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Território é ser!

Do mar, da terra, da floresta e das serras


moldou-se um olhar,
um modo de estar e pensar e agir
em meio a tudo ao redor: vida,
toda forma de vida entrelaçada
vivendo e morrendo nesse chão
e alimentando quem vem depois
no ciclo natural do planeta.
Aqui, nestas vastas florestas tropicais,
o céu como teto para a liberdade,
o mar como estrada para as distâncias
a terra como mãe para o alimento
gerações nasceram e morreram
até essa geração de hoje
e assim seguirá!
Território é ser
E sempre seremos!

Santiago Bernardes

Essa publicação é dedicada à memória da parteira Maria Augusta dos Reis,


“Madrinha Augusta” (1909-1999) e aos mestre de ciranda de Tarituba -
Chiquinho, Bidico, Pedro e Pedrinho, que se foram deixando um legado às novas
gerações caiçaras.

Entrevistados e Agradecimentos
Adelino O Castro, Ademar Gomes de Souza, Adirson Gomes de Souza, Aldia de Bulhões Lara, Aldo Bulhões Lara
(Pardinho), Alexandre Lara de Bulhões, Almir Gomes de Souza "Pipi", André de Souza, Andreza S. F Borges,
Anésia Nascimento, Aparecida Rosa Ayres, Vice-cacique Apohinã Pataxó, Aroldo Carlos Oliveira, Atekai Pataxó,
Auiri Ribeiro Braz, Barilio Muniz Ribeiro, Benedito Hilário de Bulhões, Caila C. R. Vieira, Carlos Alexandre Gomes,
Davi Freire, Edson Brasil dos Reis, Elias Vicente da Silva, Elizabeth Martins, Emanuel Gama, Érico Porto da Silva,
Ernani João de Santana, Fernando Conceição da Silva, Francisco F. de Oliveira, Frank Martins de Souza, Gloria
Fraga de Souza, Graciana dos Santos, Cacique Hâgui Pataxó, Isis Ayres da Cruz, Israel de Fraga "Coméia", Itôhâ
Muniz Ribeiro, Joaquim Meira Santos Filho, Jose Felix da fraga Bulhões, José Luiz Cananéia Soares, Kaila Muniz
Ribeiro, Leonor Maria de Bulhões Rodrigues, Malaquias Nascimento, Márcia Antônio de Bulhões Reis, Margarida
Gomes Martins, Maria Antônia de Bulhões Resende, Maria da Glória R. De Bulhões Maria Tania F. Ribeiro, Mateus
dos Santos Conceição, Mauriceia Pimenta Tanni, Muriã Tupinambá, Natalina Bulhões Reis, Nawã Pataxó, Nedina
dos Santos Conceição, Neidir da Conceição Nelson de Carvalho Gomes, Nelson de Carvalho Gomes Jr, Odil
Meira de Bulhões, Paula Togama B.de Bulhões, Pedro de Jesus Ribeiro, Pedro Ribeiro, Raiane Sousa, Roberta F.
Bulhões, Robson Luiz Morais Silva, Roselaine F.O. Almeida, Ruy Dutra Nascimento, Sebastião Ferreira Nogueira,
Simone Ferreira de Bulhões, Tânia Rosa Silva Ayres Tapurumã, Tatiane M.S. Landim, Vagno Martins, Valdinei M.
Bastos Junior, Xôhã Pataxó.

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FICHA TÉCNICA OTSS – EXPEDIENTE FIOCRUZ

Realização: Coordenação Geral:


Edmundo Gallo (Fiocruz), Vagner do Nascimento (Fórum
Associação de Moradores e Pescadores da Praia
de Comunidades Tradicionais de Angra dos Reis, Paraty
Grande - AMORPG
e Ubatuba)
A Associação Cultural Recreativa e Folclórica de
Tarituba - ACRFT Coordenação de Gestão Territorializada:
Associação de Moradores de Tarituba - AMOT Fabiana Miranda
Associação de Moradores de São Gonçalo - AMOSG
Colegiado de Coordenação Estratégica:
Associação de Moradores
Edmundo Gallo, Vagner do Nascimento, Fabiana
da Ilha do Cedro - AMICEDRO
Miranda, Marcela Cananea, Julio Garcia Karai, Indira
Comunidade Indígena Pataxó do Iriri Alves França, Sidélia Silva, Leonardo Freitas, Ana Maria
Observatório de Territórios Correia, Mauro Gomes, Vinícius Carvalho.
Sustentáveis e Saudáveis (OTSS)
Fórum de Comunidades Coordenação de Campo | Povos:
Tradicionais de Angra dos Reis, Allan Yu Iwama, Anna Maria Andrade,
Cristiano Lafetá
Paraty e Ubatuba (FCT)
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Pesquisadores de Campo (FCT) | Povos:
Ana Carolina Santana Barbosa, Fabiana Ramos,
ÍNDICE
Coordenação Geral Povos: Gabriel Nogueira, Guilherme Euler, Julio Garcia Karai,
Fabiana Miranda Ivanildes Kerexu Pereira, Jardson dos Santos,
Luisa Vilas Boas Cardoso, Priscila Azevedo, Raquel Projeto Povos ................................................................08
Coordenação de Campo | Norte de Paraty: Albino, Santiago Bernardes Entendendo o Pré-Sal ...................................................10
Anna Maria Andrade
Assessoria Jurídica: Como estes mapas são feitos .......................................14
Pesquisadores de Campo | Norte de Paraty: Thatiana Lourival Como usar esses mapas a favor da comunidade .........16
Fabiana Ramos, Gabriel Martins,
Julio Garcia Karai, Priscilla Azevedo Validadores | Movimentos Nacionais:
Julio Garcia Karai, Comissão Guarani Yvyrupa (CGY)
Textos:
Territórios de Paraty ....................................................18
Marcela Cananea, Coordenação Nacional de
Anna Maria Andrade, Fabiana Miranda, Gabriela Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC) Introdução ......................................................................24
Murua, Santiago Bernardes Ronaldo dos Santos Coordenação Nacional de São Gonçalo, Ilha do Cedro e Ilha do Pelado................ 40
Articulação das Comunidades Negras Rurais
Revisão Técnica: Quilombolas (CONAQ Tarituba.........................................................................104
Helena Tavares, Anna Maria Andrade
Praia Grande.................................................................154
Mapas: Aldeia Kanã Pataxi üi Tanara - Pataxó.........................186
Janaina Cassiano dos Santos, João Oswaldo Cruz, Catalogação na fonte
Nicholas Saraiva, Tiê Passos Fundação Oswaldo Cruz
Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde
Biblioteca de Saúde Pública Mapas
Fotos:
Allan Yu, Anna Maria Andrade, Eduardo di Napoli, Microterritório Norte de Paraty .....................................20
Felipe Scapino, Julio Garcia Karai
Maritório Norte de Paraty ..............................................22
P964p Projeto Povos: Território, Identidade e Tradição. Territórios do Norte
Projeto Gráfico e Editoração de Imagens: de Paraty / Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da
Bocaina. Fórum de Comunidades Tradicionais. Fundação Oswaldo
São Gonçalo....................................................................98
Eduardo di Napoli, Tiê Passos Cruz. ─ Rio de Janeiro : Observatório de Territórios Sustentáveis e
Saudáveis da Bocaina, 2023. Ilha do Cedro.................................................................100
217 p. : il. color. ; fotos ; mapas
Diagramação: Ilha do Pelado...............................................................102
Leticia B Dias
Tarituba.........................................................................152
1. Povos Indígenas. 2. Quilombolas. 3. Caiçaras. 4. Saneamento.
Ilustrações e infográficos: 5. Educação. 6. Licenciamento Ambiental. 7. Política Pública. Praia Grande.................................................................184
Tiê Passos, Eduardo Di Napoli 8. Segurança Alimentar. 9. Pré-Sal. 10. Petróleo. I. Título.
Aldeia Kanã Pataxi üi Tanara - Pataxó.........................216
Transcrição de Entrevistas: CDD – 22.ed. – 980.41
Camila Gauditano, Gustavo Córdoba, Jéssica
Donegá Barreto, Marília Lima
ISBN 978-65-87063-29-4

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Projeto Povos:
Território, Identidade e Tradição
Onde o Projeto
Conheça a mais abrangente iniciativa de cartografia social já
realizada na Bocaina. Protagonizada pelas próprias comunidades, Povos ocorre?
caracterização envolve territórios indígenas, quilombolas e caiçaras Uma observação importante é que esta
de Angra dos Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP) O Projeto Povos ocorre nos municípios de Angra organização em agrupamentos de territórios
dos Reis, Paraty e Ubatuba. Para sua realização, – ou microterritórios - não quer dizer que as
foram definidos 11 agrupamentos de territórios comunidades caracterizadas não tenham fortes
Qual é exatamente o território tradicionalmente O Projeto Povos utiliza metodologias que reúnem laços culturais, ambientais e e profundos laços com outras comunidades. Ou
ocupado pelos quilombolas? Quais são as de cartografia social que permitem às territoriais comuns. É o caso, por exemplo, do seja, essa divisão apenas ajuda a organizar os
condições de saneamento dos indígenas? E comunidades desenhar, com ajuda de agrupamento de territórios tradicionais do trabalhos de campo do projeto.
quais são os desafios dos caiçaras em relação profissionais, mapas dos territórios que Carapitanga, que partilham a mesma Sub-Bacia
ao acesso à educação? Estas são apenas ocupam. Este tipo de mapeamento social Hidrográfica em Paraty (RJ).
algumas das informações que serão reveladas geralmente envolve populações tradicionais
pelo Projeto Povos, iniciativa que vai colocar e é um instrumento utilizado para fazer valer
de vez, no mapa do Brasil, os territórios de os direitos desses grupos frente a grandes
64 comunidades e localidades tradicionais empreendimentos, problemas relacionados à
indígenas, caiçaras e quilombolas de Angra dos grilagem de terras e ao não cumprimento de
Reis (RJ), Paraty (RJ) e Ubatuba (SP). leis que dizem respeito à delimitação de terras
indígenas, à titulação de territórios quilombolas
Reivindicação histórica do Fórum de e à regularização fundiária
Comunidades Tradicionais (FCT), a
Caracterização de territórios caiçaras, entre Paraty
realização do Projeto Povos é uma outros.
exigência do licenciamento ambiental de 64 territórios
federal, conduzido pelo Ibama, para tradicionais Além de informações
a produção de petróleo e gás pela técnicas, os mapas
Petrobras na Bacia de Santos. Quem
ocorre até 2023 sociais são construídos
executa é o Observatório de Territórios de forma participativa e
Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), apresentam o cotidiano de uma comunidade
uma parceria entre o FCT e a Fundação Oswaldo em linguagem simples e acessível. Neles, são
Cruz (Fiocruz). colocados espaços de roças, rios, lagos, casas,
equipamentos sociais como unidades de saúde
C caiçaras
Participam também a Coordenação Nacional e escolas e outros elementos que as populações
i indígenas
de Articulação das Comunidades Negras Rurais envolvidas considerem importantes. Aliás, são Q quilombolas
Quilombolas (CONAQ), a Comissão Guarani as comunidades que decidem o que querem
Yvyrupá (CGY) e a Coordenação Nacional de caracterizar. No Projeto Povos, nenhuma
Comunidades Tradicionais Caiçaras (CNCTC), informação é tornada pública sem a prévia Ubatuba Paraty Angra dos Reis
que completam o conselho do projeto com a autorização das comunidades envolvidas SP RJ RJ
missão de garantir que todos os direitos das e das representações nacionais dos povos
comunidades sejam respeitados. e comunidades tradicionais (Conaq, CGY e
CNCTC).

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Como estes mapas 4) Refletindo o
Território

são feitos?
Depois, é hora de apresentar à comunidade
a primeira versão do mapa final e validar
com os participantes cada dado coletado.
Um momento, também, para corrigir
eventuais erros e acrescentar informações
Com a participação de pesquisadores indígenas, caiçaras e quilombolas, o importantes que não tenham aparecido nas
Projeto Povos mapeia só aquilo que as comunidades querem caracterizar. etapas anteriores.
Conheça, passo a passo, como se dá essa construção coletiva.
5) Nosso mapa
Ícones dos mapas do Projeto POVOS

1) Chegança 2) Mapa Falado A última etapa se divide em dois momentos.


O primeiro consiste em revisitar o material
produzido durante toda a caracterização
Realizada com a participação do Fórum Nessa atividade, a comunidade é convidada e validar coletivamente o mapa final. Em
de Comunidades Tradicionais (FCT), a fazer um desenho livre, em um papel em sequência, a comunidade define quais
a “chegança” é o passo inicial da branco, representando seu território. Neste informações quer que se tornem públicas e
caracterização. Ela envolve lideranças e desenho, o território e seus elementos vão quais prefere que sejam de uso restrito da
articuladores locais para esclarecer dúvidas surgindo a partir do exercício da memória comunidade.
sobre o projeto e para garantir que os mapas e da definição, pela própria comunidade,
sejam construídos por muitas mãos. do que ela quer e acha importante que seja
caracterizado.

3) Localizando o
território no mapa
A etapa seguinte consiste na transposição
do mapa falado para uma foto de satélite, 6) Ganhando o
localizando os elementos do desenho em
uma base georeferenciada. Nesta etapa,
mundo
o objetivo principal é garantir que os Percorrido esse caminho, o material
participantes consigam dimensionar seu segue para impressão e é devolvido para
território em um mapa e visualizar demais as comunidades. Também validadas pelas
delimitações territoriais já estabelecidas comunidades e suas representações
por órgãos governamentais, como nacionais, as publicações finais são
Unidades de Conservação e demarcações já distribuídas para bibliotecas e órgãos de
realizadas. governo e da sociedade civil cuja atribuição
seja zelar pelos direitos dos povos e
comunidades tradicionais da Bocaina.

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Como usar estes
mapas a favor das Segurança
comunidades alimentar e
nutricional:
O projeto permitirá às comunidades
ampliarem seus conhecimentos sobre as
Os mapas construídos pelas comunidades são instrumentos de espécies agrícolas manejadas por elas e
promoção de direitos. Entenda como eles podem ser utilizados para também por suas comunidades vizinhas.
Isso fortalece o conhecimento do território
a defesa dos territórios tradicionais. e facilita possíveis trocas de sementes e de
técnicas de plantio.

Garantia de Fortalecimento Práticas de saúde:


territórios: da educação O projeto permitirá também às comunidades
O projeto não assegura que haverá titulação,
demarcação ou regularização fundiária de
diferenciada ampliarem seus conhecimentos sobre as
práticas de cuidado corporal e espiritual
Esta publicação e os mapas gerados pela
territórios tradicionais. Mas irá contribuir utilizadas por ela e por suas comunidades
cartografia social podem ser usados
para que as reivindicações das comunidades vizinhas. Isso também facilita possíveis
nas escolas pelos professores para
cheguem aos órgãos competentes trocas de sementes e de conhecimentos
aproximar os conteúdos curriculares à
responsáveis por fazer isso. em relação a procedimentos de cura e
realidade vivida pelos estudantes em suas
prevenção a partir das plantas medicinais.
comunidades.
Acesso a políticas
públicas: Qualificação de Fortalecimento do
O projeto também não construirá
licenciamento FCT:
infraestruturas nas comunidades, mas vai O mapa feito pela comunidade contribuirá
contribuir para levar ao conhecimento dos ambiental: também para fortalecer as bandeiras
governos e órgãos públicos qual é a situação Outra conquista importante é que estes de luta do Fórum de Comunidades
de cada comunidade em relação a serviços dados passarão a ser consultados pelo Tradicionais nas áreas de Turismo de
e equipamentos públicos nas áreas de Ibama quando houver uma nova solicitação Base Comunitária, Educação Diferenciada,
educação, saúde, saneamento, trabalho e de licença ambiental para grandes Saneamento Ecológico, Economia Solidária
renda, entre outras decididas pelas próprias empreendimentos que possam impactar as e Agroecologia e a combater todas as
comunidades. comunidades tradicionais de Angra dos Reis, formas de racismo e violência contra as
Paraty e Ubatuba. comunidades.

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Os territórios tratados nesta
publicação estão localizados na
porção norte do litoral de Paraty,
entre a região central e a divisa com
Angra dos Reis. A área abrangida
envolve 4 territórios tradicionais
habitados por comunidades caiçaras -
Tarituba, São Gonçalo, Ilha do Cedro,
Praia Grande - e uma aldeia indígena
Pataxó, no Iriri.

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20 21
22 23
Norte de
Paraty
As comunidades do norte do município de Paraty situam-se entre as
encostas imponentes da Serra da Bocaina - com a presença exuberante
da mata atlântica - e a recortada faixa costeira que forma a Baía da Ilha
Grande caracterizada pela presença de muitas praias, pequenas baías de
águas calmas, baixios e áreas de manguezal. Também compõem a paisagem
marítima dessa região a Ilha Grande, referência central e dezenas de ilhas,
ilhotes e lajes, localizados entre a Ilha Grande e a costa.

No Norte de Paraty, como ao longo de toda As comunidades que participam dessa


a serra da Bocaina há água em abundância. publicação integram a área tombada. Na
Essa região abarca duas importantes década de 1980, o tombamento já trazia
unidades hidrológicas de planejamento como uma das principais motivações a
(UHP) do município: a do Rio Pequeno e proteção da pesca artesanal, esteio do modo
Eu quando eu venho de
Barra Grande, onde se situa também a bacia de vida caiçara.
casa eu fico prestando
do Rio da Graúna; e a do Taquari, que inclui atenção. Quando você
além da bacia do Rio Taquari, uma série “A delimitação das áreas de preservação da no ar, nopresta
céu, naatenção
mata, Deus te
de outras microbacias, entre elas a do Rio Atividade Pesqueira Artesanal em trechos mostra. Tudo que você quer saber,
São Gonçalo. Um pouco adiante, localiza- do Estado do Rio de Janeiro procurou até a entrada de lua, a entrada da
se a bacia hidrográfica do Rio Mambucaba, abranger, inicialmente, os principais núcleos primavera, você sente cheiro,
na divisa entre Paraty e Angra dos Reis, a remanescentes de pescadores, bem como, sente tudo, sente o ar! O outono, o
maior de todas na região da Baía da Ilha as áreas de manguezais ainda intocados. verão, tudo mostra pra você se
Grande (Relatório do Comitê de Bacias Teve, portanto, dois objetivos principais: você tiver a paciência de ser
Hidrográficas da Baía de Ilha Grande, 2020) preservar alguns dos mais belos e tranquilo, de prestar atenção na
importantes ecossistemas naturais da nossa natureza, dar valor a natureza”
Os povos e comunidades tradicionais que costa; e garantir a permanência nessas
habitam secularmente esse território áreas das comunidades tradicionais de Aldo de Bulhões Lara, 63 anos
“Pardinho”, Tarituba, 2021
contribuíram para a formação dessa pescadores. Preserva a vida, possibilitando
paisagem, por meio de seus usos e modos que o homem continue a existir em
de vida. Em 1985, a Secretaria de Cultura do harmonia com a natureza que o cerca,
Rio de Janeiro promoveu o tombamento do como vem fazendo há séculos. E preserva,
litoral fluminense como patrimônio cultural, também, uma cultura. Não artificialmente,
envolvendo boa parte das localidades como nos museus, morta. Mas como
Vista das Ilhas no Norte de Paraty
caiçaras de Paraty, de Tarituba a Trindade. decorrência do dia-a-dia” (E-18/300.459/85,
1985, fls.50)
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E em 2019, a Unesco concedeu à região • Área de Proteção Ambiental (APA) Essas unidades de conservação (UCs) Na Baía da Ilha Grande, as ilhas
de Paraty e Ilha Grande o título de Cairuçu, que abrange as ilhas da possuem diferentes níveis de restrição abrangidas na ESEC Tamoios são:
Patrimônio Mundial na categoria sítio porção paratiense da Baía da Ilha para presença de pessoas, conforme ilha Sandri; ilha Samambaia; ilha
misto, reconhecendo a importância da Grande, que abrange 63 ilhas e área Sistema Nacional de Unidades de do Algodão; ilha Araraquara; ilha
biodiversidade e do patrimônio cultural vivo continental que totalizam mais de 34 Conservação (SNUC). Jurubaíba; ilha Araraquarinha;
desse território. mil hectares, criada em 1985 ; Rochedo de São Pedro; ilha Queimada
A ESEC é a unidade mais restritiva,
Grande; ilha Queimada Pequena; ilha
Também existem na região 3 unidades • Estação Ecológica (ESEC) Tamoios, não sendo permitido habitar, visitar
Imboassica; ilha das Cobras; ilha dos
de conservação federais sob gestão do que envolve a proteção de 29 áreas fundear, nem exercer atividades de
Búzios; ilha dos Búzios Pequena; laje
Instituto Chico Mendes de Conservação da emersas (entre ilhas, ilhotes, lajes e pesca e turismo nas áreas marinhas
entre ilha das Cobras e ilha dos Búzios
Biodiversidade (ICMBio), órgão ligado ao parcéis) e seus respectivos entornos no raio de 1 km das ilhas inserindas na
Pequena; laje Pedra Pelada; ilha Zatin;
Ministério de Meio Ambiente: marinhos em Paraty e Angra dos ESEC. A criação da ESEC se sobrepôs
laje do Cesto; ilhote Pequeno; ilhote
Reis, equivalente a 5,69% da Baía ao território marinho de todas as
• Parque Nacional (PARNA) da Serra da Grande; ilha Comprida (Tarituba); ilha
da Ilha Grande. Foi criado em 1990, comunidades da região Norte de Paraty
Bocaina, que incide nas áreas a partir da das Palmas; ilha do Catimbau.
como compensação ambiental da que até os anos 90 costumavam pescar e
cota de 200 metros de altitude, criado
construção da Usina Nuclear . desenvolver o turismo náutico ali.
em 1971, com quase 106 mil hectares;

Vista de Paraty e porção norte do município

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A APA Cairuçu incide nas localidades
caiçaras da Ilha do Cedro e Ilha do
As comunidades Entre as comunidades tradicionais
que participaram da cartografia social
de São Gonçalo oferece educação infantil
e ensino fundamental multietapa. A
Pelado e a Revisão do Plano de Manejo do Norte realizada com o projeto Povos, a Escola de Tarituba também possui
da unidade foi concluída em 2018,
criando zonas que reconhecem e
de Paraty comunidade mais populosa é a Praia
Grande com cerca de 800 pessoas
educação infantil e ensino fundamental
anos iniciais. De cada 100 alunos, 10
preveem o manejo da biodiversidade (segundo morador local); depois São estavam em distorção de série na escola
Além das comunidades tradicionais que
pelas comunidades tradicionais. Gonçalo com cerca de 550 pessoas, e de Tarituba. As crianças da Ilha do Cedro
realizaram o trabalho da cartografia
Tarituba com aproximadamente 500 costumam estudar na escola de São
O PARNA da Serra da Bocaina está (Praia Grande, Pataxó do Iriri, São
pessoas. A comunidade indígena Pataxó Gonçalo.
sobreposto aos territórios caiçaras de Gonçalo, Ilha do Cedro e Tarituba),
tem 15 famílias; a comunidade da Ilha
São Gonçalo e Tarituba, e ao território há outras importantes localidades
do Cedro é formada por 25 pessoas,
indígena Pataxó, não nas áreas onde ocupadas historicamente por caiçaras
divididas em seis famílias. A Ilha do
se situam os núcleos de moradia, mas nessa região, como por exemplo
Pelado é habitada por uma família
principalmente nas áreas agrícolas e Corumbê, Graúna, Barra Grande, Iriri,
caiçara nativa de São Gonçalo.
extrativistas mais afastadas e também Taquari, e outras menores. Essas
cachoeiras com potencial turístico. Já localidades continuam sendo habitadas Há escolas em Praia Grande, Tarituba
a Zona de Amortecimento do Parque se por famílias tradicionais caiçaras, porém e São Gonçalo. A Escola Municipal
sobrepõe efetivamente a alguns núcleos são espaços que sofreram profundas da Praia Grande atende crianças da
de ocupação e áreas de uso atuais. alterações na dinâmica comunitária Pré-escola, ensino fundamental anos
com a implantação de assentamentos iniciais, e educação especial. A Escola
agrícolas e loteamentos.

Vista aérea da Ilha do Cedro

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A partir do 6 o ano em diante, os alunos
dessas comunidades se deslocam
TEMPOS
para estudar fora. Conforme a E ESPAÇOS
localização, elas podem frequentar a
As comunidades tradicionais localizadas
Escola Municipal da Barra Grande, a
no norte do município possuem grande
Escola Estadual da Vila Residencial de
importância histórica na formação social
Mambucaba, ou as escolas no Centro
de Paraty. São ocupações muito antigas
de Paraty. As crianças e jovens Pataxó
de famílias que habitam esses territórios
ainda não estavam estudando quando
há pelo menos 7 gerações, e tiveram
a cartografia foi realizada, mas havia
papel importante desde o período
intenção de matricularem os jovens na
colonial nos ciclos econômicos que
Escola Estadual da Barra Grande.
movimentaram o município.
Também há postos de saúde também
As genealogias de parentesco feitas
nas três comunidades mencionadas.
nas entrevistas com caiçaras dessas
A comunidade Pataxó possui uma
comunidades mostram que os avós e
estrutura construída dentro da aldeia
bisavós dos atuais moradores estavam
para servir de posto de saúde, e cobram
na região desde o século XIX, cerca de
a presença de agentes de saúde. A
200 anos atrás. Essas pessoas viveram
UBS – ESF em são Gonçalo possui
no tempo em que os fazendeiros
atendimento de 15 em 15 dias pelo
empregavam mão-de-obra escravizada
agente comunitário de saúde. A UBS de
para produção de aguardente e
Tarituba oferece atendimento diário,
café (além de itens alimentícios em
e atende todas as comunidades do
geral) e na construção civil. Nota-
entorno, inclusive de São Gonçalo. O
se principalmente em São Gonçalo
funcionamento da UBS de Praia Grande
a presença de ancestrais negros na
ocorre diariamente também.
formação dessa comunidade caiçara.

No tempo dos avós e bisavós dos mais


velhos, as comunidades do norte já
mantinham uma relação mais próxima
com o centro de Paraty, principalmente
a Praia Grande, navegando a remo pela
baía. Nesse período da história colonial,
foi edificado, às custas do árduo trabalho
do povo preto, o centro histórico de
Paraty com seu arruamento feito de
enormes pedras lascadas e encaixadas
manualmente, uma a uma, e os casarões
arejados e ensolarados pelas grandes
portas e janelas de suas fachadas.

Cais de Tarituba

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mercadorias e valores, que trouxeram Eu sou caiçara, nascido e
uma nova lógica de uso e ocupação do criado numa casa na areia da
território. No momento de formação das praia. O meu pai, como o do
comunidades caiçaras, havia terra livre. Zé Luis, também era pescador. Meu pai
era pescador na parte da manhã e era
Quando a lógica da propriedade privada
construtor e lavrador na parte da tarde.
predomina e se sobrepõe à ideia da terra
Tirava o sapê, colhia o sapê na época certa.
como valor de uso, o dinheiro passa a
Sabia tirar uma madeira na época certa.
ser a única medida para valorar a terra,
Se não tirar uma madeira na lua certa, ela
e a única forma de garantir acesso a ela.
dá bicho, dá broca. Ele construiu muitas
A obra da BR 101 promoveu casas, casas rusticas de antigamente,
desmatamento e deslocamento de barreada, coberta com sapê, com palha
grandes volumes de terra. A estrada de coco. Eu tive um relacionamento muito
alterou drasticamente a paisagem, bom com meu pai. Meu pai era pobre mas
rasgou ao meio povoados caiçaras, e um exemplo de como sobreviver. Eu acho
causou deslizamentos e soterramento que isso é ser caiçara. Vc sobreviver com
de casas de moradores em territórios os meios que tem”
tradicionais do norte de Paraty, como
Baía de Tarituba vista da BR 101 relatado em Praia Grande, São Gonçalo e Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
Praia grande, 2021
Tarituba.

Nesse contexto de profundas


Um caso emblemático de luta e
mudanças no território, a questão da
resistência é da comunidade caiçara
identidade caiçara se torna central
de São Gonçalo que permanece no
Já no século XX, com a formação do povo caiçaras do Mamanguá na formação de para manutenção dos modos de vida
território enfrentando a truculência da
caiçara fruto da mistura de brancos, algumas famílias de referência em São e resistência dessas comunidades. A
White Martins, vivenciando um conflito
pretos e indígenas, as comunidades do Gonçalo e na Ilha do Araújo; presença cartografia mostra como, apesar de
de terras que já dura 80 anos e é uma
norte de Paraty estavam envolvidas na de caiçaras da Ilha do Algodão na Praia todas essas transformações e ameaças,
das situações mais violentas da história
produção e comercialização de banana, Grande; e a proximidade entre Praia as comunidades tradicionais do norte de
de Paraty.
farinha e peixe. Os bananais tomaram Grande e Ilha do Araújo, que já era Paraty resistem.
conta de muitas localidades caiçaras do esperado, pois são comunidades muito Quando falam de suas origens e das
norte de Paraty, notadamente o sertão da próximas. Eu mesmo me considero gerações que os antecederam, os
Graúna, Taquari e São Gonçalo. caiçara porque eu herdei mais velhos evocam memórias de um
Ao longo do século XX, entretanto,
ferramenta de pesca do meu tempo e de uma relação com o espaço
As relações entre as comunidades esses territórios sofreram grandes
pai e guardei” que se transformou, mas que resiste,
também é uma questão importante para transformações impactando a dinâmica
e se mantém atual. Os mais jovens,
entender a dinâmica do território. Há de relação das comunidades com José Luís Cananéa Soares, 61 anos, hoje protagonistas e comprometidos
diversas relações de parentesco que seus espaços. A construção da BR Praia Grande, 2021
com a continuidade desse legado
conectam as comunidades entre si, e 101, iniciada em 1972, por um lado
estão presentes e mobilizados nas
para além da região Norte de Paraty. facilitou a chegada de politicas públicas
comunidades do norte de Paraty e
Há parentesco identificado entre São importantes nas comunidades, como
participam de diversos espaços para
Gonçalo e Tarituba; parentesco entre transporte, saúde e educação, mas
enfrentar as ameaças aos territórios e
Ilha da Gipóia e Tarituba; presença de ao mesmo tempo abriu caminho
valorizar os modos de vida tradicionais.
para a chegada de novas pessoas,

32 33
Segundo os relatos apresentados O mar, assim como a floresta,
Cais de concreto em Tarituba
substituiu o antigo cais de madeira ao longo dessa publicação, as bases são espaços de uso comum e
do modo de vida tradicional das intercomunitários. Os pesqueiros
comunidades caiçaras - e também da e os recursos naturais presentes
comunidade indígena pataxó que hoje nesses espaços não são vistos
vive no Iriri - remetem à uma relação como propriedade de uma ou outra
com o tempo e com o espaço que são comunidade, com exceção dos pontos de
muito específicas, que são diferentes da cerco fixo flutuante.
lógica urbana. Ao longo do tempo, essas Também serão apresentadas outras ati-
comunidades elaboraram e acumularam vidades que as comunidades desenvol-
conhecimentos baseados na observação vem, como o turismo náutico e o turismo
empírica (em campo, na prática) que de base comunitária da Rede Nhande-
permitiram compreender as dinâmicas reko, que tem na comunidade caiçara de
ecológicas do seu território, ou seja, São Gonçalo um de seus berços.
perceber a relação entre as espécies,
entre os diversos ambientes e sua As festas, músicas e danças tradicionais
ligação com fenômenos climáticos e caiçaras, assim como rituais sagrados
outros fatores naturais. Foi assim que foram incluídos à cartografia das
a agricultura, o extrativismo, a pesca, comunidades, principalmente em
a construção de moradia, os remédios, Tarituba e a comunidade indígena
enfim, a vida, se tornou possível nessa Pataxó. São movimentos que reúnem
região. Caiçaras aprenderam a retirar da arte, fé e resistência cultural. No caso
terra, da mata e do mar tudo, ou quase dos Pataxó, os rituais de consagração de
tudo, que necessitavam para o sustento medicinas são bastante importantes.
da família. Embora houvesse períodos A questão das ameaças que hoje afligem
de escassez e de doenças mais graves as comunidades também se encontra nos
que eram preocupantes, muitas pessoas capítulos a seguir. Alguns fatores têm
lembram desse tempo como um tempo sido levantados por todas as comunidades
de fartura, de comida boa e saudável, e do norte de Paraty, como: a mudança do
de mais união entre as pessoas. ambiente marinho e o desaparecimen-
Nos capítulos a seguir serão to de várias espécies; a crise na pesca
apresentados alguns desses saberes, dentro da baía da Ilha Grande, associada
práticas e técnicas utilizadas pelos e a diversas causas, entre elas, o uso de
pelas caiçaras e pela comunidade pataxó técnicas predatórias de pesca e a presen-
no manejo que fazem da biodiversidade ça cada vez maior de navios, poluição da
em seus territórios dessa relação baía e dos manguezais que são criadouros
com os espaços que ultrapassa a de diversas espécies. E por fim, ações
questão utilitária da natureza, mas que dos coletivos e movimentos sociais que os
alimenta a memória, a identidade, o comunitários estão envolvidos para conter
pertencimento e o sagrado. os impactos dos grandes empreendimen-
tos e proteger os territórios das comuni-
dades tradicionais na região.

34 35
Resumo das ações do
Projeto POVOS nos
territórios do Norte
de Paraty

Vista aérea a partir do sertão de São Gonçalo

36 37
Território marinho das comunidades caiçaras sobreposto pela ESEC Tamoios

39
SÃO GONÇALO,
ILHA DO CEDRO E
ILHA DO PELADO
“Antigamente, quando eu era criança, era assim:
você chegava ‘eu gostei desse lugar aqui’, você ia lá,
limpava tudo e fazia uma casa. Ninguém cobrava nada,
o lugar tava livre. Antes da White Martins
chegar”
Margarida Gomes Martins, 76 anos, São Gonçalo, 2021

Praia e Rio Puruba

40 41
São Gonçalo, Ilha do Cedro e Ilha do Pelado O maritório (considerando apenas a
foram reunidas no mesmo capítulo pois área mais próxima, porque a atividade
as famílias caiçaras que ocupam essas pesqueira vai mais longe) inclui: a Ilha
localidades estão conectadas tanto pelo do Cedro; Ilha da Lajinha – ao lado
parentesco como pela história de uso e do Cedro, ocupada por uma pessoa
ocupação desses territórios. de fora que teve suas edificações
embargadas pelo órgão ambiental e
São Gonçalo representa a localidade
estão abandonadas; Lage Branca; Ilha
matriz, de onde saíram parte das famílias
do Pelado, onde se situa o restaurante
que habitam as Ilhas do Cedro e do Pelado,
caiçara da Dona Bete e também outros
e nesse sentido, apesar de cada lugar ter
restaurantes de pessoas de fora; Ilha do
a sua história particular, essas famílias
Peladinho, ao lado do Pelado, que não
formam uma grande comunidade, e todas
tem construções mas foi cedida para
se ligam ao território de São Gonçalo.
uma pessoa de fora; Ilha do Sururu; Ilha
Existem áreas agrícolas - de roças do Caroço e Ilha do Breu, ambas também
e bananais - e mesmo moradias de com cessão de uso para pessoa de fora.
famílias do Cedro e do Pelado que estão
No contexto geral da Baía da Ilha Grande,
localizadas no continente, algumas
a presença da comunidade tradicional
tiveram que ser abandonadas por
da Ilha do Cedro representa uma
causa do conflito de terras com a White
importante resistência caiçara frente ao
Martins. O inverso também acontece: as
contexto de cessão de ilhas que expropria
pessoas que vivem no continente usam,
comunidades e promove a privatização de
e sempre usaram, as ilhas como ponto
áreas da União.
de apoio para a pesca, para além de
local de lazer, e mais recentemente para
desenvolver atividades de turismo.

O território tradicional caiçara dessa


grande comunidade envolve áreas
terrestres e marinhas.

Em terra, abrange desde a faixa de praia de


São Gonçalo e de São Gonçalinho, passa
pelo vale formado pelo rio São Gonçalo, e
sobe até as encostas da Serra da Bocaina.

Moradias na Ilha do Cedro

42 43
morou por muito tempo a findada madrinha ILHA DO CEDRO
LOCALIZAÇÃO Augusta, parteira mais conhecida da região,
A Ilha do Cedro está mais afastada da costa.
mas hoje esse local tem sido chamado
Saindo da barra de São Gonçalo são cerca
SÃO GONÇALO E SÃO GONÇALINHO de Praia das Pitangueiras. A Praia de São
de 4 quilômetros. O acesso mais próximo
Gonçalinho mede quase 400 metros e está
O território tradicional da comunidade ao Cedro se dá pela Praia do Cão Morto,
separada da Praia de São Gonçalo pela
caiçara de São Gonçalo está localizado uns 2 quilômetros, mas a praia do Iriri
Ponta do Arpoá, a uma distância de 200
na região norte do município de Paraty. também é utilizada para acessar a Ilha. A
metros. Há uma trilha interligando as duas
Cortado pela rodovia BR 101 em 1972, área total da Ilha do Cedro é 36,5 hectares.
praias.
está situado dos dois lados da rodovia, Há três pequenas praias, que medem entre
entre o Iriri e Tarituba, a uma distância de 150 a 200 metros de extensão. A maior
33 quilômetros do centro de Paraty e 64 delas está situada na área mais abrigada da
ILHA DO PELADO ilha, usada para fundeio de embarcações.
quilômetros do centro de Angra dos Reis.
Bem em frente à praia de São Gonçalo, a O mapa abaixo mostra a abrangência das
A faixa de areia da praia de São Gonçalo cerca de 1 quilômetro de distância, situa-
se estende entre a Ponta do Cão Morto áreas de usos da comunidade caiçara
se a Ilha da Pelada Grande, hoje mais de São Gonçalo que inclui parte do
e a Ponta do Arpoá, e mede cerca de 2,7 conhecida como Ilha do Pelado. Caiçaras
quilômetros. É a praia mais extensa da maritório e localidades vizinhas, caso
do lugar explicam que esse nome foi dado da área agrícola e de moradia de uma
costa paratiense. A porção direta da praia porque tinha muito sapezal na Ilha, no
era chamada de Canto Feliz, local onde família caiçara de São Gonçalo localizada
tempo em que os moradores faziam roça próximo à praia de Humaitá.
ali. Na porção voltada para o continente,
a Ilha do Pelado conta com uma faixa
de areia de uns 400 metros de extensão
onde se situam os restaurantes, entre eles,
o restaurante da Bete e de sua família,
caiçaras de São Gonçalo. A travessia para
a Ilha do Pelado é um dos principais
passeios procurados pelos turistas na
região. Ao lado da Ilha do Pelado está a
Ilha do Peladinho, ainda menor que a Ilha
do Pelado e também possui uma pequena
faixa de areia.

Seu Elias, pescador de são Gonçalo Frank, pescador da Ilha do Pelado / São Gonçalo

44 45
Ilha do Pelado

46 47
HISTÓRIA OCUPAÇÃO HISTÓRICA CAIÇARA

DAS São Gonçalo e as Ilhas do Cedro e do

LOCALIDADES Pelado são localidades ocupadas por


famílias caiçaras desde o século XIX que
possuem laços de parentesco com os atuais
até com nós. Nós brigávamos com ela moradores.
Eles chegaram aqui contando
mentira. Eu estava com a pra não vender, ela se revoltava. O que Nas entrevistas com os moradores dessas
barriga desse tamanho, que a minha mãe ia fazer? E depois localidades, muitos fragmentos dessa
botaram tudo no chão. Aquelas casinhas história de quase 200 anos de ocupação
da minha filha primeira. O advogado
foram aparecendo. Cada pessoa lembrou
da White Martins entrou dentro da que ela tinha lá na beira da praia,
uma parte, cada relato trouxe histórias
minha casa, pra nós vendermos. Que derrubaram tudo. Até a escola eles
de antigos moradores, de antigos
ia ter emprego, ia ter uma fábrica tiraram de lá. Ali que eu aprendi o ABC" lugares. Assim foram produzidos os fios
pra trabalhar. Que a fazenda ia ter Margarida Gomes Martins, 76 anos, da memória social desses territórios,
restaurante grandão pra todo mundo ir São Gonçalo, 2021 que essa publicação busca tecer. Essas
memórias mostram o passado dessa
pra lá cozinhar. Foram oferecendo, e o
localidade tão importante na história de
povo: "ah, agora nós tamo bem”. Aí foi Paraty, e fortalece a comunidade caiçara
indo, até que iludiu minha mãe. Eles no reconhecimento dos seus direitos
diziam: "essa senhora parece demais sobre seu território e modo de vida.
com a minha mãe". Abraçava a minha
As genealogias mostram que, ao longo
mãe, beijava, como se fosse mãe deles. do tempo, as famílias se interconectaram
Quando vinham, traziam caixinha de pelo casamento. Na caracterização, foram
sabonete, pó de arroz, que antigamente identificados os ancestrais mais antigos de
usava muito no rosto. Minha mãe virou cada família e, a partir disso, a duração da
ocupação no território pôde ser estimada.

A família Martins é uma das mais antigas


de São Gonçalo. A família descende do
casamento de Rosa Gomes Martins com
Manoel Ribeiro Martins. Rosa Gomes
nasceu em São Gonçalo na década de
1890, e era filha de Ana Rosa Gomes, que
nasceu na Ilha do Cedro mas foi criada e
teve seus filhos em São Gonçalo. As filhas,
filhos, netos e bisnetos desse casamento
permanecem em diversos locais do
territórios até hoje. Margarida, que está
hoje com quase 77 anos reside no sertão,
e já tem bisnetos. Adélia, filha já falecida,
possui descendentes no território, como
Tania e seus/suas filhos/as e netos/
as. Essa parte da família mantém um
quiosque na praia; e o filho José Ribeiro
Martins, também já falecido, é pai de
Elizabeth Martins, a Dona “Bete” que
Margarida e seu filho Vagno, "Vaguinho" durante entrevista possui um restaurante na Ilha do Pelado.
Restaurante da bete, na Ilha do Pelado
sobre a história de São Gonçalo A reconstituição genealógica permite
afirmar que essa família ocupa áreas em
48 São Gonçalo e Ilha do Pelado há, pelo 49
menos, 130 anos.
Na Ilha do Cedro, os moradores atuais Além de Cecília Gomes, outros filhos de “O José Gomes meu avô
são descendentes dos Gomes e dos Palmira também possuem descendentes ele vendia fumo de rolo
Ponsiano (de São Gonçalo). Os irmãos na Ilha do Cedro até hoje: Zezinho Gomes
lá naquela região do
Adirson e Almir (“Pipi”), contam que o por exemplo que é pai do Nelson, Neide,
Valmir e Dulcineia. Enercina Gomes que é
Mamanguá, e casou lá. Daí veio
pai deles, o finado Dirceu, era filho de
Ponsiano de Souza e Aganir, conhecida mãe do Jorge; e Benedito Gomes que é avô vender aqui na ilha e aí depois casou
como Gazinha. E pela via materna eles da Benedita, que mantém um bar no Cedro aqui com a minha avó, daí que ela
descendem de dona Cecília Gomes, atualmente. pegou o Gomes também. Palmira
nascida por volta do ano de 1928 na Ilha minha avó fumava cachimbo, e ela
do Cedro, filha de Palmira Gomes, que A família de Elias Vicente da Silva,
pescador que mantém um rancho
morreu fumando o cachimbinho dela”.
também nasceu na Ilha e morreu com
96 anos e "Zezinho Martins". Palmira de pesca e um bar na praia de São
era filha de Paulino e Maria do Espírito Gonçalinho, também se liga à genealogia Adirson Gomes de Souza, 68 anos, Ilha do Cedro, 2021
Santo (bisavôs dos irmãos Adirson, Pipi, dos Ponsiano. Elias é filho de Nestor
Regina) e já ocupavam a Ilha do Cedro. A Geraldo da Silva, que nasceu na Ilha do Além de casos dos casamentos entre
genealogia desse núcleo familiar conta Cedro e veio morar em São Gonçalinho primos, caso de Adirson e Glorinha (nascida
com 7 gerações de ocupação, somando com 5 anos de idade, "na década de e criada em São Gonçalo) e entre famílias
quase 200 anos de história nessa 1930" e neto de João Geraldo e Paula da região de São Gonçalo e vizinhança,
localidade. (família Geraldo). Elias se casa com existem também casos de uniões com
Ilza da Conceição Silva, que é neta do pessoas de outros lugares mais distantes.
Dona Cecília Gomes faleceu durante a Ponsiano e da Gazinha e prima dos filhos Dona Bete, da Ilha do Pelado, por exemplo
elaboração desse trabalho, com quase 95 do Dirceu. é filha de Zé Martins, que tem raiz em
anos de idade. São Gonçalo, e sua mãe Inês Manuela da
Conceição veio do Mamanguá. Inclusive o
sobrenome Conceição é muito comum na
Praia do Sono e no Saco do Mamanguá.

Importante destacar a presença negra


na formação da comunidade caiçara
de São Gonçalo conforme genealogia
apresentada. Embora seja sabido que a
formação do povo caiçara é resultado do
encontro de brancos, negros e indígenas,
e que o histórico colonial paratiense é
marcado pelo emprego maciço de trabalho
escravizado, vale ressaltar a presença da
ancestralidade negra em São Gonçalo.
Exemplo concreto está presente na
genealogia de Tania Rosa da Silva Ayres.
Pela via paterna, Tania é neta de Afredo
e Chiquinha, ambos negros, e Chiquinha,
sua avó, era irmã da madrinha Augusta, a
parteira de São Gonçalo da qual se falará
adiante. (Conferir o mini-doc Paraty: Terra
de Preto, de 2018,idealizado por Aline
Braida, de Tarituba, Mauricéia Pimenta
Tani de São Gonçalo, Luan da Silva e
Fabio Martins, do Quilombo Campinho e
encenado por jovens negros de Paraty,
Almir Gomes, "Pipi", da Ilha do Cedro Ubatuba e Angra dos Reis). Adirson, da Ilha do Cedro

50 51
VIDA CAIÇARA ANTES DOS
EMPREENDIMENTOS

Até a abertura da BR 101, a atividade


produtiva mais importante era trabalhar na
roça e na pesca para garantir a segurança
alimentar familiar, e gerar alguma renda
com a venda da produção excedente.
Para garantir a pescaria, os pescadores
precisavam de canoas. Elas eram feitas pelo
Benedito Geraldo e seu Eli, já falecidos.

No início do século XX, muitas famílias


passam a obter renda com a produção e
venda de banana e farinha. As famílias
mais antigas de São Gonçalo tinham
casas de farinha e emprestavam para
quem não tivesse. Além da banana e da
farinha, peixe também era vendido, mas
não teve mesma importância comercial
nesse período.

O finado Milton, nascido em São Gonçalo


em 1927, pai do Pastor Érico, produzia
farinha em quantidade excedente e viajava
em uma canoa cargueira para vender a
produção em Angra dos Reis.

“A nossa vida aqui era


cortar banana e fazer
farinha. Meu pai era fazedor
de farinha e levava pra vender em
Angra dos Reis. Botava numa canoa
grande chamada jequitibá e levava a
remo. Ela tinha um metro e meio de
boca. Ia ele e mais um. Às vezes era o
tio dele, chamado Manoel Reis.
Às vezes era o outro, Manoel Rita.”
Érico Porto da Silva, 64 anos,
São Gonçalo, 2021

Ilha do Cedro no primeiro plano e


a Praia de São Gonçalo ao fundo, a mais extensa de Paraty

53
São Gonçalo foi um importante pólo Os bananais em São Gonçalo ocupavam No “tempo da banana”, algumas famílias Os donos de barco
produtor de banana, assim como outras áreas extensas, iam além da cota dos capitalizavam mais do que outras, seja por encostaram os barcos
localidades próximas, como o Taquari. 200 metros de altitude, em zonas que terem mais áreas de plantio, onde aliás e botaram caminhão na
Muitos relatos mencionam a importância
hoje estão sobrepostas pelo Parque empregavam mão-de-obra remunerada, estrada. Tinha muita gente que
dos bananais de São Gonçalo localizados
no sertão, e conta-se que os moradores se Nacional da Serra da Bocaina. É o caso, ou por terem tropa de burro para realizar trabalhava com isso, apanhando
dedicavam à abertura, limpeza, colheita por exemplo, do bananal de Elias Batista o transporte. Essas famílias controlavam o banana com caminhão. Aí
e transporte de banana. A produção era Cruz e Dona Margarida Gomes Martins, comércio vendendo não apenas a produção desvalorizou a nossa banana,
transportada em tropa de burro do sertão localizado próximo à região da cachoeira dos seus bananais, mas também a banana porque veio uma banana e tomou
até a praia para embarcarem até Angra dos
da Gamela (ver mapa), leva cerca de produzida por famílias caiçaras que não conta do mercado todinho do Rio
Reis ou Paraty, onde seria vendida para a
população da cidade.
2 horas de caminhada da praia até lá. tinham como escoar seu produto. O Seu de Janeiro. Sem cor, sem gosto,
Milton por exemplo tinha bananais que porque era madura na marra, no
Os moradores da Ilha do Cedro também chegavam a ter 6 a 9 mil pés e empregava carbureto. Aquilo não tinha
possuíam bananais no sertão de São quase 20 pessoas. Na produção de farinha gosto, mas tinha preço. Aí a
[A banana] vinha por esse Gonçalo. Dona Glória Souza, esposa de ele também contava com o trabalho de banana acabou tudo, está no
caminho, beirando o rio. O Adirson, nasceu e se criou em São Gonçalo umas 5 pessoas. mato"
nosso rancho de banana era lá na e os bananais do seu falecido pai Sergio
beira da praia, onde tem a igrejinha ali José Fraga também eram no sertão. A Érico Porto da Silva, 64 anos,
hoje. Aí vinha de lá no lombo do burro, família dela morou um tempo na região da Aqui quem tinha tropa de burro São Gonçalo, 2021
descia aqui e descarregava ali. Tinham cachoeira do Espigão, e tinha bananal nas era o Dirceu (pai do pessoal
os barcos de Itacuruçá, Itaguaí, do Rio Gamelas. do Cedro), o Jair da Silva, o Milton, o
de Janeiro. Tinha o barco chamado Antonio Bulé e o Cabinho que ainda tá
Ipiranga, Fluminense, Grajaú” vivo no Taquari. ”
Roça minha é em terra.
Vagno Martins, 44 anos, São Gonçalo, 2022
Érico Porto da Silva, 64 anos, Bananeira, tudo. Morei lá uma
São Gonçalo, 2021 época. Papai [Dirceu] morava aqui, mas
vivia naquela época de banana. Não Depois da abertura da rodovia, o comércio
tem aquele lugar bem no alto, aqui em de banana ainda continuou por alguns
São Gonçalo, nas Gamelas? Daquela anos. Durante a década de 80, o transporte
cachoeira pra lá é minha aquela área
passou a ser feito pela rodovia. Pastor Érico
ali. Tinha pasto lá com boi, burro de
conta que a comunidade de São Gonçalo
carga. Meu pai morou cá pra baixo e ele
despachava uma grande quantidade
passava com burro de banana que tinha
de banana por semana no caminhão. A
lá pra cima”
concorrência com a produção de banana
Adirson Gomes de Souza, de outras regiões acabou quebrando
68 anos, Ilha do Cedro, 2021 a atividade em São Gonçalo. Porque a
banana de São Gonçalo, embora fosse doce
e saborosa, descia dos bananais em tropa
de burro, a casca pretejava, e a aparência
da banana não era tão palatável para o
consumidor. Na década de 90, a atividade
terminou em São Gonçalo.

Coméia em sua agrofloresta em São Gonçalo

55
ABERTURA DA BR 101 TERROR EM SÃO GONÇALO: O “[Esse período] foi quando
CONFLITO FUNDIÁRIO COM o pessoal vendeu muito [as
A estrada foi um divisor de águas na história
WHITE MARTINS posses]. Eles [jagunços] faziam
das famílias caiçaras de São Gonçalo e
também impactou a vida dos moradores uma ronda, passavam marchando os
das ilhas. O traçado da rodovia atropelou os São Gonçalo é um território profundamente cavalos, entravam pela área deles e
territórios ancestrais, ignorou a presença de marcado pelo conflito fundiário causado andavam por dentro. E ainda tava numa
comunidades, enterrou espaços coletivos pela chegada da empresa americana fase que o pessoal tinha roça. Uns já
de convivência. A construção da rodovia multinacional White Martins na década tinham vendido, mas meu pai tinha briga
empregou algumas pessoas da comunidade, de 1940. Este é um dos mais violentos
ainda, quando encontrava no caminho
em funções como tratorista e vigia das e emblemáticos conflitos de terra do
eles ameaçavam, eles tomavam a
máquinas, mas ao mesmo tempo que município de Paraty e resultou no
êxodo de mais de 150 famílias caiçaras ferramenta.
oferece uma possibilidade de geração de
renda, trouxe destruição e violência. Alguns e na descaracterização da comunidade
tradicional que residia no local até então. O pessoal de antigamente não podia
moradores contam que em São Gonçalo,
famílias atingidas pela rodovia não foram Apesar dessa derrocada, as famílias dos comprar tijolo, não podia comprar telha
devidamente indenizadas. finados José Martins, Milton e Zequinha e aí se valia das madeiras do mato pra
permaneceram, numa história de 80 anos fazer casa. Barrear de barro, botar sapê
de resistência. ou botar aquelas tabuinhas no telhado.
Desde que chegou, a White Martins Eles não aceitavam fazer casa mais.
Tinha o Manoel Reis, o Antônio Quem fosse pro mato cortar, ia parar na
começou a fazer pressão sobre as famílias
e o Manoel Paulo. Mané Paulo delegacia. Na época, os delegados não
caiçaras de São Gonçalo e São Gonçalinho
morava aqui, uma casa bonita para que deixassem suas posses. Ao longo iam contra um rico milionário pra ir a
aqui. A Rio-Santos passou e acabou com desses 80 anos de conflito, diferentes favor de uma pessoa pobre”
a terra, com a casa deles, derrubaram e estratégias foram empregadas contra as
nem indenizaram o homem. Perdeu tudo. famílias caiçaras: entre os anos 40 e 70, Margarida Gomes Martins, 76 anos,
Deu um derrame nele, vieram chamar a colocou capangas montados a cavalo São Gonçalo, 2021
gente, a gente correu lá, mas ele já tava para patrulharem a área, intimidarem
jogado no chão, ele morreu aqui. A Rio- e obrigarem a saída das famílias. No
início da década de 70, aproveitando-se
Santos passou, destruiu a casa dele e de O advogado começou: "aqui
do acesso facilitado pela BR, a empresa
mais um pessoal que morava por aqui. não tem luz, aqui não tem
intensificou as investidas para retirar os
Nunca indenizaram a família” caiçaras. Os moradores contam que houve nada, você não tem televisão.
Érico Porto da Silva, 64 anos, espancamentos e assassinatos de pessoas Pega esse dinheiro, bota na poupança e
São Gonçalo, 2021 da comunidade, e que as pessoas eram você vai comprar uma casa na Ilha das
proibidas de trabalhar em suas roças e Cobras, você vai ter luz”
reformar suas casas.
Foi também a partir da abertura da estrada Érico Porto da Silva, 64 anos,
que a White Martins fortaleceu sua ação Ao mesmo tempo, advogados a serviço da São Gonçalo, 2021
para extinguir a comunidade caiçara de São empresa buscavam convencer as famílias
Gonçalo, como se verá na reconstituição da de que um acordo seria a única solução
história do conflito da comunidade caiçara vantajosa para os caiçaras. Mais tarde, ao
com a empresa. invés de capangas, a empresa passou a
contratar profissionais especializados em
segurança patrimonial. Nesse momento,
também se valeram de agentes do Estado
que defendiam os interesses da empresa:
na esfera jurídica havia um promotor
(Theobaldo Lisboa) e um procurador público
(Jair), e em campo, a ação repressora de Estrada que dá acesso ao sertão de São Gonçalo
policiais militares.

57
Alguns momentos do conflito foram Foi assim que conseguiram o “Aquele capanga entrou na casa
particularmente violentos: no início campo de futebol. Demoliram do Nilton, que queriam que
dos anos 70, dois caiçaras foram a escola e levaram lá pra dentro [pro eles saíssem da área e eles não saíram.
assassinados. Amânsio e seu filho, sertão], dizendo que as estrada agora Ele entrou lá, pegou o pai de família na
pelo Ciro Machado, conhecido jagunço ia ser muito perigosa para as crianças. frente dos filhos e deu uma surra de
a serviço da empresa. Não Houve
Derrubou a escola. Todo mundo estudou porrete de pau. O Nilton ficou 45 dias
cobertura da mídia para dar visibilidade
lá. Fecharam a praia. Botaram guarita, em Angra internado, morre, não morre.
ao ocorrido. Nesse momento a empresa
botaram homens armados e fardados Não morreu, mas ficou meio ruim da
promoveu um desmatamento de grandes
como se fossem polícia” . cabeça. Está vivo até hoje, na Japuíba.
proporções para abertura de pastagens
e plantações de eucalipto. As árvores O Derli morava lá em cima, depois do
Érico Porto da Silva, 64 anos, São Gonçalo, 2021
nativas da Mata Atlântica derrubadas Zé Roberto. Ele foi trabalhar, quando
foram utilizadas na produção de carvão. ele chegou, a casa estava derrubada.
O avanço do controle sobre as terras de São
Meteram o machado e derrubaram a casa
Gonçalo deixou um rastro de destruição e
Nos anos 80, a empresa demoliu a escola dele pra ele sair da área. Eles vieram
morte. Ainda nos anos 90, mais precisamente
em São Gonçalinho, onde estudavam as aqui pra matar meu pai, matar minha
em 1996, Zequinha foi assassinado. Zequinha
crianças e jovens da comunidade e des- mãe. Entraram aqui, vieram pra me
não era caiçara de São Gonçalo mas era casado
truiu o campo de futebol. Na década de matar várias vezes. Tem uma janela lá
com Creusa Fraga Martins, nativa do lugar,
90 implantaram uma guarita com segu- que estava furada de tiro, porque eles
e estava enfrentando os conflitos de terra
ranças armados e correntes fechando os deram, e nós demos também, entendeu?
com as demais famílias. E no mesmo período,
acessos às praias, num movimento de
outras lideranças caiçaras estavam sob ameaça Eu já morava aqui, vieram me buscar
privatização de áreas públicas.
constante. Érico Porto viveu dois anos com de madrugada. Não me encontraram.
escolta. Os relatos caiçaras testemunham o Pegaram o meu tio pra dizer onde eu
terror vivido pela comunidade: estava, rasgaram o meu tio com aquele
punhal. Me ameaçaram de morte. Saiu
uma matéria dizendo assim: ‘Pastor em
Paraty vai para a igreja com uma bíblia
na mão e uma pistola na outra pra se
defender dos capangas da White Martins”

Érico Porto da Silva, 64 anos, São Gonçalo, 2021

No primeiro plano: ponta da Ilha do Pelado.


Bem no centro: Ilha do Peladinho. Ao fundo
à esquerda: Ilha do Caroço e no fundo à
direita: Ilha do Cedro.
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Foi a derrocada da comunidade caiçara de São A morte de Zequinha explodiu o conflito na Depois desse episódio, com a imagem pública
Gonçalo. A empresa conseguiu remover os imprensa. A comunidade, realizou um ato na manchada, a White Martins vende a Fazenda
moradores, família por família até restarem 3 sede da White Martins, na Avenida Rio Branco, São Gonçalo para um grupo de empresários, e
famílias. Há quem diga que a Ilha das Cobras no centro do Rio de Janeiro, e a A TV Globo as tensões diminuem.
foi fundada pelos caiçaras de São Gonçalo. Mas veiculou reportagens sobre São Gonçalo. Já
Em 2003, a PGE do Rio de Janeiro entrou
muitos que foram para Paraty não suportaram a com uma rede de apoio, como o Sindicato Rural
com uma Ação Discriminatória para avaliar
vida na cidade, adoeceram e morreram. de Paraty, órgãos ambientais e o Ministério
a validade dos títulos de propriedade da
Público Federal a comunidade conseguiu
Fazenda São Gonçalo. A existência da ação
mobilizar a Anistia Internacional, uma
travou projetos de intervenção no local, e o
organização de direitos humanos.
Os velhos que saíram daqui empreendimento imobiliário São Gonçalo
eles colhiam mandioca, Eco-Resort, cujos impactos sociais já haviam
colhiam banana, pescavam, sido avaliados em um parecer do MPF de 1998,
No dia que mataram o
e não tiveram mais nada disso lá. continuou só no papel.
Zequinha, quando foram na
Todos eles venderam e foram morar O desfecho da ação ainda não havia ocorrido
delegacia dizer que tinham
na Mangueira, na Ilha das Cobras. A no momento de conclusão deste trabalho,
matado um aqui em São Gonçalo,
maior população da Ilha das Cobras, mas em 2021 a Fazenda propôs acordos com
o delegado em Paraty deu um pulo
na época, saiu daqui. Fundaram a o Estado, oferecendo ceder áreas para a
quando soube que foi o Zequinha:
Ilha das Cobras. Aí pra comprar um comunidade caiçara e para o Estado, em troca
‘mas não foi o pastor?’, porque eles
pão tinha que comprar, um aipim do encerramento da ação que já dura quase
estavam esperando a minha morte
tinha que comprar, um peixe tinha 20 anos.
naquele dia.
que comprar. Sabe o que foi que
As famílias que resistiram e algumas que
aconteceu? Morreram apaixonados.
Mas eles se enganaram, porque retornaram depois ao território mantiveram
Morreram apaixonados”
mataram um companheiro de luta e sua relação de pertencimento e buscaram

Érico Porto da Silva, 64 anos, nós fomos à luta. Aí a coisa pegou: reconstruir um ambiente comunitário no
São Gonçalo, 2021 fomos pra avenida Rio Branco no Rio. sertão, onde se localiza a maior parte dos
Dois ou três ônibus aqui de Paraty moradores atualmente. A comunidade
lotado. Tomamos conta da avenida possui arranjos organizativos internos
Rio Branco. Invadimos o escritório da e busca maneiras de enfrentar os novos
fazenda lá na Rio Branco. Não sei da desafios no território e criar perspectivas
onde saiu tanta gente pra nos ajudar” de futuro que promovam geração de
renda valorizando o território caiçara, sua
Érico Porto da Silva, 64 anos, história, natureza e cultura.
São Gonçalo, 2021

61
PESCA

ATIVIDADES AGRICULTURA E
EXTRATIVISMO

PRODUTIVAS PESCA
NO TERRITÓRIO A pesca continua sendo uma das mais
importantes atividades produtivas realizadas
Aprendi com o meu pai. Eu ali
com 10, 11 anos ia com ele na
pelas comunidades caiçaras de São Gonçalo,
O território é a base de sustentação e O turismo atualmente é a principal popa da canoa dele lá pra fora
reprodução da vida caiçara. No início, fonte de renda familiar no território. Há Ilha do Cedro e Ilha do Pelado. Mesmo
matar cavala. E outra hein: era uma farofa
durante as primeiras ocupações também, pessoas que trabalham fora com a crise pesqueira, algumas pessoas
continuam se dedicando à pesca, a maioria de ovo, cedo e “ó”! Não tinha pão, não!
nessas localidades, as atividades do território, assalariados, no centro de
como garantia de segurança alimentar Nós saía daqui, nós clareava o dia lá no
produtivas principais eram a pesca, Paraty, Mambucaba e outras localidades
roça, extrativismo, e a produção e próximas. familiar, mas alguns ainda como atividade mar, que a cavala gosta de pegar no alvo
comércio de banana, farinha e peixe. cotidiana e fonte de renda. [alvorecer] do dia. Aí já matavam, chegava
O espaço utilizado pelos pescadores o alvo do dia, nós tava lá. Na época dava
Com as mudanças, citadas
anteriormente, as famílias que envolve toda a baía da Ilha Grande. Nas muita cavala, não tinha geladeira, eram
permaneceram incorporaram também entrevistas, os pescadores indicam uma dois trabalhos, você pescar, às vezes
as atividades turísticas. por uma as pontas, sacos, ilhas e lajes que não tinha pra quem vender, você escalar,
conhecem em seu território marinho.
salgar e botar no sol. Vendia o peixe
As canoas de um tronco só fazem parte salgado e levava pra Angra. Não tinha
do universo pesqueiro em São Gonçalo, estrada, a gente tinha que levar pra
além de samburás e covos feitos com fibras
Angra de canoa a remo. Seis horas. Eu ia
da mata. Isso demonstra que o espaço
da floresta faz parte do sistema da pesca de gaiato, sentado lá, com um reminho
artesanal. Seu Almir, "Pipi", da Ilha do pequenininho com uma pazinha assim.
Cedro, conta que já fez canoas, e na época Pra voltar era bom: botava a vela e vinha
trabalhou junto com Benedito, antigo embora. A lestada era que tocava a gente”
morador caiçara que fez muitas canoas em
São Gonçalo. Atualmente alguns jovens Elias Vicente da Silva, 65 anos,
buscam manter viva a tradição do feitio São Gonçalinho, 2021
das canoas, à revelia do Parque Nacional da
Serra da Bocaina que mantém uma postura
que contribui para desestimular o manejo
de recursos naturais no interior da unidade.

Como toda atividade tradicional, a pesca


se aprende de criança, com o pai ou
algum parente mais velho. Se aprende na
lida, fazendo. E pra ter bom resultado, o
trabalho começa antes do alvorecer do dia.
Elias é pescador desde os 10 anos.

Tania e sua filha Cida lutam pela regularização do uso


sustentável caiçara na praia de São Gonçalo

62 63
Pesca de bate-bate

64 65
As pessoas que vivem de pesca, realizam A TABELA ABAIXO APRESENTA DIFERENTES MODOS DE PESCAR MENCIONADOS POR
essa atividade diariamente. Só não se SEU ELIAS, SEU FILHO FERNANDO, E FRANK DA ILHA DO PELADO.
arriscam no mar em dias de temporal,
de vento forte e ressaca. Mesmo dentro
da baía da Ilha Grande, o mar vira TIPO DE PESCA PEIXES CAPTURADOS LOCAIS
com as tempestades e é arriscado sair,
Marimbá, sargo, salema,
principalmente em embarcações de Pesca de Linha Perto das pedras
garoupa (pedras) cavala,
pequeno porte. sororoca e corvina (largo)
Diversas técnicas pesqueiras são Pesca de Camarão Perto da praia e das Ilhas (rede)
conhecidas e praticadas pelos pescadores. - rede de espera Camarão - Fora da baía ou no Largo
Elias explica que tem os peixes de fundo, - arrasto (arrasto)
os peixes de laje, os peixes que gostam de
Pesca de Tainha / Rede Tainha
ficar na lama. Ele costuma sair pra pescar
de canoa. Os principais peixes que ele Robalo Sargo, Pirajica,
Fisga (em desudo) nas pedras
captura para comercializar são bagre sari Tainha, Parati
(parece cação, sem espinho) e pescada. Perto da costeira. Com a
Pesca do Fifó (holofote/tocha)
Tainha, Parati claridade ele entoca perto, pega
Também foi mencionada a pesca de em desuso
o peixe na mão
garoupa, que agora interrompeu devido
à proibição. Para pescar garoupa se
Pesca com isca viva (camarão do Mira (parece um badejozinho) e Nas lajes e nas ilhas, perto das
costuma usar isca estragando de
rio) Badejo e Robalo pedras
sardinha. "Daí que ela gosta", explica
Pipi. Para pescar cavala, atualmente, é
preciso ir mais pra fora da baía, porque Pra pegar isca. No raso, beira de praia,
Tarrafa
a cavala que entra na baía “o pessoal de E pega parati também. 1,5m de água
cerco acaba com tudo”.
Espinhel de Fundo No meio da baía; Sete Cabeça;
Para ter sucesso na pesca, é preciso “Mede uma braça e meia, põe Fundo: Araçatiba.
conhecer bem os ambientes marinhos da
um estropo com anzol, cada Corvina, vermelho, “Fica lá embaixo mesmo, no
baía e da costeira. Seu Elias localiza com
distância de 15m põe um chum- cação, bagre fundo. A corvina, conforme
precisão, sem uso de aparelhos, a posição
de lajes submersas, que são espaços binho, que é pra ele trabalhar no Boiado: pega, quando ela vem boiando,
marinhos com abundância de peixe. Para fundo” Prejereba, cação, Dourado os peixes que estão no meio da
saber onde as lajes de fundo estão, ele Espinhel Boiado água, consegue pegar também”
observa marcos de referência da paisagem
costeira. Bater Lance, Bate-Bate ou Bater
Poita
“Chega no local, faz um cerco
Corvina, Pescada, Bagre Sari,
redondo com uma rede fecha Geralmente na beira da costeira
Ubeba, Parati, Vermelho,
Você pega uma ponta de ilha, ponta com ponta redondo e bate ou laje submarina
Tainha, Cambira
uma ponta de um lugar lá, o remo, ou a poita, vai de dois ou
você faz o triângulo, aí você um. Cada peixe tem a rede certa,
chega em cima [da laje]. Aí você leva a malha certa”
uma poitinha assim, você arria um
Robalo, Vermelho, Tainha,
coisinho, chega lá, bate na pedra pra Mergulho de Espera Costeira, Ilhas e Lajes
Godião, Pirajica , Sargo
você não errar o lance, pra ficar bem no
Robalo, Vermelho, Tainha,
círculo, no meio” Mergulho de Vasculho Godião, Pirajica, Sargo, Cavala, Costeira, Ilhas e Lajes
Peixe malhado na rede de Elias pescador Elias Vicente da Silva, 65 anos, Sororoca, Bicuda, Cara-pau
São Gonçalinho, 2021

66 67
AMEAÇAS “- Um dos peixes que está
acabando pra nós, ainda

À PESCA
não desapareceu, mas vai
desaparecer, é um peixe que ninguém
dava valor aqui. Eu, muitas vezes,
ARTESANAL comia, porque eu adoro com limão.
É a corcoroca. Corcoroca é um dos
Muitas ameaças à continuidade da peixinhos mais safados que tem no mar,
pesca artesanal foram mencionadas nas mas tá sumindo.
entrevistas com os pescadores. Os peixes
e diversas outras espécies marinhas - Tem vários: pescada amarela, pescada
estão desaparecendo. Estrelas do mar
cambucu. Peroá. Sumiu tudo.
não são mais encontradas: branca,
amarela, cor de vinho, avermelhada;
moluscos que estão sumindo: sapinhoá - Acabou tudo. O mexilhão, usava
(areia e lodo), sururu da pedra (é o bota, porque não conseguia descer
mesmo que mexilhão); tarioba (areia); em cima da pedra. Do jeito que a
ostra. gente está descalço aqui, não. O
As causas desse desaparecimento segundo único lugar que tem sururu tá tudo
eles, são: desse tamanhozinho. Ele não está se
- alterações no ambiente marinho: desenvolvendo. E os que têm, estão
presença de óleo e outros elementos que morrendo. Alguns, você pega, ele está
contaminam o mar, incluindo poluição esfarelando. O ouriço, você olhava a
sonora de motores de embarcações; costeira e tinha ouriço, demais. Hoje
- pesca predatória dentro da baía da você vai para lá e só vê os buracos dele.
Ilha Grande: barcos industriais, como os Igual a tarioba, a questão do sapinhoá,
atuneiros, que capturam toneladas de da unha de velho, o próprio caranguejo
sardinha e outras espécies miúdas como do mangue.
a manjuba para servirem de isca viva
na pesca de atum em alto mar; cercos
predatórios que capturam cardumes - Arrastão acabou com o gunguito
inteiros praticando modalidades de pesca e o bagre amarelo, que atrapalha a
não sustentáveis; arrasto em áreas de pescaria do bagre sari. É porque o
criadouro. bagre sari quase não malha direito,
- presença de navios dentro da baía: e rapidinho você tira. E quando vem
ruído, perturbação do fundo do mar, outro peixe, que é mais difícil, é uma
contaminação das águas e iluminação. hora, duas horas e pouco pra você
tirar um lance. E era difícil não vir
aqui, o primeiro peixe que entrava era
o gunguito e o bagre amarelo. E hoje
não tem mais por causa do arrastão.
Gunguito é o famoso do azul marinho.

Fernando Conceição Silva, 40 anos


Bete, Ilha do Pelado / São Gonçalo, aprendeu a pescar com seus mais velhos e Elias Vicente da Silva, 65 anos,
São Gonçalinho, 2021

68 69
Os relatos mencionam o abandono de ali, mata 1.200 toneladas de peixe, aí
algumas modalidades de pesca artesanal,
você vê, tem peixe que está com duas
por que deixaram de ser legais ou viáveis,
devido à pesca predatória.
perna de ova assim, ó, dessa grossura.

Depois que inventaram esse cerco, às


Eu pescava a garoupa, mas vezes vai lá no mar, roda isso aí, vem
proibiram, badejo, tudo com um peixinho, às vezes com nenhum.
proibido. E cavala eu não Então eu parei com essa pescaria.
pesco não, pesquei muita cavala, mas
agora eu não pesco. Sabe por que? Não Igual camarão. Eu não compro rede de
adianta, depois que inventaram o cerco, camarão porque? Você pesca 15 dias
é difícil aparecer um peixe pra você o camarão, depois o arrastão entra aí,
matar. Os caras vão lá, vêem, cercam, acaba com tudo. Aí você encosta a rede,
mata tudo. Eles não matam dois, três não adianta. Eu vou lá, mato o suficiente,
peixes, eles matam toneladas. Eu já 30 quilos, 15 quilos, 20 quilos, 40 quilos,
vi o cara matar setecentos e poucos e volto embora. E tem pessoas que
quilos de robalo no cerco. Cercou lá querem matar de tonelada, tudo, quer
na ponta do Cedro. Acaba com tudo, achar e quer matar tudo.”
e tudo ovado. Ele [robalo] entra aqui
Elias Vicente da Silva, 65 anos,
justamente no verão, pra quê? Porque São Gonçalinho, 2021
a água está quente, pra desovar. Cercar

Elias e seu filho Fernando, pescadores, durante entrevista em São Gonçalinho

70 71
Outro fator mencionado para a crise na A escassez de peixe tem gerado falta de “-Navio tem que ficar pra fora
pesca artesanal foram os conflitos de so- perspectiva dos jovens com relação à pesca da Ilha Grande. E aqueles
breposição com unidades de conservação, artesanal. A pesca de camarão em Paraty barcos que trabalham com
especialmente a ESEC Tamoios. Falta inter- tem sido considerada a única modalidade
quatro rede aqui dentro [da baía],
locução para garantir que os pescadores de de pesca com algum retorno mais certo.
São Gonçalo, do Cedro e do Pelado possam o certo seria, quando abre a pesca,
pescar nas áreas proibidas pela ESEC. aqueles barcos gigantes que entram
Os jovens não pescam porque com quatro redes não entrassem.
A contaminação também foi apontada como
impacto na pesca. Tem óleo e lixo no mar. a pesca tá fraca. E porque Pescar só lá fora. Você vai vir aqui
Moradores da Ilha do Cedro falaram da não tem paciência, e não tem você vai ver, aqueles barcos que tem
concentração de lixo na Praia do Cão Morto, os pontos [de pesca]. O negocio deles aqueles galhos, aqueles barcos entram
praia de onde costumam fazer a travessia é camarão. Faltou camarão, já não vão aqui dentro, no lodo. Imagina o que ele
para a Ilha. não faz aqui? 5 metros, 6 metros [de
mais pro mar”
Além disso, a fiscalização é um dos profundidade]. Ele rastela isso tudo,
pontos mecionados, junto com as grandes Fernando Conceição Silva, 40 anos deixa limpo.
São Gonçalinho, 2021
embarcações pescando em locais
proibidos. - Rapaz, tem que ter uma fiscalização
As lanchas de turismo também espantam
os peixes, explicam os pescadores do
- Não tem. Mas tem que ter uma
O óleo, a questão da pesca fiscalização na hora que abrir a pesca.
Cedro. Elas passam rápido demais, acima da
predatória, a questão de não Aí a canoinha de pescador que vai botar
velocidade permitida e provocam onda na
respeitar o fundo do mar. Pô, costeira, isso quando não passam em cima uma rede pra tirar o camarão não pega
eu saio aí, eu vejo tanta sacola” dos petrechos de pesca. nada. A rede que você bota, de espera,
Fernando Conceição Silva, 40 anos não pega nada. O pessoal passa dias e
São Gonçalinho, 2021 dias sem pegar nada.

Roda de conversa com Almir Gomes "Pipi", Adirson


Gomes de Souza, Gloria Souza, Ademar Gomes de
Souza, Davi Freire*, Nelson de Carvalho Gomes, Nelson
de carvalho Gomes Jr, Carlos Alexandre Gomes, André
de Souza, Ilha do Cedro, 2021

Carqueja, plantas medicinais utilizadas pelas comunidades caiçaras

72 73
PESCA
AGRICULTURA E VARIEDADES MANEJADAS / ÁREA AGRÍCOLA DE SÃO GONÇALO
EXTRATIVISMO
abacate café feijão preto massaranduba

ROÇA abacaxi
cana caiana (maior, mais
macia)
gengibre mexerica

A atividade agrícola nas localidades de São abiu cana de macaco (rins) goiaba micuíba
Gonçalo, Ilha do Cedro e Ilha do Pelado
sofreu mudanças com a transformação do abóbora menina cana do brejo (rins) graviola milho catete (amarelo)
território e também com a criminalização
da legislação ambiental. Na Ilha do Cedro cana sucarina
não pratica-se mais a agricultura e em São abóbora moranga grumixama milho palha roxa
(mais doce)
Gonçalo não tem mais roça e os antigos
bananais foram abandonados. Mas os açafrão canauva (ou brejaúva) ingá cedro morango silvestre
quintais, ricos em frutíferas, medicinais
e flores permanecem, além de uma área
aipim cacau amarela (10
agrícola mais expressiva no fundo do sertão. canela china Inhame chines nêspera
meses a um ano)
Uma das áreas agrícolas que se mantém
produtiva em São Gonçalo é a agrofloresta aipim rabo de gambá canela cravo Inhame rosa palmeira real
do Colméia, localizada nos fundos do sertão
de São Gonçalo. Em uma visita realizada
aipim saracurinha canela gosmenta ipê pati (palmito amargoso)
nessa área foram identificadas uma série de
variedades de plantas comestíveis, para fins
construtivos e medicinais. As variedades alface canela ovo jaborandi (anestesico) pau ferro
foram registradas na tabela a seguir.
petarruão (picada de
amora canela parda jaca
A falta de espaço em São Gonçalo acabou inseto e cobra)
forçando algumas famílias a procurar
outras áreas para plantar. É o caso do angelim cará branco jacarandá pimenta malagueta
sítio da Maurília, nascida e criada em São
Gonçalo, que mantém sua horta em um angico cará roxo jambro pitanga
sítio comprado no Humaitá, cuja produção
araça cedro jatobá pupunha
atende a merenda escolar e é vendida
também na feira do agricultor em Paraty.
araça boi coco d'água jequitibá rosa quiabo

banana d'água coco indaiá jiló sapucaia

banana ouro (gosta de


lugar com mais barro, coentro juçara trevinho (rins)
mais fresco)
limão argentino
banana prata condensa urucum
(grande)
batata doce couve limão cravo

batata doce rainha cupuaçu mamão

Colheita do palmito pupunha mandioca Estrada


bocaéque dá acesso ao sertão de São Gonçalo
cabeludinha feijão guandu
(2 anos)

74 75
TURISMO
peças foram: cipó timbopeba, cipó
caboclo, cipó imbé, cipó una, arranha
gato, embaúba, taquaruçu, taquara póca,
taboa, pente de macaco. Fotos das peças
que resultam do trabalho, como samburás
DE BASE
COMUNITÁRIA
e covos (usados na atividade pesqueira)
e os tipitis (de enxugar massa na casa
de farinha) se encontram disponíveis
em: http://museutramasdaqui.art.br/
São Gonçalo é uma das comunidades pioneiras
historiasaogoncalo/ ).
em Paraty a desenvolver roteiros guiados de
Na Ilha do Cedro, seu Pipi conta que Turismo de Base Comunitária (TBC).
aprendeu o feitio do cesto de cipó embé
ou timupeba que é colocado em burro de
Desde 2007, 2008, a
carga; o balaio de cipó para lavar camarão;
e o chapeu que era feito de imbé” comunidade já se organiza
junto com o Fórum de
O uso de recursos da mata em São
Comunidades Tradicionais, mas ainda
Gonçalo demonstra a importância que
esse conhecimento possui na manutenção
não tinha esse nome: Turismo de Base
do território caiçara. Mostra que a Comunitária. As ações mais relevantes
vida caiçara acontece e se reproduz [de TBC] a gente começou em 2013-14.
em espaços que vão além das praias E 2015 é um marco para São Gonçalo,
e dos quintais em torno da moradia. foi um evento que teve em Tarituba
Cestaria tradicional feita por Seu Nedir,
Muitas dessas variedades de cipós só
em São Gonçalo de Turismo de Base Comunitária. Ali
são encontradas em locais de difícil
acesso, e só quem conhece a mata, sabe nós começamos a operar o primeiro
em que tipo de ambiente de floresta roteiro, a primeira saída de campo com
eles podem ser encontrados. O acesso TBC. A comunidade incorporou no seu
A extração de materiais da floresta, aos seus territórios ancestrais passa roteiro o turismo náutico porque até
como madeiras e cipós, sempre foi uma pela transmissão desses saberes que então o turismo era só de travessia
atividade desempenhada pela comunidade conectam caiçaras ao espaço da floresta.
para a Ilha do Pelado. Ter um passeio
para construção de casas, para feitio de
de barco guiado também para as
canoas, e para confecção de peças de uso
nas atividades cotidianas, como cestos e outras ilhas falando das unidades de
A opção por esse modelo
peneiras e remos. conservação, passando pelas duas UCs,
de turismo é fomentar
a APA Cairuçu e ESEC Tamoios, a gente
Os conhecimentos associados a essas uma nova lógica que
práticas permanecem vivos em São
consegue fazer uma relação de uso do
possibilite ao mesmo tempo lazer com
Gonçalo e na Ilha do Cedro. Recentemente, território a partir desse espaço. E a
guiamento, com história e com cultura,
caiçaras de São Gonçalo participaram de agrofloresta, a parte do sertão também
com geração de renda distribuída
um projeto com o Sesc, intitulado Museu integra o roteiro”
Tramas Daqui, de registro e valorização dentro da comunidade e respeito ao
da cestaria local. A cestaria segue sendo modo de vida, ao meio ambiente, e Vagno Martins “Vaguinho 45 anos, São Gonçalo, 2022
produzida por seu Nedir, dona Nedina, principalmente a garantia do maritório
Ernani e Robson. O material gerado e do território, com exploração - no O público que busca os roteiros de TBC em
no projeto sistematizou informações bom sentido - dos recursos e das São Gonçalo são principalmente grupos de
sobre o processo de trabalho, desde a
belezas naturais fazendo com que esse estudantes universitários. A Universidade
coleta, tratamento da fibra até a trama
do tecido e finalizações da peça. Os lugar continue bonito e preservado.” Federal Rural do Rio de Janeiro, a UERJ, a Intercâmbios e atividades práticas nos processos
materiais citados na produção dessas UFMG já vieram com turma de alunos bus- formativos da Rede Nhandereko / FCT
Vagno Martins “Vaguinho”, São Gonçalo, 45 anos, 2022
cando o roteiro pedagógico.
76 77
As práticas tradicionais ligadas ao mane-
jo de recursos da floresta, como a cesta-
ria também compõem o roteiro de TBC de
São Gonçalo.

Segundo Vaguinho, a comunidade vive um


momento de consolidar o grupo interno,
um coletivo, para estruturar o traba-
lho com TBC com os princípios da Rede
Nhadereko, garantindo que a comunidade
tenha essa perspectiva de turismo e tam-
bém como estratégia de defesa do terri-
tório e proteção do modo de vida contra
os impactos que o turismo causa, além
de solução para outros problemas que a
comunidade enfrenta.

Rede Nhandereko é o nome dado


ao movimento de Turismo de
Base Comunitária que conecta
iniciativas de TBC nas comuni-
dades tradicionais da região. O
nome em guarani mbya significa
"nosso modo de viver" (Vaguinho,
São Gonçalo, 2022)

A perspectiva agora é de fa-


zer um arranjo com o Parque
Nacional da Serra do Bocaina
com objetivo de consolidar o circuito das
cachoeiras, a cachoeira das Gamelas,
Espigão e Tombo D’água. Também estru-
turar um ponto de receptivo dentro da co-
munidade. Que cada vez mais pessoas da
comunidade que trabalham com turismo
Esse trecho sobre as mulheres deverá ser
encaixado na Introdução, é geral para to-
das as comunidades. se apropriem dessa
ideia e falem de suas histórias e da cultu-
ra caiçara na relação com os visitantes.”
Vaguinho de São Gonçalo, um dos fundadores Vagno Martins “Vaguinho”, São Gonçalo, 45 anos, 2022
da Rede Nhandereko / FCT

78 79
PRÁTICAS DE
As plantas medicinais de São Gonçalo
foram pesquisadas por Mauricéia
Pimenta Tani, caiçara da comunidade.
CUIDADO / Ela fez a monografia de sua graduação
na Universidade Federal Rural do Rio de

SAÚDE Janeiro (UFRRJ) sobre os conhecimentos


passados para ela pela mãe e pela avó.

A finada madrinha Augusta, uma parteira


muito conhecida e respeitada em todo a
região norte de Paraty, nasceu em 1909 no
Taquari mas foi criada em São Gonçalo e Eu tinha a experiência
veio a falecer em Tarituba. de coletar essas plantas,
coletando as plantas
Ela era parteira de todo para minha avó Alzira, mãe da
município aqui. Muitos mãe, eu faço alguns xaropes, eu
nasceram com ela. A minha conheço muitas plantas através do
filha mais velha, a Geísa, todos conhecimento tradicional, da questão
nasceram. O meu outro rapaz que da oralidade, que é uma pedagogia
chegou aqui, o Isaías, nasceu com ela, muito importante de conhecimento,
com essa parteira. Ela fazia o parto de porque as pessoas não tinham estudo,
toda comunidade. mas elas conseguiam passar que
aquela planta ali cura. A minha avó
A gente, quando dava dor e tava muito me mandava colher terramicina roxa
escuro, não tinha luz aqui, nosso lá do lado da casa da Margarida, mãe
marido fazia fifó, desses assim de do Vaguinho, avó do Gabriel. Durante
bambu, e ia lá chamar ela na casa dela. anos eu pagava lá. Minha avó me
Podia estar chovendo, ela vinha” ensinou que a terramicina que faz chá
tem lá. As vivências que eu tinha era
Margarida Gomes Martins, 76 anos, São Gonçalo, 2021
tudo isso na prática. Era uma questão
de sobrevivência pra ela, ela ter uma
Depois de madrinha Augusta morar muitos planta no quintal."
anos no Canto Feliz, a ponta direita da
Mauricéia Pimenta Tani, 32 anos, São Gonçalo, 2022
Praia de são Gonçalo que hoje abriga a
sede da Fazenda São Gonçalo, ela foi morar
em Tarituba, onde além de participar
ativamente dos festejos católicos locais, de
fazer os partos e práticas de cura de todas as
comunidades, ainda foi coveira no cemitério
local. No capítulo dedicado a caracterização
de Tarituba, mais detalhes da trajetória dela
são apresentados, por meio dos relatos de
seus parentes que moram lá.
Mauricéia, de São Gonçalo,
recebeu de suas ancestrais os conhecimentos
sobre as plantas que curam.

80 81
Mais recentemente, a articulação feita pela
Coletiva Mulheres da Terra (ver links abaixo),
Em seu trabalho de pesquisa, Mauricéia
identificou a relação entre a presença ORGANIZAÇÃO A Ilha do Cedro possui 6 TAUS emitidos
em nome das famílias caiçaras regulari-
trouxe o termo erveiras para designar “mu-
COMUNITÁRIA
das plantas medicinais (domesticação zando a ocupação na áreas da União, em
lheres conhecedoras de plantas e ervas que ou espontâneas) e o padrão de ocupação um processo facilitado pela APA Cairuçu
podem curar”. tradicional caiçara, onde os caminhos para (ICMBio). Esse documento representa

Em São Gonçalo a maioria das pessoas


se chegar às casas das pessoas passam
pelos quintais de outras pessoas, e os ter-
E BANDEIRAS mais segurança jurídica na manutenção
das posses caiçaras e é visto pelos mora-
que já têm mais anos de vida conviveram
num período que não tinha posto de saú-
renos não são separados por muros, são
livres para o acesso. DE LUTA dores como uma fortaleza da comunidade.

A criação da Associação de Moradores de


de, e conseguiram passar para pessoas
São Gonçalo ocorreu na década de 1990.
como eu esses conhecimentos. Mas com No passado não tinha muro,
Na Ilha do Cedro a Associação de Mo- Nesse início estava focada no conflito
a transformação do território, a chegada não tinha cerca, tinham
radores AMICEDRO foi criada em 2014. com White Martins e contava com apoio
da modernização, as pessoas queriam os quintais. Para eu ir lá,
A comunidade considera importante ter do Sindicato Rural de Paraty. Nos anos
uma coisa mais fácil, queriam ir no médi- tinha que atravessar 3 quintais. Nos
uma associação para tratar dos interes- 2000, jovens lideranças de São Gonçalo,
co, numa farmácia. E a desvalorização do quintais, muitas dessas plantas são
ses da comunidade, participar das reu- como Vaguinho e Mauricéia, se conectam
conhecimento tradicional. encontradas, algumas domesticadas, niões com os órgãos públicos. Questões ao Fórum de Comunidades Tradicionais,
e outras nativas, espontâneas, são como TAUS (Termo de Autorização de Uso que se consolida em 2007.
comuns na região. As que não são Sustentável), autorizações para constru-
Fiz o trabalho com 5 mulheres nativas foram introduzidas há muito O restaurante da Bete na Ilha do Pelado,
ção e projetos são tratados pela associa-
de São Gonçalo e levantamos após anos de conflito com vizinhos, também
tempo. A maioria das pessoas fazem ção. Além disso, por meio dela, querem
58 plantas. Catalogamos, mas foi regularizado por meio da cessão do TAUS
a coleta. E tem plantas como a folha solicitar a reforma do ponto de ônibus
à família caiçara.
escrevemos só com o nome popular, da goiaba, a goiaba tem em todo lugar, na BR; coleta de lixo adequada na Praia
não temos o nome botânico, que para a terramicina, o hortelã, são plantas do Cão Morto; Visita de médicos na Ilha; As lideranças caiçaras mais jovens têm
as plantas medicinais é importante. domesticadas ou muito comuns naquele Instalação das placas solares do Luz Para um histórico de formação que passa
Mas o meu foco de pesquisa foi voltado ambiente. E as pessoas sabem onde Todos. por diversos espaços de reflexão diante
para o conhecimento popular dessas tá a planta. A própria comunidade vai dos processos em curso em Paraty e na
mulheres. De como essas mulheres, mantendo essa geografia natural. Bocaina de forma geral, e entre eles os
no mundo de hoje, que quando estão relatos destacam a importância do FCT e
A importância desse conhecimento, da militância nas pautas relacionadas aos
doentes vão ao posto, de como elas
assim como dos outros, é que ele povos e comunidades tradicionais.
poderiam conhecer e de quais plantas
legitima uma comunidade caiçara
elas ainda faziam uso.
que já foi expropriada e que a todo
E o mais comum é o xarope. momento ela sofre essa pressão de que
Deu um espirro: xarope. não é caiçara, que ela não existe mais.
Quando a gente pega uma planta, que
Mauricéia Pimenta Tani, 32 anos, São Gonçalo, 2022 não foi um botânico, que não foi um
médico e fala assim: ‘meu filho, coloca
aqui que vai curar’, quem te ensinou
isso? Isso é ancestral, inclusive dos
indígenas"

Mauricéia Pimenta Tani, 32 anos, São Gonçalo, 2022

Cachoeira das Gamelas

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Meu caminho formativo meninas, mais alinhada com algumas A comunidade de São Gonçalo também par-
sempre foi intercalado pelos coisas, porque a proposta do curso ticipa, na figura de Mauricéia Pimenta Tani,
movimentos, voltado pra era justamente voltar pro território da Coletiva Mulheres da Terra, que tem atu-
comunidade e vieram esses outros e dialogar. Lá eles perguntavam “ah, ado na articulação de mulheres do território
espaços de formação pra qualificação você faz parte do movimento? Qual pela valorização e fortalecimento dos saberes
que eu tive a oportunidade acessar. movimento?”. Então a gente estava ancestrais das mulheres ligados às práticas
de cuidado, envolvendo os saberes de plan-
Eu fui pra Rural [universidade Federal representando o Fórum ali”
tas e benzimentos. A Coletiva é fundamental
Rural do Rio de Janeiro, que aplica
Mauricéia Pimenta Tani, 32 anos, São Gonçalo, 2022 para o reconhecimento da participação das
pedagogia da alternância] com 22 anos.
mulheres na estrutura dos modos de vida das
Dos 14 aos 22 eu tive um crescimento
comunidades tradicionais da região e fortalece
cognitivo em questão de luta, de
os vínculos afetivos e políticos entre diferentes
território, de importância do território, comunidades. Materiais produzidos pela Cole-
muito grande. Gigantesco. Quando tiva podem ser acessados em:
eu fui pra universidade, aí, como diz
meu pai “acabaram comigo”. Que eu https://instagram.com/mulheres.daterra?igshi-
descobri esse negócio de feminismo, d=YmMyMTA2M2Y=
que mulher tem que falar mesmo. E daí
https://web.facebook.com/mulheres.caicarasda-
eu voltei pro território, eu e as outras terra?_rdc=1&_rdr

Juventude de são Gonçalo: o futuro ancestral

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MAPAS PRODUZIDOS PELAS
COMUNIDADES

O QUE FOI
MAPEADO
(DESCRITIVO DA
CARTOGRAFIA SOCIAL)

86 ILHA DO CEDRO
MAPAS FALADOS
PRODUZIDOS PELAS COMUNIDADES

SÃO GONÇALO

88 89
Por meio da caracterização, as comunidades
deram visibilidade às suas áreas de uso atuais
e históricos e a diversos pontos de referência
de seu território tradicional. Os mapas dos
territórios caiçaras mostram pesqueiros, áreas
agrícolas, ranchos, casas dos moradores,
zonas de extrativismo de recursos na mata,
caminhos, além de infraestrutura edificada
como escola, posto de saúde, e igreja.

Os mapas também estão repletos de nomes de


lugares de referência, alguns aludem à história,
como a Toca do Gentio, que remonta ao tempo
da escravização de pessoas; alguns lugares
são importantes por sua presença marcante
na paisagem, como o Rio São Gonçalo, o Morro
da Burra e a Ponta do Arpoá, que não deixam
também de ter camadas de história. Outros
nomeados conforme o uso feito no local, como
o Morro das Gamelas, de onde era retirada a
madeira para fabricação da gamelas, e onde
havia áreas agrícolas de algumas famílias. O
campo de futebol ao qual se referem é o campo
antigo, destruído pela White Martins, vivo na Bete e seu filho Frank. O pescado abastece o
memória dos mais velhos. restaurante que mantém na Ilha do Pelado e
garante a segurança alimentar da família.

RIO SÃO GONÇALO


O território de São Gonçalo é cortado
pelas águas que vertem de diversas
nascentes e confluem até formar o rio que
corre e deságua na Praia de São Gonçalo. LAGOA DO PITIU –
Embarcações de pequeno porte, como PRAIA DE SÃO GONÇALO
canoas, caícos e pequenas lanchas sobem
o curso do rio até um pequeno porto, a “Na época da chuvarada, a lagoa abre, e
alguns metros acima da BR 101. vira ponto de pesca e de observação de
pássaros marinhos”
Trata-se de um recurso hídrico
fundamental para abastecimento da
comunidade, além de espaço de lazer.
No alto curso, há cachoeiras que são
importantes atrativos turísticos que a
comunidade opera.

Embarcações no rio Sao Gonçalo

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PONTA DO ARPOÁ
É a ponta de terra que separa a Praia de
São Gonçalo da Praia de São Gonçalinho.
Arpoá, se refere a prática de pesca na qual
o pescador, posicionado em uma pedra,
arpoa o peixe com uma fisga.

Há uma narrativa sobre a presença de


uma hospedaria e uma capela construída
pelos colonizadores na Ponta do Arpoá
que teria sido destruída em um confronto
com indígenas que residiam na região
na época pre-cabralina. Conta-se que
colunas da capela onde havia uma
imagem de São Gonçalo, ruíram, caíram
na costeira, e ainda jazem na costeira
da Ponta do Arpoá, no fundo do mar
(Conferir trabalho historiográfico de
Diuner Melo).

TOCA DO GENTIO - ILHA DO PELADO


“Lá no Pelado Grande [Ilha], tem uma pedra
lá. Ela é meio assim: embaixo tem tipo uma
mesa de pedra. Levavam os escravos pra
morrer lá. Eu com o Doutor Luís, faz muitos
anos isso aí, era rapazinho, fui lá com ele,
pegou dois sacos de ossos de escravos.
Dedo, cabeça... Eles levavam os escravos e
deixavam lá às minguas, pra morrer lá”

Ilha do Pelado

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“Gamela que eu falo são
aquelas gamelas que

o povo antigo
colocava

MORRO E CACHOEIRA DAS GAMELAS MORRO OU PICO DA BURRA – peixe ali pra salgar o peixe pra no
SERTÃO DE SÃO GONÇALO outro dia fazer pra comer. Era dali
da onde tirava a madeira pra
As Gamelas é um local dentro do Referência visual das mais importantes
fazer as gamelas e a canoa. Morro
território de São Gonçalo, no sertão. A do território, o Morro da Burra se
destaca na paisagem devido à sua das Gamelas"
região é área agrícola histórica, como
foi descrito anteriormente. A cachoeira altitude.O local é visível de toda a baía
das Gamelas fica acima da cota dos de Paraty e marca a fronteira entre o Margarida Gomes Martins, 76 anos,
Sertão de São Gonçalo e o Sertão de São Gonçalo, 2021
200 metros de altitude, ou seja, foi
sobreposta pelo Parque Estadual da Tarituba. O pico da Burra atualmente se
Serra da Bocaina. A cachoeira faz parte encontra dentro do Parque Nacional da
do circuito turístico de base comunitária Serra da Bocaina.
de São Gonçalo.

Pico da Burra Curvas do Rio São Gonçalo


CAMPO DE FUTEBOL (RUÍNA)

CALÇAMENTO DE PEDRA
– SÃO GONÇALINHO

Estruturas que remontam a ocupação no


período colonial.

RUÍNAS DE VALAS DE PEDRA PARA


ESCOAMENTO DE ÁGUA – SERTÃO
DE SÃO GONÇALO

Estruturas coloniais que marcam a presença


de trabalho escravizado em
São Gonçalo. Estão em áreas mais remotas
do sertão, debaixo da floresta.

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100 101
102 103
TARITUBA
PRAIA DE MUITAS
CONCHAS
Quando eu pego uma viola Bem pertinho na igreja
vou compor uma canção ouço o sino a repicar
pra mandar como recado É ali na Tarituba
direto pro seu coração Começando a despertar

Chora viola, chora Ali pertinho de mim


Alivia a minha dor Ouço o barulho do mar E
Do que madeira chora água ao bater na praia
o que dirá este cantor? fazendo chuá-chuá

Manda esta tristeza embora Chuá-chuá


Traz de volta o meu amor De é o barulho do mar
manhã quando eu levanto Chuá-chuá
Vou lá pra beira do mar é o barulho do mar

Vejo os barcos ancorados É a minha Tarituba


O pescador que vai pescar Acaba de despertar
Veio a linda gaivota
começando a revoar Benedito Hilário de Bulhões

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LOCALIZAÇÃO As principais famílias formadoras da
comunidade de Tarituba são Bulhões
casamento de seus pais se dá a partir de Sou Aldo de Bulhões Lara,
conhecido como Pardinho,
E HISTÓRIA DA
encontros durante uma viagem da Folia
e Meira. Mas existem pessoas que nasci em Tarituba. Nasci
de Reis de Tarituba na Ilha da Gipóia. O
LOCALIDADE carregam outros sobrenomes também,
que foram chegando com o tempo, como
avo de Pardinho, Benedito José de Bulhões
nasceu nos primeiros anos do séc XX, e
dentro da escola, nasci lá, minha
mãe morava lá. Minha mãe era daqui,
Lara, Oliveira, Canuto, Reis, Nascimento, meus avós eram os fundadores. Meu
participava da folia. Nota-se que a relação
O território tradicional caiçara de Saturnino, Teodoro, Carmo e Silva
da comunidade de Tarituba com as folias, avô foi cantar Folia de Reis na Gipóia,
Tarituba está localizado no norte de entre outras. A família Bulhões está em
cirandas e festejos é muito antiga. e minha mãe conheceu o meu pai
Paraty, a 7 quilômetros da divisa com Tarituba desde pelo menos meados do com 16 anos aí meu pai veio e casou
Angra dos Reis. Com sua baía de águas século XIX, e contam deus descendentes com ela, que é Lara”
calmas, Tarituba é um refúgio de que as terras de Tarituba pertenceram
embarcações e foi um importante ponto a um fazendeiro português com esse Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba
de parada para quem viajava da capital sobrenome.
do Rio de Janeiro para Paraty, seja por
via terrestre ou marítima. Ao longo do século XX, os casamentos
entre esses núcleos familiares foram
Tarituba, junto com a região central e criando uma única família conectada por
Paraty-Mirim, é um dos três distritos de laços de parentesco consanguíneos (pai,
Paraty. Mesmo antes da construção da BR mãe, irmãos, filhos, netos, bisnetos,
101, como sede distrital, Tarituba contou tios, primos) e afins (cunhados, genros,
com alguns investimentos públicos que noras, sogros etc).
geralmente não eram feitos fora das sedes
dos municípios, como a construção da Para citar alguns exemplos que ilustram

Casa do Telégrafo e o cartório, que já não a conexão das famílias, Benedito Hilário

existem mais. Há também as ruínas do de Bulhões, com 80 anos, foi um dos

chafariz (de 1951), um cemitério ativo e o entrevistados e contou que, por parte

correio. de pai herdou o sobrenome Bulhões.


Sua mãe era Maura Raimunda de Meira.
A história de Tarituba é rica em detalhes Outro exemplo foi dado por Aldo Bulhões
e seus moradores mais antigos, além Lara, o “Pardinho” filho de Jodith Neusa
de bons guardiões da memória do lugar, de Bulhões e Osvaldo Elias Lara.
são bons narradores. Essa publicação
traz uma parte das informações sobre a A reconstituição de parte da genealogia

história e a cultura dessa comunidade. da família Bulhões, realizada a partir das


entrevistas com membros da comunidade
teve como objetivo identificar o ancestral
mais antigo da família (e não incluir
todos os parentes Bulhões). Com isso,
foi possível identificar 7 gerações
de parentes morando em Tarituba,
começando pelo Pedro Candinho e Vó
Jovem, um casal que viveu na localidade
em meados do século XIX.
Pesca e igreja de Santa Cruz, esteios do modo
de vida tradicional caiçara de Tarituba
No relato de Pardinho, a história de

107
A família Meira chegou em Tarituba há
muito tempo, depois dos Bulhões.

Teve família de Meira


aqui, porque os Bulhões
concederam terra para eles
também, que eram de outro lugar, eles
eram meio pirata. Até hoje a Cida fala
isso. E aí eles apareceram de canoa,
queriam morar aí e venderam para a
família Meira, aí que ficou bastante
Meira aqui. O velho tinha muitos filhos
também, mais de dez filhos. Então, podia
ter filho de uma Meira com Bulhões”

Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba

Quando fala do passado, a comunidade


lembra de algumas atividades que faziam
parte do modo de vida das famílias. Muita
gente morava onde hoje chamam de Vila de
São Vicente, do outro lado da BR 101, e o
caminho até a praia, era estreito, por trilha.

Além da pesca, da caça e da roça,


mencionaram também o modo de fazer
canoa, modo de fazer casa, a salga
do cação tintureira para exportação,
e comentaram de uma antiga técnica
pesqueira que a comunidade realizava:
o arrastão de praia. Chamou a atenção
a comunidade falar do “juntório”, uma
modalidade de trabalho coletivo, tipo
um mutirão, que reúne o pessoal para
cumprir uma tarefa. Geralmente os
juntórios eram feitos pra puxar canoa,
construção de casa, roça ou numa
pescaria coletiva.

Vista aérea da Praia de Tarituba e o corte da BR 101 ao fundo

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Os mais velhos contam que nas décadas Assim como outras comunidades A comunidade mencionou também a
de 1950, 60 e 70 muitas pessoas viviam tradicionais do Norte de Paraty, Tarituba preocupação com a exploração do Pré-
da venda de banana (mais detalhes desse também mudou muito com a abertura sal e com os planos de desenvolvimento
ciclo econômico que antecedeu o turismo da BR 101. Durante os diálogos com a turístico conhecidos como “Cancún
em Paraty encontra-se no capítulo de equipe do Povos, a comunidade considerou Brasileira” na região de Angra dos Reis.
São Gonçalo/Ilha do Cedro). É o caso de que a BR 101 representa, por um lado,
Tarituba é uma potência cultural, como se
Benedito Martiniano de Bulhões, nascido uma ameaça pois abriu caminho para a
verá nas páginas a seguir. Muito do traba-
na década de 1890, e falecido em 1960 com especulação imobiliária, promovendo a
lho de manutenção das tradições caiçaras
69 anos, pai de Benedito Hilário Bulhões, perda do território e das áreas agrícolas
passa pela importância da fé católica. Por
conforme seu relato abaixo: e trouxe o turismo predatório. E por outro
meio dela, a união e solidariedade comuni-
lado, tem também aspectos positivos,
tária é criada e atualizada.
Meu pai foi muito judiado pela porque a estrada abre acesso ao turismo,
vida que trazia. O sistema de uma importante atividade hoje em Tarituba. Dentro da comunidade, algumas
vida aqui era muito difícil, intervenções públicas e privadas também
Em 1985 a Usina Nuclear de Angra entra
trabalhava demais. As pessoas aqui são alvo de questionamento, como por
em funcionamento, mesmo ano que
viviam de vender banana para os barcos. exemplo o píer de concreto que em 2006
Tarituba foi incluída no Tombamento
Eu e minha irmã mais velha, ela ia com foi constrído no lugar do píer de madeira,
vestidinho nestas matas aí dentro, nos do Litoral Fluminense pela Secretaria
contrariando boa parte da comunidade,
bananais. A banana estava cortada e nós de Cultura do Rio de Janeiro, visando
impactando o meio ambiente e afetando
puxávamos tudo nas costas. Imaginem proteger as praias e os territórios
a paisagem original da praia. Além disso,
quantas viagens nós dávamos pra puxar pesqueiros das comunidades. Em 1990 é
algumas posses na orla de Tarituba que
duas, três dúzias de banana daí pra botar criada a ESEC Tamoios.
destoam da paisagem caiçara do lugar,
lá na praia pra vender para os barcos, pra
Desde que a ESEC Tamoios começou a com a presença de alambrados (cercado
gente se manter. E o meu pai pescando,
fazer fiscalização nas áreas para coibir feito pela empresa Luxor) e dezenas de
pescava até de noite. Então ele ficou
muito abatido, muito velhinho, muito a pesca, a comunidade de Tarituba vem tendas fixas de camping que parecem
sofrido, para criar os filhos. Hoje eu me se relacionando com essa nova realidade uma vila dentro da vila de Tarituba.
julgo um cara rico, eu não faço nada!” imposta pela unidade de conservação
Algumas visitas ilustres e a presença de
e buscando soluções baseadas em seu
Benedito Hilário de Bulhões, 79 anos, equipes de cinema e novelas em Tarituba
direito territorial como comunidade
Tarituba, 2021 fazem parte da memória coletiva da
caiçara para liberação das práticas
comunidade. O filme “Rei dos Milagres”,
tradicionais.
rodado em 1973, a novela “Mulheres
de Areia” e a filmagem do clip de Mick
Ocupações nas praias e áreas da união Jagger são alguns exemplos.
descaracterizam a paisagem dos territórios caiçaras.
A Ciranda de Tarituba já se apresentou no
Rio de Janeiro, Brasília e outras capitais
em eventos de grande visibilidade,
ocasiões que também marcam a história
do grupo. E em 2022 a Ciranda Caiçara
deu mais um passo, iniciando um
processo de salvaguarda do patrimônio
imaterial por meio do Projeto Escola do Cais de concreto interrompeu a circulação do mar
e alterou a paisagem caiçara de Tarituba.
Patrimônio Imaterial do Rio.
TRABALHO PESCA
AGRICULTURA E
Diversas práticas pesqueiras são realiza-
das pelos pescadores de Tarituba. Há pesca
Eu pescava desde criança.
Pescava com rede de

E RENDA EXTRATIVISMO

PESCA
de linha, de rede de espera, pesca de cerco
e de cerco fixo flutuante, bate-bate, mer-
mergulho, meu pai era
pescador de linha e o meu filho é um
gulho, covo, pesca de arrasto de camarão, mergulhador do caramba”
A pesca e o turismo são as principais
atividades de geração de renda em A pescaria que eu mais gosto e há pescadores embarcados que passam
Benedito Hilário de Bulhões, 79 anos,
Tarituba, mas há também assalariados é a de cerco. Eu pesquei com dias no mar. A coleta de guaiá, que costu- Tarituba, 2021
que trabalham fora da comunidade, meu pai muitos anos quando mam chamar de “assoviar guaiá” também
como na Mambucaba, na Usina Nuclear e eu tinha uns 8, 10 anos. E pescava com foi mencionada, e esse tipo de trabalho era “Ela passava: "criança, va-
outras localidades próximas. Há também o Ismael também. O cerco era lá na muito realizado por mulheres no dias de mos na costeira?", ela pega-
pequenos comércios em Tarituba, como Prainha, em frente a Ilha Araraquara. maré baixa. va a gente e ia pra costeira.
Pescava, puxava a canoa lá e a gente Para mariscar você precisa usar um
mercadinhos, uma padaria e espaços de
vinha a pé quando tinha vento. Eu tô Existe uma peixaria em Tarituba que com- trocinho (uma isca) para chamar o guaiá.
venda de roupas e artesanato.
voltando a reviver uma coisa gostosa pra parte do pescado obtido por pescadores Ela não, ela ia, assobiava. A gente pe-
Vale ressaltar que o trabalho realizado porque ele me chamou pra ser parceiro, de Tarituba, Mambucaba, Ilha de Araujo e gava uma blusa, saía lá em São Gonçalo
pelo grupo cultural de Tarituba que tá me dando felicidade pescar de novo eventualmente de pescadores de outras lo- com ela, caminhando.
envolve a Ciranda Caiçara, além de uma com meu compadre Carlinhos. calidades que precisem escoar sua produ-
É um canto que o pessoal caiçara faz
série de outras expressões de música, E a gente era criança e ia daqui lá ção. Os restaurantes e quiosques de Taritu-
mesmo: “guaiá, guaiá, guaiá” assobia-
dança e celebrações, além de contribuir cantando essa musica do Roberto ba também compram parte do pescado.
va e cantava as musiquinhas e falava
para o turismo em Tarituba, consegue Carlos, ele ia numa popa de canoa e eu
As áreas de pesca da comunidade de Ta- que estava chamando o guaiá, e a gente
ia na outra popa. Eu tô numa felicidade
incentivo financeiro por meio de projetos acreditava porque ela sempre vinha com
porque é 40 anos pescando com as rituba se estendem ao longo da costa em
aprovados em editais de fomento um montão. Ela virava as pernas pra
mesmas pessoas, cara!” sentido sul e norte, além das lages, parcéis
à cultura e educação. Dessa forma dentro, que eu nunca vi tão forte, pegava
e dezenas de ilhas que salpicam a baía da
garante cachê para as apresentações Aldo de Bulhões Lara, “Pardinho”, 63 anos Tarituba, 2021 o bicho sem medo, colocava na sacola,
Ilha Grande nessa região.
e oficinas realizadas pelos mestres, saia lá em São Gonçalo e vínhamos ca-
mestras, tocadores e brincantes, além A pesca em Tarituba é ofício ensinado minhando com ela na estrada. Chegava
aqui, cozinhava, fazia.
de contribuírem para a manutenção “Quando tem pescaria boa, de pai para filho, e as mulheres além de
de instrumentos, figurinos e a sede da mariscar, tem papel importante na lim-
associação folclórica.
o pescador fica alegre” peza e preparo do pescado para alimen- Maria Antonia de Bulhões Reis Rezende, 51 anos,
Tarituba, 2021 contando como sua avó Augusta
tação da família. mariscava guaiá na costeira.

Embarcação da equipe do Povos durante sobrevoo de drone


para captar imagens do território caiçara de tarituba

113
Ali é um ponto de cerco ele continua, vai indo e entra na boca,
PESCA DE CERCO FIXO FLUTUANTE
tradicional, antigo. A família aí lá ele fica rodando ali. Por isso que
sempre teve cerco lá, visita três vezes, de manhã, meio dia e
O cerco fixo flutuante é uma modalidade
cultivaram e lá é uma ilha que existia de tarde.
da pesca artesanal que os caiçaras
cerco há muito tempo, antes da ESEC
de Tarituba realizam há décadas. O chegar, antes da usina nuclear chegar. A primeira canoa da boca, que é a boca
episódio da queima de um dos cercos de O cerco é um tipo de pescaria que não menor, vai lá puxa a boca e aí fechou
Tarituba pelo órgão ambiental marcou a agride porque a gente tira só o que vai com o peixe já lá dentro. A gente chega
comunidade. Então, falar em pesca de comer, só o que é grande. Os pequenos a com a canoa da panagem e vai tirando,
cerco em Tarituba evoca sempre essa gente solta vivo. vai puxando e aí vai chegando. Quando
lembrança. O peixe entra, ele segue a pedra - peixe chega perto de onde estão com a boca já
de corrida que a gente chama - segue puxada aí vai tudo junto as duas canoas
Depois de alguns anos parado, a pra finalizar no sacador, que é a parte
a costeira. E aí bota uma rede, chama
comunidade de Tarituba se organizou, mais grossa aonde o peixe não fura”
caminho, que vem da costeira até aqui.
fez um em um diálogo com o ICMBio e Aqui tem as duas bocas. Tem cerco de
assinou um acordo – o Termo de Ajuste uma boca e tem cerco de duas. O peixe Aldo de Bulhões Lara, “Pardinho”, 63 anos, Tarituba, 2021
de Conduta (TAC) - que autoriza a vem beirando na costeira e acha a rede,
colocação do cerco dentro dos limites da
ESEC Tamoios, além de outras técnicas
pesqueira desde que os pescadores
tenham assinado o Termo e acessem as
áreas a remo.

O novo cerco de Tarituba representa


resistência caiçara. Pois além do
investimento financeiro, geralmente um
cerco não sai por menos de 20 mil reais.
O cerco é uma modalidade de pesca
coletiva, que reforça os laços entre as
famílias da comunidade. Quem teve a
iniciativa de comprar o cerco e chamar
os companheiros para trabalhar junto
foi Ismael. Pardinho conta como foi esse
processo de retomada da pesca do cerco
e da escolha do local para sua fixação.

Os pescadores escolheram um antigo


ponto para fixar o cerco na ilha do
Araraquara. Os pontos de fixação não são
aleatórios. Os pescadores levam em conta
uma série de variáveis, tanto do ambiente
marinho como do comportamento dos
peixes, para definir esses pontos.

Barana, Sororoca, Olhudo e cavala, saldo da pescaria Visita ao cerco de Tarituba na Ilha Araraquara,
no cerco de tarituba na Ilha Araraquara antigo ponto de pesca sobreposto pela ESEC Tamoios.

115
A pesca do cerco a gente Antigamente aqui quando eu São 7 pescadores que trabalham nesse Biduca explica como fazem a visita ao
arma uma rede, às vezes fica pescava com meu pai, meus cerco de Tarituba, mas nem todos cerco para verificar se entraram ou não
ali até um mês, depende da tios, a gente não tinha motor, precisam ir em todas as visitas, e podem os peixes no certo.
pescaria. A gente arma a rede e vai lá era no remo. O cerco a gente colocava
revezar. Isso é importante, no caso do
duas vezes por dia. Você levanta, tira o aqui nessa ilha (Ilha comprida), mais
cerco na Ilha Araraquara, porque cada Quando vai colhendo a rede, os
peixe bom, solta o peixe pequeno e vem próxima. No máximo a gente levava 40
visita demora mais de duas horas, e são peixinhos pequenininhos começa
embora. Chega meio dia, levanta a rede min remando. Era duas três vezes por
de duas a três visitas por dia. a pular, aí já sabe que vai ter coisa boa
de novo e faz a mesma situação. Tira dia pra ir no remo. Hoje a gente tem a
facilidade de ter o barco motorizado, ali. Quando chega no sacador, na rede
o peixe bom, solta os miudinho. Vai de
mas já ficou difícil porque aqui onde a Trabalha o primo Odil, Ismael, mais grossa pra você tombar a rede ou
manhã e de tardinha”
gente pescava, essa ESEC que entrou aí, Alexandre, Pardinho, Pedro, puxar pra canoa, aí você vê os peixes
Joaquim Meira, "Biduca", 72 anos, Tarituba, 2021 proibiu muitas ilhas. Então nós estamos João e o Carlinhos. Por enquanto nós correndo ali, você fica alegre! Cavala
pescando na Ilha Araraquara, e foi uma estamos em sete companheiros. Mas principalmente, né! Robalo às vezes tem
luta pra conseguir botar a rede lá, com sempre sai dois pra um lado, nunca tá ali. E robalo tem que ficar esperto porque
Os pescadores não podem acessar ele fura a rede. Tem que colher rapidinho,
autorização deles. Fica difícil pra gente todo mundo junto. Mas devido a tirar
as áreas pesqueiras dentro da ESEC secar a rede, deixar o mínimo de água pra
trabalhar assim” a rede, precisa de bastante gente pra
Tamoios. Saem em barcos motorizados ele não furar”
soltar as cordas, deixar o círculo lá
rebocando as canoas, até os limites Odil Meira Bulhões, Tarituba, 2021 pronto, pra arrumar a rede”
da ESEC, onde fundeiam, e trocam de Joaquim Meira, "Biduca", 72 anos, Tarituba, 2021
embarcação para remar até o cerco. Joaquim Meira, "Biduca", 72 anos, Tarituba, 2021
A equipe do Povos acompanhou uma
atividade no cerco para entender como os
O cerco demanda que os pescadores
pescadores estão mantendo a tradição da
façam a manutenção mais ou menos de
pesca de cerco mesmo com as restrições
15 em 15 dias. Nesse momento a rede é
impostas pelos acordos com o órgão
retirada do mar, estendida para secar e
ambiental.
lavar o lodo que começa a se formar, e
costurada nos locais onde tem buraco. É
uma pesca que dá trabalho, mas pode ser
considerada uma das mais sustentáveis
pois o pescado capturado no sacador
permanece vivo, e os peixes pequenos
poder ser devolvidos ao mar.

116 117
Cada duas semanas tem que A elaboração do TAC formalizou um acordo que a família estava passando dificuldade, No Termo de Compromisso, as áreas
tirar a rede pra concertar, que, independente do gestor da ESEC, tem que dependia do cerco, era caseiro da pesqueira autorizadas para os pescadores
porque tem peixe que rasga a rede. Aí que ser respeitado. A queima de um cerco ilha, mas o dono da ilha também não de Tarituba dentro da ESEC só podem ser
você concerta a rede, fecha os buracos, fixo flutuante foi uma das motivações da estava pagando, tava atrasado e ele acessadas a remo, e nunca em embarcações
lava porque dá muito lodo, põe as formalização do Termo de Compromisso. dependia do cerco. Depois quando eu ia motorizadas.
cortiças, troca algum pano que as vezes na reunião do conselho, eu sempre falava:
fica fraco. Tem que fazer esse trabalho ‘olha o homem tá ficando doente’, porque
de manutenção da rede” ele vivia daquela coisa e ele ficou doente E por que que nós botamos
Expliquei tudo isso, a primeira realmente e adquiriu um câncer e morreu. canoa? Porque é o seguinte:
Joaquim Meira, 72 anos, Tarituba, 2021 pessoa [gestora da ESEC] a gente tinha que chegar, a
Eu acho que também por um pouco de
aceitou tudo o que eu falei. Já o tristeza disso tudo” gente tava vendo que estava vindo muita
segundo, quando ela saiu, (porque muda gente pro nosso lado, invasão e gente
ACORDO DE PESCA
de diretor, né?), veio de Santa Catarina. Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba só comprando bote. Aí nós botamos
O TAC é o Termo de Compromisso Foi aí que aconteceu a queima do cerco, canoa pra diferenciar, porque se a gente
com a ESEC Tamoios. Desde 2012 porque não sei se ela passou as coisas pra colocasse bote, esse pessoal ia tá tudo
A luta pelo reconhecimento de seus
nós tamo lutando. Eu e o Nilton ele, e como era uma coisa de boca e não lá pescando com a gente. A canoa é
documentada... direitos pesqueiros nas áreas da ESEC
nós fomos lá representando a Associação diferente, ela é artesanal, é do caiçara”
foi um aprendizado para a comunidade
de Moradores. E aí tava nessa luta para
E aí numa das fiscalizações que veio de de Tarituba que por anos conduziu um
criar esse Termo de Compromisso que o Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba
fora, de Angra dos Reis, eles tacaram processo de diálogo com o Estado. Nessas
foi primeiro do Brasil, o nosso. A ESEC
fogo no cerco que estava enxugando para ocasiões, a tentativa foi de considerar
foi criada sem consulta pública, eles A exigência de canoas garante que
escolheram as ilhas que estariam dentro poder arrumar. Nessa situação eu queria os saberes tradicionais na elaboração da
apenas pescadores artesanais caiçaras
da ESEC” saber o porquê de fazer isso, e ele falou proposta de acordo.
possam usufruir dessa área de pesca,
que foi a mando da ESEC, mas já era outro
mas ao mesmo tempo cria uma
Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba diretor. Eu conversei muito com ele, falei
O biólogo aprende muito com a dificuldade para as pessoas que não
gente. Tanto é que eles disseram podem remar longas distancias. Além
assim: vocês que vão falar qual disso, o medo de multas e apreensões
é o tipo de pesca que não depreda. E aí persiste por conta de ocorrências
a gente botou bastante coisa, vai que anteriores. Segundo relatos, a forma
passa. Foi pra Brasília a primeira vez, não como a fiscalização é feita na área
passou. Aí diminuímos, fomos peneirando. muda conforme muda o gestor da
Mandamos pra Brasília de novo, voltou, unidade e isso cria insegurança para os
não passou. Só passou na terceira, que pescadores.
ficou só pesca de anzol, espinhel, cerco
flutuante.
Temos condição de botar outro cerco
porque quando eu botei o cerco foi o
nosso que queimou. E aí agora botaram
o do Ismael, mas dá pra botar os dois. E
também uma rede de malha, malha 50,
que é rede de tainha, rede de camarão,
que é malha 30. E covo também”

Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba


O problema todo é a Estação A questão divide a comunidade entre os
Ecológica de Tamoios que que são contra e só veem o lado ruim da
criaram aí, e não respeitaram as Unidade de Conservação, e aqueles que
pessoas que já existia de muitas décadas. ponderam e buscam o diálogo acreditando
Passaram por cima e botaram as leis e que, se por um lado a ESEC atrapalha,
a gente ficou sobre o domínio deles. A ela é um “mal necessário” na medida que
gente sai pra pescar com medo, porque
ajuda a manter a reprodução dos peixes e
volta de lá às vezes com multa, com um
a sustentabilidade do estoque pesqueiro
processo pra responder. Eles tinham que
na região.
saber pelo menos quem eram os nativos
do lugar e dar uma contrapartida pra
gente, pra não cair nesse problema de
levar multa e processo. Tem que respeitar AMEAÇAS À PESCA
o regulamento que eles criaram e a gente
não tá satisfeito com isso. A gente tem Entre as principais ameaças à pesca em
que pescar, porque a gente sobrevive Tarituba, uma das mais mencionadas foi a
disso aí, depende de pegar o peixe pra restrição causada pela ESEC Tamoios. Mas
sobreviver. outras questões também foram levantadas.

Eu mesmo fui pego em 2011 e até o ano A comercialização do pescado foi apontada
passado eu recebi notificação que tem que como um gargalo, mas segundo relatos,
ir lá pra apresentar recurso. O recurso hoje esse é um problema menor. E o
que eu tinha que fazer eu já fiz! Fui pego
excesso de motores de embarcações,
botando um covo, eu pescador botando um
incluindo lanchas de turismo
covinho numa canoa. Numa ilha que tava
e jetski também impactam
uma mansão lá que não parou, a mansão
negativamente a pesca.
ta direto construindo e fazendo cais tá
lá tranquila. Até a canoa levaram preso.
Depois de muito tempo que eu consegui Antigamente era mais difícil para
pegar a canoa, toda estourada. Fica difícil comercializar o pescado. Hoje é fácil
pra gente trabalhar assim” comercializar, mas tá difícil adquirir
certa quantidade de peixe. Cada vez mais
Ismael Bulhões, 75 anos, Tarituba, 2021 escasso.

Os motores afugentam sim um pouco.


Pode-se dizer que os acordos de pesca Hoje não é só os motores de pescador.
embora representem um avanço no Tem o turismo, muito jet-ski. Aqui na
diálogo entre os órgãos ambientais e nossa baía não compensa mais, tem que
as comunidades para criar soluções ir mais longe. E ir mais longe no remo,
para as proibições, por outro, impõem não dá”

restrições que não fazem sentido para


Odil Meira Bulhões, Tarituba, 2021
antigos pescadores que sempre tiveram
a liberdade de pescar nesses locais.
A presença dos navios dentro da baía da Ilha
Grande são vetores de impacto na pesca,
segundo os pescadores de Tarituba.

120 121
O navio joga a ancora aqui onde
é o pesqueiro deles, e aí faz FESTAS,
buraco. Quando faz buraco a rede
não passa. O navio ele traz muita coisa
no lastro dele. Um tempo atras o pessoal
FOLIAS,
da lula me disse, porque a lula vem no
rastro do navio e o pessoal foi atrás da
DANÇAS E
lula, o navio saiu e arrastou o barco. Me
disseram que o navio, você tem que estar HISTÓRIAS
uns 500 metros fora dele.
Porque a coisa mais linda para
Navio passando pra lá e pra cá, espanta os
mim, é você acordar com uma
peixes, ele cala muito, vai muito no fundo
folia de Reis na sua porta.
do mar”
Não tem coisa tão bonita assim. A folia
de Reis não é qualquer folia. Tem que
Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba
tocar bem, são três vozes que entram
em sintonia: o mestre, o contramestre

TURISMO
e o triplo. O triplo é a pessoa que grita
depois. Essas três vozes, quando entram
em sintonia você parece que tá, assim,
Quiosques, restaurantes, casas para alugar voando, sabe? É muito lindo. O triplo da
e pousadas são as principais estruturas de folia de Reis, ele sobe, por isso que é
recepção turística em Tarituba. Entre os muito difícil achar triplo para folia de
atrativos, além da própria praia de Tarituba Reis. Só tinha duas aqui que era Neuza e
a Silma, minha irmã”
e das pequenas praias vizinhas, passeios de
barco são procurados.
Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba
As festas da comunidade também atraem
bastante público e a Ciranda de Tarituba, A comunidade de Tarituba mantém vivas
muito conhecida em Paraty, no Estado do tradições culturais caiçaras que envolvem
Rio e nos movimentos culturais caiçaras festas religiosas e não religiosas, além de
de todo o Brasil é um diferencial que um rico repertório de músicas e danças.
potencializa o turismo na comunidade. O grupo de Ciranda de Tarituba mantém
vivas as tradições culturais caiçaras e
os mais velhos ensinam para as novas
gerações os passos das danças, os versos
e o modo de tocar os instrumentos. O
calendário de celebrações de Tarituba
está ligado à essas manifestações e
conta com o importante trabalho da
comunidade católica de Tarituba que além
de zelar pelo espaço da igreja, cuida dos
ritos litúrgicos.
Pesca e igreja de Santa Cruz, esteios do modo
de vida tradicional caiçara de Tarituba
CELEBRAÇÕES manifestações de música e dança
que a própria comunidade desenvolve
Nove dias antes da missa acontece a
novena, momento litúrgico que ocorre
ser Santa Cruz”. E ficou Igreja de Santa
Cruz. Todo ano tem a festa, é a festa da
(ver a seguir). Além do calendário da na casa dos moradores. No período da padroeira do lugar. É tradição.
Tarituba promove várias celebrações
comunidade, o pessoal de Tarituba novena a comunidade organiza uma
ao longo do ano na comunidade.Segue Tem gente que veste o filho de anjo até
participa de muitos inúmeros bailes e procissão, acompanhada por bandeiras e sete anos de idade na festa, que faz
abaixo o calendário de festejos:
eventosem outras localidades de Paraty. passam por uma ou duas casas por noite, bandeira, carrega bandeira, que recebe a
junto com o grupo de Folia. As bandeiras bandeira em casa. Interessante que isso
• Folia de Reis – de 8 de dezembro
circulam pela comunidade durante o dia não é só da comunidade, porque pessoas
a 20 de janeiro
e dormem na casa das pessoas. No dia que frequentam Tarituba há muito tempo
• Baile de Aleluia – Sábado de Aleluia
FESTA DE SANTA CRUZ seguinte volta pra igreja, de onde parte vem na festa. Às vezes a pessoa fala assim:
• Festa do Divino (Folia) – maio ou junho,
para a próxima casa. A missa ocorre "faz uma promessa pra mim que eu venho
conforme data da Páscoa A principal Celebração é Santa Cruz, na igreja no primeiro domingo após a pagar na Festa de Santa Cruz”. E vem
• Festa de Santa Cruz – 03 de maio e a padroeira de Tarituba, homenageada todo realização da novena. Para levantar pagar, não é tio?”
novena começa no final de abril dia 03 de maio. A Festa de Santa Cruz recursos para a Festa, a comunidade
• Festas Juninas: São Antônio, São João acontece do final de abril até 03 de maio, Roberta Ferreira de Bulhões, 42 anos, Tarituba, 2021
realiza bingos e fazem ofertório durante
e São Pedro – junho e é marcada por 5 momentos principais: a novena na igreja. A primeira capela de Santa Cruz foi
• Natal (Pastorinhas) – 24 de dezembro o levantamento do mastro em frente à
• Carnaval A origem da festa e da igreja de Santa construída pelos primeiros moradores de
igreja, no domingo de páscoa, novena com
Essas celebrações envolvem muitas Cruz está associada à morte de uma mu- Tarituba, Bulhões e Meira, de taipa com
procissão, baile, almoço e missa.
lher negra escravizada que fora enterrada cobertura de palha.
bem no local onde mais tarde foi edificada
a igreja. Alguns contam que as pessoas
rezavam no local onde estava a cruz des-
sa mulher e começaram a ser atendidas
em milagre. Mas nem todos em Tarituba
conhecem essa versão da história.

De Santa Cruz, é a história da


Tia Eva. Era uma escrava que
antes da igreja ela morava lá
em cima no morro, e ela descia pra pegar
peixe, meu avô contava. Aí teve um certo
dia ela não desceu, e acharam estranho,
que ela descia junto com um cachorrinho.
Acharam estranho, ela não desceu no
primeiro dia, não desceu no segundo dia e
no terceiro dia o cachorro desceu sozinho.
Aí começou a latir, e os pescadores foram
até a casa dela. Chegou lá e ela estava
morta. Como era uma negra muito querida
aqui, eles fizeram o túmulo dela lá onde
hoje é a igreja, porque não era igreja.
Enterraram ela ali e fincaram uma cruz,
Santa Cruz, padroeira de Tarituba e ali começou a ir todo mundo ali fazer as Natalina exibe foto de sua sogra, Madrinha Augusta
orações e pedir. Daí fizeram uma capelinha
pequenininha: “o nome da igreja vai
124
FESTA JUNINA Era folia de reis mesmo, Papai (Bidico) ensaiava muito pra A folia do Divino vem de fora, da cidade
A comunidade organiza 3 festas juninas que eu acho bonito. Eles poder sair o Reis aí na Tarituba, e ela circula em todas as comunidades,
e a primeira delas é em devoção a Santo cantavam de casa em casa ele ensaiava muito e eles dizia inclusive em Tarituba, fazendo a
nas famílias. Chegava na casa do cara assim: "Não quero barulho, não quero arrecadação de casa em casa para a
Antônio. Antigamente acontecia no pátio da
dormindo, a noite, cantava verso pra ele, barulho que o pessoal está dormindo. Eu igreja, durante o dia. Já Folia de Reis é de
escola, depois passou a ocorrer na frente do
homenageando a família e desejando quero quando chegar na porta eu assustar noite e não tem arrecadação. No passado,
mercadinho, perto da entrada de Tarituba e
que Deus desse muita saúde. Aí parava o pessoal que está dormindo". Assim que
a festa sempre tem comes, bebes e fogueira. a Folia de Reis saudava o presépio, e
e entrava dentro de casa, tomava café a ele dizia. Ele amanhecia o dia cantando
A festa de São João recentemente passou segundo Simone era uma saudação longa
vontade. Nisso, a outra folia que estava reis. Ele vinha aqui 7, 8 horas. Gostava,
a ocorrer na frente do bar da Paulinha, na porque homenageava um por um dos
pra outro lado chegava cantando na ele gostava mesmo. E carnaval, ele
entrada de Tarituba. Antes acontecia nos locais santos e personagens do presépio.
mesma casa. Aí o que acontecia? Tinha também gostava.
mais amplos da comunidade, como no campo, que fechar a casa, que é pra poder a
na escola ou na praça. Tem fogueira, comidas
típicas, canjica, quentão, milho cozido, caldo.
outra chegar. Alguém na frente avisava:
‘Ó, a folia tá vindo aí e vai cantar aqui’.
Natalina De Bulhões Reis, 90 anos, Tarituba, 2021
CIRANDAS E
Cada família leva um bolo, um salgado ou um
refrigerante. Às vezes tem a Ciranda, às vezes
O dono da casa fechava a casa e ficava
todo mundo quietinho. O outro grupo OUTRAS DANÇAS
tem quadrilha. que tava tocando ficava lá dentro
quietinho esperando. Eles já sabiam Na construção do seu painel de
E a Festa de São Pedro tem um festeiro que que o grupo estava lá. Cantavam e patrimônio cultural, a comunidade de
geralmente muda a cada ano e é indicado jogavam versos para a folia que estava Tarituba incluiu muitas manifestações
pelo festeiro anterior. os festeiros costumam lá, que eles chegaram na frente, foram culturais de dança, música além de
ser pescadores. A festa tem início com uma mais espertos, já comeram. Mas era
histórias e lendas que fazem parte do
procissão marítima, na qual levam 3 andores: interessante, depois reunia todo mundo e
imaginário simbólico compartilhado. Isso
um com Santo Antônio, outro com São João saiam pra cantar”
ocorre não apenas entre comunidades
e outro com São Pedro. Depois acontece a
da região, algumas dessas histórias
missa na igreja, e finaliza com baile de forró e Joaquim Meira, 72 anos, Tarituba, 2021
fazendo parte do repertório popular de
comidas típicas.
lendas encontrados em muitos lugares
As visitas de casa em casa hoje são
do Brasil. Algumas dessas histórias
combinadas previamente, já no passado
ainda são contadas para os mais jovens
FOLIA DE REIS E FOLIA DO DIVINO eram surpresa. As pessoas apagavam a luz
e se tratam de histórias e versos que
de suas casas e mantinham a mesa do café
A celebração de Reis ocorre entre 08 de atravessam o tempo tem um valor e uma
pronta para o caso da folia chegar em sua
dezembro e 20 de janeiro, e conta com a função importante até os dias de hoje.
porta e acordar os moradores.
presença de foliões e música ao vivo nas
Entre as “formas de expressão”, a
ruas da comunidade.
comunidade identificou:
A Folia é organizada por um grupo de pessoas Eram 3 folias: Folia de Seu
• Danças: Ciranda; Xiba; Tontinha;
que tocam e cantam e passam na casa dos Bidico, Folia de seu Chiquinho e a
Caranguejo; Flor do Mar; Passarinho;
moradores para abençoar os lares. Cada Folia Folia do pai de Roberta Ferreira
Bulhões (Não diz o nome) Quando se Arara; Canoa, Cateretê; Cana-Verde,
carrega a sua bandeira e os instrumentos
encontram, um desafia o outro através de marrafa, urubu, entre outras. Mazuca
utilizado são violão, viola, cavaquinho,
versos” e rancheira também eram danças
pandeiro e triangulo ou garrafa de vidro vazia
praticadas no passado.
(que substitui o triângulo e caixa). Benedito Hilário de Bulhões, 79 anos, Tarituba, 2021

Mestre Benedito Rosa de Bulhões

126 127
Mestre Chiquinho dizia que se não
dançasse o chiba-cateretê na
entrada do baile, o sapateado, o baile ficava
chulo, ficava sem importância"
Simone Ferreira de Bulhões, Tarituba, 2021

128 129
• Versos das músicas; tanto das folias de ciranda, e os pais dos seus pais também. O mais velho era José Pedro
santa cruz, folia de reis, do divino, como Os filhos de Pedro Candinho (Chiquinho, Boaventura de Bulhões. Depois
os versos das diversas modas de ciranda Zé Pedro e Bidico) foram os primeiros o Benedito José de Bulhões,
que a atual geração de Tarituba que é o nosso avô. E o Francisco José
• Histórias: boitatá (é um fogo, e sumiu de Bulhões, que é o Chiquinho, o nosso
conheceu tocando ciranda. Mas antes
por causa da iluminação, energia mestre da ciranda. Todos os três são
deles não souberam dizer se tinham
elétrica), lobisomem, curupira, saci, mestres, faziam de tudo. Esse aqui, o
tocadores, e nem com quem aprenderam.
mãe-d’água, mãe de ouro (a mãe de ouro mais velho, ele tocava muito. Ele tocava
saía do pico da Burra até o Frade e até o Os bailes de ciranda no tempo dos ciranda, quando a ciranda começou com
Cuscuzeiro); mais velhos acontecia nas casas dos o grupo. Quando o grupo de ciranda
moradores, espontaneamente, não começou aqui foi através deles. O meu
• Jongo (memória)
existia um grupo fixo. Esses eventos avô Benedito tocava viola, era o violeiro,
• São Gonçalo (memória) ocorriam em comemoração a boa pesca, era violeiro da folia de Reis. O tio
boa colheita, batizados, casamentos, lua Chiquinho, ele tocava viola ao contrário
• Pastorinha no Natal porque ele teve um problema na mão
cheia e festejos do calendário religioso.
dos fogos, aí então era invertida as
Só mais tarde, na década de 60 que, a
cordas da viola e eles eram pares das
CIRANDA partir de convites para apresentações
esposas na dança, né? E eles dançavam,
e gravações fora de Tarituba, o pessoal
A Ciranda de Tarituba existe desde a cantavam, tocavam e sapateavam. Tudo
se organizou para se apresentar em
geração do avô de Pardinho, os filhos do ao mesmo tempo”
outros lugares. Assim surgiu o Grupo de
Pedro Candinho. Não se sabe quando a
Ciranda de Tarituba tal como se conhece Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos,
ciranda começou em Tarituba. Os relatos Tarituba e Simone Ferreira de Bulhões
hoje e, o primeiro registro da ciranda de
dos mais velhos contam que desde que
Tarituba na cidade de Paraty é de 68.
nasceram ouviam seus pais tocando
Em 1974 foi feito o primeiro registro
fonográfico da Ciranda de Tarituba. Mas
antes disso, no início dos anos 70, a
ciranda já tinha participado da gravação
do Filme Reis dos Milagres.

Pula compadre, pula comadre


Pula comadre mais
um bocadinho
Vamos dançar essa rancheira
Vamos dançar bem puladinho
Por isso hoje veio aqui
Compadre Chico
com sua mulher
Veio ensinar dançar rancheira
Só não aprende quem não quer Pesca e igreja de Santa Cruz, esteios do modo
Ciranda na Festa de Santa Cruz em Tarituba, em 2022
de vidaumtradicional
Pardinho e a Viola, caiçara
instrumento de Taritubada Ciranda Caiçara
indispensável
Versos de rancheira, por José Felix, Tarituba
130 131
Eles gravaram 1974, foi lá Os versos das modas são criados no No Xiba Caterete, na dança de A música fala de todo modo de
no Museu do Folclore, e foi a improviso e falavam das coisas do abertura, no baile, entra um vida do caiçara: da pesca, da
professora Cássia Frade lá da cotidiano, dos nomes de lugares, falam instrumento que não existe relação com o meio ambiente,
UERJ que levou eles e eles gravaram de pesca e de roça, do mar, do amor. em outros grupos de ciranda, só existe da agricultura. Por quê? As letras eram
quatro canções do nosso repertório num Refletem aspectos da cultura caiçara pra gente, que é o mancado. O mancado o que eles vivenciavam. E do que é que
vinil, foi a primeira gravação que a gente e expressam sentimentos universais é uma caixa de madeira tocada com as eles viviam, eles viviam da pesca, da
teve. Foi o Xiba Caterete, “Caranguejo”, mãos calçadas no tamanco, porque o agricultura, da banana, da mandioca que
do ser humano. Saber fazer e tocar
“Caboclo velho” e “Tonta”. É um registro mancado vai dar o tom do sapateado. plantava…”
os instrumentos também faz parte
bonito, a gente precisava ter isso, era Só existe no Xiba Caterete. O chiba
da manutenção dessa tradição. Viola, Simone Ferreira de Bulhões, Tarituba, 2021
daquele “Reis dos Milagres”. Aparece o e o cateretê são a mesma coisa, é a
rabeca, pandeiro, bandurra, adufo,
tio Chiquinho jovem, de bigode preto, lá entrada, a abertura do baile. Mestre
piegas (castanholas) e cavaquinho são os
no carramanchão, com a tia Rosa. outro Chiquinho, ele dizia, que se não dançasse
registro foi a participação no filme Reis instrumentos utilizados pela Ciranda de
o chiba-cateretê na entrada do baile,
dos Milagres, rodado em 1” Tarituba. porque é o sapateado, o baile ficava
Antigamente, para fazer instrumentos se chulo, ficava sem importância. Porque
Simone Ferreira de Bulhões, Tarituba, 2021
a batida do tamanco do mancado vai
utilizavam as madeiras tirada do mato e
fazer o chamamento, ela vai chamar e
também parte de animais como o couro
vai dar energia necessária para o início.
A maior parte das danças mencionadas da cotia. Além disso, se usava também
As danças do meio do baile chamam
acima fazem parte do baile de Ciranda o “bucho” do cação pra fazer o couro do
“miudezas”, vamos fazer “miudezas”. A
e, cada moda evoca passos e dinâmicas pandeiro.
ciranda é uma dança de meio de baile:
diferentes na coreografia.
flor do mar, caranguejo, arara, cana
verde. Todas essas danças são chamadas
miudezas. Quando está amanhecendo que
dança o final, o fecho do baile é a tonta
ou tontinha. A tonta também é chamada
“barra do dia” ou “ave da manhã” porque
ela fecha o baile, ela amanhece. Todo
mundo já está meio tontinho, cansado,
né? Tomou umas cachacinhas, mas aí que
serve o roxo forte.”

Simone Ferreira de Bulhões, Tarituba, 2021

Carramanchão onde costumavam acontecer os bailes de ciranda em Tarituba Simone e o pandeiro utilizado pelo Grupo da Ciranda de Tarituba

132 133
Conjunto da Ciranda de Tarituba durante Festa de Santa Cruz em 2022. Hugo de Bulhões Lara,
Benedito Rosa de Bulhões, Joaquim Meira dos Santos Filho, Benedito Hilário de Bulhões,
Otacílio Meira de Lara, Aldo de Bulhões Lara, João Carlos Rosa de Bulhões, José Félix

134 135
CARNAVAL Contam que tinha moradores de outros Dizia que os caprichados não saiam fazer, então isso limitava a participação.
lugares, como o Ezequiel do Taquari que Hoje as pessoas da comunidade parti-
Existiam dois blocos de carnaval em Pra que ele, os três dias de folia
participavam do bloco da Mocidade. cipam do auto indepentendente dessa
meados do século XX em Tarituba. Um Eu digo, eu digo, tenho honra de dizer condição.
deles, era o Caprichosos Unidos de Natalina também se envolvia na
Que o nosso bloco é que vai vencer
Tarituba (azul e branco), participavam brincadeira, chegou a sair de rainha do O grupo envolve pessoas de todas
Madrinha Augusta, Natalina, Bidico. carnaval. Ela guarda na memória versos Pega o estandarte Natalina as idades, crianças, jovens, homens,
E o bloco da Mocidade (verde e amarelo), das músicas, as bandeiras que carregava quando requebra é boa menina mulheres e idosos. Pardinho considera
que a turma que participava era o Seu como porta estandarte e mostra as fotos o grupo da ciranda uma das coisas mais
eu digo e digo, tenho honra de dizer
João, Vicentina, Vidoca, Maria. O bloco do álbum com sorriso e brilho no olhar, a importantes para manter a comunidade
dos caprichoso Unidos saía de São alegria desses momentos. que o nosso bloco é que vai vencer. unida e há muitos anos se dedica em
Gonçalo e vinha para Tarituba, juntava zelar pela sua continuidade.
O carnaval em Tarituba resiste por Versos do Vadinho, marchinha de carnaval do
com o pessoal de Tarituba.
meio do Bloco das Piranhas - homens Para Pardinho, esse patrimônio imaterial
Bloco Caprichosos Unidos da Tarituba
vestidos de mulher e mulheres vestidas que Tarituba preserva e promove é uma
Eles cortavam galão de 200 de homem - que ganha as ruas nas missão de vida. Desde cedo ele percebeu
litros de lubrificante de ferro pra que essa é uma forma de manter a
noites de folia. As crianças às vezes PASTORINHAS
fazer os tambores"
também celebram o carnaval: já fizeram comunidade unida e de realizar muitas
Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba máscaras de papel machê, instrumentos Pastorinhas são um auto de Natal. Uma outras coisas a partir da organização
de sucata e saíram na rua em bloco encenação com muitos personagens que cultural da comunidade. A dedicação,
tocando e cantando. Antes da pandemia, vem para saudar o presépio. O auto foi alegria e generosidade que deposita nessa
um baile de carnaval foi realizado na retomado dois anos antes da pandemia, história são visíveis.
sede da associação cultural e parou quando a pandemia se instalou.

As Pastorinhas é só na época Desde pequeno eu sempre


do Natal, porque ela é uma gostei de cuidar das coisas que
saudação ao presépio. Então é os mais velhos pediam para
um Auto de Natal. Participa figuras da cuidar. Ajudar os mais velhos, ouvir eles.
noite de Natal e personagens culturais, Quando eles pediam para cuidar, pra não
da cultura, tem a sereia, sabe? São deixar a ciranda acabar, eu me dediquei
trinta e poucos personagens se for eu não consegui terminar os meus
fazer ela completa outros personagens estudos. Ou eu ia pra fora e acabava ou
fundamentais são o anjo formoso, o sol, eu não ia e a coisa não acabava. Eu sabia
a lua, a estrela, a sereia, o barqueiro, o até que ponto eu conseguia segurar
jardineiro, anjo mudo” aquilo e que ninguém ia fazer isso que
eu tava fazendo, por amor. Eu deixei de
Simone Ferreira de Bulhões, Tarituba, 2021 estudar e segurei com meu dinheiro até
as coisas melhorarem. Fiquei muitos
Contam que as pastorinhas existem há
anos segurando, limpando lá, não tinha
quase 100 anos em Tarituba. Dona Na- ta-
dinheiro para pagar alguém, cuidava das
lina, hoje com mais de 90 anos, relata que
telhas quando quebravam”
desde a década de 30 as crianças parti-
cipavam do auto, que era encenado nas Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba
casas. Esse festejo ficou um tempo sem
acontecer e depois voltou. No início so-
Edson dos Reis, filho de Madrinha Augusta mostra o estandarte mente mulheres e homens virgens podia
do bloco de carnaval Caprichosos Unidos de Tarituba, de 1944.

137
A transmissão das histórias e brincadei- Eu quero falar para as crianças, Maria Augusta dos Reis, minha Ela foi morar lá, era bem na
ras de Tarituba para as crianças é fun- tem muita história para contar e mãe. Ela nasceu no Taquari. O beira da praia. E lá ela montou
damental para dar continuidade à essas eles não sabem! Teve um time da- pai dela era o Sebastião Cruz. um camping, tinha uma vendinha,
tradições culturais. Mestre Pardinho qui que era inscrito na liga do Rio de Janei- A mãe dela era Emília. Ela contava uma a casa dela e a casa de farinha. Eu lembro
- uma alcunha que ele mesmo ainda não ro, o pessoal, tinha gente tão boa de bola história que ela foi enfermeira no Rio, deles fazendo farinha lá, ela e meu avô.
reconhece, mas que faz sentido quando que foram fazer teste pro Fluminense. E num hospital, quando era solteira. Ela
quando fazia brincadeira de carnaval tinha aprendeu enfermagem lá. Ela só assinava Marcia Antonia Bulhões Reis, 51 anos, Tarituba, 2022
se percebe o seu papel agregador den-
bloco, tinha mestre sala, tinha tudo isso o nome. Meu pai morava em São Gonçalo,
tro da comunidade - evoca essa questão Dona Natalina, nora de Madrinha
que o próprio grupo criava. O povo lá do Benedito Reis. Quando ela veio de lá do
na sua fala, com o entusiasmo habitual. Augusta fez os seus 3 partos com
sertão fazia fantasia de folha banana seca. Rio de Janeiro, foi que eles constituíram
É no dia-a-dia, e dando o exemplo, que ela. Ela transmitia muita segurança
Muita coisa legal e queria reforçar a impor- família aqui. A gente morava ali ao lado
as crianças se familiarizam com esse e acalmava os familiares que ficavam
tância dos festejos de Santa Cruz pra união da Vila São Vicente, chama Estrada do
universo e se encantam pelas tradições da comunidade. A Festa de Santa Cruz traz Caraguatá, aqui pra cima em Tarituba. Eu ansiosos e nervosos no momento da
culturais caiçaras. gente que nunca vem na igreja, a bandeira nasci aqui e meus filhos todos nasceram mulher ganhar o bebê. Quando tinha
traz todo mundo e une a comunidade. Res- aqui também. data mais ou menos marcada para o
gata pessoas adormecidas na comunidade nascimento, ela já ficava perto da mãe,
Só que, depois de um certo tempo, ela
que as vezes nunca vem na missa, e aflora se a casa fosse longe, já se deslocava
saiu daqui e morou lá em São Gonçalo.
a cultura da comunidade.” para lá com antecedência. E pelo menos
Foi para lá para um lugar que é da White
Aldo de Bulhões Lara, “Pardinho”, 63 anos, Tarituba, 2021 Martins, o nome daquele lugar ficou como uma semana depois do parto, Madrinha
Canto Feliz. Ela pariu sozinha os próprios Augusta ainda cuidava da mãe. Para

PRÁTICAS DE
filhos. Ela foi parteira dos filhos todos. crianças que não estavam encaixadas ela
Ela não chama ninguém, ela mesma fazia fazia massagem, sabia virar. Para evitar
os partos dela.
CUIDADO /
que o umbigo se enrolasse no pescoço da
criança, Madrinha Augusta recomendava
Edson Brasil do Reis, 82 anos, Tarituba, 2021
que as grávidas evitassem alguns

SAÚDE movimentos, como passar por cima de


cordas de prender os animais.
O que mais me encanta é que a
história dela, sinceramente, eu
não conheço uma mulher tão
forte. Uma mulher que colocava no mundo
e ser coveira, e ainda enterrar filho. Ela
era muitíssimo forte”

Maria Antonia Bulhões, 51 anos, Tarituba, 2021

Madrinha Augusta, ex Maria Augusta dos


Reis, era parteira conhecida em toda a
região norte de Paraty. Ela não nasceu nem
se criou em Tarituba, mas passou boa parte
de sua vida adulta nessa comunidade, onde
moram até hoje um de seus filhos, Edson,
suas netas e seus bisnetos. Por essa ra-
zão, a história dela aparece um pouco na Madrinha Augusta e sua neta durante cortejo com a
Bandeira do Divino em Tarituba. Foto do acervo familiar
Lápides de Mestre Chiquinho (1906-1992), um dos caracterização de São Gonçalo, mas foi nos
mais animados cirandeiros e foliões de Tarituba e de relatos de seus parentes de Tarituba que
sua companheira Maria Raymunda (1901-1996) 139
sua biografia teve mais detalhe.
Ela ficava pelo menos uma Ela fez o parto até do meu pai, Aldia lembra que sua bisavó Antonia Além das rezas, os benzedores também
semana na casa da paciente e de todo mundo aqui. Meu pai costurava osso quebrado, e cortava indicavam a cura por meio das ervas.
dela, tratando. Fazia o banho e a falava, que ela trazia ao mundo e tromba d'água. Seu pai Pardinho já Depois dos partos, por exemplo, as mães
comida diferenciada dos outros” ela enterrava. Era parteira e coveira” rezou quando ela teve espinhela caída tomavam garrafada e faziam banhos de
e melhorou. E até os mais jovens da assento com ervas. As crianças pequenas
Edson Brasil do Reis, 82 anos, Tarituba, 2021 Roberta Ferreira de Bulhões, 42 anos, Tarituba, 2021
comunidade sabem rezar. Antonia passou usavam breves com folhas ou sementes
Os benzimentos também são práticas de o conhecimento para Jodith, sua filha. dentro; era uma prática preventiva para
Ela ia a todas as festas das cuidado mencionados nos relatos. São diversos males. Os adultos tinham uma
comunidades. Até Paraty ela práticas de cura para diversos males, e Meu pai era Benedito Martiniano "boneca" que parece uma trouxinha de
apregoava leilão. Naquela época tinha um dos componentes da eficácia é a fé. de Bulhões, um homem muito peteca, com ervas, cinzas e sementes,
esse negócio de leilão. Alguns rezadores e benzedeiras foram religioso. Quando formava conforme o tipo de proteção que
lembrados: aqui uma tromba d'água que é uma precisava fazer.
Maria e Marcia, Tarituba, 2021
nuvem fazendo tração em cima do mar
Manel Saturnino, um dos mais antigos,
Em Tarituba, os entrevistados Benedito e enchendo as nuvens, aquele negócio
rezava para vento caído, espinhela preto, enchendo de água pro vento rodar,
Hilário de Bulhões, hoje com 80 anos, e
caída, cobreiro, benzia de tudo. O onde ela bate é um dilúvio, acaba com
Joaquim Meira de Bulhões, hoje com 73
irmão do Manel também era benzedor, tudo. Quando formava ali, na divisão
anos nasceram nas mãos de Madrinha
pra icterícia. Dona Petronília, Mãe de Paraty, o pessoal saía correndo
Augusta. Segundo eles, quase todo
Antonia e Cremelina também eram procurando ele. Onde ele tava, levava,
mundo na comunidade nasceu com ela.
benzedeiras. Além desses também ele ajoelhava na praia e rezava uma
O Posto de Saúde de Tarituba recebeu o
foram mencionados Benedito Martiniano, oração e dizia assim: "Ela varre água
nome dela, como homenagem.
Geraldina, Zulmira e Dalva. agora" e o povo de Tarituba é testemunha.
Benzia com a faca quando dava aqueles
relâmpagos, até pedia para as pessoas
se afastar. As pessoas tinham cobreiro
na perna de sapo, de qualquer coisa,
ia chamar ele pra rezar. Ele levava lá
na cachoeira, rezava, no outro dia tava
pronto, sarado. Muita gente se curava
de ‘zipra’, ‘zipela’, ‘vento virado’ essas
coisas todas que existem”

Benedito Hilário de Bulhões, 79 anos,


Tarituba, 2021

A família reunida, descendentes de Madrinha Augusta:


Edson, Maria Antonia, Natalina e Marcia Antonia

140 141
O meu avô era médico
homeopata. Ele não era
Olha, vinha gente até da Prainha. Uma
vez veio um senhor, o nome dele era seu ORGANIZAÇÃO A comunidade caiçara de Tarituba possui
um histórico de organização comunitária
formado, mas ele tratou de
COMUNITÁRIA
Joaquim Malvão. “Ô seu Bidico, eu vim bastante consolidado. Mesmo antes da
muita gente. Operou gente e tudo, sem aqui para o senhor ir lá”, não sei se era a criação e formalização das associações, os
ser formado. Ele me ensinou algumas esposa dele ou era a cunhada que estava relatos trazem a importância dos festejos
coisas. Quando ele morreu, eu cuidei
dele. Quando passado o mês o filho dele
muito mal. Ai papai foi, levou o livro e
chegou lá foi dando o remédio. Eu não sei
E BANDEIRAS católicos e as expressões artísticas tradi-
cionais como forma de união das famílias e
veio falar comigo: o teu avô deixou pra
você, que foi o único que se interessou.
se ele veio à noite, não sei se ele veio no
outro dia, eu era pequena. Mas a mulher DE LUTA fortalecimento comunitário.

O livro da homeopatia e deixou a faca ficou, graças a Deus, ficou boa” A Associação Cultural Recreativa e Folcló-
dele de pescar. Eu sempre fui um cuidador do rica de Tarituba (ACRFT) foi registrada em
Natalina Bulhões dos Reis,90 anos, Tarituba, 2021 meio ambiente. A gente tem que 1975, e Associação de Moradores de Taritu-
Aí eu comecei a criar minhas filhas com cuidar da onde a gente tira o pão.
homeopatia. ba (AMOT) foi criada em 1987.
Em alguns partos, quando tinha alguma E sempre fui de unir as pessoas, porque
Meu avô saía com fifó a noite, aquele complicação, Madrinha Augusta chamava Seu eu vivi isso, vivi antes e depois da Rio- O Grupo de Danças Folclóricas de Tarituba
fifó um bambu que a gente deixava o Bidico, homeopata, para auxiliar a mulher e Santos, eu conheci como funcionava antes que envolve a Ciranda de Tarituba e outras
gomo e botava querosene e uma estopa receitar alguma medicação necessária. Nes- da Rio-Santos. Era assim uma harmonia manifestações culturais caiçaras, também
e você andava com ele. Tinha uma ses casos, eles trabalhavam em conjunto para muito grande” é um coletivo criado pelos mais velhos e
história que a mulher tava muito mal pra manter a saúde na comunidade e nas comuni- hoje já conta com jovens ajudando na orga-
morrer e mandaram o rapaz vir buscar dades vizinhas também. Aldo de Bulhões Lara, “Pardinho”, Tarituba, 2021 nização.
a homeopatia pra ele fazer. E aí esse
rapaz chegou aqui tinha um baile e o Quando fala da capacidade de cura por meio
rapaz foi pro baile e de madrugada a hora de benzimentos e rezas, Pardinho acredita que
que acabou o baile, ficou com medo de é um conhecimento ameaçado:
acordar meu avô, foi na bica e encheu o
vidrinho. Chegou lá a mulher tava quase A sabedoria que Deus dá, se
morrendo. A fé das pessoas é tão grande hoje as pessoas não tem mais
que deram a água pra mulher e a mulher temor a Deus, não vão aprender
ficou curada!” mais nada"

Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba Aldo de Bulhões Lara, "Pardinho", 63 anos, Tarituba

Seu Bidico era muito procurado para atender


O meu pai era homeopata, mas pessoas com problemas respiratórios como
ele não estudou, ele estudava bronquite. E muitas vezes, as crises de bron-
no livro. Ele ganhou o livro quite ocorrem a noite e de madrugada, e ele
do sogro dele, o livro já estava muito era chamado pra acudir a hora que fosse.
velhinho. Depois o pai da minha cunhada
Contam que quando os casos de saúde eram
deu um livro novo para ele, e esse livro
mais graves, o Bidico chamava, pelo telégrafo,
tá lá com o neto dele, o Pardinho. Por
o médico de Paraty, Doutor Felipe. Teve uma
ali, ele sabia. E ele ia lendo, ia lendo, ali
vez que uma mulher chegou com um nódulo
dava homeopatia. Dava homeopatia assim
no seio e ele viu que era grave. Ele de lá de
colherezinhas de meia em meia hora;
Paraty foi ensinando como fazer o corte para
quando ia melhorando, você aumentava
retirar. Ele fez o procedimento que o médico
para uma hora. Ele explicava direitinho.
foi falando e a mulher ficou curada. Outra Equipe durante sobrevoo de drone para captação
de imagens do território de Tarituba.
coisa que ele sabia fazer era aplicar soro anti
ofídico para picada de cobra.
142
A comunidade católica de Tarituba também A minha avó Neusa, mãe da de artes, então dei continuidade a essa Em 2020, começaram em Tarituba as
tem uma organização específica e partici- minha mãe, era merendeira da parceria com a Ciranda, ensinando a obras do sistema de saneamento que até o
pa da organização das celebrações reli- escola e foi quem começou a sabedoria tradicional local na escola. final da caracterização ainda não estavam
giosas e ritos litúrgicos na igreja. Como dar oficina de ciranda e contar história Também fazíamos oficinas com tio Odil, concluidas.
já mencionado, Tarituba é a comunidade para os alunos. Depois dela, a minha Biduca, Didito, Dito, meu pai (Pardinho),
mãe também, e minha tia Sibelia. Já o Pedrinho, todos eles foram lá contar Segundo Roberta, presidente da Associa-
caiçara de Paraty que mais realiza festejos
nessa época começaram a chamar os os causos da ciranda. E as mães eram ção de Moradores, foi uma luta de mais 20
associados às datas católicas, mantendo
mais velhos para irem na escola contar chamadas também para dar oficinas anos pelo saneamento no local.
vivo um aspecto importante do modo de
as histórias mais antigas, ensinar a fazer na escola, de costura, de bordado, uma
vida caiçara tradicional. A comunidade de Tarituba continua se
rede, covo, brinquedos artesanais de forma de ensinar os seus saberes, a
organizando para garantir o bem viver da
As ações realizadas pela comunidade no madeira e de bambu. Até na escola da Vaninha, a Terezinha. Em Tarituba, esse
comunidade. É visível buscam conhecer e
âmbito da escola também refletem o grau Ilha Grande o pessoal foi lá. A Sibelia, trabalho sempre foi uma forma promover
a valorização da cultura local, e sempre elaborar todas as ferramentas que possi-
de organização e engajamento de comuni- a Nonô, a Neusa, todas elas foram pra
Ilha Grande, na Escola do Abraão. E lá voluntário" bilitem a governança autônoma do terri-
tários na melhoria das condições de traba-
elas foram como um trabalho mesmo, tório. Entre os problemas que gostaria de
lho e educação da comunidade. Aldia de Bulhões Lara, 36 anos, Tarituba, 2022
remunerado. Quando eu assumi as enfrentar é a organização do uso da praia,
Desde que a escola foi criada em Tarituba, atividades na escola de Tarituba foi disputada para diferentes finalidades.
há uma relação de proximidade importante quando eu tava grávida da Valentina, uns Essa questão passa pelo enfrentamento
Em 2017, Aldia desenvolveu atividades de
com as práticas tradicionais desenvolvidas 11 anos trás. Eu lia histórias, mostrava do individualismo, que também foi citado
horta na escola para estimular o ensino da
na comunidade. as músicas e os versos, dava atividade como um fator que atrapalha as soluções
agricultura, e gestão de resíduos orgâni-
dentro da comunidade.
cos. No final de 2019 começou o trabalho
de gestão de resíduos na escola. A partir
de 2020, e com a pandemia, as crianças
passaram a acompanhar o trabalho ligado
a composteira comunitária. Nesse período
foram compostadas cerca de 2 toneladas.
A horta da escola aproveitou boa parte
do composto gerado nesse processo, e as
crianças participaram fazendo os plan-
tios quando as aulas voltaram.Também foi
criado um acervo de livros na comunidade
e a Associação da Ciranda recebeu uma
doação de livros infantis para estruturar a
biblioteca. Além disso foi realizada a Felita
- Festa Literária de Tarituba. Em 2021,
uma demanda da comunidade era obter o
reconhecimento das ações como iniciati-
vas concretas de educação diferenciada,
da mesma forma como acontece em outras
escolas de comunidades tradicionais.

144 145
O QUE FOI comunidades do Norte de Paraty, também
aparece como referência, assim como cur-

MAPEADO sos d’água.

(DESCRITIVO DA Alguns dos topônimos colocados no mapa


de Tarituba situam-se em São Gonçalo e
CARTOGRAFIA SOCIAL) Iriri evidenciando uma noção ampliada de
território, que leva em conta os usos e as
Muitos espaços e edificações foram ma-
relações de vizinhança que as comunida-
peados na cartografia social de Tarituba.
des estabelecem entre si e com lugares
Os elementos levantados revelam seus
mais afastados do seu entorno imediato.
múltiplos usos. Moradia, trabalho, lazer,
educação, celebrações religiosas, cuida- Diversas ilhas mencionadas por várias
dos com a saúde e tudo mais que aconte- comunidades do Norte do Paraty também
ce nesses locais. aparecem no mapa de Tarituba e também
integram seu território marinho, mostran-
A cartografia realizada em Tarituba levan-
do que o mar é um espaço de uso comum.
tou os nomes de diversos lugares. Além da
praia principal que seria o local central de Além disso, Tarituba mapeou muitos es-
re- ferência, há outras pequenas praias, paços e edificações coletivos na área onde
Pardinho exibe mapa que desenhou de Tarituba
se- guindo pela costa no sentido norte, se concentram as moradias, como a igreja,
como por exemplo: Praia de Taritubinha o cemitério, a praça, a sede da Associa-
onde tinha o cartório antigamente, Praia ção Folclórica, o campo de futebol – onde
da Figueira, Praia das Pedras, Praia da ocorrem também as festas da comunidade
Tapera, Praia do Maracujá, Praia do Cos- – a praça, e equipamentos públicos como a
tão, Praia do saco Agudo, Prainha, Praia escola, o posto de saúde e o cais.
da Batanguera (hoje alguns chamam praia
Edificações privadas ou familiares relacio-
do Coqueiro, e os antigos tinham roça lá).
nadas com geração de renda e seguran-
Além disso, tanto na direção norte como
ça alimentar também apareceram, como
sul, foram nomeados as principais pon-
ranchos de pesca, quiosques, bares e
tas, sacos e pedras, muitos dos quais são
restaurantes, campings e pousadas, além
pesqueiros, tais como a Ponta da Tim-
do mercado. Do lado do sertão fica a in-
buíba, Ponta do Guaretá, Pedra da Mesa,
fraestrutura de captação e armazenagem
Saco Agudo, Costeira do Manuel Gomes
de água que abastece a comunidade e foi
(da família Gomes mencionada no capítulo
relatado em 2021 que estava havendo con-
da Ilha do Cedro). O caminho que os pes-
flitos de acesso a água provocado por um
cadores sempre usaram para acessar a
condomínio recém chagado no território e
Ponta da Timbuíba também foi mapeado.
que conta com algumas piscinas.
Outros caminhos como o Caminho para a
Prainha, o caminho das Águas Lindas, o A tabela abaixo reúne os elementos le-
Caminho de Cava e outros davam acesso a vantados no mapa falado, e evidenciam a Oficina de cartografia: identificando elementos do
áreas agrícolas da comunidade. No sertão, riqueza e os múltiplos usos e sentidos do território nas carta imagem de Tarituba

o Pico da Burra, mencionado por outras território.

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ELEMENTOS DO MAPA FALADO DE TARITUBA ELEMENTOS DO MAPA FALADO DE TARITUBA

Costeira Sentido Norte


MAPAS FALADOS
Espaços e edificações
Praia do Costão + 1 prainha (nome a confirmar)
Taritubinha (local tinha uma escola antigamente) tem um túnel por baixo da Cais Campo de futebol
terra que dá no Frade
Ponta do Guaretá Ponta do Saco Agudo Quiosques BR 101

Pedra da Mesa (antigo local de pescar com covo) Saco agudo e prainha Ranchos (atrás dos quiosques) Trevo
Pedra da Quirera (pesca) Cachoeirinha
Igreja Caminho da Bica D’água
Praia da Figueira Ponta (nome a confirmar)
Caminho do Cemitério Casas caiçaras
Prainha côncava (tem restinga,
Praia das Pedras
mangue e mata atlântica) Cemitério (ativo) Caminho da Prainha
Praia da Tapera Morro do Silvo
Praia da Batanguera (hoje alguns chamam praia Praça Caminho de Cava (iam para roça e mata)
Praia do Maracujá
do Coqueiro, os antigos tinham roça lá)
Caminho do João Ambrósio (para Caraguatá, estrada
Escola
Fogão (pesca) Morrinho passou)
Saco da Cabaceirinha (pesca) Praia de Mambucaba
Posto de Saúde Vila São Vicente
Ponta da Timbuíba
Ilhas presentes no Maritório: Caminho das Águas Lindas
Casa do Mestre Vadinho
(para cachoeira; tem bananal do tio do Pardinho)
Ilha do Cesto Ilha do Sandri
Lage dos Meros Ilha Samambaia Casas de veranistas (3) Pico da Burra
Ilha Comprida Ilha Algodão
Caminho Dodói (Família Meira; Luxor Hotel
Lage do Cação Lage do Fundo
Associação Folclórica de Tarituba comprou; vai até a Igreja e faz divisa com fazenda
7 Cabeças Ilha ou Rochedo São Pedro
White Martins)
Ilha do Caroço Ilha Araraquarinha
Ilha do Cedro Ilha Araraquara Rua Maria Raimunda Meira (área que não foi
Lage da Vitória Ilha Jurubaíba Caminho para Pousada vendida e deu origem a uma vila ocupada por casas
de parentes)
Lage Alagada Ilha Lage Branca
Lage Velha Ilha Araçaíba Pousada Tarituba Caminho de São Gonçalo
Parcel dos Meros Ilhote Grande
Lage Preta Ilhote dos Cabritos Camping Stela Mar Caminho dos pescadores até a Ponta do Timbuíba
Costeira Sentido Sul:
Ponta (nome a confirmar) Praia de São Gonçalo Casa da Luciana Vale do Taritubinha

Canto Feliz (canto direito da Casa do Silvio e família Morro da Ponta do Timbuíba
Costeira Manuel Gomes
Praia Grande de São Gonçalo)

Praia do Lolô Praia do Cão Morto Casas caiçaras ao longo da Av. Bulhões Rio dos Meira (vem das águas lindas)

Ponta do Lolô Prainha do Tatu (tem um castelo) Estacionamento Cachoeira João Ambrósio
Ponta do Arpoá Praia do Iriri Rio (era usado para lavar roupa e recebia
o nome da pessoa que o utilizava em cada Caminho do Céu.
Praia São Gonçalinho trecho)
148 149
MAPAS FALADOS
PRODUZIDOS PELAS COMUNIDADES

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152 153
PRAIA
GRANDE
Das comunidades caiçaras do Norte de
Paraty, Praia Grande é a que se localiza mais
perto da cidade. Além do núcleo de ocupação
formado no entorno da praia, outros núcleos
e localidades vizinhos fazem parte da Praia
Grande, como a Prainha, Água Boa, desde a
Várzea do Corumbê até a Toca do Pastel. Na
parte alta a Praia Grande também abrange
as ocupações do outro lado da BR, subindo o
morro, de onde se tem uma vista privilegiada
da Baía de Paraty e da
Ilha do Araújo.

154 155
A Prainha e a Praia
Grande é como se fosse
HISTÓRIA DA
uma coisa só, antes era como LOCALIDADE Os relatos falaram do tempo dos
alambiques, da relação com a Fazenda
Graúna, tempo em que o “sertão era tudo
pela Ilha do Araújo. Então tinham dois
caminhos: o caminho do Cambucaero
(Graúna-Praia Grande) e o Caminho
se fosse tudo Praia Grande” cana” e a produção agrícola, vinha em da Ponte de Pedra (Graúna – Ponta da
A Prainha lá quem morava era lombo de boi por um caminho de tropa Figueira). O caminho da Ponte de Pedra
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, minha tia, a tia Rosa, o Amelio, que cortava por dentro, da Praia Grande era maior, passava carro de boi com
Praia Grande, 2021 Alziro, Maria Cecília, Zalmir, até o sertão da Graúna. Por conta dessa quatro a seis animais na tração. Já o
Zinho. Esse pessoal eram os moradores relação direta, esse local também ficou caminho que vinha da Graúna direto para
que tinha lá dentro. Aconteceu que conhecido como Praia Grande da Graúna. Praia Grande era caminho de tropa. O
A Praia Grande é o território caiçara
mais populoso do município, só que, venderam tudo por lá. Teve três ou quatro transporte da produção era em burro
A maior parte da produção da Graúna era
assim como outras localidades do Norte famílias que foram desapropriadas. Hoje com cancangalha e jacá feito de taquara.
transportada para a Ponta da Figueira
de Paraty, grande parte dos moradores ainda tem o Zinho aqui em Praia Grande,
(ver mapa), local em que até hoje há um Esses caminhos entre as localidades
não são nativos do lugar. sofreu muito com a venda, mas perdeu o
porto de pedra muito antigo. E, quando o eram muitos usados antes da construção
que tinha” mar tinha ressaca, essa produção ia até da BR. O caminho de tropa que ligava a
Nessa comunidade há uma escola até
o quinto ano, e o posto de saúde que José Luís Cananéa Soares, 61 anos, a Praia Grande, porque a baía da Praia Praia Grande ao sertão da Graúna era
atendem todas as localidades vizinhas, Grande porque lá há uma baía protegida um percurso que durava cerca de 1 hora.
Praia Grande, 2021
demarcando a importância regional da
Praia Grande. Inclusive os eleitores da
Ilha do Araújo votam na Praia Grande. Na Praia Grande tinha o Lotero
mestre de Reis, morava lá
O território pesqueiro cotidiano da
encima do morro onde tem
comunidade se estende, pela costeira,
o bambuero; João Pequeno, a cava da
até a Praia do Jabaquara (sentido sul) e
casa dele ainda tá lá atrás da peixaria;
até o Canto do Morro (sentido norte), mas
hoje já não se costuma pescar muito em Juvêncio, pai do Zé Luís; Eduardo, era
direção à cidade porque a água foi afetada mestre de redagem e tinha várias canoas;
pela urbanização e a quantidade de peixe Madrinha Bilaia que era parteira de todo
diminuiu. Toda a baía da Ilha Grande mundo; o Alcides que era do Sono, daí
pode ser considerada território pesqueiro morou na Ilha do Algodão e depois veio
pois a atividade ocorre em locais mais pra Ilha do Araújo e acabou morando
afastados da costa. na Praia Grande; o Zé Joana mineiro
matador de boi que casou com Dona
Marina; o Alzirão, pai do Ruy, que era
mestre de rede e foi dono do armazém de
mercadoria, lá vendia o maço de cigarro
Urca e Continental, e alguns consideram
Alziro o “fundador” da Praia Grande,
embora ele não seja nascido na Praia
Grande. Ele tinha uma casa com cupiá,
assoalhada e construída fora do chão,
suspensa; e outros nomes de pessoas do
lugar que viveram em Praia Grande nos
últimos 100 anos."

José Luís Cananéa Soares, 61 anos, Ruy mostra foto da Praia Grande tirada antes da construção da BR

Praia Grande, 2021


156 157
É uma trilha de tropa Antigamente não tinha
que eles chamavam. Pra energia elétrica, não tinha
escoação da banana, estrada. Para se deslocar
produtos da roça, banana, milho, até Paraty era canoa a remo. O
feijão, farinha. Tudo vinha do pessoal vinha de Barra Grande,
sertão da Graúna. Ali tinha cana, Graúna, São Roque a cavalo, do
mandioca, côco também. Então toda lado do bar do Rui tinha uma arvore
concentração era lá. E a estrada saía gigantesca com uma figueira cheia
aqui, passava pelo Cambucaero até de argola pregada ali para deixar o
Indaiatíba que existe hoje” cavalo. E meu pai levava o pessoal
para fazer compra. Depois quando
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos, Praia grande, 2021 voltava, botava nos burro e levava
cada um a sua compra”
E foi mencionado também um caminho
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos, Praia grande, 2021
que sobe a Serra até Cunha.

O relato de Aroldo mencionou também


Porque essa estrada vai que no tempo em que as Fazendas ainda
assim, ó, de curva. Você estavam ativas na produção agrícola,
sobe aqui, mas ela vai vieram trabalhadores capixabas e muitos
assim. Lá de cima, do alto da Serra, trabalhavam como meeiros, dividindo com
ela vai virando para lá. Aqui, na os donos das terras a produção na Fazenda
Barra Grande, tem um caminho que o São Roque e Barra Grande. Seu Malaquias,
um dos moradores mais antigos de Praia
pessoal vai a pé até Cunha”
Grande, contou que veio com seu pai de
Ruy Dutra Nascimento, Praia Grande, 2021 Minas Gerais e trabalhou nesse sistema na
Fazenda Graúna a vida toda.
As Fazendas Barra Grande e Taquari Diferente das comunidades tradicionais
também foram mencionadas, porque caiçaras mais afastadas, onde até os
parte da produção de banana dessas anos 70 o acesso à terra era livre e
fazendas vinha em tropa de burro e era a principal atividade agrícola era a
armazenada na Praia Grande esperando roça de subsistência, nessa região
a embarcação vir buscar. próxima ao centro de Paraty, os
fazendeiros mantiveram empregados
As embarcações na época na agricultura até o ciclo do turismo
eram Grajaú, Ipiranga, se consolidar. Só então as fazendas
Nossa Senhora da Paz, deixaram de ter produção agrícola e As festas eram no Corumbê, a missa. Iam a
os núcleos urbanizados de ocupação pé, as moças solteiras, os mais velhos. A rua
Santo Antonio. Pegava ali e levava pra
começaram a surgir de forma mais era da largura de um metro. Contam que teve
Ilha Grande e Mangaratiba. Levava intensa a partir da abertura da estrada.
galinha, pato, porco, tudo amarrado um casamento na igrejinha do Corumbê, uma família
A Igreja do Corumbê é uma das mais
no convés. Era uma época boa, era da Ilha do Araújo saiu na canoa, pegaram tempestade e
antigas do município de Paraty, e as
muita fartura” famílias da Praia Grande frequentavam
morreram, hoje tem uma cruz na Ponta da Cruz, entre o
as celebrações nessa igreja, antes da Corumbê e a Praia do Rosa. "
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, Praia Grande, 2021
construção da igreja de São Cristóvão na
comunidade. José Luís Cananéa Soares, 61 anos, Praia Grande, 2021

158 159
Os moradores nativos da Praia Grande A Prainha hoje é de um dono
contaram que na década de 1950 Jamil só. Mas antes ali era uma
Klink, turco, chegou em Paraty e começou comunidade. Foi expulsa. De
a comprar terra em vários lugares. Nesse uma forma ou de outra saíram dali. Foi
movimento, grande parte do território caiçara o capitalismo mesmo. Seu Amélio, um
da Praia Grande foi comprado. E, Jamil e grande cirandeiro da cidade também,
Timur contrataram famílias caiçaras para quando ele perdeu as terras na Praia
cuidar das “suas propriedades”, para que não Grande, ele acabou vindo pra cidade,
fossem invadidas. como vários outros. Em Paraty toda
aconteceu isso, e até hoje acontece
Praia Grande foi propriedade se a gente não tomar cuidado. Hoje
do Jamil. Ele fez uma cerca de a gente tá mais antenado, mas os
arame farpado, botou búfalo e nosso antepassados não tinham esse
boi holandês, ameaçava os moradores conhecimento”
pra irem embora, até helicóptero passou
Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021
aí. Na Prainha foi o Cícero Foz, primo
da dona da Pousada do Sandi. Tem um
caminho que liga na praia do Engenho Eles vieram nos anos cinquenta
que hoje o pessoal chama da Praia da morar já na propriedade ali,
Pitanga, mas esse caminho tá fechado” para tomar conta. Tinha uma
casa grande também, que era uma
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, Praia Grande, 2021 casa antiga, e ele administrava. Lá em
cima, no alto do morro, onde tem um
A comunidade resistiu à insistência dos condomínio hoje, também tinha um
Klink em remover os caiçaras nativos. curral, que era um curral geral, que
Jamil ainda ficou com uma casa na Praia tirava leite. Tinha bastante. Nos anos
Grande, e mais tarde vendeu. setenta trouxeram os búfalos para cá”

O processo de desapropriação na Prainha Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021


é sentido até hoje pelos atuais morado-
res da Praia Grande. Onde antes havia
uma comunidade se tornou um terreno
de um só “dono” que tomou conta de toda
IMPACTO DA BR
a extensão da praia, tentou fechar os
“Quando iniciou a Rio-Santos,
acesso para privatizar a praia, mas não
que eles começaram a quebrar
conseguiu, e descaracterizou a paisagem
pedra, eles gritavam: Vai fogo!
caiçara que existia. A estratégia adota-
A gente corria tudo pra praia. A casa do
da foi conseguir fazer com que uma das
meu pai que era de sapê várias vezes
famílias vendesse sua terra, e começar
ficou cheio de pedra na casa. Depois que
uma pressão para que as outras fizessem
parava aí a gente subia pra casa. Depois
o mesmo. Diferente das outras praias
teve um acidente que teve uma enchente
localizadas entre o Taquari e o centro de
da Rio-Santos [deslizamento] e
Paraty, que são enseadas de mangue com
derrubou a casa. Minha mãe tinha cento
muita lama, a Prainha tem fundo de areia
e poucos animais de criação, pato, peru,
Prainha: onde antes havia uma comunidade caiçara e água cristalina, sendo, das praias próxi-
virou área particular de um único dono. ganso, ficou tudo soterrado. E aí nós
mas da cidade, uma das mais visitadas.

160 161
fomos morar em Paraty, a firma pagou PESCA Apesar das mudanças, a pesca segue TÉCNICAS PESQUEIRAS
90 dias pra gente morar em Paraty de AGRICULTURA E sendo uma atividade importante em
aluguel. Aí a firma fez uma casinha, Os relatos sobre pesca mencionaram
EXTRATIVISMO Praia Grande. Há uma peixaria perto
uma sala e dois quartos. A gente não diversas técnicas pesqueiras em Praia

PESCA
do cais da Praia Grande onde é vendida
gosta nem de ficar comentando porque a produção de pescadores de Praia Grande: pesca de puçá, covo, linha, cerco
a facilidade que chega [com a BR], tem Grande, Ilha do Araújo, Barra Grande e de tainha, pesca de camarão.E a pesca
uma outra coisa que chega junto, e não de fisga, que só foi possível enquanto
Tarituba. A peixaria pertence ao Sinésio,
só no nosso bairro, chega em tudo. A pesca sempre foi uma atividade muito havia os peixes grandes que passavam
filho do Alzirão, irmão do Ruy.
Antigamente você dormia com porta e importante para o sustento das famílias com frequência perto da costeira, coisa
janela aberta. Hoje não pode. Hoje se da Praia Grande e essa atividade era que não acontece mais.
você botar uma canoa na praia e deixar aprendida desde cedo. De maneira geral,
com uma rede ali, de repente vc vai os pescadores contam que começaram a
perder" aprender ofício ainda crianças, a partir
dos 7 anos, acompanhando os mais velhos
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, Praia Grande, 2021 na pescaria e aprendendo na prática.

A enseada de mangue do Saco Grande


Outro impacto foi a aberração era um local de pesca das famílias
da Rio-Santos. Como é que caiçaras da Praia Grande e localidades
foi mal feita! Assoreou. Teve próximas. Entretanto, atualmente,
um impacto muito grande. Essa reta Segundo meu pai,
a pesca nesse local não rende mais
que antecede a cidade de Paraty, a nos anos 40, 50 não
resultado.
várzea da Jabaquara... É aterro! Aquilo existia essa coisa do
ali é uma área de manguezal. Quando chamado atravessador. Todo
aterrava, a gente não tinha recurso mundo pescava. Sono, Ponta
No Saco Grande, muitos anos
para filmar, nos anos 70. Botava terra, Negra, Pouso da Cajaíba não
as máquinas vinham, não era máquina atrás, você chegava ali e tinha
tinha esse negócio de vendedor/
apropriada não, eram tratores desses 60 canoas pescando. Eu com 11
atravessador. Salgava e secava
que vinham para compactar. Dez metros anos eu saía no caminho que tinha e ia
o peixe, porque eles não tinham
lá as árvores começavam a cair, aperta levar café pro meu pai lá no ranchinho
como armazenar uma grande
aqui e a lama sobrava lá. Aí fizeram que tinha porto do pinto, no saco grande.
quantidade. Depois começou
esses aterros que acabaram com o Aí ele dividia com os pescadores que
a aparecer o atravessador. O
manguezal do Jabaquara, da Barra estavam do lado dele. Cada um dava a
primeiro que teve aqui na Praia
Grande. Aí vem a coisa da ganância das mistura que tinha, era biju, pão, fazia
Grande, foi o Carvalhinho, que
grandes empresas, Camargo Correia, parceria, dividia com o outro. Hoje é
Paranapanema” por meio do Sr. Juvêncio, pai do
totalmente diferente”
Zé Luiz, comprava a produção
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos, Praia Grande, 2021 José Luís Cananéa Soares, 61 anos, dos pescadores. Era importante
Praia Grande, 2021 pros pescadores conseguirem
vender sua produção. Foi um
O peixe era escalado - nome que se dá cara que montou uma peixaria
para uma técnica de conservação do chamada ‘Peixaria pra compra’”
pescado. Os pescadores salgavam e
secavam o peixe, depois vendiam em Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
Paraty sem que houvesse a figura do Praia Grande, 2021

atravessador.

162 163
Pescar com Fisga: a pessoa fica em
Zé Luís exibe rede do puçá que pertenceu ao seu pai Juvencio
cima da pedra, com um tridente feito de
forma artesanal e numa posição onde
é possível ver o peixe se aproximar e
fisga-lo.

As espécies de peixe mais comuns eram


Robalo, Pampo, Sernambiguara, Cavala e
Pescada.

A pesca nossa era artesanal


mesmo. Pesca com camarão
vivo. Não tinha rede ainda, meu pai não
era pescador de rede. Ele fazia em casa
o próprio material dele que era um
tridente. Ele comprava o material, um
cano galvanizado e vergalhão ou prego.
Pregos grandes, prego de cumieira. Ele
fundia em casa, fazia um fogão com uma
minúscula boca e botava o ferro ali, e
depois ia batendo na bigorna, dobrava
e fazia o tridente com farpa com tudo
como se fosse soldado. A Ilha do Araújo
tem vários pontos de pesca de fisga,
e todas as ilhas tem um ponto onde o
peixe passa mais próximo. Os dois tipos
de peixes que ele pegava com mais
frequência era o principal o robalo,
depois a pescada e assim outros tipos
de peixes, o pampo a sernambiguara.
Mas peixe de valor era só o robalo. Ele
ficava em cima de uma pedra que dá pra
ver, sempre preparado. Quando o peixe
ultrapassava o ângulo de visão, que via
ele, ele fisgava de cima da pedra, uns
dois a tres metros de profundidade”

Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,


Praia Grande, 2021

164 165
Meu pai ele vivia com a bunda da O puçá foi os primeiros tipos de
calça rasgada sentado na pedra pesca aqui em Paraty. Aquele
olhando o robalo passar, pra fio ali é fio 8. E aquele puçá ali é
fisgar. Dois pontos que ele ficava Ponta herança do meu pai. A vara foi eu que fiz”
da Baleia e Ponta do Araujo”
José Luís Cananéa Soares, 61 anos,
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, Praia Grande, 2021
Praia Grande, 2021
Amarrasse assim, amarrasse
aqui, uma é maior que a outra
Pesca com Puçá: O puçá é uma
que é pra ficar um cabo. Aí amarra e de-
armadilha de pesca muito utilizada pelos
pois gira ela. A rede é assim, ela é uma
pescadores mais antigos de Praia Grande
para captura de isca, pois se adequa meia lua. Aqui na boca ela é reta e aqui

ao tipo de ambiente marinho presente ela forma uma meia lua, com uma cordi-
nessa região, caracterizado por baías nha, fica esticada e seguro no dedo. Se-
rasas, água calma e fundo de lama. gura nessa parte, apoia na perna e rema
Existem dois tipos de puçá, um com uma com uma mão. Quando o camarão entra
rede em formato de coador de café preso lá, você sente na cordinha, é um cordão
a uma haste; e um puçá maior e mais fino. Você sente e daí solta, daí a boca da
elaborado, com uma vara amarrada em rede se fechae o camarão fica preso"
formato de triangulo, revestida por uma
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
rede, puxada pela canoa com remo a Praia grande, 2021
mão e usada em baixio até 1,5 metro de
profundidade. Esse tipo de puçá tem uma Quando o camarão entra na
corda que controla a abertura da rede. puçá, a corda que ta presa no
Zé Luís mostrou a técnica de uso do puçá dedo, voce sente no dedo, mesmo que
quando a equipe o acompanhou numa seja um camarão bem pequeno"
pescaria no Saco Grande.
José Luís Cananéa Soares, 61 anos,
Praia Grande, 2021

Pesca com puçá Aroldo prepara o lanço da tarrafa

166 167
Pesca de Linha e Anzol: Pesca com ova naquela casquinha ali, e a baratinha O cerco de tainha faz uns 300, Pesca de Tainha com
linha e anzol: realizada de dentro também na parte de trás, a baratinha sai 400 metros da costa. Eu vejo ela rede de interparo:
da canoa. A pesca usa isca viva de querendo nadar dentro d’agua, e o peixi- pular e aí eu cerco. Na pesca da O povo daqui da Praia, meu pai e
camarão, baratinha, caranguejinho. nho vê aquilo ali e pimba ” tainha, por ser um santuário isso aqui, outros tinham um outro sistema
que foi, hoje em dia não é mais acabou chamado interparo, era o tipo de
Captura de isca: Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
Praia Grande, 2021 também a pesca da tainha. Nossa mãe rede. Era incrível aquilo ali, eu ainda vi isso
do céu, eu nem sei como é que poderia. aí por várias vezes. Aí chegava lá, eles cerca-
Meu pai enrolava a folha de Uma rede áspera, grossa. Hoje em dia vam o cardume da tainha. Devido a rede ser
Rede de Espera:
bananeira num tronco de ba- é nylon, mono filamento, transparente, grossa a tainha não dava na malha. Então eles
naneira [pra tirar a medida engana o peixe. Aí o pessoal saía lá, tinham que pegar uma, quebrar, e com o san-
A rede de espera, de robalo,
roliça], botava um peixe dentro e colo- buzinavam com um berrante, num chifre gue elas afundam e param de saltar por cima
coloca num ponto de um dia
cava encima de uma pedra. Aí ia lá um de boi ou num litro quebrado pra avisar da rede. A tainha é um peixe inteligente como
pro outro. Tem que contar com
monte de caranguejo e barata na beira que eles visualizaram um cardume de o golfinho. O golfinho pode cercar ele redon-
a sorte, se passar o peixe pega, se não
da pedra, que dá muito. Aquilo era isca tainha, saia da ilha do Araújo ali. Tinha do, que eles saem, um por um, de dentro da
passar não pega”
viva dele, ele conseguia. Não é qualquer o João Dôdô e seu Antonino. Tem dois rede. Não malham de jeito nenhum. “Ah, mas
um que consegue botar um camarão vivo Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos, filhos dele ali. Aí saia duas canoas, tá na água suja ali” Não tem problema, ele
no anzol. Se der pra uma pessoa leiga, Praia Grande, 2021 com rede de um lado e rede do outro, e sabe se virar lá. E a tainha também. Então
vai matar o camarão. Ele tinha o ponto começa cercar assim, cerca em redondo” ficava um bambu amarrado, uma canoazinha
certinho que ele conhecia pra não ferir Pesca da Tainha: com uma rede
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos, pequena, um bambu amarrado aqui na frente,
mortalmente o camarão. O carangueji- grossa, estendida entre duas canoas e
Praia Grande, 2021 outro atrás preso e uma rede. A tainha salta,
nho é a mesma coisa, ele botava lá pra se movimentam para cercar a tainha em
bate na rede, e pumba, cai dentro da canoa. Aí
baixo, e quando puxava o caranguejo círculos.
era três por uma, se pegasse três, uma era do
tava vivo. Ele fisgava esse carangue- aparador e duas eram do dono da rede
jo pelo sistema reprodutor, onde cria a
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
Praia Grande, 2021

Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,


Praia grande, 2021

Pesca de tarrafa para captura de isca viva

168 169
Arrastão L: Técnica utilizada em Arrastão de Tróia: Pesca feita com
encostas e ilhas. Na parte de cima da uma rede para até 12 metros de
rede é coloca uma boia e na parte de profundidade, puxada por duas canoas.
baixo, chumbo para afundar. A malha do
arrastão 15 – 20 milímetros. Essa rede já tinha uma altura
maior. Pra pescar no baixo tam-
Tinha outro tipo de rede bém, mas ela tinha uma mé-
também, o arrastão L. dia de uns 8, 10 metros de altura. Quer
Essa rede, por exemplo se dizer, bota numa altura de 12 metros de
normalmente tinha 70 braças, que dá... profundidade. Quanto mais rápido che-
sete vez cinco, trinta e cinco, 105 metros gar lá [no fundo], melhor porque aí puxa
de comprimento. Esse arrastão L tinha o chumbeiro. Esse tipo de pescaria era
um sacador. Era uma rede reta, como duas canoas. Era um negócio fora de
uma rede de espera e no final tinha o série: chegava, puxa o chumbo todo pra
sacador, um funil. Então bota lá, corre, dentro da canoa, o peixe fica solto. Por
cerca a rede, joga a rede aqui. Duas exemplo chegava lá vinha 10 espécies de
pessoas, quatro pessoa numa canoa tamanhos diferentes. A pescada eles só
só faziam isso: soltar a rede e correr aproveitavam... calculando... que tinha
o cabo feito de embé, acabava com a que ter mais de 1kg”
mão da gente, porque o embé é um cipó
áspero horrível. Aí torcia. O meu pai A pesca de rede L e a pesca de
era técnico em fazer isso. Quando eles tróia são técnicas pesqueiras
colhiam [o embé], chamavam meu pai não predatórias porque o peixe
pra torcer, porque ele pegava um gancho fica vivo dentro da rede e os pescadores
de goiabeira, ele enfiava aquele gancho podem selecionar os peixes pelo tama-
em uma bananeira. Não tinha táboa, era nho e devolver ao mar, ainda vivos, os
numa bananeira, a ponta varava e ele peixes que são muito pequenos ou as
amarrava o embé lá no outro lado e ele espécies que não interessam"
ia girando aquele gancho. O gancho era
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
como uma manivela. E ele ia girando, Praia Grande, 2021
torcia uma parte, depois torcia outra,
torcia três partes e depois encostava
Pescaria de Covo:
uma na outra e ia torcendo pra fazer
aquele cabo. Aí essa rede, o arrastão O covo é um balaio feito
L, não precisava muita rapidez, porque de taquara, ele parece um
puxava, e ia puxando e ia batendo os bumerangue. Aí bota lá
cabos... bate daqui, bate dalí e o peixe ia dentro, então ele tem umas pon-
pra lá encostava e ia pro sacador. Então tas assim e tem um buraco aqui.
puxava e tirava” O peixe, o guaiá, santola, siri, até
lagosta entram e não conseguem
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
sair porque é todo espetado”
Praia Grande, 2021
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
Aroldo durante pesca com tarrafa
Praia Grande, 2021

170 171
Arrasto de camarão: As histórias memoráveis de pescarias
de grandes peixes permanecem vivas e
O arrastão de camarão veio com
são contadas para que as novas gerações
os espanhóis e portugueses
saibam da fartura e como eram grandes
no fim da década de 60. Para
os peixes capturados no passado. O mero
pesca de camarão a melhor época é lua
é um peixe que cresce muito, e quase não
de quarto. Porque a maré não sobe, não
se encontra mais em Paraty. Seu Zé Luís
tem vazão de maré, e não dá correnteza.
contou de um causo envolvendo um dos
Agora quando dá maré sudoeste, a maré
maiores Meros pescados na Praia Grande.
sobe demais, dá arrebentação, vendaval,
aí não sai pra pescar” Antigamente
Aqui tem um pescador, Lorival
usava a puçá, no Saco Grande,
José dos Santos, e tem uma
Jabaquara, Saquinho”
ilha aqui na frente, a Ilha das
Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos, Cabras. Toda vez que meu pai ia lá matar
Praia Grande, 2021 garoupa, meu pai escutava um mero, um
estouro baixo [reproduz o som]. Meu pai
Assobiar ou Catar Guaiá falava pro Lorival e o Lorival falava: ah,
o que será isso aí?
Eu sou neto de pescador, sou
sobrinho de pescador, mas Meu pai dizia: isso aí pra mim é um mero
não exerço a pesca, minhas muito grande que mora na toca das
ocupações são outras. Mas sou um Cabras. Quando foi um dia, eles foram
grande pescador de guaiá. Minha mãe pra lá matar robalo com rede de aperto,
ensinou muito bem a gente. Até hoje eu o fio era do miolo da casca da imbaúba
vou pra costeira pegar guaiá, é uma das [é que nem a rede de tróia, mas a malha
coisas que eu mais gosto. Mas quando é 70 milímetros entre nós, muito grande.
eu era criança tinha muito guaiá, hoje Chegaram lá, cercaram na ponta das
não tem mais como antigamente, hoje Cabras e prenderam lá em baixo. Duas
você luta pra encontrar” canoas: três pescador numa canoa que
Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021 soltava a rede e um pescador na canoa
que subia o cabo. Aí eles pegaram a
rede toda e prenderam, amarraram nas
Mariscar: canoas e levaram para uma pequena
praia que tem nas Cabras. Aí pegaram.
A Praia Grande era muito bonita No outro dia foram pesar, deu 220 kg.
e ali onde tinha a peixaria Uma coisa ignorante, era um mero. Isso
tinha muito marisco, sapinhoá, foi quando eu tinha uns 14 anos”
tarioba. Hoje ainda acha marisco ali,
mas devido às fossas e esgoto não se José Luís Cananéa Soares, 61 anos,
come mais” Praia Grande, 2021

Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021


Manejo do Puça requer prática e sensibilidade nas
mãos para fechar a rede na hora certa.

172 173
Pesca Predatória / ameaça: em uma limpeza do cais da Verolme foram jo- Embaúba, isso aí. Você conhece
Segundo relatos dos pescadores, a pesca garam aproximadamente 60 mil toneladas de né. E você via o processo que
tem deixado de garantir o sustento lixo (rejeito, ferro, crosta de pintura) no fundo
ele fazia, tinha a lua certa, ele
das famílias na Praia Grande. Além do mar contaminando a baía da Ilha Grande.
sabia a arvore certa pra tirar. Dava um
do pescado, os mexilhões, e todas as pique embaixo, só tira uma fita até lá,
espécies de marisco, guaiá, siri, também aí ia na outra e tirava uma fita. Depois

AGRICULTURA E
estão desaparecendo. As principais ela se recompõe. Daí batia, surrava ela,
ameaças apontadas pelos moradores depois botava de molho depois desfiava
foram a poluição no mar, e o arrasto do
camarão que está afetando a capacidade
EXTRATIVISMO tirava tudo. Ele fazia balaio, ele fazia
esteira com a taboa, que nós não temos
de reprodução dos peixes dentro da baía Junco né, Junco é mais pro lado da
A atividade agrícola era realizada por
da Ilha Grande. Bahia. Aí ele fazia, ele construía. meu
moradores da Praia Grande até os
anos 60, 70. A maior parte das famílias pai era um artesão, fazia de tudo um
A pesca ela tá mudando por
tinha roça de subsistência e outras pouco, assim como eu também”
que, porque ela tá fracassando.
trabalhavam também na produção Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
E se a pesca está fracassando,
e venda de banana e cana. Algumas Praia grande, 2021
a maior parte do povo procura outro
famílias produziam e vendiam farinha de
destino. A pesca somente hoje, não dá.
mandioca.
Nossa baía está muito poluída. Você vai
tirar uma rede e do meio pra cima ela tá Depois disso, começaram a abandonar
de lodo, grossa. O nosso governante tem a prática e hoje existem alguns quintais
que olhar mais um pouco pela pesca. Até com frutíferas e ervas, mas a agricultura
o nosso marisco que tinha muito, não tem não é mais realizada.
mais. A poluição vai encostando na pedra
Foram mencionados diversos petrechos
e mexilhão morre, ostra morre”
de pesca que utilizam fibras e cipós
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, extraídos da mata, e essa relação com
Praia Grande, 2021 o espaço da floresta para coleta desses
materiais era mais comum antigamente.
Algumas espécies de peixes não são mais en-
O covo feito de taquara, os cabos de rede
contradas. Aroldo citou algumas: bagre urutu,
feitos de embé torcido, varas de bambu
sardinha savelha, tubarão enxofre, tubarão
martelo (cambeba amarela), e atribui o sumi- usados no puçá são alguns exemplos de
ço ao impacto provocado pela construção da materiais da mata usados na pesca.
Rio-Santos, principalmente a destruição do Entrevistas sobre o passado da Praia
manguezal. A iluminação da costa e a chegada
Grande mencionaram a feitura de casas
dos grandes navios também são fatores que
de pau a pique com madeiras coletadas
contribuem.
na mata, além das canoas, embarcação
O antigo estaleiro Verolme, atual Brasfels foi ainda presente na Praia Grande.
instalado em Angra dos Reis em 1959, e teve
A fibra da embaúba sempre foi muito
seu auge em 1979, sendo por muitos anos o
maior estaleiro do Brasil. Esse estaleiro é res- utilizada para confeccionar a embira, uma
ponsabilizado frequentemente por depositar corda resistente que por muito tempo
lixo no mar. Há cerca de 15, 20 anos atrás, se- serviu para diversos fins: nas redes e
gundo relatos de pescadores da Praia Grande, armadilhas de pesca, na fixação do sapê
174 na cobertura das casas, na amarração 175
das esteiras de taboa.
TURISMO Nossa Senhora dos Navegantes é O Festival do camarão ocorre depois do
padroeira de Praia Grande, junto com São defeso do camarão, que se estende por 3
Cristóvão. meses, março, abril e maio. Quem iniciou o
O Turismo na Praia Grande é a principal
Festival do camarão foi Carmosina na Praia
fonte de renda atualmente. Como
A festa da padroeira da Praia Grande, depois passou a ocorrer na Ilha
se pode visualizar nos mapas, há
Grande é Nossa Senhora dos do Araújo. O evento colabora para levantar
alguns comércios como restaurantes,
Navegantes e o padroeiro recursos para os festejos de São Paulo e
pousadas, quiosques, padaria e peixaria,
principal é São Cristóvão. Antigamente, São Pedro, que ocorrem logo depois.
e também casas de aluguel. E há uma
não é da minha época, é da época da
particularidade na localidade que é o A Festa típica da Praia Grande
minha mãe, existia uma procissão pra
turismo de pesca. é o Festival do Camarão, que
Nossa Senhora dos Navegantes. Saía
é uma festa muito famosa. Foi
da Praia Grande, dava a volta na Ilha
da Praia Grande que surgiu para a Ilha
do Araújo e voltava pra Praia Grande
Praia Grande é uma das únicas do Araújo, alguns pensam que foi o
de novo. A Festa de São Cristóvão até
comunidades de Paraty que contrário, mas não. A festa surgiu com a
hoje é forte lá. E tem uma procissão de
faz o turismo de pesca. Tem Carmosina, ela não é mais viva na Praia
caminhoneiro ainda, se cultua ainda, é
várias pessoas que vem principalmente Grande, mas a família sim, é a família
uma novena”
do vale do Paraíba, e da baixada pra do Malaquias. Eles fundaram essa festa.
fazer essa pesca, que não é artesanal, é Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021 Depois teve a Festa da tainha que não foi
pesca esportiva. Tem também o turismo muito famosa, mas existiu”
da Prainha e tem o turismo da Ilha do
Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021
Araújo que são as casas de veranistas”

Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021

CELEBRAÇÕES E
MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS
Na história que foi contada da Praia
Grande, os festejos e celebrações tem um
papel importante. Foram mencionadas:

• Festa de Nossa Senhora dos


Navegantes
• Festa de São Cristóvão
• Festival do Camarão
• Festa de São Pedro e São Paulo
Servidão em Praia Grande • Folia de Reis Peixaria em Praia Grande

176 177
A festa de São Pedro e São Paulo começa A Folia de Reis circulava pelas casas da Meu avô Alcides era cirandeiro
tudo bem, se não iam pra outra. Sempre
com uma procissão marítima que traz praia grande no período entre o natal e e também fazia cantigas de
em silêncio, em harmonia muito grande.
a imagem de São Pedro de Paraty para o dia de Reis. A Folia era formada por folia de Reis. O que mais existia
Eu tocava o triângulo e gritava de triple,
Ilha do Araújo. A missa é realizada um grupo de quatro ou cinco pessoas, na época era folia de Reis nas roças. O
que é uma pessoa que tem que gritar
após a chegada da procissão e em acompanhada de instrumentos como povo ia, cantava na casa das pessoas,
um grito longo depois de cada verso
seguida acontece o leilão de prendas. viola, violão, cavaquinho, pandeiro, tinha aqueles comes e bebes, era uma
cantado. Zabumba eu tocava quando
Na festividade há ciranda, congada e triangulo, zabumba e caixa. O grupo tradição”
ia fazer uns pontos, as coisas que eles
forró. Uma semana antes da procissão é passava de casa em casa cantando
Emanuel Gama, 34 anos, Praia Grande, 2021 falavam de macumba, que pra mim,
realizada a novena e, o levantamento do versos. Os moradores preparavam
não tinha nada de macumba, eu tocava
mastro conta com a presença do padre de algumas comidas, como cuscus, café
zabumba ali. E tocava pandeiro na Folia
Paraty. e caldo de cana. Até os anos 80 a Folia Começava dia 25 de dezembro
do Divino. A Folia do Divino era de dia,
ainda tocou na Praia Grande. e ia até janeiro. Parece que é
Atualmente são realizados três dias de de casa em casa, sai tocando aquele
dia de São Sebastião. Aí tocava,
festa (sexta, sábado e domingo) e as A bandeira do Divino também tinha um tarolzinho, tipo um tambor, lá, aí depois
e não avisava pra ninguém, mas como
comidas são as mesmas do Festival do pessoal da Praia Grande que tocava. chega na casa... todo mundo sabe, todo
o povo já sabia, todo mundo ficava
Camarão (bobó e camarão frito). mundo já está esperando.”
preparado, por exemplo, com um biju,
O Carnaval da Praia Grande foi um cuscus, um café de caldo de cana, Aroldo Carlos de Oliveira, 69 anos,
mencionado por meio de um tempo em deixava pronto, tudo preparado lá, mas Praia Grande, 2021
que ocorria no espaço da praia, com era sempre surpresa. Aí ia pra sua casa,
samba e marchinha e que atraia as cantava na porta, se você abrisse a porta
pessoas da cidade. Só que, com o passar
do tempo deixou de ocorrer.

Panorâmica da Praia Grande,


com Ilha do Araújo ao fundo.

178 179
PRÁTICAS ORGANIZAÇÃO ASSOCIAÇÕES
DE CUIDADO COMUNITÁRIA COMUNITÁRIAS
O sonho que eu tenho é de um A Associação passou um tempo Entre as questões relatadas pelos
dia ver a nossa comunidade desativada, e no momento em que este comunitários da Praia Grande, encontra-
Durante as oficinas, encontros e entre-
mais unida” trabalho estava sendo desenvolvido, se o estacionamento e a necessidade de
vistas, os moradores da Praia Grande
um grupos de pessoas da Praia Grande diálogo com moradores da Ilha do Araújo
relataram que tinha parteira, benzedei-
José Luís Cananéa Soares, 61 anos, que também esse espaço.
ras e rezadores na comunidade. Dona estava dialogando para retomá-la. Uma
Praia Grande, 2021
Paula que era mãe da Mariinha, uma das questões que a comunidade estava

figura icônica dos festejos religiosos A Associação dos Moradores da Praia refletindo era sobre se a Associação

mais tradicionais de Paraty era uma Grande (AMORPG) se formou nos deveria ou não ter pessoas não nativas

grande benzedeira. Era um trabalho de anos 1990 e teve papel importante do lugar na diretoria tomando as

fé, e vinham até pessoas de fora pra fa- no processo de implantação de decisões e representando a comunidade

zer essas rezas. Dona Anésia mencionou algumas estruturas públicas dentro da caiçara tradicional.

a parteira Vicentina e Seu Zé Luís lem- comunidade da Praia Grande, como o


brou da Madrinha Bilaia. saneamento, implantado no tempo do
prefeito Zé Claudio.
Ela era parteira de todo mundo.
Era madrinha de parto, todo Associação dentro das
mundo quando encontrava ela comunidades é uma coisa
pedia a benção” complicada. Só quem é da
comunidade entende. É que nem briga
José Luís Cananéa Soares, 61 anos,
de parente”
Praia Grande, 2021
Emanuel Gama, 34 anos, Praia grande, 2021
Ainda hoje Zé Luís é benzedor para espi-
nhela enfraquecida. Esse problema costu-
ma dar mais em adultos: vomito, tontura.
A espinhela vira para dentro, e a pessoa
fica com receio de se alimentar.

O médico aplica medicamento,


mas não tem nada a ver com
medicamento. E só piora. Isso
aí é só medir, eu tenho o barbantinho em
casa. Já fiz muito isso aí. Ontem veio um
de Ponta Grossa, veio aí, bateu na minha
porta pra eu rezar”

José Luís Cananéa Soares, 61 anos,


Praia Grande, 2021 Estacionamento em Praia Grande

180 181
O QUE FOI Entre os principais topônimos,
destacam-se na costeira: a Ponta da
MAPAS FALADOS
MAPEADO Helena, Ponta do Morcego, Pedra do
Canguá, Ponta do Morcego, Canto do
(DESCRITIVO DA Morro, Praia Grande, Prainha, Saco
CARTOGRAFIA SOCIAL) Grande e o Morro da Praia Grande.
Foram mapeadas também estruturas
Os mapas produzidos pela comunidade coletivas, como o cais pesqueiro e de
da praia grande incluíram diversos turismo, o estacionamento, o ponto
lugares de referência do território, de ônibus; edificações de referência
terrestres e marinhos, além de como os ranchos de pesca, Bar do
edificações importantes e caminhos Ruy, peixaria, padaria, trailer, as
antigos. casas caiçaras, a Escola e a Igreja de
São Cristóvão. Como memória, foram
traçados os antigos caminhos, as
antigas áreas agrícolas, e o local onde
morava a parteira.

Emanuel e Zé Luís na elaboração do mapa falado

182 183
184 185
ALDEIA KANÃ
PATAXI ÜI
TANARA -
"Esse território representa vida, é um território
sagrado pro nosso povo, é um território que a gente
encontra paz, o carinho da natureza, a proteção. A

PATAXÓ
gente trata a nossa mãe terra como nossa mãe, aqui
é um território que tem vida, a gente tá aqui pra
proteger da melhor forma possível "

MINHA ALDEIA É A NATUREZA Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos, cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021

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LOCALIZAÇÃO
chamadas "pahai", em patxohã, e a área A narrativa sobre a história do povo Pataxó Os Pataxó que hoje habitam o Iriri vieram do sul
de reflorestamento com mudas nativas, potente, pois mostra a força e resistência da Bahia, da aldeia mãe Caramuru Paraguassu,
medicinais e coqueiros. Nessa área também e ao mesmo tempo evidencia a violência e onde vivem os pataxó Há-Há-Hãe, um dos
A aldeia Pataxó Há-ha-Hãe se chama, na são realizadas várias atividades com os descaso dos colonizadores e das autoridades grupos étnicos pataxó que moram no sudeste da
língua dos pataxó, Kanã Pataxi üi Tanara. grupos de vivências na aldeia. governamentais com os povos originários do Bahia. O povo pataxó sofre historicamente com
Está localizada no Iriri, norte do município de Todas as vezes que a equipe do Povos esteve Brasil. A madeira que dá nome à esse país, o o coronelismo em conflitos de terras que trazem
Paraty, há 28 quilômetros do centro. na Aldeia, foi recebida na oca sagrada, com pau-brasil, era abundante no território indígena na memória casos de extrema violência sofrida,
O território ocupado pelos indígenas envolve fogueira acesa, com uma roda de abertura Pataxó na época da invasão portuguesa. como o chamado “Fogo de 51” – uma sequencia
os dois lados da BR 101: incluindo a área e cânticos em um ambiente de acolhimento de acontecimentos desse triste episódio que
que dá acesso à cachoeira e a área que dá A história de contato dos Pataxó com os
e seriedade com o trabalho que estava resultou na repressão policial, morte e prisão de
acesso à praia. As moradias, a oca sagrada, colonizadores é uma das mais antigas no
desenvolvendo na cartografia. indígenas que estavam lutando para defender
chamada kijeme mirauê, e outras estruturas processo de exploração colonial. Os Pataxó,
seu território e culminou com o incêndio de uma
assim como os Tupinambá, povo com o qual os
HISTÓRIA DA
comunitárias estão situadas do lado do aldeia que expulsou de lá os pataxó. Segundo
sertão, no caminho para a cachoeira do pataxó têm um histórico de relação ancestral,
fontes historiográficas e relatos orais, os
Iriri. Também desse lado ficam as principais
ALDEIA PATAXÓ estão entre os primeiros povos a serem
contatados pelos portugueses no século XVI.
conflitos causaram migração de famílias pataxó

DO IRIRI
áreas de uso agrícola e extrativista, a trilha para o norte de Minas Gerais e para áreas não
educativa e a captação de água que abastece Conta a historiografia oficial que o Monte
férteis da Bahia.
a comunidade. Do outro lado da estrada Pascoal teria sido o primeiro marco em terra

os indígenas fazem a gestão da área que Para entender como se formou a aldeia Pataxó avistado por Pedro Álvares Cabral em sua

dá acesso à praia, e a utilizam também do Iriri é preciso conhecer a situação dos Pataxó viagem de exploração nas águas do Atlântico sul.

para coleta de plantas medicinais, além em seu território de origem: a Mata Atlântica
de manterem as lojinhas de artesanato, da Bahia. E para entender a situação dos pataxó
da Bahia, é preciso remontar a história de
contato dos Pataxó desde os primeiros anos da O nome ‘índio’ foi dado
colonização portuguesa. pelo colonizador quando
ele chegou. Porque eles
desviaram a rota deles chegando
ao Monte Pascoal, o marco do
descobrimento, onde foi realizada
a primeira missa em Santa Cruz de
Eles cortaram os troncos
Cabrália. Ele viu pessoas iguais ao
velhos, mas esqueceram
povo da Índia e falou ‘estou na Índia!’
das raízes, das sementes
e chamou nós de índio. E era tudo
que estavam pra germinar e pra
igual, na época ninguém falava quem
brotar. Essas raízes e sementes
era os seus povos”
germinaram, brotaram, cresceram
e criaram força" Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
Apohinã, 44 anos, Aldeia Pataxó do Iriri, 2021

Artesanato vendido no espaço da praia

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Eu fico olhando que desde O governador na época era
o massacre de 1951, que a pessoa do ACM. Ele deu
existiu um “fogo de 1951”, títulos de terras para muitos
que o governo do Estado da Bahia grileiros que depois se tornaram
tentou dizimar os índios Pataxó. Os fazendeiros a fim de dizimar aqueles
Pataxó vivem em uma parte do seu povos. Mas como a gente fala, o nosso
território, tirou aquele povo dali povo não morre, ele adormece. Eles
e jogou para a beirada da costa, cortaram os troncos velhos, mas
onde a terra era de areia branca, esqueceram das raízes, das sementes
pra tentar matar o povo de fome que estavam para germinar e para
porque não tinha como plantar brotar. Essas raízes e sementes
nada. Mas a gente sempre acredita germinaram, brotaram, cresceram e
na nossa ancestralidade e na nossa criaram força. Até que em 1982 vieram
espiritualidade, que guiaram a gente e resgataram todo o seu território.
para lugares mais ricos de comida, Foram muitas lideranças embora,
onde existia o mangue e a beirada da mortas nesse processo de retomada do
praia. Então, às vezes não prestava a território. Na aldeia Pataxó Hahahãe,
terra pra lavoura, mas tinha riqueza que é de onde a gente veio, pessoas
de alimento e foi onde muitos Pataxó foram castradas vivas, com crueldade
ganharam muitas habilidades e na mesmo, para intimidar o resto da
região do Caramuru não é diferente.” população indígena, mataram ele,
furaram, arrancaram unha, furaram o
Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021 olho, torturaram até a morte.

Eu lembro que na aldeia mãe, no


Durante os anos 70, em plena ditadura
Posto Indígena Caramuru, Catarina
militar, quando Antônio Carlos Magalhães
Paraguaçu, Município de Pau Brasil,
foi governador da Bahia, os conflitos de terra
antigamente tinha um correntão
entre fazendeiros e os Pataxó se acirraram, com
na beirada da estrada e tinha um
relatos de tortura e assassinato de indígenas
mata burro. Todo mundo que queria
para “dar o exemplo”. Esse histórico violento
ir, poderia ir, mas todo mundo
de expropriação gerou uma desagregação
comunicado. E foi passando, foi
comunitária pataxó que está presente até
passando, foi morrendo os caciques
hoje na região sul da Bahia. Com a morte dos
velhos, foi vindo a nova geração
anciãos, algumas aldeias acabaram ficando sem
e a nova geração não deu muita
orientação. Somando isso ao preconceito contra
importância para aquelas ideias
os pataxós nos centros urbanos e às condições
dos anciãos, que aquilo tinha que
de vida difíceis em Caramuru – pois a aldeia fica
ser protegido de acordo como a
há cerca de 230 quilômetros de Porto Seguro,
comunidade queria, que a aldeia
e a água, mesmo de poço artesiano, é salobra –
tem que ter ordem, não pode virar
algumas famílias resolvem sair.
bagunça. Aqueles anciãos não tinham
o conhecimento do que hoje está
acontecendo, mas eles previam isso”
Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
190 vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021 191
Foi então que os núcleos familiares
pataxó saíram da Bahia e vieram para o
Dentro dos nossos rituais sa-
grados vieram os encantados, e
PARENTESCO E Muriã, anciã da aldeia, é tupinambá e
mãe do cacique Hãgüi, da Nawã e da
sudeste. Passaram 10 anos em Angra dos
Reis até chegarem em Paraty, em 2016.
falaram que a gente tinha que vir pro-
teger esse território, senão eles iriam
ORGANIZAÇÃO Atekay. Na aldeia existem 4 gerações
convivendo: Muriã é bisavó, Nawã já é
O território em que vivem atualmente
foi indicado pelos encantados, uma
destruir toda a mãe terra com a criação COMUNITÁRIA avó e sua filha já é mãe. Nem todos os
núcleos familiares tiveram condições
de grandes empreendimentos. Então a
vez que, o povo pataxó sempre segue Atualmente vivem 15 famílias na aldeia de construir uma casa até o momento,
gente está com essa missão de estar
as orientações da ancestralidade e da Pataxó do Iriri, um total de 52 pessoas, então a tendência é que com o tempo
aqui protegendo não só para nós indí-
espiritualidade. todos parentes e com um senso de surjam novas casas na aldeia.
genas, mas para toda a nação do nosso comunidade baseado na ideia de
país, onde a gente luta pra proteger a igualdade e partilha.
Minha Mãe, Muriã, é tupinambá
biodiversidade, onde tem as plantas,
e meu pai é Pataxó, a gente
onde tem os animais, onde a gente bus-
veio pra essa terra (Paraty) em busca
ca todo recurso pra se manter na parte
de coisas melhores através dos nossos
da alimentação, e também as medicinas
antepassados, sempre buscando Aqui é tudo parente: pai, mãe,
da floresta”
em nossos rituais pedindo que eles irmão, cunhado, cunhada. É
nos orientassem. E assim eles nos "Pau-de-chuva é usado nos trabalhos de tudo uma família só, da mesma família,
orientaram, pra gente ir em busca de meditação, dentro dos nossos rituais, e da mesma aldeia, todo mundo junto, não
durante os cânticos têm as medicinas da tem ninguém diferente, todo mundo é
uma terra que era pra gente cuidar,
floresta, que a gente usa pra fazer desde
então a gente veio em busca dessa terra. igual. A mesma coisa que a gente comeu
chás, a banho de ervas medicinais, medi-
Nós ficamos um tempo na cidade [Angra hoje a gente come amanhã, e é para
cinas que a gente trabalha pra cicatrizar
dos Reis], porque os nossos encantados todo mundo, divide as coisas para todo
feridas, coceiras, banhos, defumação,
não mostram a localidade, eles mostram ayahuasca, rapé, sananga, a gente luta mundo, o que chega vai para a cozinha e
sempre em visões as regiões, então a pra proteger toda essa biodiversidade todo mundo come.”
gente por 10 anos ficou em busca até das plantas e que ainda existe"
Nawã, Aldeia Pataxó do Iriri, 2022
a gente encontrar essa área, uma área
que já foi ocupada pelos tupinambás há Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
muito tempo. Então a gente recebeu esse
chamado para vir pra essa área onde O local onde está situada a aldeia
seria feito um resort e a tendência era dos Pataxó no Iriri consta como área
acabar com toda essa natureza que nós da Fazenda São Gonçalo, o mesmo grupo
temos hoje na Aldeia" empresarial que comprou da White Mar-
tins as terras. Como a Fazenda está nesse
Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos,
momento buscando encerrar a Ação Discri-
cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
minatória movida pela PGE em curso desde
2003, representantes da Fazenda oferece-
ram ao Estado desmembrar a área onde
está situada a aldeia, na porção do sertão,
e doar para usufruto indígena. Os trâmi-
tes desse acordo têm sido acompanhados
pela FUNAI e pelo ITERJ e até 2022, quando
esse trabalho foi concluído, ainda não havia
192 um desfecho nesse processo. 193
Tem muitas famílias que ainda bom cacique. É ensinado a orientar e a A gente tá sempre indo lá, o
não tem condições de construir. delegar funções. Um bom cacique faz nosso pajé ainda é da Bahia,
A minha casa mesmo está parada, estou com que todos entendam que o que é na Aldeia do Iriri não tem nenhum pajé
na casa da minha filha e minha filha está bom para um, é bom para todos” ainda, então a gente tá sempre indo pra
na casa do meu pai, e aí vai se ajudando. lá fazer nossos trabalhos espirituais,
Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos,
Quando minha casa estiver pronta vai cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021 a gente vai lá buscar força, sabedoria,
morar eu, Nawã, Itohã meu filho, Xohã, a gente nunca esquece da nossa mãe.
Puhui, Tamikuã, Naô e Ju. Sete pessoas” Estamos sempre em conexão, a gente
A aldeia pataxó do Iriri não possui um
vai em grupo pra lá, queremos trazer um
Nawã, Aldeia Pataxó do Iriri, 2021 pajé. Quem conduz os rituais na aldeia
grupo de lá pra visitar a nossa Aldeia,
são Apohinã e Nawã. Por isso, manter
sempre vem um ou dois, a gente quer
as conexões com o pajé da aldeia mãe
Toda aldeia pataxó tem um cacique e trazer um grupo grande de parentes”
na Bahia é fundamental. Os Pataxó
um vice cacique, lideranças políticas
de Paraty buscam fazer intercâmbios Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos,
que desempenham o papel de mediação
regularmente com os parentes que cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
com o mundo não indígena e atuam para
permaneceram na aldeia na Bahia.
atender as necessidades da aldeia. O pajé
Durante essas visitas, aproveitam para
tem sabedoria e cuida da saúde da aldeia,
trazer artesanatos e matérias primas
no aspecto físico, espiritual, psicológico.
para o artesanato e manter fortalecido
Tanto o cacique como o pajé nascem com
o laço político, o laço espiritual e e a
um dom, e desde criança os mais velhos
identidade cultural Pataxó.
conseguem identificar quem possui o
perfil para essas funções.
No Segundo Encontro de Mulheres
conseguiram trazer um ônibus com
Numa aldeia o pajé é a parentes da adeia Caramuru Catarina
sabedoria, e o cacique paraguassu.
administra as demandas da Aldeia.
O pajé nasce pajé, pode ser até uma Os pataxó integram ativamente os
criança que acabou de nascer, ela não movimentos nacionais indígenas,
se torna pajé. Aquele que nasce com participam do Acampamento Terra
esse dom, nós ajudamos quando ele é Livre em Brasília e outras ocupações
criança, jovem, para que ele consiga de reivindicação de direitos aos povos
administrar seus dons. Então quando originários.
a gente percebe a sabedoria naquela
criança a gente encaminha ela até o pajé
pra ele passar os ensinamentos.
Para se tornar cacique também vem
desde de pequeno se mostrando
diferente, com o poder de liderar. E é
ensinado a liderar com respeito para
que todos da aldeia vejam como é um

194 195
Defumação na Oca Sagrada

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LÍNGUA, A questão da língua, é passada
no dia a dia, no tempo que você
Eles que são meus pais, meus
avós, cheguei até a conhecer

CULTURA E tem de convívio com aquela


criança. Se for na parte de medicina,
meus bisavós que é uma coisa
muito boa, por todo o conhecimento que eles
EDUCAÇÃO é quando a gente vai pro mato buscar conseguiram passar para o nosso povo, os
as ervas e as crianças chegam pra cânticos, as rezas, a orientação sobre a nossa
perguntar pra quê vai servir aquela mãe terra, fazendo com que isso não se perca,
“A gente tá sempre em busca
medicina, e é onde a gente fala pra todos para que o nosso povo tenha o verdadeiro
de melhorias dentro da nossa
para que elas servem, a gente explica conhecimento da natureza”
cultura, que é uma cultura viva
para o que cada uma delas serve, se for
e verdadeira do nosso país e a gente tá
pra curar uma ferida, para melhorar a Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
sempre lutando para manter as nossas vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
imunidade ou pra fazer banho pra tirar
origens, a nossa maior fonte de riqueza
as energias ruins a gente vai falar e
que é a nossa cultura, hoje o indígena
explicando tudo. A gente busca no dia a
que perde sua cultura, ele perde tudo”
dia aperfeiçoar os conhecimentos para
Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos, passar para os mais novos, para não
vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
perder o que resta da nossa cultura. Há
A comunidade pataxó do Iriri tem muita muito tempo atrás tinham muitas etnias
preocupação com a continuidade de suas e hoje já se foi pra mais da metade,
tradições culturais. Justamente pelo junto com os que restaram nós estamos
histórico de violência e expropriação, lutando para conseguir seguir em frente
transmitir conhecimentos e práticas e fortalecer essa cultura”
ancestrais para as crianças é um ato de
resistência da identidade étnica desse povo. Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos,
O Patxohã (“língua do guerreiro pataxó”) cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
que faz parte do tronco linguístico macro-jê,
família maxakalí, está entre as referências
A transmissão oral de saberes sobre
culturais do povo pataxó. A língua não
o passado do povo pataxó e sobre
é mais falada, mas existe em algumas
plantas, artesanatos, língua patxohãn e
aldeias da Bahia um trabalho de pesquisa e
espiritualidade são o cerne da educação
revitalização da língua que envolve não só
pataxó. Esses conhecimentos e práticas
palavras (o léxico) mas também cantos.
são repassados pelos pais, avós e
bisavós, no dia a dia e em ocasiões
especiais.

198 199
RITUAIS E A Oca sagrada é o local onde esses
rituais ocorrem. É uma casa redonda,
As celebrações que os pataxó realizam,
ou participam, são:
Já foram realizados 4 Encontros de
Mulheres na aldeia pataxó do iriri.

MEDICINAS coberta de piaçava, com meia parede


que areja e ilumina, pé direito de cerca
• Dia do Índio (19/04)
O objetivo do encontro é valorizar o
papel das mulheres que trazem todos

SAGRADAS
7 metros de altura sem esteio central, o • Festa de Comemoração da aldeia os ensinamentos, desde o nascimento
que confere uma área interna ampla. A (16/05) do bebê, até o casamento. Toda a
fogueira é acesa no centro da oca. preparação são as mulheres que fazem
• Ritual Awê Heruê (inclui cantos,
O cuidado e a devoção à mãe terra e à (Apohinã). Participam as mulheres da
rezos, banhos, medicinas, jogos e
natureza - em todas as suas expressões Todos os rituais, todos os aldeia e convidadas de fora e alguns
comidas típicas como kauim, mukusi
- são esteios da cosmovisão pataxó. trabalhos que são feitos dentro homens também vem, pois há momentos
na patioba (peixe na folha do pati)
Os naô são espíritos ou encantados da Aldeia, é realizado primeiro em que os homens integram o coletivo.
(sem data fixa)
ligados ao mundo da natureza e eles dão uma oração. São cantos de união, de
No evento ocorrem rodas de conversa só
orientação e força aos humanos pataxó. alegria e de agradecimento a Deus e a Mãe • Encontro de pajés
entre mulheres e troca de mudas.
Os ritos que os pataxó realizam na aldeia natureza, sempre pedindo licença, para que (em aldeias pelo Brasil)
tudo dê certo, para que não tenha nenhum
são performáticos, incluem cantos, • Celebrações diárias: ao amanhecer
empecilho, pois todos os nossos recursos
maracás, chocalhos nos tornozelos, ou anoitecer, consigo mesmo, invoca
para fazer os trabalhos são retirados da
dança circular ao redor da fogueira, os naô (espíritos da natureza, os
natureza. Nossa intenção é unir e reunir
os homens e mulheres indígenas encantados, dão força e orientação)
pessoas para somar junto a causa de todos
usam indumentárias, grandes cocares,
que é a luta contra o desmatamento, a luta • Encontro de Mulheres (sem data fixa)
braceletes, uma saia de imbiruçu e pela proteção do planeta, nossa mãe terra,
pintura corporal. A defumação no • Conexão Ancestral (vivência ritual
nossa natureza”
ambiente junto com essa performance realizada em dezembro, evento
cria uma atmosfera ritual potente. Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos, aberto aos visitantes)
cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021

Awêry Tupã, a nossa força


vem da mata e juntos somo
um. A força de nosso maracá.
Porque onde a gente estiver e balançar
o nosso maracá e acender o nosso
timbero, a gente sente a força da nossa
ancestralidade e o nosso pessoal nunca
vai nos abandonar”

Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,


vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021

200 201
Os cantos de proteção individual ou Se eu não acreditar e confiar na Dentro desse conhecimento Dentro do nossos trabalhos
coletivo são em língua patxohã. Tem cantos medicina da floresta, ela não ancestral das medicinas, cada tem também o grafismo, que é
de boas-vindas dos parentes para limpar a vai ter poder sobre mim, a cura não é povo fortalece o outro, assim como é uma forma de mostrar nossa identidade,
energia de quem tá chegando. uma promessa, a promessa por meio das o ser humano que estuda para ler e fazemos durante os rituais também,
Na praia, fazem também os jogos medicinas é mostrar o caminho da cura, e escrever, às vezes aprendem outros usamos o Jenipapo para tingir, urucum
tradicionais, que envolvem moikã o caminho da cura depende de cada um” idiomas, assim, dentro do nosso que é vermelho, para nós indígenas o
xohã, jogos de guerreiros: corrida de território é o nosso povo, além do vermelho é o símbolo do nosso povo,
Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
seu conhecimento ele busca outros representa o sangue que corre o tempo
maracá, arco-e-flecha, cabo de guerra, vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
conhecimentos, em outras medicinas, e todo dentro de nós. Nós temos Jenipapo
corrida de tora, natação, luta corporal
com outros pajés. plantado”
“partiumiukay”. Nem todas as medicinas utilizadas são
tradicionais do povo pataxó, caso do Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos, Apohinã, 44 anos, Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
Dentro dos nosso rituais ayahuasca que aprenderam com parentes vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
somos guiados pela nossa huni kuin. Há uma relação de troca de
ancestralidade e nossa espiritualidade conhecimentos com outros povos e que A pintura corporal também foi
onde praticamos até os dias de hoje, fazem parte da reconstrução do ser mencionada como uma prática
e vamos continuar para as futuras indígena e identidade pataxó. Os pataxó tradicional pataxó. Usam o jenipapo, o
gerações" do Iriri possuem uma agenda intensa de urucum e argila. O preto do jenipapo
recepção de grupos de vivências ligadas representa a ancestralidade; o vermelho
Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021 às práticas de cura com medicinas do urucum, é o sangue do povo; o
ancestrais, desenvolvendo um trabalho amarelo é a riqueza do nosso povo.
Para que as medicinas consagradas sério e que tem importância também na
nos rituais tenham eficácia, é preciso renda comunitária.
acreditar nelas. Os rezos entoados
durante a consagração das medicinas
são puxados pelos rezadores (apohinã e
Nawã) e o coletivo acompanha.

202 203
ATIVIDADES Aqui a gente tem o Tento que é essa
árvore vermelha, que muitos chamam
e falam da forma como se relacionam
com a natureza, a cachoeira do Iriri,
PRODUTIVAS de Pau-Brasil, tem Salsa da Praia, nós
temos Tinguí, Maui, Pacari, Juerana e
além da alimentação servida na cozinha

E GERAÇÃO Mata Passo, olho de pombo, sabão de


comunitária e uma lojinha de artesanato
onde são vendidos os artesanatos
DE RENDA macaco e açaí. tradicionais dos pataxó, feitos
principalmente madeira, sementes,
As madeiras que a gente usa pra fazer
AGRICULTURA o artesanato, a gente usa a nossa, aqui cipós e penas. Há uma casa de apoio
tem várias como o jequitibá, jueraninha, para hospedagem e banheiros coletivos
A comunidade realiza plantios nas áreas do
às vezes tem umbu, o vinhático que vem usados pelos visitantes.
entorno das casas, com a presença de plantas da Aldeia mãe. Pau-de-chuva feito com
medicinais, mandioca, banana e outras frutífe- imbaúba e semente de pariri, colares,
ras, árvores para uso das sementes e madei- pulseiras e brincos de sementes, Antigamente as aldeias não
ras. Também se interessam pelo manejo da brincos de pena, maraca, cesta e lanças eram abertas para o público, e
jussara e já fizeram coleta de cachos. feitas de Pau Brasil Brejaúba e ou Pati.” hoje nós abrimos para as pessoas que
querem ter o conhecimento sobre o
No espaço da praia possuem uma área Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos, nosso povo, que querem entender nosso
de reflorestamento com mudas nativas, vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021 modo de vida, a gente dá oportunidade
como ipê. Plantam também coqueiros e das pessoas virem dentro da Aldeia,
possuem uma horta com plantas medici- conhecer um pouco da nossa cultura,
nais. Costumam fazer uma atividade de Na lojinha de artesanato, chamada Pahai, para tirar a visão que o não-indígena
troca e doação de mudas para os partici- os pataxó vendem artesanatos feitos por tem sobre nós.
pantes das vivências. outros povos, como é o caso da cestaria
A gente trabalha com o turismo, com as
guarani. A ideia é enriquecer o espaço do
escolas, fazendo atividades e rituais com
artesanato com peças de outros grupos.
ARTESANATO consagração de medicinas artesanais.
Para receber o turismo, tem um horário,
O artesanato pataxó é uma importante
que é de 8h da manhã às 5 da tarde, a
fonte de renda da comunidade e passa TURISMO (EDUCATIVO, gente faz o papel de conscientização
pela atividade agrícola na medida que
muitas das matérias primas tradicionais, VIVÊNCIAS COM sobre a preservação e também sobre o
Artesanato pataxó vendido nas lojinhas na praia do Iriri que a gente investe, que são a parte do
como madeiras e sementes, não são en- MEDICINAS E LAZER) artesanato, e parte também de vivências
contradas na Mata Atlântica paratiense. que muitos vem fazer aqui dentro da
Para superar essa carência, os pataxó O Turismo é uma atividade essencial para
Aldeia. Então aqui esse espaço que a
estão plantando algumas espécies na- a comunidade Pataxó do Iriri. O público
gente chama de “Pahai”, que é uma casa
tivas da região de origem para garantir varia: são visitantes a lazer e grupos pre- de comércio onde a gente expõe todos
futuramente o acesso a esses materiais. agendados para realização de vivências os nossos artesanatos, que é o meio
educativas (estudantes universitários e de sobrevivência do nosso povo, e as
Quando a gente chegou aqui, escolas) ou vivências espirituais. pessoas que vem fazer vivência também
muitas dessas sementes não No roteiro da aldeia, os visitantes contribui com a renda, a gente dispõe
existiam, então todas as sementes que conhecem a oca sagrada e lá participam nosso tempo em prol deles”
tá aqui hoje, que foi feito o artesanato, a de uma roda de conversa sobre a história
gente tem muitas plantas dessas semen- Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
pataxó e suas tradições culturais, na vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
tes já plantadas, algumas já estão florin-
beira do fogo. Fazem a trilha pela mata,
do, outras já deram fruto, e já tem algu-
onde os indígenas identificam plantas
mas plantadas quase no ponto de colher.

204 205
Cachoeira do Iriri, local sagrado para os Pataxó

206 207
Cuidar do território e zelar pela
tranquilidade da comunidade é um
AMEAÇAS
compromisso dos Pataxó na relação E hoje a gente está presente
com os visitantes. Como a aldeia foi aqui, lutando para que
retomada no entorno do acesso a um esse território seja logo
atrativo turístico conhecido da cidade regularizado, porque não era pra nós
de paraty, a cachoeira do iriri, hoje os indígenas estarmos brigando por um
Pataxó têm regras de visitação, com pedaço de terra para sobreviver."
horários definidos e proibição de bebidas
Apohinã, 44 anos, Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
alcoolicas na cachoeira.

A principal ameaça sentida pelos Pataxó


do Iriri é a questão fundiária que ainda não
Dentro da Aldeia tem algumas está resolvida e a luta pela área da praia
restrições, do lado de lá onde que ainda está em negociação.
fica a praia do Iriri, os turistas
podem levar bebidas, fazer churrasco
na praia, mas desde que não deixe o A gente sabe que quando se fala
seu lixo, já do lado da cachoeira não de área indígena sempre tem
pode nem entrar com bebida e nem um empecilho, desde sempre
fazer churrasco, então nessa questão uma luta muito grande pela demarcação,
da conscientização e preservação a gente está junto ao estado e ao
da floresta, muitos acham ruim, não ministério público, em negociação com
gostam das restrições e alguns chegam o “dono” das terras, que não possui
a querer discutir. Então essas pessoas, nenhum documento que comprove que
com esse tipo de atitude aqui na Aldeia ele é de fato dono, estamos negociando
já não são bem vindos, só é permitido a doação das terras onde está localizada
a entrada de quem vem com o coração a Aldeia, para o povo Pataxó, para que
pra curtir a floresta e também zelar por não haja mais conflitos."
esse povo que está aqui” Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos,
cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
Ivanildo Almeida Brás, Apohinã, 44 anos,
vice cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021

Com a fogueira acesa no centro da Oca Sagrada, a equipe do


Povos desenvolve atividade da cartografia na comunidade.

208 209
Outro fator de ameaça é o preconceito que Ninguém sabe entender. Às vezes eu Uma dor é saber que os
os pataxó enfrentam. Muitas pessoas não falo com meus filhos em patxohã: ‘o que governantes sabem que somos
reconhecem a identidade indígena pataxó você falou? Tá vendo, isso aí foi onde o nativos desse país, sabem dos
e se esquecem que foram os próprios colonizador fez de tudo para que a gente nossos direitos. Quando todos eles
colonizadores que impuseram costumes, perdesse a nossa cultura” chegaram aqui, já existiam os indígenas,
que forçaram o abandono da língua, o uso e os indígenas até hoje em pleno século
Nawã, Aldeia Pataxó do Iriri, 2022
de roupas, a transformação dos territórios. XXI estão morrendo, muitas vezes por
falta de alimentos. A dor do indígena é
não ter a sua terra demarcada”
Na relação com turistas que visitam o Iriri,
Eles vieram na intuição de “E pra mim a maior alegria de ser
às vezes ocorrem conflitos com visitantes
enganar o nosso povo com indígena é ver que meu povo mantém
que se recusam a aceitar a gestão indígena
espelho, com utensílio, a sua cultura, é saber que eu sou
desse território, com estabelecimento de
bijuteria, pra enrolar nosso povo pra respeitada em todo o mundo, as pessoas
horários e uma contribuição qualquer pela
fazer o nosso povo vestir. Hoje nosso que tem o conhecimento da nossa
manutenção do estacionamento.
pessoal veste e falam que queriam ver história e do nosso povo, eles tratam a
o índio pelado. ‘Mas vocês não falam Outra ameaça apontada é o turismo gente com respeito”
só no idioma!’. Muitos chegam aqui e predatório, com a presença de lixo e
falam:’fui visitar a aldeia Guarani, eu a entrada de drogas e alcoolismo na Nawã, Aldeia Pataxó do Iriri, 2022
fiquei lá besta, porque eu não consegui
comunidade.
interagir com eles’. Aí eu falei: ‘mas
você reclama porque o índio fala
português, e lá você ficou abestalhada
porque você...’ Não achou bom também.

210 211
PROJETOS O nosso objetivo é manter e
buscar melhorias dentro da
Os Pataxó recebem visitas de estudantes
universitários, têm parcerias com

FUTUROS nossa cultura, que é uma cultura viva


e verdadeira do nosso país. A gente tá
escolas públicas e privadas, além dos
parceiros que colaboram na organização
Os pataxó aguardam a regularização da sempre lutando pra manter as nossas das vivências.
terra para organizarem melhor as ativi- origens, para que nosso futuro, nossas
A aproximação que aconteceu com o FCT
dades que já desenvolvem com vivências, crianças tenham a mesma oportunidade
(Fórum de Comunidades Tradicionais) por
trilhas educativas e consagração das que nós temos hoje, de poder ter uma
meio do projeto POVOS também abriu
medicinas na aldeia. Obter a áreas dos cachoeira sem poluição. A nossa maior
possibilidades de fortalecimento mútuo.
dois lados da rodovia é essencial para fonte de riqueza que é a nossa cultura,
que o território pataxó possa ser efetiva- hoje o indígena que perde sua cultura, A aldeia tem necessidade de sistemas de
mente uma fonte de subsistência segura ele perde tudo. saneamento ecológico e de assessoria
da comunidade, gerando renda com o jurídica nas questões que envolvem a
Eu luto dia a dia com esse compromisso
turismo na praia e na cachoeira com as demarcação do território.
que é de liderar um povo, de proteger,
vivências educativas e rituais.
e se for preciso a gente dá a vida pra
proteger um ao outro, então a gente tá
A gente quer envolver os dois
sempre nessa conexão de proteção, a
lados [da estrada]. A praia
gente sempre luta pela proteção de todo
precisamos também, nós temos os jogos
membro da nossa comunidade, é um
indígenas e a maioria das coisas que a
protegendo o outro”
gente faz é lá mesmo. Estamos seguindo
nosso pai Tupã, pra que acabe tudo bem, Leonardo Muniz Ribeiro, "Hãgüi", 33 anos,
cacique da Aldeia Pataxó do Iriri, 2021
que a gente conquiste. Se a gente não
conquistar, fica muito ruim pra gente.
Para fazer os nossos rituais, as nossas
atividades. Viver em paz, né?

Nawã, Aldeia Pataxó do Iriri, 2022

No espaço da praia, os pataxó tem inten-


ção de construir um centro cultural, ou
museu, para mostrar a história e cultu-
ra pataxó. Nesse espaço, inspirado na
exposição que participaram no Museu do
Amanhã em Niterói, haveria uma exposi-
ção fixa de vídeos, fotos, registros sono-
ros. E também seria o lugar para conti-
nuarem as atividades que já desenvolvem
com os visitantes, para estruturar me-
lhor o turismo educativo e as vivencias.

Faz parte desse olhar para o futuro a


valorização de tradições culturais e sua Muriã Tupinambá, anciã da aldeia pataxó e juventude
Auiri, juventude pataxó no território trabalham na elaboração do mapa do território.
transmissão para os mais jovens.

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O QUE FOI Alguns destaques do mapa pataxó são:
a Oca Sagrada, espaço comunitário para
O espaço da mata possui uma variedade
de plantas utilizadas pelos pataxó, como

MAPEADO reuniões; casa de apoio / hospedagem;


cozinha comunitária; cachoeira do Iriri,
madeiras, cipós e ervas medicinais, e abriga
também uma série de animais com quem os
(DESCRITIVO DA praia do Iriri, rio; lojinha de artesanato; pataxó convivem: teiú (lagarto), porco do
CARTOGRAFIA SOCIAL) banheiros comunitários; Trilha educativa mato, cotia, tatu, jaguatirica, onça, macaco
e turística; campo (utilizado para vários prego, gambá, tamanduá, tucano, gavião,
Os espaços de uso mapeados pelos esportes e atividades); estacionamento / jacu, sabiá, coruja, macuco, bem-te-vi.
pataxó, incluem áreas de mata, o caminho de acesso à praia; restaurante
espaço da aldeia, onde estão localizadas comunitário (na área da praia); área de
as casas e principais estruturas plantio ao lado das casas dos moradores
comunitárias e plantios, e a área área de reflorestamento e horta de
da praia, onde fazem a gestão do plantas medicinais próximo à praia.
estacionamento e mantém uma cozinha/
restaurante para servir refeições nos
encontros e vivencias que promovem.
MAPAS FALADOS
PRODUZIDOS PELAS COMUNIDADES

Cachoeira do Prumirim - imagem de drone tirada pela Rafaela durante a


oficina do projeto POVOS com a juventude da comunidade.

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www.otss.org.br

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