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Intencionalidade e evidência Intentionality and evidence by


em Heidegger Heidegger

Marcos Aurélio Fernandes


Professor –adjunto - UnB1

Resumo: o presente artigo visa expor a Abstract: this article aims to explain the
fenomenologia da evidência no phenomenology of evidence in Heidegger's
pensamento de Heidegger. Toma-se como thought. It takes as a starting point and
ponto de partida e fio condutor a guideline the intentionality. Knowledge is
intencionalidade. O conhecer é um an intentional relationship, which may
relacionamento intencional que pode show various degrees of intuitive fullness.
apresentar diversos graus de plenitude The fullest degree is that of perception.
intuitiva. O grau mais pleno é o da With perception occurs the filling of the
percepção. Com o perceber se dá o empty intentions and performs the act of
preenchimento das intenções vazias e se identification: the coincidence between the
realiza o ato de identificação: a coincidência presumed and intuited. Evidence is the act
entre o presumido e o intuído. Evidência é of identification that clarifies himself. It is
o ato de identificação que se clareia a si not a feeling of a closed consciousness.
mesmo. Não é um sentimento de uma The clarification of evidence presupposes
consciência fechada em si mesma. O the open-ness of the lighting-process of
clarear da evidência pressupõe a abertura Being, in which the human being
da clareira do ser na qual o homem demora establishes dwelling as a being, which exists
como ser-no-mundo. in the mode of to-be-in-the-World.

Pa l av r a s - c h ave : i n t e n c i o n a l i d a d e, Keywords: intentionality, intuitive fullness,


plenitude intuitiva, identificação, evidência, identification, evidence, to-be-in-the-world.
ser-no-mundo.

1 Doutor em filosofia. Endereço eletrônico: framarcosaurelio@hotmail.com


Intencionalidade e evidência em Heidegger

quer dizer: em investigando, ater-se ao


fenômeno, ou seja, ao que vem à luz, isto é,
à claridade, mostrando-se a si mesmo,
tornando-se manifesto, revelando-se
(HEIDEGGER, 1986: 28). Na perspectiva
da exposição e da comunicação, isto quer
dizer: que a fala, o discurso, há de tornar
manifesto aquilo de que discorre. Ele há de
deixar ver aquilo que está em causa; há de
tornar acessível aquilo que está em questão,
ou seja, o discurso que vem à fala deve ser
A presente reflexão visa expor em que haurido a partir daquilo mesmo de que se
consiste a natureza da evidência considerando- discorre (HEIDEGGER, 1986: 32).
a desde a perspectiva da intencionalidade. Enfim, como conceito de método,
Fio condutor de sua exposição é o fenomenologia quer dizer: deixar ver desde
ensinamento de Heidegger ministrado na ele mesmo, aquilo que se mostra, tal como
preleção do semestre de verão de 1925, se mostra a partir dele mesmo
intitulada “Prolegômenos para a história do (HEIDEGGER, 1986: 34). Alguém
conceito de tempo” (HEIDEGGER, 1994a), poderia objetar que tal máxima impõe um
embora também se procurará recorrer princípio metódico óbvio a uma investigação
também a outros textos de Heidegger e que pretende alcançar um conhecimento
mesmo de Husserl. científico rigoroso. De fato, este princípio
metódico é óbvio. Neste sentido, o que
Comecemos, no entanto, perguntando: uma investigação fenomenológica tem de
qual a relevância do tema da evidência para novo não é o princípio que a guia, mas o
a fenomenologia? pretender tomar a sério este princípio
(HEIDEGGER, 1986: 28).
A fenomenologia enquanto conceito de
método, ou seja, o modo de ser da A máxima da investigação fenomenológica
investigação fenomenológica tem como tem, pois, como “princípio dos princípios”:
máxima a chamada: “às coisas mesmas! ”[zu “que toda visão originariamente doadora é
den Sache selbst!]. Esta máxima se opõe as uma fonte justa do conhecimento; que tudo
palavras vazias, a conceitos só aparentemente aquilo que se nos oferece originariamente
verificados, a juízos cegos, a argumentos numa “intuição” (por assim dizer em sua
genéricos, a pseudoproblemas, a construções realidade em carne e osso), há de ser
teóricas soltas no ar (HUSSERL, 1993a:. tomado simplesmente como aquilo que se
155; HEIDEGGER, 1986: 27). Nela, o mostra, mas também só nos limites em que
que está em jogo é a chamada para um se dá aí” (HUSSERL, 1993d: 43-44).
retorno. Retornar às coisas mesmas quer Intuição quer dizer, aqui, visão
dizer não se contentar com palavras vazias, originariamente doadora, simples apreensão
mas buscar aquilo que as suas significações da coisa mesma, ou seja, da coisa em causa,
intencionam e, neste sentido, desdobrar tal como ela se deixa encontrar
intuições para cheg ar à evidência previamente, tal como ela se mostra, dando-se
(HUSSERL, 1993b: 5-6). Com outras por assim dizer “corporalmente” [leibhaftig], ou
palavras, dito positivamente, esta máxima seja, não a p e n a s s i m b o l i c a m e n t e,

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figurativamente, mas “em carne e osso”, apreensão em que o ato de conhecer ou


“em pessoa” (HEIDEGGER, 1994a: 64). pensar se funda. Do mais vazio para mais
A intuição é fonte justa de conhecimento. pleno temos: o intencionar vazio, a simples
O conhecer é um relacionamento presentificação, a imagem, e a percepção
intencional, isto é, ele se dirige a alguma (HEIDEGGER, 1994a: 59).
coisa. A questão é: a que se dirige o
comportamento ou relacionamento O intencionar vazio [Leermeinen] é o “pensar
intencional cognitivo? Resposta: dirige-se à sem pensamentos”, ou seja, o pensar
coisa mesma, tal como ela se mostra e se abreviado e cego. É o mero pensar em
doa por assim dizer em “carne e osso”, e algo, sem considerar suas determinações. É
não a conteúdos da consciência, a vazio, na medida em que o pensar e falar
sensações ou a imagens mentais. Conhecer da coisa é desprovido de intuição. O
é, deste modo, co-nascer com a coisa intencionado, ou seja, o pensado deste
mesma em questão, é receber a sua doação pensar vazio, é o ente mesmo, só que no
originária, é tomar em consideração aquilo modo vazio, isto é, sem a plenitude da
que assim é visto (HEIDEGGER, 1995: intuição.
100-101). O princípio dos princípios pode
ser chamado de princípio da evidência. Ele não Em segundo lug ar, vem a simples
é propriamente uma proposição teórica, presentificação [schlichte Vergegenwärtigung]. É o
algo assim como um axioma. Trata-se de pensar em algo, considerando suas
um princípio que jaz previamente a todos determinações. Assim, uma proposição
os princípios, isto é, que vem antes de como “1 + 2 é igual a 2 + 1” pode ser
todos princípios teóricos, por reger toda a pronunciada às cegas, sem pensar, isto é,
investigação científica, e que vem antes de no modo do intencionar vazio, ou pode,
todos os princípios práticos, por reger a por outro lado, ser dita de modo que, a
vida de uma humanidade que pretende cada passo, se faça uma presentificação
viver na verdade e na autenticidade [Vergegenwärtigung] do que nela é visado
(HUSSERL, 1962: 299). [Gemeinte]. Neste caso, se discorro sobre
esta expressão, este falar não é um falar
Feita esta reflexão preliminar sobre a vazio, mas a intenção signitiva se torna
relevância da evidência para a fenomenologia, mais plena, graças ao ato intuitivo, isto é,
tentemos expor a conexão entre evidência apreensivo e interpretativo, da presentificação.
e intencionalidade, que é o propósito desta O que importa é como a proposição é
contribuição de pensamento. enunciada, ou seja, como é executado ou
realizado [vollzogen] o intencionar do juízo:
O comportamento ou relacionamento se é executado sem pensar, sem evidência,
intencional do conhecer com o cognoscível ou se é realizado de modo a ver, a ter
pode se dar em diversos graus de plenitude evidência do que se trata a cada passo, isto
intuitiva. Na intenção pensante ou quer dizer, se cada determinação da
conhecedora e no seu modo de propor proposição é presente ao que julga em seu
[vorstellen] para si a coisa que há de ser significado originário, por meio de uma
conhecida, com efeito, há uma gradação da originária, intuitiva, presentificação. O
completude ou plenitude intuitiva das intencionado do simples presentificar é o
estruturas intencionais dos diversos atos de ente mesmo, não uma imagem dele. O

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modo como ele é apreendido, quer dizer, imagem [Bildding], eu posso conhecer algo
interpretado, consiste em se mostrar ao da sua arte, isto é, da sua arquitetura, obra
pensamento em diversos aspectos e de Niemeyer, bem como da sua arte visual,
perspectivas (HEIDEGGER, 1994a: 55). isto é, da obra de Portinari. O visado, o
Assim, por exemplo, se estou em Belo intencionado, neste ato apreensivo é o ente
Horizonte e penso no aeroporto de mesmo, no caso, o que é retratado [das
Confins, considerando os seus aspectos, Abgebildete] por meio da coisa-imagem, ou
sob diversas perspectivas, então eu realizo seja, no nosso exemplo, é a Igreja de São
um ato de simples presentificação, que é Francisco da Pampulha retratada por meio
diverso, tanto do ato de recordar, como do do livro de fotografias. Temos, então, uma
ato de imaginar o aeroporto de Confins. presentificação do ente mesmo em
Isto quer dizer: quando presentifico questão, mas não em carne e osso. Bem
alguma coisa eu estou junto desta coisa outra coisa é se vou à Pampulha e visito a
mesma. A presentificação tem o caráter do Igreja de São Francisco da Pampulha e
ser-junto-a [den Charakter des Seins bei…]; no contemplo a sua arte. A consciência
caso, do meu ser junto ao aeroporto de perceptiva de alguma coisa é, com efeito,
Confins. Estando em Belo Horizonte, bem diversa, em sua estrutura, da
tenho em mente, viso, o aeroporto de consciência da imagem. Naquela eu vejo a
Confins. E, tendo-o em mente, visando-o, coisa mesma, diretamente, em carne e osso.
estou junto a ele. Se, por exemplo, devo Nesta eu vejo o que é retratado por meio
pegar uma condução do transporte público de uma coisa-imagem. A evidência de uma
ou se devo dirigir um carro para chegar ao coisa retrata e a evidência de uma coisa
aeroporto de Confins, isto só é possível, percebida diretamente, em carne e osso,
por que, tendo-o em mente, visando-o, já têm uma pregnância intuitiva diversa.
estou junto a ele. Este pensar-em é, pois, Assim, se falo da arte da Igreja de São
mais do que um simples recordar; é, em Francisco, que está na Pampulha, apenas
visando, um estar-junto da coisa mesma por ter ouvido falar dela, ou apenas por ter
que é visada. Este ser-junto-ao-ente da visto um livro de fotografias dela, e se falo
simples presentificação apresenta, pois, o dela por ter estado lá, por tê-la tido
caráter de um estar-aberto [Offenstehen] para presente em carne e osso, este falar e
o ente em sua vigência. Neste sentido, em discorrer sobre ela tem uma plenitude
visando o aeroporto de Confins, estou intuitiva cada vez diversa (HEIDEGGER,
junto a ele, enquanto um carro estacionado 1994a: 55-57).
no aeroporto de Confins, que não o pode
visar, não (HEIDEGGER, 1987: 86-96). Em quarto lugar, vem a simples e originária
percepção [Wahrnehmung]. O que nela acontece
Em terceiro lugar, vem a presentificação que não é um presentificar [Vergegenwärtigen],
se dá na percepção de imagem [Bildwahrnehmung]. mas é, mais do que isto, um tornar
Esta apreensão, em seu grau de plenitude presente [Gegenwärtigen], um presentar
intuitiva, está a meio caminho, entre a [Präsentieren] a coisa mesma, tal como ela se
simples presentificação e a simples dá em carne e osso [leibhaftig] (HUSSERL,
percepção. Digamos que eu, estando na 1993c: 116). O intencionado do simples
Universidade, tenha em mãos um livro de perceber é a coisa mesma em sua doação
fotografias da Igreja de São Francisco, que em carne e osso. Assim, se apreendo um
está na Pampulha. Por meio desta coisa- ipê amarelo florido, o visado da minha

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percepção é o próprio ipê amarelo florido, coisas percebidas. Num movimento em


e não uma imagem ou uma representação torno da coisa, os aspectos que vêm à luz
deste ipê amarelo florido na minha de modo nuançado podem mudar, no
consciência. O visado é, pois, o próprio ipê entanto, no perceber e com o perceber
amarelo florido, dando-se em carne o osso. acontece também a consciência de que este
O perceber é, então, um simples apreender, percebido é o mesmo ente, a mesma coisa.
um simples ver [schlichtes Sehen], e o percebido Esta consciência da “idemidade” [Selbigkeit]
é aquilo que é simplesmente visto [das Schlicht- do percebido faz parte do ato de perceber.
gesehene]. A perceptibilidade [Wahrgenomenheit] Aspectividade, nuança e idemidade são
do percebido tem o caráter de uma doação traços caraterísticos da perceptibilidade de
em carne e osso [leibhaftig]. O caráter de ser uma coisa material apreendida por uma
doado em carne e osso [Leibhafigkeit] é um percepção sensível (ROMBACH, 1980:
modo privilegiado de autodatidade 171-191).
[Selbstgegebenheit] do ente percebido
(HEIDEGGER, 1994a: 54). Aqui a Os atos signitivos vazios se preenchem
plenitude intuitiva do ato de apreensão com a plenitude intuitiva da percepção. No
chega ao seu máximo. Em sentido estrito, perceber, em virtude de sua presentificação
ou melhor, pleno e pregnante, há intuição intuitiva, se dá, pois, o preenchimento
toda vez que a coisa intencionada no [Erfüllung] dos atos signitivos vazios. A
comportamento se dá como sendo presente presentificação intuitiva, por assim dizer,
em car ne e osso [leibhaftig anwesend] faz acontecer o cumprimento [Erfüllung] de
(HEIDEGGER, 1995: 103). Como já um presumir [Vermeinen], isto é, aquilo que
dissemos, na percepção se dá não uma era presumido se cumpre, à medida que o
mera presentificação, mas sim uma ato de apreender encontra o ente doando-
presentação da coisa mesma. No entanto se em seu teor intuitivo. O presumir, então,
no caso de uma percepção sensível de uma se cumpre, à medida que se funda e se
coisa material, “por mais adequada que legitima no que intuitivamente se documenta,
possa ser uma percepção, o ente percebido isto é, se mostra partir de si mesmo [weist aus]
se mostra sempre cada vez somente em um como sendo a coisa mesma visada e
determinado sombreamento [Abschattung] ” presumida. “A percepção, assim como o
(HEIDEGGER, 1994a: 65). Em vez de que ela dá, se mostra [weist aus]. A intenção
sombreamento, podemos dizer também vazia se documenta no estado-de-coisas
“nuança”. No caso da percepção sensível de dado na intuição; a percepção originária dá
uma coisa material, o visado do perceber é a auto-mostração da coisa mesma
sempre a coisa mesma em sua totalidade, [Ausweisung] ” (HEIDEGGER, 1994a: 66).
mas o que eu apreendo é sempre esta coisa
desde determinada perspectiva e sob um Por meio da percepção, ou melhor, por
determinado aspecto. Eu vejo, por meio de sua auto-mostração, o presumido
exemplo, a parte superior da cadeira, encontra cumprimento no intuído, ou seja,
enquanto não consigo ver a superfície o presumido coincide com o intuído. Por
inferior. Todavia, não penso, por isso, que exemplo, vamos supor que eu presuma que
as pernas da cadeira foram serradas, a Igreja da Pampulha seja bela. E, ao visitá-
porque, no meu perceber, naturalmente la, ao tê-la presente [Gegenwärtig haben] em seu
conto com o mostrar-se nuançado das teor intuitivo, a percepção me mostre a ela

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mesma dando-se em sua beleza. Se antes modo de ser da evidência, a dinâmica da


eu dizia: “A Igreja de São Francisco da intencionalidade. Vejamos.
Pampulha deve ser bela” e agora eu digo
“A Igreja de São Francisco da Pampulha é Nas intuições há diversos modos e graus e
realmente bela”, neste caso, uma níveis de plenificação [Erfüllung]. Esta, por
expectativa encontrou um cumprimento sua vez, a plenificação, pode ser tomada
[Erfüllung]. O juízo “A Igreja de São em dois sentidos. Primeiro, como dar
Francisco da Pampulha é bela” se plenitude: o pleno. Segundo, como dar
documenta, se prova, se confirma, com o plenitude: como confirmar, comprovar
intuído na percepção. O presumido é [Bewähren]. O representar vazio carece de
trazido à coincidência com o intuído. Isto plenificação e tem a tendência para a
quer dizer: experimentar o presumido no comprovação fundada na auto-mostração
intuído enquanto ele mesmo [es selbst] e [Ausweisung]. Esta tendência, em sua
como o mesmo [selbiges]. Este trazer à intencionalidade, tem em si a direção para o
coincidência é o que se denomina de ato de campo, que, intuído, oferece plenificação.
identificação [Akt der Identifizierung]. Nesta Mas, o que significa comprovação fundada
identificação, a idemidade [Selbigkeit] é na auto-mostração [Ausweisung]? Significa o
experimentada, o que não significa que ela seguinte: o intencionado no representar vazio
é apreendida explicita e tematicamente é trazido, assim como ele é visado, diante do
como idemidade. Isto quer dizer também mesmo que ele intenciona. Assim, o
que o ato de identificação não é ainda representar muda o seu modo de se ater ao
apreensão da identidade, mas apenas ente mesmo: de uma atinência vazia a uma
apreensão do idêntico. O ato de identificação atinência plena, isto é, a um relacionamento
é a experiência de que o presumido se que se atém à presença em carne e osso do
funda na coisa mesma, no que ela mostra ente mesmo. A representação vazia se
de si, a partir de si, isto é, de sua realidade documenta, se comprova, se legitima em
efetiva, de sua presença doada em carne e referência à coisa de modo a identificar-se
osso. “Neste preenchimento enquanto um com ela, ou melhor, de modo a identificar
ato de identificação jaz uma tomada de aquilo que ela intenciona com a coisa, mais
intelecção [Einsichtnahme] do ser-fundado precisamente, com a coisa enquanto ela
na coisa mesma do presumido, e esta mesma e enquanto esta mesma coisa [als sie selbst
tomada de intelecção enquanto und dieselbe] (HEIDEGGER, 1995: 106).
preenchimento identificador se designa
como evidência” (HEIDEGGER, 1994a: Na comprovação, aquilo que é representado
67). de modo vazio e aquilo que é intuído são
trazidos à coincidência [zur Deckung]. Este
Na preleção do semestre marburguense de vir à coincidência é uma questão de
inverno de 1925/1926 sobre a “Lógica: a intencionalidade. A comprovação a partir da
pergunta pela verdade”, Heidegger retoma o auto-mostração da coisa mesma se realiza
que foi exposto na preleção no semestre de de modo intencional, isto é, como um
verão de 1925, intitulada “Prolegômenos para dirigir-se a [Sich-richten-auf]. Isto quer dizer: o
a história do conceito de tempo”, acerca da intencional representar vazio, na tendência
evidência. Mas esta retomada deixa mais para a plenificação, se comprova e vive ele
nítida, na apreensão ou interpretação do mesmo na identificação. Enquanto
intencional, a representação vazia, dando

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prova de si mesma, sabe de si mesma, sabe seu intencionar, eo ipso se clareia [erhellt]
que ela se auto-mostra, se documenta e se a si mesmo (HEIDEGGER, 1995:
legitima. A realização intencional da 108).
identificação traz consigo a mirada
intelectiva [Einblick] para dentro da auto-
mostração documentadora e comprovadora Evidência é, assim, autoclarificação e
[Ausweisung]. Esta não é algo que se cola à autocompreensão do ato de identificação,
representação vazia, mas é um modo de ou melhor, de sua captação identificadora.
sua execução, ou seja, de sua realização ou Aqui se dá, de antemão, a imediata unidade
consumação [Vollzug] (HEIDEGGER, 1995: de nóesis-e-nóema, ou seja, de intencionar
107). (ato identificador) e intencionado: o
percebido no seu caráter de idemidade, isto
A intuição não se perde na coisa intuída e é, o idêntico enquanto idêntico. O
no seu conteúdo objetivo. O conhecimento, intencionar não só visa, intenciona [meint] e
enquanto apreensão intuitiva, vive não capta [erfasst] o intencionado, mas, ao
somente junto do que ele conhece. O mesmo tempo, por si mesmo, se clareia
conhecimento vive junto de si mesmo. É, [erhellt] a si mesmo, se esclarece [klärt sich auf]
por assim, dizer, conhecimento de ser a si mesmo. E isto, operativamente, em sua
conhecimento e de ser conhecimento própria realização, execução ou consumação
correto. Sua correção [Rechtmässigkeit], [Vollzug], antes de qualquer reflexão e
porém, é o caráter de poder ser provado e tematização.
documentado a partir de uma auto-mostração
[Ausweisbarkeit] e, respectivamente, o caráter Evidência é, pois, um autoclareamento, um
de ter sido provado e documentado junto à coisa autoesclarecimento de uma intencionalidade.
[Augewiesenheit an der Sache]. A identificação, Evidente quer dizer manifesto [offenbar], notório
a prova, é uma questão de intencionalidade. [offenkundig]. Traz consigo, portanto, em
Em sua realização intencional, sem uma primeiro lugar, o sentido de abertura [offen
r e f l e x ã o p r ó p r i a , a i d e n t i f i c a ç ã o, = aberto], e, em segundo lugar, o de
respectivamente, a prova, cumpre um clareamento e esclarecimento [Aufklärung],
esclarecimento [Aufklärung] sobre si e, por fim, o de dar a conhecer [kundgeben].
mesma. Este autoesclarecimento que se dá Em latim há o verbo “evideri”, que
na realização da identificação mesma, sem podemos traduzir “deixar-se ver” [sich sehen
precisar recorrer a uma compreensão lassen]; e, em grego, há o adjetivo enargés,
reflexiva própria, pode ser chamado de que quer dizer “manifesto”, “claramente
evidência (HEIDEGGER, 1995: 107-108). visível”, mas no sentido do que está
E então vem a definição de evidência: “aparecendo de modo fulgente”. Este vem da
composição de ejn [en] mais argós: o que se dá
Evidência é o ato de identificação no modo esplendente, luzente. Da mesma raiz
[Identifizierung] que se compreende a si de argós é a palavra latina argentum (prata).
mesmo como tal; o compreender-se é dado Portanto, a experiência grega que vem à
com o ato mesmo, porque o sentido fala na palavra enargés, põe em relevo a
intencional do ato intenciona algo de significância decisiva que a luz tem para os
idêntico enquanto idêntico [etwas gregos na compreensão do ser, tomado
Selbiges als Selbiges] e, com isto, com o

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enquanto um aparecer e brilhar, mais se dá a encontrar” (HEIDEGGER, 1987:


precisamente, enquanto o resplandecer de 143). Trata-se, aqui, daquela relação em que
um brilho argênteo, lunar, do que “está se nós já sempre nos demoramos, a saber, a
mostrando a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, relação primordial com o ente, em que o
1987: 5). Nessa experiência, se compertencem ente é compreendido enquanto ente, quer
a physis, o emergir manifestador, o surgir, o dizer, na perspectiva do seu ser. Nós já
irromper, o brotar, o abrir-se da realidade, sempre nos detemos e nos demoramos na
enfim, a natureza, e phos, a luz e a claridade, relação com o que se nos dá a encontrar.
ou seja, o elemento, o medium, em que Estamos, assim, já sempre abertos para o
alguma coisa pode se tornar manifesta, encontro com o ente. O nosso “estar-aqui”
visível nela mesma (HEIDEGGER, 1986: [Hier-sein] é já sempre um “ser-junto-
28). Algo dessa experiência do ser como a” [Sein-bei], a saber, junto ao ente
um brilhar e resplandecer argênteo emerge (HEIDEGGER, 1987: 141). Este manter-
nos versos de Safo: “Estrelas em torno da se aberto a e envolver-se com o que se
bela lua / escondem sempre de novo os deixa encontrar, interessando-se por e
contornos / cintilantes, / quando toda metendo-se em relação com ele, caracteriza
redonda brilha cheia sobre a / terra” (Apud o modo de ser do existir, próprio do
HEIDEGGER, 1977b: 330). Algo dessa humano. Existir é realizar, consumar, este
experiência ainda ressoa na seguinte relacionamento primordial. O homem não
sentença poética de Hölderlin: “O brilhar existe sem o relacionamento com as coisas.
da natureza é uma parusia superior! O ser-consciência-de, da intencionalidade,
” (Apud HEIDEGGER, 1977a: 334). É se revela, nesta perspectiva, um ser-junto-a,
ainda esta experiência que está recolhida na a saber, um ser-junto-ao-que-nos-vem-ao-
palavra phainómenon, que quer dizer o que se encontro, um ser-junto-ao-ente, relacionamento
põe a brilhar, o que aparece no seu próprio que implica sempre numa compreensão de
brilho, e, assim, se mostra, se manifesta, e, ser deste ente, à medida que o ente é
manifestando-se, se divulga, dá notícia de apreendido “enquanto” ente, quer dizer, na
si, torna-se notório, evidente (Cf. significância de ente, ou, melhor ainda, na
HEIDEGGER, 2003: 104). perspectiva do ser. Como apareceu ao se
tratar da intencionalidade da “simples
O método grego de pensar tinha como presentificação”, o ser-junto-ao-ente
traço fundamental conservar e ‘salvar’ os apresenta o caráter de um estar-aberto
fenômenos que se mostram, deixando-os [Offenstehen] para o ente em sua vigência. O
intocados e incólumes, ou seja, o puro “envolver-se propriamente em nossa relação
deixar-ser-vigente daquilo que se mostra com o que se dá a encontrar” (HEIDEGGER,
(HEIDEGGER, 1987: 143). Este método 1987; 143), traz consigo a seguinte
aponta para uma possibilidade de pensamento implicação prática à fenomenologia:
para a fenomenologia, diversa do método da
dúvida cartesiana, que funda a filosofia a À fenomenologia pertence em certo sentido
metafísica da subjetividade moderna, e o ato de vontade, de não se fechar contra
também do método científico, que põe em este envolver-se. O envolver-se também nem
ato a metafísica da objetividade e da de longe quer dizer meramente um tornar-
funcionalidade moderna. Tal possibilidade se consciente de meu modo de ser. Eu só
pode ser assim formulada: “envolver-se posso então falar de tornar-se consciente, se
propriamente em nossa relação com o que eu quero tentar determinar como este nosso

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originário ser-junto-a... se conecta com da intencionalidade, não faz sentido pensar


outras determinações da presença [Dasein]. uma consciência sem a sua correferência ao
(HEIDEGGER, 1987;143). mundo no seu todo, como intuiu Husserl,
indo além de Descartes (HEIDEGGER,
1987: 142; cf. HUSSERL, 1950: 70). Por
A compreensão do caráter intencional da isso, o problema fundamental da teoria do
evidência – interpretando-se a intencionalidade conhecimento moderna, herança cartesiana,
como um ser-consciência-de e este como um que pode ser assim formulado: “como
meter-se em relacionamento com, e este poderá a evidência (a clara et distincta
como um ser-junto-a... – abre a perceptio) reivindicar ser algo mais que um
possibilidade para superar um modo de caráter de consciência para mim? ”; ou, que
consideração da evidência que Heidegger, pode ser formulado também assim: “como
na preleção dos “Prolegômenos à história poderei sair da ilha da minha consciência e
do conceito de tempo”, chama de como poderá adquirir significação objetiva
“mitológica” (1994a: 67), porque “não aquilo que surge na minha consciência
corresponde ao que ao achado” (1994a: como vivência da evidência? ”, acaba
68). A este modo de consideração revelando-se como um pseudoproblema e
pertence, por exemplo, o “sentimento de um contrassenso (HUSSERL, 1950: 116).
evidência” de Rickert.
Esse modo de assim tratar a “vivência de
Toma-se a evidência por um índice peculiar evidência”, como “sentimento de
de certas vivências, e, antes de tudo, das evidência”, falha por não perceber que a
vivências judicativas, por um sinal, que às intencionalidade é determinante em toda a
vezes emerge na alma e anuncia que o “vivência de evidência”. Quer dizer: ele
processo psíquico, ao qual ele aparece desconhece que “evidência é um determinado
ligado, seja verdadeiro, em certa medida, ato intencional e, precisamente, a
como um anúncio de um dado psíquico, identificação de presumido e intuído; o
que ao julgar corresponderia fora algo de presumido reluz ele mesmo junto à
real. Este transcendente não pode, como se coisa” (HEIDEGGER, 1994a: 67). Ele
sabe, tornar-se ele mesmo imanente, negligencia, além disso, que intencionalidade,
precisa, por isso, se deixar anunciar no isto é, o caráter da consciência de ser-
“interior”. Isto é, segundo Rickert, o assim consciência-de, significa, um dirigir-se-a, que,
chamado “sentimento de evidência” . fundamentalmente, tem o caráter de um
(HEIDEGGER, 1994a: 67). poder orientar-se [Zurechtfinden], e, por fim, de
um estar-aberto [Offenstehen] por parte do
homem para o ente em sua vigência
Assim, a evidência seria algo como um (HEIDEGGER, 1987: 284; 94). A
sentimento psíquico ou um dado psíquico, abertura [Offenheit] que é própria ao
algo como uma pressão, ou ainda um homem chama-se, em Ser e Tempo, “Dasein”.
indício que permite notar que a verdade Ela traz consigo uma remissão a espaço e
está ali. Este modo de considerar a espacialidade, mas isto precisa ser bem
evidência pressupõe que a consciência seja compreendido. A palavra “Dasein”, que
a l g o c o m o u m a “ c á p s u l a ” ( C f r. costumeiramente quer dizer présence
HEIDEGGER, 1994a: 3). Ora, se se parte (presença), não quer dizer um “être-là” (ser-

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Intencionalidade e evidência em Heidegger

aí) no sentido de uma “indicação de lugar A evidência é, assim, o autoclareamento


para um ente”, “mas deve nomear a deste relacionamento do homem com o
abertura [Offenheit], na qual o ente pode que se lhe dá a encontrar, e, assim se
ser presente para os homens, na qual dando, se lhe manifesta como anúncio,
também ele pode ser presente para si como portador de uma significância, mais
mesmo” (HEIDEGGER, 1994b: 300; 1994a: do que isso, como portadora de uma
156-157). Espacialidade não quer dizer, mensagem, enfim, de uma fala que se lhe
aqui, ocorrer dentro do mundo. Mas, antes, ressoa como apelo, animação, consolação,
ser a abertura em que se dá a eclosão do encorajamento [Zuspruch]. Praticar
mundo enquanto tal, e, a partir daí, fenomenologia é, pois, não se furtar ao e
o r i e n t a r - s e c o m o s e r - n o - m u n d o. não se bloquear contra o relacionamento
“Espacialidade pertence à clareira [Lichtung], com isso que se nos dá a encontrar e que
pertence ao aberto [zum Offenen], no qual nos interpela. É, pelo contrário, envolver-
nós, como existentes, demoramos, e, se neste relacionamento, e, na experiência
precisamente, de tal modo que nós até da evidência, guardar, conservar, junto
mesmo não estamos propriamente referidos com o que se manifesta e se clareia, o que
ao espaço enquanto espaço” (HEIDEGGER, se esconde e se oculta. É, pois, na
1987: 188). Estar na clareira quer dizer, aqui, paciência, ser capaz de suportar este
nela demorando, ocupar-se com as coisas. relacionamento. É, enfim, um corresponder
Ser-consciente [Bewisst] quer dizer: que se sintoniza com a linguagem, quer
orientar-se no mundo circundante, entre as dizer, com a entonação da voz do ser do
coisas. O orientar-se é um ser-referido ao ente (da realidade do real) que percute e
que está dado enquanto objetos repercute no silêncio. (Cf. HEIDEGGER,
(HEIDEGGER, 1987: 190). Assim, a 1956: 43-44).
consciência, em seu caráter intencional,
pressupõe o ser-no-mundo, que é próprio
do “Dasein” e do seu existir, o que Referências bibliográficas
pressupõe o aberto [das Offene], a clareira
[Lichtung] do ser. Para o homem, existir é HEIDEGGER, M. (1956). Was ist das - die
demorar-se [sich aufhalten] nesta clareira. Philosophie? Pfullingen: Günther Neske.
Isto quer dizer que:
__________. (1977a). A questão sobre a
Existir humano, em seu fundamento morada do homem (1969). Revista de
essencial, nunca é somente um objeto que Cultura Vozes, 333-334.
ocorre em algum lugar, e, desde já, não é
nenhum objeto fechado em si. Antes, __________. (1977b). Uma palavra de
consiste, este existir, de “puras e simples” agradecimento (1959). Vozes, 329-331.
possibilidades de recepção-percepção
[Vernehmensmöglichkeiten], não __________. (1978). Frühe Schriften -
captáveis de modo óptico, tátil, Gesammtausgabe Band I. Frankfurt
direcionadas para o que se lhe dá a am Main: Vittorio Klostermann.
encontrar a modo de apelo [auf das ihm
sich zuspr echende Begegnende]. __________. (1986). Sein und Zeit.
(HEIDEGGER, 1987: 3). Tübingen: Max Niemeyer.

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II/2: Elemente einer phänomenologischen
Aufklärung der Erkenntnis. Tübingen:
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