cuidado


para que suas orientações e estímulo não alimentem na mente de seu aluno a
tendência a externalização.

As práticas e a maneira de conduzi-las, as explicações ou a falta delas, a linguagem e o


linguajar, e o exemplo de conduta podem estimular sensorialmente o aluno e
aumentar tendências ego-centradas, como desejos e vaidades.

Este ponto merece grande atenção. Hoje, nós temos acesso fácil a inúmeros conteúdos
com um simples toque em nossos aparelhos. E o Yoga também virou um grande
mercado. A maneira com que divulgamos o Yoga e nosso trabalho pode estar indo
diretamente contra a intenção do sādhana, por estimular exatamente o que o
conceito de pratyāhāra sugere.
O quanto nos estimulamos para propagar nosso trabalho e o quanto estimulamos nos
outros impressões sobre o Yoga e sobre nós mesmos parece não ter ainda um ponto
de equilíbrio.

Ao ensinar o Yoga e sua proposta, nós nos expomos e propagamos nossas ideias e
nosso trabalho. Isso pode ser feito de diversas maneiras, e o conceito de pratyāhāra
pode servir como um parâmetro. Ao nos expormos podemos estar simplesmente nos
exibindo física ou intelectualmente - de maneira intencional ou não. Isso nos atrapalha
como praticantes de Yoga. E podemos estar estimulando nos outros um movimento de
externalização que também não é sadio.

Sem uma coerência na medida de nossa exposição, e sem o cuidado com o que ela
estimula nos demais, veremos reflexos de agitação em nós mesmos e em nossos
alunos. Não haverá pratyāhāra como resultado de nosso empenho, e, assim, o
sādhana se perde.

122
TERCEIRO CAPÍTULO - VIBHŪTIPĀDAḤ

O Vibhūtipādaḥ, terceiro capítulo do Yogasūtra apresenta os resultados do sādhana.


Algumas pessoas o entendem como um capítulo místico, que revela poderes que
podem ser alcançados pelo yogī, mas esta não é a leitura que meus professores fazem.
Pelo contrário, podemos encontrar informações muito práticas neste capítulo.

Passaremos brevemente por este capítulo a fim de marcar seus principais assuntos, e
por isso não trarei o conteúdo de cada sūtra e nem o sūtra inteiro .

O capítulo se inicia com os três aṅga-s restantes do aṣṭāṅga Yoga. Esses resultados
ocorrem de acordo com a aplicação do praticante (YS I.22). A aplicação nos aṅga-s
yama, niyama, āsana e prāṇāyāma possibilitam pratyāhāra, e, desta estabilidade
sensorial, o estado meditativo se desenvolve.

Os três primeiros sūtra-s deste capítulo explicam dhāraṇā, dhyāna e samādhi, que
representam o processo de meditação:

Dhāraṇā – momento em que a mente se conecta a algo.


Dhyāna – momento em que a mente estabelece uma relação íntima com algo.
Samādhi – momento em que o conteúdo mental se dilui e ocorre uma integração
profunda entre a mente e o objeto de contemplação.

Em seguida, Patañjali apresenta o termo saṁyama.

Saṁyama não é um processo diferenciado da meditação profunda, mas o ato de


devotar o processo meditativo em uma direção, ou em um objeto, e, como
consequência deste processo, surge uma revelação sobre o mesmo.

Patañjali explica ser possível conhecer tudo através de saṁyama. O professor deve
utilizar o mesmo processo para conhecer seu aluno. Ou seja, se devotar a sua
observação e o instruir a partir da inspiração. As respostas para os alunos também
devem nascer da inspiração.

Reflexões sobre os primeiros sūtra-s:

● Patañjali não explica que isso ocorre quando estamos sentados e de olhos
fechados. Em sa-vitarka, nir-vitarka e sa-vicāra, a conexão profunda pode
ocorrer independente do movimento do corpo e se os olhos estão abertos. E
até mesmo em nir-vicāra. O Haṭhayōgapradīpikā (IV.36) explica śāmbhavī-
mudrā, estado meditativo profundo que ocorre de olhos abertos.
● Patañjali não explica meditação como uma técnica, e sim como um estado. O
professor pode ensinar técnicas que conduzem à concentração e permitem a
introspecção. O aluno pode entrar em estado meditativo de forma induzida. A
curto prazo, isso ajuda o aluno a relaxar sua mente de eventuais distrações. A
longo prazo, o professor deve ter o cuidado para não tornar o aluno passivo e
dependente de seus comandos.

123
● No segundo capítulo do Yogasūtra, meditação é primeiramente aplicada como
um processo de pacificar as aflições da mente (śamanam). Depois de pacificada
da influência dos kleśa-s, dos estados dominantes e ativos para tênue e
dormente, a aplicação da meditação é voltada para a investigação dos kleśa-s e
seus gatilhos (śodhanam).
● Krishnamacharya explicava meditação como o último estágio de disciplina –
mānasika vyāyāma.
● Segundo o ācārya, meditação respeita uma disciplina apropriada – śāstrīka
niyama.
● Esta disciplina apropriada é a aplicação regular de bahiraṅga sādhana. Ela
provoca citta śuddhi (purificação da mente).

Dhāraṇā (conexão profunda), dhyāna (interação profunda) e samādhi (confluência)


ocorrem através como um processo fluido. O esquema abaixo tenta apresentar esse
processo:

1º movimento: Nirodha pariṇāma (III.9) ou o movimento da mente da distração para o


foco, que ocorre quando a mente assume um estado pacífico, que é sustentado por
saṃskāra-s “positivos” nascidos por bahiraṅga sādhana (IV.10).

2º movimento: Samādhi pariṇāma (III.11) ou o movimento em que o foco da mente se


conecta a algo específico. Este movimento ocorre quando a conexão da mente com o
objeto de contemplação ocorre em paz (śanta-uditau), nos estágios de sa-vitarka e sa-
vicāra.

3º movimento: Ekāgratā pariṇāma (III.12) ou o movimento contínuo da mente de


estabilidade, que é possível quando a mente se encontra
estável/constante/harmônica. Trata-se de um movimento constante que permite o
equilíbrio da mente em nir-vitarka e nir-vicāra.

Este movimento da mente, da distração ao foco profundo e posteriormente sua


estabilidade, não ocorre por acaso. Existe um processo gradual, que só acontece se
respeitar alguns pontos.

Neste capítulo, Patañjali apresenta o conceito de viniyoga (III.6), que explica que o
processo do Yoga se desvela gradualmente. As transformações na mente ocorrem
progressivamente e só se desencadeiam se respeitarem as características e
necessidades de cada pessoa. Ou seja, o processo do Yoga é um processo
individualizado.

O tema viniyoga foi muito trabalhado por Desikachar, pois percebeu que o Yoga estava
sendo aplicado de maneira massificada. Mas viniyoga não é um método. Cada

124
indivíduo possui seu tempo e percurso até conquistar o foco, e então percorre estes
pariṇāma-s até a meditação profunda.

Pela tradição de professores que seguem os ensinamentos de Krishnamacharya, o


trabalho do professor é conduzir o aluno de acordo com suas capacidades e realidade.
Como escutei algumas vezes do próprio Desikachar: “o aluno não deve se adaptar ao
Yoga. O Yoga é que deve ser adaptado a cada aluno”. Este sūtra embasa este
pensamento, que é muito importante para o professor entender seu papel.

Por viniyoga (quando o Yoga é aplicado para a necessidade e realidade de cada


pessoa), a meditação profunda ocorre. Este mesmo princípio permite as
transformações internas em cada um de nós.

Também pelo sūtra III.13, entendemos que as transformações internas dependem de


três coisas:

1- Das características essenciais de cada um.


2- De algum potencializador.
3- De uma condição favorável.

Observações:
● Este mesmo tema voltará no início do quarto capítulo (tema sobre os fatores
que favorecem as transformações).
● Patañjali apresenta, do sūtra III.9 ao III.14, uma das bases do pensamento do
Yogasūtra: tudo está em constante transformação, e o que é percebido pela
mente é um fato e não ficção.
● Neste sentido um bom professor é quem:
1º entende as características essenciais do aluno e respeita essa condição.
2º ajuda a alavancar processos de transformação no aluno.
3º respeita as condições e entende a hora certa de agir.

O sūtra III.15 explica que tudo no Yoga respeita um krama, ou seja, uma ordem
sequencial natural. Mesmo que não possamos identificá-la, esta ordem natural está
em tudo. Nada ocorre por acaso ou sem um percurso.

Patañjali, então, lista uma série de possibilidades de direcionamento do foco da mente


sobre a essência, o processo corrente e as condições de um objeto. Assim, é possível
vislumbrar um conhecimento profundo sobre este objeto.

III.16: entender a previsibilidade das coisas.


III.17: entender outros seres para além das palavras e sons.
III.18: entender os próprios padrões.
III.19: entender os padrões do outro, mas nunca sentir com exatidão o que o outro
sente.
III.20: entender completamente o que engatilhou cada impulso.
III.21: tornar nossas marcas pessoais e egoísmo imperceptíveis.
III.22: ter clareza e conseguir sentir onde nossas relações e períodos se findam.

125
Estes sūtra-s descrevem exemplos de conhecimentos sensíveis que podem ser
atingidos. Os próximos tratam de como nos conectarmos com a força interna, que é
uma inspiração para quem dá aula de Yoga.

Praticar Yoga é entrar em contato com nossas aflições. Ensinar Yoga é estar próximo
da dor do outro. Precisamos de força para seguir. Onde podemos encontrá-la?

III.23: na fraternidade, compaixão e positividade encontramos a força do amor.


III.24: exemplos externos, como o elefante, que possui grande força interna, pode nos
inspirar.
III.25: podemos realizar rituais simbólicos e de conscientização sobre as partes do
corpo para despertar a força interna.

Nos sūtra-s III.26, III.27 e III.28, Patañjali explica como a astrologia surge. Através da
observação do sol, da lua e da estrela polar, se tem a visão do mapa celestial.

A seguir, Patañjali localiza cakra-s e explica os benefícios de meditações nestas áreas.


Esses sūtra-s fazem menção a cakra-s, assim como outros textos tântricos. Os nomes
destes centros energéticos não são os mesmos encontrados nas escrituras de
haṭhayoga. Isso provavelmente ocorre por razões culturais dentre diferentes linhagens
(o mesmo ocorre com os nomes de vários āsana-s). O principal a ser refletido é que a
ideia sobre o que é purânico e o que é tântrico perde o sentido quando o assunto é
Yoga. O Yoga é purânico e tântrico.

No III.29, o foco é o nābhi cakra, que também é um ponto de observação no Āyurveda,


para entender como estão os órgãos internos.

Tanto a compreensão sobre o pulsar nesta área (nāḍī-parīkṣā) ou a simples observação


da respiração neste local, revelam bastante sobre o que acontece internamente. A
posição do umbigo também dá sinal sobre o alinhamento da coluna vertebral e sobre o
posicionamento dos órgãos internos.

No III.30, nos é explicado sobre o centro energético na garganta. Este centro é a


morada do udāna vāyu, responsável pelo controle dos sentidos, impulsos e instintos,
como a sede e fome.

O sūtra III.31 explica o kūrma nāḍī, centro do prāṇa vāyu, que dá estabilidade. No
III.32, Patañjali explica o ajña cakra e pelo III.33 entende-se que tudo pode ser sabido
pela intuição (que é um saber diferente do conhecimento racional e da acumulação de
cultura e informação).

Também, no III.34, Patañjali sugere que a compreensão vem do coração, que é a


morada da mente.

Como resultado da interiorização da mente e de sua qualidade sattva, podemos


experienciar Puruṣa jñāna (a sabedoria do ser interno), ao invés de saṇkīrna
(confusão). Esta explicação do III.35 é esclarecedora, pois o praticante muitas vezes se

126
ilude e acredita ter tido a experiência de Puruṣa jñāna. Patañjali explica que existe um
processo. Primeiramente se consegue observar para além do ordinário, e isso traz
clareza na mente e a aproxima da intuição. Só então Puruṣa jñāna ocorre.

Dessa experiência que vem a mais pura intuição. E pelo sūtra III.36 se entende que
este processo não é místico. A mente se torna mais sensível, e seus radares, mais
apurados.

Patañjali no III.37 faz uma ressalva: essas experiências e saberes não devem ser vistos
como ganhos! Trata-se de características naturais de uma mente com maior clareza,
mas não são o objetivo do Yoga. Buscá-las é uma perversão.

O III.38 se relaciona de alguma forma com o II.47. Patañjali explica o processo de


desprendimento dos nós no corpo. No III.39 também traz a ideia de leveza, ao referir-
se na elevação do prāṇa, que faz alusão aos sentidos que se elevam.

No sūtra III.40, há a explicação da regulação do samāna vāyu e o equilíbrio da saúde.


Conceitos como uma boa alimentação e prática de āsana encaixam-se aqui. Com
saúde e leveza escutamos melhor, em todos os sentidos [III.41] e é possível percorrer o
espaço, ou a vida, como a semente do algodão. Com leveza e desprendimento [III.42].
Se há leveza e desprendimento, há também a possibilidade de a mente operar sem a
interferência do corpo [III.43].

Dos sūtra-s III.44 ao III.49, Patañjali traz resultados do processo de purificação e


imersão da mente.

Novamente, no III.50 e III.51, Patañjali traz outro aviso. O III.50 afirma que a liberdade
ocorre quando a semente que origina os distúrbios na mente é destruída, e quando
até mesmo o interesse pelas capacidades especiais da mente não é interessante ao
praticante.

Embora possamos progredir no processo do Yoga e nos tornarmos mais sensíveis do


que éramos ou em comparação aos outros, sentir satisfação nisso é um impedimento
ao estado de Yoga [III.51].

O sūtra III.52 explica o movimento do tempo, e, no III.53, que através do


acompanhamento do movimento contínuo do presente é possível distinguir coisas
muito parecidas, independente de sua situação, características latentes, lugar que
ocupa e posição.

Então Patañjali explica que um processo novo ocorre. Se antes toda dinâmica que
ocorria na mente percorria um krama (uma sequência lógica), um outro processo pode
ocorrer, que é sem lógica e que atinge diretamente o cerne das coisas [III.54]. Este
processo não pode ser ensinado, somente sentido.

E, para fechar o capítulo, Patañjali traz uma explicação para a liberdade: kaivalya
ocorre quando a mente se torna tão pura quanto o ser [III.55].

127
QUARTO CAPÍTULO - KAIVALYA PĀDAḤ

O último capítulo do Yogasūtra de Patañjali traz inspirações riquíssimas para o


professor de Yoga. Em minha opinião, este capítulo é o mais didático para o professor
de Yoga entender seu papel.

O quarto capítulo chama-se o “caminho para liberdade”, e é com total liberdade que
Patañjali o inaugura. O primeiro sūtra explica que o processo de meditação profunda
não ocorre apenas pelo Yoga.

Com transparência, Patañjali lista as seguintes causas:

● janma
● oṣadhi
● mantra
● tapaḥ
● samādhijāḥ

Por janma entendemos que cada indivíduo nasce com condições e propensões
diferenciadas. Para alguns indivíduos, ingressar no processo meditativo é algo natural,
pois suas mentes já nascem com esta propensão. Analisando a história da
humanidade, percebemos o quanto essa condição é rara, mas mesmo assim Patañjali a
considera.

A palavra oṣadhi significa erva, mas refere-se a substâncias capazes de modificar a


química do cérebro e assim permitir que a mente assuma o estado de meditação
profunda.

Mantra representa rituais de evocação, mas também encantamento, que levam a


mente a um transe.

Tapas neste sūtra diz respeito ao caminho de purificação da mente pela austeridade,
que muitas vezes é aplicada de forma extrema por certas linhagens de praticantes. E
através do ascetismo intenso a mente pode transcender dores e agonias, e assumir um
estado diferenciado.

O último caminho apresentado por Patañjali é samādhijāḥ, que se refere a construção


gradual de um processo para purificar a mente de suas interferências e capacitá-la a
mergulhar profundo em estado meditativo. Esta construção é sādhana.

Como esta explicação Patañjali dá uma aula de transparência, respeito e sensatez.

● Transparência porque, mesmo recomendando o sādhana, Patañjali não omite


outros processos.
● Respeito, pois, ao explicar seu ponto de vista Patañjali não diminui os outros.
● Sensatez, já que o sādhana é o caminho estável e seguro.

128
Sobre o nascimento (janma), nós não temos o controle. Através de substâncias
(oṣadhi) e procedimentos ritualísticos (mantra), mesmo que o estado meditativo
profundo ocorra, estes meios não possibilitam a sustentação deste estado e nem sua
construção. Nele, o indivíduo não possui controle do processo que ocorre, o que tende
a gerar dependência e tornar a volta a “realidade”, um choque.

Sobre a austeridade extrema (tapas), o sábio Vyāsa já comentou no sūtra II.1 que
práticas que prejudiquem a saúde são atos violentos. Embora ascetismo intenso seja
um caminho, há muitos riscos.

A aceitação de que cada indivíduo nasce de um jeito, a sensatez de apresentar um


caminho progressivo e o respeito por outras ideias são os ensinamentos marcantes
neste sūtra que o professor de Yoga deve refletir e aplicar.

A partir do sūtra IV.2, Patañjali traz o tema transformação, que já foi tratado no início
do terceiro capítulo (III.13), mas que aqui é aprofundado.

● As transformações ocorrem de acordo com nossa natureza essencial


● As transformações ocorrem de acordo com a natureza de uma causa externa
que provoca a transformação

O conceito de viniyoga está muito presente novamente. O professor deve entender


que cada indivíduo possui uma semente, que é única e precisa ser tratada de maneira
especial.

Esta semente reage a estímulos. Tanto para transformações, para o refinamento e


liberdade, quanto para o caminho inverso. Além de tentar observar, compreender e
respeitar a natureza de cada aluno, para seu bem, também é necessário observar,
compreender e respeitar o que engatilha retrocessos e estagnações em seu processo,
e o que alavanca seu progresso.

Cada praticante reage diferenciadamente às práticas e aos conceitos do Yoga, e até


mesmo à linguagem e palavras do professor.

O professor é também um provocador de transformações. A natureza de sua intenção


deve estar de acordo com a natureza do aluno.

Quando isso ocorre, o professor atua como um kṣetrika, como é colocado no sūtra
IV.3.
Pelo que eu entendi, segundo explicações de Desikachar, este sūtra é um dos mais
significativos para o professor de Yoga.

Kṣetrika é traduzido como agricultor. Significa alguém que sabe do campo (kṣetra),
mas representa alguém que sabe de um assunto pois o vive. Isso significa que o
professor de Yoga não é um teórico ou alguém que acumulou informações. O

129
professor de Yoga ensina, pois pisa no campo com seus pés e tem suas mãos sujas de
terra.

130
O PROFESSOR DE YOGA

Pelo sūtra IV.3 podemos interpretar que o professor de Yoga possui as seguintes
qualidades:

● kṣetrika – Vive o que ensina e ensina pois possui a experiência direta do


assunto (não estamos falando de um ser perfeito, mas alguém que se dedica ao
processo de auto refinamento, que é contínuo).
● nimittam – atua com eficácia. Não ensina o que sabe, mas o que é relevante ao
outro. Entendendo que o melhor é o mais eficiente.
● aprayojakaṁ - atua de forma indireta e se torna dispensável.

Trabalhar de forma indireta significa não bater de frente e não causar resistência.
Também significa permitir que as conquistas sejam do aluno. O aluno é o protagonista
de sua caminhada, não o professor. E o professor precisa trabalhar a autonomia do
aluno. Isso deve estar presente na estratégia do professor desde o primeiro contato.

Os ensinamentos do Yoga e a relação entre professor e aluno não devem gerar


aprisionamento ou submissão. Sobre essa relação entre professor e aluno, Patañjali
explica a seguir:

RELAÇÃO DE CORAÇÃO PARA CORAÇÃO

O processo de aprendizado do Yoga não é apenas racional e horizontal. O professor


não transmite somente informação, mas propõe experiências. Essas experiências
tocam tanto o campo físico e energético, através de sensações trazidas pelo
movimento da respiração e do prāṇa, quanto o campo do intelecto e das emoções,
através da apresentação de conceitos e de estímulos para reflexão, por exemplo.

O verdadeiro aprendizado ocorre no campo emocional, e, no sūtra IV.4, Patañjali usa


as palavras asmitā-mātrāt. Para que algo sirva de propulsor para alavancar
transformação, é necessário que exista uma relação sincera que nos ligue a esta coisa.

Neste sentido asmitā-mātrāt é uma relação de identificação entre aluno-professor-


processo de aprendizado.

Como minha professora coloca: o aprendizado no Yoga ocorre de citta para citta – de
coração para coração. Então, um dos trabalhos iniciais do professor é construir uma
ponte de relacionamento com seu aluno. E, quando o aluno começa a responder, o
trabalho começa.

Esta relação, como qualquer outra, necessita de respeito e possui dinamismo. Tanto o
aluno, como o professor estão em constante mudança, e a relação e o aprendizado,
em constante reformulação.

Ensinar pelo poder da autoridade, pelo medo e aprender pelo imitar e copiar não se
comparam ao aprendizado que ocorre pelo diálogo sincero entre dois corações.

131
O aluno, o professor e a relação entre ambos, no processo do Yoga, se tornam únicos.
É por isso que um bom professor para uma pessoa não é necessariamente um bom
professor para outra.

Reflexão sobre a relação professor-aluno:

● A relação entre aluno e professor deve possuir duas vias. Ela precisa ser real, e
não apenas imaginária, ocorrendo somente na cabeça do aluno.
● A relação profunda entre aluno e professor ocorre no âmbito do Yoga. Isso
abrange tudo que esteja relacionado a transmissão desta tradição e que ajuda
no processo de transformação do aluno. A dimensão desta relação e
ferramentas para se trabalhar são claras.
● O cuidado com o desejo é uma constante. A identificação aluno-professor-
processo de aprendizado não pode ser motivada ou nutrida pelo desejo. Todo
cuidado é necessário pois, dependendo de meus desejos, o natural é que eu
me identifique com professores que nutram minha busca por estes desejos.
Exemplo, se eu tenho desejo de realizar práticas de āsana-s avançados, o
natural é que eu procure um professor que me dê essas práticas. Se eu quero
respostas prontas, o natural é que eu procure um professor que me dê
respostas prontas. Esses exemplos demonstram um processo nada frutífero,
pois quando isso ocorre eu tenho no fim o que possuía no início, o desejo.
● O bom aluno mira em sua evolução. A identificação entre aluno e professor
significa uma compactuação entre ambos, mas em relação ao processo de
aprendizagem e desenvolvimento do aluno.
● O bom professor trabalha para manejar os desejos e identificações que
atrapalham sua trajetória.
● A informação pode ser transmitida de uma pessoa para milhares. Mas a
conexão profunda depende de uma íntima conexão entre duas pessoas.

A TRANSFORMAÇÃO DEPENDE DO MOMENTO INTERNO DE CADA PESSOA

O professor se faz atento para perceber o momento interno de seu aluno. Patañjali, no
sūtra IV.5, explica que os fatores externos só irão alavancar transformações
dependendo do estado interno da pessoa.

Este estado interno propício à transformação refere-se à qualidade mental do aluno. O


professor precisa estar atento para conseguir identificar os momentos propícios para
propor práticas ou reflexões. E isso significa analisar e esperar o momento fecundo
para incentivar cada prática e reflexões.

Com o devido cuidado, o professor sensível consegue trabalhar para proporcionar uma
mudança na qualidade mental do aluno.

132
COMO DEVE SER A INFLUÊNCIA DO PROFESSOR

Pelo sūtra IV.6, entende-se que as pessoas que agem em estado meditativo, ao
servirem de propulsores para o processo de transformação do outro, não deixam
marcas.

A palavra usada é anāśayam, que, trazendo a reflexão para o verdadeiro papel do


professor, significa que o contato com seu aluno não deve provocar negatividades.
Negatividades são apego e dependência. Ou a transplantação de ideias e tendências
do professor para seu aluno.

O professor é um semeador. É necessário muito cuidado pois não é possível prever


com exatidão o que suas sugestões - e até mesmo sua presença - provocam no outro.

Para a maioria de nós, o contato com outras pessoas tende a gerar influências em nós
e nos outros. O cuidado então é para que este contato gere marcas que sejam o mais
leves possível.

A REFERÊNCIA DA LEVEZA NA AÇÃO

O sūtra IV.7 explica quatro condições diferentes ao agir, mas que se dividem em dois
grupos:

● Ações que são realizadas por motivações e possuem expectativas


● Ações que são realizadas espontaneamente e sem expectativas

As quatro condições ao agir são:

● os que agem motivados por seu lado luminoso – śukla karma


● os que agem motivados por seu lado obscuro – kṛṣṇa karma
● os que agem por motivações mescladas – kṛṣṇa-śukla karma
● os que agem sem motivação específica e sem expectativa em relação aos
resultados – akṛṣṇa-aśukla

Uma das coisas que marca este sūtra é a definição do yogī. O yogī é quem age em
estado meditativo, sendo espontâneo e livre de expectativas.

Tendo esta referência, o professor de Yoga deve atuar com espontaneidade, no


sentido de deixar sua intuição lhe guiar, e sem expectativa ou tentativa de controle
sobre os resultados da ação.

Exemplos de atitudes:

● śukla karma – o professor pode agir dando seu melhor, mas espera que seu
aluno retribua a altura, seja por quantia em dinheiro ou veneração. A relação
entre professor e aluno tende a ser marcada por luminosidade, mas o aluno
sabe que não teria conseguido sem a ajuda do professor, e o professor avalia

133
que seu esforço foi grande. Então, embora haja um bom relacionamento, há
uma carga.
● kṛṣṇa karma – o professor age por benefício próprio. Ensina o que lhe convém.
Ou se aproveita de recursos do aluno, seja status ou visa apenas a
remuneração. As ações são manipuladoras, e podem ser até imorais. O aluno
tende a desenvolver uma relação de medo e submissão em relação ao
professor, acreditando que, se não fizer o que o professor mandar, haverá
punição, do próprio ou da vida.
● kṛṣṇa-śukla karma – a motivação e conduta do professor varia, ora se empenha
em dar o seu melhor e hora o que lhe é conveniente. Trata-se de uma
alternância entre śukla karma e kṛṣṇa karma.
● akṛṣṇa-aśukla – o professor assume esse papel pois alguém se apresenta como
aluno. Os ensinamentos fluem com naturalidade. Partindo dele, mas ele não os
possui. A motivação destas pessoas é uma devoção, e por sentirem devoção
não almejam nada em troca. As ações são embasadas em vairāgya. Os frutos
de suas ações são recebidos como consequências naturais e equanimidade. As
ações e os frutos não lhes pertencem. Mesmo que o aluno agradeça, o
professor sabe que o aluno evolui não por mérito do professor, mas pelo poder
de sua própria entrega (śraddhā).

Essas reflexões são exemplos grosseiros, mas que podem ajudar a ilustrar o que
acontece na vida real. O que o sūtra especificamente explica é que o yogī age livre das
impulsividades dos vāsana-s e reatividades dos saṃskāra-s, mantendo a mente
conectada ao coração e interagindo com o que ocorre no presente momento. Esta é
uma condição rara, mas temos neste sūtra a clareza de um parâmetro para
refletirmos.

PARA SEGUIR SEM CARGA

O Yoga explica que somos em essência uma força imensurável. Uma luz, um
observador de natureza espiritual, mas em contato com a matéria. A personalidade é
um produto do que vamos vivenciando, somado ao desenvolvimento de tendências
que marcam nossos processos mentais.

O “eu-sou” costuma ser o reflexo das tendências na mente, que tem os kleśa-s
(aflições) e os antarāya-s (obstáculos) como propulsores. Por essa razão, os enganos e
sofrimentos são experienciados.

Não há freios para brecar nossas tendências. O que pode ser feito é pôr luz sobre elas
e, com consciência, sobrepor essas tendências relacionadas a negatividades por
tendências opostas.

O Yoga propõe um trabalho de reconstrução. A forma que vivemos é reflexo dos


saṃskāra-s que nos regem. A pergunta é: como esses condicionamentos foram
construídos?

134
Podemos ser as respostas de nossas reatividades descontroladas, ou a expressão de
nossa luminosidade. O que define isso? São os nossos próprios vāsana-s e saṃskāra-s.
A atuação do Yoga na vida de uma pessoa, que ocorre também pela representação do
professor, transforma e lapida esses condicionamentos (lembremos do que fora
explicado no final do primeiro capítulo do Yogasūtra).

Porém, para seguirmos leves:

● os saṃskāra-s do professor não devem ser absorvidos pelo aluno.


● os saṃskāra-s do aluno não devem influenciar a perspectiva do professor.

Todos nós carregamos tendências. Estas tendências podem parecer crônicas ou


cíclicas. Mas também podem estar adormecidas. O professor precisa proceder com
cautela pois não sabe como o aluno irá reagir. Ou melhor, o que no aluno irá reagir.

Questões crônicas podem ser agravadas e algo que estava adormecido pode emergir.
As reações podem ser físicas, psicológicas e emocionais. Dores no corpo, medo,
angústia, impaciência, tristeza...

Os mesmos sintomas podem ocorrer no professor, pois o contato com o aluno


também propicia nele reações incalculáveis. Isso reforça a ideia de que o professor
deve manter seu sādhana intenso, e também ter um professor. Assim como um
terapeuta também possui seu terapeuta.

Tanto o aluno quanto o professor devem manter a relação entendendo suas


particularidades. Seguir com fé (śraddhā), trabalhando atento a suas questões
pessoais, sem querer se tornar o outro e sem de deixar ser manipulado pelas
tendências do outro.

Esta é uma mensagem importante contida no sūtra IV.8.

NOSSAS EXPRESSÕES SÃO REFLEXOS DA CIRCUNSTÂNCIA E DO MOMENTO

O sūtra IV.9 explica que “a memória e os vāsana-s (tendências latentes) possuem um


elo muito forte. Este elo é tão forte que um influencia o outro, mesmo que haja
intervalo de tempo, local e se esteja em diferentes contextos”.

Então, se há uma memória, esta memória desperta um hábito. E, enquanto dominados


por um hábito, haverá a presença da carga de suas memórias.

Isso explica bastante sobre como reagimos. A grande mensagem deste sūtra está na
análise de como jāti, deśa e kāla influenciam nossas reações.

Jāti – trata-se da situação. Dependendo da situação, nossa tendência é agir de um jeito


diferente. Com consciência, podemos atuar de acordo com nosso papel, não
colocando em uma situação cargas que não fazem sentido estarem presentes. Mas, se
estivermos displicentes, podemos reagir inconsciente à situação.

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Deśa – significa lugar, o lugar onde estamos reaviva memórias e desperta tendências.
Com consciência, é possível se adaptar ao local sem grandes reatividades, entendendo
que cada lugar merece seu respeito.
Kāla – o tempo, período. Principalmente no sentido do tempo psicológico, ou seja,
como o sentimos internamente. Também é o tempo que as emoções e memórias
duram em nós.

Reflexão:

● Nossa percepção costuma ocorrer sob a influência das memórias e dos hábitos.
A memória é um tipo de sabedoria que é presa a hábitos. Por isso nós vemos
pelo hábito, mas ver pelo hábito é limitante.
● Aquilo que achamos que somos pode ser apenas reflexo da situação, influência
do lugar e o momento interno que nos encontramos.
● O professor deve conseguir perceber o que jāti, deśa e kāla despertam, mas se
empenhar para conseguir perceber o que está por detrás dessas influências.
● A íntima correlação entre memória e vāsana-s, que se expressa dependendo da
situação, lugar e momento, é o que normalmente percebemos em nós e nos
outros.
● As memórias são engatilhadas dependendo do contexto.
● As memórias não são registros fixos, sua carga pode ser ressignificada pois
memória é um registro de uma experiência pessoal, e não de fatos (YS I.43).
● As memórias estarão sempre armazenadas como registros. Independente se
jāti, deśa e kāla as despertem, elas estarão sempre existentes como registros.
● Os hábitos não são algo fixo, eles podem ser reestruturados.
● Os hábitos estarão sempre existentes em potencial, podendo se desenvolver
ou ser reativados quando uma memória os engatilha.
● Por essas razões o professor deve estar atento para não engatilhar ciclos de
memórias e hábitos desfavoráveis. A situação, local e momento são levados em
consideração para se pensar nas práticas e conduta da instrução.

DE ONDE AS TENDÊNCIAS NASCEM?

Patañjali esclarece que memórias e condicionamentos estão intimamente


relacionados. Positivando um, se positiva o outro. Mas o que aconteceu primeiro, um
hábito foi criado e se relacionou a uma memória, ou uma memória nos levou a um
hábito? De onde nascem nossas tendências?

Patañjali lucidamente explica não haver explicação para esta indagação. Os saṃskāra-s
e vāsana-s são colocados como anādi, que significa que não se sabe onde começam.

Com esta afirmação, Patañjali explica um pouco mais sobre a psicologia do Yoga:

● Em algumas situações não adianta investigar a origem de certas tendências,


pois não conseguiremos alcançá-las.
● O professor nem sempre saberá identificar as causas que geram as principais
questões que seu aluno enfrenta.

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● Mesmo sem conseguir saber de onde nascem, elas podem ser aceitas,
ressignificadas e lapidadas.
● Temos medo do desconhecido e medo de deixarmos de existir. Existe em nós o
instinto por sobrevivência. Patañjali utiliza a palavra aśiṣa, que significa o apego
ou o desejo pela vida. Esse impulso é o que nos faz agarrar em algo, e esta é a
possível razão pela qual nos agarramos a hábitos e memórias, já que são os
alicerces que nos fazem nos sentirmos nós mesmos. Mesmo que sejam
negativos, abandoná-los significa deixar de existir.
● Enquanto houver medo, ou grande apego pela vida, o indivíduo é regido por
impulsos (vāsana-s), condicionamentos (saṃskāra-s) e memórias (smṛti).
● O professor deve considerar que essa é uma condição humana e trabalhar para
que a devoção substitua o medo.

A ESTRUTURA QUE NOS MOLDA

No sūtra IV.11, Patañjali revela os quatro fatores que nos fazem presos e vulneráveis
aos impulsos, condicionamentos e memórias.

São eles:

1- Hetu – uma causa.


Muitas experiências vividas no passado provocaram profundos efeitos em nós
e por isso nos influenciam e acabam sendo determinantes na forma como
reagimos a certas situações, lugares e períodos, tanto no presente como no
futuro. As causas das ações costumam ser reatividades.

2- Phala – um fruto.
Se as causas de nossas ações são reatividades, o resultado de nossas ações
contém a motivação que aplicamos ao agir. Quando agimos de forma reativa,
agimos com o respaldo de nossos condicionamentos. Então, quando agimos,
tendemos a ir de encontro ao que já conhecemos, tentando identificar nossas
verdades e perpetuar nossas certezas. E tudo o que não cabe neste banco de
dados recebe críticas. Normalmente ocorre o seguinte processo:

A ação é realizada comprometida por interferências, que são reatividades


geradas por hetu, uma influência que muitas vezes se apresenta de forma
obscura ⇒ a ação com interferências é uma ação ineficaz ⇒ a ação ineficaz
gera frutos incoerentes ⇒ independente de como se age, costuma-se ter
expectativa em relação aos frutos ⇒ a expectativa dos frutos da ação nunca é
correspondida, pois não temos o controle sobre os resultados de nossas ações
⇒ quando há expectativa, a tendência é nos frustrarmos com frequência ao
percebermos os frutos ⇒ todo desapontamento em relação às expectativas
dos frutos faz com que as nossas antigas convicções se reforcem ⇒ e assim
permanecemos amarrados aos velhos hábitos.

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3- Āśraya – um suporte interno.
Dependendo da minha motivação (hetu), assim serão os frutos (phala) e isso
gera resíduos que me influenciam emocionalmente. Āśraya é a estrutura
interna pela qual percebemos as coisas. Ela é o resultado de como nos
sentimos.

Dependendo das “cores” das minhas emoções, assim verei o mundo e minhas
próprias reações. E, se não vemos as coisas como elas se apresentam, a
tendência é permanecermos presos ao hábito.

E existe grande chance de nos identificarmos com esse suporte interno,


confundindo estados internos temporários com o que verdadeiramente somos.
Como consequência, haverá ainda mais aprisionamento aos hábitos e
tendências reativas.

4- Ālambana – um suporte externo.


Ālambana é um suporte externo, que pode ser entendido como tudo aquilo
que nos influencia externamente. Algumas coisas nos influenciam
positivamente, e outras, negativamente, pois trazem memórias e emoções que
nos permitem paz e foco, ou nos desestabilizam.

O ambiente externo gera gatilhos em nossas memórias e começamos a fazer


inúmeras associações. E, como essas associações que a memória faz revivem
condicionamentos, estes bloqueiam a percepção direta das coisas, gerando
distorção.

Quanto mais distorção na percepção, mais difícil é a compreensão. Então, a


mente continua agarrada ao que já era sabido.

Reflexão:

● Nós não temos o controle sobre os impulsos (hetu).


● Pouco podemos fazer sobre o que esses impulsos geram (phala). A única
chance que temos para mudar nossa atitude perante os resultados é a
aplicação de Īśvarapraṇidhāna .
● Mas podemos trabalhar para mudar os suportes internos (āśraya), e a prática
de Yoga deve se dedicar a isso.
● Devemos seguir atentos para não nos expormos a situações (ālambana) que
despertem velhos e negativos impulsos e hábitos. O cuidado para se manter
uma boa rotina diária também entra aqui.
● O trabalho no Yoga está definido:
- a mente deve ser trabalhada para estar limpa da associação com os suportes
internos que são indevidos, ou seja, dos saṃskāra-s aos quais nos agarramos e
motivam ação e expectativas.
- a mente deve ser trabalhada para estar imune ao que está exposta
externamente.
- é necessário trabalhar autoentrega para aceitar o que foge de nosso controle.

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O CONTROLE QUE PODE SER EXERCIDO SOBRE AQUILO QUE NÃO TEMOS O CONTROLE

No sūtra IV.12, Patañjali explica que futuro e passado se encontram em um estado


dormente. O passado não desaparece para sempre. Todos saṃskāra-s que foram
substituídos por novos condicionamentos não se extinguem, mas regressam a um
estado de dormência.

Este fato não deve ser esquecido pelo praticante e nem menosprezado pelo professor.
As tendências que já foram dominantes podem regressar a seu estado ativo
novamente. Para isso basta a combinação de um gatilho externo, como um ambiente,
assunto ou alimento, e um momento de menos atenção na mente para que elas se
tornem dominantes.

Como não temos o controle sobre os gatilhos externos, o ponto principal a ser
entendido é que o que define se as cargas da memória, os condicionamentos e as
impulsividades estão ativos ou não é a influência dos guṇa-s na mente [IV.13].
Dependendo das qualidades destes guṇa-s, assim serão as cargas das memórias, e a
qualidade dos condicionamentos e impulsividades.

Segundo o Yoga, tudo que é aparente é simplesmente uma combinação única destas
três qualidades básicas que são inerentes à matéria (II.18), e, por isso, se expressam na
mente. As características da mente e dos objetos, assim como se apresentam em um
momento, são as transições das combinações e transformações que ocorrem entre os
guṇa-s [IV.14].

A transformação na mente é um contínuo processo que depende de diferentes


fatores, como nos foi explicado do sūtra-s III.9 ao III.12. Mas, como é colocado no
IV.15, as características de um objeto são percebidas de forma distinta pois são
observadas por mentes com qualidades diferenciadas. Isso torna a interpretação do
mundo um pesadelo. Ou um aprendizado.

O sādhana é aconselhado no sūtra IV.1 como o caminho a ser construído pois tem
como objetivo estabelecer uma harmonia maior nos guṇa-s da mente e, assim, não
engatilhar impulsos, condicionamentos e cargas de memória que, mesmo que sejam
nossas [IV.12], não precisam estar ativas.

O RESPEITO PELA HISTÓRIA DO OUTRO

Vivemos uma cultura de bulliyng. Ainda sobre os sūtra-s IV.12 e IV.13, o passado,
independente de como foi construído e seus resultados, não deve ser motivo de
vergonha e nem de menosprezo pelos outros.

Primeiramente, se ignoramos nosso passado, se não o assumimos, não o


entenderemos. Esse potencial então tem mais chance de ser repetido no futuro.

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A relação do professor com seu histórico no Yoga e as tendências que nos dominavam
não deve ser negligenciada. Mesmo que se tenha realizado erros e percorrido linhas
de ensino do Yoga que se mostraram equivocadas em relação ao verdadeiro valor pela
qual a tradição do Yoga zela, esse passado não deve ser ignorado, mas, sim, abraçado
e acariciado.

Para o praticante e professor, não é nada sadio ocultar seu currículo, nem esconder as
falhas cometidas no passado. Errar faz parte do processo de auto lapidação. Olhando
com honestidade os erros, podemos seguir acertando. Grave é manter ativo o
condicionamento de suprimir e esconder coisas.

Vendo do outro lado, não se deve depreciar a trajetórias que parecem errantes. O
saṃskāra do bulliyng pode estar ativo até em grandes praticantes e professores, e
nada nos ajuda no processo do Yoga.

Cada história merece seu respeito. Se algo não lhe agrada, ou se não quer ser
conivente com a atitude do outro, se afaste [I.33].

VASTU TATTVAM E CITTA TANTRAM

Nos sūtra-s IV.14, IV.15 e IV.16, Patañjali expõe o ponto de vista do Yoga frente a
outras escolas de pensamento. Novamente seu esclarecimento não diminuem o ponto
de vista do outro.

Os conceitos apresentados são:

vastu tattvam – que entende que os objetos existem por eles mesmos, sendo
independentes da mente.
citta tantraṁ – que explica que os objetos são uma ilusão da mente.

Existem diferentes escolas de pensamento com diferentes visões e formas de se


trabalhar o indivíduo.

● o Yoga entende que o mundo material e os inúmeros objetos são reais.


● os objetos não deixam de existir quando a mente não os nota.
● tudo que sentimos deve ser aceito como realidade. O sofrimento que sentimos
é real. E, mesmo que algo seja visto posteriormente como uma ilusão,
enquanto o campo mental e emocional sente algo, e isso influencia o sistema
endócrino e nervoso, estes sentimentos e percepções são reais.

Entre ambas visões (vastu tattvam e citta tantraṁ), o professor de Yoga, para
encaminhar seu aluno na pedagogia do Yoga, deve trabalhar com a ideia de que a
realidade é o que o indivíduo aceita como realidade, e que o mundo e seus objetos são
reais. Se isso não ocorre, a pedagogia do Yoga não se encaixa na forma natural de
aplicação.

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Exemplos: a dor do outro, mesmo que não possa ser sentida por nós, ou mesmo que
nos pareça tola, deve ser respeitada. Neste sentido, nenhum sintoma do aluno deve
ser menosprezado pelo professor.

DICA AO PROFESSOR

Patañjali explica no IV.17 que a observação e percepção de um objeto (sentimento ou


objeto tangível) depende da motivação do observador. Esta é uma grande dica para o
professor e qualquer educador.

● o aprendizado ocorre a partir de uma conexão (uparāga). O professor deve


primeiramente trabalhar para estabelecer uma boa ligação com o aluno.
● o observador observa de acordo com seu banco de dados. Então, o professor
deve observar os interesses do aluno e utilizar esses interesses para estimular o
processo de aprendizagem do Yoga.
● o professor deve conseguir acessar a linguagem do aluno e escolher as
ferramentas, sejam as práticas de Yoga, os conceitos e exemplos dados,
sempre de acordo com as referências que o aluno já tenha.

Exemplos: O pensamento e os textos de Yoga estão expostos em sânscrito, mas ao


invés de falar duḥkham podemos dizer sofrimento. Ao estudar Yoga, entendemos que
āsana é apenas uma das inúmeras ferramentas desta tradição, mas, se a prática de
āsana é uma ferramenta que o aluno consegue facilmente se relacionar, comecemos
por ela.

A MENTE COMO A MELHOR ALIADA

Do sūtra IV.18 ao IV.26, Patañjali explica que Puruṣa é sempre consciente [IV.18], que a
mente não possui luz própria [IV.19], que a mente é capaz de se voltar para fora, ou se
voltar para dentro, mas não nas duas direções ao mesmo tempo [IV.20]. E, por isso, o
Yoga acredita que um indivíduo não possui duas mentes [IV.21].

Entende-se que:

● A mente pode nos ajudar a entender os objetos externos.


● Quando a mente não está associada com objetos externos e não reflete suas
formas internamente, pode se voltar para dentro (referente ao sūtra IV.20)
● Ao abandonar o interesse pelo externo, é possível assumir introspecção e a
capacidade de observar e analisar de forma pura, svabuddhi [IV.22].
● A mente, então, assume contato total com o ser interno. Isso ocorre através da
liberdade explicada no sūtra III.55.
● Por assumir essa conexão interna, a mente se torna a melhor aliada de Puruṣa
[IV.23].
● A mente, mesmo cheia de coisas (impulsos adormecidos, condicionamentos,
etc.) funciona como veículo de Puruṣa [IV.24]. A ideia de perfeição mental não
existe no Yogasūtra. Ela se torna suficientemente apta a servir de veículo para
experiências puras e diretas, apesar de suas limitações.

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● Pela proximidade com Puruṣa, a distinção entre cit e citta fica clara. E a sede,
curiosidade, interesse maior ou identificação por prakṛti cessa [IV.25].
● Essa clareza é viveka, que possibilita kaivalya [IV.26]. Novamente, devemos
recapitular: primeiramente o objetivo é reduzir a influência dos kleśa-s. Então,
viveka é possível. Desta clareza, a liberdade pode ser uma realidade. Mas
lembremos que este processo só ocorre se for vivido. A clareza é uma
experiência, seu processo nos foi explicado no sūtra II.27, e ela não uma ideia
aprendida, como consta no sūtra I.49.

AVISO!

Mesmo que se consiga experienciar clareza e liberdade, estes estados não são
permanentes. Os padrões antigos e as tendências adormecidas possuem sua força, e
podem voltar a dominar sempre que houver algum momento de distração.

É por essa razão que o sādhana nunca deve ser deixado de lado. Segundo o sūtra
IV.28, quando isso ocorre, o “método” para silenciar esses padrões antigos que
prejudicam a liberdade são os mesmos apresentados no segundo capítulo para reduzir
a influência dos kleśa-s.

A NUVEM DE CLAREZA

A analogia da nuvem de clareza, ou de harmonia (dharmamegha samādhi), usada no


sūtra IV.29 ilustra como a mente é conduzida para a liberdade. Essa nuvem protege o
discernimento da influência dos guṇa-s e de qualquer expectativa por se saber de algo.

Pelo sūtra IV.29, entende-se que a liberdade ocorre pelo não desejo ou expectativa
por obter clareza e nem mesmo liberdade – akusīda. Trata-se de uma mente tão
nutrida pela conexão interna e ativamente fluida no movimento constante do
presente que não possui a necessidade de se prender a nada.

No IV.30, entende-se mais sobre esse processo. A relação kleśa-karma, que é o


primeiro trabalho a ser focado na pedagogia do Yoga, nunca cessa. Kleśa é algo natural
na mente, e karma natural na vida. Mas, ao ingressar na nuvem de harmonia, as ações
deixam de ser motivadas pelos kleśa-s. a relação kleśa-karma existe, mas a motivação
deixa de existir.

Reflexão ao professor:

Esse pensamento resume de certa forma o trabalho no Yoga.

● Podemos suprimir kleśa-karma.


● Podemos assumir um sādhana, construir um outro padrão (I.50) e substituir as
motivações que nos prendem ao ciclo kleśa-karma.
● No processo do Yoga, a perfeição não existe. Mesmo envolto na nuvem de
harmonia, ainda existe alpam, algumas coisas que não são sabidas (IV.31), mas
isso é irrelevante.

142
● O processo do Yoga é, IV.32:
1º - reduzir avidyā.
2º - investigar as causas e obter clareza.
3º - da clareza assumir liberdade.

PLENITUDE

As três fases do processo do Yoga (descritas acima) ocorrem naturalmente quando o


praticante exerce com integridade seu papel. Minha professora diz que o papel do
praticante é sustentar seu sādhana, referente ao conceito de kṣema. A evolução é por
conta do Yoga.

Quando há clareza sobre o processo da transformação da mente, há clareza sobre o


processo do movimento do tempo. Ambos possuem krama, sequência natural. O
tempo é imponente, e exerce influência sobre a mente. A vida é uma travessia pelo
tempo. Mas quando a mente atravessa todos os estágios que transformam e se dilui
no ser interno, a imponência do tempo deixe de existir, IV.33.

LIBERDADE

No sūtra I.34, Patañjali “define” liberdade:

● Os guṇa-s provocam movimentos na mente. Estes movimentos podem


conduzir a mente a transformações (1º, 2º e 3º estágios do processo do Yoga).
Quando o mais elevado objetivo da vida é atingido, os guṇa-s não mais ecoam
influências na mente, pois os veículos não são mais necessários quando se
atinge o destino. Isso é liberdade.
● Ou: liberdade é quando o ser interno se estabelece em sua própria natureza.

Com essa explicação, Patañjali nos orienta a voltar ao sūtra I.3 e recomeçar nosso
estudo. O Yogasūtra de Patañjali é um manual essencial ao praticante e professor de
Yoga. Seu estudo é contínuo.

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REFLEXÕES SOBRE A ESCRITURA YOGA RAHASYA

Introdução ao texto

O Yoga Rahasya possui uma história muito interessante, e que vale ser contada.
Escutei de Desikachar que estes ensinamentos foram primeiramente transmitidos por
Nammālvār, mas se perderam com o passar do tempo. Durante o curso da história,
eles teriam sido revividos duas vezes através de experiências muito peculiares
ocorridas num mesmo local, só que em séculos diferentes e por pessoas diferentes.

Segundo meus professores, estes episódios ocorreram numa pequena vila localizada
no extremo sul da Índia, chamada Alvarthirunagiri, local de nascença de Nammālvār.
Segundo a tradição Vaiṣṇava do sul da Índia, Nammālvār nasceu em 3059 A.C., mas
esta data é provavelmente uma estimativa. Diz a lenda que, logo ao nascer, o bebê já
apresentava características divinas, não expressando nenhum apelo a estímulos
externos.

Como mandava o costume da época, as crianças eram batizadas no seu décimo


primeiro dia de vida. Seus pais levaram seu bebê ao templo local, dedicado a Viṣṇu,
que fica às margens do rio Tāmraparani. Foi somente lá que este recém-nascido abriu
seus olhos pela primeira vez. No centro deste templo uma árvore de tamarindo é
reverenciada por ser considerada sagrada.

A lenda diz que os pais, guiados por uma forte intuição, deixaram o recém-nascido,
cujas qualidades eram divinas, acolhido no tronco oco da tamarineira. Nammālvār
sentou-se em meditação e permaneceu em silêncio sem expressar qualquer estímulo,
fazendo-se entender que pertencia aquele lugar. Nammālvār permaneceu imóvel por
dezesseis anos até que chegasse a seus pés seu primeiro discípulo, Madhurakavi.
Nammālvār então se pronunciou pela primeira vez e começou a transmitir seus
ensinamentos.

Nammālvār é considerado o décimo segundo Alvar, santo poeta, na tradição Vaiṣṇava


do sul da Índia, e viveu vinte e cinco anos. Seus ensinamentos foram agrupados em
quatro tratados, o Thiruviruttam, Thiruvaasiriam, Periya Thiruvanthadi e o
Thiruvaymoli. Mas, séculos depois, muitos de seus ensinamentos foram perdidos.

No século IX d.c, um professor chamado Nāthamuni se sentiu encantado ao escutar


versos compostos por Nammālvār cantados por um grupo de peregrinos que passavam
perto dele. Impressionado com o que sentira, Nammālvār pediu que os peregrinos o
ensinassem estes cânticos. Os peregrinos disseram só conhecer dez dos dez mil versos
compostos por Nammālvār, que haviam sido perdidos.

Nāthamuni sentiu um chamado tão forte que peregrinou até a pequena vila no sul da
índia, onde Nammālvār havia nascido, para procurar saber sobre os versos perdidos.
Lá, Nāthamuni encontrou Parānkushādāsa, que pertencia à linhagem discipular de
Madhurakavi. Parānkushadāsa instruiu Nāthamuni em versos que reverenciavam
Nammālvār e lhe aconselhou a repeti-los diversas vezes com total devoção.

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O dedicado Nāthamuni sentou-se junto ao tronco da tamarineira sagrada e evocou os
versos que aprendera doze mil vezes com muita devoção. Absorto em estado
meditativo, Nāthamuni teve a visão de Nammālvār instruindo seu discípulo
Madhurakavi. Desta experiência, Nāthamuni reviveu os ensinamentos perdidos e um
tratado sobre Yoga chamado Yoga Rahasya, o segredo do Yoga.

Através destes ensinamentos, Nāthamuni tornou-se o precursor de uma linhagem de


professores, cujo termo específico para denominá-los é ācārya-s. Nāthamuni teve oito
discípulos e sua linhagem prosperou. O discípulo Kurukkaikāvalappan ficou
encarregado de transmitir o Yoga Rahasya a Yāmuna, e marcou uma data para este
estudo. Por alguma razão, Yāmuna não compareceu na data prevista. Quando Yāmuna
finalmente foi a seu mestre, Kurukkaikāvalappan havia desencarnado. Assim, o
conhecimento do Yoga Rahasya novamente foi perdido.

No fim do século XIX, em 1889, nascera T. Krishnamacharya, descendente direto de


Nāthamuni. Krishnamacharya já criança apresentava forte inclinação ao estudo da
tradição, e em particular ao estudo do Yoga. Por volta dos dezesseis anos
Krishnamacharya peregrinou alguns dias até chegar à vila de Alvarthirunagiri. Na
entrada do templo, encontrou um homem velho sentado à porta. Krishnamacharya lhe
explicou seu interesse nos ensinamentos de Nathamuni e o homem velho lhe
recomendou que primeiramente fosse se banhar no rio Tāmraparani.

Após se banhar no rio, Krishnamacharya perdeu a consciência e colapsou às suas


margens. Ocorreu então uma experiência reveladora. Como que em um transe, o
jovem Krishnamacharya vislumbrou uma mangueira onde um homem velho ensinava a
três alunos. Krishnamacharya prostrou reverência e pediu humildemente que fosse
instruído sobre o Yoga Rahasya. O homem velho atendeu seu pedido e em doce voz
começou a recitá-lo.

Ao despertar, Krishnamacharya conseguia lembrar claramente da visão que lhe


ocorrera. De volta ao templo, o homem velho sentado à porta lhe disse que ele havia
recebido o Yoga Rahasya diretamente de Nāthamuni, e que deveria, então, entrar no
templo e prostrar gratidão ao sábio.

Ao sair do templo, após expressar sua gratidão, Krishnamacharya misteriosamente não


avistava mais o senhor que o orientou em sua chegada. Foi quando percebeu que o
homem velho na porta do templo era o mesmo que o instruiu em sua visão. Esta
experiência marcou profundamente T. Krishnamacharya e estes ensinamentos lhe
serviram de base para praticar, aplicar e ensinar Yoga com sabedoria e precisão.

Independente da história por detrás deste texto, que o torna emblemático, mas que
para muitos pode parecer apenas uma lenda sem sentido, o Yoga Rahasya contém
ensinamentos essenciais para a prática e aplicação do Yoga. Nele encontramos
informações que não são encontradas em nenhum outro texto de Yoga.

O Yoga Rahasya, segundo T. Krishnamacharya, é sem dúvida um dos textos mais


importantes sobre Yoga a nos inspirar como praticantes e professores.

145
Capítulo I - Prakaraṇādhyāyah

Śloka I.1 - Vitória a Śaṭhakopa, que vivia no tronco da árvore de tamarindo, na cidade
de Śrīnagarī, situada na margem norte do rio Tāmrapariṇī.

O texto é escrito em śloka, diferentemente do Yoga Sutra, escrito em sutras. Este


primeiro śloka inaugura o texto Yoga Rahasya. Como de costume, os textos sobre Yoga
reverenciam inicialmente os antecessores e contextualizam o conteúdo que será
tratado. Nammālvār também é chamado de Śaṭhakopa. Foi neste local que Nāthamuni,
absorto em meditação, recebeu os ensinamentos de Nammālvār.

I.2 - Eu louvo o Muni conhecido como Śaṭhakopa, que é o ornamento à linhagem


Śaṭhamarṣana, completamente absorvido nos ensinamentos do Aṣṭāṅga Yoga, e em
cujo bom coração o senhor Viṣṇu reside.

Asṭāṅga Yoga refere-se aos 8 membros que constituem o Yoga, e que foram descritos
por Patañjali no tratado fundamental do Yoga, o Yogasūtra. A exposição desta ideia é
também uma reverência e exaltação aos ensinamentos fundamentais do Yoga.

I.3 - Saudando todos Gurus que meditam em Nārāyaṇa, que habita o coração, eu
[Nāthamuni] apresento o texto conhecido como Yoga Rahasya.

Após prostrar reverência ao supremo e à linhagem, o sábio Nāthamuni iniciará sua


exposição sobre o Yoga Rahasya. T.Krishnamacharya descende diretamente do sábio
Nāthamuni e pertence à linhagem que reverencia o supremo na forma de Nārāyaṇa.

Na índia, o absoluto é reverenciado de diferentes formas. A personificação do


supremo, que não tem forma, āliṇga, é feita para que se possa meditar em seus
atributos. Esta visualização sacia a sede da mente por forma, liṇga, e a conecta a estas
qualidades. Nārāyaṇa é um outro nome de Viṣṇu, na forma do ser supremo, a morada
final.

A menção de nomes que reverenciem o divino não significa que o texto seja um
tratado religioso. A intenção é trazer a mente a um estado de comprometimento,
atenção e respeito, fazendo com que ela sintonize com algo mais elevado e, através
desta nova qualidade, consiga se atentar aos ensinamentos que serão transmitidos.

I.4 - Em nível mais elevado, Yoga é considerado sendo de dois tipos: Bhakti e Prapatti.
Através deles, será possível obter o que se necessita, baseado sempre nas habilidades
individuais de cada pessoa.

A exposição é bem clara quanto à possibilidade de abordar o Yoga, que é um estado,


mas de duas perspectivas. Estas perspectivas não são escolhidas ao acaso. Como diz o
Śloka, elas dependem das qualidades ou capacitações individuais.

146
I.5 - Os frutos da dedicação às práticas do Yoga (sendo Bhakti ou Prapatti) podem ser
materiais (bhukti) ou a libertação sobre o sofrimento (mukti). Aqueles que são devotos
do supremo, glorificam o divino (Harī, Viṣṇu) para o propósito de mukti (libertação).
Outros buscam benefícios materiais, bhukti,, o que não é aprovado pelos textos
(Śāstra-s).

Os objetos materiais devem ser usados, assim como os objetivos materiais devem ser
cumpridos para suportar a jornada interna. Quando a relação com a matéria não é a
de servir como suporte e se torna um fim em si, o resultado é aprisionamento e
sofrimento. O texto ressalta o objetivo de libertação, até mesmo das eventuais
qualidades que nascem das práticas do Yoga.

O praticante deve se alimentar apenas dos frutos que o libertarão do ciclo do


sofrimento e da ignorância sobre seu papel, dever e potencial. Ser devoto ao supremo
é ter a mente e o coração voltados para algo que é maior do que o mundo ordinário.

Pelo śloka entende-se que Bhakti Yoga e Prapatti Yoga possibilitam a libertação da
mente sobre as influências da matéria.

I.6 - O Yoga de oito membros, Aṣṭāṅga Yoga (descrito por Patañjali), é proclamado
como Bhakti Yoga. O Yoga de seis membros, Ṣaḍaṅga Yoga, é chamado de Prapatti
Yoga.

Atualmente divide-se o Yoga em diversas modalidades. Mas o Yoga é único,


lucidamente exposto por Patañjali no Yogasūtra. O que o corrente texto define não são
diferentes Yogas, mas qualidades distintas de compreendê-lo e engajar-se nele.

Em último nível, o Yoga é entendido como sendo de dois tipos, ou podendo ser
abordado de duas maneiras, dependendo do devoto. Bhakti yoga equivale ao que
Patañjali descreveu como Aṣṭāṅga yoga, que possui 8 partes. Bhakti yoga é a intenção
do engajamento devocional.

Já Prapatti yoga equivale a Ṣaḍaṅga yoga, Yoga de 6 partes, e a exposição sobre


Ṣaḍaṅga será dada a seguir.

I.7 - É sabido pelos textos ancestrais (smṛti-s), que os dois tipos de Yoga apenas
produzem resultados pela graça do professor. Caso contrário, cai-se em um abismo,
pela desaprovação do senhor.

Sem a explicação e codificação do professor, o acesso ao conteúdo do texto não será


acessado e o interessado não será estimulado da melhor maneira. Outro fato
importante, o qual praticamente todos os textos sobre Yoga relatam, é que o
interessado pode enveredar por caminhos nebulosos, interpretando erroneamente o
texto. Isto é ruim para a continuidade da tradição, mas principalmente para a própria
pessoa.

147
I.8 - O senhor Nārāyaṇa com sua consorte, brilha no coração de todos. O senhor é
upādāna (a matéria bruta), e ao mesmo tempo também Nimitta (a inteligência que
sustenta a matéria) do mundo.

Upādāna significa “a matéria bruta”. Nimitta significa a inteligência que usa esta
matéria. O senhor é a causa e a matéria do mundo, sendo onipresente e onipotente. O
conceito por trás desta afirmação nos leva a refletir como os Yogi-s do passado
acreditavam que a vida possui causa divina, é suportada pelo divino e dilui-se
novamente no divino. Aqueles que não sentem esta causa estariam em desconexão.

Na descrição sobre o divino vemos a relação de equivalência da força feminina e da


força masculina, Lakṣmīnārāyaṇa. “Nārāyaṇa com sua consorte” significa a veneração
de deus sobre o aspecto feminino, Lakṣmī, e masculino, Nārāyaṇa.

Dentro do Hinduísmo Lakṣmī é a doadora da prosperidade, beleza e riqueza.

I.9 - O supremo é o iniciador e fazedor de toda ação, tendo qualidades e formas


auspiciosas, dando permissão para todas nossas ações e em todos os tempos.

Este Śloka ressalta nossa costumeira condição de egoísmo. E é devido ao egoísmo que
as aflições ocorrem e sofremos. Se nos rendermos a uma causa suprema, ou se nos
conectarmos a essência divina em nós, que conforme o Śloka anterior “brilha no
coração de todos”, esta força suprema age em nós e nos protege através de “todas
nossas ações e em todos os tempos”.

I.10 - Por estar preso a ações e vinculado a suas consequências, o ser humano não
percebe o ser supremo. Por isso, uma vez determinado a servi-lo, deve-se
continuamente praticar Yoga, independente desta pessoa ser instruída nos vedas
(dvīja) ou ignorante quanto aos vedas (pādaja).

A primeira parte do Śloka explica o motivo pelo qual não conseguimos nos conectar ao
supremo. A desconexão ocorre por estarmos tão atrelados ao ciclo da ação e seus
frutos. Segundo o Yogasūtra de Patañjali, I.24, o ser supremo, ou a força que rege o
universo, não é estimulado por aflições, e nem preso a ações e suas consequências.

A maioria de nós age impulsionado por aflições (kleśas) e estas ações, por serem
contaminadas, trazem frutos equivalentes aos estímulos que alimentaram as ações.
Assim, ficamos presos em um ciclo onde o sofrimento se repete.

Mas “uma vez determinado a servi-lo”, ou seja, uma vez determinado a se


comprometer com algo maior, é possível transcender este ciclo através do Yoga.

Para finalizar, o Śloka diz que o Yoga é disponibilizado para aqueles que são estudados
e conhecedores do conhecimento milenar védico, mas também para aqueles que não
tem estudo algum. Esta simples constatação transforma este Śloka em um protesto
libertário. Durante um grande período da história, o conhecimento só era concedido a
pessoas pertencentes à classe sacerdotal.

148
Embora existam diferenças na maneira de expor o Yoga, ou algum outro
conhecimento, todos têm o direito de acessá-lo, independente de serem dvīja ou
pādaja.

I.11 - Tanto Bhakti Yoga ou Prapatti Yoga podem ser realizados por dvīja-s (pessoas
instruídas nos Vedas). Mas Prapatti Yoga será incompreensível para pādaja-s (pessoas
não instruídas nos Vedas). Prapatti corresponde aos ensinamentos de Nyāsa (um dos
seis Darśana-s, filosofias da Índia derivada dos Vedas).

Dvīja-s significa o duas vezes nascido. A expressão ressalta a importância com que o
conhecimento védico afeta a vida de uma pessoa ao ser instruída. Ao compreender
seu conteúdo, a forma com que se relaciona com a vida e como se vive se modifica tão
significativamente que simboliza um novo nascimento. .

O sloka trata de um contexto cultural e sócio-político. Culturalmente, os pādaja-s são


pessoas que nascem dos pés de Deus. Simbolicamente, isso representa que estas
pessoas estão destinadas a realizar os serviços de base da sociedade. Muito se
contesta sobre o sistema de castas, que no início provavelmente era relacionado a
habilidades pessoais e biótipo, mas que depois acabou se transformando em uma
regra e predestinação às gerações seguintes.

A questão prática trazida pelo Śloka não aconselhando Prapatti Yoga para pessoas não
instruídas nos vedas é um tanto simples. Prapatti Yoga requer a execução de rituais
complexos, que demoram uma vida para serem aprendidos. Nyāya significa aptidão.

I.12 - Os seis membros que compõe Prapatti Yoga são:


● Determinação em executar somente ações que veneram o supremo
● Abdicar ações que gerem distração em relação ao supremo
● Firme convicção de que o supremo protegerá
● Louvar o supremo constantemente
● Completa entrega
● Humildade perante o supremo

I.13 - Engajado nos membros do Yoga, deve-se constantemente evocar o supremo


(Harī), ser disciplinado ao falar, controlar os sentidos e se engajar em seu Dharma.

O śloka nos lembra sobre vihara niyama, estilo de vida adequado. Não basta o
engajamento nos membros do Yoga, mas optar por e aplicar um modo de se viver
coerente.

I.14 - As mulheres comparadas com os homens possuem um direito especial para


praticarem Yoga. Isto ocorre porque carregam consigo o potencial e responsabilidade
de dar continuidade a linhagem.

Este śloka merece atenção especial. Primeiramente pelo marco que cria enfatizando a
importância e o direito da mulher de se engajar no Yoga, dizendo que é maior do que o
dos homens. Mas não podemos esquecer que o śloka transmite a informação de

149
maneira sucinta. E explicações mais minuciosas precisam ser feitas para que o
conteúdo fique realmente claro.

Apenas lendo-o pode parecer que a única razão pela qual as mulheres devem praticar
Yoga é para terem filhos, ou que a única função das mulheres fossem esse. Felizmente
este texto me foi ensinado por minha professora e mentora, e não senti, portanto,
nenhum traço de machismo em suas explicações. Pelo contrário.

As mulheres, independente se tem ou não, ou se nunca terão filhos, possuem uma


estrutura física e mental mais complexa comparadas com a dos homens. São mais
complexas por serem mais poderosas. O cuidado especial dedicado pelo texto em
relação às mulheres não ocorre por serem mais frágeis, e sim mais sensíveis e mais
poderosas. O śloka realsa o cuidado para que a mulher consiga atingir seu potencial,
pois o mundo é concebido e gerido pelo feminino.

Quando esta sensibilidade não é respeitada, ou seu potencial não é desenvolvido, esse
potencial se transforma em fragilidade. O śloka aponta para a atenção especial, que
precisa ocorrer desde a infância, para que a criança venha a se tornar uma mulher
sadia. Seu sistema reprodutor, cujas funções naturais são responsáveis pela
“continuidade da linhagem”, como diz o texto, também são responsáveis pelo humor e
saúde da mulher. Independente se a mulher vai ter ou não filhos, sua saúde é regida
pelo mesmo sistema, e este precisa estar sadio.

Esse ensinamento é muito significativo, já que a maioria das escrituras que explicam
técnicas de Yoga, são voltadas para praticantes homens.

I.15 - São elas que zelam pela semente da continuidade e, portanto, são como campos.
Caso existam pragas (problemas), as sementes que carregam se tornarão infecundas.

Aqui vemos, mais uma vez, a atenção sendo voltada para a saúde da mulher. As
mulheres “zelam pela semente da continuidade”, e entenda-se continuidade em todos
os sentidos.

Do ponto de vista sutil, ou do prāṇa, a região do apana vāyu é crucial para a saúde do
homem e da mulher. Mas principalmente para a mulher, devido a seu período
menstrual e gestacional, este “campo” precisa estar devidamente nutrido.

I.16 - O corpo da mulher quando acometido por doença não pode cumprir este
propósito específico (o de gerar e proteger a vida). Por isso todas as mulheres do
mundo possuem direito especial para praticar Yoga.

I.17 - Eu irei agora brevemente apresentar as doenças que em geral afetam o ser
humano.

150
I.18 - Os seguintes śloka-s são derivados do Viṣṇu purāṇa, e não são composições
minhas. Todas as doenças podem ser removidas pela prática de ṣaḍaṅga e aṣṭāṅga
Yoga, juntamente com algumas disciplinas.

Paraashara fala:

(V.P-6.5.1)
Maitreya (nome de um sábio, a quem Parāṣara fala), o entendido, sabendo dos três
tipos de sofrimento, alcança e vivencia o supremo pelo conhecimento e pelo não-
apego.

Os três tipos de sofrimento são:


adhyatmika – quando o indivíduo é a causa de suas próprias aflições.
adhibhautika – quando outra pessoa é a origem das aflições.
adhidaivika – aflições decorrentes de uma causa maior, como desastres naturais.

(V.P-6.5.2)
A causa adhyatmika de sofrimento (a que nós mesmos causamos) é de dois tipos: do
corpo e da mente. É dito que o sofrimento do corpo afeta a pessoa de diferentes
maneiras.

(V.P- 6.5.3)
São elas: doenças na cabeça, doenças nos pulmões, febre, dor no estômago, úlcera,
problemas relacionados com o sono, nas hemorroidas, tumores/inchaço, falta de ar,
vômito e muitos outros.

(V.P – 6.5.4)
E ainda doenças nos olhos, diarreia, doenças de pele e indigestão, que são nascidas no
corpo e o afetam. Agora escute sobre as doenças da mente.

(V.P – 6.5.5)
As doenças da mente são:
● desejo, kāma
● raiva, krodha
● medo, bhaya
● ódio, dvesha
● ganância, lobha
● confusão, moha
● arrependimento, vishāda
● pesar, shokā
● ciúme, asuuyā
● sentimento de insulto, avamāna
● menosprezar os outros, iirshyā
● criticar/encontrar falhas sem motivo, mātsarya

151
(V.P – 6.5.6)
Ó maioral da sabedoria, as doenças relativas a mente são muito mais. As explicadas
são as causadas pelo próprio indivíduo.

(V.P – 6.5.7)
As doenças de causa ādhibhautika (por outros) surgem pelo contato com animais,
pássaros, outros humanos, fantasmas (obsessores), cobras, demônios (pessoas com
tendências baixas), e animais que vivem debaixo d'água.

(V.P – 6.5.8)
Ó pessoa sábia, os antigos disseram que o sofrimento ādhidaivika (causado por
motivos naturais) provém do frio, calor, chuva, água, raio, e outras forças.

(V.P – 6.5.9)
Ó maioral entre os sábios, o sofrimento decorrido da gravidez, do nascimento, da
velhice, da ignorância, da morte e da noção de inferno, causa conflitos e afeta o
indivíduo de mil maneiras.

(V.P – 6.5.10)
No útero materno, a criança com suave corpo se vê rodeada de muitos “insetos” e
impurezas. Ela encontra-se lá coberta sobre a membrana que a cobre.

(V.P – 6.5.11)
Excesso de acidez, gosto picante, amargura, tempero e sal na comida da mãe, aumenta
o sofrimento que o feto já está passando.

(V.P – 6.5.12)
Incapaz de se espreguiçar ou contrair os membros, o feto encontra-se atormentado
em um charco de excreções e urina.

(V.P 6.5.13)
Incapaz de respirar por si, o feto consciente relembra centenas de seus nascimentos. O
feto encontra-se em sofrimento, associado a seu próprio karma.

(V.P – 6.5.14)
O feto, pronto para nascer, encontra-se rodeado de fezes, urina e fluidos. O Prājāpatya
vāyu (uma subdivisão do apāna vāyu responsável por segurar o feto) aumenta seu
sofrimento por mantê-lo no útero.

(V.P 6.5.15)
Com a ajuda do Suutikā vāyu (outra subdivisão do apāna vāyu responsável pela
expulsão do bebê), a cabeça do bebê se volta para baixo com grande dificuldade, a
criança, que está em pressa, então, sai do útero da mãe.

(V.P 6.5.16)
Ó chefe entre os Muni-s (sábios), exposta ao vāyu (ar) externo, a criança perde
completamente sua consciência e toda sua sabedoria passada assim que nasce.

152
(V.P 6.5.17)
Ao cair na terra como se fosse um inseto, o feto sente como se suas partes fossem
espetadas e cortadas em muitas partes por uma serra.

(V.P 6.5.18)
Sendo tão dependente, estando incapaz de se esticar e virar para os lados, quando
toma banho, bebe ou come, é completamente dependente de outra pessoa.

(V.P – 6.5.19)
Deitado em um lugar impuro, cercado de insetos e germes, o bebê não consegue
espantá-los e é também incapaz de alimentar-se sozinho.

(V.P – 6.5.20)
A criança na infância sofre desde o nascimento, assim como por seus nascimentos
passados. Isso se deve, na verdade, devido a adhibhautika (quando outra pessoa é a
origem das aflições) e outras aflições.

(V.P – 6.5.21)
Coberto pela escuridão da ignorância, o infante se pergunta “de onde eu vim? Quem
sou eu? Para onde devo ir? Qual será minha natureza?”

(V.P – 6.5.22)
“A que eu estou ligado? Qual é a causa de minha existência, e o que não é a causa?
Qual seria minha ação e qual não seria minha ação? O que devo falar e o que não devo
falar?”.

(V.P – 6.5.23)
“O que é o Dharma (dever) e o que não o Dharma? Como e onde devo viver? O que
devo fazer e o que não devo fazer? O que é o bem e o que é o mau”.

(V.P – 6.5.24)
Aqueles que se encontram na ignorância, e que se preocupam apenas em satisfazer
seus desejos sexuais e o estômago, são considerados como animais e levam uma vida
de sofrimento.

E aqui termina a exposição dos versos do Vishnu Purana.

I.19 - No asthanga Yoga, yama e niyama vem primeiro. Tendo praticado isto, deve-se
praticar regularmente os āsana-s prescritos.

I.20 - Então, deve-se praticar pranayama, seguido de pratyahara. Daí dharana,


dhyanam, samyama e samadhi precisam ser continuamente praticado.

I.21 - Caso se desista desta sequência e se pratique o que se desejar, a pessoa não irá
obter os benefícios do Ashtanga Yoga.

153
I.22 - Patañjali mencionou, claramente, que pelo Yoga, que benefícios materiais
(bhukti) e a libertação do sofrimento (bhukti) são possíveis. Aqueles absortos em
samyama, buscando benefícios materiais irão obter frutos impermanentes. Para
aqueles que perseguem liberação (moksha) pela devoção (Bhakti), isto é possível
através do não-apego, vairāgya, que é de dois tipos.

I.23 - Seguir o exemplo de um cão que, como o que acabara de vomitar, não é algo
aclamado. Então, os que focam em Moksha, libertação, perseguem o mais elevado
caminho. Para isso os textos antigos consideram o caminho de grande devoção ao
supremo o melhor.

I.24 - Devido aos muitos tipos de diferenças na estrutura do corpo, local de residência,
designações/vocações e mudanças nas estações, as doenças surgem no ser humano
como resultado de associação inapropriadas.

I.25 - Sem dúvidas, todas as doenças podem ser removidas pela prática do Asthanga
Yoga. Se as diferentes partes do corpo estão debilitadas, como será possível dhyanam
ou ação (dharma)?

I.26 - Sabendo disto, o estudante precisa saber pelo professor o que é apropriado para
ele. Ele/ela precisa praticar por compaixão por si mesmo e pelo bem dos outros.

I.27 - Todas as doenças que não podem ser curadas pela medicina ou por outros
métodos de terapia podem ser curadas pela prática estável do Yoga.

I.28 - Doenças, simples ou complexas, são removidas – umas através da prática de


āsana-s, algumas através de prāṇāyāma, outras pela comida, outras pela meditação e
outras através de rituais.

I.29 - Em relação ao que foi dito, pessoas preguiçosas, ateus e tolos falarão o que
quiserem. Qual será nossa perda? Foquemos em nossos deveres, assim falavam os
Muni-s (sábios).

I.30 - Aquele que é instruído, que reflete e possui auto controle, após examinar e
analisar o tempo, lugar, idade, ocupação, potencialidade do aluno, deve adaptar o
ensino do Yoga de acordo com o indivíduo.

I.31 - Em relação a estrutura do corpo, algumas pessoas são pesadas, outras magras,
algumas são frágeis, umas fora de forma/assimétricas e outras mancas. Por este
motivo, todos os āsana-s não são apropriados para todas as pessoas.

I.32 - Os sabíos visionários (rsi-s) enfatizaram que a prática de Yoga precisa ser
introduzida somente após serem investigadas as capacidades e as incapacidades da
pessoa.

154
I.33 - Durante a prática, a exalação (recaka), a inalação (puraka) e a retenção de ar
(kumbhaka) devem ser realizadas de acordo com a capacidade de cada um, seguindo a
técnica ujjāii.

I.34 - Durante a exalação, inalação e retenção, a mente precisa estar concentrada na


respiração. As técnicas de recaka, puraka e kumbhaka servem sempre para sustentar a
vida.

I.35 - Enquanto a respiração estiver no corpo, se diz que o corpo está vivo. Este fato é
sabido por todos, e por isso a regulação da respiração é enfatizada.

I.36 - Em todos os momentos a exalação e a inalação precisam ser longas e suaves.


Quando o ar é expelido, este processo é chamado de recaka.

I.37 - Os versados nas escrituras chamam de puraka, inalação, quando o ar entra no


corpo através do empenho correto.

I.38 - As ações que ajudam a sustentar a vida, e o culto ao divino, se tornam fáceis para
aqueles que se encontram livres de doenças e possuem um corpo forte.

I.39 - Independente de ser rico, rei ou uma pessoa instruída, quando se cai doente
não se tem paz mental.

Sem saúde dificilmente se tem paz. Sem paz é muito difícil conseguir entender e
cumprir os deveres pessoais.

I.40 - Para a pessoa cujo corpo está sob controle, os sentidos estarão também sob
controle. Uma vez que os sentidos estiverem sob controle, terá sempre paz na mente.

I.41 - Os sentidos de percepção (jñānendryia-s) são cinco, os sentidos de ação


(karmendriya-s) também são cinco e a mente (manas) é o décimo primeiro sentido
(indriya). Os textos declaram existirem dez prāṇa-s.

Os jñānendryia-s são: orelhas (ouvir), pele (toque), olhos (visão), língua (paladar) e
nariz (olfato).

Os karmendriya-s são: voz, braços, pernas, órgão excretor e órgãos sexuais.

Os dez prāṇa-s são divididos em duas classes:


Māha vāyu (principais vāyu-s): prāṇa, apāna, vyāna, udāna e samāna.
Upa vāyu (vāyu-s secundários): nāgā, kuurma, krkara, devanatta e dhananjaya.

I.42 - Pelo distúrbio do Prāṇa, todos os indriya-s (sentidos) se desorientam e movem-se


junto com a mente na direção dos objetos externos, que são perniciosos. Por isso, pela
exalação, inalação e retenção, o prāṇa precisa ser regulado.

155
I.43 - Muni-s tem dito que o corpo humano é composto por seis Kosha-s (recipientes).
São eles: śvāsa kośa, anna kośa, mūtra kośa, mala kośa, raja kośa e vīrya kośa.

śvāsa kośa é relacionado à parte dos pulmões; anna kośa à parte do estômago; mūtra
kośa à parte da bexiga e do sistema urinário; mala kośa ao sistema excretor; raja kośa
ao sistema reprodutivo feminino; vīrya kośa ao masculino.

I.44 - Os Kośa-s são limpos através de pranayama. Quando os Kośa-s estão limpos, o
corpo todo está limpo. Para aqueles que praticam Yoga, auxiliado pela ingestão de
comida adequada, até mesmo os sentidos, indriya-s, se tornam limpos.

I.45 - Sem a pratica de āsana-s, prāṇāyāma não pode ser governado. E sem disciplinar
a respiração, a firmeza mental nunca será alcançada.

I.46 - Aquele cuja mente é estável possui felicidade e tranquilidade. Para esta pessoa
tudo é facilmente alcançado. Para pessoas que são agitadas pelos objetos dos sentidos,
prāṇāyāma é a melhor solução.

I.47 - Agora serão apresentados alguns āsana-s especiais que não podem ser
encontrados em outros textos.

I.48 - Quanto a isso, os elevados Yogi-s só mostraram poucos āsana-s como exemplo.
No Dhyāna Bindu Upaniṣad, Śiva diz a Pārvati “existem tantos āsana-s quanto espécies
de seres viventes”.

I.49 - Por isso, quem é a autoridade capaz de contar o número de āsana-s existentes?
Se alguém diz que há um número de āsana-s, isso é um reflexo da falta de seu
conhecimento.

I.50 - Segue a lista de āsana-s: vasiṣṭhāsana, kauṇaḍinyāsana, ūrdhvakukkuṭāsana,


aṣṭākrāsana, uttāna mayūrāsana, setubandhāsana.

I.51 - Uttānapādāsana, krauñcāsana, marīcyāsana, vīrabhadrāsana, naṭarājāsana,


trikoṇāsana, supta prasārita pādānguṣṭhāsana.

I.52 - Afirma-se que a parivṛtti (torção) da região do umbigo (jaṭhara parivṛtti) possui
três variações. Existe também variações de baddha koṇāsana, também supta
koṇāsana, ūrdhva koṇāsana e outras.

I.53 - Então, existem dois tipos de invertidas de maṇḍala-s, em śīrṣāsana e em


sarvāṅgāsana.

I.54 - Daṇḍāsana é também de dois tipos, invertida (viparīta daṇḍāsana), e sentada. É


dito que existem sessenta e seis variações de sarvāṅgāsana e śīrṣāsana.

156
I.55 - Independente de sentada ou de pé, enquanto se executa āsana em terapia
(cikitsa), diferentes variações precisam sempre ser utilizadas. Durante a prática de
āsana, a respiração precisa ser regulada.

I.56 - Durante a prática de āsana-s, os movimentos da respiração precisam ser


regulados. Assim como as impurezas no metal são queimadas pelo calor e derretem,
também as impurezas dos sentidos são queimadas pela prática de prāṇāyāma.

I.57 - O ritmo respiratório (referente aos ciclos de inspiração e expiração por minuto) é
genericamente equivalente para todos. Os yogi-s reduzem a quantidade de ciclos por
minuto pela prática de prāṇāyāma.

Segundo T.Krishnamacharya, prāṇāyāma possui poder purificador, pois atua


precisamente no processo de purificação dos elementos que constituem o corpo
(bhūta śuddhi – purificação dos elementos).

Aqueles que compreenderam o processo do Yoga, cuidam de sua respiração e não a


estressam. O trabalho é feito para se respirar menos por minuto. Atua-se no processo
de longevidade quando se realiza menos respirações por dia. Assim acreditavam os
yogi-s do passado. T.Krishnamacharya instruía praticantes em estágios avançados de
prática de āsana a respirarem de uma a duas vezes por minuto no āsana. Exemplo:
inspirar em 15 segundos e expirar em 15 segundos, ou inspirar em 30 segundos e
expirar em 30 segundos. Ou criar pausas com retenção da respiração durante o āsana.

I.58 - O Yogi cujo prāṇa vāyu é retido no suṣūmṇā nādī, canal central que percorre
todos os principais cakras e os nutre, tem uma vida longa e livre de doença.

“Cujo prāṇa vāyu é retido no suṣūmṇā nādī” refere-se ao movimento dos 5 vāyu-s.
Sendo o prāṇa vāyu o principal, o texto resume tratando apenas deste.
A saúde depende da capacidade de manter o prāṇa no corpo e os 5 prāṇa-s
equilibrados. Reduzindo o ritmo da respiração, os movimentos dos cakra-s também
reduzem e se equilibram, isso gera longevidade.

Reduzir o ritmo da respiração não é assumir um ritmo letárgico. A mente quando


muddha é tomada por tama guṇa (qualidade de peso, letargia, escuridão). A mente
quando ekāgrata e niruddha assume uma respiração sublime.

I.59 - É devido a este propósito que o movimento do prāṇa precisa ser sabido. Os três
componentes da respiração são: recaka (exalação), pūraka (inalação) e kumbhaka
(retenção).

I.60 - No processo de disciplinar a respiração, os três tipos de Bandha-s (restrições), que


são o uḍḍīyāna bandha, mūla bandha e jālaṁdhara bandha, são de grande
importância.

157
I.61 - Para aquele que não sabe claramente sobre os aspectos especiais dos três
bandha-s, até mesmo quando se praticando prāṇāyāma os benefícios aclamados não
ocorrerão.

Aqui vale ressaltar que é preciso saber com clareza quando não realizar tais ações
(bandha-s), devido a alguma restrição. O śloka realça a importância da prática de
prāṇāyāma realizada da maneira clássica.

I.62 - Após exalar, o abdome abaixo e acima do umbigo, juntamente com a contração
do mūla, centro do assoalho pélvico, precisa estar firme e estavelmente colocado para
dentro através de um empenho especial.
Pelo sloka não conseguiremos entender e realizar o bandha, é necessário a instrução
de um professor. Mas é possível ter noção do local e do cuidado, precisando estar
“firme e estavelmente colocado para dentro” e cuidadosamente realizado através de
“empenho especial”. E assim praticar prāṇāyāma.

I.63 - Os olhos precisam estar fechados e não podem estar se movendo para os lados,
para cima ou para baixo. A cabeça não deve se mover e os lábios devem permanecer
fechados.

I.64 - Uḍḍīyāna bandha pode ser realizado de pé, sentado ou deitado, como a pessoa
preferir, porém sempre deve ser realizado antes de se alimentar.

Em pé, sentado ou deitado contanto que a coluna vertebral esteja alinhada, ou em


posição neutra, sem retroflexão, extensão ou torção.

I.65 - Este bandha destrói doenças do baço, fígado e outras doenças que ocorrem na
região do abdome. Este bandha ajuda no movimento do prāṇa pelo suṣūmṇā. Sendo
aprendido diretamente pelo professor, este bandha deve ser praticado com grande
disciplina (comprometimento).

I.66 - Na prática inapropriada deste bandha, doenças nascerão pela perturbação do


prāṇa. Por isso, uḍḍīyāna bandha deve ser praticado, mas precisando ser aprendido de
um professor versado nos śāstra-s.

Śāstra-s são escrituras que trazem os ensinamentos derivados dos Vedas.

O śloka aponta o perigo iminente da prática inadequada deste bandha. Quando se


força os limites, o Pitta pode ser agravado e os sentidos ficarem demasiadamente
estimulados, por exemplo. E, deste agravamento, muitas doenças decorrem.

A execução da técnica deve ser precisa e seu propósito sempre justificado. Não se
aprende tal técnica lendo livros. É preciso ser instruído e observado de perto para
entender como se pratica este bandha e saber de suas implicações.

I.67 - Uḍḍīyāna bandha é a base para o Jālaṁdhara bandha. Pela prática regular e
disciplinada de uḍḍīyāna bandha, os nāḍī-s e cakra-s se tornam limpos e fortes.

158
Este śloka e os próximos ressaltam os benefícios da prática de uḍḍīyāna bandha.

I.68 - As impurezas no fígado e no baço serão limpas [através da prática de uḍḍīyāna


bandha]. A digestão melhora e as doenças relacionadas ao trato urinário são
destruídas.

I.69 - Este grupo de doenças que ocorrem pela contaminação do apāna vāyu são
totalmente eliminadas e o sangue também é purificado.

Em alguns casos, o bandha ajuda a regular a menstruação quando há retenção de seu


fluxo (não no caso de excesso de fluxo).

Os āsana-s de torção ajudam a preparar o corpo para este bandha. Estas posturas
relaxam os órgãos internos e a musculatura do abdome. Nelas, a respiração também é
trabalhada, principalmente a ação da expiração, que deve eliminar totalmente o ar.

Esta consciência ajuda a compreender o processo de realizar o bandha.

I.70 - Uḍḍīyāna bandha elimina o cansaço e a fadiga. Estes benefícios são alcançados
quando, em paralelo, se come moderadamente e através de uma alimentação sāttvica.

I.71 - Agora, o procedimento para realizar o bandha chamado jālaṁdhara bandha, que
bloqueia o fluxo da essência, rakta, pelo siras, será explicado.

Rakta é também chamado amṛtam ou jālaṁ, que são todos nomes que se referem ao
néctar ou a essência da vida. O siras é um nāḍī (canal por onde passa a energia sutil)
situado no espaço entre as narinas e a garganta.

Os Yogi-s explicavam que o Rakta, amṛtam ou jālaṁ situa-se acima da garganta, no


centro da cabeça. Lá estaria estocado o elixir da vida. Deste local, este néctar nutre
nosso sistema humano conforme sua essência vai sendo “gotejada”. Seguindo esta
analogia, este elixir também é constantemente consumido pelo fogo da região do
estômago, jaṭarāgni. O movimento de jālaṁdhara bandha é a ação que regula o fluxo
deste néctar para que não seja consumido inadequadamente pelo fogo gástrico.

O jālaṁdhara bandha, além de regular este fluxo que vem da cabeça para o tronco,
também regula o fluxo de energia que vem do tronco para a cabeça e para os sentidos
quando se pratica prāṇāyāma e uḍḍīyāna bandha.

I.72 - Na tradição do Yoga, este bandha é chamado jālaṁdhara bandha. A essência do


rakta flui pelo canal siras e por si só se espalha, e sustenta o corpo e os sentidos. Por
isso é chamado jālaṁdhara.

Jālaṁdhara significa segurar (dhara) o jalaṁ. Os Yogi-s acreditavam que regulando o


fluxo desta essência potencializam e prolongam a vida. O desperdício ou desregulação
desta essência diminui o tempo de vida.

159
I.73 - Este bandha pode ser praticado em padmāsana, brahmāsana, siddhāsana,
svastikāsana, vajrāsana, baddha koṇāsana, badrāsana e mūlabhandhāsana.

I.74 - Alguns Yogi-s dizem que daṇḍāsana, krauñcāsana e vīrāsana também são
adequados para jālaṁdhara bandha.

I.75 - Contraindo o pescoço e trazendo o queixo firmemente para o peito, os olhos


devem focar o espaço entre as sobrancelhas e estarem fechados.

A descrição acima, quando tomada literalmente, irá conduzir o praticante ao engano


de tentar trazer o queixo para o esterno. Este movimento desalinha a relação entre a
cabeça e a coluna vertebral. O movimento de recolher o queixo precisa ser
acompanhado do movimento de ascender o esterno para o queixo. Esta informação
será confirmada no próximo śloka.

I.76 - Os que são experientes nesta prática, mantêm o corpo vertical e a coluna ereta
como uma vara, para que não haja desalinhamentos físicos no corpo. O local onde se
senta também precisa estar nivelado.

I.77 - Este bandha precisa ser realizado com as mãos nos joelhos como um bastão, sem
mover e direcionando o queixo no côncavo entre as duas clavículas.

Este śloka dá a precisão do movimento de posicionamento do queixo.

I.78 - Para iniciantes, algum desconforto pode ocorrer no pescoço e cabeça. Este
desconforto desaparece rapidamente com a prática regular.

I.79 - Prāṇāyāma, recitação mental de mantra, rituais, meditação e iniciação de


mantra para o aluno devem ser feitas em uma posição sentada porque isto cria mais
firmeza na mente.

I.80 - Por este Bandha, o homem nunca perde sua vitalidade (vīrya). O Rajo kośa, órgão
reprodutivo feminino, é limpo. E quanto a isso não há dúvidas.

A palavra vīrya serve para vitalidade e para o sêmen. No caso do homem, o bandha
regula a sexualidade. No das mulheres, o bandha purifica seu sistema reprodutivo.

I.81 - Como resultado do jālaṁdhara bandha, não haverá deturpação nos vāyu-s nem
doenças ligadas ao coração. Também não haverá doenças nos olhos, nariz, dores nos
ouvidos, sede, e suas causas.

As práticas de Yoga ativam o sistema, mas esta bandha relaxa o coração. Quando o
coração é estimulado, mas sem estresse, sua saúde é preservada. Ele regula
efetivamente o udāna vāyu e o prāṇa vāyu, e por isso harmoniza os vāyu-s. As causas
das doenças nos olhos, nariz, etc., também estariam ligadas ao udāna vāyu. O udāna
vāyu controla os sentidos.

160
I.82 - Este bandha não deve ser realizado quando se está de pé, deitado ou andando,
exceto em alguns āsana-s específicos. Este bandha não deve ser feito após comer,
beber muita água ou quando se fala.

I.83 - Os que são obesos ou que tem pescoço volumoso, precisam antes [de realizar o
bandha] perder peso. Caso contrário, o bandha não gera frutos. E isto não é falha das
escrituras.

I.84 De acordo com o adhikāra de cada um, mantra-s devem ser usados em
prāṇāyāma. Prāṇāyāma beneficia o tratamento de todas as doenças.

Adhikāra significa a necessidade e capacidade pessoal de aprender e praticar as


ferramentas do Yoga.

Executar prāṇāyāma recitando mentalmente mantra-s é a maneira ancestral de


contagem de tempo. O tempo da inalação, exalação e retenções não era contado em
segundos, mas em mantra-s.

A tradição do Yoga chama samantraka prāṇāyāma quando se recita mentalmente


durante o prāṇāyāma. E amantraka prāṇāyāma quando não se utiliza mantra-s
durante o processo.

Para contextualizar: no passado, apenas a membros da classe sacerdotal era permitido


praticar samantraka prāṇāyāma. Provavelmente por isso a prática de amantraka
prāṇāyāma (sem recitação mental) seja mais popular atualmente. Mas aqueles que já
tiveram a experiência em ambas as práticas sentem a diferença entre contar segundos
e seguir o tempo de um mantra. O “lugar” em que a contagem e o mantra ocorrem
parecem ser diferentes. Sem ter nenhum embasamento científico, parece que a
recitação mental do mantra e a contagem dos segundos ocorrem em partes diferentes
do cérebro.

Será de acordo com a necessidade e capacidade de cada pessoa que o mantra deverá
ser escolhido para fazer parte do prāṇāyāma. O praticante precisa ter uma conexão
com o mantra ou sílaba que irá recitar. Caso contrário, o efeito procurado demorará a
ocorrer ou não ocorrerá.

I.85 - O professor deve examinar o padrão respiratório e a potência da pessoa, antes de


proceder com o tratamento. Caso contrário, não irá produzir os frutos esperados.

A observação do padrão respiratório é fundamental para que o mantra não seja longo
demais para cada componente da respiração. Dependendo da técnica, o mantra é
recitado algumas vezes durante a inspiração, a expiração e as retenções.

E o mantra é escolhido dependendo da característica da pessoa e sua condição atual.


Por isso, deve-se observar também a potência (energia) da pessoa antes de introduzir
o mantra.

161
I.86 - Neste mundo, pessoas com completa fé em Deus e pessoas com completo não-
apego são raras. É por isso que os textos, śāstra-s, falam sobre os frutos ou sobre os
resultados em seu início.

É importante falar sobre os frutos para motivar as pessoas. Pois somente com
garantia/segurança, nós que não temos muita fé, iremos praticar.

I.87 - Somente com garantia de resultados, as pessoas se esforçam para qualquer coisa
neste mundo. Os benefícios importantes de samantraka pranayama são estabilidade
mental, libertação do sofrimento, vida longa e o desenvolvimento de bhakti, devoção.

I.88 - Todos aspectos referentes à prática de Yoga devem ser realizados como uma
oferenda ao supremo.

O śloka refere-se a Nārāyaṇa, a imagem do supremo nesta tradição. A mensagem é


realizar aquilo que precisa ser feito, mas simplesmente por ser um dever ou um
comprometimento com o todo. A motivação seria fazer parte ativa e necessária no
todo. O ganho é conseguir cumprir a missão. Os resultados das ações não são ganhos
nem perdas. O resultado são apenas fatos. Tudo o que fazemos é uma oferenda ao
todo ou um descaso com o todo

Este śloka complementa os śloka-s anteriores. Primeiro foi dito que existem poucas
pessoas com devoção e desprendimento (I.86), depois que a maioria só é motivada
pelos vislumbrar dos ganhos (I.87), e aqui neste śloka a instrução do texto de que a
prática deve ser uma oferenda.

I.89 - Assim como na prática de āsana, os procedimentos adequados nunca devem ser
abandonados. Os iniciantes em prāṇāyāma devem sempre seguir o procedimento
correto.

O procedimento adequado é a abordagem e aplicação individualizada para cada


pessoa. Ou seja, manter o procedimento do āsana, viniyoga, em pranayama também.

I.90 - No início, a exalação e inalação precisam ser realizadas de acordo com a


capacidade do indivíduo. Então, (estabilizado isso) deve-se começar a praticar retenção
da respiração. Após isso, deve-se focar no prolongamento da exalação, inalação e
retenção.

Precisamos observar que o trabalho na exalação é sempre evidenciado como o


primeiro. Assim devemos proceder: primeiro regulamos a exalação, depois a
inspiração, para, então, mexer com retenções. A partir daí podemos pensar em
prolongar tudo.

I.91 - Os sabidos dizem que a respiração deve ser suave e feita pelo nāḍī da garganta,
produzindo um leve som, sem interrupção. O som deve ser contínuo e feito com a boca
fechada.

162
Temos através deste śloka a descrição da técnica ujjāyī.

I.92 - Adicionalmente, a retenção da respiração após exalação e inalação deve ser feita
de acordo com a capacidade de cada um, sentado em um āsana apropriado, com as
costas eretas e os olhos fechados.

I.93 - Prāṇāyāma, assim como bandha-s, precisam ser feitos antes de se alimentar ou
seis horas após a refeição, para então a inalação e exalação estarem longas e suaves, e
não rápidas.

Neste sloka, apresentam-se pré-requisitos.

I.94 - No início, somente sāma vṛtti prāṇāyāma devem ser realizados. Após este, se
começa a praticar viṣāma vṛtti prāṇāyāma.

Sama vṛtti e viṣāma vṛtti prāṇāyāma não são tipos de prāṇāyāma-s, mas sim
características.

Sama vṛtti prāṇāyāma é quando os componentes da respiração são iguais. Exemplo:


inalar em 4 segundos e exalar em 4 segundos. Ou inalar em 4, reter por 4, exalar em 4
e reter sem ar por 4 segundos.

Já viṣāma vṛtti prāṇāyāma é quando os componentes da respiração não são iguais.


Exemplo: inspirar em 4 segundos, reter por 16, exalar em 8 e reter sem ar por 4
segundos.

I.95 - Prāṇāyāma realizado sem os três bandhas é sem utilidade. Não só é sem utilidade
como pode dar espaço para todos tipos de doenças.

Este é um sutra de precaução. Pelo que me foi ensinado, o śloka ressalta a intenção de
se ensinar e praticar prāṇāyāma da maneira clássica. Para aqueles que não podem
realizar desta maneira, o prāṇāyāma deve ser adaptado de acordo com sua
capacidade.

I.96 - Prāṇāyāma são conhecidos por dois tipos, amantrika, sem mantra, e samantrika,
com mantra. A utilização do mantra sempre depende da necessidade e capacidade do
aluno.

Segundo T.Krishnamacharya, o mantra representa nossa relação com o divino. Isto nos
faz refletir que sua entonação deva ser um ato devocional, além de que a relação que
o praticante tenha com o mantra seja uma conexão especial.

I.97 - Prāṇāyāma realizado com mantra é chamado Sagarbha prāṇāyāma, e o


realizado sem mantra chamado Vigarbha prāṇāyāma. Os textos exaltam prāṇāyāma
realizado com mantra, enquanto que o sem mantra é considerado inferior.

163
I.98 - Sagarbha prāṇāyāma destrói rapidamente as agitações mentais, aumenta a
duração da vida, limpa a mente de pesos e remove doenças.

I.99 - Pelo prāṇāyāma, dhāranā (concentração) e dhyānaṁ (meditação) de fato


ocorrem. Portanto, a regulação da respiração é conhecida por ser sempre frutífera.

O sloka coloca prāṇāyāma como base para concentração e meditação.


I.100 - Os textos descrevem dez tipos de prāṇāyāma. Eles são ujjāyī, nāḍīśodhana,
sūryabhedana, bhastrikā, sītkāṛī, śītalī, laharī, bhrāmarī, kapālabhāti e āndolī.

Glossário:

Ujjāyī – restrição parcial da glote durante o processo respiratório. Esta restrição


provoca um som. Um detalhe importante é que a garganta precisa estar relaxada. A
obstrução ocorre apenas na glote.

No início, o som pode ser escutado externamente, mas, conforme o praticante vai
desenvolvendo a técnica, o som fica quase inaudível, ou inaudível externamente,
embora internamente ocupe toda a atenção do praticante.

Esta restrição provoca fricção do ar com a glote. Isto gera calor e incrementa a vontade
de abrir o peito, daí o nome, conquista da parte superior do peito.

Ujjāyī pode ser utilizado para praticar outros tipos de prāṇāyāma, se for o caso.

Nāḍīśodhana – este prāṇāyāma é conhecido popularmente como respiração


alternada, embora seu nome seja limpeza dos canais sutis.

Um ciclo desta técnica ocorre da seguinte maneira: inspirar pela narina esquerda
parcialmente aberta e exalar pela narina direita parcialmente aberta. Então inalar pela
própria narina direita parcialmente aberta e exalar pela narina esquerda parcialmente
aberta.

Inúmeras contagens e pausas podem ser realizadas em nāḍīśodhana.

Sūryabhedana – em sūryabhedana a respiração sempre ocorre inalando pela narina


direita parcialmente aberta e exalando pela narina esquerda parcialmente aberta.

Sūryabhedana incrementa a energia solar no sistema.

Bhastrikā – chamada popularmente de ‘respiração diafragmática’, bhastrikā em outros


textos é considerada um kriya, prática de limpeza. O nome popular de ‘respiração
diafragmática’ se deve provavelmente pelo movimento rápido da barriga, mas é
importante ressaltar que toda respiração é diafragmática.

Da maneira clássica, bhastrikā seria respirar rapidamente através de um movimento


ativo do abdomên alternando as narinas.

164
Esta respiração exige total atenção e coordenação. Embora seja ativa, não deve ser
forte ou estressante. Ela limpa os sinos e incrementa o agni.
Sītkāṛī – inalação feita pela boca enquanto a ponta da língua se localiza atrás dos
dentes da frente. O ar passa pela língua e resfria a saliva. Durante a inspiração, o rosto
se move para cima acompanhando o ritmo da inalação. Antes da exalação, a língua se
recolhe, a cabeça volta para a posição de jālaṁdhara bandha, a mão alcança as
narinas, para então exalar em ujjāyī e alternadamente por uma narina parcialmente
aberta de cada vez.

Śītalī – nesta técnica respiratória a língua imita um canudo e a inspiração feita pela
boca, com o ar passando lentamente pela língua neste formato de canudo. Durante a
inspiração o rosto se move para cima acompanhando o ritmo da inalação. Antes da
exalação, a língua se recolhe, a cabeça volta para a posição de jālaṁdhara bandha, a
mão alcança as narinas, para então exalar em ujjāyī e alternadamente por uma narina
parcialmente aberta de cada vez.

Laharī – respiração curta e ativa com uma narina de cada vez.

Bhrāmarī – expiração realizando um zumbido, como o zumbido de abelhas.

Kapālabhāti – respiração ativa, forte e rápida (mas não ofegante, ou agitada) com o
abdômen.

Āndolī – respirar enquanto a linha está enrolada.

I.101 - Exceto em Bhastrikā e Kapālabhāti, todos os outros tipos de prāṇāyāma-s


devem ser realizados com os três bandha-s. No caso de Bhastrikā e Kapālabhāti,
apenas jālaṁdhara bandha é feito.

I.102 - Todos os prāṇāyāma-s citados podem ser realizados em Sama ou Viṣama Vṛtti.
No caso de Bhastrikā e Kapālabhāti, Viṣama Vṛtti não é permitido.

I.103 - Assim como entre os āsana-s, śīrṣāsana e padmāsana são considerados mais
elevados, entre os tipos de prāṇāyāma, o nāḍīśodhana é o mais importante.

Śīrṣāsana e padmāsana são āsana-s que necessitam trabalho prévio. Não me refiro a
entrar e sair do āsana, mas permanecer com conforto. Para realizar padmāsana é
preciso trabalhar a parte inferior do corpo, e para śīrṣāsana trabalhar a parte superior
do corpo. Ao mesmo tempo, quando se estabiliza a postura, Śīrṣāsana irá fortalecer a
parte superior do corpo, e padmāsana irá fortalecer a parte inferior do corpo.
Este sloka também é uma exaltação a nāḍīśodhana. Quando realizada com os três
bandha-s, beneficia todo o corpo.

I.104 Outros tipos de prāṇāyāma provocam benefícios limitados, já nāḍīśodhana possui


inumeráveis benefícios.

165
I.105 Os benefícios que se obtém serão proporcionais à fé da pessoa. Enquanto se
lembra constantemente do supremo, deve-se comer limitadamente e comida sāttvica
(fresca, e que gere leveza).
Os resultados dependem da fé e da abertura.

I.106 - Para medir a duração da respiração, ‘oṁ’ é aprovado pelos textos. Sendo sama
vṛtti ou viṣama vṛtti, prāṇāyāma precisa ser feito com mantra (samantraka).

Este sloka reverencia a importância do uso do mantra na prática de prāṇāyāma.


Nesse sentido, apresenta a possibilidade de usar o mantra oṁ para medir a duração
da respiração.

I.107 Todos os mantra-s se fundem na coroa dos veda-s, que é o praṇava, oṁ, assim
como todos os rios se fundem no oceano.

Segundo os sábios, a partícula oṁ inclui todos os mantra-s (e falará até o 114).

I.108 No Yogasūtra de Patañjali, é dito que o que representa paramātma, o ser


universal, é praṇava. Sua recitação precisa ser realizada se meditando em seu
significado.

I.109 Aquele que age para agradar ao supremo terá tudo o que quiser. Independente
da mente estar agitada, pela reflexão no significado do mantra que lhe foi dado, a
agitação é reduzida.

Quando se age sem egoísmo, se consegue tudo. O que é esse tudo? Quem age pelo
bem maior, na verdade, age sem querer nada em troca, age para se doar na ação.

O mantra, como todas as técnicas de Yoga, precisam ser executadas corretamente


para gerarem resultados. Além da reflexão sobre o significado, a maneira com que se
entoa e a devoção devem ser levados em conta.

I.110 - Aquele que não compreendeu o supremo irá falar sobre os muitos mantra-s com
muita convicção. E fala sobre quem é o supremo, Śiva, Viṣṇu ou Brahma.

I.111 - No entanto, todos os Upaniṣad-s proclamam que Nārāyaṇa é o maior entre os


maiores, e é o supremo.

Este é o ponto de vista da tradição que Nammālvār e Nāthamuni seguiam.

I.112 - No texto Antaryāmi Brāmaṇa também, esta mensagem é claramente


apresentada. Pessoas que estão atrás de prakṛti, matéria/ganhos materiais, são
incapazes de estabelecer claramente esta verdade (tattva verdade, essência).

Uma mente nublada pelas nuvens do desejo não consegue enxergar o que há além das
nuvens. Por mais que o diga, e por mais que se saiba, por não conseguir ver também
não se conecta. E continua associada à matéria como se apenas existisse a matéria.

166
I.113 - Para aquele que está absorvido no elevado, Praṇava é o único mantra. Quando
se reflete em seu significado, então toda confusão ou dúvida sobre Paramātma não lhe
ocorrerá.

Mais uma vez somos convidados a refletir sobre o quão poderoso é a recitação
adequada do mantra que reverencia o supremo. Se não conseguimos este resultado de
sair da confusão e da dúvida, é porque ainda não nos habilitamos verdadeiramente a
entoar o mantra com a precisão mental e sinceridade suficiente para trazer tal efeito.

I.114 - Sabendo disso, Bhagavāgan Patañjali realça o uso do Praṇava em prāṇāyāma e


dhyānaṁ como o melhor a se fazer.

Bhagavāgan é um termo de respeito máximo. Significa o ser supremo. Embora este


termo não apareça nos vedas é bastante usado para se referir aos Avatars e a Buddha,
por exemplo.

I.115 - Alguns sábios proclamam o uso do Gāyatrī juntamente com Sapta vyāhṛti e
Śiras, e a reflexão sobre o seu significado, enquanto se pratica prāṇāyāma.

Sapta vyāhṛti são os 7 sons da criação:


Oṁ bhūḥ - terra – plano terrestre
Oṁ bhuvaḥ - água – atmosfera
Oṁ suvaḥ - fogo – céu, região solar
Oṁ mahaḥ - ar – plano espiritual que antecede o solar
Oṁ janaḥ - éter – plano espiritual que antecede o anterior
Oṁ tapaḥ - inteligência – tejas ou śakti
Oṁ satyam – consciência – verdade suprema ou Brahma

O Gāyatrī mantra aparece no Ṛg veda 3.62.10, e é atribuído a Viśvāmitra. O mantra


também é chamado Sāvitrī mantra, por prostrar reverência à deidade solar Sāvitrī.

Oṁ
tatsaviturvareṇyaṃ - a divina entidade chamada Savitṛ, entidade solar, a responsável
pela criação.
bhargo – auto iluminado
devasya – divino
dhīmahi - fluido como água (no sentido de permear tudo)
dhiyo – o intelecto, o ser
yo naḥ pracodayāt – que nos mova, que nos inspire

Śiras:
Oṁ āpo (água) jyoti (luz) raso (essência) amṛtaṁ (néctar/imortalidade) brahma
(supremo) bhūḥ (terra) bhuvassuvar (água e terra) Oṁ

167
I.116 - Esta combinação deve ser utilizada apenas em viṣama vṛtti e não em sama vṛtti
prāṇāyāma.

I.117 - Quando a respiração é puxada para dentro e para fora três vezes juntamente
com o Gāyatrī, sapta vyāhṛti, Śiras e o Praṇava, isto é chamado prāṇāyāma. Assim é
proclamado pelo grande ṛṣi Manu em sua obra Manu Smṛti.

Fim do primeiro capítulo do Yoga Rahasya de Nāthamuni

168
Capítulo II - Viniyogādhyāyaḥ

II.1 - Agora, com o propósito de apresentar o correto processo de uso das diferentes
aṅga-s (partes) do Yoga, Nāthamuni apresenta o capítulo conhecido como
Viniyogādhyāyaḥ.

O estudo do conteúdo deste capítulo é extremamente importante para a aplicação do


Yoga. Ao invés de padronizar o Yoga, o texto acentua a codificação do Yoga para a
necessidade de cada indivíduo. Além disso, explica como o processo de aplicação do
Yoga ocorre em krama-s (estágios).

II.2 - Os conhecedores, após muita reflexão, proclamaram que o Yoga, que possui oito
membros, pode ser dividido em três tipos de prática: Sṛṣṭi Krama, Sthiti Krama e Antyah
Krama.

Esta perspectiva esclarece muitas dúvidas que hoje o praticante moderno enfrenta.
Estes três krama-s referem-se às 3 fases da vida. Através desta explicação, o texto
revela a pedagogia aplicada às práticas de Yoga. Sabendo desta pedagogia, o
praticante não mais se perderá quanto ao objetivo de sua prática pessoal nem quanto
ao objetivo de cada ferramenta do Yoga.

II.3 - Compreendendo que Sṛṣṭi Krama é para Brahmacārī, Sthiti Krama para Gṛhastha,
e Saṁhāra Krama (Antyah Krama) para Sanyāsi, o Yoga deve ser praticado de acordo.

Brahmacārī
É a fase da vida que vai da infância até a juventude. Neste período, o indivíduo se
dedica ao estudo sobre as escrituras e ao auto estudo. Portanto, além dos textos, a
intenção é direcionada para a descoberta individual de suas potências e fraquezas e ao
trabalho de auto lapidação.

As práticas são realizadas para afiar o foco mental, trabalhar a memória, explorar e
canalizar o corpo e os sentidos, e ser apresentado corretamente às técnicas que
ajudarão neste processo.

Tradicionalmente, esta fase começa na infância, quando a criança é iniciada e se


estende até o indivíduo fazer parte ativa na sociedade, iniciando um ofício e, ou,
iniciando uma vida familiar.

Quando nos referimos à vida ativa não quer dizer que a juventude não tenha voz ativa.
O fato é que após assumir compromissos como família e ofício, o foco de sua prática
muda. A prioridade é zelar pela família e se concentrar em aplicar seus dons no
trabalho.

169
Gṛhastha
É a fase adulta e de responsabilidades sociais. O foco desta fase é a aplicação do
conhecimento que fora antes adquirido para o cumprimento de seus deveres, dharma.
Então todas as práticas são voltadas para o propósito de tornar o indivíduo mais ativo
e eficaz. Mas, também, protegê-lo de eventuais estresses e problemas de saúde que
tendem a surgir devido à intensidade desta fase.

Sanyāsi
Após cumprir seus deveres sociais e obter sabedoria sobre as coisas do mundo e sobre
si através das experiências que viveu, o indivíduo volta sua atenção para mergulhar
fundo no processo meditativo. A pessoa então se retira dos compromissos sociais do
mundo e se volta para experiência interna.

Isto não significa uma fuga do mundo. Esta fase ocorre após os deveres sociais, como
realização dos ofícios, acompanhamento dos filhos, contribuição para a sociedade,
terem sido cumpridos. E os deveres individuais, como o desenvolvimento de seus dons
e a descoberta sobre si, também já foram explorados.

Esta fase também não significa repúdio ao mundo, já que se continua vivendo nele. O
que ocorre é um desengajamento natural em relação ao mundo material. Após obter
experiência sobre a vida e sobre si, e não sentir mais tantos desejos sensoriais
evocados pelo mundo material, o praticante se sente livre para se devotar às práticas
meditativas e ao desprendimento.

II.4 - O krama que dá força aos músculos, aos sentidos e ao corpo é chamado Sṛṣṭi
krama.

II.5 - Até se atingir a idade de vinte e cinco anos, esta pessoa é chamada Brahmacārī.
Isto é aplicado apenas para Dvijā-s - iniciados, duas vezes nascidos - (aqueles que
buscam sabedoria), para os outros isto é flexível.

Nesta fase o foco é purificar o corpo, os sentidos e a mente. Em relação às castas,


alguns são instruídos com certos mantra-s, e são chamados de Māntrika. Para outros
esta fase de instrução não conta com certos mantra-s, e são chamados Tāntrika. O
próximo śloka complementa este pensamento.

II.6 - Estes garotos, que na idade adequada são iniciados de acordo com a tradição dos
Veda-s com o professor apropriado, e lhe são ensinados o ramo dos Veda-s dos quais
eles pertencem, estes são Brahmacārī-s.

Tradicionalmente, por volta dos oito anos de idade o pai fazia a iniciação da criança lhe
ensinando o Gāyatrī mantra. Depois a criança era instruída por um professor que lhe
ensinava de acordo com sua linhagem.

170
II.7 - Os diferentes membros do Yoga devem ser praticados todos os dias para nutrir o
corpo e os sentidos, e para fortalecer a memória, para que então a criança lembre dos
Veda-s e de seu significado.

II.8 O Brahmacārī morando no gurukula precisa praticar os diferentes membros do


Yoga pelo propósito de remover os obstáculos do processo de aprendizado, inclusive
doenças.

II.9 - Brahmacārī-s sob o cuidado do professor devem ser sempre disciplinados e devem
praticar Yoga com uma mente estável, para o desenvolvimento do corpo, dos sentidos
e dos diferentes órgãos.

II.10 - Somente esta prática (referente a abordagem ṣṛṣṭi krama) deve ser feita
regularmente, a qual irá fortalecer o cérebro, os órgãos reprodutores e os sentidos da
fala, olfato, visão, audição e tato.

II.11 - Ao prejudicar isso (a fase ṣṛṣṭi krama), meninos e meninas se tornarão


enfraquecidos e afligidos por doenças. Eles não serão capazes de entender o que é
ensinado pelo professor.

II.12 - Sem dúvida haverá distorção na memória, compreensão equivocada do que lhe é
ensinado, dúvidas, redução do tempo de vida e muitos outros problemas.

Entendemos através destes śloka o zelo para que as sementes que as crianças
carregam tenham a possibilidade de germinar e vingar. O cuidado para que as crianças
cresçam física e mentalmente sadias não é sustentado por uma visão romântica de
construção de um futuro melhor, mas, acima de tudo, pela garantia de um direito de
todos. A potencialidade de cada indivíduo precisa ser cuidada com o merecido
respeito.

II.13 - Os seguintes āsana-s são sugeridos para os Brahmacārī-s: variações de śīrṣāsana


e sarvāṅgāsana, mahāmudrā, taḍākamudrā, baddha koṇāsana, daṇḍāsana e
paścimatānāsana.

II.14 - Pūrvatānāsana, catuṣpādapīṭham, vajrāsana, cakorāsana, krauñcāsana,


śalabhāsana, bhujaṅgāsana e vṛṣcikāsana.

II.15 - Mayūrāsana e piñca mayūrāsana com padmāsana, kukkuṭāsana,


garbhapiṇḍāsana, kūrmāsana e Yoga nṛsimhāsana.

II.16 - Uttāna kūrmāsana, simhāsana, garuḍāsana, vātāyanāsana, gomukhāsana,


bhāradvājāsana e trivikramāsana.

II.17 - Ūrdhva kukkuṭāsana, vasiṣṭhāsana, marīcyāsana, halāsana, matsyāsana,


diferentes tipos de jaṭhara parivṛtti e dhanurāsana.

171
II.18 - Variações de śalabhāsana, naṭarājāsana, bheruṇḍāsana, gaṇḍa bheruṇḍāsana, e
śīrṣa daṇḍāsana.

II.19 - Bakāsana, bheāsana, makarāsana e matsyāsana. Os dois tipos de


matsyendāsana irão remover os bloqueios causados pela kuṇḍalini.

II.20 - Para limpar os sete cakras, vṛkṣāsana é considerado muito especial. E para
fortalecer/energizar os órgãos reprodutivos, diferentes variações de koṇāsana-s devem
ser praticadas.

Lembremos que estas sugestões são para gerar estes efeitos na criança e no jovem.

II.21 - Uma pessoa que deseja fortalecer as costas e os nós no corpo (granthi-s), devem
praticar kapotṣāsana e uṣṭrāsana juntamente com a ingestão de comida apropriada e
restrita.

Granthi-s são nós. No caso, o śloka se refere aos bandha-s.

II.22 - Para limpar a bexiga, fígado, baço e diafragma, parvatāsana deve ser realizada
nas posições sentada e deitada.

II.23 - Para alguém com canelas e coxas fracas, uttānaśhiki (uttāna mayūrāsana) deve
ser realizada adequadamente. Deve ser feito antes de comer e com os olhos fechados.

A afirmação “com os olhos fechados” provavelmente refere-se a uma permanência


acentuada na postura. O trabalho nas pernas não era visando padrões estéticos, e sim
pelo fato de que no passado as pessoas percorriam longas distâncias a pé.

II.24 - Aqueles que possuem problemas de coração precisam fazer svastikāsana


e siddhāsana apenas. Eles precisam estar em uma dieta líquida e devem beber leite.

II.25 - O professor, tendo compreendido as escrituras (śastra-s), deve praticar ele


mesmo regularmente, e então ensinar os āsana-s específicos para os outros.

II.26 - Após ter examinado a origem da doença no corpo e na mente, o professor deve
aplicar Kriyā yoga. Caso contrário não haverá benefícios.

Kriyā yoga refere-se ao Sādhana. Aplicar Kriyā yoga é ensinar o caminho do Yoga
(Sādhana). Sempre após investigação sobre a história e potencial de cada indivíduo.

II.27 - Para aquele que a exalação e a inalação são de duração equivalente, sendo
longas e sutis, não há medo da morte.

172
Exalação e inalação equivalente refere-se à boa qualidade de ambos componentes da
respiração. Nos textos de Yoga a morte nem sempre é tratada em seu sentido literário.
Após adquirir conhecimento e maestria no processo respiratório, o medo de perder os
apegos e o medo de deixar de ser o que se era não atinge mais o praticante.

II.28 - Em āsana-s em pé ou deitado, e em prāṇāyāma, aqueles que desenvolvem as


qualidades de exalar e inalar não tem medo da morte.

Nas posturas de pé, sentada ou deitada, o padrão da respiração deve continuar o


mesmo. Esta capacidade indica saúde.

II.29 - Bloqueios nos movimentos dos vāyu-s nos nādī-s, kośa-s, junções dos nādī -s
(granthi-s) e nas juntas são sempre relacionados a excesso de gordura e carne fora e
dentro do corpo.

Novamente revemos a importância de um estilo de vida e dieta adequados.

II.30 - As práticas que tornam a respiração longa e sutil, e que reduzem o sofrimento,
devem ser seguidas diariamente.

Tornar a respiração longa e sutil não significa tornar o indivíduo anestesiado. A


respiração longa e sutil ajuda a trazer a mente ao estado de foco. Essas práticas que
permitem este estado devem ser realizadas todos os dias, pois viver sem foco leva ao
sofrimento.

O sofrimento é reduzido conforme o discernimento aumenta. Os fatos ocorrerão, mas


a interpretação do que é sofrimento e a sensação de sofrimento são reduzidas
conforme o foco e discernimento são adquiridos.

II.31 - Os Veda-s descrevem que o local do prāṇa, mente, jivātma e paramātma é


somente um: o coração.

Aqui voltamos ao início do texto quando várias vezes ele refere-se à devoção ao
supremo. O divino habita o coração, o mesmo local de nossa essência. Por esta razão,
é preciso que nos purifiquemos. Por esta razão é preciso que nos devotarmos ao nosso
cerne.

II.32 - Para sustentar o corpo, os praticantes de Yoga devem utilizar os 10 tipos de


prāṇa vāyu-s, suas diferenças, locais e funções.

Um dos principais fatos que me impressionaram ao conhecer esta tradição de


Krishnamacharya foi a abordagem de estruturação das práticas de āsana e
prāṇāyāma. Elas não são embasadas em cadeias musculares, geometria da forma do
āsana, nem se pensa em uma sequência de āsana-s usando critérios visualmente
lógicos. Āsana e prāṇāyāma são escolhidos e sequências são montadas pensando na
relação dos vāyu-s. Através deste olhar, a prática de āsana e prāṇāyāma, assim como a
173
prática de cantos, se torna em uma abordagem delicada e individualizada, e muito
mais precisa.
II.33 - A pessoa disciplinada, tendo compreendido com discernimento os locais, as
dimensões e as funções dos onze indriya-s (sentidos de percepção, de ação e a mente),
e a origem dos problemas, pode começar o tratamento da doença.

II.34 - Pode-se perceber que no mundo algumas pessoas são cegas, surdas e aleijadas
por nascimento. Outros são cegos, mudos e coxos devido a cirurgias/intervenções.
[Apesar de tudo], este mundo é, na verdade, maravilhoso.

II.35 - Nestes casos, a causa só pode ser janmāntara karma e Īśvara saṁkalpa. Atribuir
estas causas a outras razões não é possível.

Janmāntara karma é a consequência de ações realizadas em vidas passadas. Īśvara


saṁkalpa refere-se a uma força divina.

Para entender este sloka, precisamos contextualizá-lo. O julgamento de que nascer


com uma deficiência muito forte é um problema ou um desmerecimento não seria
exatamente a visão dos Yogi-s do passado. Cada um nasceria perfeito para o que veio.
Esta interpretação pode parecer uma forma passiva de aceitar tudo aquilo sobre o que
nós não temos controle. Mas lembremo-nos que o Yoga se dedica mais à existência e
suas experiências do que à investigação para descobrir o porque nascemos assim ou
porque certos fatos ocorreram conosco.

Ao invés de usarmos o tempo e nosso intelecto para saber as causas, o śloka nos diz
que as causas são duas, e são justamente duas que quanto a elas não podemos fazer
nada. Foquemos então no presente. Todas as práticas são voltadas para tentar
transformar a vida em uma situação para possíveis lapidações, independente de como
nascemos ou o que ocorra durante nossa jornada.

Na visão hinduísta, que aceita a ideia de reencarnação, a lapidação ocorre em diversas


vidas. Independente de como ela se apresenta hoje, o que fazemos no presente irá
gerar novas possibilidades de nascimentos e condições no futuro. Então tudo aquilo
que interpretamos como desafios são justamente as ferramentas para que este
processo de refinamento possa ocorrer. Aceitar o ponto de partida é crucial para
podermos caminhar e seguir construindo.

Para aqueles que não aceitam a ideia de reencarnação, o śloka é igualmente útil no
sentido de nos convidar a nos concentrarmos na solução, e não no problema. As
limitações são fatos, mas o sentimento de se sentir limitado depende muito da
capacidade mental de cada indivíduo.

Lembremo-nos novamente dos Yogi-s que possuem vidas limitadas em relação à


alimentação, conforto e até mobilidade. Que praticamente não falam, mas que
desfrutam de grande liberdade. Como nos parecia Ramana Maharish (1879 –1950).

174
II.36 - Apenas após meditar no grande compassivo Īśvara e oferecê-lo tudo, deve-se
iniciar cikitsa krama Yoga.

cikitsa krama Yoga significa abordagem sistemática para terapia através do Yoga.

Segundo a tradição do Yoga, sem fé, sem entrega, ou sem abertura, pouca coisa pode
ser feita terapeuticamente para beneficiar a pessoa.

II.37 - Independente de ser uma pessoa que constituiu família ou ser Brahmacārī, deve-
se praticar sthiti krama até a idade de setenta e cinco anos.

Até os 25, aproximadamente, a abordagem recomendada pela tradição do Yoga é ṣṛṣṭi


krama. Este śloka define agora que dos 25 aos 75 o foco do praticante, independente
se constituiu família ou não, deve ser sthiti krama. A partir de agora o texto irá abordar
Sthiti krama.

II.38 - Para Gṛhastha-s, a prática dos membros do Yoga é geralmente difícil e


inatingível, pois neste mundo os Gṛhastha-s possui muitos obstáculos.

Gṛhastha é a fase seguinte de Brahmacārī. Brahmacārī é a fase do aprendizado, na


qual o indivíduo tradicionalmente se dedicava ao estudo e auto estudo, dos 8 aos 25
anos, aproximadamente.

Gṛhastha é a fase adulta na qual se assume um papel ativo na sociedade. Trabalho,


deveres, família, por exemplo. Gṛhastha é a fase mais comprida da vida de uma
pessoa. Nela as práticas são muito difíceis de serem mantidas. O śloka nos conforta
afirmando esta realidade. Isto é importante, pois muitas vezes nos achamos
fracassados por não conseguirmos ter a rotina disciplinar que desejaríamos ter.

O curioso é que esta tradição, que descende de Nāthamuni, é uma tradição de


professores que casam e constituem família. Nāthamuni teve duas filhas e um filho.
Este fato talvez explique o porquê desta tradição ser tão apropriada para a maioria de
nós. Outras linhagens igualmente antigas e tradicionais são compostas por monges e
renunciantes, e seus ensinamentos são obviamente voltados para instruir novos
monges e renunciantes.

T. Krishnamacharya teve seis filhos e embora fosse recluso socialmente, vivia inserido
na sociedade com compromissos ordinários, como contas a pagar, emprego, escola de
filhos, problemas na casa, etc, exatamente como a maioria de nós.

Seguir o conselho destas pessoas é de grande valia por serem grandes referências.

II.39 - O mundo todo sabe, sem duvidar, que é a mulher Gṛhastha a protetora do
mundo, pois ela doa alimento, sabedoria, riqueza (riqueza em geral), e proporciona a
morada para se viver.
175
A mulher por natureza é uma doadora. Embora alguns homens desenvolvam esta
capacidade, doar, nutrir e acolher são qualidade femininas. A condição de
responsabilidade da mulher é superior à do homem. Seu potencial natural de
conseguir cumprir todas estas missões é sem dúvida superior ao dos homens. Por isso,
a mulher Gṛhasthā é a protetora do mundo.

Mas isto a coloca em uma situação ainda mais difícil para se dedicar às práticas de
Yoga. E para termos a certeza de sua superioridade em relação aos homens, basta
observarmos que, apesar destas dificuldades, o público feminino forma a maioria dos
praticantes de Yoga.

II.40 - Ambos, homens e mulheres Gṛhasthā-s, são tão ocupados cuidando de crianças,
netos, parentes, mendicantes, dependentes, gado e outros (outros animais) que eles
dispõem de pouco para eles próprios.

II.41 - Estando nesta situação como podem estas mulheres sempre ativas praticarem
Yoga? Contudo, sem elas, viver neste mundo é como flores no céu.

“Sem elas, viver neste mundo é como flores no céu”, ou seja, algo impossível.

II.42 - Por isso, alguns importantes aṅga-s, membros do Yoga, que farão o corpo
saudável devem ser praticados com disciplina pelas mulheres, para a proteção da
família.

Pelo que entendemos deste śloka, as mulheres não devem perder tempo com práticas
que não façam sentido.

II.43 - Ambos, mulher e homem, de tempo em tempo, por amor ao supremo, devem
seguir o Dharma de seus varṇa-s e āśrama e solidificar exemplos.

“De tempo em tempo” seria mostrar pontualmente para as gerações de jovens e


crianças que é possível realizar os deveres e as práticas.

Dharma são os deveres pessoais de cada um. Varṇa é ocupação, e āśrama, estágio da
vida. O Dharma deve ser cumprido de acordo com o varṇa e āśrama, além da prática
de Yoga. No próximo śloka o texto explica o por que.

II.44 - Eles precisam purificar seus corpos, de acordo com suas tradições familiares.
Mesmo que outros os critiquem, eles não devem ficar iludidos.

O que fazer então? Como proceder apesar das inúmeras obrigações e falta de tempo,
e escutando outras pessoas falarem coisas contra o Yoga ou nos “tentarem” a uma
outra proposta de vida? O próximo sloka responde.

176
II.45 - Para Gṛhasthā, praticando sthiti krama de Yoga, prāṇāyāma é o mais
importante. Esta é minha opinião (a de Nāthamuni).

Embora o śloka seja bem claro, merece ser relido.

II.46 - Pelo prāṇāyāma, as impurezas dos nāḍī-s são eliminadas do corpo e saem pelos
seus diferentes canais.

Os Yogi-s do passado entendiam que as energias, sangue, ares e alimentos fluíam pelo
corpo por canais. Alguns no corpo físico, outros no corpo sutil. Estes canais são
chamados nāḍī-s. Mas como sabermos se eliminamos as impurezas?

II.47 - Quando a exalação, inalação e retenção da respiração estão confortavelmente


longas e sutis, e são realizadas sem colocar muito esforço, então se entende que as
impurezas no corpo são mínimas.

II.48 - Quando, através da regulação da respiração, as impurezas são removidas, a


pessoa na fase Gṛhasthā purifica sua mente.

A saúde do corpo é afetada pelo excesso de vātā, pitta ou kapha. As impurezas da


mente ocorrem devido ao excesso de rajas e tamas.

II.49 - Para regular a respiração anuloma krama, viloma krama, pratiloma krama,
antah kumbbhaka e bāhya kumbhaka são sabidos.

Anuloma krama é a técnica em que se inala em etapas, podendo ser em duas ou mais
etapas.

Viloma krama é a técnica em que se exala em etapas, podendo ser em duas ou mais
etapas.

Pratiloma krama é a técnica em que se inala em etapas e se exala em etapas.

Antah kumbbhaka é a retenção da respiração com os pulmões cheios.

Bāhya kumbhaka é a retenção realizada com os pulmões vazios.

II.50 - Quando pranayama é realizado juntamente com os três bandha-s (mūla bandha,
uḍḍīyāna bandha e jālaṁdhara bandha), a raiz dos problemas é removida.

Daí a importância descrita no śloka I.95

II.51 - O Yogi deve praticar os três bandha-s apenas antes de se alimentar. Pela
exalação (recaka), o mūladhara, que ascende, deve ser estavelmente mantido
ascendendo.

177
Mūladhara refere-se ao centro energético da região do assoalho pélvico.

O fato de se praticar os bandha-s antes de ingerir comida é novamente tema de um


śloka. O problema não estaria apenas relacionado ao estômago. Praticar bandha com
o estômago cheio parece realmente sem sentido. Mas não é apenas por esta razão.
Após as refeições, o baço e o fígado estão muito ativos. O bandha, além de ser
desconfortável para o estômago, quando cheio, desregularia as funções do baço e do
fígado pelo excesso de estímulo.

O movimento de ascensão desta região é bastante sensível. Quando se exagera na


força, a pélvis fica pesada e a energia descende. O que não é recomendado. O objetivo
é justamente o oposto, direcionar a energia que se aloja na raiz da coluna vertebral
para ascender para os outros centros energéticos acima.

Na inalação, esta intenção é levemente prejudicada. Sabendo disso, o praticante deve


manter sua atenção e, a cada nova exalação e retenção com pulmão vazio, consolidar
a ascensão do Mūladhara.

II.52 - Então faça uḍḍīyāna bandha. Após isso, com jālaṁdhara bandha, comece a
inalar.

“Após isso” significa após uḍḍīyāna bandha, que só deve ser realizado com pulmões
vazios.

II.53 - Levando em consideração a duração da exalação, inalação e retenção,


prāṇāyāma é conhecido por ser de dois tipos: sama vṛtti e viṣama vṛtti.

Como foi explicado anteriormente, sama vṛtti é quando os componentes do


prāṇāyāma possuem a mesma duração. Sendo a inalação igual à exalação, ou a
inalação, retenção com ar, exalação e retenção sem ar também realizadas por um
mesmo tempo.

Viṣama vṛtti é quando os componentes do prāṇāyāma tem duração desigual.

II.54 - Para iniciantes, sama vṛtti é aconselhado. O comprimento da exalação, inalação


e retenção dependem da capacidade do praticante.

II.55 - Se a respiração é controlada pela força, ela vai ficar agitada. Por isso, antes de
ensinar, a capacidade do praticante deve ser cuidadosamente considerada.

II.56 - Independente de sama vṛtti ou viṣama vṛtti prāṇāyāma, a regulação da


respiração deve ser cuidadosamente seguida, examinada e verificada pelo praticante
com clareza.

178
Realizar duas ou três rodadas de uma técnica de prāṇāyāma em que a duração dos
componentes seja aparentemente confortável é diferente de realizar 12 ou 24 rodadas
da mesma técnica com a mesma duração de tempo. A quantidade de vezes influencia
o que estamos fazendo. Quando se realiza apenas duas ou três rodadas, a duração dos
componentes pode ser maior, se o praticante consegue manter sem problemas. Mas a
mesma duração de tempo pode ser muito intensa se realizada por 6, 12 ou 24 vezes.
Isto deve ser levado em consideração. Existe um fator acumulativo, principalmente
para iniciantes.

II.57 - A pessoa seguindo o caminho do Yoga deve praticar o aṅga chamado


prāṇāyāma antes do sol nascer, ao meio dia, antes do sol se pôr e à meia noite.

Este śloka nos faz repensar sobre as qualidades e comprometimento do praticante de


Yoga.

II.58 - Seja a prática de samatraka ou amantraka prāṇāyāma, ela deve ser feita
seguindo as orientações do professor, mantendo a tradição (sampradāya), e realiza-la
no tempo certo.

Textos de haṭhayoga insistem em manter as práticas em segredo. Isto ocorre para


preservar o ensinamento e para que pessoas não as realizem pelo processo auto
didático, que pode ser danoso para o praticante. O Yoga Rahasya não diz para manter
as técnicas em segredo, mas insiste na presença do professor e de seguir as instruções,
ao invés de se fazer simplesmente o que se deseja ou da maneira que se deseja.

II.59 - Devido à duração dos componentes da respiração serem desiguais, ela é


chamada de viṣama vṛtti prāṇāyāma pelos mestres sábios. Nela, a duração específica
da exalação é duas vezes a da inalação, a retenção após inalação é quatro vezes a
duração da inalação, e isso é de grande significância.

O śloka refere-se a relação 1-4-2-0. Exemplos em segundos: inspiração em 6 segundos,


retenção com pulmões cheios por 24 segundos, e exalação em 12 segundos (6-24-12-
0).

II.60 - O método de limpeza dos nāḍī-s vem sendo há muito tempo aprovado por todos.
Ao limpar os nāḍī-s é possível fazer qualquer coisa com a respiração.

II.61 - Para remover doenças, ujjāyī, nāḍīśodhana, sūrya bhedana e śitali tem sido
aprovado por muitos.

O śloka não quer dizer que se deve realizar todos estes prāṇāyāma-s, mas aqueles que
irão suprir as necessidades específicas de cada pessoa.

II.62 - Se aqueles com problemas na bexiga, fígado, baço, diafragma e coração


praticarem prāṇāyāma com disciplina, eles irão se livrar de doenças.

179
Praticar com disciplina significa praticar 3 ou 4 vezes por dia o prāṇāyāma adequado.

II.63 - Adicionalmente, eles irão viver uma vida longa e suas mentes ficarão muito
estáveis, desde que se rendam aos pés de lótus do Senhor.

II.64 - A essência de todos ensinamentos dos Upaniṣad-s é a integração do Karma com


Jñāna. Isto é possível para quem está com a saúde estabilizada.

Entenda-se Karma como engajamento adequado na ação, e Jñāna como sabedoria


discriminatória.

Fim do segundo capítulo do Yoga Rahasya intitulado Viniyogādhyāiaḥ.

180
Capítulo III - Vimarśanādhyāyaḥ

III.1 - Atividades do corpo, dos sentidos da mente e da respiração se agitam pela


ausência de adhyayam, práticas de Yoga, restrição e saṁyama.

Adhyayam refere-se a aprender e recitar cânticos védicos. Restrição aqui significa


ahara niyama, dieta apropriada, e saṁyama aqui refere-se aos sentidos e sua
capacidade de interação como os objetos, que deve ser profunda, mas adequada.

Refletindo sobre este śloka o praticante deve se devotar à prática.

III.2 - As distrações durante a meditação e venerações ao supremo são removidas pela


prática regular e consciente de cantos Védicos e pelos Yogāṅga-s, membros do Yoga.

“Veneração ao supremo” refere-se à ligação contínua entre o supremo e o ser


individual, que é quebrada pelas distrações.

III.3 - No capítulo anterior, as diferentes práticas adequadas para cada condição foram
apresentadas. Este capítulo apresenta o que é preciso fazer para aqueles que querem
entender o mais elevado.

III.4 - Não há perda para aqueles que creem em Deus, mesmo que Deus não exista. No
caso de Deus existir, os que não acreditam são derrubados. A natureza essencial do
Senhor é auto reveladora, é além da percepção dos sentidos e é livre de doenças.

A entrega ao supremo beneficia o indivíduo mesmo que Deus não exista. E se existir,
esta força é auto reveladora.

III.5 - Será sempre pela indisciplina na alimentação que a agitação da mente e


desequilíbrio no corpo aparecem de uma maneira amedrontadora.

III.6 - Aquele que está completamente absorvido em sua responsabilidade, deve


oferecer comida que possui qualidade satva e que seja limpa, com devoção completa,
para o Senhor que reside no coração de todos.

O corpo é a morada divina, e por isso deve ser tratado com total respeito.

III.7 - Por isso, lembrando Harī, o supremo, se deve comer de maneira limitada e nas
horas apropriadas apenas. Assim como a floresta é queimada pelo fogo, todas as
agitações do corpo também são queimadas.

III.8 - Agora, seguindo o caminho dos mestres ancestrais, algumas simples práticas de
Yoga para gestantes serão discutidas para boa saúde e um fácil parto.

181
III.9 - Quando praticando Yoga, as gestantes que são sempre cuidadosas com o feto,
não devem exceder-se em flexões para frente nem em suas variações.

III.10 - Daṇḍāsana, padmāsana, bharadvājāsana, vīrāsana e vajrāsana devem ser


praticadas juntamente com longa exalação e longa inalação.

III.11 - Śīrṣāsana e sarvāṅgāsana não são danosas até o quinto mês de gestação.
Devem ser realizadas apenas antes de se alimentar. Assim dizem os textos.

Śīrṣāsana e sarvāṅgāsana são aconselhados para mulheres que já praticavam estes


āsana-s antes de engravidarem. Sendo elas já praticantes, até o quinto mês ambos são
possíveis de serem realizados e a gestante sentirá alívio nos órgãos internos. Após o
quinto mês, em geral a barriga cresce a ponto de mudar completamente o centro de
gravidade da gestante. Isto cria um risco que deve ser evitado. Devido à circunferência
da barriga, entrar e sair destes āsana-s acaba sendo estressante. Estes são os
principais fatores gerais.

III.12 - Correr rápido, dançar e falar com voz alta deve ser evitado. Isto, sem dúvida
resulta em aborto ou algum defeito.

A colocação pode parecer um tanto exagerada hoje. Mas o cuidado refere-se a uma
vida agitada, já que o śloka refere-se à ações como correr rápido, dançar. Quanto a
não falar alto, refere-se a não se estressar, não brigar. Tanto continuar com hábitos
intensos ou se envolver com estresses prejudicam a gravidez.

III.13 - No caso de sono perturbado, ujjāyī prāṇāyāma com a retenção de respiração


apropriada deve ser regularmente praticada, em uma postura sentada.

Ainda sobre gestante. Esta prática respiratória não deve ser realizada exatamente
durante as horas de mal sono, mas durante o dia, e com regularidade. O excesso de
fadiga e as projeções na gestante provoca uma mente agitada à noite e imprópria para
o processo do sono.

A retenção deve ser após a inalação, mas apenas por um ou dois segundos, sendo
suficiente para fazer com que a exalação se torne naturalmente mais profunda. O
processo de exalação profunda ajuda a relaxar.

III.14 - Para elas, prāṇāyāma sem kapālabhāti e bhastrikā, e sem uḍḍīyāna bandha e
mūla bandha é permitido/adequado.

As práticas de kapālabhāti e bhastrikā aumentam o elemento ar no corpo e estimulam


o fogo, o que pode provocar redução dos fluidos do corpo. Estas práticas, assim como
uḍḍīyāna bandha e mūla bandha não irão ajudar no processo gestacional. Uḍḍīyāna
bandha e mūla bandha irão criar desordens na bexiga, desregulando a função de
urinar, e, no baço.

182
Devido à ação que ocorre no baixo ventre, estas práticas perdem o seu sentido se
praticadas por gestantes.

III.15 - Durante a gestação, praticar jālaṁdhara é uma maravilha. Este bandha


conquista a função do apāna vāyu. Esta é a opinião de todos os śātra-s.

Quando se pratica jālaṁdhara bandha, o posicionamento da coluna vertebral e a ação


na garganta e pescoço é benéfico para a gestante, pois a postura ajuda na relação
entre prāṇa e apāna, e a reduzir gases, por exemplo.

III.16 - Após o quinto mês, śitali e nāḍī śodhana prāṇāyāma são preferíveis. Em alguns
momentos sūrya bhedana é também recomendado.

Śitali ajuda a regular o calor e queimação no estômago, o que é comum durante a


gestação. Nāḍī śodhana ajuda a limpar e regular os canais energéticos que nutrem o
corpo, e a balancear sua polaridade. Já sūrya bhedana é recomendado quando há
problemas no estômago e para estimular o fígado, quando a gestante sentir muita
falta de energia.

III.17 - Pressionando os joelhos e as mãos no chão, como um suporte de quatro apoios,


olhando para baixo, e levantando os calcanhares e quadril na posição adequada.

III.18 - Então, permanecendo, levante os joelhos e a cabeça, e mantenha as mãos no


chão. Esta posição é chamada Unmukha pīṭham.

III.19 - Juntamente com Dvipādapīṭham, como contra pose, este āsana dá força em
todas as partes do corpo, particularmente no caso de gestantes fracas, assim
proclamou Gārgi.

Gārgi foi esposa de Yājñavalkya e é considerada uma das pessoas mais sábias que já
existiu na Índia. O Yoga Rahasya voltará a citar seu nome em outro śloka.

Dvipādapīṭham ajuda a posicionar o feto em uma boa posição para o parto e ajuda na
preparação para o parto. Ambas as posturas, Dvipādapīṭham e Unmukha pīṭham,
ativam o corpo.

Este śloka introduz a ideia de contra pose, o que não vemos em outros textos.
Krishnamacharya achava fundamental a ideia de contra pose para retirar qualquer
tensão ou excesso que um āsana possa gerar no indivíduo.

III.20 - A gestante, sentada em padmāsana, deve estender ambas mãos para cima.
Então ela deve dobrá-las e movê-las para os lados repetidamente.

183
“Sentada em padmāsana” pode ser interpretado como sentada com as pernas
cruzadas em uma postura confortável a ponto de não necessitar se ajustar
constantemente - que não necessariamente precisa ser padmāsana.

O śloka aconselha a gestante a realizar movimentos com os braços. Cuidar de um bebê


é muito exaustivo. Movimentar os braços é muito importante para fortalecê-los e
soltar os ombros, escápulas e pescoço. Esta mobilidade e força será necessária para
quando a mãe for carregar seu bebê.

A movimentação dos braços também ajuda a ativar a circulação, nervos e glândulas, o


que irá contribuir para a produção de leite, que é o melhor alimento.

III.21 - Como resultado deste movimento, ambos os braços rapidamente se tornam


fortes. No entanto, ao fazer isso, a mulher não deve esquecer da exalação, inalação e
retenção da respiração.

A quantidade de vezes e a forma de se respirar varia de acordo com a condição e


necessidade da gestante.

III.22 - A esposa também deve praticar mover as mãos em uma posição em pé. Isto
deve ser realizado duas vezes ao dia com disciplina, sempre mentalizando o Senhor.

Aqui o texto dá uma opção de realizar movimentos com os braços em uma posição em
pé. Disciplina implica também em se alimentar adequadamente, e mentalizar no
Senhor é para que a gestante, que devido à responsabilidade de gerar uma vida,
mantenha sua mente centrada, ao invés de ser atormentada por seus devaneios.

III.23 - A senhora gestante, que ama seu marido, deve sempre realizar mahāmudrā,
baddha koṇāsana, taḍāsana e suas variações. Ela não deve fazer uttānāsana.

Mahāmudrā para gestante é realizada sem uḍḍīyāna bandha. Não realizar uttānāsana
significa não realizar āsana-s que espremem a região em que está o bebê.

III.24 - Neste mundo, mulheres são afligidas por timidez e medo. Elas são muito
expostas a conversas não importantes, são iludidas e suas mentes ficam inconstantes.

O śloka aponta problemas enfrentados pelas mulheres daquela época. Elas acabavam
se tornando tímidas por não terem direito a se expressarem, e, consequentemente,
com medo. Eram “muito expostas a conversas não importantes” pois tinham que
resolver todos os tipos de problemas e de todas as pessoas. Eram “iludidas” pois não
participavam dos fatos verdadeiros e por isso tudo suas mentes se tornavam
inconstantes.

III.25 - Mesmo quando firme em sua decisão em seguir os deveres pessoais, elas cedem
devido a palavras dos outros. Por isso é dito que Kriyā Yoga desapareceu nelas.

184
O śloka parece duvidar da capacidade feminina de lidar com seus deveres pessoais e se
engajar nas práticas de Yoga. Mas o śloka é uma crítica à realidade que pesa sobre as
mulheres. Como é natural da mulher cuidar e nutrir, também é natural escutar os
outros e tentar entendê-los. Sendo assim, a mesma coisa escutada por um homem
tem peso diferente quando escutado por uma mulher.

Esta qualidade é uma característica natural inerente em quase todas as mulheres. As


mulheres zelam e quando alguém reclama, questiona ou tem problema, é natural
delas se disponibilizarem de alguma maneira. Isso acaba por desnorteá-las, pois o
excesso de informação, que na maior parte do tempo não tem sentido ou importância,
é constante e interminável.

Por acabarem lidando com inúmeras coisas e com coisas que nem sempre são
importantes, e por zelar por todos, seus deveres pessoais e suas práticas são deixadas
de lado. Mas após denunciar a realidade que desvia o caminho das mulheres, no
próximo śloka o texto dá um incentivo.

III.26 - Mas nem todas as mulheres são assim. Existem algumas yogini-s como Gārgi,
Ahalya e outras que atingiram o supremo. Elas são as maravilhas da criação de Deus.

III.27 - Quer seja uma mulher estéril, grávida, uma menina ou um menino, ninguém
deve questionar Deus.

As condições citadas acima são de pessoas que na época não tinham voz, e que por
isso, deviam se sentir diminuídas. Este śloka e os próximos explicam o que é realmente
importante na vida, śraddha. Aquele que possui śraddha possui tudo.

III.28 - Enquanto prática-se Yoga, é preciso śraddha, comer alimento limpo e próprio,
ter respeito à tradição, apresentar disciplina apropriada, servir pessoas boas e ter
atitude positiva.

III.29 - Se há sempre a mais alta devoção ao professor, os segredos da sabedoria do


Yoga serão constantes e revelados no coração.

O Yoga não é aprendido e nem ensinado. O Yoga é revelado. Śraddha é fundamental


no processo do Yoga, pois representa um movimento de criar espaço. Ocorre no
espaço onde a luz habita. Quando abrimos espaço, o conhecimento é revelado. “O
Yoga é revelado pelo Yoga”, Vyāsa no comentário do YS III.6.

III.30 - Neste mundo, muitos homens têm a mente iludida por māyā. Eles creem
somente nos objetos tangíveis que podem ser percebidos pelos sentidos. Esta é a
realidade do mundo.

185
O homem crê no que vê ou no que deseja ver. Segundo o Yoga, isto é uma distorção. A
palavra māyā (ilusão) não aparece no Yogasūtra. Patanjali usa o termo avidyā,
compreensão incorreta.

III.31 - Os objetos que podem ser representados por palavras, mas que as pessoas são
incapazes de capturar usando os sentidos, são de fato revelados pela autoridade de um
professor.

O Yoga nos desafia a depositarmos nossos corações em coisas que não vemos e não
compreendemos. O Yoga é desafiador porque Śraddha é um desafio.

O professor é fundamental em todos os estágios do aspirante. No início, seu papel é


evidente, pois explica os fundamentos do Yoga. Mas posteriormente, após certo êxito
por parte do aluno, o papel do professor é crucial, já que o caminho segue para o
sublime.

Os aspectos sublimes do Yoga, como dhāraṇā, dhyānaṁ e samādhi não podem


simplesmente serem compreendidos por palavras nem podem ser vistos. Por não
serem aspectos grosseiros, é comum que o praticante se iluda sobre eles. Isto irá
ocorrer em diversos momentos e o papel do professor é o de resgatar o aluno.

III.32 - Os olhos não podem capturar isso, então há uma tendência de desistir dos
ensinamentos. Mas as palavras do ācārya, professor, devem serem aceitas como
pramāṇa, prova.

Em sânscrito a palavra ācārya pode ser simplesmente professor. No Yoga, a palavra


ācārya é muito significativa, pois representa alguém que passou pelo mesmo processo
que nós, alunos, e por isso suas palavras contam tanto. O ācārya a nossa frente
configura a representação de todos ācārya-s que o antecederam. No Yoga, o que ele
revela ao aluno são provas, pramāṇa, que são embasadas na linhagem e que vem
atravessando os séculos sendo testadas e comprovadas.

O ācārya não transmite suas próprias verdades, mas o conhecimento verdadeiro. Por
isso se reverencia o ācārya, pelo conhecimento que ela ou ele transporta.

III.33 - Alguém talvez pergunte, “como poderemos saber a relação entre śabda, a
palavra, e ākāśa, o espaço”? Mas o que é produzido no espaço, pela palavra, é sempre
escutado pelos sentidos grosseiros.

A pergunta é: como lidar com a diferença entre o que é dito e o que é escutado, e
como acreditar que o que é dito contém uma sabedoria que dificilmente cabe em
palavras?

Śabda, a palavra, depende de ākāśa, o espaço. O professor explica por palavras, mas o
que é dito e o que é escutado sofre alteração devido a ākāśa, o espaço. Existem
barulhos que podem atrapalhar, a vibração da voz do professor pode não ser captada

186
na íntegra pelo aluno ou o aluno pode estar distraído enquanto o professor fala, por
exemplo. A palavra realmente só é ouvida pelos sentidos grosseiros. E poderiam os
sentidos grosseiros expressar e escutar coisas referidas ao sutil?

Os próximos ślokas tratarão mais do assunto.

III.34 - O cego não vê, e o surdo não escuta. Isto significa que o que eles não vêem ou o
que eles não escutam não exista?

III.35 - O mudo não pode falar, o coxo não pode andar por ele mesmo, similarmente,
sem saṁskāra, preparação, a mente não consegue capturar nada.

Saṁskāra aqui seria tudo que prepara para dhāraṇā, dhyānaṁ e samādhi. Sem a
devida preparação, Śabda, a palavra, se perde em ākāśa, o espaço por causa da mente
que se ilude.

O que entendemos deste śloka é que na visão do Yoga todos somos incapazes sem o
devido preparo.

III.36 - Sem saṁskāra, os ensinamentos do Yoga, a verdadeira natureza do corpo, o


ātma e o antaryāmi não poderão ser compreendidos.

É importante que esteja claro a diferença entre pessoas que fazem práticas de yoga e
pessoas que seguem a tradição do Yoga.

O fato de se praticar alguns membros do Yoga separadamente não é algo errado,


apenas não é o que as escrituras sugerem. Muitos se sentem satisfeitos ao relaxar ou
fazer exercícios que melhorem as funções do corpo utilizando posturas de Yoga.
Outros acham que dedicar 20 minutos para realizar práticas de visualização é de
grande ajuda. E estas pessoas estão corretas. Porém, por mais que as práticas de Yoga
ajudem muito a melhorar a vida das pessoas, a tradição do Yoga nos ensina a abraçar o
Yoga como um todo. Se há limitação na maneira de se praticar Yoga, os frutos também
serão limitados.

O objetivo último do Yoga é a liberdade. Para isso, é necessário entender a verdadeira


sabedoria do Yoga (Yoga tattva), ter a experiência do que é o corpo (deha tattva),
sentir a essência (ātma tattva) e sentir o supremo em nós (antaryāmi). Este processo
ocorre pelo Aṣṭāṅga yoga, que é a preparação.

III.37 - Neste mundo, nada ocorre sem uma causa. Caso a causa seja sabida, felicidade
ilimitada se torna possível.

Independente de nossa vontade, todo fato gera consequências. Descobrir a causa, seja
de uma doença ou de uma tristeza é fundamental para nos tratarmos. Mas não se
pode descobrir a causa pela inferência, pois esta é limitada e tendenciosa.

187
III.38 - Os sábios sabem que não é possível estabelecer a mais elevada verdade por
anumāna. Somente através de śabda pramāṇa. Para aqueles que não acreditam em
śabda pramāṇa há sofrimento.

Śabda pramāṇa são as revelações descritas nos Vedas, e anumāna é a compreensão


pela inferência. Nossa inferência é embasada em memórias e desejos: na maioria das
vezes vemos o que queremos ver. O mais aconselhado seria seguir os passos daqueles
que receberam as revelações e descreveram o caminho para o processo de auto
lapidação. Aqueles que seguem as criações de seu intelecto e não levam em
consideração a sabedoria descrita nas escrituras, irão em algum momento construir
ilusões e cair no ciclo do sofrimento.

III.39 - Prāṇāyāma é o machado que pode quebrar a teia das doenças. Vairāgya é a
espada que reduz as agitações da mente.

E temos, então, nossas armas para combater os principais obstáculos em nosso


caminho. O machado para quebrar a teia das doenças e o não apego, vairāgya, para
cortar as agitações da mente.

III.40 - Quem quiser experienciar o mais elevado deve praticar prāṇāyāma. Isto previne
doenças do intestino, baço, fígado e bexiga.

III.41 - Pela disciplina apropriada, e por não forçar os limites, a respiração é controlada.
Não há outra maneira.

Fim do terceiro capítulo do Yoga Rahasya.

188
Capítulo IV - Kalādhyāyaḥ

IV. 1 - Neste capítulo, é apresentado como anukūla e pratikūla ocorrem para o


praticante de Yoga.

Anukūla equivale a sukhaṁ, que significa conforto, bem-estar, espaço para que nossa
essência se expresse. Pratikūla equivale a duḥkhaṁ, que significa sofrimento, falta de
espaço para que nossa essência de expresse.

Kūla significa margem. A analogia é com a dimensão que “margeia” nossa essência. Se
estamos longe da margem, criamos uma situação de desconforto. Quanto mais longe
da margem, mais medo e insegurança sentimos. Por isso, a palavra Pratikūla. Já
anukūla significa estar perto da margem, e isso gera segurança e conforto.

A sensação de conforto, sukhaṁ, e de desconforto, duḥkhaṁ atuam nas 16 partes,


Kalā-s, que constituem nosso sistema. As 16 partes são: os cinco órgãos do saber; os
cinco órgãos de agir; a mente; e os cinco elementos (bhūta-s) espaço, ar, água, fogo e
terra.

Observando o corpo através destas 16 partes, o processo de terapia fica mais fácil.
Mas também podemos pensar no sistema humano como uma composição de
diferentes partes: a primeira cobre a dimensão de Paramātma (a consciência
universal), Jivātma (a consciência individual) e os prāṇa vāyu-s. A segunda parte seria a
dos 5 elementos (bhūta-s) e respectivas áreas do corpo que os representam (cabeça –
éter; parte superior do tórax - ar; região do estômago e baixo ventre – fogo; região do
assoalho pélvico e coxa – água; canelas e pé – terra). E a terceira parte é a dos dez
sentidos e a mente.

IV.2 - Como e de onde anukūla, conforto, aparece? Sua realidade é verdadeira ou uma
ilusão?

Quanto mais perto da “margem”, mais conforto sentimos. Este conforto é extra-
sensorial, ou seja, a mente não fabrica, mas o aceita. Existem dois tipos de conforto:
1- Parimita sukhaṁ - conforto limitado, que ocorre através do corpo físico e
dos elementos que o compõem.
2- Aparimita sukhaṁ - conforto ilimitado, que provém da aproximação da
consciência universal. Aparimita sukhaṁ também é chamada de
ātmānanda.

Então o śloka não define o que é real e o que é ilusão, mas o que é limitado e o que é
ilimitado.

IV.3 - Sabendo disto, a pessoa instruída deve iniciar o trabalho de Kriyā Yoga, o Yoga na
ação. Se isso não for feito, os frutos não serão obtidos.

189
Kriyā Yoga purifica a ação, não deixando os registros e os condicionamentos nos
dominarem. Consequentemente, este empenho, esta atenção nos imuniza e impede
que nossas ações gerem sofrimento.

IV.4 - Na realidade, todos os objetos materiais neste mundo não são nem favoráveis,
anukūla, nem desfavoráveis, pratikūla.

Tudo está em constante transformação. A prática de Yoga deve ajudar a gerar não-
apego tanto em relação a anukūla quanto em relação a pratikūla. Uma mente
equilibrada, samatvaṁ, não é abalada por ganhos e perdas. Tal mente permanece
equânime em relação às mudanças que ocorrem no universo material.
O sofrimento ocorre quando a mente perde a neutralidade e se relaciona com o
mundo através de apego. O próximo śloka irá completar este pensamento.

IV.5 - Como resultado das mudanças nos três guṇa-s (as três energias que regem a
natureza) e também devido às ações, os objetos estão se modificando em cada
instante, resultando em pratikūla ou em anukūla.

A interpretação do mundo depende de nosso humor, de nossa vitalidade. Por isso, a


prática trabalha para incrementar nossa vitalidade, e, consequentemente, alimentar o
discernimento. Se existe constância mental, as ações, lugares ou fatos não são
favoráveis ou desfavoráveis.

IV.6 - Tanto faz anukūla ou pratikūla, está tudo na mente. Isto é assim devido às
mudanças na mente humana, o que pode ser entendido de duas maneiras.

Tanto o prazer como a dor são experimentados devido à interpretação da mente, e,


principalmente, devido à mente sensorial, mana-s. A mente sensorial está envolvida
em um contato muito íntimo com o mundo material, e isto cria uma relação que tende
a deixar marcas. Caso a mente esteja sendo impressionada por estas relações com o
externo, emoções são criadas e as impressões mentais formadas.

Aquele que está aprisionado no ciclo de suas próprias ações, passa por certas
experiências. E acredita que foi a vida, o destino ou o acaso que criaram estas
experiências. Mas as situações ocorrem por uma causa, que é a ligação da mente com
o mundo material externo. O que o śloka nos diz é que se a mente for forte, ou seja, se
seu elo com a inteligência interna for forte, tudo que ocorre são apenas fatos. Mas se
os sentidos e a mente forem fracos, esta fraqueza acaba produzindo a impressão de
momentos de sofrimento e em outros momentos a impressão de conforto.

O Yoga acredita que quando a inteligência interior está em estado de fusão com a
natureza universal, a mente sensorial não traz mais interferências, e nada é favorável
ou não favorável. Tudo é um simples fato.

IV.7 - Devido à associação com ações passadas e seus frutos, devido às atividades
realizadas no presente, e devido à agitação do corpo, mudanças ocorrem na mente.

190
O śloka indica o que faz com que a mente oscile tanto:
● Ações passadas e seus frutos
● Ações realizadas no presente
● Agitações no corpo (modificações no corpo)

Estas influências modificam o humor mental, geram os estímulos que mudam sua
direção e criam as associações com memórias que mexem com nossas emoções.

Com esta explicação, entendemos as razões que geram transformações na mente e


prejudicam o foco e constância mental. O próximo śloka explica o que perturba ou
impede o discernimento.

IV.8 - A oscilação na cognição ocorre pelas atividades dos elementos que oscilam a
cada momento, e ao consequente vínculo do ser interno com os objetos materiais.

O mundo material é formado por cinco elementos: éter, ar, fogo, água e terra. Tudo
que é matéria é um efeito destes cinco elementos e está em constante transformação.
A vida existe devido a uma combinação entre matéria e espírito, que possuem
características diferentes: uma é inconstante e outra constante. E embora nossa
natureza essencial seja livre, a condição em que vivemos é aprisionadora.

Sem uma cognição capaz de ver o mundo sem influências egoístas que distorçam os
fatos e que deturpem as relações que criamos com o mundo, se vive em uma condição
de prisioneiro.

A cognição também é dependente da memória, assim como da interpretação dos fatos


e do mundo. Dependendo destes vínculos iremos discernir de forma tendenciosa ou
com liberdade.

IV.9 - Devido ao poder do tempo (kāla) e ação (karma), os objetos são grosseiros
(sthūla) ou sutis (sūkṣma). Objetos que são grosseiros se tornam sutis, e objetos que
são sutis se tornam grosseiros.

O que define nossa interpretação são o tempo e as ações. No śloka devemos entender
tempo como período do dia e fase da vida. Também do tempo em que a mente se
encontra, podendo estar perdida no passado e projetando o futuro, ou acompanhando
o desenvolvimento do momento presente. Isto faz com que “objetos que são
grosseiros se tornam sutis, e objetos que são sutis se tornam grosseiros”.

Dependendo das ações que exercemos, e dos frutos das ações passadas que nos
motivam, os “objetos que são grosseiros se tornam sutis, e objetos que são sutis se
tornam grosseiros”.

Não são os objetos que são duais, mas nossa interpretação que é subjetiva já que a
mente e o cognitivo oscilam.

191
IV.10 - Pelos sentidos, a mente toma a forma dos objetos e assim os objetos são tidos
como grosseiros ou sutis.

São os sentidos, ou manas (a mente sensorial), quem define esta relação.

IV.11 - O homem (a pessoa) com dezesseis partes (kalā-s), e que obedece aos objetos,
que são equivalentes a veneno, possui uma mente distraída.

Mente distraída é uma mente que, mesmo muito focada em algo, está desengajada de
sua essência. Quando os textos de Yoga descrevem uma mente distraída, referem-se a
uma mente distraída do ser.

Como a mente assume a forma dos objetos com os quais se relaciona, como foi dito no
śloka anterior, e como existem objetos que envenenam a mente, precisamos estar
atentos e sermos seletivos em relação a tudo aquilo com o que nos relacionamos.

Por isso vihara niyama é tão importante. Através de uma boa rotina é possível estar
cada vez menos influenciado por Kāma, que são os prazeres. Uma boa rotina inibe os
impulsos exagerados de prazer que podem nos mover durante toda a vida.

O prazer não deve ser evitado ou interpretado como um mal. Mas, acima do prazer
deve estar o dever. Caso contrário, estaremos constantemente sendo arrastados por
impulsos insaciáveis.

IV.12 - Todos os objetos compreendidos pelos sentidos (viṣaya-s) sofrem


extraordinárias mudanças em cada momento, causando assim situações favoráveis
(anukūla) e situações desfavoráveis (pratikūla).

Ou seja, se os objetos agradam os sentidos, o intelecto conclui que são favoráveis.


Caso os objetos desagradem os sentidos, o intelecto conclui que são desfavoráveis. E
assim vivemos.

IV.13 - Se a pessoa crê que o supremo fornece tudo, por que, então, eles deveriam se
preocupar em descrever objetos que fornecem situações favoráveis ou desfavoráveis?
Por que argumentar desnecessariamente sobre sua existência?

O śloka questiona a verdadeira fé, o quanto gastamos tempo discutindo sobre os


objetos e justificando nossa relação com eles. Aqueles que creem que o divino fornece
tudo, nada de fato é favorável ou desfavorável, pois a interpretação sobre a vida não é
embasada nessas metas. O foco é usar o tempo para abhyāsa (prática de se auto
lapidar).

IV.14 - Pelo sādhana do Yoga se sabe o que é favorável e desfavorável para o corpo e
para os sentidos.

192
Quando se está engajado no processo de Yoga, as práticas evidenciam o que é
favorável e o que é desfavorável para o corpo e para os sentidos. Isto facilita o
cognitivo de ter clareza para discernir.

IV.15 - Quando o corpo reganha todo seu potencial, a pessoa pode colocar seu
empenho para assegurar bem-estar (sukhaṁ).

Este śloka indica o resultado do que fora descrito no śloka anterior. Como fruto do
sādhana, o corpo atinge sua potencialidade e o praticante consegue dedicar seu
empenho na direção de sukhaṁ (conforto, espaço, bem-estar).

Se as práticas estiverem gerando tama-s, ou seja, sonolência, preguiça, elas estão


inapropriadas.

IV.16 - Quando o corpo ou os sentidos ficam fracos por causa do Yoga sādhana
(caminho do Yoga), após investigação sobre a causa, a pessoa com mente estável deve
fazer o esforço correto.

É possível prejudicar ou até danificar o corpo, assim como agitar ou desorientar a


mente através da prática do Yoga inadequada e de uma abordagem incorreta sobre o
caminho do Yoga.

Se as práticas estiverem enfraquecendo o corpo ou os sentidos ela deve ser revista.


Exemplo de como tornar o corpo mais fraco com práticas de Yoga:
● Fazer o corpo muito maleável a ponto de torná-lo frágil demais.
● Exaurir o corpo realizando práticas muito fortes.
● Fragilizar o corpo com excesso de práticas purificatórias (satkarma-s).
● Respirar inadequadamente nos āsana-s e prāṇāyāma-s.
● Movimentar o corpo inadequadamente nos āsana-s.
● Forçar nos āsana-s.
● Se propor a sentar para meditações por muito mais tempo do que o corpo está
preparado.
● Realizar dietas severas.
● Se propor a realizar peregrinações muito austeras, como ir para o Himalaia sem
o devido preparo.
● Suprimir com violência os impulsos naturais do corpo.

Enfraquecer os sentidos seria enfraquecer o elo dos sentidos com o propósito real dos
sentidos. Quanto mais enfraquecido este elo, mais forte será o elo dos sentidos com os
objetos externos. Se há excesso de raja-s, mais energia de paixão irá alimentar os
sentidos. O que trará a mente à excitação. Se há excesso de tama-s, maior será a
energia de letargia e de apego. O que trará a mente à estagnação.

Quando praticamos as ferramentas do Yoga e nos tornamos mais curiosos perante os


objetos, mais sensorialmente dependentes e mais sensuais, nossos sentidos estão se
enfraquecendo pela prática que estamos realizando. Portanto, devemos prestar
atenção nesses possíveis efeitos de uma prática inadequada.

193
Quando durante ou após a prática se sente preguiça ou sonolência, a prática está
inadequada.

Saberemos direcionar o “esforço correto” quando investigarmos com atenção e


desprendimento como estamos praticando e se o que estamos praticando está
coerente.

IV.17 - A fraqueza pode vir por não se embasar nos Yama-s e niyama-s, por apego aos
objetos externos, práticas descuidadas e por desprezo à respiração.

Descontextualizar as práticas de Yoga de yama e niyama é mudar a pedagogia do


Yoga. O excesso de apego, que inclui apego às práticas de Yoga, desvia nossa atenção e
propósito, e enfraquece o elo do indivíduo com o real propósito do Yoga e da vida. A
prática precisa ser realizada com o coração, quando a prática se torna mecânica, a
conexão se perde. A respiração é central à vida, e por isso é central ao Yoga.

IV.18 e IV.19 - Uma pessoa fraca ou doente tem morte prematura. Por isso, durante a
prática deve-se examinar as diferentes partes do corpo e refletir como as condições se
apresentavam no passado e por que agora se tornaram fracas.

É sempre muito importante investigar o histórico, e não olhar apenas o que está na
nossa frente.

IV.20 - Deve-se fazer uma investigação sobre como a fraqueza nas diferentes partes do
corpo, nas fontes dos canais sutis (nāḍī-s) e das partes (kośa-s) surgiram, e quais
seriam as causas.

Precisamos investigar a fraqueza nas:


● Partes do corpo
● Na raiz dos nāḍī-s
● Na raiz dos kośa-s

E avaliar a causa da fraqueza.

IV.21 - As partes internas do corpo são todas distintas. Algumas são grandes, outras
pequenas, algumas longas, outras curtas, algumas torcidas e outras retas.

IV.22 - O corpo compreende nāḍī-s, carne, junção de nāḍī-s, órgãos, articulações, ossos
e dutos. Eles são de diferentes cores e formatos, alguns cobrem todo o corpo, enquanto
outros são localizados.

IV.23 - Se aqueles versados nas escrituras do Yoga instruírem sabendo estas distinções,
pessoas serão livres de doenças.

Aquele que instrui Yoga sabendo da delicadeza do sistema humano e respeitando sua
anatomia consegue gerar alívio e incrementar a saúde daquele que não tem saúde
nem vitalidade.

194
IV.24 - O sábio (aquele que aprendeu o que foi dito anteriormente) irá alcançar
adequada proporção do corpo, estabilidade dos músculos do pé à cabeça e
alinhamento adequado nos nāḍī-s.

A “adequada proporção do corpo” não quer dizer um corpo esteticamente


proporcional, mas uma funcionalidade que seja adequada onde nenhuma parte será
mais forte ou mais beneficiada que outra. O mesmo vale para “estabilidade dos
músculos do pé à cabeça".

Pensar no “alinhamento adequado nos nāḍī-s” modifica completamente a maneira de


pensarmos como posicionar o corpo na prática de āsana. Por exemplo, normalmente
se pensa em alinhar os ossos e a musculatura. Se formos mais fundo neste processo,
alinhamos o corpo pensando em como beneficiar a respiração. O śloka diz ser possível
ir ainda mais fundo, pensando em alinhar os canais sutis.

IV.25 - Assim como um homem preguiçoso sentado em um barco quebrado não


alcançará o outro lado do rio, com um professor que é desprovido de conhecimento,
como alguém pode alcançar a liberação?

IV.26 - No caso de qualquer defeito ocorrer pela prática errada do Yoga realizada com
pressa, este defeito pode ser queimado apenas pela prática (adequada) do Yoga. Não
há outro caminho.

IV.27 - Em todos objetos, qualidades puras e impuras existem em proporções iguais.


Pelo propósito de refinamento dos objetos, virtudes, defeitos, qualidades auspiciosas e
não auspiciosas devem ser sabidas.

IV.28 - Terra, água, fogo, vento (ar) e espaço (éter) são os cinco elementos presentes
em tudo que é criação, de Brahma, o criador, à árvore, o corpo consiste de ātma.

IV.29 - Lugares sem veados pretos ou sábios são considerados impróprios para as
práticas do Yoga. Mesmo que haja veados pretos, Saurāṣtra e Kalinga são
considerados inapropriados.

Saurāṣtra é um lugar no estado de Gujarate, e Kalinga fica em Oriśa. Tais lugares são
desaconselhados devido a razões históricas. Pessoas sábias são importantes para
instruir e inspirar, e a menção de veado preto (kṛṣṇasāro) provavelmente diz respeito a
um lugar onde a natureza seja fértil. O mesmo conselho é dado no início do texto
Haṭhayogapradīpikā.

IV.30 - As purezas e impurezas dos objetos, sendo pequeno ou grande, ocorrem


somente pelo objeto, palavras ditas, tempo ou saṁskāra (hábito).

A subjetividade depende de cada objeto, do que é dito sobre eles, de quando


interagimos e dos nossos hábitos que nos influenciam.

195
IV.31 - Para destruir as doenças do corpo, o corpo precisa ser usado. Para reduzir
agitação na mente, prāṇāyāma é aclamado.

Usar o corpo para expurgar as impurezas e desarmonias significa realizar práticas de


āsana.

IV.32 - Não há dúvida de que em todos os corpos, defeitos e virtudes decorrem de


prakrti (natureza). Tendo removido todos os defeitos pela prática do Yoga, deve-se
dedicar-se ao supremo (Harī e sua consorte).

Remover todos os defeitos do corpo diz respeito aos defeitos que são impedimento à
harmonia do corpo, não questões estéticas ou relacionadas a um rendimento
esperado para atividades como atividades esportivas, por exemplo.

Uma vez estabilizado a saúde e equilíbrio, o foco é o supremo, que tem aspectos
femininos e masculinos.

IV.33 - Tudo que é criado pelo tempo, contexto, etc, possui virtudes e defeitos. O
propósito é agir com disciplina em ordem de remover os defeitos.

Defeitos seriam tudo aquilo que impede a conexão com o divino. Quando atentos, é
possível reconhecer quais ferramentas devem ser usadas para se remover estes
defeitos.

IV.34 - Concepção, gravidez, nascimento, infância, adolescência, juventude, meia


idade, velhice e morte são os nove estágios que o corpo humano passa.

IV.35 - Nunca se associe com pessoas más que estão interessadas somente em
satisfazer seus desejos sexuais e gastronômicos. Segui-los é como um homem cego
seguindo outro homem cego.

Novamente o texto nos alerta sobre associações equivocadas, já que somos facilmente
influenciados por tudo aquilo que faz parte de nosso convívio. Para o Yoga, não há
como caminhar para o cerne quando se está engajado em satisfazer o desejo sexual e
gastronômico. Esta ideia se estende no próximo śloka.

IV.36 - Para aquele cuja atenção mental é sempre roubada pela sexualidade, qual o
propósito da educação, purificação (tapa-s), estudo dos Veda-s, discernimento (viveka)
ou silêncio (maunam)?

IV.37 - Não se pode desenvolver visualização (bhāvanā) pelo que não pode ser visto ou
ouvido. Sem regular a respiração também não é possível a quietude mental.

IV.38 - Por práticas inapropriadas de Yoga, doenças ocorrem no corpo. Quando se


insiste em disciplina (insistência na prática adequada), estas doenças são removidas.

196
IV.39 - Algumas doenças são removidas pela meditação (mantra japa, recitação
contínua de mantra), outras pela prática de āsana, outras por disciplina (tapa-s),
prática de cânticos (mantra-s), e ervas (oṣādhaiḥ).

Não podendo esquecer que cada caso é um caso.

IV.40 - Algumas pessoas sabidas utilizam diferentes meios para curar o corpo, na
tentativa de obter diferentes benefícios.

IV.41 - Estes meios (upāya-s) podem não ser válidos sempre, podendo produzir
fraquezas indesejadas no corpo, que tem um fim. Isto é similar a plantas que produzem
alguns frutos que são sem utilidades.

Os frutos variam de acordo com nosso empenho e nossa natureza. Muitos frutos
podem nascer, mas precisamos focar nos que realmente são importantes. É
fundamental sermos precisos, para não gastarmos tempo e energia nem desvirtuar
nosso caminho na busca por frutos que, no fim das contas, não serão válidos para
nosso progresso. Os principais frutos das práticas devem servir para retirar impurezas
e aumentar a duração da vida.

IV.42 - Na atual era (kali yuga), mesmo por causa de pouco dinheiro se desiste de
amigos, desta vida preciosa e se destrói até mesmo os próprios parentes.

E ainda...

IV.43 - Pessoas más que só buscam satisfazer seus desejos sexuais e seus estômagos
não protegem nem seus pais, crianças, esposas (os) ou amigos.

IV.44 - Assim como a associação de óleo, pavio e lamparina produz fogo, assim é a vida
com o corpo. Então, nutra-o.

O pavio pode ser comparado aos vasos sanguíneos. O recipiente/receptor é o fígado. O


óleo é a comida que consumimos e a luz é o fogo gástrico.

Aqui termina o Yoga Rahasya de Nāthamuni.

197
CAPÍTULO III – APLICAÇÃO
REFLEXÕES PRÁTICAS

RESPEITO PELA CRENÇA E REALIDADE DO ALUNO

No Yogasūtra, o sábio Patañjali nos ensina a respeitar a realidade e visão do outro. Isso
fica evidente nos sūtra-s III.6, sobre viniyoga, e no IV.15, 16 e 17, sobre o conceito
vāstu-tantraṁ.

O professor de Yoga precisa respeitar a visão de mundo do aluno, suas dores e


crenças. E, para trabalhar com o aluno, deve respeitar sua condição e limitações.

RESPEITO POR OUTRAS TRADIÇÕES

De que adianta falar mal dos outros? Depreciar os outros ou suas ações é a
manifestação de um instinto primitivo em nós: a agressividade. Por que o fazemos?
Por que essa violência? Talvez falar mal de algo ou de alguém gere a sensação de que
isso irá nos enaltecer.

Para valorizar algo, não necessariamente é preciso depreciar outra coisa. O valor das
coisas se mostra por si. Isso pode demorar, mas fica nítido para quem é atento.

Eu nunca presenciei minha professora falar mal de nenhum outro professor ou


linhagem diferente da dela. Hoje existem muitos métodos de Yoga que trazem
abordagens diferentes do que encontramos na tradição e nas escrituras. Algumas,
mesmo recebendo o nome de Yoga, simplesmente contêm apenas alguns aspectos do
Yoga. Ainda assim, eu nunca a escutei depreciar nenhum método ou interpretação,
por mais controverso que pareça.

Ela simplesmente diz “aqui nós fazemos diferente”, e explica o porquê.

Desikachar teve o mesmo professor que BKS Iyengar e Pattabhi Jois, que foram
professores muitos famosos no mundo todo. Embora o professor fosse o mesmo, os
ensinamentos e abordagens eram bastante diferentes. Alguns até mesmo divergentes.

Obviamente isso fez com que Desikachar tivesse que responder inúmeras vezes as
mesmas perguntas: por que outros alunos de seu pai ensinavam de outro jeito? Eu
presenciei isso algumas vezes. Percebia em Desikachar uma paciência. Na maioria das
vezes, ele dizia não saber e explicava o que seu pai lhe ensinara.

A depreciação não é benéfica para ninguém.

No passado existiam debates. As divergências ficavam limitadas a este âmbito, e isso


favorecia o Yoga.

198
YOGA E HINDUÍSMO

Lembro-me da primeira vez que eu pisei no Krishnamacharya Yoga Mandiram, em


janeiro de 2003. Na época, a instituição era uma casa simples, que parecia uma
residência familiar. Ao lado da entrada havia uma estátua do sábio Patañjali, e, embora
estivéssemos na Índia, esta era a única imagem existente. Em cada sala havia um
pequeno retrato de Krishnamacharya, ācārya que inspirou a fundação, e nada mais.

Krishnamacharya era um religioso ortodoxo, porém pregava que o Yoga não estava
limitado a uma religião ou expressão de religiosidade. Como aprendemos através do
estudo do Yogasūtra, a mensagem e aplicação do Yoga é universal.

Entre praticantes e professores que conheci na instituição, encontrei pessoas de


diferentes religiões. Nesta temporada de estudos em 2003, dois professores de meu
curso eram muçulmanos.

Desikachar contou que quando começou a estudar Yoga com seu pai, pediu que ele
não abordasse temas ligados a Deus. Este é um ponto que merece atenção: em alguns
textos. o Yoga é apresentado como sinônimo de conexão com o divino, mas no
Yogasūtra de Patañjali, īśvara é apresentado como uma opção.

Desikachar inclusive contava a passagem do Brahmasūtra, uma das mais importantes


obras sobre Advaita Vedānta, em que o comentarista critica a visão estabelecida pelo
Yoga por não trazer īśvara como tema principal [BS II.1.3].

Segundo Desikachar, esta crítica ao Yoga provavelmente se dava pela apresentação de


Patañjali no sūtra I.23.

A explicação de Desikachar sobre o sūtra é lindíssima, explicando que todas as pessoas


possuem fé, mas nem todos possuem fé em um Deus conceitualmente elaborado e
que fora adornado pela imaginação humana.

Como curiosidade, vale contar a história do próprio Desikachar e sua relação com esta
força maior, īśvara. Embora Desikachar não mostrasse interesse pelo tema ligado
a īśvara quando era jovem, segundo minha professora, a partir de um certo ponto em
sua vida, quase todas as explicações que ele dava acabavam sendo relacionadas de
alguma maneira ao tema īśvara e a devoção.

O que quero discutir é que o estudo do Yoga pode ser ensinado sem ser misturado às
tradições religiosas indianas, e até mesmo sem aprofundar o tema sobre īśvara. Mas
as experiências que o Yoga produz tendem a nos levar a refletir sobre uma força
superior à nossa.

Ainda em 2003, Desikachar contou a seguinte história:

Nos anos 1970, acontecia anualmente na Suíça um evento que reunia diferentes
professores de Yoga. O evento se chamava Zinal Congress, organizado por Gerard Blitz,
que foi aluno de Krishnamacharya e Desikachar.

199
Desikachar falou sobre um fato ocorrido em um ano deste festival. Disse ele que atrás
do palco havia um grande tecido com o símbolo Oṁ, e, antes de dar sua palestra,
Desikachar pediu que esta imagem fosse retirada. Os organizadores do evento não
entenderam sua colocação. Afinal, o mantra e o símbolo Oṁ eram utilizados por todos
professores, e, se Desikachar era hindu, qual seria o problema?

Então ele explicou o motivo. Naquele ano, um amigo de Desikachar o acompanhava


nesta viagem. Este amigo era praticante de Yoga e muçulmano. Ele comentou com
Desikachar que, ao ver o símbolo Oṁ decorando o palco, não iria ao congresso.

Para muitas pessoas, misturar ideias, símbolos e simbologias de diferentes filosofias e


religiões é algo enriquecedor. Mas precisamos neste caso entender o contexto cultural
e as tensões que existem na Índia e que envolvem hindus e muçulmanos.

Por exemplo: Desikachar contou que na sua infância crianças muçulmanas e hindus
não brincavam juntas, muito menos frequentavam as casas umas das outras. Ele
brincava com crianças muçulmanas, e as trazia para sua casa. E ele lembra que,
quando essas crianças saiam, sua mãe, talvez inconscientemente fazia uma faxina na
casa. Esse é apenas um exemplo para ilustrar um pouco sobre o convívio entre essas
duas culturas.

E isso não é apenas algo que acontecia no passado. A intolerância religiosa é algo
presente na Índia até hoje.

Voltando à história do congresso de Yoga na Suíça, ao escutar seu amigo, Desikachar


refletiu sobre a universalidade do Yoga e o sūtra I.27. Então se comunicou com
responsáveis do evento e pediu para que o cenário que estava atrás do palco fosse
mudado.

O grande símbolo do Oṁ foi retirado. Em sua palestra, Desikachar abordou a relação


entre Yoga e hinduísmo, e aprofundou a importância de interpretar a mensagem do
Yoga como uma mensagem universal.

Suas ideias foram aceitas por muitos, mas criticadas por alguns. Afinal, estavam
presentes no evento alguns expoentes do Yoga e Vedānta que não apreciaram a ideia
de retirar o grande banner com o símbolo Oṁ, que é sagrado para hindus.

O que Desikachar explicou é que Oṁ pode ser integrado ao Yoga, mas nem todas
pessoas e culturas entenderão sua força.

Em outra aula Desikachar explicou alguns pontos que nos ajudam a entender certas
distinções entre o pensamento essencial do Yoga e do Vedānta. Embora o Yoga e
o Vedānta se comuniquem, e muitas pessoas se beneficiem de ambas tradições, nem
todas ideias e aplicações destas duas vertentes convergem o tempo todo.

200
O COMPROMISSO COM AS VERDADES QUE NÃO SABEMOS

O Yogasūtra não é uma obra de respostas. Não traz verdades absolutas e não expõe
suas ideias de forma impositiva. E constatações como essas devem servir de reflexão
ao professor de Yoga.

Muitas vertentes ligadas à espiritualidade explicam o inexplicável e fazem afirmações


definitivas sobre verdades absolutas. Mas no Yoga é diferente, o não saber é também
uma liberdade.

O Yoga não trata de certos temas, ou não responde de maneira determinista sobre
certos assuntos. E, pelo estudo do Yogasūtra, entende-se que o papel do professor de
Yoga não é definir verdades absolutas.

Como é nirbīja samādhi? Puruṣa possui karma? Então por que encarna? Por que os
kleśa-s são naturais à mente? De onde vem nossas sementes? Qual a origem dos
vāsana-s? Quem é īśvara?... Nada disso é respondido. A educação no Yoga não é
voltada para responder esses temas. Respostas que são escutadas e não vividas, são
alimento para a imaginação. E a curiosidade sobre certos temas é um impedimento à
liberdade [IV.29].

Ao ensinar Yoga, o compromisso com as verdades que não temos é algo


extremamente importante.

SOBRE A TRANSPARÊNCIA EM NÃO SABER

Além de não termos todas as respostas, muitas nós realmente não sabemos. O Yoga é
muito vasto, e o ser humano muito complexo. Não é possível saber de tudo!

Às vezes, mesmo que o professor saiba a resposta, ele ou ela pode não conseguir achar
os meios para expressar essa resposta na linguagem do aluno. Em casos como este, o
professor pode fragmentar a resposta ou simplificá-la. Pode acontecer do aluno
perguntar algo que ainda não esteja preparado para compreender. E, ao invés de dar
uma resposta, o professor pode sugerir um caminho a ser percorrido para trazer maior
maturidade.

O professor pode se incomodar em não dar uma resposta imediata, precisa, profunda
e didática, afinal, o aluno pode achar que ele ou ela não sabe a resposta. Mas é
importante que a vaidade não impere.

Se esquecemos sobre a resposta certa, ou não temos certeza, melhor responder “eu
não sei”. Isso pode incomodar nossa vaidade, mas o professor não é aquele que tudo
sabe. Eu já escutei “eu não sei” de minha professora algumas vezes. Ou, “vou
pesquisar e depois te digo”, e, “não sei, vou refletir”. E ainda “o que você acha?”. Esta
transparência ensina e inspira sobre o valor da transparência.

201
VAIDADE

“Vaidade, todo mundo tem. Quem disser que não tem vaidade, vaidade tem”. Essa
frase é de Pedro Santos. No caso do Yoga, Patañjali nos chama atenção para não nos
perdermos em nossa vaidade. Isso é explícito nas mensagens dos sūtra-s III.37, III.50,
III.51 e IV.7, por exemplo.

O tema vaidade merece constante atenção. Hoje conseguimos observar que em


poucas décadas o professor de Yoga saiu de uma “caverna” e foi para um “palco”.

As mídias sociais são grandes holofotes. Podemos utilizar a exposição para promover o
Yoga ou para nos autopromovermos. Tudo é possível, mas qual caminho é o mais
apropriado para ajudar o professor de Yoga a sustentar sua caminhada como
praticante de Yoga? Esse é o ponto a ser refletido!

Para trazer exemplos e inspiração citarei dois expoentes em Yoga, uma nos EUA e
outro no Brasil.

Em meados da década de quarenta, Indra Devi ensinava Yoga em Hollywood, obtendo


êxito, publicando livros sobre o tema e tendo entre seus alunos estrelas do cinema
daquela época. No entanto, seu trabalho foi tão bem realizado que hoje o Yoga é
bastante popular nos Estados Unidos, mas muitos nem sabem seu nome.

No Brasil, eu tomo como exemplo José Hermógenes que, no início dos anos sessenta,
começou a divulgar as técnicas de Haṭhayoga que lhe ajudaram a recuperar seu frágil
quadro de saúde. Em 1967, escreveu “Autoperfeição com Haṭhayoga” (o primeiro livro
que eu li sobre o assunto). Em 1993, eu conheci Hermógenes, ou, “professor”, como o
chamávamos carinhosamente. Estive em muitas de suas aulas e tive o prazer de
acompanhá-lo em uma viagem à Índia. José Hermógenes foi um dos grandes
divulgadores do Yoga e, pelo que percebi em sua trajetória, sua intenção estava
sempre voltada para a divulgação do Yoga e para o benefício do próximo.

Se hoje o Yoga pode ser utilizado para se autoafirmar e ganhar fama, isto é uma
decisão pessoal. A discussão sobre este tema, se isto é correto ou não, não nos
acrescenta nada. Mas vale saber que este é um fenômeno novo. Também vale a
reflexão constante sobre para onde estamos caminhando, ou seja, se queremos ser
reconhecidos ou se queremos ser um praticante de Yoga genuíno. Tanto Indra Devi
quanto o professor Hermógenes se tornaram referências, mais porque se
concentraram em ser genuínos, em vez de mirarem o estrelato do Yoga.

A DIFERENÇA ENTRE QUALIDADE E QUANTIDADE

202
O sistema de ensino adotado no passado era o gurukula. O professor recebia até doze
alunos por vez. Isso hoje não representaria popularidade, mas no passado a escala era
outra.

Tendo em vista que um dos principais propósitos de ensinar Yoga era passar adiante
uma tradição, mais importante do que a quantidade de alunos era a qualidade dos
mesmos.

Originalmente o professor não se preocupava com números e reconhecimento. Esses


não são os parâmetros no Yoga. O melhor professor de Yoga não é o que tem mais
alunos e popularidade. No passado, a qualidade do professor era medida pela
qualidade de seus alunos.

Na linhagem de meus professores, o objetivo é ensinar um aluno de cada vez. Ou seja,


o sucesso é conseguir desenvolver um trabalho contínuo e profundo de maneira
individual. Um pra um.

POPULARIDADE E RECONHECIMENTO

Em tempos atuais, a popularidade possui um tremendo valor. O reconhecimento de


uma pessoa pode inclusive ocorrer devido a sua popularidade. Independente do que
gerou a popularidade, quando ela é conquistada, isso dá respaldo.

Quem foi Patañjali? Não sabemos, pois não deixou rastros. No passado, os professores
tinham que ser achados, e, às vezes, em locais isolados. Sua fama corria de boca a
boca, e os interessados iam a seu encontro pois reconheciam sua sabedoria. A fama e
a popularidade não os motivava.

O professor tendia a permanecer em um local por falta de ambição de perpetuar suas


ideias e principalmente por estar focado em suas próprias práticas.

Krishnamacharya é um bom exemplo de ācārya moderno. Ele nunca saiu da Índia.


Dava a maior parte de suas aulas em casa, onde permanecia à espera de seus alunos.
Seus ensinamentos o fizeram reconhecido entre praticantes sérios, mas não o
tornaram muito popular. Popularidade e reconhecimento não eram seus objetivos.

No ambiente rural diz-se que o ovo da pata é mais nutritivo do que o ovo da galinha,
no entanto a galinha cacareja ao pôr seus ovos, enquanto a pata não. Um dizer
popular que faz lembrar a mensagem contida no sūtra III.21.

Quando o professor realiza um trabalho íntegro, pessoas sérias reconhecem. Se a


popularidade e o reconhecimento do trabalho realizado ocorrerem, o mais sadio é não
se iludir ou se identificar.

E se a popularidade e o reconhecimento nos motivam, se pergunte: qual parte em


você precisa de reconhecimento? Por que a popularidade é algo importante?

203
A FORÇA DA HUMILDADE

A humildade não é uma virtude, mas um compromisso perante o aluno e consigo


mesmo. A arrogância distancia o professor do aluno e não permite que o professor
esteja em um contínuo movimento de aprendizado.

Escutei de Sangeetha diversas vezes as seguintes frases: “eu não sei”, “talvez seja por
essa razão...”, “no passado eu fazia de um jeito, hoje acho melhor fazer desse outro
jeito...”, “desculpe, eu errei, o correto é assim...”. Essas são frases simples, mas que
valorizam a realidade. Talvez o termo humildade no Yoga devesse significar
honestidade.

Desikachar contou uma história interessante que envolve seu pai e uma aluna, uma
senhora estrangeira. Um dia ele percebeu que esta senhora saiu da aula que tivera
com Krishnamacharya diferente do usual. Então, foi conversar com ela para entender
o que havia acontecido.

Ela disse que não teria mais aulas com Krishnamacharya, pois estava triste com o que
ele havia lhe dito. Pelo que Desikachar entendeu, Krishnamacharya tentava lhe
explicar um conceito, mas a senhora não o entendia adequadamente. Então
Krishnamacharya fez um comentário, dizendo que talvez fosse difícil para ela entender
pois não tinha filhos. E tentou explicar de uma outra maneira.

Esse comentário gerou um efeito negativo na mente da senhora, que realmente não
havia tido filhos, mas esse era um tema doloroso para ela. Quando ela foi embora,
Desikachar foi conversar com seu pai e explicou a reação que suas palavras
provocaram em sua aluna.

Horas mais tarde alguém bate a porta do quarto de hotel onde a senhora estava
hospedada. Ao abrir ela, se deparou com Desikachar e Krishnamacharya.
O hoje aclamado mestre, que é tido como o yogi de nosso século, com as mãos em
añjali mudrā disse:
“Madame, meu inglês é ruim, minha audição é ruim, por favor me perdoe.”

INOVAÇÕES

As inovações tendem a receber resistências. Penso que toda inovação na linguagem e


na abordagem de aplicar Yoga pode ser válida, se carregar consigo a verdadeira
mensagem e propósito do Yoga, e também respeitar a individualidade de cada ser
humano.

204
A cada década, novas abordagens sobre Yoga surgem e muitas são realmente olhadas
com resistência. A grande questão é que para se conseguir trazer algo novo é preciso
conhecer o tradicional. E, no caso do Yoga, isso nem sempre tem acontecido.

Estar no papel de crítico e de defensor do Yoga original não é um lugar saudável de se


estar. E, para inovar algo tão vasto e completo, é necessário muito estudo, experiência
e intuição. Às vezes, a inovação é apenas uma simplificação, uma formatação limitada
de um conjunto de ferramentas ou a associação do Yoga com outra vertente,
pensamento e interesses, o que gera uma descaracterização.

Krishnamacharya trouxe inovações ao Yoga, mas todas inovações eram resgates de


ferramentas já existentes, como o conceito de vinyāsa aplicado ao āsana, e a
confluência da prática de āsana com mantra, por exemplo.

Desikachar inovou na forma de comunicar os conceitos do Yoga em uma linguagem


acessível aos que não são familiarizados com a tradição e cultura védica.

BKS Iyengar inovou ao refinar os suportes que os yogi-s do passado utilizavam para
praticar āsana-s, e elaborou uma nova visão de se alinhar o corpo ao realizar āsana.

Esses são alguns exemplos a nos inspirar.

A inovação costuma pagar um preço, que é a crítica de pessoas que possuem ideias
mais conservadoras. Mas a inovação nem sempre significa algo novo. Ela costuma ser
uma renovação.

A RENOVAÇÃO E O ENRIJECIMENTO DA TRADIÇÃO

Tradições como o Yoga, assim como outras tradições, contam com a participação ativa
de inúmeras pessoas que através dos séculos vão transmitindo e reforçando um
conhecimento. Todos indivíduos que fazem parte desta corrente possuem participação
fundamental, mas em duas posições distintas. Alguns seres conseguem tocar e
experimentam um saber, enquanto outros o passam adiante.

As tradições possuem seus expoentes, que são pessoas que brilharam em algum
período, e que, pela luz de seus discernimentos e pela força de suas experiências, além
de se transformarem, também influenciaram os que estavam próximos.

Essas pessoas são marcos e deixam um legado. Os que vêm posteriormente repassam
a diante as descobertas. Mas, conforme as gerações vão passando e se distanciando
desses marcos, o pulsar das experiências esclarecedoras que foram vividas por alguns
sábios vai se amornando. Os que conviveram próximos, conseguiram sentir a força
desse pulsar, mas depois de algumas gerações essa experiência inevitavelmente se
transforma em ideia.

205
Ideias sobre um conhecimento vão sendo transmitidas pela corrente que forma uma
tradição. Mas de tempos em tempos surgem indivíduos que novamente conseguem
tocar neste conhecimento. Por sentirem por elas mesmas, tendem a transmitir suas
experiências de uma maneira própria. Se suas experiências forem realmente
luminosas, se tornam em um novo marco dentro da tradição, que vai ajudar a guiar os
que virão depois.

Mas há um momento em que essas novas expressões se deparam com as ideias


antigas. Segue um conto para ilustrar:

Na terra dos urubus, uma vez surgiu um sabiá. Encantados com seu canto, os urubus,
que não sabem cantar, pediram ao sabiá que os ensinassem. Os urubus aprenderam e,
posteriormente, formataram esse conhecimento. As gerações seguintes receberam e
carregaram o legado.

Muito tempo se passou e um outro sabiá apareceu na terra dos urubus. Como é
natural do sabiá, começou a cantar. alguns urubus que ouviram contestaram, “não é
assim que se canta!”. Outros se encantaram e se aproximaram para aprender.

YOGA E POLÍTICA

Toda ação pode ser considerada um ato político, inclusive a dedicação em aplicar os
valores do Yoga na vida. Aristóteles colocou que “o homem é, naturalmente, um
animal político”, e talvez o seja. Mas no caso do Yoga, o yogī não aparece na história
como um agente ativo dentro do tabuleiro político. Seu lugar de atuação é diferente.

Na história da Índia, poucos indivíduos ocuparam ao mesmo tempo o papel de líderes


e grandes sábios. Um raro exemplo foi Manu ṛṣi, cujas marcas se perpetuaram ao
longo dos séculos e serviram como uns dos alicerces da cultura indiana.

As escrituras Haṭhayogapradīpikā, Gheraṇḍa saṁhitā e YogaYājñavalkya saṁhitā, por


exemplo, fazem menção a importância de que os governantes governem com
honestidade. Mas na história do Yoga não vemos rastros que indiquem uma mistura
com o jogo político.

A política possui um papel importante, pois é uma alternativa que possuímos à guerra.
E, mesmo que o diálogo entre os Estados e entre Estado e cidadão não seja justo, pela
política há a possibilidade de algum diálogo - ao invés de nos digladiarmos. Mesmo
com todas as falhas e limitações, isso é algo valioso.

Indivíduos com vocação política devem seguir com convicção e tentar transformar o
mundo através de seu talento e articulação política. Os valores do Yoga podem até
servir como inspiração, afinal, a vida coletiva em sociedade requer paciência,
tolerância e sabedoria, e esses valores são trabalhados no Yoga.

206
Como exercício imaginativo, podemos pensar que, se tais valores pudessem ser
levados para o tabuleiro político, quem sabe veríamos diálogos para além de opiniões
partidárias e livres de vontades que só interessam a um grupo de pessoas.

Por outro lado, trazer elementos do pensamento político para o Yoga, ou fazer política
no Yoga, é algo incoerente. Em tese, a política seria a ciência que organiza a vida dos
que vivem em grupos, mas, na prática, o tabuleiro político é regido por fortes
interesses. E veja bem: enquanto Patañjali explica que na vida não temos sequer o
controle sobre nossas ações e seus frutos, a política tem sido utilizada como um
instrumento para os que têm sede de poder.

O Yoga apresenta um projeto para elevar a consciência da humanidade. Esse projeto é


apartidário.

Ao longo da história, a Índia enfrentou e enfrenta muitas crises políticas. Enquanto


isso, yogi-s e praticantes dedicados continuaram e continuam engajados em transmitir
essa cultura da paz. Fazem isso sem medo de dar certo ou não, e sem a motivação do
poder ou estarem amarrados a lideranças políticas. Aqueles que seguem a ideia do
Yoga entendem que não desejar o controle é uma grande liberdade.

Os yogi-s seguem suas próprias inspirações. A maior rebeldia é não ter medo, e o jogo
político tende a ser motivado pelo medo. Ainda hoje, yogi-s e praticantes ultrapassam
fronteiras entre estados e países sem reconhecê-las. Isso ocorre entre Índia, Nepal,
Tibet e até mesmo na Caxemira (Kashmir), onde os exércitos da Índia e do Paquistão
vivem em constante clima de tensão. Em suas rotas de peregrinação, as fronteiras
existentes nos mapas não são barreiras.

O distanciamento dos yogi-s em relação a intenções políticas não significa que seu
pensamento seja anárquico e egoísta. Lembremos que a dedicação à não violência e
intenção de autocontrole interno há de voltar para a sociedade na forma de respeito à
coletividade e a um bem maior. O desenvolvimento de uma sensibilidade aguçada
tende a levar o indivíduo a desenvolver naturalmente maior respeito à vontade
coletiva e ao ambiente que o cerca. O senso de fraternidade brilha nos olhos dos que
entendem profundamente o Yoga.

Dentro da perspectiva do Yoga, quando valores elevados são incorporados,


inquietações internas e confrontos externos deixam de existir. Por exemplo, como é
explicado no Yogasūtra, pela incorporação de ahiṁsā, as inimizades cessam [YS II.35].
Por satya, o indivíduo consegue se comunicar sem violência e se torna disponível para
entender o lado do outro [YS II.36].

Se realmente entendermos a mensagem do Yoga, entendemos que só é possível


discutir algo na ausência de paixão e medo. Com paixão e medo, a discussão vira
confronto, e não há possibilidade de troca. No confronto ambas partes perdem.

No sūtra I.33, Patañjali parece apresentar um projeto para sensibilizar o indivíduo, mas
que se for aplicado terá impacto na humanidade. Maitrī, karuṇā, mudita e upekṣa [YS

207
I.33] propõem uma irmandade, o que não significa compactuar com todos e com tudo,
mas manter-se aberto para dialogar de maneira saudável.

Direta e indiretamente, o Yoga desenha seu projeto de mundo, mas isso não
necessariamente é um plano político. O Yoga crê na transformação do indivíduo. Não
pela guerra, mas pela paz. O épico Mahābhārata, do qual a Bhagavad Gītā é parte,
relata uma injustiça que termina em uma sangrenta guerra, e essa guerra pode ser
definida como uma luta entre o bem contra o mal. Mas pelo Yoga esta história não nos
move para militâncias e confronto direto. Ela serve mais como inspiração para um
engajamento em uma luta que é interna.

A revolução deve ser primeiramente interna. E pelo Yoga se entende que a


transformação do mundo não pode ser um movimento imediato, pois não é possível
um despertar coletivo. As transformações são movimentos individuais [YS II.22]. As
pessoas não se transformam apenas quando mudam de ideias, mas quando começam
a sentir de uma forma diferente.

Os que se autotransformam, tornam-se exemplo de que a paz, a liberdade interna e a


sabedoria são as grandes inspirações para fazer a diferença no todo.
Consequentemente, pela convivência, acabam inspirando positivamente outras
pessoas a se voltarem para o mesmo propósito.

A sociedade muda quando os indivíduos que a formam se encontram livres para


mudar. E, mesmo sendo um processo lento, o Yoga se concentra nas ações individuais
e mira na liberdade. Talvez as revoluções não queiram esperar esse longo processo.
Qual é o caminho certo? Não sabemos, mas o fato é que são vias distintas de olhar
para o presente e para o futuro.

Trazendo uma analogia com uma famosa passagem de Jesus de Nazaré, penso que se
deve dar a política o que é da política, e ao Yoga o que é do Yoga. No entanto, perceba
que ao me expressar posso já estar tendo um posicionamento político. Vamos refletir.

Um professor de Yoga deve sentir-se livre para se expressar como sente, inclusive
sobre suas opiniões políticas. Mas sempre temos que ser vigilantes, pois toda opinião
pessoal de um professor pode influenciar seu aluno. E aqui há mais um ponto a ser
pensado: as opiniões do professor não devem afetar a liberdade do aluno.

Independente das vias escolhidas para transformarmos nós mesmos, ou o mundo, não
devemos nos equivocar sobre pontos fundamentais à vida: A justiça e o bem-estar
comum, por exemplo, são temas humanos que transcendem ideias partidárias e não se
limitam apenas ao campo da filosofia. Existe o caminho do Yoga, existe o jogo político
e existe a maldade.

O forte engajamento no jogo político tende a atrapalhar o forte engajamento no Yoga,


e vice-versa. Independente das opiniões e caminhos que tomamos, que possamos
estar atentos para colocar a vida em primeiro lugar e debater com sensibilidade sobre
todas as coisas.

208
YOGA NÃO É PRODUTO

A transmissão do Yoga não significa a comercialização do Yoga. Tudo pode ser


comercializado, mas comercializar o Yoga não beneficia nossa própria caminhada, não
é a melhor estratégia para atingir a sensibilidade do coração do aluno e nem contribui
para fortalecer o coração da tradição do Yoga.

É preciso cuidar das motivações monetárias. O Yoga é uma devoção. Viver de Yoga
significa ser nutrido diariamente por suas reflexões e práticas. Criar e vender produtos,
como acessórios e livros, por exemplo, pode ser uma doação, mas também pode servir
a nossa ganância. Quanto precisa custar um livro, ou quantos produtos necessitamos
para praticar?

Certa vez passei na frente de uma grande loja exclusivamente voltada para produtos
relacionados ao Yoga. Na vitrine, havia escrito em letras grandes: “tudo que você
precisa para sua prática com quarenta por cento de desconto”. Da calçada, senti uma
grande felicidade. Mesmo sem saber do que havia no interior, senti-me abençoado por
não precisar de nada que eu já não tivesse comigo para poder praticar Yoga. E feliz por
não olhar a propaganda e impulsivamente entrar e consumir algo.

Abordagens extremamente comerciais tendem a agitar o público. E, se o público é o


público dedicado à tradição, essa abordagem está desalinhada à proposta do Yoga,
não só porque agita, mas porque é mais devotada ao ganho monetário.

Transmitir o Yoga gera alguma remuneração. Viver dos lucros vindos do Yoga é algo
possível e pode ajudar ambos os lados a se dedicarem mais a proposta do Yoga. Mas,
se o plano é realmente enriquecer, o mais apropriado é buscar outra profissão.

MÉTODOS

Reflita:

O Yoga sintetizado em um método é algo mais fácil de ser transmitido e assimilado.


Mas, na intenção de transmitir para muitos, é possível que muitos entendam
fragmentos como se fosse um todo. E, no fim, o esforço em expandir a ideia do Yoga
vira uma diminuição do Yoga.

Métodos e estilos de Yoga podem servir ao praticante. Mas o praticante deve servir ao
método? Essa é uma questão importante. Quem está à frente: as necessidades e
verdades do praticante ou a ideia de perpetuação de um método?

No caso do professor de Yoga, em primeiro lugar, está a necessidade real do aluno,


depois é que se escolhe a abordagem, método ou até mesmo estilo de se praticar
āsana.

209
Nos voltemos à análise do Yogasūtra II.27: primeiro se observa os sintomas, depois
investiga as causas. Então, se identifica o objetivo, para daí se planificar um caminho e
escolher as ferramentas.

Definir a ferramenta antes de entender os sintomas, as causas e os objetivos é uma


violência silenciosa. Como disse Krishnamacharya: “não é o indivíduo que deve se
adaptar ao Yoga. O Yoga é que deve ser adaptado ao indivíduo”.

CERTIFICAÇÃO

Certifique-se:

● Que sua conduta é coerente aos valores apresentados pelo Yoga.


● Que a assimilação dos conceitos do Yoga demora décadas.
● Que seu professor se dedica verdadeiramente ao sādhana.
● Que existe uma proximidade verdadeira com seu professor e que é dela que
nasce o aprendizado.
● Que existe uma proximidade com seus alunos, e essa proximidade permite o
aprendizado.
● Que é a força de seu próprio sādhana e as experiências pessoais, guiadas pelos
conselhos dados por seu professor, que se transformam em ensinamentos para
os alunos.
● Que o estudo é contínuo.
● E esteja certo de que um papel não transforma ninguém em um professor.

PARA ENSINAR O YOGA

COMO OBSERVAR O ALUNO

O professor precisa entender quem está à sua frente para entender a metodologia
adequada a seu aluno. Existem questões e características do aluno que só o tempo e a
longa convivência revelarão. Mas um bom professor é capaz de captar muitas
informações já no primeiro contato.

A capacidade de leitura da minha professora me surpreendeu em muitos momentos.


Certa vez, quase cinco anos sem vê-la, com três minutos de conversa ela descreveu as
mudanças que notava em mim. Perguntei como ela podia ter este diagnóstico de
coisas tão íntimas em três minutos? Ela disse: sua voz e seu olhar demonstram isso.

A maneira de se ensinar, entender e praticar Yoga mudou um bocado nas últimas


décadas. Uma das razões se deve ao fato de que já há algum tempo o professor tem a
sua frente uma turma com muitas pessoas. Há pouca troca e quase nenhuma
interação fora do momento da aula. Assim, é difícil para o professor perceber seu
aluno.

210
Da estrada onde encontrei Sangeetha até sua casa, ela pôde fazer uma leitura precisa
em apenas três minutos por dois motivos: porque nós já convivemos bastante e
porque ela treinou sua percepção. Seus professores a instruíram neste sentido.
Na tradição desta linhagem, o professor avalia alguns pontos básicos que darão
informações valiosas sobre o aluno, principalmente sobre aquilo que não está
explícito, nem é revelado por ele ou ela.
Os principais pontos são:

DARŚANA: observação

Um dos pontos é a capacidade de observar, simplesmente observar. Esta capacidade já


demonstra uma qualidade no professor. Observar não é simples. Observar é algo
impossível para uma mente inquieta.

Pela observação muitas coisas serão percebidas. A maneira de caminhar, sentar-se,


gesticular. A vibração, velocidade e altura da fala, por exemplo, assim como o olhar,
demonstram muito sobre o indivíduo.

Desikachar dizia que pelas batidas da porta podemos saber quem é, e como está o
visitante.

AKRTI PARĪKṢĀ: estrutura, métrica e dinâmica do corpo.

O professor deve observar a dimensão do corpo, sua coluna, alinhamento e equilíbrio.


Em quais áreas existe espaço e em quais áreas o espaço está comprimido. Esta
observação se dá enquanto o corpo está parado (bhāga sthiti), mas o professor
também precisa observar como o corpo reage no movimento (bhāga vṛtti).

PRAPŚNAM: perguntas

O professor pode realizar algumas perguntas básicas para saber sobre características e
humor do aluno. É importante saber do histórico, do momento de vida, da trajetória
até o Yoga e da relação que esta pessoa tem com o Yoga. Mas, além de informações
que o aluno ou aluna informa, pela maneira com que a pessoa se expressa o professor
pode saber um pouco mais se a pessoa possui vigor e positividade, por exemplo.

Além de ouvir o aluno e observando a maneira com que o aluno ou aluna se expressa,
o professor pode fazer perguntas para familiares, e assim entender melhor a condição
e natureza do aluno.

SPARŚNAM: sentir

Existem coisas que somente a intuição revelará. E isto só ocorre se o professor


conseguir sentir o aluno. Este não é um processo cartesiano. Trata-se de uma
experiência.

211
No último estudo que eu realizei com minha professora, ela falou de sua sensação que
teve quando começamos a trabalhar juntos, no final de abril de 2007. Ao sentar-se em
minha frente, instantaneamente teve a impressão de que eu era um garoto que
provavelmente não sabia do empenho necessário para estudar os 195 sūtra-s de
Patañjali. Mas disse que mesmo assim sentiu que deveria me instruir.

Tradicionalmente o professor só instrui a filosofia do Yoga a alguém quando sente que


esta pessoa está realmente comprometida. Este sentir está além do darśana e do
praśnam.

Curiosamente, em todas as temporadas de estudos que eu tive com Sangeetha, eu


tinha a impressão de ser instruído por professores diferentes. A razão é que ela sentia
que eu estava diferente e, consequentemente, sentindo minhas necessidades e
capacidade de foco, assim como compreensão e compromisso, me ensinava de
maneira diferente.

Este sentir tem relação com perceber o prāṇa do aluno.

NĀḌĪ PARIKŚANAM: sentir o pulso

Ler o pulso é uma arte ancestral. Segundo os sábios, ela pode revelar todas as
informações que o professor precisa para instruir seu aluno. Para se realizar essa
leitura, é necessário instrução, prática, mas, principalmente, sensibilidade natural.

Krishnamacharya e Desikachar utilizavam esta técnica para entender e acompanhar


seus alunos.

Existem diferentes locais onde se pode fazer essa medição. No punho é a mais comum.

JYOTIṢA: astrologia

A astrologia é entendida como uma ciência, não como uma adivinhação.


Krishnamacharya, entre outras aptidões, era astrólogo e utilizava esta ciência para
entender melhor seu aluno.

QUALIDADES DE UM BOM PROFESSOR

Escutei de Desikachar que as seguintes qualidades se encontram em um bom


professor de Yoga:

Jñānī - sabedoria

● Ela/ele tem paciência para ensinar o que aprendeu, humildade para reconhecer
o que não sabe e entusiasmo para aprender o que ainda não sabe.
● Sinceridade. Ensina o que é apropriado para o aluno. Não o que é cômodo para
si, nem simplesmente o que o aluno deseja.

212
● Não aprisiona ou ilude o aluno. Ao invés disso, desenvolve a independência do
aluno. Dá instrução para que o aluno saiba decidir por si.
● Reconhece os equívocos que comete e aprende com eles.

213
Maunī – reflexão antes de falar

● Não age por impulso. Ela/ele primeiro sente e reflete. Depois age.
● Sabe a hora certa de perguntar, responder, ou introduzir uma reflexão.
● Sabe quando não falar. Quando não tem certeza ou não é a hora certa do
aluno.

Jitātmavān – autodisciplina

● Possui sua própria prática.


● Continua investigando e estudando.
● Trabalha para que sua intuição se expresse mais do que suas vontades e
opiniões egoístas.

ONDE O ALUNO SE ENCONTRA

Como professor, possuímos muitas orientações para nos guiarmos assertivamente.


Seguem algumas dicas já abordadas anteriormente.

As agitações podem estar em quatro níveis:

● Dominante
● Ativa
● Ténue
● Dormente

QUALIDADES DA MENTE

● kṣiptam
● mūḍham
● vikṣiptam
● ekāgratā
● nirudha

CARACTERÍSTICA/DOṢA PREDOMINANTE

● vāta
● pitta
● kapha

COMO PROCEDER:

1º- Amenizar ciclo kleśa-karma (śamanam)


2º- Trabalhar viveka (śodhanam)
3º- Focar em Kaivalya

214
O MOVIMENTO PARA CLAREZA POSSUI ESTÁGIOS:

● Reconhecer os sintomas das agitações


● Encontrar a causa
● Entender o objetivo
● Utilizar as melhores ferramentas para atingir o objetivo

CADA PRATICANTE ENCONTRA-SE EM UM ESTÁGIO:

● estudante (brāhmacāri)
● adulto com responsabilidades (gṛhasthā)
● aposentado de grandes responsabilidades sociais (vānaprastha)
● renunciantes (sanyāsi)

O que significa, resumidamente:

● crianças e jovens: desenvolver flexibilidade no corpo e foco na mente.


● adultos: trabalhar estabilidade na mente e corpo funcional.
● idoso: trabalhar mobilidade no corpo, segurança na mente e desprendimento
no coração.

OS PRATICANTES PODEM SER AGRUPADOS SEGUNDO SUA INTENÇÃO:

● Os “desejosos” (Ārurukṣu)
● Os “aplicados” (Yuñjāna)
● Os “conectados” (Yogārūḍha)

OU DIFERENCIADOS DE ACORDO COM SUA APLICAÇÃO (ABHYĀSA) E ABERTURA


(VAIRĀGYA):

● Pequena (mṛdu)
● Mediana (madhya)
● Grandiosa (adhimātra)

ENTENDENDO ESSES PONTOS, O OBJETIVO DA PRÁTICA PODE SER:

● Langhana – acalmar, pacificar, nutrir, esfriar


● Brahmana – incrementar, despertar, aquecer
● samāna – manter

EXISTEM DIFERENTES APLICAÇÕES:

● sṛṣṭi krama (expandir o prāṇa)


● śikṣaṇa krama (refinar a prática)
● rakṣaṇa krama (práticas para proteger)

215
● ādhyātmika krama (práticas internas)
● cikitsa krama (práticas de terapia)
● śāktī krama (práticas sutis de movimentar o prāṇa)

KRAMA DA PRÁTICA:

1º- estabilizar a saúde no corpo.


2º- afiar os sentidos.
3º- trabalhar o foco da mente, pacificar a mente, explorar a capacidade mental.
4º- incrementar movimento do prāṇa, para uma melhor absorção do prāṇa.
5º- trabalhar o desprendimento e se voltar para total devoção ao ser interno.

CONCEITO DE YATMA ŚAKTI:

Yoga Rahasya explica que:

● I.31 – No que diz respeito à estrutura do corpo, algumas pessoas são pesadas,
algumas magras, algumas fracas, algumas torcidas e outras “quebradas”.
Portanto, nem todos os āsana-s são adequados para todos os corpos.
● I.32 – Segundo os sábios visionários (ṛṣi-s), as práticas de Yoga precisam ser
introduzidas somente após se haver investigado as capacidades da pessoa e as
causas de suas incapacidades.

Considerações trazidas no verso I.24. A prática varia de acordo com:

● Deha – o corpo. Respeitar suas características, considerar sua estrutura, suas


fraquezas e potencial individual.
● Deśa – o local. Referente ao local onde se mora, e onde ocorre a prática.
● vṛtti – atividades. Referente ao tipo de trabalho (considerando também o
ambiente e sua intensidade. Assim como o trajeto e meio que o levam ao
trabalho, e a posição que assume quando trabalha) e outras atividades do
cotidiano (como esportes e recreação).
● Ṛtu – o clima. É preciso considerar que o corpo muda de acordo com as
estações. Mesmo estando no mesmo lugar e realizando as mesmas atividades.

Considerações trazidas no verso I.30. Observe:

Kāla – tempo

● Como está o tempo no momento da prática. Exemplo: frio, calor, úmido.


● Se a prática ocorre de manhã, de tarde ou de noite.
● Quanto tempo se tem para praticar
● Quanto tempo se consegue manter o foco na prática.
● Tempo nas posturas.

216
Horário de agravamento dos doṣa-s:
● Kapha - 6:00 às 10:00 manhã e 18:00 às 22:00.
● Pitta - 10:00 às 14:00 e 22:00 às 2:00.
● Vāta - 2:00 às 6:00 e 14:00 às 18:00.

O horário da prática deve respeitar a natureza essencial do sujeito, prakṛti, e sua


intenção de equilíbrio.

Deśa – local onde ocorrem as práticas

Observe o espaço e o que o espaço oferece.


● Características e qualidade do ar.
● Temperatura.
● Ambiente (sala, quarto, banheiro, se há outras pessoas).
● Se é no local usual ou em uma viagem.

Vayas – idade

● Referente à fase da vida. As práticas variam de acordo com o estágio do


praticante e com seu papel social, que pode ser ativo ou não.
● O corpo muda com o tempo. E as necessidades precisam mudar. Por isso as
práticas mudam.
● Certas coisas são irreversíveis. Depois de uma certa idade, nossa lubrificação,
capacidade de regeneração dos tecidos, força muscular, pressão, etc., tendem
a mudar. As mudanças precisam ser aceitas. Não adianta forçar.

Vṛtti – atividade

● Como é a natureza mental do praticante e como sua mente se comporta antes


da prática, durante a prática e depois da prática.
● Como está a vida do praticante. Intensa, confusa, estável, etc.
● Como é e está o trabalho e as atividades do praticante.

Śakti – potencial do praticante

● Capacidade física
● Capacidade sensorial
● Capacidade respiratória
● Capacidade mental
● Capacidade de aprendizado
● Capacidade emocional
● Capacidade espiritual

Gênero

Embora cada pessoa deva ser observada de forma individualizada, podemos levar em
consideração o gênero, pois mulheres e homens possuem constituição física e

217
natureza diferenciadas. Muitas práticas servem para ambos, já outras não fazem
sentido.
OS KLEŚA-S

A principal instrução do Yoga é voltada para reduzir a influência dos kleśa-s, com isso,
possibilitar viveka, e, como consequência, se devotar a kaivalya.

Sendo assim, o papel mais urgente do professor é trabalhar para reduzir a influência
dos kleśa-s. O professor não tem autonomia para fazer isso. Sua influência será sempre
indireta [YS IV.3]. A dedicação deve se voltar para o campo emocional do aluno, e:

● O processo deve se desenvolver em etapas – krama.


● O processo deve respeitar a capacidade de absorção e de estabilidade – dṛdha.
● O processo depende da constância do aluno – kṣema.

O CAMPO EMOCIONAL

Durante o processo de aprendizagem, o professor conduz o aluno para entrar em


contato com seu ser interno. Gradualmente, com as dimensões Annamaya kośa,
Prāṇamaya kośa, Manomaya kośa, Vijñānamaya kośa. Eventualmente, com liberdade,
o aluno vislumbra Ānandamaya kośa.

O processo mais importante é conduzir o aluno à dimensão Vijñānamaya kośa. Nela,


estão impressos os principais traumas, e é, portanto, a dimensão mais delicada de ser
mexida. Sendo assim, o processo precisa ser muito respeitoso.

Embora esta seja uma tarefa difícil, tanto para o professor quanto para o aluno, o
campo emocional precisa se abrir para que as transformações ocorram.

ŚRADDHĀ

Essa condução a este lugar interno também é associada ao sūtra I.19.


Para que o processo do Yoga ocorra é necessário entrar em contato com o espaço em
nós onde há luz. Esse é o conceito por detrás da palavra śraddhā.

O dever do professor de Yoga é servir ao aluno para ajudar a proporcionar esse


contato.

Também pela explicação do Yājñavalkya, o ser supremo é a fonte de todo


conhecimento [YYS I.13] e reside no coração. A função principal do professor é auxiliar
o aluno a acessar este conhecimento interno.

AS QUALIDADES DO ĀCĀRYA

218
“Assim como um homem preguiçoso sentado em um barco quebrado não irá alcançar
o outro lado do rio, quando se tem um professor sem boa instrução, como será
possível alcançar libertação?” [YR IV.25]

O ācārya possui certas qualidades. Uma das principais é kṛpayā, que aparece no
YogaYājñavalkya saṁhitā I.14 e se refere à qualidade compassiva do professor.

Em uma aula, Desikachar definiu as principais qualidades para um ācārya conseguir


exercer seu papel:

- saber escutar (mauna)


- saber falar e quando falar (satya)
- ter contato direto com o aluno (referente pratyakṣa)
- estabilidade mental (ekāgratā)
- vocação de se doar a causa do outro - mesmo que o processo seja complicado
(satyakarma)
- confiança, ou seja, ter segurança nos ensinamentos e na tradição do Yoga, confiança
no processo de aprendizado e na transformação do aluno (śraddhāvan)
- se doar, mas não se perder. Apesar da intensidade do contato com o aluno, o
professor deve ter a capacidade de manter-se livre, não acumulando as cargas de seus
alunos. Trata-se da capacidade de se envolver profundamente, mas conseguir separar
o que é seu e o que é de seu aluno (nīlakaṇṭha).

KṢETRIKA

Desikachar relacionava o sūtra IV.3 do Yogasūtra de Patañjali com a função do


professor de Yoga. O ācārya é quem intervém de maneira eficiente (nimittam) e
indireta (aprayojakaṁ), atuando como um catalisador que provoca mudanças na
mente, na percepção e emoção do aluno.

O professor não é quem tem o controle desta mudança, mas quem pode nutrir esse
processo. Assim como um agricultor experiente (kṣetrika), que prepara o solo e cultiva
adequadamente a semente.

A palavra kṣetrika, utilizada por Patañjali e que faz analogia ao professor, é bastante
significativa. Kṣetrika é quem tem a experiência do campo, não simplesmente quem
possui conhecimento teórico.

Os ensinamentos em Yoga ocorrem pela interferência de quem o sente. Ensinar Yoga


não é simplesmente a transmissão de informações ou de crenças. O professor ensina o
que sente, ensina porque sente e ensina através da experiência.

O professor, assim como o agricultor, tem paciência. Ela é necessária pois será
necessário explicar inúmeras vezes a mesma coisa, assim como o agricultor rega suas
plantas constantemente.

219
No caso do Yoga, o professor precisará repetir os mesmos ensinamentos repetidas
vezes para a mesma pessoa e entender que não se trata de má vontade do aluno. A
proposta do Yoga é delicada e cada pessoa traz suas próprias questões.

No YogaYājñavalkya saṁhitā, o sábio Yājñavalkya explica o conteúdo de sua


mensagem mais de uma vez à Gārgi. E Gārgi é apresentada como uma das pessoas
mais sábias de sua época. Também na Gītā, o senhor Kṛṣṇa repete seus ensinamentos
a Arjuna.

Com paciência, o agricultor trata de maneira especial cada semente das diferentes
espécies de árvores. O agricultor não altera a semente e ao semear sabe que cada
semente dará um tipo de fruto referente a seu potencial. O professor, com paciência,
precisa entender seu aluno, aceitar sua natureza e, ao invés de querer mudá-la, deve
cuidar para balancear suas qualidades.

Por exemplo, todos no Yoga devem se tornar pessoas calmas, que falam, se
movimentam e piscam os olhos devagar? Cada indivíduo possui suas características
naturais. Algumas pessoas são ativas por natureza. O foco do professor é apenas
ajudar o aluno a direcionar essas características a se adequarem a sua vida prática.
Assim, as características se tornam mais em qualidades do que em problemas.
Deixemos as árvores crescerem.

A relação professor-aluno não é uma relação trivial. O termo nirmāṇa cittāni [YS IV.4]
explica o professor como peça importante para a construção de um caminho.

O sūtra I.1 já marca uma relação forte. A palavra atha indica que há um
acontecimento. O professor se depara e aceita o aluno, e o aluno se depara e aceita o
professor. Essa aceitação ocorre no campo emocional.

O ENCONTRO DO PROFESSOR COM O ALUNO

O que nos faz ter inclinações para escolher certas companhias? O Yoga explica que são
os vāsana-s a força que mais nos incentiva. É comum escolher o professor, guru, ou
tipo de prática de acordo com nossos padrões, medos e desejos.

Esse é um ponto relevante no processo do Yoga que merece ser refletido. Escolhemos
de acordo com nossos medos e anseios, identificações físicas e intelectuais, ou
escolhemos com o coração.

Às vezes, o aluno não está pronto. Mesmo que o professor sinta que pode servir como
kṣetrika, se não houver o interesse do outro lado, o professor não será visto como
professor.

Na tradição budista existe a história do encontro entre Buddha e Upaka. Buddha


acabara de ter sua experiência iluminadora, e a primeira pessoa que cruzou seu
caminho foi o asceta Upaka. Upaka reconheceu algo digno em Buddha. Ele poderia ter

220
sido o primeiro a receber seus ensinamentos, e com todo o frescor. Mas seguiu seu
caminho.

Dizem que, anos depois, eles se encontraram e Upaka se tornou aluno de Buddha.

DIFERENTES PESSOAS, DIFERENTES RELAÇÕES E INFLUÊNCIAS

No sūtra II.22, Patañjali explica que o mesmo objeto não influencia igualmente todas
as pessoas. Um professor pode ter uma interação fluida com uma pessoa, mas não
necessariamente isso ocorrerá com todas.

O PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Entrega: essa é a palavra principal do processo de aprendizagem. O texto Praśna


Upaniṣad se inicia com seis pessoas se dirigindo ao sábio Pippālada para lhe fazer
perguntas. Eram buscadores ilustres, vindo de linhagens respeitadas.

O sábio sugeriu que permanecessem com ele por um ano praticando o controle total
de seus sentidos físicos e da mente, e seguindo suas orientações. Então, após este
período, poderiam lhe perguntar sobre suas dúvidas reais.

Era comum no passado o professor testar a intenção e entrega dos pretendentes a se


tornarem seus alunos. De alguma maneira, a entrega deve ocorrer.

Desikachar contou que deu aulas de Yoga a Krishnamurti. Mesmo sendo muito mais
novo e tendo menos anos como praticante de Yoga, Krishnamurti lhe disse:

“O senhor é o professor, eu farei o que você me instruir.”

ADHYĀYA

O aprendizado em Yoga conta com três processos:

● āgamā
● anumāna
● abhyāsa – rasa

Āgamā representa as autoridades no Yoga, que são: as escrituras; a cultura e tradição


viva das linhagens; e o professor.

Anumāna significa que, além de receber conteúdos, o praticante deve refletir e validar
tudo que aprende em seu coração. Escutei de Desikachar frases como: “Não acreditem
no que eu falo, reflitam!”. Segundo ele, é fundamental que o praticante pense por si,
desenvolva sua inferência e tenha suas próprias análises sobre os textos e
ensinamentos.

221
Abhyāsa – rasa diz respeito a colocar em prática o que foi absorvido e refletido. Mas a
aplicação não é feita de qualquer jeito. Abhyāsa significa prática, aplicação, repetição.
Rasa significa com graça. Abhyāsa – rasa é aplicação com graça, com entusiasmo.

É principalmente através da aplicação que o praticante coloca à prova tudo que


aprendeu e ao mesmo tempo tem a chance de reaprender pela experiência direta.

Pela instrução, reflexão e aplicação, o Yoga é aprendido - e o professor atua nesses


três processos. Além de ser quem instrui, quem instiga reflexões e incentiva a colocá-
las em prática, o professor é quem passa segurança.

As escrituras são impenetráveis sem a ajuda do professor. Os versos e sūtra-s estão em


sânscrito. As palavras precisam ser explicadas e contextualizadas pois são impregnadas
de sentidos. O conteúdo da palavra, dos versos e sūtra-s muitas vezes precisa ser
explicado diversas vezes.

Sem entender o significado que as escrituras carregam, o aprendiz não se sente


seguro. Pode se perder ou não progredir. O professor é quem dá a confiança.

O aprendiz também pode simplesmente assimilar o conteúdo na memória, e não no


coração. O conteúdo precisa ser digerido, e, para isso, o aluno deve ser capaz de
interiorizá-lo, refletindo por si só.

O professor é um instigador, um provocador. É quem incentiva o aluno a refletir. Não


basta acumular conteúdo. Lembro-me de Desikachar terminar suas aulas nos deixando
com um grande ponto de interrogação em nossas mentes. Muitas vezes ele provocava
e se despedia. Ele simplesmente se levantava e ia embora enquanto todos
permaneciam sentados em silêncio por alguns minutos, pensativos.

Por mais que o aluno só queira respostas, posteriormente isso ajuda o aluno a ter
confiança em si.

Quando o aluno coloca em prática o que aprendeu (abhyāsa – rasa), naturalmente


muitas dúvidas surgem. As dúvidas geram diferentes sensações. O aluno pode
paralisar, sentir insegurança, ou até mesmo insistir e cometer erros graves.

Quando existe uma relação de proximidade entre professor e aluno isso gera confiança
no aluno, ele ou ela tem para quem perguntar.

SE INSPIRAR, MAS NÃO COPIAR

O professor sensível entende que cada indivíduo possui seu próprio caminho. Por isso,
não instiga seu aluno a imitá-lo e também não imita ninguém. Porém, pode e deve se
inspirar em seres mais experientes, como explica o conceito de vītarāga, no sūtra I.37.

222
ENSINE COM O CORAÇÃO

Minha professora aconselha a dar aula de Yoga e escrever sobre os ensinamentos do


Yoga utilizando uma linguagem pessoal. Além disso, a melhor linguagem para nos
expressarmos é a que tem como motivação a expressão que vem do coração.

Isso nos faz mais criativos, nos deixa mais abertos e permite que o aluno se sinta mais
íntimo com o professor.

ENCANTAMENTO

Disciplina, imposição, medo, incentivo, esperança, bajulação... Há várias maneiras de


transmitir ensinamentos, mas talvez a melhor forma de fazer alguém aprender algo
seja pelo encantamento.

INCENTIVE

Desikachar tornou-se discípulo de seu pai quando adulto. Na época, a família morava
em uma casa muito pequena, onde todos dormiam no mesmo cômodo. Ele contou
que seu pai lhe ensinou primeiro recitação de cânticos, e as aulas eram de madrugada.
Inevitavelmente os cânticos acordavam toda a família. E havia um agravante,
Desikachar recitava terrivelmente mal.

Ele contou que a família implorava para ele desistir de estudar Yoga com
Krishnamacharya. Sua mãe suplicava: “Por favor pare, você não leva jeito! Você
recitando soa como um jumento!”.

Desikachar sabia que tinha muita dificuldade, mas seu pai via seu interesse sincero, e o
incentivava. Ao invés de criticar, depreciar ou rir quando os familiares o zombavam,
ele dizia: “Vamos de novo, está faltando algo”. E, com o tempo, Desikachar foi
melhorando.

Anos mais tarde, sua mãe lhe disse: “Você canta como seu pai”.

COMO PROFESSOR, REVELE-SE COMO SER HUMANO

Como professor podemos nos colocar em uma posição superior, e nosso ensinamento
acima de qualquer questionamento. A oportunidade de conhecer professores como
Hermógenes, Desikachar e Sangeetha me fizeram enxergar o quanto nós, alunos,
aprendemos quando o professor se revela.

Manter distância, criar uma áurea mística ou esconder-se sob um papel de alguém que
tudo sabe acaba atrapalhando o aluno. Como professor, se mostre como pessoa, se
exponha, seja sincero. Isso aproxima a relação entre professor e aluno e ajuda o aluno

223
a incorporar os ensinamentos, pois vê no professor alguém real, como ele. Além do
mais, os alunos merecem saber quem é realmente seu professor.

COMO SER HUMANO, NÃO SE REVELE COMO PROFESSOR

Só há professor se houver aluno. Manter uma postura de professor sem que exista a
presença de seu aluno é assumir uma posição arrogante perante os outros.

Quando não existe a relação ou o ambiente que configure relação professor e aluno,
mantenha-se também como um aprendiz de tudo e de todos.

Pelos arredores próximos ao Krishnamacharya Yoga Mandiram, onde Desikachar


costumava realizar suas caminhadas matinais, ou na porta de sua casa, Desikachar era
simplesmente Desikachar, um senhor sorridente e cordial. Dentro da sala de aula,
Desikachar era um ācārya.

UM TELEFONEMA PARA O “ALÉM”

Chennai, fevereiro de 2003, ao final de uma aula, um colega fez uma pergunta a
Desikachar.

“Senhor, o que acha que Krishnamacharya nos falaria se pudesse nos dar um
conselho?”

Algumas pessoas riram baixo da pergunta do colega, talvez por parecer romântica ou
ingênua. Mas Desikachar era uma pessoa descontraída. Imediatamente fez um gesto
com a mão, imitando um aparelho telefônico, e levou-o até o ouvido.

- Alô, é do céu? Eu gostaria de falar com Śrī Krishnamacharya.

E começou a falar na sua língua mãe, Kannada. Todos nós caímos na gargalhada com a
cena teatral.

Fazendo sinal afirmativo com a cabeça Desikachar desfez a ligação agradecendo.


Desligou o “telefone” na própria coxa e disse:

Acabei de falar com meu pai, e ele me disse “ensine Yoga como ele se aplica para a
outra pessoa. Não como o Yoga se aplica para você, mas como ele melhor se aplica ao
outro!”

Que esse conteúdo sirva de inspiração.

Boas aulas e bons aprendizados.

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