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Transcrição de registos vídeo 309

4. José Saramago manual p. 238

“Memorial do Convento” 11 min 43 s

Recursos Grandes Livros, RTP e Companhia de Ideias

[…]
Saramago foi tão célebre pela obra literária como pela personalidade controversa. Da aldeia
ribatejana onde nasceu, em 1922, ao convento de Mafra foi uma longa viagem. Filho e neto de
camponeses, faltou-lhe o dinheiro para concluir o liceu. Foi serralheiro, funcionário administra-
tivo, desenhador. O gosto pelos livros ganhou-o numa biblioteca pública, lendo pelas noites den-
5 tro. Em 1947 publicou um romance, mas a Terra do Pecado passou tão despercebida como ele
próprio. Ninguém diria que aquele cidadão anónimo haveria de tornar-se o mais premiado ro-
mancista português. Mas não havia qualquer diferença entre o funcionário discreto de então e o
escritor que Saramago viria a ser.
Pilar del Río  Trabalhava e muito e até quase aos seus últimos dias, mas sem dramatismo. Ele
10 nunca dizia: “Oh! Estou cansado…” Não, não, não! Ou: “Preciso de beber, preciso de uma noi-
tada para escrever…” Não, não, não! Ele escrevia como um artesão… Levantava-se… Era como
um camponês, preparava a terra, cultivava, escrevia duas páginas por dia, nunca mais.
Rui Tavares [Historiador]  Aliás, eu creio que o Saramago aparece muito no revisor da História do
Cerco de Lisboa. Aquele revisor da História do Cerco de Lisboa, alguém tímido, sossegado, tra-
15 balhador, é muito Saramago, como é também, de certa forma, o funcionário de Todos os
Nomes. Tem qualquer coisa de Saramago no aspeto, como diria, sistemático, trabalhador, es-
tudioso, que ele tem. E, portanto, estes são elementos, às vezes, pouco, pouco notados, pouco
assinalados na obra de Saramago.

No fim dos anos cinquenta, Saramago inicia a aproximação ao destino. Trabalha numa edi-
20 tora, faz traduções, escreve na imprensa. Dezanove anos depois, volta a publicar, desta vez poe-
sia. Em 69 inscreve-se no PC e, na sequência do 25 de Abril, torna-se diretor adjunto do Diário de
Notícias. Torna, então, pública a intenção de fazer do jornal uma ferramenta ao serviço do comu-
nismo e não se inibe de despedir vinte e dois jornalistas que considera contrarrevolucionários.
Quando a 25 de novembro de 75 os sonhos da extrema-esquerda caem por terra, Saramago é
25 demitido. Aos 53 anos, desempregado e com os ideais políticos falidos, toma a decisão radical de
viver da literatura. Em 77, lança Manual de Pintura e Caligrafia com o subtítulo “Ensaio de Ro-
mance”. Em 1980, terminam os testes. Publica Levantado do chão, um romance sobre as gentes
do Alentejo escrito numa forma desconcertante que subverte as regras da pontuação.
Zeferino Coelho [Editor da Caminho]  Ficou tudo na expectativa… O que é que vai fazer agora? E
30 fez. Dois anos depois… publicámos o Memorial do Convento. E foi um deslumbramento ainda
maior do que tinha sido e mais generalizado do que tinha sido com o Levantado do chão. […]
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A obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo é uma obra que, a meu ver, atacou princípios que
têm a ver com o património religioso dos cristãos, não só da Igreja…

Em 1992, a decisão de afastar O Evangelho Segundo Jesus Cristo da lista de candidatos ao


35 Prémio Literário Europeu seria o corolário de um rasto de polémica que Saramago há muito dei-
xava atrás de si.
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310 Transcrição de registos Sequência  4. José Saramago

José Saramago  Agora já não se diz tanto que, efetivamente, eu não respeito as regras gramati-

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cais, que eu não uso pontuação. E eu realmente confirmo, porque não uso, realmente, pontua-
ção, embora apareçam duas sinalefas (chamo-lhe assim) que são, que pertencem, digamos,
40 ao catálogo dos sinais de pontuação, que é a vírgula e o ponto.

Nada era pacífico na escrita de Saramago, a começar pelo estilo. […]


O romance que publica depois do Memorial também não passa incólume. N’ O Ano da Morte de
Ricardo Reis, Saramago ficciona o regresso a Lisboa do heterónimo de Fernando Pessoa, após a
morte do poeta.
45 Zeferino Coelho [Editor da Caminho]  Foi uma grande ousadia da parte do Saramago pegar na-
quele tema… e o Fernando Pessoa que é assim uma espécie de… é assim uma espécie de
mito, não é?... de que algumas pessoas são proprietárias, que são os pessoanos, não é?

Dois anos depois volta a ousar. N’ A Jangada de Pedra faz a Península Ibérica separar-se da
Europa e andar à deriva pelo oceano. No entanto, nenhum livro causaria tanta celeuma como
50 O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Inverter as palavras bíblicas e fazer Cristo pedir aos homens
que perdoem a Deus não saber o que faz fere as consciências mais católicas. […]
Chegou o grande momento para a literatura portuguesa. José Saramago vai receber das mãos do
rei Carlos Gustavo XVI o Prémio Nobel da Literatura de 1998. A primeira vez que a literatura de língua
portuguesa recebe o mais alto galardão. José Saramago, neste momento, o orgulho de Portugal.
55 Em 1998, o Prémio Nobel faz silenciar, por um momento, a polémica em volta de Saramago.
Na sequência da censura ao Evangelho, o autor tinha partido para Lanzarote, onde vivia com Pilar
del Río, a jornalista com quem casara em 1988. Mas o discurso de aceitação mostrava que ne-
nhuma dessas transformações alteraram o essencial do pensamento de Saramago.
José Saramago  A ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade
60 capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas as-
siste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte
do que ao nosso próprio semelhante.

Nos anos seguintes iam suceder-se as adaptações ao cinema.


As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as crianças,
65 sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas.
Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena.
Em pouco mais de trinta anos, e por múltiplas razões, José Saramago conquistara um lugar
único na literatura mundial.
Miguel Real [Especialista em Cultura Portuguesa]  Antes de mais, um estilo – primeiro; segundo
70 – uma nova abordagem do romance histórico, uma subversão de uma História; terceiro –
temas universais. Teoria do poder em Ensaio sobre a Cegueira, uma nova teoria do sagrado,
humano, extremamente humano em O Evangelho Segundo Jesus Cristo, etc. Uma nova teoria
da Península Ibérica no A Jangada de Pedra, portanto. Uma nova teoria da História portuguesa
em História do Cerco de Lisboa, etc.
75 Pilar del Río  E se os melhores críticos literários do mundo… como Bloom, Harold Bloom, dizem:
“Há alguns escritores que têm uma obra-prima. Há outros que têm duas obras-primas. Oito?
Oito livros impressionantes? Só Saramago.” Se é o Harold Bloom que o diz, não vou ser quem
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o vai contradizer.
Sequência  4. José Saramago Transcrição de registos vídeo 311

Mas o maior sucesso continua a ser o mesmo desde 1982. […]


80 ‘Saramago’ era alcunha de família. Por erro do funcionário do Registo Civil, tornou-se nome
de escritor. Como a planta, o homem foi natural, espontâneo, agreste.
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José Saramago  Eu estou por aquilo que foi dito por Kafka: o romance deve ser uma acha capaz de
romper o mar gelado da nossa consciência.

Certa vez, questionado sobre o pessimismo, respondeu: “Eu não sou pessimista. O mundo é
85 que é péssimo.” Em todo o caso, escreveu com os olhos postos no infinito. […]
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