rias que, a dado momento, se entrelaçam. A primeira história leva-nos ao tempo da constru- ção do convento de Mafra e a segunda oferece-nos a história de amor entre Blimunda e Balta- sar. Memorial do Convento é o livro da vida de Miguel Real. 5 Miguel Real É verdade que, ao perguntarem-me qual é o livro da minha vida, há um que me mo- dificou radicalmente, até me pôs a escrever. Até a escrever no sentido de até imitar esse tipo. É o Memorial do Convento do Saramago. Reporto para o ano da publicação dele, 1982, eu era professor, estava perto de Mafra, em Sintra (e também dei aulas em Mafra depois) e comprei o livro e fiquei absolutamente deslumbrado com a história do Memorial do Convento. É uma his- 10 tória que, por um lado, é uma grande história de amor e é uma história de amor maravilhosa que acaba tragicamente, mas que eles conseguem consumar a sua união casamenteira ou a sua união sexual… mas, depois, acaba tragicamente. É uma história em que Baltasar é menos de que um homem, é um homem fraco, vem da guerra, não tem a mão esquerda, só tem o punho, usa um gancho, em vez de… é analfabeto, não sabe nada relativamente à grande pu- 15 jança do reinado de D. João V. A Blimunda é mais do que uma mulher, é mais do que uma mulher. Para além de tudo, ela vê aquilo que as outras mulheres não veem. É capaz de captar as vontades através de um frasco que o Padre Bartolomeu de Gusmão lhe dá. Ela capta as vontades para, depois, fazer a passarola. Há o sonho visionário e científico a alimentar todo o romance. Um sonho quase mágico que é, justamente, “o homem será capaz de voar um dia”. 20 E todos os romances precisam dessa motivação, desse referente, dessa energia que anima cada palavra. Neste caso, é “o homem há de voar um dia”, seja por artes do demónio, como diz a Inquisição, seja por artes do pensamento humano, como diz o Padre Bartolomeu de Gus- mão. Portanto, depois, o romance envolve uma comunidade quase inteira. É Mafra, Mafra… na construção de um convento megalómano. Primeiro era para oito frades, depois para oitenta, 25 depois para trezentos frades. E o D. João V quer chegar ao nível da basílica de S. Pedro, em Roma. Portanto, toda esta movimentação coletiva em que é o povo que está a fazer o con- vento… nunca nos podemos esquecer, é impossível, qualquer que seja o leitor, esquecer a cena em que a mãe pedra, é assim que se chama, a mãe pedra vem de Pêro Pinheiro, chega a Cheleiros, é arrastada por uma junta de duzentos bois (salvo erro, agora já não leio há algum 30 tempo) e vai, vai… vão os bois, vai a mãe pedra, vai tudo a rebolar até lá abaixo ao vale. O Ma- nuel Milho é arrastado e morre, e morre. Portanto, tudo isto faz… ah!, no meio de tudo isto há um músico, que é o Scarlatti, que diz que, para além da existência mineral, vegetal, animal, humana, ainda há uma terceira existência, que é a existência musical. E que as esferas, para a passarola subir ao céu, as esferas têm de conter… cheias de música… têm de conter a música. 35 Portanto, é um romance absolutamente fabuloso. […] fotocopiável