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Saramago foi tão célebre pela obra literária como pela personalidade controversa. Da aldeia
ribatejana onde nasceu, em 1922, ao convento de Mafra foi uma longa viagem. Filho e neto de
camponeses, faltou-lhe o dinheiro para concluir o liceu. Foi serralheiro, funcionário administra-
tivo, desenhador. O gosto pelos livros ganhou-o numa biblioteca pública, lendo pelas noites den-
5 tro. Em 1947 publicou um romance, mas a Terra do Pecado passou tão despercebida como ele
próprio. Ninguém diria que aquele cidadão anónimo haveria de tornar-se o mais premiado ro-
mancista português. Mas não havia qualquer diferença entre o funcionário discreto de então e o
escritor que Saramago viria a ser.
Pilar del Río Trabalhava e muito e até quase aos seus últimos dias, mas sem dramatismo. Ele
10 nunca dizia: “Oh! Estou cansado…” Não, não, não! Ou: “Preciso de beber, preciso de uma noi-
tada para escrever…” Não, não, não! Ele escrevia como um artesão… Levantava-se… Era como
um camponês, preparava a terra, cultivava, escrevia duas páginas por dia, nunca mais.
Rui Tavares [Historiador] Aliás, eu creio que o Saramago aparece muito no revisor da História do
Cerco de Lisboa. Aquele revisor da História do Cerco de Lisboa, alguém tímido, sossegado, tra-
15 balhador, é muito Saramago, como é também, de certa forma, o funcionário de Todos os
Nomes. Tem qualquer coisa de Saramago no aspeto, como diria, sistemático, trabalhador, es-
tudioso, que ele tem. E, portanto, estes são elementos, às vezes, pouco, pouco notados, pouco
assinalados na obra de Saramago.
No fim dos anos cinquenta, Saramago inicia a aproximação ao destino. Trabalha numa edi-
20 tora, faz traduções, escreve na imprensa. Dezanove anos depois, volta a publicar, desta vez poe-
sia. Em 69 inscreve-se no PC e, na sequência do 25 de Abril, torna-se diretor adjunto do Diário de
Notícias. Torna, então, pública a intenção de fazer do jornal uma ferramenta ao serviço do comu-
nismo e não se inibe de despedir vinte e dois jornalistas que considera contrarrevolucionários.
Quando a 25 de novembro de 75 os sonhos da extrema-esquerda caem por terra, Saramago é
25 demitido. Aos 53 anos, desempregado e com os ideais políticos falidos, toma a decisão radical de
viver da literatura. Em 77, lança Manual de Pintura e Caligrafia com o subtítulo “Ensaio de Ro-
mance”. Em 1980, terminam os testes. Publica Levantado do chão, um romance sobre as gentes
do Alentejo escrito numa forma desconcertante que subverte as regras da pontuação.
Zeferino Coelho [Editor da Caminho] Ficou tudo na expectativa… O que é que vai fazer agora? E
30 fez. Dois anos depois… publicámos o Memorial do Convento. E foi um deslumbramento ainda
maior do que tinha sido e mais generalizado do que tinha sido com o Levantado do chão. […]
OEXP12 DP © Porto Editora
A obra O Evangelho Segundo Jesus Cristo é uma obra que, a meu ver, atacou princípios que
têm a ver com o património religioso dos cristãos, não só da Igreja…
José Saramago Agora já não se diz tanto que, efetivamente, eu não respeito as regras gramati-
Dois anos depois volta a ousar. N’ A Jangada de Pedra faz a Península Ibérica separar-se da
Europa e andar à deriva pelo oceano. No entanto, nenhum livro causaria tanta celeuma como
50 O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Inverter as palavras bíblicas e fazer Cristo pedir aos homens
que perdoem a Deus não saber o que faz fere as consciências mais católicas. […]
Chegou o grande momento para a literatura portuguesa. José Saramago vai receber das mãos do
rei Carlos Gustavo XVI o Prémio Nobel da Literatura de 1998. A primeira vez que a literatura de língua
portuguesa recebe o mais alto galardão. José Saramago, neste momento, o orgulho de Portugal.
55 Em 1998, o Prémio Nobel faz silenciar, por um momento, a polémica em volta de Saramago.
Na sequência da censura ao Evangelho, o autor tinha partido para Lanzarote, onde vivia com Pilar
del Río, a jornalista com quem casara em 1988. Mas o discurso de aceitação mostrava que ne-
nhuma dessas transformações alteraram o essencial do pensamento de Saramago.
José Saramago A ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade
60 capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas as-
siste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte
do que ao nosso próprio semelhante.
o vai contradizer.
Sequência 4. José Saramago Transcrição de registos vídeo 311
José Saramago Eu estou por aquilo que foi dito por Kafka: o romance deve ser uma acha capaz de
romper o mar gelado da nossa consciência.
Certa vez, questionado sobre o pessimismo, respondeu: “Eu não sou pessimista. O mundo é
85 que é péssimo.” Em todo o caso, escreveu com os olhos postos no infinito. […]
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