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Impressão: Ajir Artes Gráficas e Editora

C758 Construindo a igualdade na diversidade : gênero e sexualidade na escola / or-


ganização : Nanci Stancki da Luz, Marília Gomes de Carvalho, Lindamir Salete
Casagrande.— Curitiba : UTFPR, 2009.
286 p. : Il. color. ; 21 cm

Vários autores
Inclui bibliografias
ISBN : 978-85-7014-055-5

1. Sexo – Diferenças (Educação). 2. Papel sexual. 3. Feminismo e educação.


4. Relações de gênero. 5. Feminismo. 6. Papel sexual. I. Luz, Nanci Stancki da
(org.). II. Carvalho, Marília Gomes de. III. Casagrande, Lindamir Salete. II.
Título.

CDD (22. ed.) 306.43


306.7

Printed in Brazil/ Publicado no Brasil


Dezembro de 2009
Curitiba
2009

Editora UTFPR
Sumário

APRESENTAÇÃO 11
Nanci Stancki da Luz
Marília Gomes de Carvalho
Lindamir Salete Casagrande

1 21
GÊNERO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO
Marília Gomes de Carvalho e Cíntia de Souza Batista Tortato

2 33
SEXUALIDADE E GÊNERO NA ESCOLA
Beatriz L. Ferreira e Nanci Stancki da Luz

3 47
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM DESAFIO À
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS
Nanci Stancki da Luz

4 73
QUESTÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: AS
POSSIBILIDADES DA LITERATURA INFANTIL
Cíntia de Souza Batista Tortato

5 91
GÊNERO, EDUCAÇÃO E ARTEFATOS TECNOLÓGICOS:
OS DIFERENTES MEIOS PARA ENSINAR
Solange Ferreira dos Santos e Benedito Guilherme Falcão Farias

6 109
UM OLHAR CRÍTICO PARA OS LIVROS DIDÁTICOS:
UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO
Lindamir Salete Casagrande e Marília Gomes de Carvalho

7 133
CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOB A ÓTICA DE GÊNERO
Maria Aparecida Fleury Costa Spanger, Tânia Rosa F. Cascaes e
Marília Gomes de Carvalho
8 DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E PROFISSÕES
CIENTÍFICAS E TECNOLÓGICAS NO BRASIL
Nanci Stancki da Luz
151

9 171
REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA CIÊNCIA, TECNOLOGIA
E SOCIEDADE, MEDIADAS PELA PUBLICIDADE
Maristela Mitsuko Ono, Luciana Martha Silveira e
Ronaldo de Oliveira Corrêa

10 193
DESAFIOS E AVANÇOS NAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE GÊNERO
Nanci Stancki da Luz

11 209
DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: A
REPRODUÇÃO, A SEXUALIDADE E AS POLÍTICAS
Marlene Tamanini

12 247
HOMOFOBIA E A ESCOLA
Toni Reis

13 261
“O OLHAR NÃO É MAIS O MESMO”: UMA ANÁLISE
SOBRE OS RESULTADOS DE UM CURSO SOBRE
GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA
Lindamir Salete Casagrande, Marília Gomes de Carvalho e
Nanci Stancki da Luz

SOBRE AS AUTORAS E AUTORES 283


nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

APRESENTAÇÃO

Nanci Stancki da Luz


Marília Gomes de Carvalho
Lindamir Salete Casagrande

Este livro é resultado do Projeto “Construindo a igualdade na escola: re-


pensando conceitos e preconceitos de gênero”, realizado durante o ano
de 2008, na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), por inter-
médio do Grupo de Estudos de Relações de Gênero e Tecnologia (GeTec) do
Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE) em parceria com a Secre-
taria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do Ministério da
Educação (Secad/MEC).
O objetivo do projeto era contribuir para a formação de profissionais
de educação de Curitiba e região metropolitana na temática “gênero, sexu-
alidade e diversidade sexual na escola”. Nesse sentido, foram desenvolvidas
várias ações, entre as quais a oferta de cursos de formação continuada, com
duração de 60 horas cada, visando sensibilizar profissionais da educação –
professores e professoras do Ensino Fundamental e Médio, pessoal técnico-
administrativo, inspetoras(es), merendeiras(os), pedagogos, entre outros
– preparando-os(as) para perceber e trabalhar com questões de gênero e
diversidade sexual no ambiente escolar.
O projeto tinha como meta inicial a capacitação de 160 profissionais,
no entanto, devido à enorme demanda, além das 4 turmas previstas inicial-
mente, foram abertas mais vagas e turmas, possibilitando que 328 profissio-
nais da educação participassem desse processo de formação que procurou:

• Oportunizar o acesso a um referencial teórico que discuta con-


ceitos como igualdade de gênero, homofobia, sexismo e diversi-
dade sexual.

11
apresentação

• Provocar reflexões críticas entre os profissionais da educação


a respeito da construção dicotômica de gênero em nossa socie-
dade e suas conseqüências quanto à discriminação e preconcei-
tos.
• Sensibilizar profissionais da educação das escolas-alvo do pro-
jeto para a modificação de estereótipos de gênero que geram
comportamentos discriminatórios.
• Auxiliar docentes na utilização crítica do material didático em
sala de aula quanto aos conteúdos de gênero que provocam a
invisibilidade histórica das mulheres na construção da socieda-
de brasileira, da ciência e da tecnologia; a reprodução dos pa-
drões tradicionais, conservadores e discriminatórios de gênero
que refletem na linguagem escrita e visual.
• Problematizar questões como a violência de gênero, enfati-
zando a violência contra as mulheres, a violência doméstica e
violência contra homossexuais.
• Discutir juntamente com profissionais da educação a definição
de profissões “masculinas” ou “femininas” e o conseqüente dire-
cionamento e/ou enquadramento dos alunos em determinadas
profissões (geralmente de conteúdos técnicos) e das alunas em
profissões de conteúdos voltados às ciências humanas e às ar-
tes.
• Problematizar juntamente com profissionais da educação
comportamentos homofóbicos na sociedade em geral e na es-
cola em particular e suas conseqüências na exclusão de pessoas
que não seguem os padrões hegemônicos de gênero.
• Repensar em parceria com profissionais da educação formas
de inclusão no processo de escolarização daqueles(as) que eva-
dem ou nem ingressam nas escolas por fatores de discriminação
de gênero.
• Contribuir para a reflexão da importância da promoção da
eqüidade de gênero e para a reflexão sobre os direitos sexuais e
reprodutivos de jovens e adolescentes.

12
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

O curso propunha-se a refletir sobre a realidade escolar e sobre


questões que inviabilizam a construção da igualdade na escola, sendo
composto por quatro módulos que abordaram os seguintes temas:

• Módulo 1– Gênero: construção social do masculino e do femini-


no; sexualidade: problematização da heterossexualidade norma-
tiva e diversidade sexual; violência de gênero.
• Módulo 2 – Gênero e diversidade sexual no ambiente escolar:
livros didáticos; espaço escolar, intervalos e datas comemorativas;
currículo explícito e oculto.
• Módulo 3 – Gênero, ciência e tecnologia: gênero e escolha de
uma profissão; as disciplinas escolares; acesso, produção e uso de
tecnologias; gênero e mídia – cinema, imprensa escrita, músicas,
Internet, teatro, publicidade, entre outros.
• Módulo 4 – Eqüidade de gênero e enfrentamento ao sexismo
e homofobia: direitos sexuais e reprodutivos; políticas públicas,
particularmente as educacionais, voltadas para a promoção da
eqüidade de gênero; ações e propostas para o combate do sexis-
mo e homofobia, promoção da eqüidade de gênero e dos direitos
produtivos e reprodutivos.

Além desses quatro módulos, o grupo de participantes desen-


volveu um trabalho final com questões que visavam a refletir sobre a
própria realidade e diagnosticar a presença de estereótipos e violências
de gênero. Valendo-se dessa análise preliminar do ambiente escolar,
foi proposto ao grupo que apresentasse ações no sentido de contribuir
para a promoção da eqüidade de gênero e dos direitos sexuais e repro-
dutivos de jovens e adolescentes.
Buscou-se explorar a experiência vivida pelos(as) participantes,
trabalhando os temas com base na realidade de cada pessoa. A des-
construção de padrões estereotipados de gênero e da heteronormati-
vidade e a reflexão sobre as suas conseqüências – preconceito, discrimi-
nação e outras formas de violência – foi o passo inicial para a discussão
da promoção de uma educação democrática e inclusiva, bem como o
enfrentamento do sexismo, machismo, misoginia, homofobia, lesbofo-
bia e transfobia no ambiente escolar.

13
apresentação

Gênero, enquanto construção social do feminino e do masculi-


no, foi assumido como um elemento das relações sociais e, portanto,
presente em todas as nossas instituições, particularmente, na escola
– ambiente que contribui para a produção/reprodução de padrões e
identidades de gênero e de sexualidade. Nesse sentido, os educadores
foram considerados profissionais de extrema relevância para a cons-
trução da igualdade de gênero. Assim, caberia aos educadores e edu-
cadoras refletir sobre as práticas educacionais, buscando não reforçar
preconceitos, discriminações e violências de gênero, assumindo para
si como um dos objetivos da educação o enfrentamento das inúmeras
formas de violência, a promoção da eqüidade de gênero e o respeito
à diversidade.
Dessa forma, as práticas escolares devem ser repensadas, elimi-
nando-se do ambiente escolar conteúdos discriminatórios, bem como
ações que configurem qualquer tipo de violência, seja física, moral ou
psicológica. É preciso desnaturalizar o determinismo biológico pre-
sente nos padrões dicotômicos de gênero que aprisionam homens e
mulheres em comportamentos e atributos considerados, respectiva-
mente, naturalmente masculinos e femininos. A escola deve se pro-
por a contribuir com o desenvolvimento humano pleno, o que pres-
supõe assumir o desenvolvimento social e, nesse sentido, fazendo-se
necessário respeitar diferenças, mas, sobretudo, construir cidadania e
contribuir para a concretização dos direitos fundamentais de todo ser
humano. Sendo assim, não há espaço na instituição escolar para de-
sigualdades sociais, de gênero ou de caráter étnico-racial, ou, ainda,
para hierarquias de conhecimentos e profissões.
É importante destacar que o espaço escolar pode ser um espaço
de inúmeras contradições, pois pode contribuir para a construção das
desigualdades de gênero, mas também pode se constituir num espaço
de transformação social e de construção da igualdade. Políticas edu-
cacionais, projeto político-pedagógico, currículo escolar, planos de
ensino, planos de aula, cotidiano escolar e práticas escolares podem
contribuir para a transformação das relações de gênero e para a con-
solidação da justiça social. Certamente esse não é um processo rápi-
do, tampouco simples, entretanto, viável, desde que haja disposição e
participação da comunidade escolar em um projeto de emancipação,
autonomia e desenvolvimento de todos e todas.

14
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

Este livro, construído de acordo com os pressupostos expostos


anteriormente é composto por quatro unidades. A primeira discute, en-
tre outras questões, gênero, sexualidade e violência. O artigo “Gênero:
considerações sobre o conceito”, de Marília Gomes de Carvalho e Cíntia
de Souza Batista Tortato, traz uma discussão acerca das diferentes con-
cepções e abordagens do conceito de gênero, enfatizando aquele que
norteará o conteúdo deste livro. Para as autoras, não existem caracterís-
ticas femininas ou masculinas imutáveis, assim como não há como con-
siderar habilidades ou dificuldades próprias de mulheres ou de homens,
pois a construção social do masculino ou do feminino não está marcada
pela natureza, devendo sempre ser entendida no contexto em que se
inserem.
O artigo “Sexualidade e gênero na escola”, de Beatriz L. Ferreira e
Nanci Stancki da Luz, revela o quanto o tema sexualidade é polêmico
e enfrenta resistências no ambiente escolar. A sexualidade quando vista
de forma restrita desconsidera a relação com o corpo, o prazer e o de-
sejo. As autoras defendem que é necessário desconstruir a amálgama
entre sexo (ato sexual) e sexualidade, para que se possa considerar a
sexualidade em uma dimensão ampla, contemplando seus diversos as-
pectos nos processos educacionais.
“Violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direi-
tos humanos”, de Nanci Stancki da Luz, encerra a primeira parte e discu-
te a violência contra a mulher, apontando elementos que contribuem
para a sua construção e reprodução social. Destaca as resistências e con-
quistas da luta feminista na desconstrução da naturalização da violência
contra a mulher e no combate à sua impunidade, contribuindo de forma
significativa para a efetivação dos direitos humanos das mulheres.
A segunda parte desta obra tem como objetivo discutir as rela-
ções de gênero e diversidade no universo escolar e é composta de três
artigos. No primeiro deles – “Questões de gênero e diversidade sexual:
as possibilidades da literatura infantil” – Cíntia de Souza Batista Tortato
apresenta debates sobre questões de gênero e diversidade sexual, usan-
do a literatura infantil como elemento disparador dessas discussões e
contemplando as mais diversas situações que acontecem em uma esco-
la e que podem proporcionar momentos preciosos para a abordagem
das questões de gênero ou de diversidade sexual com as crianças ou
jovens.

15
apresentação

Solange Ferreira dos Santos e Benedito Guilherme Falcão Farias,


em seu artigo “Gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes
meios para ensinar”, destacam que as diferentes formas de ensinar e o
uso dos artefatos tecnológicos disponíveis para isso podem contribuir
para a disseminação, problematização e construção de um novo conhe-
cimento, especialmente, nas questões de gênero e educação.
Lindamir Salete Casagrande e Marília Gomes de Carvalho encer-
ram essa unidade com o artigo “Um olhar crítico para os livros didáti-
cos: uma análise sob a perspectiva de gênero”. As autoras apresentam
reflexões sobre as representações de gênero encontradas em livros di-
dáticos de Matemática, Geografia, Ciências e Português para o Ensino
Fundamental, sendo as ilustrações e os textos dos livros didáticos o foco
das atenções nessa análise. As autoras consideram que ao questionar as
representações estereotipadas nos livros didáticos não estão negando
a sua qualidade e a importância que eles, os livros, assumem no coti-
diano escolar, mas objetivam, sobretudo, alertar para a necessidade de
se manter um olhar crítico sobre representações que podem transmitir
preconceitos e gerar discriminações.
A terceira unidade traz artigos que visam contribuir com a refle-
xão crítica sobre a ciência, tecnologia e gênero. Nesse sentido, o primei-
ro deles, “Ciência e tecnologia sob a ótica de gênero”, das autoras Maria
Aparecida Fleury Costa Spanger, Tânia Rosa F. Cascaes e Marília Gomes
de Carvalho, traz uma revisão teórica sobre a temática ciência, tecnolo-
gia e gênero, destacando e assumindo a construção social da ciência e
da tecnologia que, historicamente, ocorreu com base nas referências do
mundo masculino, contribuindo assim para a invisibilidade da mulher
nessas áreas.
No segundo artigo, “Divisão sexual do trabalho e profissões cien-
tíficas e tecnológicas no Brasil”, Nanci Stancki da Luz, valendo-se de uma
discussão teórica sobre a divisão sexual do trabalho, apresenta uma dis-
cussão sobre profissões que historicamente tiveram uma composição
majoritariamente masculina: as carreiras científicas e tecnológicas, entre
as quais, destaca o Magistério Superior, a Matemática, a Física, a Quími-
ca, a Estatística e a Engenharia/Arquitetura.
Encerrando essa unidade, Maristela Mitsuko Ono, Luciana Martha
Silveira e Ronaldo de Oliveira Corrêa no artigo “As representações do
feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de

16
nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

comunicação”, abarcam discussões sobre representações do feminino


e do masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via mensagens pu-
blicitárias veiculadas pelos meios de comunicação impressos [revistas
semanais, gibis, entre outros].
A última unidade tem como objetivo trazer reflexões sobre eqüi-
dade de gênero, enfrentamento ao sexismo e à homofobia e a promoção
dos direitos sexuais e reprodutivos. Visa ainda apresentar os resultados
parciais dos trabalhos desenvolvidos pelos(as) cursistas. Nessa perspec-
tiva, quatro artigos compõe essa unidade, sendo o primeiro deles o arti-
go de Nanci Stancki da Luz – “Desafios e avanços nas políticas públicas
de gênero” – no qual a autora analisa os conceitos de política pública,
destacando a relevância das políticas de gênero para a construção de
um mundo justo e igualitário. Tais políticas são consideradas importan-
tes aliadas no processo de desconstrução de estereótipos de gênero e
eliminação das discriminações negativas. Por outro lado, contribuem
para que mulheres tenham acesso aos direitos fundamentais e se con-
solide a igualdade e a justiça social.
O artigo “Direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexua-
lidade e as políticas”, de Marlene Tamanini, discute a temática direitos
sexuais e reprodutivos com base na perspectiva dos direitos humanos.
A autora traz uma discussão sobre as desigualdades de gênero e como
elas contribuem para a não concretização dos direitos reprodutivos e
sexuais, enquanto liberdade, direito à assistência, atendimento e infor-
mação, autonomia e escolha.
“Homofobia e a escola”, de Toni Reis, considera que a escola é um
lugar privilegiado para promover a cultura do respeito às diferenças, à
diversidade e da inclusão social, rumo a uma verdadeira democracia em
que todos os cidadãos e cidadãs possam conviver com igualdade e sem
discriminação. Para o autor, no entanto, quando se trata de homosse-
xualidade, o tema ainda é cercado de preconceitos, presentes também
no ambiente escolar, e que podem se transformar em discriminação e
marginalização das pessoas.
Finalizando essa unidade, Lindamir Salete Casagrande, Marília
Gomes de Carvalho e Nanci Stancki da Luz, no artigo “O olhar não é mais
o mesmo: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e
sexualidade na escola”, apresentam uma análise das respostas dos pro-
fissionais de educação sobre questões que buscavam identificar as pos-

17
apresentação

síveis transformações que, por ventura, tivessem ocorrido nos olha-


res dos(as) participantes após o curso. “O olhar não é mais o mesmo”
– frase retirada da fala de uma dupla de professores (um homem e
uma mulher), sobre as transformações em suas formas de enxergar e
perceber as questões de gênero no ambiente escolar e na sociedade
em geral, após a realização do curso, representa simbolicamente o
resultado do trabalho desenvolvido por todas as pessoas que se en-
volveram neste projeto.
Vale destacar que o projeto que originou este material foi pen-
sado e coordenado pelas professoras Dra. Nanci Stancki da Luz, Dra.
Marília Gomes de Carvalho e Ms. Lindamir Salete Casagrande, mas só
foi possível a sua concretização devido à consolidação de diversos
apoios e parcerias, aos quais agradecemos imensamente por contri-
buírem na construção de uma educação com eqüidade de gênero e
respeito à diversidade. Nesse sentido, agradecemos:
À Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversi-
dade do Ministério da Educação (Secad/MEC), por apoiar propostas
que contribuem para a construção da eqüidade de gênero no am-
biente escolar.
À Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) que,
em seus cem anos de existência, sempre contou com pessoas dispos-
tas a contribuir para a educação do país e, nesse momento particular,
de implementação do projeto, disponibilizou seu espaço físico, para
a realização do curso, e pessoas, que contribuíram para o bom desen-
volvimento das atividades.
Ao Programa de Pós-graduação em Tecnologia (PPGTE), por
entender a importância dos estudos de gênero e colaborar para que
essas discussões sejam difundidas na sociedade.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Relações de Gênero
e Tecnologia (GeTec), vinculado ao PPGTE, por se consolidar como
um espaço para estudos, desenvolvimento de pesquisas e de proje-
tos de extensão à comunidade, o que possibilitou discutir, elaborar e
executar o projeto “Construindo a igualdade na escola: repensando
conceitos e preconceitos de gênero”, no âmbito desse grupo de pes-
quisas.
Às autoras e aos autores deste livro, aos docentes do curso e
demais colaboradores e colaboradores(as) do projeto.

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nanci stancki da luz, marília gomes de carvalho e lindamir salete casagrande

Às pessoas que participaram do curso, pelo enriquecimento dos


debates, pela partilha de suas experiências e conhecimentos e pela de-
monstração de vontade e potencial de transformação da realidade edu-
cacional brasileira.
A todos e todas que algum dia virão a ler este material, pela opor-
tunidade de podermos apresentar reflexões sobre a realidade escolar e
discutir propostas de uma escola sem preconceitos e discriminações.
Desejamos que os ideais que incorporam este material sejam as-
sumidos a cada dia por mais educadores e educadoras, para que a esco-
la possa contribuir para a concretização do princípio da igualdade e para
a construção de um mundo com justiça social.

19
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

1
GÊNERO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO

Marília Gomes de Carvalho


Cintia Souza Batista Tortato

Introdução
Gênero é uma palavra que necessariamente pede uma explicação a res-
peito de seu significado. Serve para classificar fenômenos os mais di-
versos tais como gêneros de literatura, de cinema, de música, dos seres
vivos na escala biológica, enfim é um termo classificatório.
No contexto deste capítulo gênero será utilizado como uma pala-
vra que serve para classificar as pessoas na sociedade, de acordo com o
sexo que possuem, ou seja, se são do sexo feminino e/ou do sexo mas-
culino. No entanto, a construção social do gênero é muito mais comple-
xa do que simplesmente uma classificação das pessoas em mulheres ou
homens. No campo das Ciências Sociais a complexidade é ainda maior
porque depende das diferentes correntes teóricas que interpretam o
gênero (mulher/homem) de formas diversas, ora considerando-o dire-
tamente relacionado ao sexo, ou seja sexo feminino = gênero feminino
e sexo masculino = gênero masculino, ora desvinculando o gênero do
sexo, sem que haja uma relação direta entre estes dois fenômenos. Para
outras correntes há dois sexos, porém múltiplos gêneros
O termo gênero possui portanto muitos significados, de acordo
com as diferentes abordagens que existem sobre o fenômeno da cons-
trução social do masculino e do feminino pela sociedade e pela cultura.
O conceito de gênero apresenta, diferentes concepções, diferentes fo-

21
gênero: considerações sobre o conceito

cos de análise conforme as bases teóricas que lhe servem de susten-


tação. Por esta razão, o principal objetivo deste capítulo é trazer uma
discussão sobre estas diversas abordagens, enfatizando o conceito que
norteia o conteúdo do livro que trata de várias dimensões da vida social,
todas elas perpassadas pelo gênero.
Nem sempre este foi um termo utilizado pelos cientistas da socie-
dade que até recentemente (anos 60) não se preocupavam com a cons-
trução social de mulheres e homens. Na verdade, no mundo acadêmico,
o termo gênero surgiu no momento em que pesquisadoras feministas
buscavam, através dos chamados estudos sobre mulheres, desnaturali-
zar a condição da mulher na sociedade (SIMIÃO, 2005).
Foram os estudos feministas os que inicialmente tinham a inten-
ção de desnaturalizar as condições das mulheres na sociedade, descons-
truir a idéia de que tudo aquilo que se refere à mulher está na sua na-
tureza feminina, ou seja, estes estudos problematizaram a idéia de que
determinadas características são da essência feminina e outras são da
essência masculina. Nessa linha de pensamento fica entendido como
natural e da sua essência que a mulher seja mãe, natural e da sua essên-
cia que seja delicada, sensível, obediente, amorosa, afetiva, etc, como
se tais características estivessem na carga genética, na biologia. Estas
características eram desvalorizadas pela sociedade ocidental de merca-
do, onde a competitividade e agressividade (características vistas como
naturais e essencialmente masculinas) eram mais valorizadas. Assim,
as desigualdades entre homens e mulheres foram interpretadas como
naturais. Era interpretado como algo que não poderia ser modificado.
Estava na carga genética dos homens, e na sua essência, serem seres
superiores e, por outro lado, estava na carga genética das mulheres, por-
tanto na sua essência, serem inferiores.
Segundo Silva (2007, p. 253):

No século XIX surgiram, particularmente no campo da antropologia física,


teorias que explicaram a inferioridade feminina com base na biologia. Este
campo explicativo tomou muita força na sociedade moderna pois teria o
“aval” da ciência. Contrapondo-se a esta perspectiva, o movimento femi-
nista problematizou e reconstruiu argumentos em torno da determinação
biológica das hierarquias entre homens e mulheres, colocando em xeque
as concepções relativas ao feminino e masculino na sociedade ocidental.

22
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

Para Pedro (2005, p. 78):

O uso da palavra “gênero”, como já dissemos, tem uma história que é tribu-
tária de movimentos sociais de mulheres, feministas, gays e lésbicas. Tem
uma trajetória que acompanha a luta por direitos civis, direitos humanos,
enfim, igualdade e respeito.

A naturalização das características femininas e masculinas des-


considera que tanto mulheres como homens as adquirem e aprendem
na vida social, (em nossa sociedade, hoje ainda antes do nascimento)
através das expectativas criadas pelos pais e por todo o meio social, tão
logo sabem o sexo do bebê que está para nascer. Essas expectativas,
para a maioria das pessoas, traduzidas nas cores e brinquedos dos en-
xovais, na decoração dos quartos, na escolha dos acessórios e até na
forma como a mãe se comunica com o bebê em seu ventre, já carregam
as formas de entender o que é ser homem e o que é ser mulher e conse-
qüentemente o que será ensinado ao novo ser.
Para Louro (1997, p. 21):

O argumento de que homens e mulheres são biologicamente distintos e


que a relação entre ambos decorre dessa distinção, que é complementar e
na qual cada um deve desempenhar um papel determinado secularmente,
acaba por ter o caráter de argumento final, irrecorrível. Seja no âmbito do
senso comum, seja revestido por uma linguagem “científica”, a distinção se-
xual serve para compreender - e justificar – a desigualdade social.

A relação direta entre as desigualdades sociais e a biologia, ex-


plicando as diferenças como uma contingência da natureza, ainda é
freqüente nas falas e atitudes das pessoas. Nos dias de hoje, ainda são
comuns matérias de jornais ou revistas, enfocando as diferenças biológi-
cas entre homens e mulheres, tamanho ou peso do cérebro, número de
neurônios, capacidade intelectual para números ou habilidade natural
para determinadas aprendizagens, como tentativas de “provar cientifi-
camente o porquê das desigualdades entre o masculino e o feminino”
(AUAD, 2006, p. 14).
Citeli (2001, p. 132) complementa:

...desnaturalizar hierarquias de poder baseadas em diferenças de sexo tem


sido um dos eixos centrais dos estudos de gênero. Estabelecer a distinção
entre os componentes — natural/biológico em relação a sexo e social/

23
gênero: considerações sobre o conceito

cultural em relação a gênero — foi, e continua sendo,um recurso utilizado


pelos estudos de gênero para destacar essencialismos de toda ordem que
há séculos sustentam argumentos biologizantes para desqualificar as mu-
lheres, corporal, intelectual e moralmente.

Esta postura leva à posição de que é preciso distinguir sexo de gê-


nero, pois não são a mesma coisa e devem ser vistos como fenômenos
que nem sempre têm uma relação direta e determinista.

Distinção entre sexo e gênero


“Sexo” é um dado biológico e “gênero”, uma construção cultural. É pre-
ciso descolar o sexo do gênero para entender as questões culturais que
envolvem os comportamentos e características femininas e masculinas
nas mais diferentes sociedades e culturas. Considerar o gênero como
uma contingência do sexo biológico é uma postura reducionista, pois
torna limitado o desenvolvimento total das pessoas, direcionando-as
aos ditames da natureza, levando a interpretações universais que não
cabem nos fatos próprios da cultura. Para Diniz; Vasconcelos e Miranda
(2004, p. 27): “Diferentemente do sexo, o gênero é uma produção social,
aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo de
gerações.”
Utilizando-nos da referência de Costa, 1994, que faz uma revisão
de literatura sobre as formas com que o conceito de gênero foi enten-
dido nos meios acadêmicos, podemos dizer que, diante da dificuldade
de categorizar as questões de gênero com base nas diferenças sexuais, a
autora explica que o meio acadêmico foi trilhando outros caminhos para
construção do conceito de gênero. Buscando outras interpretações, tais
como: “... papéis dicotomizados, gênero como uma variável psicológi-
ca, como sistemas culturais e como relacional” (COSTA, 1994, p. 147),
foi possível compreender que gênero e sexo não possuem uma relação
unívoca, mas que a complexidade do fenômeno é bem maior.

Gênero e as características binárias


O gênero visto como a construção e a prática de papéis dicotomizados
considera que as representações de masculino e feminino são aprendi-
das através do desempenho de papéis determinados socialmente para
homens e para, com características contrárias e opostas. Esta visão di-

24
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

cotômica e binária da questão de gênero deixa de fora da análise as re-


lações de gênero e poder, criando estereótipos de papéis de homem e
de mulher. Essa visão também não explica como os papéis são definidos
e quem os determina, ocultando a hierarquização e desigualdade en-
tre papéis masculinos e femininos que existe na sociedade. De maneira
geral as dicotomias entre o masculino e feminino seguem um raciocí-
nio baseado em construções sociais de uma sociedade historicamente
comandada e organizada sob a ótica masculina, onde “(...) a sociedade
impõe certos papéis para os homens e outros para as mulheres e que
vão determinar a forma como homens e mulheres se vêem e como se
relacionam uns com os outros” (SIMIÃO, 2005, p.10)
Gênero, então, pode referir-se à apreensão da diferença entre os
sexos, apresentada de forma categórica, ou seja, a sociedade cria cate-
gorias de homens e de mulheres para as diferenças de sexo. Essa cate-
gorização acontece tanto para diferenças tidas como inatas como para
aquelas tidas como construídas socialmente.
Algumas das características baseadas em estereótipos atribuídos
ao masculino e ao feminino estão representadas sinteticamente pela ta-
bela abaixo:

MASCULINO FEMININO
Objetividade Senso Comum
Universalidade Localidade
Racionalidade Sensibilidade
Neutralidade Emoção
Dominação Passividade
Cérebro Coração
Controle Descontrole
Conhecimento Natureza
Civilizado Primitivo
Público Privado

A dualidade, além de limitar as características de cada gênero em


seu próprio universo, torna invisível a interdependência entre o par. É

25
gênero: considerações sobre o conceito

como se, a partir do nascimento, de acordo com o sexo biológico, mu-


lheres e homens estivessem engessados em um rol de características
destinadas, definitivas e previstas para cada sexo.
Os estudos de gênero trazem à discussão o fato de que as carac-
terísticas masculinas e femininas são entendidas como resultado de
aprendizagem. Homens e mulheres aprendem a assumir determina-
dos comportamentos, atitudes, características e sentimentos, de acor-
do suas experiências de vida e com o contexto onde vivem. A dicoto-
mia e a oposição entre as características de homens e de mulheres é,
portanto inadequada, pois é perfeitamente possível que as mulheres
assumam características de objetividade e racionalidade em certas
situações da vida, que assim o exigem, e, em outras situações sejam
amorosas e afetivas. Por outro lado, homens podem ser emotivos, sen-
síveis e afetivos sem que com isto, sejam considerados mulheres. Essa
aprendizagem dá aos seres humanos a possibilidade de transitarem
entre as características mais comuns de cada gênero, sem que se confi-
gure em um problema ou uma inadequação, do ponto de vista social.

Gênero como uma variável psicológica


Considerar o gênero como uma variável psicológica foi a opção de
alguns pesquisadores ligados à área da psicologia que “optaram por
conceituar gênero como uma orientação ou força da personalidade”
(COSTA, 1994, p. 150). Com base em padrões de comportamento, ou
“jeitos de ser” essa visão acaba por reforçar as diferenças entre o que é
considerado feminino ou masculino e assim mantém as diferenças que
seriam problematizadas (SIMIÃO, 2005, p. 11).
Esta percepção do gênero mantém a visão binária, pois existem
comportamentos que são considerados mais próprios de mulheres e
outros, geralmente o seu oposto, para os homens. Não altera, portan-
do a dicotomia.

Gênero como Tradução de Sistemas Culturais


Essa perspectiva entende o gênero como dois sistemas culturais distin-
tos. De acordo com a perspectiva dicotômica já na infância, meninos e
meninas são educados para agir e se comunicar de forma diferencia-
da. A eles são ensinados direitos e deveres diferentes, criando assim

26
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

as subculturas de gênero que se caracterizam por crenças, padrões de


sociabilidade e maneiras de pensar opostas e divergentes e, quando
tentam se comunicar entre si, geralmente são mal sucedidos (COSTA,
1994).
Essa perspectiva vê as subculturas de gênero como sendo ho-
mogêneas, como se todas as mulheres fossem iguais entre si, assim
como todos os homens possuem as mesmas maneiras de ser, não le-
vando em consideração diferenças de classe, raça, etnia, idade etc

Gênero como Relacional


Para Costa (1994) o ponto de partida para a compreensão das ques-
tões de gênero numa visão relacional “não é o indivíduo, nem seus
papéis, mas o sistema social de relacionamentos dentro dos quais os
interlocutores se situam” (COSTA, 1994, p.158). A forma relacional de
entender as questões de gênero, como o nome sugere, leva em consi-
deração uma série de relações que circundam a questão, abandonan-
do a visão dicotômica de gênero e da divisão de papéis, onde não se
reconhece “uma essência masculina ou feminina, de caráter abstrato e
universal (...)” (MORAES, 1998, p.100). Na visão relacional, o masculino
e o feminino não são dois mundos à parte, as características podem va-
riar, é a concepção de múltiplas masculinidades e feminilidades onde
se privilegia a pluralidade.
Segundo Louro (1997, p.22):

O conceito passa a ser usado, então, com um forte apelo relacional – já


que é no âmbito das relações sociais que se constroem os gêneros. Deste
modo, ainda que os estudos continuem priorizando as análises sobre as
mulheres, eles estarão agora, de forma muito mais explícita, referindo-se
também aos homens.

A visão relacional de gênero representa um avanço, pois leva em


conta o contexto em que os indivíduos estão inseridos, as relações de
poder, as crenças, as etnias, “o conceito passa a exigir que se pense de
modo plural (...)” (LOURO, 1997, p. 23). Desta forma chama-se atenção
para o fato de que não importa negar as diferenças, interessa afirmar
que as diferenças podem ser enfatizadas, negadas, interpretadas, es-
tudadas, diminuídas ou atribuídas a diferentes fatores de acordo com
as circunstâncias.

27
gênero: considerações sobre o conceito

Considera-se, neste trabalho, o gênero como um sistema de sig-


nificados atribuídos ao masculino e ao feminino e quando se fala em
significados se fala em cultura no sentido antropológico. Daí a con-
sideração de que muito do que diz respeito a gênero e suas constru-
ções sociais vêm da cultura e não da biologia. É a partir da cultura que
determinados significados são imputados aos objetos, às atitudes, às
crenças, aos costumes e aos comportamentos, é também a partir da
cultura que são construídos os significados atribuídos ao masculino e
ao feminino.
Para Mariano (2008, p. 355):

Gênero, como categoria analítica elaborada nos estudos feministas, tem a


função de colocar luz sobre as diferentes posições ocupadas por homens
e mulheres nos diversos espaços sociais, dando destaque ao modo como
as diferenças construídas socialmente resultam em critérios de distribui-
ção de poder, portanto, em como se constroem as relações de subordi-
nação.

Assim, o gênero também é considerado como constitutivo da


vida social, está presente em todos os aspectos da vida social e assume
conteúdos específicos em contextos particulares. Scott, uma das prin-
cipais pesquisadoras da questão em nível internacional, afirma que “o
gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos” e “uma forma primária de dar
significado às relações de poder” (SCOTT, 1995, p.86). Em determina-
das culturas, por exemplo, pode ser observado como uma prática mais
comum determinados tipos de trabalho serem executados por mulhe-
res enquanto em outras , trabalhos semelhantes podem ser realizados
por homens. São questões que podem mudar de sociedade para so-
ciedade, confirmando que os papéis de gênero desempenhados por
homens e mulheres são construções sociais inseridas em certa cultura
e seus significados resultam dessa relação.
A questão a ser destacada não é o fato de existirem trabalhos
ou ações realizados mais comumente por homens ou por mulheres. O
que se questiona é a hierarquização dessas ações e desses trabalhos,
colocando os homens e as mulheres que os realizam em posições so-
ciais desiguais, de dominação e subordinação.

28
marília gomes de carvalho e cíntia de souza batista tortato

Conseqüências do uso da noção de gênero


Ao abordar a questão de gênero como construção social passa-se a
desconfiar dos dualismos universais, dualismos que colocam as carac-
terísticas de homens e mulheres como fixas, diferentes e muitas vezes
opostas, e ainda pretendem universalizar essas características como se
as mulheres fossem todas iguais em toda parte do mundo ou até den-
tro uma mesma sociedade, criando essencialismos universais tanto para
elas, como para os homens.
A partir da noção de gênero assumida neste trabalho, as dife-
renças não são tomadas como inquestionáveis, não há uma predispo-
sição para esse ou aquele comportamento ou características com base
no sexo das pessoas. Não há características restritas ao feminino ou ao
masculino, não há como considerar habilidades ou dificuldades pró-
prias de mulheres ou de homens, as características são construídas ao
longo da experiência vivida, independente do sexo. As diferenças tidas
como inatas ou essenciais também passam a ser questionadas a partir
desta noção de gênero, uma vez que a questão da construção social não
embasa a idéia de que as diferenças estejam demarcadas pela natureza.
Nesse sentido a célebre frase de Simone de Beauvior que diz que nin-
guém nasce mulher, mas torna-se mulher ilustra adequadamente essa
idéia.
Toda e qualquer diferença deve ser entendida contextualmente.
Assim, as diferenças intra-gêneros, aquelas que se referem ao um mes-
mo gênero e as diferenças inter-gêneros, referindo-se a diferentes gêne-
ros precisam ser consideradas e entendidas em seus próprios contextos,
de modo a não cair em outros determinismos e outras desigualdades.
Perpassando a questão de gênero é preciso considerar também as ques-
tões de etnia, classe social e outras diferenças sociais.
Ao limitar a conceituação de gênero nas diferenças sexuais es-
tamos deixando à margem todo o contexto sócio-histórico-cultural em
que os indivíduos estão inseridos.
Na educação das crianças, o esforço em acalmar os ímpetos das
meninas, comumente percebido nas escolas desde a educação infantil,
onde a menina é educada para conter-se, controlar-se, sentar direito, fa-
lar baixo, ser delicada, e comportar-se como uma menina. Na educação
dos meninos já se observa o contrário, eles são incentivados desde cedo

29
gênero: considerações sobre o conceito

a terem iniciativa, serem mais agressivos, colocarem suas opiniões e se


expandirem muito mais. Mesmo na escola, faz parte das expectativas
das professoras desde as séries iniciais, que os meninos sejam mais ati-
vos e descontrolados em termos de comportamento do que as meninas.
Quando acontece o inesperado é que surgem os problemas mais sérios,
decorrentes das visões estereotipadas e preconceituosas de gênero.
Na família, desde que a criança nasce essa forma de ensinar o
controle do comportamento da menina e uma maior tolerância ou até
incentivo quanto à falta de controle do comportamento dos meninos é
uma observação muito comum em nossa sociedade. O que mais tarde
vai ser evidenciado na escola já vem desde a vida em família, nas formas
diferenciadas de educar meninos e meninas.
1 Inúmeras autoras que interpretaram o gênero sob diferentes óticas podem ser citadas.
Dentre elas: Rosaldo e Lamphere (1979);, Chodorow (1979); Butler (2003); Nicholson (2000);
Strathern (2006); Scott (1995); dentre as brasileiras Heilborn (1992); Grossi (2006); Corrêa
(2001); Piscitelli (1997); Louro (1997); Bruschini (1994); Costa (1994); Citeli (2001); dentre ou-
tras.

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32
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

2
SEXUALIDADE E GÊNERO NA ESCOLA

Beatriz Maria Megias Ligmanovski Ferreria


Nanci Stancki da Luz

Introdução
A sexualidade envolve inúmeros aspectos pessoais – histórias de
vida, crenças, valores, diversidade, pluralidade e sentimentos – e
também sociais, políticos, culturais e econômicos. Tratar o tema
nem sempre é fácil, enfrenta resistências, particularmente quando
se refere à sua inclusão no currículo escolar. A escola, que cotidia-
namente produz e reproduz modelos de sexualidade, nem sempre
consegue explorar toda sua potencialidade e dimensão.
A partir da década de 1980 a escola passa a apresentar preo-
cupações com a AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). A
falta de informações a respeito dessa doença, o crescimento no nú-
mero de contaminações e a associação com práticas sexuais revelou
a necessidade de discutir a sexualidade, quebrando resistências. A
inserção do tema, entretanto, ocorreu de forma bastante limitada e
com ênfase na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
O tema sexualidade revela-se polêmico, envolvendo tabus,
medos, questões religiosas, morais e éticas – o que dificulta a busca
de consensos de como a educação formal deveria abordá-lo. Essa
dificuldade muito se deve ao fato de que a sexualidade é vista de
forma restrita, associada ao ato sexual, desconsiderando a relação
com o corpo, o prazer e o desejo. Sexualidade não é sinônimo de
sexo, é muito mais que isso: é energia que possibilita encontros,
trocas e experiências; influencia pensamentos, sentimentos, ações
e interações e, portanto, tem a ver com a saúde física e mental do
ser humano.

33
sexualidade e gênero na escola

De forma geral, fala-se muito em sexo e pouco em sexualidade.


O sexo chega a ser banalizado em produções culturais – programas
de TV e rádio, músicas, revistas – que constantemente apresentam
o corpo como objeto de consumo. O erotismo, a nudez e cenas de
sexo são utilizadas cotidianamente para vender produtos ou ganhar
pontos numa verdadeira guerra de audiência e disputa de leitores e
leitoras.
Para Abreu (1996) a sexualidade – massivamente presente
em nossa cultura – quase sempre se sujeita a limitações. Formas de
humor, representações da mulher, roupas, intenções eróticas explí-
citas na publicidade apontam obsessivamente em direção a práticas
sexuais num contexto em que o modelo de mercado/consumo ab-
sorve uma “nova moral”, e a representação transgressiva da sexuali-
dade ganha formatos e padrões que a transforma em mercadoria.
Se por um lado, o sexo é transformado em “mercadoria” que
necessariamente deve ser massificada e “consumida” sem qualquer
critério ético e moral, por outro, assistimos a um processo de re-
sistência conservadora na qual se reforça a idéia de algo sujo, feio,
proibido ou pecaminoso, e cuja “purificação” ocorreria por meio de
relações “estáveis” e heterossexuais.
É necessário desconstruir a amálgama entre sexo (ato sexu-
al) e sexualidade, para que se possa considerar a sexualidade em
uma dimensão ampla, contemplando seus diversos aspectos, e que,
por sua relevância, receba atenção necessária nos processos edu-
cacionais. A liberação sexual total e irrestrita ou a repressão geral
parecem ser modelos que não contribuem para que as pessoas se
cuidem, respeitem a si próprias, mantenham sua auto-estima e vi-
vam sua sexualidade como um direito que, para se efetivar, também
exige responsabilidade.
Este texto apresenta parte das reflexões sobre gênero e sexua-
lidade do Módulo I – Gênero e Sexualidade – do curso “Construindo
a igualdade na escola: repensando conceitos e preconceitos de gê-
nero”, no qual participaram 328 pessoas distribuídas em 06 turmas.
Dessa forma, consiste num trabalho coletivo, pensado inicialmente
pelas docentes do módulo – Nanci Stancki da Luz e Beatriz Maria
Megias Ligmanovski Ferreria – mas que teve colaboração valiosa de
todas as pessoas que participaram do curso.

34
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

Sexualidade e gênero: conceitos em interação


Abramovay (2004) define sexualidade como uma das dimensões do ser
humano que envolve gênero, identidade sexual, orientação sexual, ero-
tismo, envolvimento emocional, amor e reprodução. É experimentada
ou expressa em pensamentos, fantasias, desejos, crenças, atitudes, va-
lores, atividades, práticas, papéis e relacionamentos. Os componentes
socioculturais, dessa forma, revelam-se críticos para essa conceituação,
que se refere tanto às capacidades reprodutivas quanto à questão do
prazer.
A sexualidade é algo complexo e não pode ser separada dos as-
pectos social, político, cultural e econômico, tampouco associada ape-
nas a determinadas fases da vida humana. Ela está presente desde a
concepção até a morte. Quando ainda bebês, a sexualidade pode ser
percebida no ato da amamentação, nos brinquedos, nas brincadeiras,
nas roupas, no toque, no conhecimento do próprio corpo, no contato
físico com a mãe ou pai, gerando sensação de bem-estar.
Na puberdade ou na adolescência, as sensações de prazer são, em
grande medida, voltadas para a região genital, por conta de uma maior
produção de hormônios. É uma época de grandes transformações – fí-
sicas, emocionais, culturais e sociais. As roupas, os relacionamentos e a
masturbação são formas de manifestação da sexualidade desse perío-
do. Na fase adulta, a sexualidade se expressa nas relações afetivas, nos
relacionamentos sexuais, no casamento, no amor, na opção ou não de
procriar. E, na terceira idade – não impeditiva para a vivência da sexu-
alidade – ela também se expressa nas relações afetivas e sexuais e na
relação com o próprio corpo.
Vale destacar que não existe padrão ou uma relação biunívoca
entre faixa etária e forma de vivência da sexualidade, pois ela difere de
pessoa para pessoa. Entretanto algo é constante: sexualidade está sem-
pre presente, pois, é a própria vida.
Diversas áreas – Medicina, Psicologia, Psiquiatria, Biologia, Filoso-
fia, Sociologia – buscaram explicar, com base em suas perspectivas, a
sexualidade humana. Autores (Aries, 1981; Duarte, 1996; Giddens, 1992)
apontam que, no final do século XIX, o conceito de sexualidade foi focado
na individualidade e como parte de um projeto de sociedade capitalista.
Dumont (1993) apud Heilborn (1999) argumenta que a individualidade,

35
sexualidade e gênero na escola

por um lado, possibilitou a construção de um sujeito político, livre, por-


tador de direitos de cidadania e, por outro, erigiu a subjetividade como
tema central para a constituição da identidade. Nesse período a sexu-
alidade desperta diferentes formas de saber e buscam problematizar
um “novo individuo”, dando espaço para o surgimento de movimentos
como o do médico-higienista, no qual o corpo é um objeto de estudo e
intervenção. Nesta última perspectiva, diferentes áreas do saber busca-
ram explicar o corpo, particularmente o das mulheres. Estudos de Freud
se destacaram ao relacionar comportamentos à subjetividade, possibili-
tando a organização e o controle dos corpos (FOUCAULT, 1984).
Alguns eventos impulsionaram estudos a respeito da sexualida-
de, entre os quais destacamos:

• o desenvolvimento de métodos contraceptivos, rompendo a


associação entre o exercício da sexualidade e a reprodução da es-
pécie;
• o surgimento de novas reflexões derivadas dos movimentos so-
ciais organizados e de estudos advindos da academia.

A ação dos movimentos sociais, com destaque para o feminista e


o de gays e lésbicas, contribui para o avanço significativo dos estudos
nessa área. A emergência dos estudos de gênero deu visibilidade à com-
plexidade da sexualidade, explicitando as dimensões sociais e políticas
de um tema tratado mais no campo biológico. A relação entre sexuali-
dade, gênero, saúde e cidadania possibilitou o surgimento de discus-
sões sobre os direitos reprodutivos e direitos sexuais, contribuindo para
a construção dos direitos individuais e coletivos.
A forma como a sexualidade é percebida e vivida sofre interfe-
rência de uma conjunção de fatores, destacando as relações de poder e,
particularmente, as de gênero. Essas, tradicionalmente, trazem em seu
âmago construções de masculino e de feminino nas quais a sexualidade
é vista, ensinada e controlada de formas distintas quando se trata de
homens e mulheres.
Gênero é uma categoria que ajuda a entender o processo de
construção social do masculino e do feminino, recolocando o debate no
campo social:

36
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

[...] pois é nele que se constroem e se reproduzem as relações (desiguais)


entre os sujeitos. As justificativas para as desigualdades precisariam ser
buscadas não nas diferenças biológicas (se é que mesmo essas podem ser
compreendidas fora de sua constituição social), mas sim nos arranjos so-
ciais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas
formas de representação (LOURO, 1997:22).

Adotar essa perspectiva de análise para gênero e sexualidade


permite entender que a sexualidade, assim como o que é percebi-
do como masculino e feminino, está associada a contextos históri-
cos, culturais, sociais e econômicos específicos que participam dessa
construção.
Nesse sentido, o espaço escolar é um espaço relevante e que
produz, reproduz, reafirma, desconstrói e legitima imagens e repre-
sentações de gênero e sexualidade. Esse espaço é, no entanto, con-
traditório, pois, assim como pode reproduzir, pode também transfor-
mar.
Para Freire (2003) educar é construir, libertar homens e mulhe-
res do determinismo, passando a reconhecer o seu papel na história,
considerando a sua identidade cultural na sua dimensão individual e
coletiva. Sem respeitar essa identidade, sem autonomia ou sem levar
em conta as experiências vividas, o processo educativo será inoperan-
te e constituirá somente um conjunto de meras palavras, despidas de
significação real.
A escola, dessa forma, pode reproduzir papéis de gênero e
modelos de sexualidade que oprimem, mas que também podem
construir relações que libertem e nas quais a dignidade humana e a
igualdade de direitos poderão ser princípios norteadores. A legisla-
ção brasileira traz essa perspectiva, prevê a igualdade de direitos e
deveres entre homens e mulheres e estabelece entre os objetivos da
República Federativa a promoção do bem de todas as pessoas, sem
preconceitos ou qualquer outra forma de discriminação. A concreti-
zação desse objetivo depende de reflexões sobre gênero e sexualida-
de, para que essas categorias deixem de ser utilizadas para classificar,
discriminar e excluir e contribuam para a criação de novas formas de
abordagem que desconstrua preconceitos e discriminações – ativida-
des que pode ser assumida pela escola.

37
sexualidade e gênero na escola

Sexualidade e gênero na escola


A instituição escolar pode e deve contribuir para uma educação cida-
dã e libertadora que contemple a dimensão sexual, a diversidade, os
direitos humanos e a multiculturalidade. Todavia, para que isso ocorra
é necessário a implementação de novas praticas pedagógicas.
A sexualidade e o gênero – em constante construção – fazem
parte das pessoas que compõe a comunidade escolar. Mesmo que a
educação não assuma formalmente esse debate, ele está permeando
as relações entre docentes e discentes. Para Louro (2007), a sexuali-
dade não é apenas uma questão pessoal, mas social e política, sendo
construída ao longo de toda uma vida, de muitos modos, por todos os
sujeitos, particularmente, os envolvidos no processo educacional.
Se é papel da escola tratar da sexualidade, como essa deve ser
abordada? Docentes se sentem preparados para isso? Quais as dificul-
dades e obstáculos que estariam impedindo a inserção da temática
“gênero e sexualidade” na escola?
Relatos dos participantes do curso “Gênero e Sexualidade” con-
firmam a dificuldade em se trabalhar a temática sexualidade e gêne-
ro:

Existe dificuldade para se trabalhar o assunto sexualidade em sala de


aula, por conta do preconceito, por falta de preparo e informação dos
professores, questões religiosas, construção social. Não existe prepara-
ção, cursos na academia sobre o tema. A sociedade é formada por insti-
tuições que têm seus princípios construídos historicamente, que tendem
a transformar a sexualidade em tabu. (PARTICIPANTE 1)

Os participantes do curso apontaram dois fatores relevantes e


que dificultam o debate do tema:

a) resistência familiar – pais e mães rejeitam a idéia de que seus


filhos e filhas tenham informações a respeito, temendo que a
sexualidade seja estimulada;
b) professores não se sentem preparados, tanto para enfrentar
as resistências ao tema quanto para abordá-lo, que acaba restri-
to a docentes da área Biológica e, por conseqüência, também
focado em aspectos biológicos.

38
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

No que se refere à tolerância com a diversidade, a fala da Partici-


pante 2 expressa um sentimento comum:

Não [a escola não é tolerante]. É preciso enfrentar o sexismo, o machismo, a


homofobia e racismo nas escolas, a partir da aquisição de conhecimentos,
mudanças de posturas e da luta por políticas publicas educacionais que
apóiem o trabalho pedagógico. (PARTICIPANTE 2)

Para reverter a ausência de discussão sistematizada a respeito da


sexualidade, bem como o tratamento preconceituoso que é dado ao
tema, o protagonista dessa mudança – a professora ou professor – pre-
cisa ter domínio sobre o assunto, refletir e problematizar essa questão,
assumindo a importância desse debate para a formação de gerações
futuras, bem como a relevância de uma educação calcada em valores
humanos e no respeito aos direitos individuais e coletivos, eliminando
qualquer tipo de discriminação do ambiente escolar.
Para Whitaker (1989), o fato de educadores e educadoras não do-
minarem a problemática de gênero contribui para a continuidade de
velhas crenças impregnadas de ideologias desvalorizadoras do papel da
mulher na “história”, o que se encontra nos currículos ou na forma como
esses são apresentados, trazendo uma visão masculina do universo.
Mais do que rever currículo escolares, há que se repensar na for-
mação docente e enfrentar o preconceito e as violências de gênero que,
muitas vezes, os próprios professores enfrentam no dia-a-dia de traba-
lho. Urgente também repensar o masculino e o feminino frente a uma
realidade social que não comporta mais modelos duais e discriminató-
rios. A realidade tem exigido posturas educacionais abertas e que per-
mitam o pleno desenvolvimento humano. Conforme artigo da UNICEF
(1999), se a educação das meninas e adolescentes tiver como parâmetro
apenas a maternidade e o casamento, dificilmente, na fase adulta, elas
emitirão suas opiniões na sociedade ou mesmo concorrerão a um cargo
político, pois, tenderão a assimilar, por meio da socialização, que essas
são ações para os homens.
Estereótipos e preconceitos marcam a educação. A escola repro-
duz muito do que a sociedade tem esperado de comportamentos mas-
culinos e femininos. A delicadeza, a fragilidade, a discrição, a passividade,
o pudor e a emoção são ensinados para as meninas. Em contrapartida,
dos meninos, espera-se competitividade, agressividade, força física e ra-

39
sexualidade e gênero na escola

cionalidade, sob a alegação de que são características masculinas.


De ambos os sexos, espera-se relações heterossexuais, consideradas
como forma “única” e “correta” de vivência da sexualidade. Constro-
em-se dois mundos – o real e o imaginário – tão díspares que não
ajudam a construir relações igualitárias numa realidade na qual ho-
mens e mulheres vivem juntos e que nem sempre (ou quase nunca)
se enquadram nesses padrões. Qual é o espaço das pessoas que não
se enquadram nesses modelos? A escola pode desconsiderar que a
realidade não comporta um modelo único?
A sociedade tem imposto padrões de gênero e modelos de se-
xualidade que impedem o desenvolvimento individual, social e po-
lítico de muitas pessoas – particularmente daqueles indivíduos que
não se “encaixam” no modelo hegemônico. A imposição de padrões
fixos e a intolerância com a diversidade têm gerado discriminação,
ódio, preconceito e violência – questões que não contribuem nem
para o desenvolvimento humano, tampouco para o social de uma
nação.
As instituições educacionais em geral não têm apresentado
preocupações com a diversidade, ocultando dos currículos:

(...) a multiplicidade das diferenças culturais (em especial a dos gêneros


e das sexualidades), bem como o não-reconhecimento pedagógico do
caráter construído e político das identidades (hegemônicas e subordi-
nadas) e de seus sujeitos. Além desses temas estarem esquecidos, são
freqüentemente mal trabalhados, tanto pedagogicamente quanto nas
relações sociais que se estabelecem na escola, a despeito das políticas
educacionais que atualmente contemplam tanto a questão de gênero
quanto à da sexualidade (FURLANI, 2005, p. 225-226).

Furlani (2005) complementa que a escola é espaços estratégi-


cos para a reflexão, para que sejam conferidos novos significados aos
sujeitos e às práticas subordinadas. A educação deve romper com os
padrões de identidade ditos como normais em detrimento de outros,
pois, como e quem tem poder para definir o que é normal ou não?
Parece claro que as práticas sociais devem sofrer limitações,
uma vez que a convivência humana depende de relações de respeito
aos direitos de outras pessoas. O silêncio e os padrões pré-estabele-
cidos de gênero e sexualidade presentes na escola, no entanto, não

40
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

têm contribuído para que as pessoas percebam tais limites. A pedofi-


lia, a violência sexual, a violência doméstica, a homofobia, o sexismo,
o racismo, entre outras questões revelam que o silêncio sobre o tema
não representa possibilidades de se viver em uma sociedade que res-
peite as diferenças. O que tem imperado é individualismo, a indife-
rença, o egoísmo, contribuindo para gerar relações que, em muitos
casos, podem ser classificadas como patológicas e criminosas, como
nos casos de abuso e de violência sexual e de gênero.
Furlani (2005) contribui nessa discussão mostrando que a
questão da identidade, da diferença e do outro é um problema pe-
dagógico e curricular, especialmente, se o outro é o outro gênero, é
a cor diferente, é a outra sexualidade, é a outra etnia, é a outra nacio-
nalidade, é o corpo diferente. Problema maior ainda quando o outro
não é aceito pela própria escola.
Silva (2000) complementa, alertando que é imprescindível que
o âmbito escolar mostre que o “outro” pode ser “eu’, ser “você”, en-
fim, que o “outro” e o “eu” são as mesmas pessoas.

Gênero e sexualidade: é possível iniciar o debate na escola?


O conhecimento da realidade na qual a escola está inserida é con-
dição preliminar de qualquer atividade docente envolvendo as te-
máticas de gênero e sexualidade. Um bom diagnóstico indicará as
demandas, sendo sempre necessário que se tenha cuidado com pro-
postas prontas e milagrosas que possam afrontar diretamente a cul-
tura local e gerar resistências, afastando qualquer possibilidade de
atuação na área.
Na sala de aula, notícias em revistas e jornais podem exemplifi-
car violências contra mulheres, crianças, homossexuais, negros e po-
bres. A consideração de que essas pessoas não são “outros”, mas que
a violação de seus direitos é a violação do direito de todos, pode ser
uma questão óbvia, mas que nem sempre é entendida. Uma socie-
dade sem violência – desejo coletivo – exige que esse tipo de mani-
festação não seja tolerado, independente da vítima. A reflexão sobre
tais questões apontará caminhos, mostrando aos educandos, sejam
esses meninos ou meninas, que violência, preconceito, sexismo, ho-
mofobia, misoginia ou racismo não são naturais, sendo possível des-
construí-los, contribuindo para a realização de uma sociedade com

41
sexualidade e gênero na escola

novos parâmetros, entre os quais esteja a justiça social e o respeito


à diversidade.
O docente é o protagonista central da educação – uma vez que
planeja, avalia, implementa propostas, educa, interfere sobre a realida-
de –, o que sempre exigiu de sua postura profissional profundos conhe-
cimentos. Dessa forma, coloca-se a sua frente um novo desafio: ensinar
sobre conteúdos e temas que, numa perspectiva tradicional, não fazem
parte da sua área de formação. Sabemos ser impossível ensinar aqui-
lo que não conhecemos, por isso, a viabilidade do desenvolvimento de
trabalho com as temáticas aqui abordadas só será possível com investi-
mentos na formação de educadores.
Destaca-se a importância dessa formação, pois, mudanças nas
concepções e práticas escolares dependem, sobretudo, de preparação,
de sensibilização docente. A inclusão de temas como gênero e sexua-
lidade nos cursos regulares e de educação continuada oferecerá base
teórica e metodológica para que o docente tenha segurança para apre-
sentar e debater questões que, por sua relevância, não podem ser trata-
das de qualquer maneira. Esse tipo de ação também possibilitará que os
educadores enfrentem situações que aparecem no seu cotidiano e que
exigem respostas educacionais: discriminações de gênero, homofobia,
sexismo, gravidez na adolescência, doenças sexualmente transmissíveis,
aborto, etc.
A formação continuada deve ter como ponto de partida a reali-
dade do trabalho docente. Pretender formar docentes, sem ouvir de-
mandas ou conhecer a realidade educacional, é iniciar um trabalho com
menores possibilidades de suprir expectativas e correr o risco de não
atingir os reais objetivos de uma capacitação: preparar o professor e a
professora para a intervenção pedagógica.
Essa formação é desafiadora, abrindo possibilidades para que os
docentes revejam suas práticas, suas formas de ensinar e aprender, inte-
ragir e significar o conhecimento em todas as suas dimensões, integrar
os conteúdos e associá-los à vida real. Isso contribuirá para o desenvolvi-
mento de um trabalho amplo, não voltado apenas para o cumprimento
de metas e conteúdos, mas para o desenvolvimento pessoal de cada
discente e para o desenvolvimento social do país.
Os temas se renovam a cada dia, exemplificamos alguns que po-
dem ser trabalhados na escola: aborto; fetos anencefálicos; direito à vida

42
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

(do feto; da mãe); autonomia sobre o corpo; controle de natalidade; mé-


todos contraceptivos; saúde materna; mortalidade materna; câncer de
útero, mama ou próstata; planejamento familiar; contracepção; concep-
ção; adoção; início da vida; pesquisas com células-tronco; direitos sexu-
ais e reprodutivos; violência de gênero, doméstica e contra a mulher;
pedofilia; parto natural; cesárea; barriga de aluguel; fertilização in vitro;
bebê de proveta; início da vida sexual de homens e mulheres; desco-
berta do corpo; cuidados com o corpo; união homoafetiva; mudança de
sexo; maternidade responsável; paternidade responsável, etc.
Para a educação não há “receitas prontas”, a realidade desvela-
rá questões latentes e caberá aos docentes a definição do método que
melhor se adapta ao assunto e à realidade de seu trabalho. Temas como
gênero e sexualidade não pretendem e tampouco devem substituir os
conteúdos “tradicionais” das disciplinas que compõe o currículo escolar.
Uma das possibilidades consiste no tratamento como tema transversal,
forma que possibilita a inserção dessas questões sociais presentes no
dia-a-dia do estudante e em debate na sociedade, sem deixar “de lado”
outros assuntos tão importantes quanto. Muitas dessas questões reve-
lam preocupações da sociedade, exigem análise crítica e posicionamen-
to do grupo discente, mas podem ser trabalhadas de forma articulada
com outros temas já tratados nas disciplinas escolares.
Se é primordial saber trabalhar gênero e sexualidade, pois, de-
mandas sobre a temática surgirão, não sendo possível abster-se diante
delas, também é necessário refletir a respeito do conhecimento que está
sendo reproduzido e construído pela escola. O rompimento com qual-
quer determinismo e com padrões e modelos hegemônicos, abrindo
para a aceitação da diversidade é condição sine qua non para a conso-
lidação de propostas pedagógicas que visem à interação das próprias
dimensões humanas, dos sujeitos e a construção de uma sociedade hu-
mana e justa.

Considerações Finais
A escola pode ser um espaço gerador de transformação de comporta-
mentos e valores. Como parte do contexto social, essa instituição não
fica imune à reprodução de valores presentes na sociedade, sendo
comum a propagação de discriminações e preconceitos, o que ocorre
quando repassa uma visão androcêntrica de mundo e ensina às mulhe-

43
sexualidade e gênero na escola

res a aceitarem uma suposta inferioridade pelo fato de serem mulheres.


Os meninos, ao aprenderem e não questionarem tal visão, aceitam uma
suposta superioridade pelo fato de serem homens. Assim, a escola vai
consolidando a desigualdade e, sem problematizar tais questões, conti-
nua com suas práticas rotineiras, reafirmando e reforçando valores dis-
criminatórios.
A inclusão das temáticas de gênero e sexualidade em cursos de
formação docente contribuiria para essa problematização e para uma
análise crítica do que é reproduzido pela instituição escolar. A formação
cidadã não pode deixar de considerar que se vive numa sociedade desi-
gual, e que tais questões são fatores que contribuem para a construção
das desigualdades sociais. Esse reconhecimento é essencial para a inter-
venção e a promoção de mudanças sociais.
Nessa perspectiva, não há lugar para escolas que reproduzem o
machismo, a homofobia e a inferioridade feminina. Vale lembrar que a
categoria docente, em nosso país, é formada majoritariamente por mu-
lheres, que precisam da valorização social da sua profissão para que pos-
sam contribuir para a valorização e desenvolvimento humano. Em espa-
ço algum faz sentido o machismo, a discriminação e a violência contra a
mulher, mas, menos ainda, numa profissão composta majoritariamente
por mulheres.
A valorização do trabalho docente e o reconhecimento de que
a escola pode interferir sobre a realidade, construindo a autonomia de
seus alunos e alunas e seu desenvolvimento integral, contribuirá para
a construção de uma sociedade que respeite as diferenças e que diga
não às desigualdades. Educandos devem aprender a respeitar o ser hu-
mano em sua diversidade, aprender a conviver com diferenças e ajudar
a pensar um mundo sem preconceito, racismo, sexismo, homofobia ou
qualquer outro tipo de violência.

Referências

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ABREU, Nuno Cesar. O olhar pornô: a representação do obsceno no cinema e no
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44
beatriz l. ferreira e nanci stancki da luz

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ou três comentários sobre o texto de Michael Apple. In: COSTA, M. V. (Org.) Escola
básica na virada do século: cultura, política e educação. São Paulo: Cortez, 1996.
WHITAKER, Dulce. Mulher e homem: o mito da desigualdade. São Paulo: Moder-
na,

45
nanci stancki da luz

3
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER: UM DESAFIO À
CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

Nanci Stancki da Luz

Introdução
A violência contra a mulher ganhou visibilidade graças à luta e organiza-
ção feminista que retirou o tema do âmbito privado, politizou a discus-
são e questionou as relações de poder que reproduziam e naturalizavam
esse grave problema social.
A violência doméstica, uma das inúmeras formas de expressão
dessa violência, por longo tempo foi tratada como algo da esfera fami-
liar, o que afastava a intervenção do poder público e permitia que, na
ausência de relações de afeto e proteção, imperasse a lei do mais “forte”
em grande medida personificada em uma figura masculina que, no uso
arbitrário de sua força física, considerava-se com direitos de subjugar,
humilhar ou mesmo agredir outros familiares.
Relações de poder desiguais entre homens e mulheres e a inércia
do Estado e da sociedade frente a essa realidade dificultaram a efetiva-
ção dos direitos fundamentais das mulheres vítimas de violência, entre
os quais o direito à vida, à integridade física, emocional e psicológica,
à liberdade de pensamento e de escolha, à saúde, à segurança, entre
outros.
A violência atinge homens e mulheres, entretanto, as suas formas
de manifestação, em geral, distinguem-se quando se trata de um ou de
outro gênero. Enquanto a violência contra os homens pode ser asso-

47
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

ciada majoritariamente ao espaço público, grande parte da violência


contra a mulher tem ocorrido no próprio lar e tem, em grande parte dos
casos, como agressor o marido, companheiro ou namorado, ou ainda
esses mesmos, mas na condição de ex-parceiros.
Este texto discute a violência contra a mulher, apontando alguns
elementos que contribuem para a sua construção e permanência social.
Destaca as resistências frente a esse processo, bem como as conquistas
da luta feminista na desconstrução da naturalização da violência contra
a mulher e no combate à sua impunidade, contribuindo, dessa forma,
para a efetivação dos direitos humanos que, sem as mulheres não se
concretizam, pois metade da parcela que compõe a humanidade fica
excluída.

A violência
A violência é um fenômeno amplo e que inclui não apenas comporta-
mentos entre indivíduos, mas também se refere a questões como de-
sigualdades (sejam elas sociais, étnicas, de gênero ou classe), pobreza,
desemprego, intensificação e precarização do trabalho, desvalorização
profissional e salarial, discriminação, falta de atendimento aos direitos
básicos, abandono, etc.
Para Ristum e Bastos (2004), é difícil abarcar a violência como um
todo, devido a sua complexidade. O próprio conceito pode sofrer inter-
ferência do julgamento social, dificultando uma formulação consensual
e ocultando formas de agressão. Embora a violência possa assumir di-
versas formas, devido a uma visão reducionista, muitas vezes, fica rela-
cionada apenas com a criminalidade, deixando de incluir a dominação
política, econômica e de gênero e todas as implicações dela decorren-
tes.
Herkenhoff (2004) destaca a necessidade de se distinguir agressi-
vidade de violência. A agressividade, cujo oposto é a passividade, tem
aspectos construtivos e significa dinamismo e energia vital. A violência,
ao contrário, tem sempre implícita a destrutividade. Essa destrutivida-
de, todavia, também pode ser libertadora quando, não havendo outra
alternativa, é utilizada como forma de defesa e de afirmação humana.
No entanto, num sentido restrito, o termo violência explicita o conjunto
de ocorrências que põem em perigo bens da vida e a integridade das
pessoas.

48
nanci stancki da luz

Diante da complexidade e extensão do tema, algumas definições


e delimitações revelam-se necessárias. Consideramos a violência como
uma construção histórica e social da qual faz parte as desigualdades de
gênero.
O fenômeno da violência, de acordo com Herkenhoff (2004), pode
se manifestar a partir de três níveis que mantém nítida conexão:

1) Violência institucionalizada, decorrente da estrutura socioeco-


nômica vigente;
2) Violência privada, de indivíduos ou grupos, que se manifesta
por meio de comportamentos considerados criminosos pelo sis-
tema legal;
3) Violência oficial, representada pela repressão policial e por
aquela exercida pelo aparelho judiciário e prisional.

Este texto considera a inter-relação entre esses três níveis, no entanto


destaca a violência entre indivíduos e particularmente a decorrente de
comportamentos masculinos contra a mulher. Violência contra a mulher
é entendida, conforme Teles (2006), como uma relação de poder de do-
minação do homem e de submissão da mulher. Ela é resultado de um
processo de socialização, e não um resultado da natureza.
Consideramos ainda, conforme a mesma autora que:

• Violência significa o uso de força física, psicológica ou intelec-


tual para obrigar outra pessoa a fazer algo que ela não está com
vontade; é o constrangimento, o impedimento a outra pessoa de
manifestar seu desejo, sob pena de viver ameaçada, espancada,
lesionada ou mesmo ser morta.
• Violência contra a mulher é aquela praticada contra a pessoa do
sexo feminino, apenas por sua condição de mulher, referindo-se
à agressão psicológica, física, sexual ou patrimonial direcionada
exclusivamente à mulher.
• Violência doméstica refere-se às agressões sofridas em casa ou
nas relações intrafamiliares.
• Violência de gênero é um conceito que abrange vítima de am-

49
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

bos os sexos e é praticada por quem detém mais poder na relação.


Deve-se considerar, todavia, que o poder masculino é incentivado
por um sistema de exploração e dominação que ordena o contro-
le e o domínio, levando homens, muitas vezes, a lançar mão do
uso da força, seja física ou emocional.

A construção da violência
A violência contra a mulher e, particularmente, a doméstica nem sempre
foi punida. Para isso, tentou-se justificá-la com argumentos de que essa
violência é constitutiva da cultura de um povo, parte da natureza hu-
mana ou de menor poder ofensivo. Situação questionada por mulheres
do mundo todo, e cujo reflexo percebemos em mudanças, sejam na in-
terpretação e definição do que é a violência, sejam no comportamento
individual e nas ações institucionais que demonstram não mais aceitá-la
com naturalidade e buscam resgatar a dignidade e os direitos femini-
nos.
Entretanto a violência contra a mulher tem se revelado bastante
enraizada em nossa sociedade. A sua naturalização e reprodução con-
tam com importantes apoios. Desvelar esses mecanismos que con-
tribuem para a sua reprodução social pode ser o primeiro passo para
desconstruí-la.
Comportamentos violentos dos adultos ou formas de convivên-
cia e organização familiar que reforçam a subordinação feminina con-
sistem em um desses mecanismos. Fazer parte de relações em que a
violência é rotineira pode levar as crianças a considerá-la natural. Se no
âmbito familiar as crianças vivenciam a hierarquia/dominação entre os
sexos, relações violentas e se o silêncio e o conformismo são apresenta-
dos como forma de proteção, a violência pode ser aceita, suportada e
também reproduzida.
No Brasil é comum a propagação de ditados que reforçam e man-
têm a idéia de que a violência doméstica consiste em um problema do
espaço privado, ninguém poderia se opor a ela ou mesmo envolver-se
e, por mais absurdo que pareça, que poderiam fazer bem ao relaciona-
mento afetivo: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”;
“a mulher é minha e eu faço dela o que eu quiser”; “eu não sei porque eu
bato, mas ela sabe porque apanha”; “mulher gosta de apanhar”, “mulher

50
nanci stancki da luz

é como pão, quanto mais bate, melhor fica”, entre tantos outros absur-
dos.
Todas essas frases, repetidas reiteradamente, podem levar al-
guns a acreditarem que isso seja verdadeiro, entretanto, as situações
de violência vivenciadas pelas mulheres e suas conseqüências deixam
evidente a inverossimilhança de tais afirmações. É ilógico pensar que
alguém possa gostar de apanhar, de viver sob constante ameaça, de
ser agredida ou humilhada. Talvez uma mente doentia que deseja
fazer ou faz tais crueldades busque assim justificar seus atos, mas a
sociedade aceitar e repetir tais disparates não faz sentido.
Além da inverídica afirmação de que mulher gosta de apanhar,
a sociedade cria outros mitos sobre a violência, buscando mostrar
que as mulheres agredidas consistem em um pequeno percentual
da população; que a razão das agressões é o consumo de álcool e
drogas; que os agressores têm baixa escolaridade e são pobres. A
realidade desmente tudo isso: o número de mulheres agredidas não
é pequeno, o consumo de drogas, embora possa intensificar a agres-
são, não é a sua causa; há agressores em todas as classes sociais, po-
dendo inclusive ser um intelectual, conforme relata Teles (2006).
Essa falsa realidade é reproduzida nas instituições sociais, in-
cluindo a escola que não se mantém imune a esse processo. Esse
espaço deveria se voltar prioritariamente para o desenvolvimento
pessoal, acadêmico e social de mulheres e homens, entretanto pode
ser um espaço reprodutor da violência ao desenvolver uma formação
generificada e androcêntrica , reforçando assim a dominação mas-
culina, secundarizando as atividades da mulher e contribuindo para
a baixa resistência à violência de gênero, culminando na sua aceita-
ção.
Os heróis, cientistas, intelectuais e políticos podem ser apresentados
como parte de um mundo masculino e, as mulheres podem simplesmen-
te desaparecer dos grandes feitos, das grandes descobertas, enfim, serem
apagadas da História. Mas, onde elas estariam quando a história foi vivida?
Os homens não conseguiriam construir nações, desenvolver ciência, inven-
tar ou inovar tecnologicamente sozinhos, pois a realidade sempre foi feita
de homens e mulheres.
Além da invisibilidade feminina, outro aspecto que aparece em ma-
teriais didáticos é a secundarização das suas atividades. Segundo Moreno

51
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

(1999), elas aparecem nas páginas dos livros fazendo atividades do-
mésticas, aguardando o esposo que está viajando, “ajudando” os cien-
tistas, enfim, desempenhando papéis considerados adequados ao seu
sexo e mostrados como secundários.
As mulheres não desempenhem apenas atividades desse tipo
e, mesmo que assim fosse, caberia a escola discutir a relevância de-
las para a reprodução da vida, para a construção dos conhecimentos,
para as estratégias e as vitórias nas guerras, etc. A hierarquia das ati-
vidades tem contribuído para a desvalorização do trabalho feminino,
pois, “coincidentemente”, aquelas desempenhadas pelas mulheres
têm sido menos valorizadas. Assim, faz-se necessário tanto o resgate
da história de tantas mulheres que foram revolucionárias, cientistas,
guerreiras, etc., quanto à valorização das atividades ainda associadas
ao universo feminino.
As linguagens oral e escrita presentes na escola também podem
refletir a discriminação sexista e ignorar a presença feminina:

As meninas, mais precoces no uso da linguagem que os meninos, desco-


brem antes deles que, quando os adultos se referem a um grupo infantil
que inclui indivíduos de ambos os sexos, o fazem quase sempre usando
unicamente a forma masculina, em nenhum caso somente a feminina e
muito poucas vezes as duas. Quando esta última ocorre, invariavelmente
a masculina ocupa o primeiro lugar na frase. A professora dirá: “os meni-
nos e as meninas que vão à excursão...”. “Venham até aqui um menino e
uma menina”, e nunca se equivocará com a relação à ordem (MORENO,
1999, 38).

A ocultação das mulheres em expressões como “todos os alu-


nos” ou “o homem”, a exposição em piadas machistas, a ocupação de
posições hierarquicamente inferiores e secundárias em livros e exem-
plos de professores e professoras, entre tantas outras questões, pre-
sentes no dia-a-dia escolar, não favorecem o pleno desenvolvimento
das mulheres e constituem um terreno bastante fértil para a reprodu-
ção das desigualdades de gênero.
No processo de reprodução da violência contra as mulheres,
somam-se cotidianamente outras contribuições, entre elas as imagens
femininas estereotipadas apresentadas pela mídia. A televisiva, por
exemplo, tem um alcance extraordinário, atingindo grande parte dos
lares brasileiros e contribuindo muito na socialização das crianças, que

52
nanci stancki da luz

desde pequenas, assistem a programas que naturalizam a violência e


as desigualdades de gênero.
A mídia apresenta, em diversas ocasiões, mulheres como objeto de
consumo, sendo as inúmeras propagandas de cerveja um exemplo disso.
À mulher não é dado nem mesmo o status de potencial consumidora do
produto. Elas passam a ser “algo” que complementa a própria bebida e que
é oferecida ao público masculino como uma espécie de “bônus” pela com-
pra da mercadoria. A mulher e a cerveja passam a ser “coisas” para serem
consumidas e à disposição do prazer masculino. Propagandas como essas
deveriam ser proibidas por contribuir para a desvalorização da mulher, es-
timular a idéia de mulher objeto e reforçar desigualdades de gênero.
A música, importante expressão cultural e que tem grande popula-
ridade em nosso país, também pode ser um veículo de propagação e ba-
nalização da violência contra a mulher. A música Um Tapinha não Dói, por
exemplo, difunde a imagem de mulher objeto sexual, passa a mensagem
de que mulher gosta de apanhar, que agressão física coincide com prazer,
e que apanhar não dói:

“Dá uma quebradinha


E sobe devagar
Se te bota maluquinha
Um tapinha eu vou te dar
Porque:
Dói, um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Um tapinha não dói
Só um tapinha...”

Não há dúvida: um tapa dói. A dor, inclusive, não é só física, pois


a mulher que apanha passa por um processo de humilhação, no qual se
demonstra a ausência de igualdade, a subordinação feminina, o descaso
com o seu sofrimento e a imposição da vontade, que não é a dela, pela
força bruta. Tais questões se refletem no psicológico, na auto-estima e na
confiança em si própria, além das seqüelas físicas. Mensagens como a re-
passada nessa música acabam por retirar a culpa do agressor e facilitar a
aceitação social da violência, dificultando, por sua vez, a sua denúncia e
punição.

53
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

A incitação à violência, no caso da música Um Tapinha não Dói,


é tão explícita que gerou uma ação judicial movida pelo Ministério
Público Federal (MPF) e pela organização não-governamental (ONG)
Themis Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, alegando que a letra
justificava a violência masculina a partir do comportamento sexual da
mulher. A Justiça Federal de Porto Alegre condenou a empresa que
lançou a música ao pagamento de uma multa de R$ 500 mil por enten-
der que a letra banalizava a violência, estimulava a sociedade a inferio-
rizar a mulher, causando assim dano moral difuso à mulher (OGLIARI,
2008).
Assim, podemos verificar que a construção da violência contra a
mulher passa por diversos âmbitos. A reprodução da imagem feminina
como um ser “secundário” ou um objeto de consumo e a sua invisibi-
lidade acaba por colocar as mulheres numa posição de inferioridade,
afasta a idéia da igualdade entre homens e mulheres e dificulta a reali-
zação dos direitos individuais e sociais.

O assassinato de mulheres
Vale destacar que as representações femininas tratadas anteriormente
contribuem para o desenvolvimento do sentimento de posse demons-
trado por alguns homens em suas relações afetivas e que, em muitos
casos, culminam em atos de extrema violência: assassinatos, agressões,
seqüestros e cárcere privado de mulheres vítimas daqueles que justifi-
cam suas atrocidades em um dos mais nobres sentimentos: o amor.
Uma importante reflexão a respeito dessa temática é apresenta-
da pela autora Eva Blay em seu livro Assassinato de mulheres e direi-
tos humanos, no qual se discute por que os crimes contra as mulheres
continuam tão disseminados em nossa sociedade. A autora revela que
não obstante as exigências de punição dos agressores há concomitan-
temente um aumento da taxa de homicídios de mulheres, crime que
se faz presente em todas as classes sociais. Embora esse tipo de violên-
cia possa parecer menor na camada alta, isso decorre do fato de que os
criminosos com maior poder aquisitivo têm maiores facilidades para
fugir ao flagrante ou mesmo de desaparecerem, auxiliados por advo-
gados, clínicas de saúde ou amigos influentes. Os dados desmentem a
visão de que a violência contra a mulher só existe entre os mais pobres
e menos escolarizados.

54
nanci stancki da luz

Inúmeros são os casos em que homens matam ou tentam matar


as mulheres que decidem finalizar relações “afetivas” que mantém com
esses agressores. Blay (2008) apresenta alguns casos que geraram gran-
de repercussão e acabaram ocupando espaços de destaque na mídia.
Um deles é o de Angela Diniz, assassinada, em 1976, por Doca Street.
Após três meses de convivência, Angela, por não suportar o companhei-
ro ciumento e agressivo, rompeu o relacionamento e mandou que este
saísse de sua casa em Cabo Frio, no estado do Rio de Janeiro. Ele saiu
da residência, mas minutos depois retornou e matou-a com vários tiros,
especialmente no rosto e no crânio.
A autora destaca o modelo de defesa dos assassinos “por amor”,
ensinado por Evandro Lins e Silva em seu livro A defesa tem palavra.
O autor ensina aos advogados como defender tais criminosos e toma
como referência a defesa que ele próprio fez do assassino de Angela
Diniz. Nesses ensinamentos, o jurista apresenta duas estratégias prin-
cipais:

1. Demonstrar o bom caráter do assassino;


2. Caracterizar a vítima por valores negativos e desaboná-la, mos-
trando que ela levou o assassino ao ato criminoso.

Para justificar o “impulso” criminoso, apresenta a paixão como


sentimento que guiaria a mão que, na verdade, não teria a intenção de
matar. Para o jurista, a defesa deveria sobretudo penetrar nos sentimen-
tos que levam o homem a cometer um crime passional e, para isso, su-
gere que o defensor sirva-se da literatura (inclusive, sugere livros). Isso
muniria o defensor de elementos a respeito do sentimento de rejeição,
do desvario da paixão, enfim, sobre o sofrimento de uma pessoa cujo
único pecado teria sido amar demais e que, no entanto, recebeu em tro-
ca a ingratidão da pessoa amada. Tais elementos deveriam comover o
júri e levá-lo a inocentar o assassino, levando a crer que a morte seria a
única resposta à “ingratidão” feminina frente a tanto “amor”.
Nada mais absurdo, induzir um júri a pensar dessa forma. O as-
sassinato deixa de ser um crime para ser uma conseqüência aceitável
da resistência da mulher à posse e aos desejos masculinos. Raciocínio
que equivale dizer que a “vítima é autora da própria morte”, portanto, o
assassino não teria participação no crime que cometeu e, dessa forma,

55
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

não precisaria ser punido. Lógica parecida prevalecia nas justificativas


de assassinatos em “legítima defesa da honra” e que abria o caminho
para a impunidade.
Como falar em amor em casos como esses? Talvez fosse mais
apropriado falar em “morte por ódio”, “morte por não saber perder”,
“morte por desconsideração com a vítima”, “morte para manter a pos-
se”, “morte por desprezo”... Não há que se falar em amor numa atitude
criminosa que demonstra sentimento de posse e total desconsideração
com a vítima, tratando-a como objeto que, na iminência de perdê-lo, o
agressor prefere destruir.
Mobilizações feministas ocorreram a partir do caso Angela Diniz,
lutando contra a impunidade dos crimes feitos sob alegação do “amor”
ou da “defesa da honra”. Dessa organização nasceu um importante
lema: “quem ama não mata”.
Embora hoje ainda percebamos a presença desses mesmos ar-
gumentos e justificativas para criminosos passionais, temos mudanças
no sentido da não aceitação de uma violação tão explícita ao direito de
viver das mulheres.

A continuidade da violência contra a mulher


A violência contra a mulher não tem classe, raça ou etnia, nível de ins-
trução, religião, geração, geografia... A hierarquia entre os gêneros,
aliada a uma cultura que naturaliza e justifica a violência, possibilitou
uma verdadeira democratização desse mal social.
O silêncio, o consentimento, a impunidade e a justificação mar-
caram a história da exclusão dos direitos femininos e da negação da
cidadania das mulheres. Por muito tempo, foram consideradas de me-
nor gravidade, ou mesmo uma “não violência”, questões como:

• As relacionadas ao trabalho feminino: dupla ou tripla jornada


de trabalho e todas as suas conseqüências para a saúde da mu-
lher; divisão sexual do trabalho, no qual as mulheres se inserem
em atividades consideradas “femininas” e que justificam salários
menores e menor prestígio social dessas profissões; processo de
segregação do trabalho feminino, alocando-as em atividades e
setores precários e com pouca mobilidade profissional; femini-
zação da pobreza; salários femininos inferiores aos salários mas-

56
nanci stancki da luz

culinos no exercício das mesmas funções; assédio sexual e moral


no trabalho, no qual as mulheres são as principais vítimas.
• O descaso com a saúde da mulher, como o que ocorre em re-
lação ao número de mulheres que morrem ou sofrem seqüelas
devido a abortos “clandestinos” e falta de assistência médica
adequada.
• A transformação da mulher em objeto de uso: a) comercial –
para venda de produtos das mais variadas espécies; b) sexual
– mera fonte de prazer; c) doméstico – para realização de ati-
vidades no âmbito privado sem qualquer tipo de valorização e
reconhecimento de seu trabalho.
• A percepção da mulher vítima de violência como a culpada
pela ação do agressor, como nos casos de abuso sexual, atenta-
do violento ao pudor, estupro, assédio sexual, crimes passionais,
violência doméstica, nos quais se busca excluir a culpa masculi-
na, colocando em foco o comportamento feminino como supos-
to causador de tal violência.
• O grande número de assassinatos de mulheres e os crimes
de violência física, moral e psicológica cometidos por maridos,
companheiros ou namorados, ou ainda desses, mas na situação
de ex.
• O controle da sexualidade e impedimento do prazer feminino,
inclusive, por meio de práticas de mutilações do corpo da mu-
lher (cliteridectomia e infibulação , por exemplo).
• O femicídio (ou feminicídio) – assassinato massivo de mulhe-
res em razão de seu sexo, inclusive, envolvendo tortura, violên-
cia sexual, queimaduras, mutilações e desfigurações.
• Tráfico de mulheres com objetivo de “vendê-las” para explora-
ção sexual, execução de trabalhos forçados e escravidão.
• O abandono que muitas mulheres se sujeitam aos se depara-
rem com uma gravidez ou, quando por falta de cumprimento
das obrigações paternas, elas se vêem obrigadas a assumir sozi-
nhas o sustento e a educação de seus filhos e filhas.

57
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

Esse rol não taxativo de violações de direitos, ao receberem o con-


sentimento e a tolerância social, contribui para a impunidade desses
crimes. Essa impunidade, segundo Teles (2006), é fator que mantém a
violência que é acomodada na idéia de que esse fenômeno é próprio da
natureza humana.
A violência contra a mulher no Brasil ainda pode ser observada
nos dados oriundos de uma pesquisa realizada pela Fundação Perseu
Abramo, em 2001, com 2.502 mulheres de 187 municípios (24 esta-
dos). O estudo traça um panorama a respeito da questão no país e
mostra que esse tipo de violência ainda está bastante presente em
nossa sociedade:

• Aproximadamente uma em cada cinco brasileiras declara ter


sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem –
16% relatam casos de violência física, 2% citam alguma violência
psíquica e 1% lembra do assédio sexual.
• Dentre as formas de violência mais comuns, destacam-se a
agressão física, sob a forma de tapas e empurrões, sofrida por
20% das mulheres; a violência psíquica, caracterizada por xinga-
mentos, com ofensa à conduta moral da mulher, vivida por 18%,
e a ameaça por meio de coisas quebradas, roupas rasgadas, ob-
jetos atirados e outras formas indiretas de agressão, vivida por
15%.
• 12% das mulheres declaram ter sofrido a ameaça de espanca-
mento a si próprias e aos filhos, e também 12% já vivenciaram a
violência psíquica do desrespeito e desqualificação constantes
ao seu trabalho, dentro ou fora de casa. Espancamento com cor-
tes, marcas ou fraturas já ocorreu a 11% das mulheres, mesma
taxa de ocorrência de relações sexuais forçadas (em sua maioria,
o estupro conjugal, inexistente na legislação penal brasileira), de
assédios sexuais (10% dos quais envolvendo abuso de poder), e
críticas sistemáticas à atuação como mãe (18%, considerando-se
apenas as mulheres que têm ou tiveram filhos).
• 9% das mulheres já ficaram trancadas em casa; 8% já foram
ameaçadas por armas de fogo, e 6% sofreram abuso, forçadas a
práticas sexuais que não lhes agradavam.

58
nanci stancki da luz

• Entre as mulheres que já sofreram espancamento, 1/3 afirma


que isso só aconteceu uma vez, enquanto outras 20% dizem ter
ocorrido 2 ou 3 vezes. A declaração de espancamento por mais
de 10 ou várias vezes é comum em 11% das mulheres. Há mu-
lheres que sofrem ou sofreram espancamentos por mais de 10
anos, ou mesmo durante toda a vida (4%, ambos os casos).
• A responsabilidade do marido ou parceiro como principal
agressor varia entre 53% (ameaça à integridade física com ar-
mas) e 70% (quebradeira) das ocorrências de violência em qual-
quer das modalidades investigadas, excetuando-se o assédio.
Outros agressores comumente citados são o ex-marido, o ex-
companheiro e o ex-namorado, que somados ao marido ou par-
ceiro constituem sólida maioria em todos os casos.
• Em quase todos os casos de violência, mais da metade das mu-
lheres não pede ajuda. Somente em casos considerados mais
graves, como ameaças com armas de fogo e espancamento com
marcas, cortes ou fraturas, pouco mais da metade das vítimas
(55% e 53%, respectivamente), recorrem a alguém para ajudá-
las. Em todos os casos de violência, o pedido de ajuda recai prin-
cipalmente sobre outra mulher da família da vítima – mãe ou
irmã – ou sobre alguma amiga próxima.
• Os casos de denúncia pública são bem mais raros, ocorrendo
especialmente diante de ameaça à integridade física por armas
de fogo (31%), do espancamento com marcas, fraturas ou cortes
(21%) e de ameaças de espancamento à própria mulher ou aos
filhos (19%).
• O ciúme desponta como a principal causa aparente da violên-
cia, assim como o alcoolismo ou o estar alcoolizado no momen-
to da agressão (mencionados por 21%, ambos os casos).
• A projeção da taxa de espancamento (11%) para o universo
investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões
de mulheres, dentre as brasileiras vivas, já foram espancadas ao
menos uma vez. Considerando-se que, entre as que admitiram
terem sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que
isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta-se

59
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano


no país (ou em 2001, pois não se sabe se este número aumentou
ou diminui ao longo dos anos), 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora
ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos.

Se grande parte dessa violência ocorre em relações familiares, por


que tantas mulheres agredidas, desrespeitadas e desvalorizadas perma-
necem em relações tão perigosas?
Existe uma tendência no senso comum de atribuir a culpa à própria
mulher. Pensemos nesse sentido: se a vítima é culpada da sua própria
desgraça, então, porque a sociedade deveria se preocupar, pois, afinal,
não se costuma punir o autoflagelo. Entretanto, esse raciocínio sofista
oculta um pólo da relação – o agressor. Tal lógica retira do centro do pro-
blema o protagonista da ação, o que faz desaparecer a própria ação. Se
considerarmos que a mulher agredida é a causadora da agressão, logo,
não existe agressor, ou ele vira vítima. Essa interpretação se faz presente
em casos de violência sexual, quando mulheres são questionadas a res-
peito do tipo de roupa que usavam, do lugar que estavam, do compor-
tamento que adotavam, buscando transferir a culpa do agressor para a
vítima. Culpar a mulher por algo que ela não fez, além de injusto, isenta o
agressor, reforça a impunidade, enfim, contribui para agravar a violência
social e de gênero.
Lima (et al, 2007), no livro Homens pelo fim da violência contra a
mulher: educação para a ação, nos apresenta fatores que podem ajudar
a entender a realidade das mulheres que vivem relações “afetivas” basea-
das na violência. Assim, revela que nesse processo devemos considerar:

• A contribuição da história familiar: o modelo familiar violento


pode contribuir para a escolha de um parceiro violento, reprodu-
zindo modelos; situações de violência como parte das vivências
infantis; casamento como fuga da situação familiar e idealização
do parceiro e do relacionamento.
• A contribuição da auto-estima da mulher: auto-estima baixa
pode levar a mulher a ter dúvidas a respeito de suas próprias capa-
cidades; sentimento de desvalorização; incertezas diante da sepa-
ração, mantendo-as em relações violentas.

60
nanci stancki da luz

• A situação emocional da mulher: afeto deprimido, sentimento de


inferioridade, insegurança, desamparo e retraimento social; proje-
ção de expectativas irreais de afeto, proteção, dependência e esta-
bilidade no casamento; esperança de mudar as atitudes do marido
ou companheiro; sentimento de responsabilidade pelo comporta-
mento agressivo do companheiro.
• A tendência de justificar o comportamento violento do marido
ou companheiro por fatores externos, como dificuldades financei-
ras, desemprego, drogas, enfim, tirando dele qualquer responsabi-
lidade sobre a agressão.
• A valorização excessiva do papel de provedor e pai, justificando
a tolerância da violência; medo de represálias por parte do marido
ou companheiro; crença de que o marido ou companheiro cumpri-
rá as ameaças em relação a si, seus filhos e seus familiares (morte,
perda da guarda do filho ou filha, destruição da casa, transtornos
no local de trabalho, etc.).
• A situação econômica da mulher: carência de apoio financeiro
e oportunidade de trabalho, gerando dependência econômica e
falta de autonomia; medo das dificuldades para prover o seu sus-
tento econômico e de seus filhos.
• A carência de recursos sociais e familiares: isolamento social, des-
crédito e falta de apoio familiar; ausência de uma rede de apoio
eficaz no que se refere à moradia, escola, creche, saúde e proteção
policial e judiciária.

Todos esses fatores apontam para necessidade da construção da


autonomia feminina, da valorização das mulheres e da concretização de
seus direitos fundamentais. Entender o motivo que as levam a permane-
cer em relações que colocam em risco a própria integridade física deve
ser o início de um caminho a ser trilhado para sua erradicação.

O enfrentamento da violência contra a mulher


O movimento feminista em sua luta histórica de defesa dos direitos das
mulheres mostrou que as desigualdades entre homens e mulheres são
socialmente construídas, permitindo a desconstrução da naturalização e

61
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

da subordinação das mulheres. As mulheres organizadas desenvolveram


ações de denúncia da violação dos direitos femininos e deram visibilida-
de à violência contra a mulher e aos seus efeitos, permitindo que essa
violência passasse a ser percebida como um problema social e que como
tal pudesse ser enfrentado.
Neste sentido, Teles (2006) argumenta que a naturalização da
violência contra a mulher foi desmistificada devido à ação mundial do
feminismo e da introdução da categoria gênero nos estudos sobre o tema.
Isso possibilitou mostrar que a violência é resultado da construção de pa-
péis sociais impostos a homens e mulheres e não fruto das diferenças bioló-
gicas, o que quebra a lógica patriarcal da violência e aponta caminhos para
a construção de mudanças. Um grande problema foi que, nos movimentos
de direitos humanos, não se assumia a defesa dos direitos das mulheres.
Não se concebia, por exemplo, que a violência dos maridos ou companhei-
ros, os espancamentos ou assassinatos de mulheres, sob alegação de pai-
xão ou defesa da honra, consistissem em violações dos direitos humanos.
A organização e pressão das mulheres, entretanto, possibilitaram avançar e
colocar em pauta tais questões.
No que tange à defesa dos direitos humanos na ordem internacional,
a partir da Declaração Universal de 1948, formou-se, no âmbito das Nações
Unidas, um sistema de proteção normativo global. Esse sistema é integrado
por instrumentos de alcance geral – Pactos Internacionais de Direitos Civis e
Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – e por instrumentos
específicos como as convenções internacionais que buscam responder à
discriminação racial, à discriminação contra a mulher, à violação dos direitos
das crianças, entre outras formas de violação (PIOVESAN, 2002).
Dessa forma, assegura-se às mulheres um tratamento específico que
dê conta das particularidades e das diferenças, visando com isso assegurar
que os direitos humanos sejam concretizados também para essa parcela da
população. Nessa perspectiva e com a influência da proclamação do Ano
Internacional da Mulher (1975) e da Conferência Mundial sobre a Mulher
(1975), as Nações Unidas aprovarem, em 1979, a Convenção sobre a Elimi-
nação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (PIOVESAN,
2002).
No preâmbulo, entre outras questões, a Convenção reafirma:

• A igualdade de direitos entre homens e mulheres.

62
nanci stancki da luz

• A obrigação dos Estados em garantir a homens e mulheres a igual-


dade de direitos.
• A discriminação contra a mulher como uma violação dos princípios
da igualdade de direitos e do respeito à dignidade humana, assim
como um impedimento à participação feminina na vida política, so-
cial e cultural;
• A discriminação contra a mulher como um obstáculo para o
bem-estar da sociedade e da família, para o pleno desenvolvi-
mento das potencialidades da mulher, para o desenvolvimento
de um país, e para a manutenção do bem-estar do mundo e da
paz;
• A necessidade, para alcançar a plena igualdade entre homens
e mulheres, de se modificar o tradicional papel tanto do homem
como da mulher na sociedade e na família;

Nesse sentido, a Convenção sobre a Eliminação de todas as For-


mas de Discriminação contra a Mulher considera em seu art. 1º que a dis-
criminação contra a mulher é “toda distinção, exclusão ou restrição ba-
seada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular
o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente
de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos
direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, eco-
nômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo.”
Com objetivo de eliminar a discriminação e acelerar a busca pela
igualdade entre homens e mulheres, a Convenção prevê, em seu art. 4º.,
a adoção de ações de discriminação positiva visando compensar des-
vantagens já existentes: São medidas temporárias destinadas a acelerar
a igualdade de fato entre homens e mulheres e que cessarão quando os
objetivos forem alcançados.
Os Estados que a ratificaram, entre eles o Brasil, concordam em
seguir uma política destinada a eliminar a discriminação contra a mu-
lher, comprometendo-se a consagrar em suas Constituições o princípio
da igualdade entre os gêneros e assegurar, por meio de lei, outros meios
cabíveis à concretização desse princípio.
O reconhecimento dessa igualdade foi consagrado no texto cons-
titucional de 1988, representando um marco na efetivação dos direitos

63
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

fundamentais da mulher e uma vitória da luta pela mudança das condi-


ções de vida das brasileiras.
Todavia, esse reconhecimento formal impôs à sociedade um gran-
de desafio: concretizar essa igualdade no cotidiano de homens e mu-
lheres. Para Silva (2008), o reconhecimento formal de uma condição de
igualdade e cidadania plenas, por si só, não foi, nem poderia ser, capaz
de modificar a realidade socialmente posta ao longo de toda a história.
Entretanto, esse reconhecimento, além de criar a possibilidade jurídica de
efetivação das conquistas, foi também símbolo do resultado alcançado
e alcançável por um processo de intervenção social organizada, contun-
dente e efetiva.
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Vio-
lência contra a Mulher – conhecida como Convenção de Belém do Pará,
adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos
em 1994, e ratificada pelo Brasil em 1995 – também contribui nesse sen-
tido.
Ela conceitua a violência contra a mulher de forma ampla, tratan-
do-a como uma ofensa à dignidade humana e uma manifestação de rela-
ções de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens. Reco-
nhece que a violência contra a mulher é generalizada, transcende todos
os setores da sociedade, independe de classe, raça ou grupo étnico, nível
salarial, cultura ou educacional, idade e religião, e que a sua eliminação
é condição indispensável para o desenvolvimento individual e social da
mulher e sua participação igualitária em todas as esferas da vida.
Assim, define, em seu art. 1º., a violência contra a mulher como
“qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano
ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto no âmbito pú-
blico como no privado”. Nesse sentido, inclui a violência física, sexual e
psicológica ocorrida dentro da família ou numa outra relação interpessoal
em que o agressor conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a
mulher. Considera como violência o estupro, a violação, os maus-tratos, o
abuso sexual, a tortura, o tráfico de mulheres, a prostituição forçada, o se-
qüestro e o assédio sexual no ambiente de trabalho ou a violência ocorri-
da em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer
outro lugar.
Reconhece que a mulher tem direito a uma vida livre de violência,
de discriminação e inclui o direito de ser valorizada e educada livre de

64
nanci stancki da luz

padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais


baseados em conceitos de inferioridade e de subordinação.
Estados que a ratificaram, entre eles o Brasil, concordam com a
adoção de medidas que visem modificar os padrões socioculturais de
conduta de homens e mulheres, incluindo a construção de programas
de educação, formais e não-formais, apropriados a todo nível de pro-
cesso educativo, para contrabalançar preconceitos e costumes e todos
os tipos de práticas que se baseiem na premissa da inferioridade ou
superioridade de qualquer dos gêneros ou em papéis estereotipados
para o homem e a mulher, ou ainda que legitimam e/ou exacerbam a
violência contra a mulher. Comprometem-se com a implementação de
ações para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, ado-
tando em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas
necessárias para esse fim, estabelecendo procedimentos jurídicos justos
e eficazes para a mulher que tenha sido submetida à violência, e que
incluam, entre outros, medidas de proteção, um julgamento oportuno e
o acesso efetivo a tais procedimentos.
No Brasil, entre as medidas já adotadas, destaca-se a Lei Maria da
Penha.

A Lei Maria da Penha


A Lei no. 11.340 de 07 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria
da Penha, foi assim chamada em homenagem à farmacêutica Maria
da Penha Maia Fernandes, uma das vítimas da violência doméstica no
país.
O motivo pelo qual a lei recebeu esse nome nos remete ao ano
de 1983, em Fortaleza, estado do Ceará, época em que Marcos Anto-
nio Herredia, então marido de Maria da Penha, em ato flagrantemente
premeditado, tentou matá-la por duas vezes. Na primeira vez, simulou
um assalto e, enquanto ela dormia, desferiu-lhe um tiro de espingarda
que a deixou paraplégica. Não contente, ele ainda tentou eletrocutá-la
no banho, por meio de uma descarga elétrica, pouco tempo após essa
primeira tentativa de homicídio.
A luta de Maria da Penha foi essencial para que seu agressor fos-
se preso 20 anos depois do crime. Entretanto, Herredia cumpriu apenas
dois anos de prisão e foi colocado em liberdade. O caso chegou à Co-
missão Interamericana dos Direitos Humanos, da Organização dos Es-

65
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

tados Americanos (OEA), cuja tarefa consiste em analisar denúncias de


violações de direitos humanos. A Comissão, segundo relatam Cunha e
Pinto (2008), acatou a denúncia do crime de violência doméstica apre-
sentado por Maria da Penha, pronunciando-se da seguinte forma:
A Comissão recomenda ao Estado que proceda a uma investi-
gação séria, imparcial e exaustiva para determinar a responsabilidade
penal do autor do delito de tentativa de homicídio em prejuízo da
Senhora Fernandes e para determinar se há outros fatos ou ações
de agentes estatais que tenham impedido o processamento rápido
e efetivo do responsável; também recomenda a reparação efetiva e
pronta da vítima e a adoção de medidas, no âmbito nacional, para
eliminar essa tolerância do Estado ante a violência doméstica contra
mulheres.
Frente à omissão do Estado e demora na punição do agressor,
o Brasil, em 2001, foi condenado pela OEA, cuja pena pecuniária, im-
posta ao estado do Ceará, era equivalente a 20 mil dólares.
A Lei Maria da Penha representa um grande avanço no comba-
te à violência doméstica, contribuindo para mudanças de cultura no
lar. Ela revela-se inovadora ao expandir o conceito restrito de violên-
cia e considerar como violência não só a física, mas também a psico-
lógica, a sexual, a patrimonial e a moral, assim definidas na lei:

• A violência física, entendida como qualquer conduta que


ofenda sua integridade ou saúde corporal.
• A violência psicológica, entendida como qualquer conduta
que cause dano emocional e diminuição da auto-estima ou
que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento, ou que
vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, cren-
ças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilha-
ção, manipulação, isolamento, vigilância constante, persegui-
ção contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração
e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe
cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.
• A violência sexual, entendida como qualquer conduta que
constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação se-
xual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou

66
nanci stancki da luz

uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qual-


quer modo, a sua sexualidade, que impeça de usar qualquer
método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravi-
dez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem,
suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício
dos direitos sexuais e reprodutivos.
• A violência patrimonial, entendida como qualquer conduta
que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total
de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pesso-
ais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo
os destinados a satisfazer suas necessidades.
• A violência moral, entendida como qualquer conduta que con-
figure calúnia, difamação ou injúria.

Para Cunha e Pinto (2008), a partir da Lei Maria da Penha, a mu-


lher passa a contar com um precioso estatuto, não só repressivo, mas,
sobretudo, preventivo e assistencial, sendo sua aplicação uma exigên-
cia das estatísticas que demonstram a situação de verdadeira calami-
dade pública que assumiu a agressão contra as mulheres.
Pode parecer óbvio e desnecessário lembrar que as mulheres
são detentoras de direitos fundamentais de todo ser humano, entre-
tanto, estatísticas revelam que o direito à vida, à segurança, à saúde, à
educação não tem se efetivado para um número significativo de mu-
lheres. Assim, nada mais lógico que a lei reforce esses direitos que no
cotidiano têm sido negados às mulheres:
Art. 2 Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,
orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião,
goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe
asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência,
preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, inte-
lectual e social.
Art. 3 Serão asseguradas às mulheres as condições para o exer-
cício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação,
à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao
lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à
convivência familiar e comunitária.

67
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

Para garantia desses direitos não se prevê apenas medidas puniti-


vas. A lei inova ao prever medidas de prevenção à violência. Em seu art.
8º., apresenta diretrizes de uma política pública que visa coibir a violência
doméstica e familiar contra a mulher, que deverá ocorrer por meio de um
conjunto articulado de ações da União, dos estados, do Distrito Federal
e dos municípios e de ações não-governamentais, visando entre outras
questões:

• A busca das causas, conseqüências e freqüência da violência do-


méstica e familiar contra a mulher que considerem gênero, raça ou
etnia.
• O respeito, nos meios de comunicação social, dos valores éticos e
sociais da pessoa e da família, de forma a coibir papéis estereotipa-
dos que legitimem ou exacerbem a violência doméstica e familiar.
• A implementação do atendimento policial especializado para as
mulheres, em particular nas Delegacias de Atendimento à Mulher,
e a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda
Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencen-
tes aos órgãos e às áreas do Poder Judiciário, Ministério Público,
Defensoria Pública, Segurança Pública, Assistência Social, Saúde,
Educação, Trabalho e Habitação quanto às questões de gênero e
de raça ou etnia.
• A promoção e a realização de campanhas educativas de preven-
ção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao
público escolar e à sociedade em geral, bem como a promoção de
programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestri-
to respeito à dignidade da pessoa humana com destaque aos cur-
rículos escolares, aos conteúdos relativos aos direitos humanos, à
eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência
doméstica e familiar contra a mulher.

Observamos nos itens anteriores um destaque para os processos


educacionais. A educação é percebida como uma forma de desconstruir
a violência e criar novos valores na sociedade. Isso impõe aos educadores
o desafio de eliminar do âmbito escolar todos os mecanismos que con-
tribuem para a reprodução e naturalização da violência contra a mulher,

68
nanci stancki da luz

substituindo todo esse “entulho” por um projeto educacional com novas


perspectivas nas quais estejam presentes o respeito à dignidade humana,
à diferença e à diversidades, bem como a construção de uma igualdade
real entre homens e mulheres. Isto exige a efetivação de um dos objetivos
educacionais: o pleno desenvolvimento humano, conforme disposto no
art. 2º. da Lei n. 9394 de 20 de dezembro de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional – LDB):
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos prin-
cípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finali-
dade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercí-
cio da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Tal desafio não é posto tão somente aos educadores. A violência
está presente em todos os espaços sociais, cabendo a toda a sociedade
assumir um posicionamento claro e inequívoco de que chegou o momen-
to de um “basta”, demonstrando que o círculo da violência pode e deve
ser rompido. Esse rompimento começa com o fim da tolerância à violência
contra a mulher e, particularmente, contra a violência doméstica para que
as novas gerações possam ter esperança de um mundo justo e aprender
isso já nos primeiros momentos de sua vida, ou seja, em seus lares ou em
ambientes onde prevaleçam afeto e proteção.

Considerações finais
A aceitação social da violência contra a mulher é a própria negação dos
direitos fundamentais de toda uma população. A sua manutenção preju-
dica não só as mulheres, visto que contribui para o agravamento das injus-
tiças sociais, e isso afeta a todos, afastando-nos da justiça e da democracia.
O desenvolvimento social, econômico, cultural e político de uma nação
depende de homens e mulheres que, respeitados em suas diferenças, te-
nham a garantia de direitos inerentes ao ser humano, entre eles o de viver
sem violência.
Historicamente temos avanços significativos no sentido de enfren-
tar essa violência, particularmente, na ampliação do seu conceito e na
implementação de ações que visem coibir tal prática. Todavia, a gravida-
de do tema exige continuidade na reflexão, persistência nas ações e que
políticas públicas nessa área sejam prioritárias para o Governo Federal,
Estadual ou Municipal, reconhecendo a importância da construção de re-
lações de gênero baseadas no respeito às diferenças.

69
violência contra a mulher: um desafio à concretização dos direitos humanos

A vida é frágil, e exige que seja preservada em sua plenitude. Há


que se desconstruir a naturalização da violência na sociedade, educando
homens e mulheres para relações solidárias e para a convivência familiar,
baseada no respeito aos direitos individuais e coletivos. Esse desafio deve
ser prioridade individual e institucional. Espera-se que governantes e edu-
cadores, sejam esses homens ou mulheres, pais, mães, enfim, toda a so-
ciedade assuma a proteção da vida e da dignidade de nossas mulheres.
O ser humano não é naturalmente violento e, dessa forma, se os
processos de socialização podem contribuir para a construção da vio-
lência, também podem reverter essa realidade, educando para a sua er-
radicação. É uma escolha que a sociedade pode fazer.
A eliminação da violência, especialmente a de gênero, exigirá mu-
danças nas relações de poder entre homens e mulheres e uma aliança
entre esses com o objetivo de construir uma sociedade com justiça so-
cial. A mulher vítima da violência pode e deve quebrar esse ciclo, de-
nunciando e exigindo a punição de seus agressores. Homens e mulheres
podem e devem construir relações que respeitem os direitos individuais
e coletivos e contribuir na luta pelo fim da violência de gênero.
Prevenir, educar para a não-violência e construir relações huma-
nas baseadas em parâmetros nos quais não caiba a violência, seja ela
qual for, é um caminho que exigirá mudanças nem sempre fáceis de se-
rem concretizadas, entretanto, a opção de nada fazer é muito perigosa,
pois violência não tem “cerca” e se, num determinado momento, aceita-
mos que ela atinja uma parcela da população, em outro, poderá atingir
a nós mesmos.
Devemos considerar finalmente que a aprovação de leis, como a
Lei Maria da Penha, e a ratificação de tratados e convenções internacio-
nais, como a Convenção de Belém do Pará, constituem apenas o princí-
pio do enfrentamento da violência contra a mulher no país. Devemos
continuar exigindo que o Estado cumpra a sua parte na implementação
de ações de prevenção, combate e punição à violência contra a mulher.
Faz-se necessário que a sociedade mantenha-se mobilizada para fiscali-
zar essas ações e combater a violência e, que, sobretudo, a sua preven-
ção ocorra em comportamentos e atividades diárias e no compromisso
com um projeto de sociedade livre da violência.

70
nanci stancki da luz

Notas
1 O androcentrismo consiste em considerar o ser humano do sexo masculino como centro
do universo, como a medida de todas as coisas, como o único observador válido de tudo
o que ocorre no nosso mundo, como o único capaz de ditar as leis, de impor a justiça, de
governar o mundo (MORENO, 1999, p. 23)
2 Extirpação do clitóris acompanhada, muitas vezes, da retirada dos lábios internos da vul-
va.
3 Sutura ou introdução de anel ou colchete nos lábios genitais para impedir o coito ou tor-
nar a relação sexual um ato de extremo sofrimento; essa costura dos lados da vulva pode
ocorrer após a remoção do clitóris e dos pequenos e grandes lábios.

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TELES, Maria Amélia de Almeida. O que são direitos humanos das mulheres. São
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cíntia de souza batista tortato

4
QUESTÕES DE GÊNERO E DIVERSIDADE SEXUAL: AS
POSSIBILIDADES DA LITERATURA INFANTIL

Cíntia de Souza Batista Tortato

Introdução
A abordagem das questões de gênero e diversidade sexual, tendo a lite-
ratura infantil como elemento disparador das reflexões e discussões, foi
pensada como uma das estratégias de sensibilização valendo-se de cur-
sos de capacitação dirigidos a profissionais da educação da rede munici-
pal de ensino da cidade de Matinhos e, posteriormente, da rede estadu-
al de ensino do Paraná. O trabalho foi elaborado de forma a contemplar
as mais diversas situações que acontecem em uma escola, e que podem
proporcionar momentos preciosos para a abordagem, com as crianças
ou jovens, de questões de gênero ou de diversidade sexual. Atendendo
ao objetivo geral do curso: Preparar profissionais para a reflexão sobre as
questões de gênero e diversidade sexual na sociedade em geral e na escola
em particular, afim de que promovam uma educação democrática e inclu-
siva, sem preconceitos nem discriminações. A equipe responsável optou
por trabalhar os conceitos selecionados para o módulo por meio de di-
versas atividades,1 e uma delas foi o uso de livros de literatura infantil,
reconhecendo o trabalho com a literatura como uma forma consagrada
de prática pedagógica no espaço escolar.

Gênero e educação
Como conseqüência das lutas históricas do movimento feminista, políti-
cas públicas relacionadas à inserção da perspectiva de gênero na educa-
ção começaram a surgir nos documentos legais a partir da Constituição
de 1988, e, depois, com a elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais (1997) e dos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação In-

73
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

fantil (1998). Essas políticas representaram um avanço, porém, segundo


Vianna e Unbehaun (2006, p. 407):

(...) embora esses documentos constituam importantes instrumentos de


referência para a construção de políticas públicas de educação no Brasil, a
partir da ótica de gênero, contribuindo com a formação e com a atuação de
professoras e professores, essas políticas não são devidamente efetivadas
pelo Estado.

Entre as questões levantadas pelas autoras, na análise de docu-


mentos de políticas públicas no Brasil, está o questionamento acerca da
sistematização e aprofundamento das questões que compõe a perspec-
tiva de gênero e outras, como as de classe etnia, orientação sexual e
geração, num trabalho constante e permanente junto aos educadores
e ao currículo.
Para uma efetiva inclusão de questões voltadas para o combate às
desigualdades sociais, ações como o curso que está sendo comentado
neste trabalho deveriam se multiplicar tantas vezes quantas fosse neces-
sário. Trabalhar conceitos, noções, construções e desconstruções2 leva
tempo e demanda um esforço conjunto, não basta constar nas orienta-
ções ou legislações, é preciso aproximar a escola e todos que participam
dela às contribuições dos especialistas e suas construções teóricas. Para
AUAD (2006, p. 86):

A escola, para que haja aprendizado, interfere nas hipóteses das crianças
sobre os conhecimentos matemáticos, científicos e lingüísticos. Da mesma
maneira, há de se intervir nos conhecimentos relativos às relações de gêne-
ro, às relações étnico-raciais, geracionais e de classe, para que as discrimi-
nações e desigualdades acabem.

E ainda mais, é preciso extrapolar os limites da sala de aula e en-


volver todos que fazem parte da escola, pois “cada espaço da instituição
– as salas de aula, a sala de professores, a cozinha, o saguão, o corredor
ou o pátio – tem características comuns e, também, particularidades que
lhe são próprias, configurando sua própria cultura” (STIGGER e WENETZ,
2006, p. 733.
A abordagem do conceito de gênero procurou proporcionar o
entendimento da construção social e histórica que se fez em torno dos
sexos e das desigualdades que decorreram dessa construção, enfatizan-

74
cíntia de souza batista tortato

do o aspecto relacional e social do conceito e considerando o “gênero


como constituinte da identidade dos sujeitos” (LOURO, 1997). Apoiou-
se em Meyer (2003, p. 16), que contextualiza o conceito de gênero fun-
damentado numa abordagem feminista pós-estruturalista, com base
em Michel Foucault e Jacques Derrida, considerando o corpo “como um
construto sociocultural e linguístico, produto e efeito de relações de po-
der”. Houve uma grande preocupação em trabalhar a idéia de que tanto
as questões de gênero como as de sexualidade são social e historica-
mente construídas e, portanto, podem ser transformadas e modificadas.
Segundo Louro (1997, p. 28):

Em suas relações sociais, atravessadas por diferentes discursos, símbolos,


representações e práticas, os sujeitos vão se construindo como masculinos
ou femininos, arranjando e desarranjando seus lugares sociais, suas dis-
posições, suas formas de ser e estar no mundo. Essas construções e esses
arranjos são sempre transitórios, transformando-se não apenas ao longo
do tempo, historicamente, como também transformando-se na articulação
com as histórias pessoais, as identidades sexuais, étnicas, de raça, de classe
(...).

Sobre a literatura infantil


Optou-se por trabalhar com literatura infantil por ser uma prática bas-
tante comum nas atividades pedagógicas, seja na escola ou no meio fa-
miliar. A literatura infantil compreende um universo de simbolizações e
significações que se situam numa posição privilegiada de comunicação
com a criança. Os tipos de linguagem, ilustrações e formatos têm sido
pensados e testados para esse fim entendendo que – a partir da centra-
lidade que a criança assumiu na cultura contemporânea – ela também
se constituiu em um grande mercado consumidor (FELIPE, 1999, 2000,
2003; GOUVÊA, 2005; ZILBERMAN e LAJOLO, 1991; ZILBERMAN, 2003).
Os setores acadêmicos ligados à crítica da literatura infantil como
recurso pedagógico ressaltam que o uso de livros e histórias infantis
como pretexto para abordar questões pedagógicas compromete o cará-
ter artístico dessa modalidade de literatura (SILVEIRA, 2003). Para alguns
autores a literatura pertence ao campo do lúdico e da emoção, e sua
subordinação ao discurso científico-pedagógico pode até aniquilá-la
(BURGARELLI, 2005).

75
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

No entanto, a criação e a consolidação da literatura infantil estão


historicamente ligadas a questões de cunho pedagógico. Gouvêa (2005,
p. 81), fazendo um resgate da construção histórica da literatura infantil,
coloca:

De maneira característica, a literatura infantil definiu-se historicamente


pela formulação e transmissão de visões de mundo, assim como mode-
lo de gostos, ações, comportamentos a serem reproduzidos pelo leitor.
Construiu-se a concepção de um texto literário em que o caráter pedagó-
gico fez-se especialmente presente. Ao mesmo tempo, à menoridade da
infância associou-se a menoridade da produção literária, no interior desse
campo cultural.

Sabe-se hoje que a literatura infantil tem uma trajetória históri-


ca vinculada ao contexto social em que surgiu e se consolidou e que, a
partir daí, conquistou um espaço próprio e importante como um gêne-
ro literário. Salientamos que neste trabalho não estamos reduzindo a
função da literatura infantil a um recurso pedagógico, mas estamos nos
valendo de um universo em que as questões principais desse trabalho –
as questões de gênero e da diversidade sexual – possam ser abordadas
com as crianças de forma lúdica e sem modelos definidos.4 Como afirma
Zilberman (2003, p. 12):

O fato de a literatura infantil não ser subsidiária da escola e do ensino não


quer dizer que, como medida de precaução, ela deva ser afastada da sala de
aula. Como agente de conhecimento, porque propicia o questionamento
dos valores em circulação na sociedade, seu emprego em aula ou em qual-
quer outro cenário desencadeia o alargamento dos horizontes cognitivos
do leitor, o que justifica e demanda seu consumo escolar.

Silveira (2003) destaca a idéia de que mesmo sem finalidade explí-


cita de ensinar, os livros infantis carregam uma ideologia implícita com
estruturas sociais assumidas e valores. Silveira e Santos (2006, p.1) com-
plementam:

Assim, mesmo a literatura infantil produzida nos anos mais recentes que se
pretende “emancipatória”, ou “não pedagogizante”, “não moralizante”, não
foge à contingência de carregar consigo representações de mundo, cons-
ciente ou inconscientemente nela plasmadas pelo autor, assim como não
pode sofisticar demais seus recursos, sob pena de ser rejeitada pelo leitor
infantil.

76
cíntia de souza batista tortato

Em muitos casos, porém, está explícita a intenção de problema-


tizar e oferecer possibilidades de leituras de mundo para as crianças de
forma a questionar os padrões hegemônicos.5 A literatura infantil tam-
bém está relacionada ao desenvolvimento da linguagem. Por meio do
ludismo e das linguagens simbólica, imagética e verbal, a criança entra
em contato com uma série de estímulos que vão auxiliá-la em seus pro-
cessos de aprendizagem e em sua formação como um todo (CANDIDO,
2003).

Vivendo a literatura infantil


Uma das atividades desenvolvidas com os grupos que participaram das
capacitações foi iniciada com a leitura do livro Por que meninos têm pés
grandes e meninas têm pés pequenos, de Sandra Branco. Após a leitura
desse livro, é possível fazer uma discussão acerca de como a autora uti-
liza estereótipos a respeito das relações de gênero e, posteriormente,
questiona-os. Levantar os pontos positivos e negativos dessa obra e
como ela poderia ser utilizada em sala de aula, para desconstruir pa-
drões socialmente construídos quanto ao comportamento de meninas
e meninos, é também um exercício muito válido na abordagem das
questões de gênero.6
A autora propõe uma reflexão sobre as representações de gênero
valendo-se dos pés e as situações corriqueiras em que as desigualdades
são reforçadas e naturalizadas no discurso. É preciso prestar atenção na
forma de abordagem da autora e na ilustração do livro, destacando a
delicadeza com que o tema foi exposto.7
A leitura do livro Diversidade, de Tatiana Belinky também propor-
ciona uma abertura para discutir as diferenças entre as pessoas. Esse
livro mostra que não importa como as pessoas são, elas devem ser res-
peitadas, e que a diferença não deve ser traduzida em desigualdade. A
ilustração do livro, feita com colagens, de maneira muito lúdica e colo-
rida, propõe uma alternativa aos modelos estereotipados, tão comuns
em livros infantis. Todo livro que servir de base ou estímulo para refle-
xões acerca de questões de gênero ou diversidade deve ser analisado
em seus pontos positivos e negativos, lembrando que a literatura infan-
til não é um mero recurso da pedagogia. Não sendo pensado para tratar
diretamente dessas questões, vão comumente haver questões a serem
consideradas por quem está buscando na literatura sua fonte de recur-

77
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

sos. No caso do livro citado, dois pontos negativos foram identificados:


o fato de o livro estar escrito todo no masculino e a única menção às
meninas trazer o adjetivo “pequeninas”. A percepção desses detalhes
demonstra que o leitor, seja ele de que sexo for, já está atento e crítico
às questões de gênero.
Com a leitura desses livros, pode-se discutir as representações
neles apresentadas, questionar outros livros de literatura infantil com
o intuito de sensibilizar acerca das representações de gênero presentes
em diversos tipos de publicação – que podem ser utilizadas como apoio
às atividades de ensino/aprendizagem – bem como levantar questiona-
mentos a respeito da desconstrução de modelos presentes nos livros de
literatura. Como afirma Louro (1997, p. 59) “Os sentidos precisam estar
afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir, sentir as múltiplas for-
mas de constituição dos sujeitos implicados na concepção, na organiza-
ção e no fazer cotidiano escolar”.

E as famílias?
Para introduzir a discussão a respeito dos tipos de famílias é válido pen-
sar em alguns questionamentos, como:
O que é uma família? O que transforma pessoas em família? Fa-
mília pressupõe proximidade física? E quanto aos que vivem em outro
lugar, não são considerados como família? Família pressupõe laços de
sangue?
Nos depoimentos das pessoas, comumente, fica muito marcada,
num primeiro momento, a visão de um modelo ideal de família8 – a
chamada família nuclear – composta de pai, mãe e filhos com papéis
pré-definidos. Segundo Narvaz e Koller (2006, p. 52):

Estudos com famílias brasileiras (Bernardes, 1995; Hileshiem, 2004; Narvaz,


2005; Szymansky, 1977) apontam estereótipos acerca da divisão do tra-
balho dentro do ambiente doméstico de acordo com o sexo da pessoa e
demonstram a tradicional distinção entre os papéis do pai e o da mãe na
chamada família nuclear, formada pelos pais e seus filhos dependentes.

Isso marca a força da visão patriarcal9 de família, que foi historica-


mente construída e ideologicamente mantida por meio da dominação
masculina (NARVAZ e KOLLER, 2006). Essa construção diz respeito tam-
bém às questões de gênero. É preciso, com apontamentos e explana-

78
cíntia de souza batista tortato

ções, pensar sobre os papéis desempenhados dentro das famílias, pois,


como já foi mencionado, o modelo patriarcal construiu também todo
um campo de ação, comportamentos e responsabilidades para os ho-
mens, para as mulheres e para as crianças de acordo com seu sexo. A
forma de perceber a criança dentro da família e a atribuição de papéis
a serem desempenhados por ela, dentro da dinâmica familiar, também
é resultado da mesma construção histórica10 que elegeu um modelo de
família e normatizou os papéis familiares. Kamers (2006, p. 109) enfatiza
que “desde os clássicos estudos de Áries (1981) e Postmann (1999) sabe-
mos que a modernidade, ao instituir um novo lugar para a criança, inau-
gura, em relação à família, novos discursos em que as funções parentais
adquirem novas exigências imaginárias.”
No desenvolvimento do trabalho com o tema família é repe-
tidamente ressaltada a questão histórica da construção social que foi
elaborada pela sociedade para sustentar um determinado modelo de
família em seu discurso normativo. A idéia é flexibilizar a forma de pen-
sar a família e as relações familiares de modo a compreender que não
há necessidade de um modelo pré-estabelecido, entendendo que essa
compreensão é necessária para sustentação e manutenção do respeito
à diversidade e às formas de família que não sigam o padrão patriar-
cal.11 Assim, “é preciso revisar a idéia hegemônica de família e de pa-
péis familiares, dado que o estigma atribuído aos sujeitos que vivem
configurações e papéis alternativos aos normativos é opressivo, fonte
de sofrimento psíquico e terreno fértil para desigualdades e violações”
(NARVAZ e KOLLER, 2006, p. 53).12
Sabe-se que, no trabalho, os profissionais envolvidos com edu-
cação, professores ou não, vão se relacionar com alunos cujas famílias
não necessariamente se encaixam no padrão mencionado13. Os próprios
profissionais, no campo individual, experimentam formas de estrutura
familiar que não correspondem ao padrão que muitas vezes é eleito por
eles como ideal. Isso ficou evidente nas falas das pessoas enquanto re-
fletem a respeito desse assunto.
A leitura do livro infantil O livro da família, de Todd Parr, trata de
forma lúdica as possibilidades de estrutura e compreensão de família.
A obra apresenta o assunto com frases simples e curtas14, porém, com
grande impacto – resultante da profundidade do assunto e das ilustra-
ções muito coloridas e engraçadas. O traçado dos desenhos que ilus-

79
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

tram o livro tem uma relação com os desenhos infantis, denotando uma
idéia de sinceridade, em que o uso das cores fortes não segue padrões.15
As famílias são representadas tanto por desenhos de pessoas como por
desenhos de animais, recurso muito utilizado para despertar o interesse
da criança.
O objetivo da leitura desse livro é problematizar a discussão sobre
tipos de famílias, mostrando e ressaltando a diversidade e questionando
o padrão de família hegemônico: pai, mãe, filho e filha. Essa atividade
pode levar à discussão acerca das datas comemorativas, bem como de
que forma essas datas estão sendo trabalhadas no ambiente escolar,
como podem ser adaptadas para que contemplem as diversas estrutu-
ras familiares e, conseqüentemente, a realidade de um maior número de
alunos e alunas.
Com essa atividade também é possível discutir os conceitos de di-
ferença e desigualdade, buscando evidenciar que todos são diferentes,
porém, as diferenças de cultura, idade, sexo, classe e raça não podem
ser traduzidas em desigualdade e em situações nas quais pessoas são
valorizadas em detrimento de outras (SILVA, 2004).
A leitura do livro comumente expõe a comoção de algumas pes-
soas diante das afirmações do texto, comentários do tipo: “Puxa, é mes-
mo...” representam a necessidade de aprender mais sobre diversidade,
respeito e possibilidades. A construção das representações referentes
aos modos de ser de homens e mulheres, traduzida na questão de gêne-
ro, deve ser bastante trabalhada depois da leitura do livro e da discussão
inicial. É muito importante que, por meio das falas, as pessoas trabalhem
com a noção de que suas concepções sobre gênero e papéis definidos
para os membros de uma família não são imutáveis, e podem ser orga-
nizados de outras formas.
Depois de um tempo de discussão e reflexão, torna-se mais fácil
compreender que a estrutura familiar vem se modificando ao longo do
tempo e das lutas sociais,16 e que é urgente que a escola e seus profissio-
nais considerem e procurem contemplar em suas atividades a diversida-
de de famílias que possam existir ou serem ainda construídas17.
Faz-se necessário também mencionar que as famílias que se en-
caixam no padrão tradicional não devem ser condenadas ou criticadas
por essa escolha, a questão é reconhecer e respeitar todas as formas de
estruturação familiar sem que uma seja tida como mais certa ou mais

80
cíntia de souza batista tortato

adequada que outras. A respeito disso Wagner, Predebon, Mosmann e


Verza (2005, p. 186), na pesquisa sobre papéis de pai e mãe na família
contemporânea, complementam:

Os dados refletem de forma clara que as mudanças nas funções e papéis


na família contemporânea não vêm ocorrendo com a mesma intensidade
em todos os núcleos. Co-existem modelos familiares e há um descompasso
nas mudanças (...). Não podemos pressupor um modelo ideal, igualitário e
equilibrado (...).

No que se refere às mudanças na estrutura familiar, a questão da


divisão de papéis, funções e modos de ser de homens e mulheres, uma
forma de abordagem, que tem resultado em muito subsídio para discus-
são, são os relatos das pessoas de suas experiências pessoais. Os rela-
tos geralmente são muito ricos, e por meio deles é possível trabalhar as
questões de gênero e é uma das possibilidades de mostrar para as crian-
ças outras formas de dividir os papéis e as tarefas dentro da família.
Um aspecto marcante também é o exercício de questionar a for-
ma de vida e relações familiares vividas por nossas mães em compara-
ção com as nossas avós. O raciocínio pode também ser direcionado a
entender porque nossas mães, pais ou avós construíram suas relações
de uma maneira e não de outra. Esses questionamentos ilustram que
formas de viver são passadas de uma geração à outra, muitas vezes to-
talmente desconectadas com o momento histórico e social vivido por
cada geração. Como complementação, ressalta-se a necessidade de ofe-
recer outras oportunidades às próximas gerações, num movimento de
superação e transformação, e não, exclusivamente, de repetição. O que
é bom pode ser mantido e passado para as próximas gerações, entre-
tanto, muita coisa precisa ser mudada para que as relações familiares
sejam mais igualitárias.

Ler e apreciar
Para o trabalho com as questões de gênero e diversidade foram esco-
lhidos alguns livros de literatura infantil que tratam desses e outros as-
suntos das mais diversas formas. No trabalho prático realizado com pro-
fissionais da educação, nos cursos de capacitação já citados, a dinâmica
proposta foi dividir as turmas em pequenos grupos e distribuir um livro
de literatura infantil para que cada grupo fizesse a leitura e identificasse

81
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

em que faixa etária o livro poderia ser utilizado, quais temas poderiam
ser trabalhados com ele, os pontos positivos e negativos de cada obra e
que, posteriormente, falassem para o grande grupo acerca de suas im-
pressões do material lido. Não existe outra maneira de trabalhar com
literatura infantil que não seja lendo e apreciando cada livro antes de
oferecê-lo a quem quer que seja.
Dentre os títulos selecionados, o livro Mamãe botou um ovo, de
Babette Cole, trata da temática da reprodução. As ilustrações merecem
destaque por serem adequadas à forma com que a autora aborda o
tema, com delicadeza, beleza e simplicidade. As personagens principais
são duas crianças, um menino e uma menina, cujos pais resolvem dar os
esclarecimentos acerca da reprodução, partindo desse propósito, sur-
gem várias invenções mirabolantes que explicam como os bebês vêm
ao mundo. Diante disso, as crianças resolvem explicar para os pais o
que todo mundo já sabe e, nesse momento, entram as explicações ade-
quadas, com base científica, de forma simples e lúdica, proporcionan-
do uma resposta direcionada à grande parte das dúvidas apresentadas
pelas crianças que estão passando por essa fase. Da mesma autora, o
livro Cabelinhos nuns lugares engraçados, fala sobre as mudanças físi-
cas e emocionais enfrentadas pelas crianças que adentram na fase da
puberdade. Igualmente delicado e lúdico o livro proporciona acesso a
conhecimentos científicos de forma clara e sensível, fala das alterações
hormonais colocando os hormônios como dois monstrinhos que ficam
dentro do corpo das crianças preparando poções durante a infância que
vão desencadear nas transformações da puberdade. Trata das dificulda-
des e conflitos emocionais comuns a essa fase da vida, e pode servir de
impulso para as questões de gênero que acompanham essa temática,
vivida de forma diferente por meninos e por meninas.
O livro Ceci tem pipi?, de Thierry Lenain traz um personagem me-
nino que tem dificuldades para entender o comportamento de uma
menina de sua turma de escola porque tal comportamento não se en-
caixa em seus padrões pré-estabelecidos a respeito de como uma me-
nina deve se comportar e o que pode fazer sendo menina. As ilustra-
ções são lúdicas, agradáveis, e as questões de gênero, no que se refere
a comportamentos, são abordadas, desde o início do livro, por um viés
humorístico, tornando a leitura ainda mais agradável. Até a questão do
pênis como órgão dotado de poder é trabalhada de uma forma simples

82
cíntia de souza batista tortato

e direta. Do mesmo autor, o livro Sementinhas de fazer bebês, trata da


reprodução partindo de dois pontos de vistas: como a sementinha do
papai entra na barriga da mamãe e como o bebê sai da barriga dela. Para
cada abordagem foi feita uma capa, assim, o livro começa de ambos os
lados, e cada ponto de partida vai até a metade tornando o manuseio
ainda mais interessante e propondo a compreensão de que há muitas
formas de entender o processo da reprodução. As ilustrações são lúdi-
cas e importantes conforme o texto vai se desenrolando. Uma novidade
desse livro é a apresentação das formas de reprodução assistida e outros
tipos de parto.
No livro Faca sem ponta, galinha sem pé, de Ruth Rocha, as ques-
tões envolvendo os comportamentos de meninos e meninas, ou seja, as
questões de gênero relacionadas ao desempenho de papéis são coloca-
das de uma forma bastante divertida e muito semelhante à vivência das
próprias crianças. Conta a história de dois irmãos, um menino e uma me-
nina, que um dia passam embaixo de um arco-íris e trocam de corpos,
esse acontecimento vai gerando uma série de complicações e questio-
namentos acerca do que pode ou não pode nos comportamentos de me-
ninas e meninos, inclusive a desorientação dos pais sobre o que esperar
e permitir do filho homem e da filha mulher. Do ponto de vista de gêne-
ro como construção social e histórica, esse livro oferece uma infinidade
de subsídios para os educadores trabalharem essas questões consigo
mesmos e com as crianças, da mesma forma que os outros livros citados,
de maneira simples e direta.
Com o livro Menino brinca de boneca?, de Marcos Ribeiro, a criança
pode colocar sua experiência pessoal, pois, o livro proporciona uma par-
ticipação importante em que o leitor é convidado a dar seu depoimento
e fazer observações e registros que tratem do funcionamento da sua
dinâmica familiar. Com personagens que também são crianças e jovens,
o autor propõe uma série de reflexões sobre preconceitos e estereóti-
pos, auxiliando o leitor a levar essas reflexões para sua vivência pessoal
e para as suas dificuldades enfrentadas na família e na escola. As ilustra-
ções complementam a temática dando enfoque nas reações adversas
dos adultos frente a comportamentos inesperados das crianças e dos
jovens.
Tratando de questões relacionadas aos comportamentos espera-
dos pelos pais por parte de seus filhos, o livro O menino que brincava

83
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

de ser, de Georgina Martins, traz uma contribuição maravilhosa, o livro


conta a história de um menino que enfrenta uma série de dificuldades
com seus pais por gostar de “brincar de ser”: brincar de se fantasiar, e
experimentar maneiras de ser, com personagens tanto masculinas
como femininas. A vivência de personagens femininas ocasiona gran-
de angústia para os pais que relacionam a brincadeira a uma perda de
masculinidade. Essa problemática é trabalhada ao longo da história de
uma forma muito sensível e próxima dos relatos de muitos pais de crian-
ças pequenas, a autora termina a história valorizando a importância do
brincar e do faz-de-conta, oferecendo elementos que levam a grandes
reflexões no sentido de desconectar as brincadeiras infantis dos papéis
de homem e de mulher esperados pelas famílias e pela sociedade.
Nas atividades práticas realizadas com profissionais da educação
envolvendo os livros aqui relacionados houve uma grande repercussão.
Em geral, os grupos apreciaram muito o conteúdo, as ilustrações e as
formas de abordagens dos livros selecionados. Muitas participantes re-
lataram que não conheciam os títulos e que o acesso aos lançamentos e
catálogos de livros de literatura infantil era difícil. Os livros selecionados
abordam de forma lúdica, às vezes engraçada, e com muita sensibili-
dade tanto as questões de gênero como as de sexualidade e diversida-
de sexual. Entendendo que a sexualidade está sempre relacionada às
construções de masculino e feminino, o assunto vai sendo trabalhado
ao longo do tempo, pois, determinar um momento em separado para
tratar de sexualidade seria contradizer a toda opção teórica e conceitual
assumida.

Considerações
Os relatos finais e a avaliação dos grupos confirmaram a importância
de se trabalhar as questões de gênero e diversidade sexual na escola e
a pertinência de se fazer esse trabalho por meio da literatura infantil. As
pessoas que participaram demonstraram prazer e satisfação na realiza-
ção das atividades com as obras infantis, pois puderam ver neles uma
ferramenta que pode lhes dar suporte no cotidiano escolar.
As falas e reações do grupo durante os cursos revelaram, em vá-
rios momentos, o movimento de naturalização dos preconceitos e discri-
minações – mesmo trabalhando com educação, questões importantes
para a formação das crianças e dos próprios profissionais passam des-

84
cíntia de souza batista tortato

percebidas. Ao longo do trabalho, as pessoas foram demonstrando que


seus olhares e suas percepções estavam ficando mais aguçados para as
questões de gênero e diversidade sexual. O depoimento de uma profes-
sora sintetiza o que foi claramente percebido pelo grupo:

... não vai ser fácil, mas nada que não possamos começar a tentar mudar
essa cultura... por que... eu sou uma que já tinha alguma informação, já ti-
nha ido atrás, já tinha pesquisado esses assuntos, claro que superficialmen-
te... mas esse curso pra mim tá dando vários motivos pra eu me perguntar
coisas que há cinqüenta anos eu convivo e eu nunca me perguntei... nunca
me perguntei...18

Enfim, as atividades com livros de literatura infantil revelam-se


importantes para provocar a discussão das temáticas de gênero e di-
versidade sexual. É possível contemplar praticamente toda a teoria de
gênero por meio de livros infantis de uma forma muito clara, direta, com
sensibilidade e responsabilidade.

Notas
1 Foram trabalhadas atividades envolvendo brincadeiras, músicas, hora do recreio, teatro,
situações de sala de aula, situações de família, produção artística, contação de histórias,
momentos de depoimentos e de reflexões conjuntas.
2 Louro (1997, p. 30) situa a idéia da desconstrução referindo-se à historiadora Joan Scott
que coloca “a idéia de que é preciso desconstruir o caráter permanente da oposição binária
masculino-feminino”, reforçando que essa oposição também “é construída e não inerente
e fixa”. E ainda, em Louro (2004, p.42) “Desconstruir um discurso implicaria minar, escavar,
perturbar e subverter os termos que afirma e sobre os quais o próprio discurso se afirma.”
3 Pesquisa realizada visando estudar as relações de gênero que se manifestam no momento
do recreio escolar.
4 A escolha dos livros privilegiou aqueles em que a normatização por meio de representa-
ções das relações de gênero e da sexualidade é subvertida de alguma forma.
5 Para Sefon (2006, p. 1): Os livros são importantes artefatos culturais e, no Brasil, desde
1980, vêm reforçando seu lugar junto a crianças, professores, professoras e familiares, como
veiculador pedagógico, que ensina, dentre outros aspectos, o ‘certo e o errado’, o ‘bom e o
mau’, os modos de ser ‘menino e menina’, de ser ‘pai e mãe’.
6 Um trecho do livro: Não importa... se os seus pés são grandes ou pequenos, nem se você chuta
bola ou brinca com bonecas, ou os dois, ou até nenhum dos dois, nem se você usa sapato rosa ou
azul, ou até mesmo nenhum dos dois ...
7 Segundo Santos e Hessel (2006, p. 1) “Desde muito cedo, variadas instancias, como a fa-

85
questões de gênero e diversidade sexual: as possibilidades da literatura infantil

mília, as instituições escolares, a mídia e os diferentes artefatos culturais, procuram instituir


nos corpos infantis as identidades de gênero (...)”, daí a necessidade de abordar o assunto
desde cedo.
8 Sobre a história da constituição da família nuclear ocidental ver: ARIÈS, P. (1986); PONCIA-
NO; CARNEIRO (2003).
9 Conforme Narvaz e Koller (2006, p. 50): O patriarcado é uma forma de organização social na
qual as relações são regidas por dois princípios básicos: 1) as mulheres estão hierarquicamen-
te subordinadas aos homens; 2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens
mais velhos. A supremacia masculina ditada pelos valores do patriarcado atribuiu um maior
valor às atividades masculinas em detrimento das atividades femininas; legitimou o controle
da sexualidade, dos corpos e da autonomia femininas; e, estabeleceu papéis sexuais e sociais
nos quais o masculino tem vantagens e prerrogativas (Millet,1970; Scott,1995).
10 Sobre a história da criança, ver: ARIÈS (1986) e BADINTER (1985).
11 Para Narvaz e Koller (2006), as famílias brasileiras apresentam configurações diferentes,
alternativas ao modelo tradicional, como famílias chefiadas por mulheres, famílias extensas,
famílias de criação e os casais e famílias homossexuais.
12 A partir de 1965 gays e lésbicas passaram a reivindicar o direito a paternidade/maternidade
e reivindicaram uma cultura da família que repetia o modelo que haviam contestado (RODRI-
GUES, 2005).
13 Até mesmo as expectativas dos professores quanto ao acompanhamento das atividades
para casa pressupõe um “modelo de família e papel parental ideal, com base nas divisões de
sexo e gênero (...)” (CARVALHO, 2004, p. 42).
14 Algumas frases são: Em algumas famílias todos são da mesma cor; Em algumas famílias
todos são de cores diferentes; Algumas famílias têm duas mães e dois pais; Algumas famílias
têm só pai ou só mãe.
15 Há desenhos de pessoas de rosto azul, amarelo, cabelo cor-de-rosa, por exemplo.
16 Sobre as transformações na estrutura familiar contemporânea ver: KAMERS (2006); MA-
CHADO (2005); ROUDINESCO (2003); RODRIGUES (2005).
17 Sobre conjugalidades e parentalidades de gays, lésbicas e transgêneros no Brasil, ver GROS-
SI, MELLO e UZIEL, 2006.
18 Depoimento de uma professora de segunda série, do ensino fundamental.

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89
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

5
GÊNERO, EDUCAÇÃO E ARTEFATOS TECNOLÓGICOS: OS
DIFERENTES MEIOS PARA ENSINAR

Solange Ferreira dos Santos


Benedito Guilherme Falcão Farias

Dizem que mais difícil do que adquirir novos conhecimentos é


conseguir desprender-se dos velhos. Abandonar uma idéia supõe
renunciar a uma parte de nosso pensamento – daquele que consi-
deramos verdade durante muito tempo – e deixar-se fascinar pelo
insólito. É nesta capacidade de fascinação que reside o gérmen do
progresso. (MORENO, 1999)

A aquisição de um novo conhecimento implica, muitas vezes,


uma desconstrução daquilo que se caracteriza como ‘verdade’, que faz
parte da mente e corpo das pessoas. O processo de desconstrução nem
sempre ocorre com facilidade. Certas doutrinas, práticas, rituais, normas
sexistas e androncêntricas impedem a consolidação da eqüidade de gê-
nero em diversos campos sociais, políticos, científicos e tecnológicos da
sociedade.
Os estudos de gênero surgiram para possibilitar a compreensão
abrangente das estruturas sociais, políticas, culturais, religiosas e histó-
ricas da sociedade, as quais são transpassadas pelas relações de gênero.
A palavra gênero remete à discussão do masculino e feminino e ao Mo-
vimento Feminista nos anos 60 - que através de um grande movimento,
em favor dos direitos da mulher, modificou em muitos países a situação
dessa, trazendo a conquista de direitos e respeito à condição e capaci-
dade da mulher no mercado de trabalho. Nesse sentido, a palavra gêne-
ro é abrangente, e refere-se ao aspecto político de lutas e ao Movimento
Feminista (FARIAS, 2007).
O termo gênero se constitui como uma ferramenta desmistifica-
dora dos conceitos, até então, considerados como absolutos e univer-
sais. Para Carvalho (2003), esse termo marca a influência da cultura na

91
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

construção das diferenças, uma vez que os aspectos masculinos e femi-


ninos são construídos socialmente e, sendo assim, estão em constante
transformação.
No mesmo sentido, Louro (1997) argumenta que “ser homem” ou
“ser mulher” varia de acordo com a história e com a cultura. O sentido da
diferença não é dado pela diferenciação biológica do sexo, mas pelo valor
simbólico que lhe é atribuído.
A categoria gênero é constituinte das identidades dos sujeitos, as
quais são “plurais, múltiplas; identidades que se transformam que não são
fixas ou permanentes que podem, até mesmo, ser contraditórias” (LOU-
RO, 1997. p. 24). Porquanto, gênero consiste em um processo de inter-
pretação da realidade cultural, a qual se apresenta carregada de sanções,
tabus e prescrições. A identidade de gênero é construída durante toda a
vida do ser humano. Desde os primeiros até os últimos anos de vida, são
construídas novas aprendizagens e abordagens sociais e históricas.
Nesse sentido, a escola pode se constituir em um espaço institucio-
nal propiciador de relações humanas, conseqüentemente, constitutivo de
aprendizagens emancipatórias ou de manutenção do “status quo” e das
desigualdades. Para Louro (1998), a escola consiste em um espaço onde
são produzidas diferenças, distinções e desigualdades. Por meio da so-
cialização, desde os primeiros anos de escola, formam-se as identidades
de gênero: o que é ser homem ou o que é ser mulher, bem como quais
atitudes devem ou não ser manifestadas. “Ali se aprende a olhar e a se
olhar, se aprende a ouvir, a falar e a calar; se aprende a preferir” (LOURO,
1997, p. 61).
Para tanto, faz-se necessário que todas as pessoas envolvidas no
ambiente escolar estejam abertas para discutir as temáticas de gênero e
sexualidade, para ver, ouvir e sentir as múltiplas formas de constituição
dos sujeitos no cotidiano escolar Louro (1997). Ao mesmo tempo, é im-
portante enfrentar o desafio de desenvolver uma postura ética ao não se
hierarquizar as diferenças, e sim aprender a conviver com elas e a respeitá-
las. Ser educador ou educadora não consiste em apenas uma profissão e
sim, numa vocação, que nasce de um grande amor, de uma grande espe-
rança em transformar para melhor a sociedade (ALVES, 1986).
O gênero se constitui em um eixo que perpassa todas as instân-
cias sociais e, por conseqüência, a escola está presente em instâncias
que vão desde as políticas educacionais, as trajetórias educacionais de

92
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

alunas e alunos, o desenvolvimento dos currículos, o conteúdo dos li-


vros didáticos e dos recursos pedagógicos, o cotidiano escolar, a forma-
ção de professores, a relação da escola com a família até os termos que
dizem respeito à identidade docente, à identidade sexual e étnico-racial
e à sexualidade (SILVEIRA e GODINHO, 2007).
A ação pedagógica não necessariamente está ligada somente à
escola. Sob a ótica dos Estudos Culturais, parte-se do pressuposto de
que todo conhecimento, na medida em que se constitui em um siste-
ma de significados, é cultural. Pode ser tratado por meio de diversos
meios (música, filmes, livros, artes visuais...), os quais são produtos da
ação humana, portanto, carregam ideologias, concepções e relações de
poder, e “tal como a educação, as outras instâncias culturais também
são ‘pedagógicas’, também ensinam alguma coisa” (SILVA, 2003, p. 139).
Nesse sentido, faz-se necessário que o educador reflita sobre sua prática
pedagógica, pois, na “sociedade da informação”, denominada assim por
Castells (1999), as mudanças sociais, culturais, políticas e tecnológicas
acontecem de forma cada vez mais rápida, a cada dia que passa.
A educação brasileira, nesse contexto passou por mudanças estru-
turais significativas ao longo das últimas décadas. As formas de ensinar
do século passado não são mais utilizadas. Hoje elas são diversificadas,
múltiplas e inovadoras. “Na sociedade da informação todos estamos
reaprendendo a conhecer, a comunicar-nos, a ensinar e aprender; a in-
tegrar o humano e o tecnológico; a integrar o individual, o grupal e o
social” (MORAN, 2000, p. 1).
No ensino tradicional, presente nos séculos XIX e XX, as metodolo-
gias se referiam a aulas expositivas, lições de casa e exercícios de fixação
e memorização. O conhecimento científico era tomado como neutro e
como verdade absoluta. Os principais recursos didáticos utilizados eram
o livro didático e as apostilas. E a avaliação, por sua vez, era em forma de
questionários, nos quais o aluno deveria apenas reproduzir o conheci-
mento que havia anteriormente decorado nos livros didáticos.
Com o surgimento da ‘escola nova’, na década de 1930, passa-se
a valorizar a participação ativa do aluno, o foco estava nas atividades ex-
perimentais. O objetivo fundamental do ensino de Ciências, por exem-
plo, era dar condições ao aluno de identificar problemas por meio das
observações a respeito de um fato, levantar hipóteses, testá-las, refutá-
las ou abandoná-las tirando suas próprias conclusões (GADOTTI, 2000).

93
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

Nos anos 80, com o surgimento das tendências progressistas co-


meçam as discussões a respeito das relações entre Ciência, Tecnologia e
Sociedade (CTS). Surgem propostas para a renovação dos critérios para
a escolha de conteúdos a serem abordados na escola. Já nos anos 90,
inicia-se um movimento de renovação, que se caracterizou pelo deslo-
camento de uma cultura de saberes disciplinares para uma cultura dos
procedimentos de aprendizagens. Essa renovação é decorrente de mu-
danças sociais, culturais e políticas que possibilitaram a busca de novos
caminhos para a educação.
Desse modo, vemos que a trajetória histórica educacional brasilei-
ra passou por momentos distintos, de acordo com o que foi brevemente
contemplado nos parágrafos anteriores, observa-se, no entanto que

Não existe educação neutra. Ao trabalhar na área de educação, é sempre


necessário tomar partido, assumir posições. E toda escolha de uma con-
cepção de educação é, fundamentalmente, o reflexo da escolha de uma
filosofia de vida (HAYDT, 1997, p. 23).

A educação consiste em um espaço de construção social do ser


humano, independente de diferenças, credos ou raças e suas inter-re-
lações. Ela não apenas instrumentaliza para o mundo do trabalho, mas
atua diretamente na “construção de sentidos, significados e ideologias,
comprometidos com a formação ampla do cidadão, principalmente no
que diz respeito à comunicação intersubjetiva na leitura crítica em rela-
ção à cultura e ao conhecimento” (SANTOS, 2000, p. 45).
Voltada para a formação das pessoas, a escola consiste em um
espaço institucional, gerida pelas políticas públicas vigentes, a qual é,
necessariamente, “(...) atravessada pelos gêneros; é impossível pensar
sobre a instituição sem que se lance mão das reflexões sobre as constru-
ções sociais e culturais de masculino e feminino” (LOURO, 1999, p. 89),
que podem ser vividas de múltiplas formas. Cada ser humano expressa
suas necessidades e desejos por meio de gestos, rituais e linguagens,
práticas essas que são produzidas na e pela cultura.
Os artefatos tecnológicos (vídeo, retroprojetor, aparelho de som,
televisão, revistas, jornais, computadores e internet), quando utilizados
de maneira adequada no cotidiano escolar, articulados aos temas de
gênero, classe, raça e etnia, podem permitir o enriquecimento e a pro-
blematização desses temas de forma crítica, e não apenas a explanação

94
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

deles. Os artefatos são meios pelos quais se lançam as indagações e


inquietações a respeito de uma gama de assuntos por meio das mais
diferentes abordagens. Utilizando-se músicas, filmes, jornais, revistas, li-
vros, dentre outros, tem-se abertura para que as temáticas mencionadas
sejam abordadas na escola e nas diversas instâncias sociais e educacio-
nais.
Nesse artigo, destacam-se os diferentes meios para ensinar no es-
paço escolar e o uso dos artefatos tecnológicos disponíveis no mercado
que podem contribuir para a disseminação, problematização e cons-
trução de um novo conhecimento, principalmente, no que se refere às
questões de gênero e educação, as quais estão presentes em todas as
sociedades e sob diversas perspectivas.

O uso do texto didático


No ambiente escolar, a linguagem é expressa de duas formas: a verbal
(fala) e a não-verbal (gestos, desenhos, jogos e a própria escrita), sendo
assim, a aquisição da linguagem oral e escrita é um processo em cons-
tante transformação, mediado por influências sociais e culturais.

É de fundamental importância para a escola reconhecer que a relação entre


o homem e o conhecimento se dá através da mediação da linguagem, em
suas múltiplas formas de manifestação: a língua, a matemática, as artes,
a informática, a linguagem do corpo. Uma das grandes contribuições das
teorias sócio-interacionistas reside em apontar a interação que existe entre
as linguagens, a constituição de conceitos e o desenvolvimento das capaci-
dades cognitivas complexas (KUENZER, 2000, p. 3).

De acordo com Kuenzer (2000), a linguagem consiste no meio


pelo qual se estabelecem relações entre os grupos de docentes e dis-
centes com o conhecimento, em todas as áreas do saber, bem como
na forma com que ele é colocado em prática no cotidiano escolar e na
vida social. Entretanto, as diferenças de linguagem e de cultura não são
estanques e absolutas, elas foram construídas socialmente, baseadas na
concepção de sociedade vigente e de ser humano em diferentes con-
textos históricos, políticos e culturais.
O uso da linguagem escrita no espaço escolar acontece de duas
formas: pela aquisição dessa e pelo contato com diferentes tipos de tex-
tos. Ao se adotarem os textos, é interessante abranger os diferentes gê-

95
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

neros1 textuais, como imprensa, literário, científico e publicitário, com


o objetivo de facilitar a construção da escrita e da leitura das crianças
nas séries iniciais, assim como o de aprimorar a construção do conhe-
cimento de estudantes de outros níveis escolares.
Lajolo (1993), se referindo ao uso do texto em sala de aula, alerta
que na maioria das vezes os textos utilizados costumam virar pretex-
tos, intermediários de outras aprendizagens. Os textos presentes nos
livros didáticos, por exemplo, consistem no resultado da análise prévia
do autor do livro, que o faz de acordo com o seu ponto de vista. Já a
utilização do texto em sala de aula permite outras leituras, de acordo
com os pontos de vistas dos leitores, consistindo em uma exploração
coletiva, com leitura dirigida ou não, em que cada leitor pode interpre-
tar o texto de uma forma diferente dos demais.
“É importante que se parta de um texto para se introduzir e am-
pliar o estudo da linguagem, mas não se pode deixar de considerar
que nenhuma abordagem gramatical ou lingüística será capaz de es-
gotar todos os significados de um texto” (SILVA; SPARANO; CARBONA-
RI; CERRI; 2002, p. 39).
Os textos presentes nos livros didáticos abordam variadas temá-
ticas, que vão desde os aspectos da vida do ser humano na atualida-
de – envolvendo trabalho, lazer, família, ambiente rural, dificuldades
e conflitos do dia-a-dia nas grandes metrópoles – até textos lúdicos
que permitem a exploração do imaginário infantil, inserindo a criança
em um mundo de fadas, bruxas, duendes, monstros, animais e objetos
personificados significativos para ela (idem, 2002).
Os livros consistem em uma ferramenta utilizada em todos os
níveis de ensino. As questões de gênero presentes nos livros didáticos2
e livros-texto não podem ser ignoradas. Moreno, argumenta que

Vemos como os livros de linguagem não ensinam só a ler, assim como


não é o domínio do idioma a única coisa que cultivam, mas sim todo um
código de símbolos sociais que comportam uma ideologia sexista, não
explícita, mas incrivelmente mais eficaz do que fosse expressa em forma
de decálogo. Meninas e meninos tendem de maneira irresistível a seguir
a modelos propostos, principalmente quando lhes são oferecidos como
inquestionáveis e tão evidentes que nem sequer necessitam ser formula-
dos (1999, p. 43).

96
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

Dessa forma, é necessário olhar para os conteúdos dos livros di-


dáticos de forma crítica, com o intuito de identificar os conceitos e pre-
conceitos de gênero presentes neles. Só assim será possível propiciar
uma educação mais igualitária.
Casagrande (2005) argumenta que, nos livros didáticos de Ma-
temática, as mulheres raramente são representadas em situações
relacionadas às ciências ou em atividades científicas. Essa ausência
pode contribuir para que as meninas não despertem o interesse pe-
las carreiras científicas. Nos mesmos livros analisados por Casagrande,
as mulheres são representadas desempenhando atividades ligadas
à educação, saúde e cuidado com os filhos. Por outro lado, tem-se a
figura masculina relacionada às atividades científicas e tecnológicas,
abordagem essa que expressa de maneira dicotomizada os papéis de
gênero.

A literatura infantil
O uso dos livros paradidáticos na educação constitui uma riquíssima
fonte de conhecimentos e emoções. Os livros de literatura infantil
exercem um papel instigante nas crianças. Por meio do lúdico, permi-
te que elas se percebam como seres humanos, e criem seus próprios
questionamentos a respeito de si mesmas e do mundo que as rodeia.
A literatura pode ser utilizada para discutir conceitos e temas
conflituosos e considerados polêmicos na sociedade, como consumis-
mo, raça e etnia, sexualidade, gênero, apelidos, trabalho, entre outros.
Ao mesmo tempo, “não se pode deixar de perceber que nesse uso
escolar-pedagógico, ela é muito mais que mero entretenimento, ela é
aventura espiritual, capaz de engajar o leitor em uma experiência rica
de vida, inteligência e emoções” (VIDAL e NEULS, 2007, p. 1).
Na infância, a criança começa a construir suas próprias definições
acerca da sua identidade de gênero e dos papéis sociais do que é ser
homem ou mulher. Os estereótipos que representam o menino como
forte, corajoso, agitado e a menina como tímida, frágil e comportada
podem contribuir para a construção e/ou manutenção de concepções
distorcidas de masculinidade e feminilidade.
Esses estereótipos estão presentes em diversos meios de comu-
nicação como nos livros de literatura infantil, por exemplo. É impor-
tante que professores e professoras percebam essas representações

97
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

estereotipadas e as problematizem com a classe, com o intuito de mi-


nimizar as conseqüências das dessas na formação das identidades das
crianças.
Alguns livros podem exercer papel contrário. As obras Ceci tem
Pipi?, de Thierry Lenain; O livro da Família, de Todd Parr; Por que me-
ninos têm pés grandes e meninas têm pés pequenos?, de Sandra Branco;
Menino brinca de boneca?, de Marcos Ribeiro, dentre outras tratam de
temas como gênero, sexualidade e diversidade sexual no ambiente es-
colar.
É importante que os profissionais da educação estejam prepara-
dos para utilizar a literatura infantil para abordar as temáticas citadas,
aproveitando o momento fértil das crianças, em que elas se encon-
tram abertas ao novo e ao belo, disponíveis aos questionamentos, ao
desenvolvimento do senso crítico, envolvidas no prazer por meio do
lúdico. Dessa maneira, é possível abordar temas importantes de forma
descontraída e leve, contribuindo para a construção de novos conhe-
cimentos.

A utilização de filmes
As mudanças tecnológicas são rápidas, e nem sempre um artefato uti-
lizado como recurso pedagógico é explorado como poderia pelo gru-
po docente. O uso didático de filmes em sala de aula consiste em uma
metodologia bastante utilizada nas escolas, institutos e universidades,
nos diversos níveis de ensino.
Existem três pontos principais pelos quais os filmes podem ser
selecionados para trabalhar uma determinada temática: pelo conteú-
do, pela linguagem ou pela técnica. Napolitano (2004) argumenta que
o uso de filmes apresenta duas abordagens principais: como fonte e
como texto-gerador.
Os filmes podem ser usados como fonte “quando o professor di-
recionar a análise e o debate dos alunos para os problemas e as ques-
tões surgidas com base no argumento, no roteiro, nos personagens,
nos valores morais e ideológicos que constituem a narrativa da obra”
(NAPOLITANO, 2004, p. 1). Nesse tipo de abordagem o filme está rela-
cionado a um tema específico ou a um conteúdo curricular e permite
aprofundar a abordagem e desencadear outras questões para debate,
bem como pode levar o educando a desenvolver o pensamento crí-

98
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

tico relacionado a situações vividas no seu cotidiano (NAPOLITANO,


2004).
O texto-gerador apresenta as mesmas características da fonte,
a principal diferença é que o “professor tem menos compromisso com
o filme em si, sua linguagem, sua estrutura e suas representações, e
mais com as questões e os temas (políticos, morais, ideológicos, exis-
tenciais, históricos etc.) que suscita” (NAPOLITANO, 2004, p. 1). Como,
nesse caso, não exige um trabalho sistemático com a linguagem cine-
matográfica, ele pode ser aplicado desde as séries iniciais do ensino
fundamental I até a universidade. O importante é explorar a narrativa
e suas representações criticamente, impulsionando indagações e de-
bates temáticos em sala de aula.
Os filmes podem ser escolhidos independentes do seu conte-
údo. Mas, quando o professor se preocupa com o “exercício do olhar
(cinematográfico), formação de espectador, elaboração e aprimo-
ramento de outras linguagens expressivas, motivadas pelo filme em
questão” por si só permite a interação de outras linguagens (verbal,
gestual, visual) com a abordagem interdisciplinar, ou seja, abrange vá-
rias disciplinas ao mesmo tempo.
A interação com essas diversas linguagens pode contribuir para
o desenvolvimento de outras habilidades nos alunos e alunas, em
disciplinas como Artes, Línguas e Literatura, Educação Física, Teatro,
dentre outras. Uma das atividades possíveis de se fazer, após assistir
e debater, um filme é a produção de texto. Pode-se também partir do
roteiro original do filme e criar outras situações e expressões corporais,
após o estudo minucioso das personagens, cenas, cenários e figurinos,
como também dramatizar algumas cenas escolhidas pela turma, e ain-
da se utilizar das diferentes técnicas e artefatos tecnológicos para a
exibição do filme (NAPOLITANO, 2004).
Os filmes se enquadram em diferentes gêneros cinematográfi-
cos3 (romance, ficção, musical, aventura, drama, comédia, documen-
tário, dentre outros). O documentário, mesmo sendo produzido para
o cinema, televisão e vídeo, em sua grande maioria, pode ser utilizado
em sala de aula como um recurso didático-pedagógico.
Os documentários, mesmo sendo fruto de discussões e assuntos
ligados ao campo educacional, podem assumir diferentes abordagens.
A utilização dele pode extrapolar a temática originalmente pensada.

99
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

Um documentário pode ser interpretado e utilizado de diversas for-


mas, e nele se pode explorar a realidade social, a verdade científica, os
problemas do dia-a-dia, etc. Professores e professoras não precisam se
limitar a apenas uma abordagem.
É importante que um corpo docente saiba apontar controvérsias,
identificar e respeitar os diferentes pontos de vista, as limitações e os
assuntos que poderiam ser contemplados no filme em questão. Napoli-
tano alerta que

Isto não significa retirar o mérito dos realizadores do filme ou desqualificá-


lo. Apenas reforçamos a necessidade de o professor se preparar para atuar
como mediador dos filmes exibidos, mesmo que eles sejam documentários
sérios e aprofundados. (2004, p. 2)

Brito, lembra que “o professor tem que primeiro assistir o filme que
irá utilizar com seus alunos, planejar as estratégias de desenvolvimento
da aula, de motivação e, principalmente, deixar seus alunos assistirem
ao filme” (2003, p. 3). Nesse planejamento, é importante pensar em um
tempo para o debate, pois o filme deve ser uma atividade integrada à
aula. É importante que as temáticas suscitadas por ele sejam debatidas
no mesmo dia da exibição.
Além dos documentários, os demais gêneros de filmes podem
ser trabalhados no ambiente escolar, desde que a seleção de temas seja
articulada ao conteúdo específico e não simplesmente utilizado como
“tapa buraco”. É importante selecionar temas, respeitando a faixa etária
da classe, as peculiaridades de cada grupo e a cultura geral e midiática
do grupo discente. No momento de selecionar um filme, deve-se refletir
a respeito de seu preparo quanto ao debate dos temas que a obra abor-
da (MORAN, 1995).
A seleção dos temas pode ser feita a partir de dois critérios. O
primeiro critério diz respeito aos conteúdos tradicionais das disciplinas
escolares, como Sociologia, História, Língua Estrangeira, Geografia, Bio-
logia, entre outras, que fazem parte do conteúdo desses programas. O
outro critério pode ser baseado nos temas transversais como drogas, se-
xualidade, gênero, preconceito, ética, meio ambiente, juventude, den-
tre outros.
Para abordar a temática de gênero e sexualidade, existe um gran-
de número de documentários e filmes disponíveis no mercado, dentre

100
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

eles, Boneca na Mochila (1995); Acorda, Raimundo acorda (1996); Minha


Vida de João (2001); Transamérica (2005); Ser Mulher (2006) e Singularida-
des (2007), por exemplo. Esses filmes podem despertar o interesse tanto
das meninas como dos meninos, e se tornarem um instrumento útil para
a discussão de temas que, muitas vezes, são controversos, polêmicos e
de difícil abordagem. Sayão argumenta que “filmes de diferentes épo-
cas têm conseguido criar personagens – reais ou fictícias – que refletem
a imensa gama de possibilidades quanto aos modos de ser homem ou
mulher” (2008, p. 67). Desse modo, os filmes e documentários podem
servir de instrumento para esse tipo de abordagem.

Os artefatos tecnológicos
Historicamente, desde os primórdios da civilização, educadores utilizam
diferentes recursos tecnológicos para comunicar e ensinar, alguns deles
são a escrita, os livros, as revistas, os jornais, o giz, a lousa, etc.
No cenário atual, a educação mediada por computador (CMC),
como a de um ambiente virtual, desde os anos 80, tem causado impacto
no ambiente escolar, impondo mudanças nos métodos de trabalho de
professores e, ao mesmo tempo, constituindo-se em um terreno fértil
que permite ser explorado para múltiplos fins. Para Tozetto e Matos o
“(...) uso de artefatos tecnológicos, principalmente o computador, im-
põe mudanças nos métodos de trabalho dos professores, gerando mo-
dificações nas instituições e no sistema educativo” (2008, p. 5).
Com o advento da internet a partir da década de 90, ampliaram-
se as possibilidades e interações no contexto escolar:

Os trabalhos de pesquisa podem ser compartilhados por outros alunos e


divulgados instantaneamente na rede para quem quiser. Alunos e profes-
sores encontram inúmeras bibliotecas eletrônicas, revistas on-line, textos,
imagens e sons, que facilitam a tarefa de preparar as aulas, fazer trabalhos
de pesquisa e ter materiais atraentes para apresentação (MORAN, 1995, p.
5).

As múltiplas ferramentas disponíveis na internet mudaram a


maneira de se comunicar e ensinar no mundo. A criação dos portais
de educação, por exemplo, com atividades interativas e multimídias
podem possibilitar que tanto discentes quanto docentes aprendam
de múltiplas formas utilizando os vários recursos disponíveis num

101
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

site. “As tecnologias digitais surgiram, então, como a infra-estrutura


do ciberespaço, novo espaço de comunicação, de sociabilidade, de
organização e de transação, mas também de novo mercado da infor-
mação e do onhecimento” (LÉVY, 1999, p. 32). A criação de blogs, por
exemplo, pode se constituir em um espaço de construção de conhe-
cimentos, um recurso pedagógico interativo e inovador, desde que
seja utilizado de forma crítica.
“É na experiência de aprendizagem que se situa o grande de-
safio de construir o novo conhecimento, gerado no laboratório das
interfaces e no ensino que é também investigação” (BASTOS, 1998,
p. 33).
Há necessidade de se investigar, pesquisar e aprofundar o pro-
cesso de construção do conhecimento, tarefa essa que cabe à edu-
cação tecnológica, interagindo com a ciência e a tecnologia e cons-
truindo, assim, um novo olhar sobre as formas de aprendizagem.
O surgimento das Tecnologias da Informação e Comunicação
(TIC), nas últimas décadas, quando elas começaram a ser empregadas
na educação, possibilitou a criação de novas formas de comunicação
e interação entre os usuários.
Nesse contexto, os Parâmetros Curriculares Nacionais, (PCNs,
1998), no que se refere às TIC, apontam que elas compreendem os
diferentes recursos tecnológicos nos quais circulam as informações
nos diferentes meios de comunicação (rádio, televisão, jornal, livros,
computadores), e contribuem para aproximar as diferentes culturas,
aumentando as possibilidades de comunicação.
As tecnologias educacionais, que inclui todos os aparatos tec-
nológicos, quando utilizadas no ambiente escolar, podem servir de
instrumentos capazes de propiciar aos estudantes a reflexão, a análi-
se, a consciência e a autonomia para construir e reconstruir o conhe-
cimento diante do novo. Contudo, faz-se necessário uma constante
atualização do corpo docente de modo que possam dominar os apa-
ratos tecnológicos e o conjunto de softwares que surgem no merca-
do a cada instante. Eles poderão ajudá-lo na elaboração de materiais
de apoio, como também ser um recurso fundamental para o ensino
de diversas disciplinas do currículo (BRITO, 2003).
Esse contexto faz parte de uma “(...) mudança significativa – que
vem acentuando-se nos últimos anos – é a necessidade de comuni-

102
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

car-nos através de sons, imagens e textos, integrando mensagens e


tecnologias multimídia” (MORAN, 1995, p. 4). Essa nova configuração
de sociedade exige que as escolas, professores e professoras, alunos
e alunas permaneçam em constante aprendizagem. Para Moran

uma mudança qualitativa no processo de ensino/aprendizagem aconte-


ce quando conseguimos integrar dentro de uma visão inovadora todas as
tecnologias: as telemáticas, as audiovisuais, as textuais, as orais, musicais,
lúdicas e corporais (2000, p. 1).

Essas, quando utilizadas de maneira educativa, desenvolvem ha-


bilidades, novas formas de pesquisar, de se comunicar e se divertir, além
da constante atualização na era da informação.
Dentre os artefatos tecnológicos que podem contribuir para a
abordagem das questões de gênero no ambiente escolar, destaca-se o
computador que, ao permitir o acesso à internet, nos coloca em contato
com uma série de reportagens que possibilitam a abordagem da temá-
tica. Uma das formas de se utilizar o computador para esse fim é propor
a classe que busque na rede mundial de computadores reportagens que
abordem a temática. É importante lembrar que professores e professo-
ras precisam estar preparados para debater as matérias trazidas pela
turma. Esse pode se constituir em um momento rico para a construção
do conhecimento, no qual alunos e alunas podem, por exemplo, desen-
volver o poder de argumentação ao defender seus pontos de vista.

A mídia impressa: o uso de jornais e revistas


Outro recurso didático que pode ser explorado em aula para abordar
as temáticas de gênero, sexualidade e diversidade sexual é o uso de re-
vistas e jornais. Esses suportes apresentam contextos reais e diversos a
respeito da sociedade e podem se constituir em um instrumento inte-
ressante para debater as temáticas. Além disso, são um recurso didáti-
co-pedagógico que pode ser utilizado desde a educação infantil até a
universidade.
O uso de jornais e revistas pode servir de instrumento para des-
pertar o trabalho de diferentes temáticas por meio da análise de notícias
e reportagens que são publicadas diariamente nas colunas dos jornais
locais ou nacionais, assim como em periódicos, nas suas versões impres-
sas e online, que apresentam assuntos bastante variados. As publicações

103
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

que contemplam assuntos específicos, como Educação, Literatura, Espor-


te, Religião, Ciência, Tecnologia, dentre outros, também possibilitam a
discussão de vários outros temas, e permitem que docentes e estudantes
possam se posicionar de maneira crítica e consciente a respeito de ques-
tões que atingem o cotidiano.
As múltiplas temáticas presentes nesses meios, apresentadas por
meio da escrita (entrevistas, artigos, resenhas, textos de opinião, literários,
políticos, etc.) e/ou de imagens (fotos, desenhos ou caricaturas), consti-
tuem uma rica fonte a ser explorada, pois elas expressam significados,
idéias, concepções ou ideologias de um determinado assunto.
Tudo isso, permite que alunos e alunas venham a compreender a
realidade que os cerca e, ao mesmo tempo, serve de instrumento de refle-
xão e ação diante das problemáticas e circunstancias do dia-a-dia.
Na educação infantil, pode-se utilizar jornais e revistas para a se-
leção de imagens na confecção de cartazes sobre diversos temas. No
entanto, esse tipo de atividade não pode ser desvinculado da realidade
das crianças. É importante que os professores e professoras sejam criati-
vos e críticos para que a atividade, além de desenvolver a coordenação
motora e a criatividade das crianças, faça sentido para elas. Já no ensino
fundamental, pode-se utilizar as reportagens publicadas nos cadernos de
economia, cultura, lazer, automóveis, saúde, educação e esportes, além
das temáticas especiais que abordam assuntos relacionados à violência,
sexualidade, gênero, raça, drogas e outros para o desenvolvimento de
textos em aulas de Língua Portuguesa ou de problemas de Matemática,
por exemplo.
Para aquelas pessoas que não têm o hábito de ler jornais e/ou re-
vistas, ou ainda não sabem ou não tem tempo suficiente para pesquisar
um determinado assunto, poderá utilizar-se da hemeroteca, um recurso
disponível em boa parte das bibliotecas que reúne informações atuais
que foram publicadas nesses meios. As reportagens são catalogadas por
assunto, facilitando assim a busca (DOMINGUES, 2005).
Nas últimas décadas em diversos meios de comunicação, encon-
tra-se reportagens que discutem a participação de homens e mulheres
no mercado de trabalho, como nas ciências e na educação, questões de
gênero em geral, sexualidade, gravidez na adolescência, doenças sexual-
mente transmissíveis, violência de gênero, violência contra homossexuais,
enfim, uma infinidade de matérias que podem ser utilizadas pelos profis-

104
solange ferreira dos santos e benedito guilherme falcão farias

sionais da educação visando disseminar o conhecimento e minimizar pre-


conceitos entre estudantes. Dentre as inúmeras publicações, destaca-se a
revista Educação: Grandes Temas, que publicou um número com diversos
artigos estimulando o debate e a reflexão a respeito da temática Gênero
e Sexualidade no campo educacional. Há urgência em se discutir essas
temáticas no espaço escolar, uma vez que muitas pessoas ainda crêem
que é da “natureza” da mulher ser submissa ao homem e que o compor-
tamento homossexual é um desvio da natureza (VIANNA, 2008)4 .
A abertura para essas discussões contemporâneas permite pensar
em gênero como um produto histórico, sendo assim, ele está aberto a
mudanças. (CONNEL, 1995). É nesse sentido que a educação assume um
papel transformador, à medida que luta contra os padrões estereotipados
de homem e mulher, e busca a eqüidade de gênero para a superação das
desigualdades sociais, em todas as dimensões sociais, políticas e culturais
na sociedade.

Considerações
As abordagens contempladas nesse artigo indicam caminhos e instru-
mentos didáticos que professores e professoras poderão se apropriar para
problematizar diversos temas no espaço escolar. As informações estão
por toda a parte, cabe a esses profissionais selecionar e rever criticamen-
te as informações, levantar hipóteses, questionamentos e provocações,
construir e reconstruir o conhecimento, dia-a-dia, sem discriminação de
raça, cor, gênero, etnia ou classe social. Consiste em uma tarefa difícil, mas
possível de se realizar e contemplar o exercício da cidadania (GADOTTI,
2000).
As inúmeras informações disponíveis por meio dos meios de comu-
nicação (televisão, revistas, computadores, jornais, livros) podem servir de
instrumentos para que professores e professoras, alunos e alunas possam
discutir e problematizar importantes temas, desde que o docente esteja
preparado, como o “olhar” focado para perceber e propor discussões a
respeito das questões de gênero na escola, na tentativa de superar as de-
sigualdades e discriminação entre os gêneros.
Sendo assim, a educação emancipatória e não sexista exige ruptu-
ras e quebras de paradigmas sociais, políticos, culturais, científicos, tecno-
lógicos e de gênero em uma sociedade em constante transformação, para
a exploração do novo, do inexplorado, do diferente.

105
gênero, educação e artefatos tecnológicos: os diferentes meios para ensinar

Notas

1 Nesse sentido, refere-se a gêneros literários.


2 Ver dissertação de Mestrado de Casagrande: Quem mora no livro didático? Re-
presentações de gênero nos livros didáticos de matemática na virada do milênio.
Programa de Pós-graduação em Tecnologia, CEFET-PR, Curitiba, 2005.
3 O termo gêneros cinematográficos se refere aos tipos de filmes, categorização
empregada para fins comerciais.
4 Sexualidade, Gênero e Educação: um panorama temático. Artigo publicado na
Revista Grandes Temas. p. 16-23, mar. 2008.

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108
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

6
UM OLHAR CRÍTICO PARA OS LIVROS DIDÁTICOS: UMA
ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO

Lindamir Salete Casagrande


Marilia Gomes de Carvalho

Introdução
Os livros didáticos constituem um importante material de apoio aos
professores e professoras bem como aos alunos e alunas. Muitas
vezes, esses são os únicos livros aos quais docentes e discente têm
acesso. Silva (2000, p. 140) argumenta que, “por causa da ausência de
outros materiais que orientem os professores quanto à ‘o que ensinar’
e ‘como ensinar’, e também em decorrência da falta de acesso do alu-
no a outras fontes de estudo e pesquisa”, os livros assumem um papel
significativo no dia-a-dia escolar. Passam, dessa forma, a ser o único
material de apoio às atividades de ensino e aprendizagem.
O Ministério da Educação - MEC tem empreendido esforços
para que o livro didático “passe a ser entendido como instrumento
auxiliar, e não mais a principal e única ferramenta” (SILVA, 2000, p.
140). Porém, não se pode esquecer que em algumas regiões do Bra-
sil o acesso a outros meios e materiais é extremamente difícil, quer
pela localização geográfica da escola, quer pelas condições finan-
ceiras da população local. Por esse motivo, o que está contido nos
livros didáticos assume, muitas vezes, o status de verdade absoluta,
imutável e inquestionável. Entretanto, uma análise mais apurada de
alguns livros que são distribuídos para as escolas brasileiras permite
que se perceba que muitos desses trazem, em suas imagens e textos,
estereótipos e preconceitos de gênero, classe, etnia, raça, dentre ou-
tros. Isso pode ser constatado não só pelo que encontramos nesses
livros, mas também pelas ausências. O silêncio fala, e precisamos sa-
ber ouvi-lo.

109
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

Questionar as representações estereotipadas ali encontradas não


significa negar a qualidade dos livros que estão no mercado nem tam-
pouco a importância que eles assumem no cotidiano escolar. Significa
alertar para a necessidade de se manter um olhar crítico e, quando for
necessário, questionar as representações que podem transmitir precon-
ceito e gerar discriminações quando essas adquirem valor de “verda-
de”.
Convém salientar que o livro didático, “ao chegar às nossas mãos
como um produto pronto e acabado, já foi submetido a regras, a restri-
ções, a convenções e a regulamentos próprios das políticas educacio-
nais e editoriais” (TONINI, 2002, p. 116) e, por isso, pode não mais repre-
sentar a idéia e a vontade dos autores e autoras devido a essas regras.
Assim, professores e professoras precisam encontrar formas de usar
criticamente esse material, percebendo “o contraste entre o conteúdo
do livro e a vivência das crianças” (FARIA, 2000, p. 89). Esse olhar crítico
contribui para minimizar os impactos e a conseqüência dos estereótipos
de gênero, classe, raça e etnia presentes em livros didáticos.
Entendemos que qualquer livro ou impresso pode assumir a
função didática, dependendo do uso que deles for feito. Entretanto,
no desenvolvimento deste estudo, entendeu-se por livro didático “o
material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado
num processo de aprendizagem ou formação” (OLIVEIRA, GUIMARÃES
e BOMÉNY, 1984, p. 11). Ou ainda, “aquele material impresso, estrutu-
rado, apresentado e comercializado com a finalidade de atender, nor-
mativamente, aos programas oficiais das disciplinas escolares” (SILVA,
2000, p. 17). Ou seja, é o livro editado conforme a regulamentação go-
vernamental e que apresenta os conteúdos definidos como apropriados
para determinada disciplina e faixa escolar. Apesar de admitirmos que
essas conceituações possam ser restritivas, optou-se por elas, uma vez
que descrevem o material e as fontes documentais que estarão sendo
analisados nesta pesquisa e porque, segundo Batista, “qualquer concei-
tuação construída é dependente dos interesses sociais em nome dos
quais se produzem, utilizam-se e se estudam os livros didáticos” (2002,
p. 570). Assim, consideramos que essas definições são adequada para o
estudo em questão.
Nos últimos anos temos dedicado nossos esforços para o estudo
das representações de gênero em livros didáticos, o que resultou na dis-

110
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

sertação intitulada Quem mora nos livros didáticos? Representações de gê-


nero nos livros de Matemática na virada do milênio1 e em diversos artigos
publicados em eventos científicos. O tema tem sido abordado em curso
de sensibilização de professoras e professores2 e a discussão a respeito
dessa temática tem apresentado bons resultados, pois esses profissio-
nais fazem contribuições significativas para a melhor compreensão e
interpretação das imagens e textos apresentados. Essa troca tem sido
muito gratificante para nós e contribuído para o aprofundamento dos
nossos estudos sobre o tema.
Os estudos de gênero se desenvolvem sob diversos enfoques e
perpassam todos os setores da sociedade. Dessa forma, a escola e seus
agentes não poderiam ficar de fora das análises. Diversos estudos3 têm
sido desenvolvidos, buscando contribuir para uma maior compreensão
das questões de gênero no ambiente escolar.
Para Scott (1995, p. 75), gênero é “uma forma de indicar ‘constru-
ções culturais’ – a criação inteiramente social de idéias sobre os papéis
adequados aos homens e às mulheres”. Para essa autora, gênero indica
também relação de poder entre os sujeitos. Sua construção ocorre em di-
versos momentos da vida em sociedade e nesta construção a escola assu-
me um importante papel.
Considerando gênero como uma construção social que representa
e reproduz relações de poder, pode-se dizer que os papéis e/ou funções
atribuídas a homens e mulheres variam dependendo da cultura, do am-
biente social, enfim, da sociedade nas quais as pessoas estão inseridas.
Esses papéis e/ou funções estão em constantes transformações. O que é
ser mulher nos dias atuais difere muito do que era ser mulher há 20 ou 30
anos. O mesmo ocorre com o que é ser homem.
O gênero é construído na relação entre os sujeitos e desses com a
sociedade, com os artefatos tecnológicos, enfim, com o meio no qual as
pessoas vivem. Esse caráter relacional é o que norteia nossa visão na aná-
lise das ilustrações e textos dos livros didáticos.

As representações de gênero nos livros didáticos


Apresentaremos aqui algumas considerações a respeito das representa-
ções de gênero encontradas em livros didáticos de Matemática, Geogra-
fia, Ciências e Português para o ensino fundamental. As ilustrações e os
textos dos livros didáticos constituem o foco das atenções nesta análise.

111
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

As ilustrações feitas por meio de fotos e de desenhos versam so-


bre temas como: família, escola, brincadeiras, trabalho, ciência e tec-
nologia, relações pessoais, dentre outras. Pode-se perceber diferenças
entre as fotos e os desenhos no que tange ao gênero. As fotos, por se
tratarem de um flagrante da realidade, mesmo que sejam em situações
criadas exclusivamente para aquela representação, aproximam-se mais
da realidade, enquanto os desenhos estão mais distantes disso, talvez
por expressarem a concepção que os responsáveis pela ilustração têm
sobre determinado tema, considerando-se que essa concepção pode
estar impregnada pelos conceitos e preconceitos dessas pessoas.
A seguir passaremos à análise das representações de gênero en-
contradas nos livros que foram objetos desta pesquisa. Vamos dividir
esta análise em tópicos mais específicos a fim de facilitar a abordagem.

Ciência e artefatos tecnológicos


As imagens que representam cientistas famosos nos livros analisados
são exclusivamente masculinas. Fato que pode ser considerado normal
quando lembramos que por muito tempo as mulheres foram afastadas
da ciência e da tecnologia e mesmo as que conseguiam participar desse
meio eram, em sua maioria, ajudantes de seus pais, irmãos, maridos e
filhos e o resultado das pesquisas eram publicados em nome do homem
da casa (CASAGRANDE; et al, 2005). Dessa forma, pode-se concordar
com Velho e León (1998) quando elas apontam a falta de exemplos de
mulheres cientistas e engenheiras bem sucedidas como uma das causas
para a reduzida presença feminina em carreiras científicas4.
A representação das ciências e dos cientistas modernos ocorre em
raríssimas ilustrações. Nesses casos, no entanto, as mulheres se fazem
presentes, porém, em trabalhos coletivos e que podem ser interpreta-
dos como controle de processo, como em uma imagem encontrada no
livro Geografia: Homem e Espaço, para o ensino de 6ª série5, de Lucci e
Branco (2005), em que, na página 192, há a representação de três mu-
lheres trabalhando em um laboratório do Inpe. Essa ilustração é uma
foto e mostra a participação feminina no meio científico. Nesse mesmo
livro encontramos imagens de homens fazendo ciências, porém, o tra-
balho deles é desenvolvido individualmente. A ilustração encontrada na
página 247 do mesmo livro apresenta a foto de um homem utilizando
um microscópio para analisar plantas. Ele é o agente ativo da pesquisa

112
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

e parece estar descobrindo algo novo. A principal diferença entre as duas


imagens descritas6 acima é que o trabalho de controle é menos valorizado
socialmente que o trabalho de descoberta. Representações como essas
podem levar a interpretação de que a participação das mulheres no meio
científico é menos qualificada do que a dos homens e, por conseqüência,
menos valorizada.
A pouca representação de cientistas homens e mulheres nos livros
didáticos pode contribuir para que os estudantes (meninas e meninos)
não desenvolvam interesse por seguir essas carreiras, o que poderia ser
prejudicial para o desenvolvimento científico e tecnológico do país. O es-
tímulo oferecido pelos livros didáticos para que as crianças se interessem
pelas ciências é pequeno para os meninos, e menor ainda para as meni-
nas.
Concordamos com o argumento de Tabak (2002) quando ela afir-
ma que um país que busca o desenvolvimento e a melhoria da qualidade
de vida de seus habitantes não pode abrir mão da contribuição feminina
para o desenvolvimento científico e tecnológico. Por esse motivo, pen-
samos que as equipes responsáveis pela publicação dos livros didáticos
poderiam inserir mais imagens de homens e mulheres desenvolvendo ci-
ências e assim, contribuir, mesmo que de forma sutil, para o aumento do
interesse das crianças, e especialmente das meninas, por essas carreiras.
A relação com os artefatos tecnológicos também é sub-represen-
tada nos livros didáticos, porém, pode-se perceber que, nesse contexto,
homens, mulheres, meninos e meninas utilizam computadores, calcula-
doras, videogame, dentre outros artefatos de maneira semelhante. Rara-
mente, encontraram-se meninas e meninos jogando videogame juntos,
interagindo na brincadeira. Essa é uma atividade realizada por ambos, po-
rém, separadamente. Nas ilustrações que mostram a relação de pessoas
com o computador, a pessoa que o está operando é, majoritariamente,
uma mulher, diferentemente dos enunciados em que o gênero relaciona-
do ao computador é o masculino. As representações de gênero em rela-
ção aos artefatos tecnológicos, embora superficial, estão vinculadas com
a realidade, porém, questiona-se a falta de interação entre as pessoas de
gêneros diferentes nos momentos de manuseio desses artefatos.
As representações de gênero em atividades relacionadas à ciên-
cia e tecnologia são escassas. Essa constatação é contrária à realidade
atual na qual a presença dos artefatos tecnológicos é cada vez mais

113
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

freqüente no cotidiano de todos – adultos e crianças, de ambos os se-


xos.

O mercado de trabalho e as relações de gênero


No que tange ao mercado de trabalho, homens e mulheres são repre-
sentados em atividades distintas como se não desempenhassem as
mesmas atividades, interagindo entre si. Uma ilustração feita por meio
de foto, encontrada na página 84 do livro Geografia: Homem e Espaço,
para o ensino de 6ª série, de Lucci e Branco (2005), apresenta uma linha
de montagem de uma indústria de telecomunicações. Nela pode-se
observar a representação de três pessoas trabalhando na montagem
de pequenas peças, todas, mulheres. Em outra imagem, da página 141
do mesmo livro, encontramos uma linha de montagem de carros e to-
das as pessoas ali representadas são homens. As duas ilustrações são
fotos e, portanto, representam um flagrante da realidade. Porém, de-
vemos considerar que a equipe responsável pela publicação de livros
didáticos tem a liberdade de escolher as imagens que utilizará nas ilus-
trações, e pesquisas mostram que as fábricas têm homens e mulheres
no seu quadro de funcionários. Assim, seria possível escolher fotos que
apresentassem a interação entre eles no mercado de trabalho.
Nos livros de Matemática analisados, pôde-se observar que ho-
mens e mulheres são representados, na maioria dos enunciados, em
profissões que requerem pouca escolaridade e que, por conseqüência,
são mal remuneradas. Porém, há diferença nas profissões em que ho-
mens e mulheres são representados. A mulher aparece em profissões
que indicam o cuidado e a educação das crianças e o cuidado do lar e/
ou que podem ser desenvolvidas dentro de casa, como: artesã7, costu-
reira8, professora9, enfermeira10 e dentista, por exemplo. Esses exem-
plos podem induzir a pensar que, na opinião da equipe responsável
pela publicação dos livros didáticos, o cuidado é uma “função” femini-
na. Os resultados aqui encontrados corroboram o argumento de Car-
valho (1999) em relação ao cuidado quando se coloca que é tarefa das
mulheres adultas e amorosas cuidar das crianças nos papéis de mãe,
professora, enfermeira, dentre outros.
As profissões femininas representadas são desenvolvidas, ma-
joritariamente, dentro do lar, no ambiente privado, confirmando o ar-
gumento de Louro (2001a) de que as profissões das mulheres devem

114
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

possibilitar que elas cuidem do lar e dos filhos, sua “principal função”.
O homem é representado em profissões desenvolvidas no ambiente
externo, na rua, como, por exemplo: comerciante11, pintor12, jardinei-
ro13 e operário14, também objetivando cumprir sua “função”, a de pro-
vedor. Essas representações estão reproduzindo papéis conservado-
res de gênero e deixam a impressão de que a responsabilidade pela
manutenção material da família é dos homens. Essa idéia diverge da
realidade atual, na qual cada vez mais mulheres assumem o comando
de suas famílias, por vontade própria ou por força das circunstâncias, e
são responsáveis pelo sustento familiar.
Existe uma recomendação do Governo Federal, principal com-
prador dos livros didáticos, de que os livros se aproximem da realidade
dos estudantes. Como esses livros são destinados a escolas públicas e
a maioria dos estudantes dessas escolas é de famílias mais pobres, as
profissões anteriormente mencionadas podem ser vinculadas a reali-
dade desses alunos e alunas. Entretanto, a predominância de enun-
ciados e ilustrações que representam ofícios que requerem pouca
escolaridade pode gerar o desestímulo ao estudo, uma vez que para
exercê-los não é necessário um alto nível de escolaridade. Assim, os li-
vros didáticos poderiam mesclar os tipos de enunciados mencionados
e ilustrações de profissões que necessitam de um ensino de nível su-
perior, como medicina, engenharia e advocacia, tanto na representa-
ção de homens quanto na de mulheres. Essa mescla poderia incentivar
estudantes, meninos e meninas, a almejar essas profissões, e estimulá-
los a estudar mais.
Nas imagens que representam a professora por meio de dese-
nho, ela é jovem, esguia, alta, bem vestida e com cabelo muito bem
penteado. Imagem diferente da encontrada nas ilustrações com fotos,
que apresentam uma imagem de professora mais próxima da realida-
de, considerando-se que professoras e professores têm uma diversida-
de de tipos físicos e realidades socioeconômicas variadas. Uma ilustra-
ção encontrada no livro Matemática e vida, de Bongiovanni, Vissoto e
Laureano, para o ensino de 5ª série, página 56, o professor está repre-
sentado de forma caricaturada, escondido embaixo da mesa comendo
bombons enquanto os alunos brincam na sala de aula. Esse tipo de
ilustração pode contribuir para a construção de uma imagem negativa
do professor, como irresponsável e descuidado.

115
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

Assim, a imagem de docentes que o livro didático constrói não


corresponde à dos profissionais que atuam na sala de aula. Consideran-
do apenas as ilustrações com base em desenhos, pode-se concluir que
os ilustradores ou ilustradoras representam as professoras de acordo
com o modelo descrito por Louro (2001a), ou seja, de professoras re-
catadas, vestidas com roupas fechadas, desapegadas de bens materiais
e desprovidas de sexualidade. Mesmo nesse final de milênio, busca-se
estabelecer um modelo de professora “ideal”, não levando em conside-
ração a multiplicidade de origens dessas profissionais.
Profissionalmente, homens e mulheres são representados em
mundos separados. As mulheres, em sua maioria, desempenham fun-
ções que são menos valorizadas pela sociedade e, em muitos casos,
dedicam-se a atividades que não são consideradas profissões como o
artesanato, por exemplo. Os homens que também são representados
em profissões que necessitam menor escolaridade, desempenham fun-
ções reconhecidas como profissões.
A falta de representação de homens e mulheres trabalhando
juntos indica que, nos livros analisados, os gêneros são representados
em papéis dicotomizados (COSTA, 1994), como se existissem profissões
adequadas de acordo com o gênero, o que pode contribuir para for-
mar no aluno uma consciência equivocada sobre os direitos e deveres
de homens e mulheres. Há ainda a possibilidade de criar resistência ao
trabalho em equipe, tanto na escola quanto, futuramente, no mercado
de trabalho, principalmente em equipes mistas. Concordando com o
argumento de Machado (1998) de que as relações sociais são fruto da
interação entre os sujeitos, pode-se dizer que ao não representar a inte-
ração entre pessoas de gêneros distintos, bem como, do mesmo gênero,
no mercado de trabalho, o livro didático não contribui para a construção
das relações sociais e, por conseqüência, da cidadania, o que seria um
dos objetivos do livro didático, segundo o Guia do Livro Didático 2005.
Sugerimos, por isso, que os livros didáticos representem homens
e mulheres desempenhando as mesmas profissões e trabalhando jun-
tos como forma de contribuir para que seja minimizado o preconceito
de que eles e elas não desempenham determinadas profissões. Os livros
poderiam contemplar uma gama maior de profissões, especialmente, as
que necessitam de um nível de escolaridade superior, fato que poderia
contribuir para o aumento da expectativa profissional das crianças. Ao

116
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

representar homens e mulheres em oposição um ao outro, os livros não


permitem a visualização da pluralidade de formas de exercer a mascu-
linidade e a feminilidade existentes na sociedade e não contemplam a
construção social dos sujeitos, bem como, as relações de poder que se
estabelecem no mercado de trabalho, como propõe a visão relacional
de gênero (COSTA, 1994; SCOTT, 1995).

O cuidado com a família


O cuidado com os filhos, de ambos os sexos, é representado como sen-
do de responsabilidade tanto do pai quanto da mãe, porém, há diferen-
ça nas atividades nas quais esses são representados. Têm-se a represen-
tação do pai15 e da mãe16 assumindo a função de estudar com o filho ou
filha, o mesmo ocorrendo com relação à distribuição de mesada17.
Os momentos de lazer fora de casa raramente são compartilhados
ou proporcionados pela mulher. Isso pode ser notado tanto nos enun-
ciados quanto nas ilustrações. Em uma ilustração encontrada na página
287 do livro A conquista da Matemática: a + nova, de Giovanni, Castrucci
e Giovanni Jr. para o ensino da 6ª série, um homem é representado ensi-
nando um menino a andar de bicicleta, supostamente pai e filho, ambos
são negros e estampam um sorriso no rosto. A mulher não aparece nes-
sa imagem e em nenhuma outra ilustração que represente momentos
de lazer em ambiente externo. Alguns enunciados representam o pai
passeando com seus filhos ou filhas18. Na análise feita para este estudo
não se encontrou a mãe desenvolvendo atividade semelhante. A parti-
cipação da mulher fica restrita à preparação dos alimentos para a famí-
lia19 ou à compra deles20, ou seja, as atividades realizadas no ambiente
doméstico. Algumas ilustrações mostram a mulher levando as crianças
ao médico, que é homem, educando as crianças ou fazendo compra de
calçados para elas. A aquisição de chocolates21 ou material escolar22 são
representadas como responsabilidade do pai.
Pode-se notar que as situações mais agradáveis de lazer ou de
aquisição de presentes para as crianças são proporcionadas pelos ho-
mens, cabendo à mulher o cuidado com o suprimento das necessidades
básicas, como a alimentação e a educação, resultados que se aproximam
aos encontrados por Deiró (s/d), em livros didáticos de Comunicação e
Expressão, e Tonini (2002), em livros de Geografia para o ensino funda-
mental, quanto à representação das figuras paterna e materna. Não se

117
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

observou relação entre os gêneros no cuidado com os filhos, o que


poderia ser feito por meio de ilustrações que apresentassem o casal
interagindo com as crianças.
Nos dias atuais, em que muitos casais dividem a responsabi-
lidade no cuidado com os filhos e a casa, os livros didáticos ainda
representam os estereótipos de pai provedor e de mãe educadora e
protetora. Autores e autoras poderiam se valer de enunciados e ilus-
trações que representassem a interação entre ambos os gêneros com
o intuito de contribuir para a formação da identidade e da subjetivi-
dade das crianças. Poderiam, ainda, mostrar, em alguns momentos,
a “inversão de papéis”, com mãe provedora e pai cuidador, a fim de
demonstrar que essa é uma situação possível. Enfim, os livros didá-
ticos poderiam contemplar a multiplicidade de relações familiares e
não reafirmar um único padrão de família.
As figuras do avô e da avó também são representadas nos tex-
tos e nas ilustrações. Os dois aparecem de forma diferenciada. A avó
é representada em situações que indicam o cuidado com a casa23 e a
alimentação da família24 . A ilustração encontrada na página 141 do
livro A conquista da Matemática: a + nova, de Giovanni, Castrucci e
Giovanni Jr., (2002), para o ensino de 5ª série, representa uma senho-
ra obesa, de cabelos brancos, preparando alimentos na cozinha. Ela
tem uma imagem simpática, está sozinha e em segundo plano no de-
senho. Em primeiro plano estão os ingredientes. Pelas características
físicas, a pessoa representada nesse desenho pode ser considerada
uma avó. Por outro lado, o avô é representado como presença desa-
gradável ao acordar o neto aos gritos25 e solicitando a ajuda deles26.
Em outros enunciados e ilustrações, eles aparecem proporcionando
momentos de lazer e alegria aos netos e netas, ao presenteá-los com
chocolate27 e participar de alguma atividade junto com eles28. Na pá-
gina 235 do livro Educação Matemática, de Pires, Curi e Pietropaolo
(2002), destinado a alunos de 6ª série, encontramos a foto de um avô
ensinando seu neto a pescar. Ambos trazem um sorriso no rosto o
que demonstra satisfação no que estão fazendo. Percebe-se que, nos
enunciados e ilustrações nos quais aparecem os avôs, há interação
entre avô e neto, ao passo que nas ilustrações com as avós, essa in-
teração não aparece.

118
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

Os gêneros no espaço público e privado


Nos livros didáticos analisados os espaços públicos e privado estão divi-
didos por gênero. Às mulheres cabe o espaço privado, e aos homens o
espaço público. Essa divisão pode ser identificada tanto nas ilustrações
que representam crianças quanto nas que representam adultos. No livro
Projeto Pitanguá: Ciências (2005), da Editora Moderna, destinado ao ensi-
no da 2ª série, página 9, uma imagem ilustra bem a divisão dos espaços
públicos e privados. Um desenho representa uma menina e um menino
realizando uma experiência de ciências – a mudança de estado físico
da água. Ambos realizam a mesma experiência, entretanto, em espaços
diferentes. Ela está no interior de uma cozinha e ele no quintal. No livro
da mesma coleção, destinado ao ensino da 4ª série, página 130, outro
desenho reforça a divisão dos espaços destinados a homens e mulheres.
Nessa ilustração pode-se ver um grupo de pessoas aproveitando o dia à
beira de um lago. Um homem e uma mulher preparam a refeição, entre-
tanto, ela está na cozinha “pilotando” o fogão, sem vista para a paisagem,
tendo a sua frente uma parede cor-de-rosa, enquanto ele está no quin-
tal preparando o churrasco, “curtindo” a paisagem e ouvindo música. No
lago, pode-se observar duas pessoas, uma pescando e outra velejando,
ambas são do sexo masculino. Imagens como essas podem contribuir
para a construção da concepção de que homens e mulheres podem fa-
zer as mesmas atividades, porém, em espaços distintos.
Em duas ilustrações do livro A conquista da Matemática: a + nova,
de Giovanni, Castrucci e Giovanni Jr., também se pode observar esse
tipo divisão. No desenho que está na página 261 do livro, direcionado à
5ª série, uma mãe corrige a filha no interior da cozinha após a menina ter
compreendido de forma equivocada uma instrução dada por ela; e no
desenho da página 48, do livro destinado à 6ª série, a mãe compra cal-
çado para o menino. Nessas duas ilustrações observa-se que a menina é
representada dentro de casa, executando mal uma tarefa e sendo corri-
gida, enquanto o menino é representado no espaço público, ganhando
um calçado novo, ou seja, sendo premiado.
Esse tipo de ilustração pode contribuir para que estudantes cons-
truam uma concepção equivocada da participação de homens e mulhe-
res na sociedade. Na atualidade, essa divisão de espaços não se justifica,
uma vez que ambos compartilham os mesmos espaços e podem reali-

119
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

zar atividades iguais, quer sejam no ambiente doméstico ou no espaço


público. Os livros didáticos do ensino fundamental, que têm uma forte
influência na formação dos futuros membros da sociedade, poderiam
contemplar essa realidade.

As crianças na escola e no lazer


Nas ilustrações, meninas e meninos são representados desenvolvendo
diversas brincadeiras. Em algumas situações, os dois aparecem brincan-
do juntos, e as atividades escolhidas para a brincadeira, geralmente, são
jogos como videogame e de adivinhação. Os jogos coletivos como fute-
bol, vôlei e basquete aparecem raramente. A interação entre meninos e
meninas ocorre tanto nos enunciados quanto nas ilustrações, porém, com
pouca freqüência. Essa interação se apresenta como uma excelente opor-
tunidade para desconstruir a imagem de que existem brincadeiras para
meninas e outras para meninos, e pode incentivar a convivência entre as
crianças de ambos os sexos nas atividades recreativas. Por esse motivo,
acreditamos que ilustrações que representassem esse tipo de situação po-
deriam ser mais freqüentes. Nos momentos de lazer das crianças, pôde-se
perceber relação de afeto e carinho entre as personagens, fato que pode
levar a conclusão de que nos momentos de lazer é permitido às crianças
manifestarem esses sentimentos. Isso não se percebe nas representações
de homens e mulheres em atividades laborativas, por exemplo.
As brincadeiras, na maioria das vezes, são desenvolvidas por mais
de uma criança, o que coincide com a realidade na qual, geralmente, as
crianças brincam em duplas ou grupos. Notou-se a ausência da clássica
representação de crianças brincando com bonecas, bem como há pouca
representação da brincadeira com carrinhos29, que ficou limitada a raros
enunciados e ilustrações. No geral, as atividades representadas desenvol-
vidas pelas meninas são menos dinâmicas do que as desenvolvidas por
meninos, o que contribui para a construção da imagem de que as meni-
nas são mais passivas e organizadas, e os meninos, mais agitados e criati-
vos. Segundo Auad (2003), esse fato corresponde às expectativas de pro-
fessores e professoras. Essa representação corrobora ainda o argumento
de Cavalcanti (2003), quando ela argumenta que a escola contribui para
a construção de uma visão dicotomizada de gênero, em que as meninas
e mulheres possuem determinadas características, e meninos e homens,
outras distintas.

120
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

Duas ilustrações encontradas em livros de Matemática eviden-


ciam essa afirmação. No desenho encontrado na página 78 do livro Ma-
temática hoje é feita assim, de Bigode (2000), para estudantes de 6ª série,
observa-se o desenho de duas meninas jogando cartas ou figurinhas -
não é possível afirmar com certeza – sentadas, comportadamente, em
uma mesa com suas roupas e cabelos limpos e alinhados. Está claro que
o ambiente é o interior da casa pela presença da mesa e de uma poltro-
na, com revestimento cor-de-rosa que está ao fundo. No desenho en-
contrado na página 13 do livro Matemática e Realidade, de Iezzi, Dolce
e Machado (2000), quatro meninos exibem seus álbuns de figurinhas
sentados ou deitados no chão, de forma descontraída e solta. Não é pos-
sível determinar se o ambiente é interno ou externo, pois não aparece
nenhum móvel e ou planta no cenário. Nessas duas imagens, é possí-
vel perceber a diferença de comportamento de meninas e meninos em
brincadeiras semelhantes. Esse tipo de representação é recorrente nos
livros analisados.
No que tange à representação de gênero nos momentos de estu-
do ou de vinculação com a aprendizagem, pôde-se perceber que tanto
meninas quanto meninos foram representados nos livros didáticos de
Matemática analisados. Porém, as atividades desenvolvidas nos dois
casos estavam desvinculadas da vida em comunidade, o que contribui
para a construção da imagem de que a Matemática não tem utilidade
para o futuro das crianças, e de que não há sentido em estudá-la.
A maioria dos enunciados estão relacionados com a escola e, es-
pecialmente, com o sistema de avaliação, nesses casos, freqüentemente
meninos e meninas tiram notas baixas nas provas30. Assim como no caso
das profissões, o baixo rendimento escolar das crianças representadas
pelos livros didáticos pode levar os estudantes, sejam meninas ou me-
ninos, a concluir que é normal tirar notas baixas, pois os livros didáticos
dizem isso e, como o que está escrito nele é tido como verdade, então,
não é preciso estudar muito. Uma pequena mudança nos enunciados,
trocando as notas baixas por notas mais altas corrige esse problema, e
pode ter efeito contrário, estimulando alunos e alunas a estudar mais.
A relação de amizade aparece em poucos enunciados e ilustra-
ções, o que pode indicar que, na concepção da equipe responsável pela
publicação dos livros didáticos, a escola não é o local adequado para
a construção de amizades. Por outro lado, representações de brigas e

121
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

discordâncias entre estudantes também não aparecem nos livros didá-


ticos, bem como a relação com docentes parece ser sempre pacífica. Isso
diverge da realidade em que o espaço escolar é um dos principais locais
para a construção de relações de amizade, e no qual comumente ocor-
re choque entre os gêneros, o que pode causar discordâncias entre os
sujeitos.
De modo geral, meninos e meninas se submetem passivamente
às ordens da professora ou do professor. Raramente os estudantes são
representados transgredindo os padrões socialmente estabelecidos. Se
a escola, por meio de seus docentes, de sua estrutura e dos livros didáti-
cos, é responsável por moldar os alunos e alunas de acordo com os pa-
drões e normas da sociedade – de acordo o argumento de Apple (2002),
Louro (2001a), Libâneo (2003) e Cavalcanti (2003), só para citar alguns
– os livros didáticos, por sua vez, representam estudantes reproduzindo
essas mesmas regras e padrões, ou seja, corroboram esse argumento.
Na representação de crianças ocorre uma maior interação entre
personagens masculinos e femininos. Também é o espaço no qual o
afeto é demonstrado mais livremente. Isso pode ser percebido em uma
ilustração encontrada na página 41 do livro Tudo é Matemática, de Dan-
te (2003), na qual dois adolescentes, um menino negro e uma menina
branca, estão estudando juntos. A atividade está sendo realizada igual-
mente pelos dois, e ambos demonstram satisfação em trabalhar conjun-
tamente por meio do sorriso estampado em seus rostos. Essa imagem
indica que é possível fazer a ilustração dos livros de forma mais igua-
litária. Além da questão de gênero ser contemplada com eqüidade, a
questão racial também é apresentada adequadamente. Porém, imagens
como essa são raras, mas acreditamos que seria possível inseri-las com
mais freqüência.

Possibilidades de ação
Algumas pessoas podem pensar que as ilustrações dos livros didáticos
não são importantes para a construção das identidades de gênero, pois,
muitas vezes, professores e professoras sequer olham para elas. Porém,
não podemos esquecer que as imagens chamam a atenção das crian-
ças devido ao colorido e ao seu aspecto plástico, pois, em sua maioria,
as ilustrações são bonitas, alegres e divertidas. É necessário, no entan-
to, que estejamos atentos para, na medida do possível, questionar os

122
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

estereótipos que essas imagens trazem, e assim contribuir para que as


crianças não façam uma leitura inapropriada dessas representações.
Esse questionamento pode contribuir para que as crianças e adolescen-
tes construam identidades de gênero de uma forma mais flexível, sem
a ditadura do “tem que ser” (meninas têm que ser sensíveis, e meninos,
viris, por exemplo). Substituir o “tem que ser” pelo “pode ser” significa
substituir a obrigatoriedade pela possibilidade de escolha.
Alguns livros didáticos trazem boas imagens e bons textos para
estimular a discussão de gênero, sexualidade, raça e classe durante as
aulas. Um deles é o livro Linguagens (2006) de Cereja e Magalhães, de-
dicado ao ensino de Língua Portuguesa na 7ª série. Nele encontramos
diversas imagens e textos que permitem a abordagem de gênero, se-
xualidade, raça e classe durante as aulas. A ilustração encontrada na pá-
gina 107, por exemplo, apresenta um cartaz de publicidade do dia das
mães. O cartaz apresenta o perfil da barriga de uma gestante que parece
segurá-la com as mãos (uma em cima e a outra em baixo), e, ao lado,
há a seguinte frase: “Para uma mãe poucas coisas são tão emocionantes
quanto um filho se mexendo. Então, mexa-se e vá comprar o presente
dela”. Essa ilustração é utilizada no livro para tratar de tempos verbais,
porém, um professor ou professora que esteja sensibilizado para a dis-
cussão de gênero e sexualidade pode utilizá-la para discutir temáticas
como gênero e o uso do corpo da mulher como uma vitrine para esti-
mular o consumo.
Uma das formas possíveis para essa abordagem é solicitar aos es-
tudantes que produzam textos a respeito da ilustração, e posteriormen-
te selecionar alguns para debater com a turma. Além de discutir a te-
mática, pode-se ainda trabalhar o poder de argumentação do grupo ao
defenderem seus pontos de vista. Com a discussão gerada por esse tipo
de atividade, pode-se extrapolar e abordar a construção da imagem da
mulher brasileira por meio da publicidade, da televisão, do carnaval e do
consumo. A imagem seria o ponto de partida para um debate que pode
contribuir para minimizar os impactos que o uso do corpo da mulher,
como objeto pela mídia, pode causar no futuro da imagem da mulher
brasileira. Pode-se também observar como o homem é representado
pela publicidade levando a classe a refletir sobre a diferença na constru-
ção das imagens de homens e mulheres por meio da mídia impressa e
televisiva, por exemplo, e quais as conseqüências disso na sociedade.

123
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

Em outro momento do livro Linguagens (2006) de Cereja e Maga-


lhães, os autores apresentam um texto que discute as mudanças no corpo
de meninos e meninas adolescentes. O texto vem acompanhado de duas
imagens: na primeira, localizada na página 95, um menino observa, com
o auxílio de um espelho, as transformações que estão ocorrendo em seu
rosto, o surgimento da barba e das espinhas; na página seguinte, aparece a
imagem de dois adolescentes contemporâneos. Ela é esbelta, corpo já de-
finido, piercing no umbigo e roupas modernas; ele também com roupas
modernas, cabelos vermelhos e tatuagens nos braços. Embora essas duas
personagens não representem a maioria dessa faixa etária, a imagem per-
mite a abordagem da questão de gênero, e os exercícios propostos, com
base nesse texto, podem provocar um debate a respeito da sexualidade.
Porém, para que esse debate ocorra, professores e professoras devem estar
preparados para conduzir a discussão de forma leve e sem preconceitos.
Num outro texto, encontrado nas páginas 120 e 121, também do
mesmo livro, a questão da sexualidade é abordada de forma mais direta.
Também trata da imagem feminina que se constrói por meio de filmes e
de novelas. Um trecho do texto, que é de autoria da estudiosa de gênero
Bia Abramo (2006, p. 121), diz que “em todos os filmes, em todas as nove-
las, em todas as revistas de celebridades, o objetivo número 1 das meninas,
moças e mulheres é estar ao lado de um homem, não importa a que preço.”
Pode-se perceber que a autora está problematizando a forma como a mu-
lher é representada em diversos meios de comunicação, ou seja, é um arti-
go científico dentro do livro didático. O texto aborda os temas de gênero e
sexualidade e representa uma excelente oportunidade para falar a respeito
deles. Acreditamos que essas oportunidades não podem passar desperce-
bidas, devem ser exploradas ao máximo. Muitos professores professoras já
estão aproveitando-as, porém, acreditamos que isso deva acontecer cada
vez mais freqüentemente e para isso há a necessidade de que se preparem
profissionais da educação para que possam conduzir a discussão e servir de
mediadores nos debates. Provavelmente, entre os alunos e alunas haverá
pontos de divergência. Isso pode enriquecer a discussão, no entanto, se não
houver uma boa condução por parte desses docentes, pode-se reforçar os
preconceitos ao invés de minimizá-los.
A ilustração encontrada na página 84 do livro Geografia: Homem e Es-
paço, de Lucci e Branco, voltado ao ensino de 6ª série, apresenta duas fotos.
Um delas traz um veículo dos anos 60 e, ao seu lado, uma linda mulher com

124
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

um vestido de festa vermelho. Ela está posando ao lado do veículo como


se fosse um enfeite. Uma das leituras possíveis dessa foto é que o homem
que possuir o “objeto carro” também possuirá o “objeto mulher”. Na outra
foto, tem-se uma linha de montagem de uma indústria automobilística e
um homem, vestindo um macacão e manuseando o carro, ou seja, ele está
ali como profissional, desempenhando um trabalho remunerado, numa
profissão reconhecida como tal. Provavelmente, a remuneração da modelo
da primeira foto foi maior do que a do mecânico da segunda, porém, o tra-
balho dela não depende de sua capacidade intelectual e, sim, de seu corpo.
Essa ilustração pode ser utilizada de uma maneira muito interessante para
introduzir a discussão da participação de homens e mulheres no mercado
de trabalho, da divisão sexual do trabalho e das transformações que vêm
ocorrendo nesse âmbito, além, mais uma vez, da utilização da imagem do
corpo feminino para o consumo.
A linguagem é outro fator que pode demonstrar a visão da equi-
pe responsável pela publicação dos livros didáticos a respeito do merca-
do do trabalho e da sociedade em geral. Uma sugestão de atividade, que
se encontra na página 27 do livro Geografia: Homem e Espaço, de Lucci e
Branco, para o ensino de 6ª série, diz o seguinte: “Na sua escola, converse
com o diretor, a secretária, o coordenador, a faxineira, o professor e outros
funcionários sobre quais as atribuições da função de cada um e a sua im-
portância para o bom funcionamento da escola”. Esse enunciado apresenta
claramente a hierarquização das profissões. Nele, pode-se observar que as
profissões mais valorizadas e melhor remuneradas estão no masculino e as
menos valorizadas e pior remuneradas estão no feminino. Não estamos di-
zendo que a faxina tem menos importância que a direção da escola, pois
não concordamos com isso, entretanto, na sociedade brasileira existe essa
diferença de valor. Os professores e professoras podem questionar esse
tipo de enunciado e propiciar que sua turma reflita sobre a realidade de
sua escola e a respeito dessas funções. Esse questionamento pode anular o
efeito de enunciados similares na compreensão das relações de trabalho e
da vida em sociedade.
Esses são alguns exemplos de ilustrações e textos que estão pre-
sentes nos livros didáticos e que podem servir de ponto de partida para
a introdução da discussão de temas presentes no dia-a-dia da escola e da
sociedade e que, muitas vezes, não nos damos conta ou não nos sentimos
preparados para discuti-los. Louro, por sua vez, argumenta que “os sentidos

125
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

precisam estar afiados para que sejamos capazes de ver, ouvir e sentir as
múltiplas formas de constituição dos sujeitos, implicadas na concepção, na
organização e no fazer cotidiano escolar.” (2001a, p. 59). Os sentidos preci-
sam estar afiados para que sejamos capazes de enxergar essas representa-
ções estereotipadas, aproveitar as possibilidades de desconstrução desses
estereótipos, e minimizar os preconceitos e discriminações no ambiente
escolar.

Considerações finais
As representações de gênero nos livros didáticos analisados ocorrem, na
maioria das vezes, de forma estereotipada. Homens e mulheres são repre-
sentados como se vivessem em mundos separados, com papéis distintos
e bem definidos, como se não interagissem. Esse tipo de representação é
encontrado em livros de diversas disciplinas como Matemática, Ciências,
Geografia e Língua Portuguesa. Porém, as mesmas imagens que podem
transmitir estereótipos e preconceitos podem também servir como ponto
de partida para o debate de seus significados, implícitos e explícitos, em sala
de aula. Para que isso ocorra, há a necessidade de que professores e profes-
soras percebam que a manutenção e reprodução de situações que podem
culminar em discriminações de gênero, classe, raça e etnia se constitui em
um problema. Somente quando identificarmos uma situação como proble-
mática, poderemos tomar atitudes e desenvolver ações para transformá-la.
Essa transformação, geralmente, é difícil e lenta, entretanto, necessária.
O papel dos profissionais da educação é fundamental no questiona-
mento dessas situações e, para que possam fazê-lo, precisam estar prepa-
rados para perceber, problematizar e debater essas temáticas que são polê-
micas e, muitas vezes, se apresentam como “tabus”. Convém salientar que
os cursos de licenciatura, em sua grande parte, não nos ensinam a utilizar
os livros didáticos, tampouco a fazê-lo de forma crítica. Cada professor ou
professora deve buscar, dentro de suas habilidades e possibilidades, as me-
lhores formas de usar criticamente o material que está em suas mãos.
Os temas sexualidade e gênero não são assuntos relacionados
somente às áreas de Ciências e Biologia. Muitas vezes, os estudantes,
sejam meninos ou meninas, criam apelidos, fazem piadas e chacotas
que causam constrangimento para alguns de seus colegas estudantes,
com base no que entendem como diferente do normal. Porém, o que é
normal? O que é anormal? O que entendemos como normal pode ser di-

126
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

ferente do que outros entendem como tal. O normal e, por conseqüên-


cia, o anormal são social e culturalmente construídos. É necessário que
professores e professoras levem esse fato em consideração no exercício
de sua profissão. Louro (2001a) argumenta que precisamos questionar
tudo o que nos parece normal, pois, caso contrário, isso pode se consti-
tuir em fonte de discriminação.
As situações de constrangimento podem ocorrer na aula de qual-
quer disciplina e também nos intervalos. Cabe aos profissionais da área,
que presenciarem essas ocorrências, problematizá-las e debatê-las. Para
que possam fazê-lo com cuidado e sensibilidade, precisam estar prepa-
rados para isso, especialmente para perceberem que não são apenas si-
tuações vistas como cômicas e sim, manifestações de preconceito, isto
é, situações de discriminação.
Há alguns dias estávamos trabalhando a temática de gênero na
escola com um grupo de professores e professoras e uma participan-
te fez o seguinte comentário: “se não houvesse preconceitos, não ha-
veria piadas nem apelidos jocosos”, o que é uma verdade. Na maioria
das vezes, as piadas se constituem em uma forma de manifestação de
preconceitos e, quando questionadas, as pessoas dizem que “é só uma
piadinha para descontrair” ou “foi só uma brincadeirinha”, porém, para
as pessoas vítimas dessas “brincadeirinhas” isso pode não ter sido nada
engraçado.
O uso crítico dos livros didáticos e de outros materiais que também
servem para esse fim passa pela formação dos docentes, e as universi-
dades têm um papel importante nessa formação. Cabe aos profissionais
da educação que atuam no ensino universitário promover momentos
que possibilitem a discussão das temáticas abordadas neste capítulo de
modo a minimizar os impactos das representações estereotipadas de
ambos os gêneros na formação das crianças.
Neste capítulo abordamos as representações de gênero, entre-
tanto, as representações de raça, classe e etnia também precisam ser
observadas, questionadas e problematizadas com o intuito de se pro-
porcionar uma educação mais igualitária, democrática e justa para to-
dos e todas.

127
um olhar crítico para os livros didáticos: uma análise sob a perspectiva de gênero

Notas
1 Dissertação defendida pela primeira autora e orientada pela segunda no ano de 2005 no
Programa de Pós-Graduação em Tecnologia – PPGTE, da Universidade Tecnológica Federal do
Paraná – UTFPR. A dissertação está disponível na íntegra no site <www.ppgte.ct.utfpr.edu.br>
e no do Domínio Público.
2 O curso “Construindo a igualdade na escola: repensando conceitos e preconceitos de gêne-
ro” foi desenvolvido durante o ano de 2008 pelo Grupo de Estudos sobre Relações de Gênero
e Tecnologia – GeTec, do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia – PPGTE da Universida-
de Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR junto a professores da rede estadual de ensino de
Curitiba e Região Metropolitana. Esse curso teve apoio financeiro da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD do Ministério da Educação.
3 Dentre eles, podemos destacar os estudos de Daniela Auad (2003 e 2006), Marília Pinto de
Carvalho (1999 e 2001), Edlamar Leal de Sousa Cavalcanti (2003); Guacira Lopes Louro (1999,
2000, 2001a e 2001b).
4 O texto citado compreende por carreira científica, as ciências chamadas ‘duras’. Porém, con-
vém salientar que as ciências humanas também são ciências e nelas as mulheres têm tido
significativa atuação.
5 Todos os livros analisados neste texto são anteriores à implantação dos 9 anos para o ensino
fundamental.
6 Optou-se por descrever as imagens devido à necessidade de conseguir a liberação dos au-
tores para o uso delas.
7 Flávia tem que bordar uma toalha formada por... (PIRES; CURI; PIETROPAULO, 2003a, p. 143).
8 Em 6 dias, 4 costureiras fazem 96 paletós. Quantos... (BIANCHINI, 1991, p. 159).
9 Numa aula de Matemática, a professora Maria Helena pediu... (BONGIOVANNI; VISSOTO;
LAUREANO, 1990a, p. 32).
10 Enfermeira e dentista são representadas por meio de ilustrações.
11 O Sr. Antonio, o açougueiro, vai dar... (BONGIOVANNI; VISSOTO; LAUREANO, 1990b, p. 196).
12 O Sr. Paulo é pintor. Seguindo... (ISOLANI; et al., 2002b, p. 272).
13 O Sr. Ismael é um jardineiro caprichoso. Ele quer plantar... (DANTE, 2003a, p. 111).
14 Um operário ganha Cr$ 39.600,00 em 12 dias... (BIANCHINI, 1991, p. 156).
15 Ricardo estava estudando Matemática com seu pai. Este perguntou ao filho quantos triân-
gulos... (DANTE, 2003a, p. 190).
16 A filha de Marília tem que resolver questões de Matemática e pediu ajuda à mãe. Vamos
resolver as questões também... (IEZZI; DOLCE; MACHADO, 2000a, p. 26).
17 Marina tinha R$ 20,00. Ganhou de sua mãe R$ 3,00 e de seu pai R$ 8,00. Com quanto
Marina ficou? (ISOLANI; et al., 2002a, p. 116).

128
lindamir salete casagrande e marília gomes de carvalho

18 Marcos foi passear com seus dois filhos, Celso e Aninha, numa trilha do parque florestal.
Para cada passo de Marcos, Celso dá 2 passos e Aninha, 3. Se o passo... (PIRES; CURI; PIETRO-
PAOLO, 2002a, p. 119).
19 No casamento de Roberta vai haver uma grande festa. Dona Carminha já está preparan-
do os doces... (IEZZI; DOLCE; MACHADO, 2000a, p. 32).
20 Clélia comprou 2,8kg de carne. Quanto ela... (ISOLANI; et al., 2002a, p. 279).
21 Seu Miguel comprou 48 bombons para repartir entre os gêmeos, de modo que Débora
receba 4 bombons a mais que Vítor. Quantos bombons Vitor vai receber?
22 Mário comprou para seu filho um livro e dois cadernos e indicou... (DANTE, 2003a, p.
262).
23 A avó de Néia está fazendo uma reforma em sua casa. Para isso... (DANTE, 2003b, p. 104).
24 Para fazer um bolo, vovó gasta 0,180kg de farinha... (ISOLANI; et al., 2002a, p. 279).
25 O despertador tocou e eu nem me mexi. Meu avô gritou: - Levanta, Marcelo! Falta um
quarto para as seis. (CENTURIÓN; JAKUBO; LELLIS, 2003, p. 130)
26 O avô de Paula e Sofia pediu que elas guardassem na geladeira dois queijos iguais, corta-
dos, para ele fazer uma receita para o jantar. Cada uma... (DANTE, 2003a, p. 139).
27 Aldo, Giba e Raul ganharam de seu avô dois tabletes de chocolate, que foram... (DANTE,
2003b, p. 79).
28 Avelino levou seu neto para assistir a uma partida de futebol entre Grêmio e Internacio-
nal. A partida teve... (DANTE, 2003b, p. 118).
29 Gilberto e Rodrigo possuem juntos 34 carrinhos. Se Rodrigo... (ISOLANI; et al.,2002a, p.
112).
30 Numa prova com 72 questões, sabe-se que Augusto acertou 3/8 delas. Mauro acertou
5/9 e Flavio 5/12 das questões. Pode-se afirmar que... (IEZZI; DOLCE; MACHADO, 2000a, p.
189). Uma prova de Geografia tinha 40 questões. Luis acertou 2/5 das questões e Maria
acertou 5/8. (BIGODE, 2000a, p. 215).

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132
maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

7
CIÊNCIA E TECNOLOGIA SOB A ÓTICA DE GÊNERO

Maria Aparecida Fleury Costa Spanger


Tânia Rosa F. Cascaes
Marilia Gomes de Carvalho

Introdução
Ciência e tecnologia têm sido vistas como fenômenos associados, pois,
a partir da revolução industrial e especialmente das grandes inovações
tecnológicas do final do século XX e início do século XXI, o conhecimen-
to científico passou a ser apropriado pela tecnologia, apropriação esta
que objetivava trazer maior produtividade às empresas e ampliar a ofer-
ta de produtos cada vez mais inovadores no mercado de consumo, a
mola mestra do capitalismo. Atualmente se fala inclusive em tecnociên-
cia, um termo recente que caracteriza a íntima relação entre tecnologia
e ciência.
Não se pode esquecer que tanto a ciência quanto a tecnologia
são fenômenos sociais que adquirem as características do contexto só-
cio-cultural em que são criados e desenvolvidos. Assim, não existe uma
única maneira de fazer ciência e tampouco uma única maneira de inter-
pretar o que seja a tecnologia.
Portanto, a visão determinista de linearidade e neutralidade da
ciência e da tecnologia tem sido, a partir dos anos 60 do século XX, ques-
tionada e combatida por diversos teóricos e estudiosos do campo “Ci-
ência, Tecnologia e Sociedade” – CTS. Esse campo tem por objeto de
estudo os aspectos sociais da ciência e da tecnologia, em relação aos
fatores sociais que influenciam nas transformações científico-tecnoló-

133
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

gicas, e às conseqüências sociais e ambientais que acarretam (BAZZO,


LISINGEN e TEIXEIRA, 2003). Autores como Wiebe Bijker, Trevor Pinch,
André Gorz, Bruno Latour, Langdom Winner, Thomas Hugues, Donald
MacKenzie, Judy Wajcman, Leo Marx, Merrie Roe Smith, entre muitos
outros, teceram suas teorias a respeito de ciência e tecnologia. Embora
sob enfoques diferentes, esses pesquisadores concordam sobre a condi-
ção eminentemente sócio-política e cultural do processo de construção
da ciência e da tecnologia.
Na teoria feminista apresentam-se autoras como Donna Haraway,
Ruth Cowan, Judy McGaw, Londa Schiebinger, Fanny Tabak, entre ou-
tras, que discutem a questão da convergência entre ciência e a tecnolo-
gia e suas implicações. Na visão de Haraway, por exemplo, a ciência, além
de não ser neutra, é política. Para a autora, estamos dentro daquilo que
fazemos e o que fazemos está dentro de nós. No mundo de conexões
em que vivemos o que importa é saber “quem é que está sendo feito e
desfeito”. Professora de história da consciência, essa irlandesa radicada
nos EUA tem desenvolvido uma teoria feminista dentro do mundo tec-
nológico, sem negar nem demonizar a tecnologia, como fazem outras
feministas, mas propondo uma reflexão sobre o caráter de dualidade
que permeia o modelo ocidental de percepção do humano.
Intrincados que estão homem e máquina não há que se defen-
der a teoria de uma linguagem universal totalizante, imaginada pelas
feministas orgânicas, que pregam a libertação da mulher pela volta à
natureza e pelo combate à tecnologia, que, segundo Haraway, consiste
em uma nova visão imperialista. Em sua abordagem, não existe mais lu-
gar para os antigos dualismos orgânicos e hierárquicos que ordenaram
o discurso no Ocidente desde Aristóteles, ainda presentes na teoria fe-
minista, dualismos estes já “canibalizados, ou melhor, tecnodigeridos”.
(HARAWAY, 2006, p.69).
Para melhor entender homens e mulheres como atores em um
mundo tecnológico, são necessárias teoria e prática direcionadas para
as relações sociais da ciência e da tecnologia.
Haraway ilustra a situação atual do ser humano no mundo tecno-
lógico com a figura do ciborgue – criatura pós-humana, que nasce da
combinação da mecanização e eletrificação do humano e da humaniza-
ção e subjetivação da máquina. Segundo ela, se pudermos nos ver como
ciborgues, (cibernética orgânica) frutos dessa interação entre homem e

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maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

máquina, então também podemos ultrapassar o campo dos determinis-


mos, sejam eles biológicos ou sociais, construídos pela sociedade oci-
dental, e partir para um novo entendimento do eu feminino – um ser
repleto de possibilidades, capaz de ser desmontado e remontado em
suas contínuas relações com a ciência e a tecnologia. Esta frase de Ha-
raway corrobora a idéia que se adota neste capítulo: “Não existe sujeito
ou subjetividade fora da história e da linguagem, fora das culturas e das
relações de poder” (2006, p. 12).

Produção científica e tecnológica


Os estudos sobre ciência, tecnologia e gênero, apesar de sua hete-
rogeneidade, convergem para um objetivo político: a oposição ao
sexismo e ao androcentrismo presentes na prática científica (PÉREZ
SEDEÑO; GARCIA, 2006). Segundo as autoras, a participação das mu-
lheres na ciência não é tão inexpressiva como apontada nas estatísti-
cas. O trabalho das historiadoras da ciência tem resgatado em parte
a biografia de cientistas do passado, esquecidas pela sociedade. O
ocultamento sistemático de suas atuações passou por problemas di-
versos. Um deles se relacionava à lei de patentes. Como as mulheres
não tinham direito à propriedade, as patentes de suas invenções sa-
íam no nome do pai, marido ou de algum outro parente. Também
os inventos relacionados à esfera doméstica e da criança, realizados
por mulheres, não eram contados como desenvolvimentos tecnoló-
gicos.
Em que pesem as (re) descobertas das cientistas pelas historia-
doras da ciência, ainda assim se constata a menor participação das
mulheres na produção científica e tecnológica. Isso se deve a alguns
mecanismos de exclusão, às vezes explícitos, às vezes implícitos, mas
reais, segundo as mesmas autoras referenciadas.
O acesso às instituições e academias científicas foi dificultado
às mulheres até bem pouco tempo. Segundo Pérez Sedeño e Garcia
(2006), a institucionalização da ciência moderna foi baseada nos va-
lores dos séculos XVI a XVIII, política e ideologicamente masculinos.
Para as autoras, a ciência moderna admite uma norma dupla: a mu-
lher é admitida na atividade científica praticamente como igual até
que a atividade se institucionalize e profissionalize; e o papel de uma
mulher em uma determinada atividade científica é inversamente

135
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

proporcional ao prestígio dessa atividade (à medida que o prestígio


de uma atividade aumenta, o papel da mulher diminui). (2006, p. 45)
Professora de história da ciência, Londa Schiebinger, também
uma cientista, faz uma crítica contundente, de inspiração feminista, aos
rumos da ciência e da academia. Para a autora, o ideal de mulher como
dona de casa, com seu sustento garantido e com a possibilidade de ficar
longe das tensões da luta pela sobrevivência no mercado profissional,
cada vez mais especializado e concorrido, serve mais aos interesses dos
homens, que precisam de mão-de-obra gratuita para lavar, cozinhar e
cuidar dos filhos, do que às mulheres, que desejam um papel atuante
também no mundo científico. O casamento, os filhos e outras preocu-
pações, tradicionalmente associadas à condição feminina, podem colo-
car a carreira da mulher (e apenas recentemente do homem) em perigo
(SCHIEBINGER, 2001).
Em sua obra “O Feminismo mudou a ciência?”, Schiebinger de-
fende que as diferenças historicamente construídas entre mulheres
e homens não servem como uma base epistemológica para novas te-
orias e práticas nas ciências. Para a autora, não existe “estilo feminino
ou feminista” pronto para ser plugado na bancada do laboratório.
Concepções de ciência feminista como “empática, não dominadora, am-
bientalista” precisam ser afastadas, para dar lugar a instrumentos de
análise que propiciem o desenvolvimento e a crítica da pesquisa cientí-
fica em linhas feministas.
Na sua visão de ciência e vida privada, Schiebinger levanta uma
questão pertinente: a do casal de dupla carreira. Dados comprovam que
um profissional masculino tem mais sucesso se for casado com uma
mulher dedicada à vida doméstica. Já a mulher profissional tem sérias
dificuldades quando opta por casar com um homem profissional e ainda
ter filhos. A autora cita vários exemplos de cientistas, inclusive dela pró-
pria, que se sacrificaram e se sobrecarregaram para conciliara a mater-
nidade com a vida profissional. Em que pese todo um esforço de alguns
estados nacionais (ela se baseia prioritariamente nos EUA), para tentar
“nivelar o campo de jogo”, igualando as condições iniciais para homens
e mulheres no local de trabalho, a partir dos anos de 1980, não foi consi-
derado que o campo de jogo estava demarcado por paredes institucio-
nais e que as nefastas desigualdades ainda estavam (como ainda estão)
presentes na vida privada. A ciência e a vida profissional em geral foram

136
maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

organizadas, partindo-se do pressuposto de que a sociedade não preci-


sa reproduzir-se, ou pelo menos não os cientistas (SCHIEBINGER, 2001).
Dessa forma, as cientistas que escolhem ter uma família sem preju-
dicar a carreira o fazem às suas próprias custas, sem o apoio das institui-
ções científicas, em sua maioria (exceções existem), e de seus cônjuges.
Embora a situação das mulheres tenha melhorado consideravelmente,
as sociedades americanas e européias persistem no uso de divisões fun-
damentais entre as vidas doméstica e profissional herdadas do século
XVIII. Assim, questionar o lugar das mulheres na produção científica
“vai exigir duras batalhas num processo complexo de mudança política
e social.” (SCHIEBINGER, 2001, p.351).
Para a autora,

a mudança requerida deve se dar de forma simultânea,incluindo concep-


ções de conhecimento e prioridades de pesquisa, relações domésticas, ati-
tudes nas pré-escolas, e nas escolas, estruturas nas universidades, práticas
nas salas de aula, a relação entre a vida doméstica e as profissões e a relação
entre a nossa cultura e outras. (p. 351).

Não se discute a importância das pesquisas científicas e tecnoló-


gicas e o papel que elas desempenham no desenvolvimento econômi-
co e social de um país. O Brasil tem criado, marcadamente no período
posterior à Segunda Guerra Mundial, uma série de institutos, centros e
empresas estatais voltados à pesquisa e ao desenvolvimento.
No intuito de investigar os resultados desse investimento, a pes-
quisadora brasileira Fanny Tabak empreendeu uma série de pesquisas
no decorrer das décadas de 70, 80 e 90 do século XX. Algumas consta-
tações dignas de nota foram então reveladas pela pesquisa. A primeira
delas é de que, embora tenha aumentado consideravelmente o número
de matrículas do sexo feminino nas universidades, no mundo acadêmi-
co e científico brasileiro persistiu, até o final do século XX, um grande
desequilíbrio entre o número e a proporção de homens e mulheres. Os
postos hierárquicos mais elevados nas instituições de ensino superior e
nos centros de pesquisa são predominantemente preenchidos por ho-
mens. Poucas mulheres conseguem chegar ao topo dessas instituições
e a grande maioria se concentra nas posições mais baixas.
O resultado disso é que as carreiras científicas e tecnológicas não
são prioridade na escolha das meninas, que continuam optando pelas

137
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

carreiras “tradicionalmente ditas femininas” nas áreas de ciências sociais


e humanas. Uma das explicações reside na persistência de uma forte in-
fluência de estereótipos sexuais na educação e uma sociedade andro-
cêntrica ainda dominante, apesar de todos os avanços conquistados pe-
las mulheres no último século.
Carvalho (2008) desenvolve uma pesquisa com base nos dados
quantitativos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira – Inep - que demonstra, por meio de números e tabelas,
que os cursos superiores da área tecnológica são predominantemente
masculinos, em todas as regiões do Brasil. Este estudo oferece também
dados da Espanha, Alemanha e Cuba, países onde essa mesma tendência
se repete. A porcentagem de mulheres nos cursos de engenharia, por
exemplo, está em torno de 15% a 20%. Por outro lado, cursos como en-
fermagem, pedagogia, psicologia, dentre outros da área da saúde, apre-
sentam uma número bem maior de mulheres do que de homens. Tudo
indica que os homens seguem profissões da área tecnológica e que as
mulheres escolhem profissões da área do cuidado, como se sua atividade
profissional fosse uma extensão das atividades desenvolvidas na esfera
doméstica. A conseqüência mais direta desse fenômeno é que, na área
tecnológica, “o esforço para desenvolver o país em ritmo mais acelerado
deixa de contar com a colaboração da inteligência e competência de mi-
lhares de mulheres” (TABAK, 2002, p. 12).
Nesse sentido, esforços estão sendo empreendidos pelas agências
federais e estaduais de fomento à pesquisa no país, na tentativa de pro-
mover o incremento em quantidade e qualidade da pesquisa científica e
geração de ciência e tecnologia, envolvendo, tanto homens quanto mu-
lheres, no Brasil.
A Fundação Osvaldo Cruz do Rio de Janeiro possui um programa
direcionado para jovens adolescentes (masculinos e femininos) com o
objetivo de incentivá-los, enquanto cursam o ensino médio, a seguirem
carreiras científicas.
A Secretaria de Políticas para Mulheres, do governo federal, possui
um programa de premiação de jovens do ensino médio e alunos de cur-
sos de mestrado e doutorado, com o objetivo de criar motivação para a
produção de artigos científicos. A instituição vem realizando também en-
contros nacionais (2006 e 2009) de grupos de estudos e pesquisas sobre
gênero, reunindo cientistas de diferentes áreas do conhecimento para,

138
maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

através do debate, criar propostas de políticas públicas que incentivem a


participação das mulheres nas ciências.

Produção e uso de artefatos domésticos


Steve Lubar, sintonizado com outros autores, afirma que ambos, produção
e consumo, são marcados por gênero. Na visão do autor, algumas das for-
mas que representam padrões culturais do que é apropriado para homens e
mulheres têm influenciado o design e a manufatura, a compra e a venda, os
modos como nós fazemos e distribuímos as coisas. A sociedade tem cons-
truído a história do consumo atrelada às mulheres e a história da produção
atrelada aos homens, quando, na verdade, essas fronteiras não estão assim
tão demarcadas, tão definidas. (LUBAR, 1998).
Lubar aponta que gênero é uma construção ideológica e cultural.
A masculinidade e a feminilidade são socialmente construídas e histori-
camente contingentes e reforçam as relações de poder na sociedade. Ele
aponta que a moderna história da tecnologia e do gênero tem início com
a revolução industrial e a revolução do consumo dos séculos XVII e XVIII e,
examinando a fala dos historiadores dessas épocas e suas explicações, po-
de-se depreender, segundo Lubar, as razões que levaram a sociedade a crer
que o consumo era uma tarefa de mulher, e a produção tarefa de homem.
O autor discute o conceito de “esferas separadas”, conceito muito
utilizado pelos historiadores para explicar as mudanças dos ideais de gêne-
ro no século XIX. Autoras como Michelle Rosaldo, Ann Douglas, Lori Merish,
trabalham com a categoria “esferas separadas” para homens e mulheres,
bastante reforçada pela propaganda.
Se na história do consumo está presente o estudo de gênero, isso já
não ocorre com a história da revolução industrial. Segundo Lubar (1998), a
maioria dos historiadores da tecnologia tem ignorado a questão do gêne-
ro.
Entretanto, a divisão sexual do trabalho baseada nos ideais de gêne-
ro exerceu um papel importante na industrialização. Judy McGaw, citada
por Lubar, afirma que essa doutrina (esferas separadas), que se recusava a
reconhecer o trabalho das mulheres, serviu muito bem para suprir a indus-
trialização da América com a mão-de-obra barata e essencial do trabalho
das mulheres.
Nina Lerman, citada por Lubar, afirma que o conhecimento tec-
nológico na América tem sido e é percebido hierarquicamente e que

139
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

essas hierarquias dependem não apenas do gênero, mas também da


raça e da classe social. As fronteiras sociais de gênero, raça e classe es-
tão interligadas com o conhecimento tecnológico e, dessa forma, com
a mudança tecnológica. Para mapear as fronteiras entre masculino e
feminino quanto à produção e ao consumo, o autor se utilizou de al-
guns estudos de caso, mostrando como algumas idéias de gênero e
tecnologia têm sido expressas diferentemente, em diferentes lugares
e tempos.
Os estudos de Ruth Schwartz Cowan ressaltam o importante pa-
pel desempenhado pelas donas de casa americanas no desenvolvimen-
to tecnológico. A máquina de costura, produto inicialmente pensado
para homens, possui uma história que pode bem exemplificar a resis-
tência contra a tecnologia sendo introduzida na “esfera” da mulher. Isso
só mudou com a estratégia de vendas de Singer, decorando as lojas
como um ambiente doméstico, colocando crédito, vendedoras, iniciati-
vas posteriormente por outros produtores de máquinas de costura.
Cowan entende o consumidor como uma pessoa envolvida em
uma rede de relacionamentos sociais que limita e controla as coisas tec-
nológicas que a mulher ou o homem são capazes de fazer. Nesse senti-
do, a autora faz não só um esforço para colocar o consumidor no centro
da network, mas também para analisar a visão da network a partir do
ponto de vista do consumidor (1996).
Lubar afirma que no século XX as mulheres exerceram um papel
importante como mediadoras em um mundo corporativo individual,
trabalhando em ambos os lados − da produção e do consumo. Traba-
lharam como agentes de propaganda, economistas do lar, produtoras
de design. Fizeram o papel de mediadoras entre os desejos dos produ-
tores e dos consumidores.
Como economistas do lar, as mulheres viram produção e consu-
mo não como processos separados, mas como dois lados da mesma
moeda.
Dessa forma, parece claro que as “esferas separadas” entre mas-
culino e feminino, produção e consumo, não se mostram tão separadas
assim. Há um constante jogo intermediário entre elas, e uma área de
interação e conexão.
Contrariando muitos historiadores de tecnologia que têm tenta-
do mostrar claramente uma distinção entre produtores e consumidores,

140
maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

assumindo que os produtores sozinhos são os tecnólogos, Lubar suge-


re que devemos olhar para a tecnologia como uma negociação entre
produtores e consumidores, fazedores e usuários. Os objetos tecnoló-
gicos são uma negociação de valores e significados entre fabricantes e
trabalhadores, enquanto os objetos de consumo são uma negociação
entre produtores e compradores. Cada pessoa que participa do design,
da fabricação, da venda ou da utilização de um objeto dá um significado
a ele; cada um ajuda a construir isso (1998).
O ideal de masculinidade e feminilidade, eles mesmos formados
e construídos pelos objetos e ações que homens e mulheres desenham,
fazem, vendem, compram e usam a cada dia, são uma peça-chave da-
queles significados.
Com base nessa posição teórica, é possível afirmar com segu-
rança que a fabricação de artefatos domésticos no Brasil, os chamados
eletrodomésticos, estão isentos de um enfoque generificado? Existe al-
guma relação entre a diversidade e o hibridismo cultural brasileiros, as
representações de gênero e o desenvolvimento desses artefatos? Para
quem eles são criados? O que o design desses produtos pode revelar a
respeito de relações de gênero?
Essas e outras questões foram equacionadas pela pesquisadora e
designer Maristela Mitsuko Ono, em sua pesquisa a respeito do design
de produtos industrializados (2006). Através de pesquisas de mercado
e design de produtos, Ono detectou diversas práticas que têm colabo-
rado para promover o desenvolvimento e o consumo de produtos in-
dustrializados no Brasil, baseados em uma visão binária de gêneros, e
no estereótipo que imputa às mulheres a inteira responsabilidade pelo
cumprimento de certos papéis sociais, como, por exemplo, o trabalho
doméstico. Os designers desses produtos buscam captar o perfil da mu-
lher brasileira na criação dos eletrodomésticos, utilizando formas e co-
res que mais expressem os sentimentos e o estilo de vida da brasileira,
enquadrando-a em determinados modelos, padrões. Dessa forma, os
produtos “ao gosto” da mulher brasileira, longe de desempenhar um
papel transformador nos hábitos das famílias, acabam por reforçar os
estereótipos de gênero, em vez de contribuir para disseminar o uso des-
ses artefatos também para homens, que possam assumir esses traba-
lhos naturalmente, como parte de suas responsabilidades domésticas.
O design de artefatos domésticos no Brasil, segundo Ono, situa-se em

141
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

uma abordagem reducionista e determinista no que se refere às rela-


ções entre os gêneros e não contempla a complexidade, a pluralidade
e a variabilidade das características, necessidades e anseios das pessoas
(2006).
A propaganda de eletrodomésticos no país continua explorando,
ainda no século XXI, a figura da mulher como “rainha” do lar, primorosa
no cuidado da casa, dos filhos, do marido, isso sem falar em sua vida
profissional; ou seja, trata-se deu uma rainha sobrecarregada e sem ser-
viçais, sem dúvida, mas rainha. Nada que possa servir para uma reflexão
sobre a divisão sexual do trabalho em nossa sociedade predominante-
mente machista. Papéis considerados de valor estão ainda atrelados à
figura masculina e papéis de menor valor à figura feminina, mesmo após
todas as conquistas das mulheres na esfera do trabalho e do conheci-
mento.
Indagando sobre a utilização da tecnologia no recorte de gênero,
cita-se a pesquisa realizada por Spanger, com alunos de uma faculda-
de particular em Curitiba, envolvendo 346 respondentes, entre alunos
universitários de ambos os sexos. A pesquisa demonstrou a forma de
uso da tecnologia de informação − internet – na prática de consumo – o
e-commerce − por parte de alunos e alunas.
Aproximadamente 90% das jovens demonstraram familiaridade
com a tecnologia e a prática do e-commerce, mais significativamente
entre a faixa de renda abaixo de R$1.000,00. Entre aquelas que afirma-
ram não praticar o e-commerce, a maior preocupação se relacionava a
questões relativas à segurança, à qualidade do produto e às preferên-
cias pelo comércio tradicional. Falta de acesso e medo também estive-
ram entre as respostas, porém em menor grau. No caso destas últimas,
observou-se uma lista com mais de 20 itens de impedimentos aponta-
dos, ao lado de apenas 2 itens apontados pelos homens, denotando
um maior questionamento por parte das mulheres quanto a esse tipo
de tecnologia, que pode tanto ser interpretado como insegurança ou
como maior rigor/exigência quanto à tecnologia. Nesse caso específi-
co o que ficou demonstrado não foi tanto a falta de acesso, mas a uti-
lização mais consciente da tecnologia por parte das jovens. Já entre os
rapazes, a grande maioria pratica o e-commerce, e aqueles que não o
fazem apresentaram apenas duas questões impeditivas relacionadas à
segurança e à confiabilidade dos sites. Os rapazes, ao que parece, ade-

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maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

riram ao e-commerce sem tantas indagações. Questões de segurança e


confiabilidade da tecnologia são as mesmas tanto para homens quanto
para mulheres. A pesquisa apenas demonstrou que a preocupação com
essas questões difere muito entre os sexos, na opção do uso ou não da
tecnologia.

O papel da escola na construção da igualdade de gênero


Graças a uma maior interação e comunicação na atual sociedade da in-
formação, está sendo destacada a visibilidade das diferenças de gênero,
em seus mais variados aspectos. Já existem vários grupos discutindo a
temática na sociedade e reivindicando transformações nos modos como
pensamos e agimos em relação às diferenças de gênero.
Em que pese existirem leis, órgãos públicos e privados criados
com o objetivo de fomentar discussões e amparar os direitos de homens
e mulheres na esfera do trabalho e da vida em geral, as questões que
envolvem gênero perfazem uma temática que ainda não ganhou corpo
suficiente em nossa sociedade, a ponto de gerar mudanças significati-
vas nas mentes e nas ações humanas.
Se tomarmos a instituição escola, por exemplo, como um locus
privilegiado, lugar por excelência da reflexão e da construção de valores,
idéias, conceitos e não preconceitos, podemos com segurança afirmar
que ela esteja cumprindo seu papel? Quando o curso de extensão
“Construindo a igualdade na escola” foi ministrado, pudemos entrar em
contato direto com centenas de docentes de variadas escolas da rede
pública e, nessa interação, outra realidade foi identificada.
Outros capítulos deste livro também mostram que, por ocasião
deste curso, ao lançar um olhar mais atento em direção às escolas e aos
conteúdos dos seus currículos e às práticas escolares, o que se percebeu
foi um desconhecimento quase total da problemática de gênero por
parte dos professores. As questões que envolvem as relações de gênero,
em sua maioria, não têm sido contempladas nos currículos e a maioria
dos docentes não está devidamente sensibilizada nem preparada para
lidar com essa temática em sala de aula. E, mesmo que identificadas, as
discussões que permeiam o universo das relações de gênero têm sido
ocultadas, evitadas, sob as mais diversas alegações, tendo como justifica-
tiva principal a não aceitação “desses assuntos” por parte da instituição,
do corpo docente e da própria família. Dessa forma, a escola, em lugar

143
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

de promover uma re-construção de conceitos, e uma des-construção de


preconceitos, coloca-se em uma posição conservadora, afastada cada
vez mais do seu verdadeiro papel. Separada da dinâmica da vida, não
estaria assim a escola enclausurando-se em sua burocracia? Privilegian-
do preferencialmente a perpetuação de regras e normas tradicionais e
reforçando a desconectividade entre o ensino e a vida dos sujeitos, não
estaria a escola, dessa forma, ignorando a sua vocação primeira?
Essa experiência mostrou que em muitas escolas ainda persiste
o modelo de ensino conteudista, fragmentado, pautado na indiferen-
ça pelo contexto complexo da educação e de seu significado, em que
oportunidades preciosas para conduzir um processo de transformação
estão sendo desperdiçadas por falta de conhecimento e motivação dos
docentes. A falta do diálogo, no entanto, faz com que os valores da to-
lerância, do respeito e da dignidade se construam no anonimato das
relações de poder, usando-se, para isso, parâmetros que não são discuti-
dos de uma forma democrática pela sociedade e também pelas políticas
públicas.
A eliminação dos preconceitos das relações de gênero passa ne-
cessariamente por uma reestruturação dos conteúdos e das práticas
docentes, mas ela deve se iniciar prioritariamente no âmbito das menta-
lidades dos indivíduos ligados à educação.
Nesse sentido, o curso “Construindo a Igualdade na Escola” foi
realizado para a sensibilização dos docentes e das pessoas ligadas à
educação, em uma tentativa de desconstrução de referências culturais
preconceituosas em relação à temática de gênero.

Tecnologias conceptivas e contraceptivas


Diante de uma análise histórica, constatamos que métodos contracepti-
vos foram conhecidos e usados por diversas culturas em diversas épocas,
salientando nesse primeiro momento que esses métodos foram sempre
ditados pelo homem.
O preservativo masculino tem suas origens no antigo Egito, onde
era produzido com pele de carneiro. Já o coito interrompido ou coito
reservado pode ser encontrado em documentos da Igreja Católica, na
Idade Média e Idade Moderna.
A partir do século XIX surgiu o interesse em estudos para contra-
cepção centrados no corpo das mulheres, a saber:

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• 1838: a primeira capa cervical, que exigia o uso de espermicida,


primeira versão do diafragma que foi criado em 1882 substituin-
do essa capa.
• Método Ogino-Knaus: o famoso método da tabelinha, que bus-
cava estabelecer os dias férteis da mulher, no início do século XX.
• O uso de objetos introduzidos no útero para impedir a concep-
ção data de 1909.
• A pílula anticoncepcional, investigada por Gregory Pincus, ob-
teve apoio financeiro das doutoras Margaret Sanger, Min Chueh
Chang e do doutor John Rock.
• Aborto.

O que se pode observar é que o movimento pelo planejamento


familiar colaborou com a promoção da igualdade entre homens e mu-
lheres, por colocar a decisão da concepção/contracepção na mão das
mulheres, tornando-as independentes da vontade masculina.
A descoberta da pílula anticoncepcional trouxe para as mulheres
a possibilidade de separar a sexualidade da reprodução e, com certeza,
trouxe conseqüentemente maior autonomia, segurança e liberdade ao
universo feminino. O uso disseminado dessa tecnologia data dos anos
60 do século XX, o que coincide com o movimento feminista mais radi-
cal, que pregava a participação da mulher no mercado de trabalho em
condições de igualdade com os homens, além de outras reivindicações
que representavam conquistas nunca antes alcançadas pelas mulheres
– a participação na vida política, uma vida sexual mais livre, a opção de
ter filhos ou não, a melhor época de sua vida para engravidar − enfim, a
pílula anticoncepcional veio para permanecer e garantir às mulheres um
maior controle da maternidade. Paralelamente a esse controle, surgiu
para o público feminino a possibilidade da autonomia financeira, atra-
vés de seu trabalho e também a possibilidade de abandonar a posição
de subordinação à dominação masculina.
A mulher, dessa forma, transitou da esfera privada para a esfera
pública através do poder adquirido no que tange ao domínio e a uma
nova consciência do seu próprio corpo, permitindo-lhe perceber-se não
só como reprodutora, mas como detentora de uma sexualidade que

145
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

até então lhe havia sido negada por uma sociedade que a concebia so-
mente como procriadora. A percepção desse corpo que agora passou
a lhe pertencer foi fundamental historicamente para uma mudança no
comportamento da mulher, concedendo-lhe um poder e uma liberdade
nunca antes consentidos.
Por outro lado, mulheres e homens antes inférteis conseguem
atualmente realizar o desejo de terem filhos com a ajuda dos vários mé-
todos de concepção disponibilizados pelo avanço tecnológico da área.
Para Tamanini (2006), tratar a infertilidade passou a ser uma ne-
cessidade em nossa cultura, que se organiza em volta do casamento he-
terossexual e fértil. O tratamento da infertilidade data dos tempos bíbli-
cos, mas hoje se reveste de outros significados. Tamanini entende que:
atualmente a infertilidade interage com o medo da esterilidade social
em termos de reprodução de valores, e sobre o medo sobre a impossi-
bilidade que venha a ter a espécie humana de reproduzir-se biologica-
mente, configurando novas demandas e novas práticas reprodutivas e
sociais relativas também à maternidade, à paternidade, ao parentesco e
à filiação. (2006, p. 123)
É inegável o avanço da tecnologia na área da concepção. No en-
tanto, no afã de solucionar a questão da infertilidade, a sociedade se
fixou na questão biológica do processo de reprodução, negligenciando
as implicações sociais e culturais subjacentes.
Questões importantes como o acesso às tecnologias, às informa-
ções completas dos processos de reprodução assistida, a inserção social,
política, moral e sanitária da medicina reprodutiva não podem ser es-
quecidas. (TAMANINI, 2006).
A reprodução, que antes estava imbricada com as relações de
sexo e gênero, está sendo atualmente materializada pela tecnologia da
reprodução, facilitada pela biogenética, em intervenções laboratoriais
“artificiais”, deixando à margem uma série de reflexões a respeito de va-
lores morais ou éticos desses mesmos processos.
Ressalta-se que essas técnicas de reprodução contaram larga-
mente com a feminização da pesquisa científica e que, graças à inserção
das mulheres na ciência, áreas de interesse feminino estão sendo incor-
poradas às investigações mais recentes.
No âmbito social, conquistas significativas foram alcançadas. No
entanto, é alvo de grandes preocupações o fato de ainda não estarem

146
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sendo viabilizados às mulheres em geral os esclarecimentos e informa-


ções necessários na área da saúde concernentes a essas tecnologias,
que são muitas vezes invasivas e irreversíveis, podendo, a longo prazo,
causar prejuízos no campo sexual e fisiológico.
Fomentando uma lucrativa indústria, homens e mulheres de to-
das as opções sexuais podem “encomendar” seus bebês, desde que pos-
sam pagar por eles.
Na opinião de Tamanini (2006, p. 147),

os discursos da tecnociência sobre a reprodução são discursos sobre o


ocultamento e a exclusão dos corpos femininos e que agora parecem ser
também sobre o ocultamento dos sexos e da capacidade dos indivíduos de
participar de uma complexidade de experiências igualmente reconhecidas
em termos de gênero.

Se, por um lado, algumas mulheres podem planejar o tempo, a


quantidade e hoje até o sexo dos filhos, a fim de não prejudicar suas car-
reiras profissionais, por outro lado, isso não significa que esteja ocorren-
do uma transformação real nos papéis sociais e responsabilidades a elas
atribuídas, fortalecendo e não superando, dessa maneira, os dualismos
construídos pela sociedade.
Ao finalizar este capítulo restam, além das descobertas já apon-
tadas, questões ainda não respondidas, que ficam abertas à reflexão. O
que se indaga é: por que as mulheres profissionais do século XXI ainda
precisam adiar sua maternidade? Todas as mulheres estão igualmente
vocacionadas à maternidade? Quais as conseqüências, para as mulhe-
res, para os filhos, para a família e para a sociedade em geral, de uma
maternidade tardia? Por que a maternidade ainda se constitui em um
empecilho para a carreira das mulheres profissionais? De que forma o
desenvolvimento tecnológico tem contribuído para uma transformação
significativa das diferenças entre homens e mulheres?
Essas são perguntas que merecem uma cuidadosa reflexão, se
quisermos contribuir para a desconstrução dos determinismos e estere-
ótipos de gênero em nossa sociedade.

Conclusões
O campo de estudos sobre ciência, tecnologia e gênero demonstra que
ciência e tecnologia foram socialmente construídas com as referências

147
ciência e tecnologia sob a ótica de gênero

do mundo masculino, e que as mulheres foram, durante um grande pe-


ríodo de tempo, proibidas de exercer atividades nessas áreas do conhe-
cimento.
Isso não significa que as mulheres não as tenham exercido. Estas fica-
vam, porém, na obscuridade de um marido, irmão ou pai ou apelavam para
estratégias de invisibilidade, tais como o uso de pseudônimos, ou apenas o
uso de iniciais em seus nomes para que o sexo não fosse identificado.
Apenas no final do século XIX elas puderam freqüentar universida-
des e até hoje as carreiras científicas e tecnológicas contam com uma gran-
de maioria masculina. Não se pode negar, no entanto, que esse quadro
esteja em transformação. Percebe-se que hoje as mulheres já são maioria
no ensino superior brasileiro e que aos poucos estão também entrando em
cursos tradicionalmente masculinos. Apesar das dificuldades de inserção
nesses cursos, fato devido a preconceitos e a discriminações, as mulheres
estão aos poucos demonstrando que são intelectualmente tão capazes
quanto os homens.
O fato de as mulheres estarem ocupando posições de destaque em
algumas áreas da ciência e tecnologia permite maiores possibilidades de
pesquisas em temas, que nem sempre interessam aos homens desenvol-
ver. As tecnologias domésticas, por exemplo, e as tecnologias conceptivas
e contraceptivas são campos de estudos e inovações que trazem um gran-
de interesse para as mulheres.
Para que se possa avançar na direção de uma maior participação fe-
minina na ciência e tecnologia, faz-se necessário que elas sejam incentiva-
das nas escolas, desde o ensino fundamental e médio, a seguirem carreiras
científicas e tecnológicas, preparando-as para superarem os preconceitos
e as dificuldades decorrentes de discriminações. Sabe-se que muitas en-
genheiras, por exemplo, não praticam a profissão em que se formaram,
porque não foram preparadas para compreender as questões de gênero
que permeiam o ambiente de trabalho. Essa é uma das razões que eviden-
ciam a importância da compreensão da construção do gênero em nossa
sociedade e os problemas decorrentes dessa construção para homens e
mulheres.

Notas
1 Mestre em tecnologia e doutoranda em tecnologia e sociedade pela Universidade tec-
nológica federal do Paraná. Pesquisadora do Grupo de estudos e pesquisas em relações de

148
maria aparecida fleury costa spanger, tânia rosa f. cascaes e marília gomes de carvalho

gênero e tecnologia – Getec, da UTFPR. Economista, Administradora e professora de ensino


superior. cidaspanger@yahoo.com.br
2 Mestre em tecnologia pela UTFPR. Pesquisadora do Getec da UTFPR. Socióloga, Especialis-
ta em Magistério Superior. taniarosa@onda.com.br
3 Doutora em antropologia social pela USP e pós doutora em Multiculturalismo pela Univer-
sidade Tecnológica de Compiègne da França. Professora do Programa de Pós-graduação em
tecnologia da UTFPR. Pesquisadora e coordenadora do GeTec. mariliagdecarvalho@gmail.
com
4 E-commerce é o comércio de mercadorias realizado pela internet, através de sites progra-
mados com esse objetivo.

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150
nanci stancki da luz

8
DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO E PROFISSÕES CIENTÍFICAS
E TECNOLÓGICAS NO BRASIL

Nanci Stancki da Luz

Introdução
A participação das mulheres no mercado de trabalho tem se ampliado
nas últimas décadas, no entanto, as desigualdades de gênero permane-
cem marcando a presença feminina em diversas profissões. No Brasil, a
mulher está próxima de representar a metade da população economica-
mente ativa, todavia, permanece enfrentando processos de segregação
horizontal e vertical de gênero, caracterizados por discriminação, preca-
rização e desvalorização profissional.
Ainda é presente uma divisão sexual do trabalho na qual as ativida-
des das mulheres permanecem associadas a atributos considerados femi-
ninos – afeto, emotividade, minúcia, organização, repetição e paciência.
A compreensão dos fatores que possibilitam sua reprodução extrapola a
esfera produtiva, envolvendo aspectos extra-profissionais. A divisão do
trabalho doméstico, os processos de socialização de homens e mulheres
e as relações de poder entre os gêneros são aspectos relevantes para essa
análise e que interferem sobre a composição de gênero das diversas pro-
fissões.
Valendo-se de uma discussão a respeito da divisão sexual do tra-
balho, este texto apresenta uma reflexão sobre profissões que historica-
mente tiveram uma composição majoritariamente masculina: as carrei-
ras científicas e tecnológicas, entre as quais destacaremos o Magistério
Superior, a Matemática, a Física, a Química, a Estatística e a Engenharia/
Arquitetura.
Para análise, este artigo levará em consideração dados quantitati-
vos referentes à distribuição de gênero nos cursos superiores no Brasil –
com base em informações disponibilizadas pelo Instituto Nacional de Es-

151
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

tudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP/MEC) – e referentes


ao emprego nesse segmento – valendo-se de dados da Relação Anual de
Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego – bus-
cando destacar o estoque de postos de trabalho e variáveis como faixa
etária, gênero e remuneração média.

Divisão sexual do trabalho


A divisão sexual do trabalho é uma das formas da divisão social do tra-
balho. Trata-se da separação entre atividades desenvolvidas pelas mu-
lheres e atividades desenvolvidas pelos homens. Tal divisão associa,
numa perspectiva macro, o trabalho das mulheres à esfera da reprodu-
ção – espaço familiar no qual as atividades se voltam para a produção e
manutenção da vida, buscando suprir as necessidades de sobrevivência
familiar – e o trabalho dos homens ao âmbito produtivo – espaço públi-
co no qual se produz bens e serviços para a sociedade.
Para Hirata e Kergoat (2007), com o impulso do movimento femi-
nista da década de 1970, surgiu uma onda de trabalhos que assentaram
a base teórica desse conceito. Com a tomada de consciência da opressão,
ficou evidente que uma enorme massa de trabalho era feita gratuitamen-
te pelas mulheres – atividades invisíveis, desvalorizadas e sem reconheci-
mento, realizadas para outros em nome da natureza, do amor e do dever
materno. Algumas análises passaram, então, a abordar o trabalho do-
méstico como atividade de trabalho tanto quanto o trabalho profissional,
permitindo considerar “simultaneamente” as atividades desenvolvidas na
esfera doméstica e na esfera profissional, abrindo caminho para se pensar
em termos de “divisão sexual do trabalho”, definido por:

[...]forma de divisão do trabalho social decorrente de relações sociais entre


sexos; mais do que isso, é um fator prioritário para a sobrevivência da rela-
ção social entre os sexos. Essa forma é modulada histórica e socialmente.
Tem como característica a designação prioritária dos homens à esfera pro-
dutiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropria-
ção pelos homens de funções com maior valor social adicionado (políticos,
religiosos, militares, etc. (HIRATA e KERGOAT, 2007, p. 599)

Dessa forma, para as autoras, essa forma particular de divisão social


do trabalho se organiza com base em dois princípios:

152
nanci stancki da luz

1. Princípio da separação – existem trabalhos para homens e tra-


balho para mulheres;
2. Princípio hierárquico – o trabalho dos homens tem maior valor
do que o trabalho das mulheres.

A legitimação dessa divisão se dá pela naturalização das atribui-


ções femininas e masculinas, remetendo a uma espécie de destino de
cada um dos gêneros. Numa perspectiva biológica e determinista, ca-
beria às mulheres o cuidado com os filhos e as demais atividades desen-
volvidas no âmbito privado. Assim o “cuidar”, associado à maternidade,
floresce como algo natural. Essa visão se expande sem maiores obstácu-
los quando delas é exigido o cuidado dos seus maridos, das pessoas do-
entes, dos desamparados na sociedade, etc. E se amplia, inclusive para o
âmbito público, quando somente a elas se atribui o cuidado de crianças
nas instituições escolares, por exemplo.
Qual seria o problema do desempenho exclusivo de tais atividades
pelas mulheres?
Muitos. Um deles está na associação natural do “cuidar” com as
mulheres, pois, os homens também precisam aprender a cuidar, consi-
derando-se que também têm filhos e ainda podem desejar desempenhar
atividades (profissional ou extra profissional) que exijam tal habilidade;
as mulheres podem desenvolver outras habilidades e não ficarem con-
dicionadas apenas àquelas consideradas naturalmente femininas; se tais
atividades forem consideradas “obrigações” das mulheres, podem gerar o
não reconhecimento e desvalorização das mesmas. O trabalho desenvol-
vido no âmbito familiar pressupõe trocas, partilhas e negociações entre
ambos os sexos, tornando possível inúmeros arranjos e formas de dividir
tarefas. Todavia, se aquelas que as mulheres desempenham se tornarem
invisíveis e não computadas como trabalho, isso contribuirá para a desva-
lorização e a sobrecarga de trabalho das mulheres, interferindo inclusive
nas atividades profissionais femininas.
A realidade das mulheres no mundo privado pode condicionar a
participação feminina no mundo produtivo, mesmo que a igualdade te-
nha sido garantida em legislação, como é o caso brasileiro. Para Kymli-
cka (2006) a aceitação de que as mulheres devem ser vistas como seres
“livres e iguais” e a adoção de estatutos antidiscriminação, com objetivo
de assegurar a igualdade entre homens e mulheres no âmbito produtivo,

153
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

não propiciaram necessariamente a igualdade, pois, o trabalho foi defini-


do sob o pressuposto de que seria preenchido por homens que tivessem
mulheres em casa assumindo as responsabilidades do âmbito doméstico.
Estar livre dessas responsabilidades é relevante para a maioria dos traba-
lhos existentes, uma vez que eles, anteriormente definidos, já levaram em
consideração o sexo de quem desempenharia a função.
A associação da suposta natureza feminina com o “trabalho por
amor” pode ainda justificar baixos salários em profissões como magisté-
rio, por exemplo. Existe uma diferença abissal entre o cuidado que uma
mãe dispensa a seu filho – atividade que deve ser reconhecida, valorizada,
partilhada com o pai da criança, mas não visa retribuição financeira – com
os cuidados e atenção que uma professora dispensa aos seus alunos – ati-
vidade profissional que deve ser reconhecida, valorizada e que pressupõe
salário.
Consoante Kymlicka (2006), a família é um locus importante para
a luta por igualdade de gênero, sendo consenso entre as feministas que
a luta pela igualdade deve atingir os padrões do trabalho doméstico e a
desvalorização das mulheres na esfera privada. A nítida divisão entre a
esfera doméstica e o domínio público acarreta a invisibilidade pública das
mulheres. Uma corrente importante na desvalorização do trabalho das
mulheres, particularmente no se refere à criação dos filhos, é a idéia de
que são incumbências meramente naturais, uma questão antes de instin-
to biológico do que de conhecimento cultural.
Embora possamos perceber mudanças comportamentais, ainda
persistem idéias de que também existem atividades que seriam natural-
mente masculinas. Na mesma perspectiva biológica e determinista, aos
homens, supostamente dotados de mais força física e coragem “por na-
tureza”, caberia naturalmente enfrentar “riscos” para a proteção familiar e
desempenhar o papel de provedor. Além disso, os homens historicamen-
te também foram associados a determinados atributos que os tornariam
naturalmente adequados à esfera pública: racionalidade e objetividade,
por exemplo.
Uma divisão como essa evidentemente que não cabe na realida-
de. Homens e mulheres podem desempenhar atividades domésticas e
de provedor familiar ou cuidar de crianças. Ambos podem ser racionais,
objetivos, sensíveis e/ou emotivos, pois tais características não são exclu-
dentes tampouco inerentes a um único gênero.

154
nanci stancki da luz

Vale destacar que, no contexto atual, o emprego e a renda das


mulheres é uma necessidade familiar, seja devido aos índices de desem-
prego ou remunerações masculinas insuficientes para o custeio familiar,
ou porque a família depende exclusivamente do trabalho feminino ou
ainda porque as mulheres querem e precisam de independência eco-
nômica.
A imposição de uma tradicional e fixa divisão de tarefas entre ho-
mens e mulheres acaba gerando situações que revelam o quanto esse
modelo idealizado nem sempre condiz com a realidade:

• Mulheres que são total ou parcialmente responsáveis pelas des-


pesas familiares e que, no entanto, são percebidas como pessoas
que “ajudam” financeiramente, mantendo o papel “fictício” de
provedor com o homem;
• Mulheres que trabalham juntamente com seus esposos/compa-
nheiros em atividades agrícolas ou empreendimentos familiares,
mas que cabe, exclusivamente ao homem a administração das fi-
nanças originadas do trabalho conjunto;
• Homens que não partilham os afazeres domésticos e cuidado
dos filhos com suas esposas, mesmo quando elas têm jornada de
trabalho fora de casa igual ou até superior a deles;
• Mulheres que se casam, esperando proteção, e acabam sendo
vítimas de violência doméstica, inclusive, assassinadas por seus
maridos.

A divisão sexual do trabalho na esfera produtiva tem relação dire-


ta com a divisão das atividades no âmbito privado. Mudanças em uma
esfera exigiriam mudanças na outra. A entrada da mulher no mercado
de trabalho alterou a divisão sexual tradicional do trabalho produtivo
e deveria ter ocasionado alterações na distribuição das tarefas domés-
ticas. Se a mulher está atuando na esfera pública, nada mais lógico que
o homem também atuar na privada. Todavia, isso não se realizou ple-
namente. Se hoje podemos ver homens assumindo a paternidade de
forma responsável e partilhando as atividades domésticas, essa não é a
realidade para grande parte das famílias. Por outro lado, para a maioria
das mulheres, o emprego seja formal ou informal já é uma realidade/ne-

155
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

cessidade, exigindo que essa atuação profissional ainda seja conciliada


com as tarefas tradicionalmente femininas.
Hirata e Kergoat (2007) trazem uma importante discussão a respei-
to dos modelos emergentes da realidade das mulheres trabalhadoras e
que relaciona a esfera doméstica e profissional:

• Modelo de conciliação: conciliação vida familiar/vida profissio-


nal que implicitamente define um único ator (atriz) dessa concilia-
ção – a mulher.
• Modelo de delegação: tem substituído o modelo de conciliação
e aparece por meio da polarização do emprego das mulheres e do
crescimento da categoria de profissionais de nível superior e de
executivas, que têm ao mesmo tempo a necessidade e os meios
de delegar a outras mulheres as tarefas domésticas e familiares.

O modelo de conciliação traz inúmeros prejuízos para a mulher,


que além da sobrecarga de trabalho, tem dificuldades para investir em
uma carreira profissional, pois, isso exige estudo, aperfeiçoamento pro-
fissional, dedicação, ou seja, tempo – do qual nem sempre dispõe. Essa
situação pode acarretar a segregação das mulheres em atividades que
não exijam qualificação, mas que também tenham remuneração menor.
Esse modelo pode ainda, pela dificuldade de concretização na prática, ge-
rar o abandono da carreira profissional, no intuito de que a mulher possa
se dedicar exclusivamente aos cuidados da família ou, para aquelas que
resolverem investir na vida profissional, acarretar na “escolha” de não ter
filhos e até mesmo de não se casar.
Homens não precisam escolher entre vida familiar e profissional:
eles conseguem ter os dois. Isso é possível, especialmente, devido ao
modelo de delegação de tarefas – se não há uma esposa que assuma as
responsabilidades da vida privada, outra mulher da família ou uma em-
pregada assumirá.
A delegação também se faz presente na vida das mulheres, mas em
menor proporção. As mulheres são educadas para assumirem as ativida-
des da esfera familiar, o que não ocorre com os homens, dificultando a de-
legação dessas tarefas aos maridos/companheiros. Tarefas domésticas, ao
serem consideradas atividades “femininas”, podem reforçar a tendência
de que familiares contribuam mais com os homens do que das mulheres.

156
nanci stancki da luz

A contratação de outra mulher para delegar esse trabalho, por outro lado,
tem uma condição preliminar: poder aquisitivo das mulheres, o que não
ocorre com a maioria das brasileiras.
Assim, esse modelo não se aplica a todas as mulheres, pois, sempre
se pressupõe que haverá outra mulher para assumir as atividades do âm-
bito privado, e essa “outra” em geral não têm condições financeiras para
entrar nesse círculo de delegação. Se uma executiva pode contar com
uma babá ou empregada doméstica para cuidar de suas crianças, essa re-
alidade não será a mesma para a babá ou para a empregada doméstica
que também pode ter filho que necessita ser cuidado e educado. Um mis-
to de conciliação e delegação surge para essas “outras” que acabam con-
tando com o próprio trabalho mais o auxílio de uma rede familiar ou de
políticas públicas, destacando as de educação infantil para que tenham
possibilidade de desempenhar atividade profissional.
Vale lembrar que a eliminação da desigualdade de gênero requer,
além da distribuição do trabalho doméstico, também a ruptura na nítida
distinção entre público e doméstico, o que implica encontrar formas de
integrar a vida pública e a maternidade ou paternidade, em vez de segre-
gar a criação dos filhos a uma esfera separada (KYMLICKA, 2006).
A parceria entre homens e mulheres na esfera doméstica é um
caminho a ser defendido, uma vez que ambos já possuem parcerias no
espaço público. A atuação conjunta na esfera doméstica possibilita a efe-
tivação do direito e a realização do dever, tanto materno quanto paterno,
de educar os filhos, contribui para a eliminação da exploração das mulhe-
res em relação ao trabalho no âmbito familiar, possibilita que mulheres
possam se dedicar aos estudos ou a uma carreira profissional e, enfim,
contribui para concretização da igualdade entre homens e mulheres.

A presença das mulheres nos cursos superiores


A ampliação do número de mulheres na educação superior tem contri-
buído para o avanço da presença feminina em diversas profissões antes
consideradas como verdadeiros redutos masculinos. Vale destacar que a
participação das mulheres em atividades como as de engenharia ou ou-
tras profissões caracterizadas pela ciência e a tecnologia pressupõe em
grande medida na conclusão do respectivo curso superior, o que torna
relevante compreender o universo de ensino superior numa perspectiva
de gênero.

157
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

Os indicadores educacionais do Brasil revelam que a maioria dos


estudantes do ensino superior são mulheres. Considerando os dados refe-
rentes ao ano de 2005, verifica-se que a vantagem feminina – em termos
quantitativos – ocorre entre discentes ingressantes, matriculados e con-
cluintes de graduação presencial no país, conforme mostra tabela1:
TABELA 1: PARTICIPAÇÃO DE MULHERES E HOMENS NO ENSINO SUPERIOR PRESENCIAL
– BRASIL 2005

Feminino Masculino Total


Ingresso 55,0 45,0 100
Matrícula 55,9 44,1 100
Conclusão 62,2 37,8 100
Fonte: Ristoff, 2007, com base em dados do MEC⁄Inep⁄Deas

Considerando que, segundo Ristoff (2007), a participação femini-


na entre os concluintes de 1991 era 59,9% (141.678 mulheres) e que,
em 2005, ampliou-se para 62,2% (446.724 mulheres). Verificamos, desse
modo, uma elevação do número de mulheres no ensino superior, tanto
em termos relativos quanto absolutos, representando 305.046 mulheres
a mais dos que o número de mulheres que, há 15 anos, concluíam um
curso superior presencial no país.
Em 2005 (tabela 1) podemos verificar que ocorre uma ampliação
da participação feminina, quando comparados os números de ingresso,
matrícula e conclusão. Se entre os ingressantes, as mulheres represen-
tam 55%; entre os concluintes, esse percentual é de 62,2%. Embora os
dados de ingressantes e concluintes não se refiram ao mesmo universo
de pessoas, pode-se conjecturar que, além de constituir a maioria no
ensino superior, as mulheres também obtêm maior êxito nesse nível de
ensino, concluindo um curso em uma proporção maior que a masculi-
na.
Todavia, essa maior participação feminina não se reflete em todos
os cursos, pois, as mulheres se concentram em determinados cursos, em
geral da área de humanas, conforme mostra a tabela 2:

158
nanci stancki da luz

TABELA 2: MATRÍCULAS – BRASIL 2005

Curso Feminino (%) Masculino (%) Total (absoluto)


Administração 49,2 50,8 671.660
Direito 48,9 51,1 565.705
Pedagogia 91,3 8,7 372.159
Engenharia 20,3 79,7 266.163
Comunicação 56,6 43,4 197.068
Social
Letras 80 20 196.068
Ciências 50,7 49,3 171.022
Contábeis
Educação Física 43,1 56,9 159.484
Enfermagem 82,9 17,1 153.359
Ciência da 18,8 81,2 110.927
Computação
Total 55,9 44,1 4.453.156
Fonte: RISTOFF, 2007 – com base em dados do MEC⁄Inep⁄Deas, p. 10.

Podemos verificar uma distribuição de gênero desigual entre os


cursos. Há uma nítida divisão sexual nos processos de formação, des-
tacando-se a baixa participação feminina nos cursos de Engenharia e
Ciência da Computação e a elevada presença das mulheres nos cursos
de Pedagogia e Enfermagem. Dados que confirmam a permanência de
uma presença masculina maior na área tecnológica e uma concentração
feminina em áreas associadas ao cuidado (magistério e enfermagem),
socialmente vistas como áreas de atuação feminina.
Quando comparados esses números com os dados referentes
ao ano de 2000 (RISTOFF, 2007), verificamos que a participação das mu-
lheres na Engenharia tem se ampliado, pois, elas representavam 19,5%,
passando para 20,3%, em 2005.
Para os cursos de maior participação feminina, percebemos uma
ampliação masculina nos cursos de Pedagogia (os homens representa-
vam 7,5% em 2000 e passaram a representar 8,7% em 2005) e no curso
de Letras (17,5% em 2000 e 20% em 2005).

159
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

Quanto ao curso de Ciência da Computação, verificamos a conti-


nuidade de uma tendência de “masculinização”, uma vez que em 2000 a
participação masculina era de 73,5%, e desde lá esse percentual se am-
pliou ano a ano, chegando em 2005 a 81,2%.
Tais dados parecem indicar que a distribuição de gênero no sis-
tema educacional tem relação direta com a manutenção da tradicional
divisão sexual do trabalho, na qual o trabalho feminino está associado
ao cuidado, e o masculino, com a racionalidade.
A educação formal, especificamente a educação para o trabalho,
consiste em uma relevante fase da construção dessa divisão, mas não
é a única. A família é outro importante espaço, pois nela ocorre o início
do direcionamento da escolha profissional. Nos processos de socializa-
ção familiar, não é incomum que os brinquedos sejam diferentes para
meninos e meninas – jogos eletrônicos e carrinhos para eles, bonecas e
miniaturas de utensílios domésticos para elas – o que desde cedo con-
tribui para estimular e interferir sobre a escolha profissional de homens
e mulheres e naturalizar a tradicional divisão sexual do trabalho.

Mercado de trabalho e as mulheres


Transformações demográficas, mudanças nos padrões culturais e nos
valores relativos ao papel social da mulher têm alterado a identidade
feminina, voltando-a, cada vez mais, para o trabalho remunerado (BRUS-
CHINI, 2007). É inegável que a constante ampliação da escolaridade fe-
minina tem contribuído para o avanço das mulheres nos diversos cam-
pos profissionais, entretanto, esse fator não tem sido suficiente para a
consolidação de um mercado de trabalho não sexista.
A discriminação da mulher é um aspecto que ainda compõe o
mercado de trabalho. Todavia, conforme destaca Kymlicka (2006), essa
discriminação arbitrária pode ser desnecessária para a reprodução do
sexismo no âmbito do trabalho produtivo, pois, a dominação masculina
e a desigualdade de gênero cumprem o papel de dificultar o desenvolvi-
mento de muitas mulheres que nem mesmo terão condições de compe-
tir por um emprego, seja pela divisão sexual do trabalho, que a manteve
no âmbito privado, dependência econômica ou pelas dificuldades para
se qualificar.
Por inúmeros fatores (profissionais e extraprofissionais), a pre-
sença feminina no mundo do trabalho continua marcada por processos

160
nanci stancki da luz

que contribuem para a desvalorização de suas atividades – precarização


(terceirização, informalidade, tempo parcial, baixos salários, flexibilida-
de no uso do trabalho, etc.) e segregação de gênero, seja vertical (pouca
mobilidade na carreira e dificuldade para ascender aos postos hierarqui-
camente mais altos) ou horizontal (concentração do trabalho feminino
em determinados setores e funções).
A necessidade de conciliar vida profissional e familiar tem contri-
buído para encaminhar mulheres a trabalhos que possibilitem essa con-
ciliação. Tais atividades têm se revelado, todavia, com maior precarieda-
de: emprego informal, trabalho domiciliar, trabalho em tempo parcial,
etc. O processo de segregação ocupacional aliado a uma distribuição
desigual do trabalho no âmbito familiar têm contribuído para a desva-
lorização do trabalho feminino e para o desenvolvimento de doenças
ocupacionais entre as mulheres, entre outras conseqüências.
Dados da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério
do Trabalho e Emprego (RAIS) confirmam a significativa participação
das mulheres no mercado formal de trabalho coexistindo com a ma-
nutenção da desigualdade de gênero nesse âmbito. Observamos que,
em 2006, de um total de aproximadamente 50 milhões de empregos
formais, cerca de 40% eram ocupados por mulheres. Todavia, os dados
apontam que a taxa de participação feminina vai se reduzindo à medida
que as faixas salariais vão aumentando. Se entre os trabalhadores que
recebem até 0,5 salário mínimo, aproximadamente, 52% são mulheres,
entre os que recebem mais de 20 salários mínimos, aproximadamente,
27% deles são do sexo feminino.
Poderíamos supor que a ampliação da escolarização das mulheres
acabaria com tais desigualdades, no entanto, a escolarização enquanto
fator isolado não tem o poder de eliminar a discriminação da mulher
no mercado de trabalho, uma vez que isso exigiria alterações na divi-
são sexual do trabalho com grandes implicações para a vida doméstica.
Isso não retira a grande importância da escolarização para as mulheres,
afinal, ela consiste em condição sine qua non para a entrada em deter-
minadas profissões.
Reconhecemos que todas as profissões são socialmente relevan-
tes para os processos de produção de bens, cuidado e manutenção da
vida, muito embora algumas delas gozem de maior prestígio que ou-
tras, refletindo num maior status social e melhores salários. Entre essas

161
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

profissões destacamos as carreiras científicas e tecnológicas que, histori-


camente, tiveram uma composição com predominância masculina.
O número de carreiras profissionais da área científica e tecnoló-
gica é bastante amplo, não sendo possível discutir todas. Assim, para
fins de análise, selecionamos além do Magistério Superior, algumas que
tradicionalmente são consideradas dessa área: Matemática, Física, Quí-
mica, Estatística e Engenharia/Arquitetura.
A docência em instituições de ensino superior é uma profissão
que deve ser destacada, uma vez que esses profissionais formam os que
atuarão nas áreas científicas e tecnológicas, além deles próprios desen-
volverem atividades de pesquisa e desenvolvimento em ciência e tecno-
logia nas suas atividades laborais, que pressupõem a indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão.
Embora a carreira docente esteja bastante associada ao feminino,
observamos que, quando se trata de professores do ensino superior, são
os homens que compõe a maioria (tabela 3). Destacamos, no entanto,
que entre 2001 e 2005 ocorre um crescimento da participação das mu-
lheres no magistério superior, assim como uma elevação no número de
profissionais nessa área.
TABELA 3: DOCENTES DO ENSINO SUPERIOR: BRASIL – 2001 E 2005

Ano Feminino Masculino


2001 85.564 (41,9%) 118.542 (58,1%)
2005 129.640 (44,3%) 162.864 (55,7%)
Fonte: RISTOFF, 2007 – com base em dados do MEC⁄Inep⁄Deas, p. 10.

Para fins de análise, consideramos a Física, a Estatística e a Matemá-


tica associadas aos campos científicos; as engenharias, ao tecnológico. E,
dessa forma, verificamos que as mulheres têm uma maior participação no
campo científico do que no tecnológico (tabela 4). Destacamos o aumen-
to da participação feminina no número de empregos de matemáticos (em
2006, os empregos das mulheres passam a representar mais de 44% dos
empregos) e uma estagnação na ampliação da presença feminina na área
tecnológica– já bastante reduzida, particularmente, nas engenharias.
A tabela 4 revela ainda que, com exceção da Estatística e Arqui-
tetura, em todas as demais carreiras analisadas, o número de empregos

162
nanci stancki da luz

masculinos é superior aos femininos. A Engenharia Mecânica é a que


apresenta a menor participação feminina, mantendo uma tradição his-
tórica de campo de trabalho majoritariamente masculino. Aponta ainda
que, além da participação das mulheres na engenharia não ter sofrido
uma alteração significativa entre os anos de 2001 e 2006, manteve uma
distribuição de gênero bastante desigual: a presença masculina, tanto
em 2001 quanto em 2006, era superior a 80%, o que a configura como
um universo predominantemente masculino.
TABELA 4: DISTRIBUIÇÃO, POR GÊNERO, DO NÚMERO DE EMPREGOS EM CARREIRAS
CIENTÍFICAS E TECNOLÓGICAS: BRASIL 2001 E 2006 (%)

2001 2006
PROFISSÕES Feminino Masculino Feminino Masculino
Químicos 45 55 43 57
Físicos 38 62 34 66
Estatísticos 51 49 56 44
Matemáticos 37 63 44 56
Engenheiros civis 22 78 - -
e arquitetos
Arquitetos - - 55 45
Engenheiros civis - - 17 83
e afins
Engenheiros 10,2 89,8 9,7 90,3
eletricistas e
engenheiros
eletrônicos
Engenheiros 5,2 94,8 5,6 94,4
mecânicos
Fonte: elaboração própria, com base em dados da Rais 2001 e 2006.

Em 2006, ao desagregar os dados de Engenharia Civil e Arqui-


tetura que em 2001 foram tabulados em conjunto, verificamos que a
participação feminina nas duas áreas, que era 22% (em 2001), passou,
em 2006, para aproximadamente 17% em Engenharia Civil e 55% em
Arquitetura. Números que apontam para uma continuidade da carac-

163
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

terização da Engenharia Civil como campo de atuação profissional pre-


dominantemente masculino e a Arquitetura como campo de atuação já
com maioria numérica de mulheres.
Todavia, esses dados representam um crescimento na participa-
ção feminina nas engenharias, uma vez que, de acordo com Bruschini e
Lombardi (2006), na categoria dos engenheiros, a participação das mu-
lheres, que em 1993 era de 12%, atingiu 14% em 2004. Entre os arqui-
tetos, a fatia feminina é bem mais substantiva, pois, em 2004, mais da
metade da categoria (54%) era composta de mulheres, consolidando a
tendência de feminização da profissão, uma vez que as mulheres já ocu-
pavam cerca de 52% dos empregos dessa área já em 1993.
No que se refere aos salários, verificamos que, em 2006, as mulhe-
res, de forma geral nas profissões analisadas, permanecem com salários
inferiores aos masculinos, pois, em termos relativos, sempre um número
maior de mulheres do que de homens recebe salários na menor faixa
salarial – até 10 salários mínimos.
Verificamos ainda que a maior concentração dos profissionais
nessa faixa é justamente no Magistério. Dentre as profissões analisadas,
é a que, de forma geral, apresenta a maior concentração de seus profis-
sionais nas menores faixas salariais.
Mesmo entre os matemáticos e estatísticos – profissões que apre-
sentam uma distribuição mais eqüitativa de gênero, com participação
feminina de 44% e 56%, respectivamente, ou aproximadamente 49%
quando considerados em conjunto – a distribuição salarial permanece
desigual, com um número maior de homens nas faixas salariais superio-
res.
No que se refere à idade dos profissionais, a tabela 6 apresenta a dis-
tribuição desses profissionais em duas faixas etárias: “igual ou inferior a 39
anos” ou “igual ou superior a 40 anos”. Pode-se verificar que as mulheres
apresentam um perfil mais jovem que o apresentado pelos homens, pois,
elas se concentram na faixa de idade “igual ou inferior a 39 anos”. Apenas
quando consideramos as professoras do ensino superior é que temos a
maioria delas com idade acima dessa faixa etária. Já entre os homens, po-
demos observar que eles se apresentam, em grande medida, com idade
“igual ou superior a 40 anos”, com exceção dos matemáticos e estatísticos.

164
nanci stancki da luz

TABELA 5: PARTICIPAÇÃO DE HOMENS E MULHERES NAS FAIXAS SALARIAIS DE PROFIS-


SIONAIS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS: BRASIL – 2006 (%)

Salários até 10 sm Salários superiores a 10 sm


PROFISSÃO Mulheres Homens Mulheres Homens
Matemáticos, 60 44 40 56
estatísticos e afins
Físicos, químicos 54 36 46 64
e afins
Engenheiros, 51 35 49 65
arquitetos e afins
Professores do 85 71 15 29
ensino superior
Fonte: elaboração própria, com base em dados da Rais 2006.

TABELA 6: PARTICIPAÇÃO DE HOMENS E MULHERES NAS FAIXAS ETÁRIAS DE PROFIS-


SIONAIS CIENTÍFICOS E TECNOLÓGICOS: BRASIL 2006 (%)

Igual ou inferior a 39 anos Igual ou superior a 40 anos


PROFISSÃO Mulheres Homens Mulheres Homens
Matemáticos, 57 61 43 39
estatísticos e afins
Físicos, químicos 63 44 37 66
e afins
Engenheiros, 64 50 36 50
arquitetos e afins
Professores do 41 44 59 56
ensino superior
Fonte: elaboração própria, com base em dados da Rais 2006.

A maioria dos empregos femininos na engenharia ou arquitetura


(64%) tem mulheres com idade “igual ou inferior a 39 anos”. Já entre os
homens, metade deles está na faixa de idade superior a 40 anos e metade
na faixa abaixo dos 40 anos. Esses dados podem ser indício de que está
ocorrendo uma entrada maior de jovens engenheiras e arquitetas no mer-
cado de trabalho em relação ao que ocorria há algumas décadas.

165
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

Considerações finais
A análise da ciência e tecnologia numa perspectiva de gênero possibilita
perceber que, nesses campos, a eqüidade é um ideal a ser construído.
Consideramos que uma divisão sexual do trabalho mais equitati-
va entre homens e mulheres – seja nos processos de pesquisa, ensino,
produção, reprodução e distribuição dos benefícios da ciência e tecno-
logia – geraria impactos nos próprios campos de conhecimento e, prin-
cipalmente, nos sociais.
A importância da inclusão de gênero na discussão desses campos
deve levar em consideração alguns elementos. O primeiro são os pró-
prios conceitos de ciência e tecnologia que, socialmente construídos,
foram frutos de relações de poder que contribuíram para classificar o
que é científico e tecnológico, valorizando os conhecimentos e as ati-
vidades de forma desigual. É certo que inúmeros outros cursos e pro-
fissões poderiam ser considerados como científicos ou tecnológicos,
todavia, muitas atividades desenvolvidas pelas mulheres não foram as-
sim consideradas. Schiebinger (2001) nos lembra que, boa parte do que
não tem sido contado como ciência tratava do lado privado da vida e
era associado às mulheres. E que entre esses campos estão a economia
doméstica, que lida com a administração e o projeto da vida familiar, e
a enfermagem, que trabalha com o cuidado e o conforto diário de pa-
cientes. De forma geral, os conceitos de ciência e de tecnologia acabam
não abarcando as atividades femininas, o que influencia a participação
das mulheres nessa área.
Considerando, todavia, apenas o que é tradicionalmente tido
como do campo científico e tecnológico, vários estudos (LOMBARDI,
2005; VELHO e PROCHAZKA, 2003; CITELI, 2005; CARVALHO, 2003) apon-
tam a baixa presença da mulher no universo científico e tecnológico –
resultado corroborado nos dados deste trabalho, em particular no caso
das Engenharias.
Devemos considerar que a divisão sexual do trabalho, ao hierar-
quizar as profissões, atribuindo maior valor às atividades “masculinas”,
contribui para que algumas profissões ao serem feminizadas sofram
desvalorização. Poderíamos questionar, no entanto, se uma profissão
ao se feminizar se desvaloriza ou se a sua desvalorização acarreta a fe-
minização?

166
nanci stancki da luz

Embora a reflexão seja pertinente, parece-nos mais relevante,


independente da resposta, questionar “para quê” e “para quem” serve
essa desvalorização. A carreira de professor das séries iniciais – compos-
ta majoritariamente por mulheres – quando não recebe da sociedade
a devida valorização, salários compatíveis com a responsabilidade ine-
rente à profissão e reconhecimento social, afeta a quem? Certamente a
toda sociedade, que depende desse trabalho para o desenvolvimento
pessoal de cada um e para o desenvolvimento social do país.
Se construir prédios e máquinas é importante e deve ser valoriza-
do, por que o mesmo não pode ocorrer com a formação de pessoas?
Cabe questionar sempre a divisão sexual do trabalho, tanto no
que se refere à separação fixa e imutável de atividades masculinas e
femininas, quanto no que se refere a maior valorização das atividades
masculinas. É urgente repensar a divisão social do trabalho, construindo
relações justas e que valorizem todas as atividades, sejam elas desenvol-
vidas por homens ou por mulheres.
O estímulo para que mulheres ingressem em carreiras científicas
e tecnológicas é uma tarefa a ser cumprida, mas, juntamente com ela,
devemos rediscutir atribuições masculinas e femininas, as relações de
poder envolvidas na distribuição das atividades do âmbito público e pri-
vado e o processo de valorização de cada uma delas.
A vida profissional de homens e mulheres não pode ser incompa-
tível com a vida familiar e suas responsabilidades. Esses dois universos
precisam se aproximar, uma vez que fazem parte de um só mundo. Cabe
à sociedade pensar e implementar mecanismos que possibilitem a par-
ticipação das mulheres em carreiras científicas e tecnológicas, sem que
isso represente a exclusão de outras dimensões de suas vidas, pois, isso
não é exigido dos homens.
Compartilhar tarefas domésticas e o cuidado dos filhos, eliminar
a hierarquização das tarefas, valorizar e reconhecer a importância das
atividades femininas e implementar políticas públicas de apoio às ati-
vidades do âmbito doméstico são algumas formas de construir a igual-
dade e facilitar que as mulheres tenham autonomia para escolher suas
profissões.
Citeli (2005) apresenta uma discussão bastante pertinente e que
ajuda a compreender a importância das mulheres na ciência e tecno-
logia, pois, ao contrário do que se pode sugerir, a polêmica não reside

167
divisão sexual do trabalho e profissões científicas e tecnológicas no brasil

na injustiça contra as mulheres e, menos ainda, no direito que estas têm


à prática científica. A principal questão se concentra nos benefícios que a
incorporação das mulheres pode trazer à ciência e tecnologia, pois, a sub-
representação ameaça esses conhecimentos, sobretudo, pela perda de ta-
lentos e de genialidade da metade da população.
Com base nas reflexões apresentadas neste texto, selecionamos al-
guns questionamentos, buscando contribuir para que a ciência e tecnolo-
gia sejam espaços igualitários e sirvam para construir um mundo melhor:

• Como estimular as mulheres a ingressar na ciência e na tecnolo-


gia?
• Quais são os obstáculos para a entrada das mulheres nas carreiras
científicas e tecnológicas? O que fazer para eliminá-los?
• Uma melhor distribuição do trabalho no âmbito doméstico contri-
buiria para a entrada e permanência das mulheres em carreiras cien-
tíficas e tecnológicas?
• Como sensibilizar os homens e construir o poder feminino a fim de
que as negociações familiares gerem divisões de trabalho doméstico
mais justas?
• É possível compatibilizar uma carreira científica e tecnológica com
os interesses atuais das mulheres? E com o direito à maternidade?
O que deve mudar: a organização da ciência e da tecnologia ou os
processos de socialização das mulheres (ou os dois)?
• O desenvolvimento científico e tecnológico seria baseado em pa-
râmetros diferenciados caso a composição de gênero dos profissio-
nais dessas áreas fosse mais eqüitativa? A sociedade ganharia com
isso? O que mudaria?
• A maior presença feminina nos campos científicos e tecnológicos
altera os valores dessas áreas?

Muitas dessas questões já podem ter sido respondidas, outras estão


sendo e algumas exigem nosso empenho no sentido de encontrar respos-
tas que possam refletir em políticas públicas e em um sistema de ciência e
tecnologia contributivo para a construção de uma sociedade igualitária.

168
nanci stancki da luz

Referências

BRUSCHINI, Maria Cristina. Trabalho e gênero no Brasil nos últimos dez anos. Se-
minário Internacional Mercado de Trabalho e gênero: comparações Brasil-França.
São Paulo, 2007. Disponível em: <http://www.fcc.org.br/seminario/Artigos.pdf>.
Acesso em: 28 jun. 2008.
CITELI, Maria Teresa. Laboratório de preconceitos. In: Jornal da Ciência: JC e-mail
2698, 31 de jan. de 2005.
HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do traba-
lho. Cadernos de Pesquisa, v. 37, n. 132, p. 595-609, set./dez. 2007. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/cp/v37n132/a0537132.pdf. Acesso em 28 jun. 2008.
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea: uma introdução. São Paulo:
Martins Fontes, 2006.
LOMBARDI, Maria Rosa. Perseverança e resistência: a engenharia como profissão
feminina. 2005. Tese de doutorado. UNICAMP, Campinas, 2005.
SCHIEBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? São Paulo: EDUSC, 2001.
RISTOFF, Dilvo; et al (Orgs.). A mulher na educação superior brasileira: 1991-2005.
Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2007.
SOARES, Thereza Amélia. Mulheres em ciência e tecnologia: ascensão limitada.
Química Nova, v. 24, n. 2, p. 281-285, 2001. Disponível em http://www.scielo.br/scie-
lo.php?pid=S0100-40422001000200020&script=sciarttext& tlng=pt. Acesso em 09
jan.2008.
VELHO, Léa; PROCHAZKA, Maria Vivianna. No que o mundo da ciência difere dos
outros mundos? Disponível em: <http:// www.comciência.br>. Acesso em: 09 jan.
2008.

169
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

9
REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA CIÊNCIA, TECNOLOGIA E SOCIEDADE,
MEDIADAS PELA PUBLICIDADE IMPRESSA

Maristela Mitsuko Ono


Luciana Martha Silveira
Ronaldo de Oliveira Corrêa

Introdução
Este artigo tem por objetivo contribuir com os estudos e investigações a
respeito das articulações entre ciência, tecnologia e gênero .
Os procedimentos realizados e as escolhas teóricas tomam, como
perspectiva mais ampla, uma busca por categorias de análise e teorias
que organizam ou possibilitam um encadeamento de sentidos sobre
novas diversidades culturais [como, por exemplo, os entrecruzamentos
entre níveis educativos e geracionais, de classe e raça, políticos e estéti-
cos], em sociedades complexas.
As reflexões, aqui realizadas, abarcam discussões sobre represen-
tações do feminino e do masculino na ciência, tecnologia e sociedade,
via mensagens publicitárias veiculadas pelos meios de comunicação im-
pressos [revistas semanais, gibis, entre outros]. Como recorte temporal,
focou-se em revistas publicadas na segunda metade do século XX [es-
pecialmente, nas décadas de 1950 e 1960] e aquelas em circulação no
início do século XXI.
A escolha dessas mensagens e meios de comunicação encontra
justificativa nos argumentos de alguns autores das ciências sociais e hu-
manas a respeito dos cenários midiáticos que “traduzem” ou “simulam”
práticas sociais contemporâneas (APPADURAI, 2005; CANCLINI, 2005;

171
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

HALL, 1997). Exemplos disso são as revistas e jornais, a “televisão a cabo e


as redes de internet [que] falam línguas múltiplas dentro de nossa casa”
(CANCLINI, 2005, p. 17); além de apresentarem, igualmente múltiplas, re-
presentações do feminino e do masculino, de estilos de vida e de ativida-
des de consumo.
A metodologia adotada se insere no paradigma interpretativo. Esse
propõe a descrição e a interpretação de fenômenos do mundo social por
meio de um contexto em que fatos e valores estão intrinsecamente rela-
cionados, e no qual são conjugadas dimensões históricas e socioculturais;
além da visão de mundo das pessoas, em suas múltiplas manifestações de
gênero, que vivenciam experiências nesse contexto.
Ao encarar a metodologia no âmbito de uma semiologia dos fenô-
menos sociais, insere-se essa reflexão nos domínios das representações,
ou seja, das imagens e signos que, uma vez significados, expõem as for-
mas dos sujeitos se verem e mostrarem a si mesmos (e às demais pessoas)
suas sociedades e histórias.
Entende-se, pois, que as representações – especialmente as imagé-
ticas, partem de “cenários midiáticos” de sociedades complexas – sendo
constituídas no mundo contemporâneo, cada vez mais, como uma arena
em que regulamentações políticas e resistências a essas, formulam algu-
mas das explicações e modelos que codificam e decodificam o mundo,
as sociedades e os corpos (HALL, 1997). Dessa forma, busca-se expor os
conjuntos de significados que dão sentido às representações imagéticas
de femininos e masculinos articuladas às de ciência e tecnologia, no início
deste novo milênio.
Ao assim projetar essa análise, cabe esclarecer que este artigo cons-
titui uma entre várias investigações que tem por propósito subjacente ex-
plicitar as assimetrias e o obscurecimento de indivíduos-atores – conside-
rados subalternos, entre os quais, em especial, as mulheres – na produção
de campos como os da ciência e da tecnologia. Além de analisar e inter-
pretar essas estratégias de dominação, ou subordinação, pretende-se re-
forçar o argumento de que a invisibilidade desses sujeitos não significa a
respectiva ausência nesses campos de produção do mundo social .
Em síntese, os procedimentos metodológicos incluem a investi-
gação sobre representações do feminino e do masculino na ciência, tec-
nologia e sociedade, encontradas em anúncios de revistas publicadas no
decorrer do século XX e início do XXI, sua análise e interpretação.

172
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

Como modo de esclarecimento, esta investigação, por meio de


mensagens divulgadas em meios de comunicação impressos brasilei-
ros, enfoca um contexto sociohistórico em que uma grande diversida-
de cultural e expressiva influência de representações veiculadas nesses
meios – em especial as de gênero – refletem-se, ou refratam, no desen-
volvimento da sociedade.
Nos próximos itens, apresentam-se os conceitos que fundamen-
taram essa reflexão. O mais central, a categoria gênero aqui utilizada,
configura a articulação que liga e inter-relaciona os demais, como, por
exemplo, tecnologia, mídia, mensagem, entre outros. Em função disso,
inicia-se pela constituição de gênero como uma categoria de análise,
para, então, discorrer-se sobre os demais.

Conceitos de gênero e sociedade


Várias abordagens conceituais a respeito de teorias de gênero foram de-
senvolvidas ao longo da história das teorias sociais contemporâneas .
Entre elas, e em linhas gerais, as que abordam a questão com base no
campo da política feminista, por volta dos anos de 1960 e 1970; aque-
las que, no âmbito das universidades, problematizam ou politizam os
corpos e as práticas de mulheres e homens, por volta dos anos de 1980;
ou ainda, aquelas que ultrapassam as dicotomias biológicas e culturais
e abordam o corpo e a subjetividade como construções sociais e histó-
ricas, políticas e estéticas, mais difundidas no final da década de 1990 e
início da primeira década dos anos 2000.
É importante chamar a atenção para o fato de que essa forma de
organizar as teorias feministas e de gênero é artificial. Nas arenas políti-
cas e acadêmicas de produção, e de alguma forma de reprodução teóri-
ca e militante, essas movimentações conceituais foram justapostas e so-
brepostas, impostas e superadas. Contudo, essa forma de problematizar
a questão das assimetrias, mapeadas aqui, descreve um processo que
ainda não foi encerrado . Portanto, utiliza-se esse esquema para situar
leitores e leitoras no que poderia ser caracterizado como as margens
deste artigo.
Na primeira vertente de problematização das relações entre os
sujeitos das sociedades complexas, a categoria “mulher” seria utilizada
como uma forma teórico-política para “denunciar” e “combater” a in-
visibilidade desse sujeito histórico na produção e reprodução da vida

173
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

social, intelectual e política nessas sociedades. Isso construído na forma


de uma crítica a um mundo masculino, opressor e discriminador, onde
o papel histórico desse indivíduo “mulher” seria o de descrever, analisar
e superar o patriarcado, ou seja, uma sociedade em que a categoria “ho-
mem” era estruturante das práticas e formas sociais de produção.
Em outro sentido, encontram-se as perspectivas que consideram
as diferenças biológicas das mais diversas maneiras, desde a naturaliza-
ção da desigualdade em função do binômio sexo-gênero, até aquelas
que buscam desconstruir esses pressupostos biológicos, para, em seu
lugar, plasmar nos corpos humanos, vistos como materialidades de sis-
temas culturais, estruturas de reprodução “tirânica” de papéis sociais.
Essas, por sua vez, achatam pluralidades que constituem as subjetivida-
des contemporâneas.
Outras vertentes dos estudos de gênero – retomando discussões
sobre as inter-relações entre os indivíduos e as formas da sociedade
capitalista contemporânea –, pesquisadoras tanto do campo feminista
como dos externos a esse, propuseram as perspectivas relacionais e da
diferença. Cada uma a sua maneira, essas admitem a diferença biológica
dos corpos, mas problematizam, mais profundamente, as desigualda-
des estruturadas – tanto discursivamente, quanto politicamente – rela-
cionadas a essas diferenças.
Na radicalização das perspectivas da diferença, as teóricas feminis-
tas pós-estruturalistas, especialmente as estadunidenses, ultrapassam
o corpo biológico e problematizam a construção das práticas sociais,
entendidas como performances/atuações independentes do “suporte”
material: o corpo. Para essa vertente, a materialidade da subjetivida-
de pode ser [re]construída, por meio de intervenções tanto simbólicas
como materiais. Essas perspectivas, em algumas vertentes extremadas
em suas análises, têm ajudado na percepção de “novas” alteridades, ain-
da mais radicais que aquelas problematizadas por uma teoria social do
século XX, como as dos transgêneros, dos cross sex, e outros.
De modo geral, há uma convergência dessas perspectivas com
relação à percepção de diferenças biológicas entre os corpos de “ho-
mens” e “mulheres”. Tal visão se reflete em construções culturais e so-
ciais, inclusive, em noções de gênero de pessoas, de pensamentos, va-
lores, maneiras de se organizar ou relacionar e desenvolver atividades
na sociedade. Contudo, com base nessa percepção, as teorias sociais de

174
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

gênero buscam entender e interpretar essas diferenças como marcas


que nos tornam diversos, mas não desiguais.
Para tanto, as noções de “homem” e “mulher” são entendidas
como embasadas em juízos de valor que, por sua vez, são variáveis e
questionáveis, sob uma perspectiva reducionista e binária dos seres hu-
manos. Não obstante, segundo Joan Scott, “inclusive quando parecem
estar fixas, ainda assim, contém dentro delas definições alternativas, ne-
gadas ou suprimidas” (1995, p. 93).
Valendo-se de uma perspectiva interpretativa, entende-se que
os conceitos de feminilidade e masculinidade não são fixos, estáveis e
gerais. Assim como as identidades de gênero não são construídas com
base no sexo materializado e invariável, que se sobrepõe ao sujeito,
como se poderia prescrever por meio de uma lógica de discurso, lingua-
gem e poder reducionista e determinista e, freqüentemente, criticada
por Butler (2003). Pelo contrário, explicita-se que essas – as identidades
de gênero – emergem de construções culturais e abarcam significados
múltiplos, complexos, dinâmicos e permeáveis (ONO, 2006). Inclusive,
a noção de sexo materializado e invariável, cada vez mais, encontra-se
em xeque; visto que as atuais tecnologias biomédicas de intervenção
no corpo humano “prometem” transformar até essa fixidez da carne em
transitória.
Esses deslocamentos do corpo e da subjetividade contemporâne-
as propiciam por em questão a centralidade do biológico na definição
das práticas sociais vinculadas à feminilidade e masculinidade, expon-
do esse lugar do biológico como mais uma arena de disputas políticas,
tecnológicas e, por fim, ideológicas, a respeito do ser e estar no mundo
na condição de protagonista. Por essa perspectiva, percebe-se que os
indivíduos “generificados”, cada vez mais, reclamam para si (enquanto
indivíduos e/ou grupos organizados) o direito de definirem suas identi-
dades e as formas de representação de si mesmos.
Assim, o que se busca evidenciar neste artigo é que as identidades
– entre elas as de gênero – são constituídas cultural, política, tecnológica
e esteticamente. E, nessa movimentação, percebe-se que as produções
de subjetividade são, em parte, discursivas e dialógicas, no sentido am-
plo desses termos, e que as representações concebidas como incorpó-
reas regulam, de alguma forma, as materialidades das práticas humanas,
as sexualidades, os corpos e as políticas de gênero contemporâneas.

175
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

Meios de comunicação e sociedade


Para que se discuta sobre gênero no contexto de suas representações em
distintos meios de comunicação – como a televisão, o cinema, a imprensa
escrita, a música, a internet, o teatro, a publicidade, entre outros –, objeti-
vando um instrumento de análise que evidencie uma perspectiva crítica
relacionada a estereótipos preconceituosos e discriminatórios incorpora-
dos no processo de captura e edição de imagens, faz-se necessário, em
primeiro lugar, compreender “o que é mídia?”. Desse modo, é fundamental
determinar qual é nosso conceito de mídia, aplicado à análise crítica da
captura e a configuração das imagens nos meios de comunicação, e de
que maneira ela se insere no panorama da interação social.
Do ponto de vista etimológico, o termo “media”, de origem latina,
significa literalmente “aquele que está no meio”. Com base nesse primei-
ro contato com o amplo significado de tal conceito, é possível discuti-lo
com base em uma abordagem interpretativa “Media” é o que se encontra
“no meio”. Valendo-se dessa constatação, apresenta-se a seguinte ques-
tão: “no meio de quê?” Como resposta, poderíamos afirmar: “no meio da
comunicação”. Consideramos, então, que a mídia se encontra “entre” um
determinado processo de comunicação. Contudo, a que comunicação
nos referimos?
Tradicionalmente, considera-se a comunicação como uma mensa-
gem que se transmite de um emissor a um receptor, como temos repre-
sentado na Figura 1.
O emissor se define, basicamente, como alguém que comunica
algo a outra pessoa. Por outro lado, o receptor seria aquele com quem
o emissor se comunicaria, e a mensagem, por sua vez, como tudo o que
seria transmitido do emissor para o receptor. Simples assim, com todos os
papéis definidos, estanques e sem interferências recíprocas. Nesse mode-
lo, a mídia se encontraria “entre” a comunicação, inserindo-se exatamente
onde estaria a mensagem.
Porém, temos logo restrições em relação a esse modelo proposto
para que a comunicação se efetive. Esse emissor não pode ser o único a
emitir uma mensagem e, ao mesmo tempo, não pode perder a responsa-
bilidade por ela. Trata-se de um sujeito inserido dentro de uma cultura, de
onde advém a construção de suas subjetividades, seu modo perceptivo e
de interpretação do mundo.

176
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

FIGURA 1 – Representação tradicional da comunicação.

Além do que, ainda seguindo a crítica ao modelo estanque propos-


to aqui primeiramente para a comunicação, o receptor não pode ser o
único a receber, aliás, passivamente, essa informação, como se ela fosse
representada numa direção única, numa essência e verdade únicas tam-
bém. O receptor também está inserido numa cultura que lhe dirige a in-
terpretação e a recepção de subjetividades, assim como está longe de ser
passivo e de não realizar interferências múltiplas e profundas no sentido
para o qual está direcionada a informação.
E o que se dirá da mensagem? Essa mensagem não será a mesma
saindo e chegando a seu destino. Não será a mesma na saída e na chega-
da, mas, sim, sofrerá inúmeras interferências, culturais também, em sua
constituição inicial.
Logo, emerge disso uma gama de questionamentos, tais como:
como se deve compreender esse lugar onde se encontra a mídia? Há
como compreendê-la, como uma “interferência” na comunicação? Neste
caso, qual seria esse tipo de interferência? Seria essa interferência comple-
tamente previsível?
Segundo Machado (2007), a mídia não é “transparente”. Ela, na
verdade, interfere no caminho da mensagem. A comunicação não ocorre
num único sentido, como está representado na Figura 1, e, muito menos
há somente uma maneira de interpretar e transmitir a mensagem. Ao con-
trário, sua representação seria muito mais próxima daquela da Figura 2.
A mídia interfere na mensagem, em geral, direcionando (editando)
o que o receptor vai interpretar, gerando outras possibilidades de inter-
pretação, não obstante, guiando-as.

177
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

A mensagem tem sempre uma expressão polifônica, confirman-


do o conceito de Mikhail Bakhtin (FARACO, 2003). Ainda assim, é pos-
sível realizar uma análise crítica da “edição” da mídia no processo de
comunicação.

FIGURA 2 – Representação da interferência da mídia no caminho da comunicação.

Quando essa mídia se encontra “entre” a comunicação massiva,


ela pode ser considerada como sinônimo de “meio de comunicação”, tais
como: o sonoro (rádio), o escrito (periódicos, revistas), o audiovisual (televi-
são, cinema), o multimídia (diversos meios visuais simultâneos), o hipermí-
dia (internet).
No contexto da comunicação massiva, a mídia, além de interferir na
mensagem, reflete e refrata a cultura e o espaço social (MACHADO, 2007;
FLUSER, 2005; CANCLINI, 2003). A televisão, por exemplo, reflete, muitas ve-
zes, atitudes culturais da sociedade da qual ela é produto, e, por outro lado,
refrata ou gera novas necessidades, reforçando conceitos e preconceitos.
Pode-se afirmar, então, que a interferência da mídia na comunicação
é uma construção cultural, tanto no âmbito direto, físico, como no simbó-
lico, semiótico. Exemplos disso estão materializados nos movimentos da
câmera no cinema, quando nos imaginamos na posição mais baixa de uma
criança com medo ou admiração em relação a seus pais. Os olhos do per-
sonagem criança se tornam os olhos do espectador, por meio dos recortes
da câmera.

178
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

O foco, a luz e o recorte também são construções culturais ma-


terializadas no cinema. O foco vai estar sempre no movimento dos
personagens, na direção deste movimento, ou até no foco “físico” da
própria câmera. A luz, desde Caravaggio, é um personagem à parte na
imagem, direcionando a atenção do espectador, ao passo que o recor-
te é o enquadramento na edição do mundo visual, feito para o espec-
tador interpretar a história, de acordo com determinados códigos.
A cor é outro elemento à parte nessa construção cultural simbó-
lica da comunicação. Cada uma tem uma paleta, advinda, por sua vez,
de um coletivo, construído também de forte maneira no âmbito cultu-
ral de cada mídia. A televisão tem uma paleta restrita em contrastes,
não muito significativos, pois, a transmissão não suporta uma defini-
ção de fotografia para as cores. Já o cinema pode possuir uma paleta
mais ampla, mais cuidadosa e poética quanto à escolha das cores.
Na mídia escrita, tem-se também a construção cultural da comu-
nicação, tanto na veiculação de suas imagens quanto na articulação
dessas com o texto.
Na continuação, apresentam-se alguns exemplos de represen-
tação do feminino e do masculino na ciência, tecnologia, sociedade,
mídia escrita e nas artes plásticas.
Representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia
e sociedade, via meios de comunicação no século XX e início do XXI
A comunicação tem sido um dos fatores determinantes no de-
senvolvimento da sociedade. Trata-se de uma “atividade de represen-
tação” que transmite algum significado (COELHO NETO, 1980, p. 209).
A comunicação traz em si representações e interpretações va-
riáveis, que dependem tanto de fatores biológicos (visuais, auditivos,
táteis, etc.), e permitem a percepção das mensagens, como contextos
culturais, sociais e ambientais, entre outros.
As estratégias de comunicação massiva se proliferaram inten-
samente por meio de uma panóplia de meios audiovisuais, gráficos e
outros, que exercem forte influência sobre os indivíduos e a socieda-
de, gerando implicações tanto desejáveis como indesejáveis, depen-
dendo dos conteúdos da mensagem, da interpretação e conduta das
pessoas.
Habitualmente, a multidimensionalidade, permeabilidade e va-
riabilidade de gênero se distinguem das representações do “feminino”

179
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

e “masculino”, como se pode observar em uma ampla gama de meios


de comunicação que se desenvolveram ao longo do século XX e no
início do XXI.
As influências de tais representações se manifestam, além
de em outras instâncias da sociedade, na ciência e tecnologia, como
ilustram, por exemplo, anúncios de eletrodomésticos divulgados em
revistas brasileiras desse período, que possibilitam identificar mudan-
ças e reproduções de representações do “feminino” e “masculino” no
contexto da vida pública e privada.
Observa-se um evidente determinismo e pré-estabelecimento
de papéis sociais atribuídos ao “homem” e à “mulher” até a segunda
metade do século XX, com o “homem” representando o “chefe” e pro-
vedor da família, enquanto à mulher, cabia o papel de “dona de casa”,
responsável pelo trabalho doméstico (cozinhar, limpar, lavar e passar
roupas, etc.), como ilustra o anúncio da Figura 3, do ano de 1961. O
texto afirma: “no uso cotidiano, as qualidades da camionete DKW-VE-
MAG destacam-se ainda mais. Papai começa bem seu dia de trabalho.
Mamãe leva às crianças à escola e ainda vai às compras com toda a
facilidade. [...] É uma cena feliz que sempre se repete.” (REVISTA MAN-
CHETE. São Paulo: Editora Bloch, p. 20 mar. 1961.)
Na década de 1950, a empresa Eletro-Indústria Walita S.A. em-
pregava estratégias para a promoção do consumo de seus eletrodo-
mésticos, com enfoque nas “mulheres”. Imagens e textos demonstram
isso de maneira explícita (Figuras 4 e 5).
A foto da esquerda, da Figura 4, sugere uma família patriarcal
com o “homem” (o pai) sentado à mesa, assim como os filhos que
olham, enquanto a “mulher” (a mãe) permanece em pé, servindo. A
foto à direita da Figura 4 mostra a associação da idéia de um sonho de
consumo – a batedeira de bolo – da “noiva”.
A Figura 5 ilustra a associação da “mulher” ao papel de respon-
sável pelos afazeres domésticos, e a tecnologia abarcada pelos eletro-
domésticos como um meio facilitador na execução de suas tarefas do
cotidiano.
A Figura 5 ilustra a associação da “mulher” ao papel de respon-
sável pelos afazeres domésticos, e a tecnologia abarcada pelos eletro-
domésticos como um meio facilitador na execução de suas tarefas do
cotidiano.

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maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

FIGURA 3 – Anúncio do automóvel Vemaguet DKV-VEMAG (1961).


Fonte: REVISTA MANCHETE. São Paulo: Editora Bloch, p. 20-21, mar. 1961.

FIGURA 4 – Capas de revistas Família Walita (década de 1950).


Fonte: REVISTA FAMÍLIA WALITA. São Paulo, ano 1, n. 2, jan. 1956; REVISTA FAMÍLIA
WALITA. São Paulo, ano 3, n. 15, jul./ago./set. 1958.

181
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

Várias estratégias de comunicação empregadas pela Walita pro-


moveram o enfoque dos eletrodomésticos centrados nas “mulheres”. A
empresa conduziu, por exemplo, cursos de culinária da “Escolinha Wali-
ta”, nos quais ensinava a donas de casa como utilizar seus produtos, ao
mesmo tempo em que promovia sua venda (Figura 6).

FIGURA 5 – Anúncio de um aspirador de pó Walita (1958).


Fonte: REVISTA FAMÍLIA WALITA. São Paulo, ano 3, n. 14, abr./maio/jun. 1958. (con-
tracapa)
Nota: o texto afirma: “leve como uma vassoura!”

Um texto da Revista Família Walita, de 1955, afirma que a “Es-


colinha Walita” se desenvolvia “em um ambiente de franca amizade,
às donas de casa ‘se apresentam’ os produtos Walita e elas aprendem
a utilizá-los para fazer mais fáceis e perfeitas suas tarefas no lar” (RE-
VISTA FAMÍLIA WALITA. São Paulo, ano 1, p. 10, nov. 1955).
Exemplos de anúncios mais recentes, da década de 1990 e iní-
cio do século XXI, demonstram que as estratégias de comunicação
dos eletrodomésticos, em geral, seguem com enfoque nas “mulhe-
res”, reproduzindo padrões dicotômicos e deterministas de gênero
na sociedade (Figuras 7 e 8).
O texto de um anúncio de fogões Mueller (Figura 7), de 2002,
evidencia que o enfoque dos eletrodomésticos se centra nas “mulhe-
res”, ainda que a atitude do “homem” já não seja tão passiva: “Apre-
sentados na versão quatro e seis bocas, têm exclusiva tecnologia de
queima de alto rendimento que se traduz em economia para a dona

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maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

FIGURA 6 – Curso da “Escolinha Walita”


Fonte: REVISTA FAMÍLIA WALITA. São Paulo, ano 1, p. 10, nov. 1955.

de casa e boas vendas ao comerciante” (REVISTA ELETROLAR NEWS.


São Paulo: Editora C&C, ano 3, n. 14, p. 19 maio/jun., 2002.).
Outro anúncio (Figura 8), de uma lavadora Eletrolux, de 2002,
reproduz o padrão dicotômico “homem” / “mulher” e expressa o ca-
ráter ambíguo do padrão de “feminilidade” na atualidade, em sua
interação com a ciência, tecnologia e sociedade. Por um lado, a “mu-
lher” busca a independência do homem e novos padrões de compor-
tamento na sociedade, distintos do modelo tradicional, que a associa
– em comparação ao “homem” – à falta de vigor físico e de conhe-
cimentos científicos e tecnológicos. Por outro lado, ela busca prote-
ção física e emocional de um determinado padrão de “homem”. O
texto principal do anúncio afirma: “Precisamente como as mulheres
gostam: forte quando elas necessitam, gentil quando elas querem”
(REVISTA ELETROLAR NEWS. São Paulo: Editora C&C, ano 3, n. 14, p.
19, mai./jun., 2002.).
No começo do século XXI, prossegue a discussão a respeito do
papel social das “mulheres” no desenvolvimento da ciência, tecnolo-
gia e sociedade, inclusive em meios de comunicação de massa.
No ano de 2006, a Revista Veja publicou um número especial
sobre a “mulher”, com um subtítulo destacado na capa: “o que restou
do feminismo” (Figura 9). Na capa da revista, está impressa a imagem

183
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

FIGURA 7 – Anúncio de fogões Mueller (2002).


Fonte: REVISTA ELETROLAR NEWS. São Paulo: Editora C&C, ano 3, n. 14, , p. 19,
maio/jun., 2002.

de uma mulher vestida de executiva, amamentando seu bebê, repre-


sentando um dos dilemas e dificuldades enfrentados pelas mulheres
que trabalham fora e têm filhos (REVISTA VEJA, ano 39, n. 65, jun.
2006.).
As questões discutidas nessa revista incluem: “o poder é mas-
culino”; “com diploma e sem marido”; “o feminismo na crise dos 40”
(com destaque para a histórica afirmação da escritora norte-ameri-
cana Betty Friedan: “Nenhuma mulher tem um orgasmo ao encerar
o chão da cozinha” (REVISTA VEJA, ano 39, n. 65, p. 50, jun. 2006.); “a
medicina revela a mulher de verdade” (com uma abordagem sobre
as diferenças biológicas entre o “homem” e a “mulher”); além de ou-
tras matérias que destacam a manutenção do conceito dicotômico e
reducionista de gênero na ciência, tecnologia e sociedade, ainda que
o movimento feminista tenha conseguido importantes avanços (po-

184
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

FIGURA 8 - Anúncio de uma lavadora de roupas Eletrolux (2002).


Fonte: REVISTA ELETROLAR NEWS. São Paulo: Editora C&C, ano 3, n. 14, p. 2-3,
maio/jun. 2002

líticos) ao longo da história em termos de equidade entre “homens”


e “mulheres” no desenvolvimento da sociedade.
Os meios de comunicação também têm influenciado a partici-
pação de gênero na ciência e tecnologia, à medida que contribuem para
a promoção do consumo de determinados artefatos e na orientação
profissional de crianças e jovens adultos.
Há, por exemplo, anúncios de brinquedos para crianças orien-
tados para “meninos” e “meninas”, que reproduzem determinados pa-
drões [estereótipos] de gênero. Os brinquedos eletrônicos, nesse senti-
do, têm sido geralmente dirigidos aos garotos, ao passo que as bonecas,
às meninas. Isso pode influenciar a aprendizagem, atividades, preferên-
cias e opções, inclusive profissionais (Figura 10).
Histórias em quadrinhos para crianças, em sua maioria, promo-
vem associações dos meninos à tecnologia avançada, a personagens
cientistas, que lidam com robôs e aparatos eletrônicos, por outro lado,
nesses casos, as meninas, geralmente, assumem papéis mais passivos e
frágeis (Figura 11).

185
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

FIGURA 9 – Capa do número especial “mulher” da Revista Veja (2006).


Fonte: REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 39, n. 65, jun. 2006. (capa)

FIGURA 10 – Reportagem sobre os presentes de Natal para crianças (Brasil, 2006).


Fonte: REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 39, n. 47, p. 108-109, 29 nov.
2006.

186
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

FIGURA 11 – Histórias em quadrinhos do personagem “Dexter”.


Fonte: REVISTA RECREIO. São Paulo: Editora Abril, ano 4, n. 186, p. 27 e 34 2, out.
2003.

No contexto adulto, também se observam distinções na comuni-


cação e consumo de produtos, com relação ao gênero, como ilustra a
foto de uma reportagem a respeito dos desejos de consumo da classe
social média brasileira na década de 1980 e início do século XXI (Figura
12).
Na Figura 12, os “homens” assumem uma postura mais ativa,
apoiados em carros, utilizando notebooks, ao passo que as “mulheres”
se mantêm em posturas mais passivas, sentadas, portando telefones. Os
garotos, por sua vez, brincam com jogos eletrônicos, e as garotas, com
bonecas.
Reportagens sobre profissões como as de engenharia mecânica,
eletrônica e a de computação, por exemplo, apresentam imagens de
alguns ambientes de trabalho com presença exclusiva de “homens” –
como se pode observar nas Figuras 13, 14 e 15, que ilustram o controle
de tráfego aéreo no Brasil, os inventores do sistema “Flex” de combus-
tão de motores para veículos e um centro de processamento de dados.

Resultados
No decorrer da história das diversas sociedades humanas, tanto ociden-
tais quanto orientais, as identidades e representações de gênero têm
assumido, de diferentes maneiras e via distintas estratégias, um papel
importante na dinâmica das mudanças sociais, científicas e tecnológi-
cas. Uma delas, aquela que esteve presente ao longo deste artigo, está

187
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

FIGURA 12 – Reportagem sobre objetos de desejo da classe média brasileira na


década de 1980 e início do século XXI.
Fonte: REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 39, n. 50, 20 dez. 2006, p. 66

relacionada à visibilidade dos lugares sociais de gênero, articulados com a


produção de tecnologia e ciência.
Essas pontes foram construídas valendo-se da observação da ma-
terialidade das representações veiculadas em mídias impressas brasileiras
a respeito do consumo de artefatos tecnológicos, em dois momentos dis-
tintos do século XX. Por meio desses suportes – os anúncios publicitários
– pode-se perceber que as representações de feminilidades e masculini-
dades continuam a ser construídas de acordo com um modelo sexo/gê-
nero. Este modelo é influenciado, de forma mais ampla, pelas atividades
de consumo de estéticas, corpos e subjetividades.
Os vários exemplos apresentados neste artigo expõem as contradi-
ções e tensões que marcam a influência das representações de gênero na

188
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

FIGURA 13 – Reportagem sobre o controle de tráfego aéreo no Brasil.


Fonte: REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 39, n. 47, p. 60-61, 29 nov. 2006.

FIGURA 14 – Reportagem sobre os inventores do sistema “Flex” de combustão de


motores para veículos.
Fonte: REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 39, n. 50, p. 170, 20 dez. 2006.

189
as representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e sociedade, via meios de comunicação

FIGURA 15 – Centro de processamento de dados no Brasil.


Fonte: REVISTA VEJA. São Paulo: Editora Abril, ano 40, n. 12, p. 85, 28 de mar. 2007.

ciência e tecnologia, mediados pela comunicação, pelo consumo e uso de


artefatos industrializados.
É evidente que as estratégias de comunicação têm incorporado
inúmeras mudanças ocorridas na sociedade, a emergência de novos valo-
res, representações, relações e práticas sociais.
Contudo, constata-se, pelos resultados das investigações, que as
representações do feminino e masculino na ciência, tecnologia e socie-
dade, por meio dos meios de comunicação, seguem reproduzindo visões
binárias e dicotômicas da questão de gênero.
Por outro lado, percebe-se que o espectador contemporâneo, seja
homem ou mulher, toma para si a interpretação e orientação da mensa-
gem, ou seja, não é passivo diante de um tipo de objetividade construída
da mídia. Nesse contexto, é necessário pensar em uma mídia participativa
que, uma vez pressionada, ofereça aos seus espectadores e espectadoras
a condição de sujeitos que atribuam significados às mensagens.
Tal percepção nos permite reforçar a tese de que a tomada de voz
por parte dos grupos subalternos, dentre estes o das mulheres, explicita

190
maristela mitsuko ono, luciana martha silveira e ronaldo de oliveira corrêa

a superação de sistemas tradicionais como o patriarcado. Ou, pelo me-


nos, ajuda-nos a entender que o mundo urbano recente é mais diverso
do que nos fazem pensar as mídias de massa.
Com base nesses resultados, acredita-se ser possível [re]pensar a
sociedade urbana contemporânea valendo-se de uma perspectiva mais
equilibrada e cooperativa, no âmbito da ciência, tecnologia e gênero.
Uma sociedade que promova o desenvolvimento de valores e práticas
baseados no respeito à diversidade cultural e de identidade.

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192
nanci stancki da luz

10
DESAFIOS E AVANÇOS NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE GÊNERO

Nanci Stancki da Luz

Introdução
As políticas públicas podem ser analisadas e conceituadas a partir de
diferentes perspectivas. Neste artigo, busca-se um conceito que esteja
em consonância com a construção da justiça social. Destaca-se, nesta
perspectiva, as políticas públicas de gênero que trazem à tona o debate
sobre as desigualdades entre homens e mulheres e a necessidade de
ações governamentais que contribuam para a sua superação. Para que
isso seja possível, é imprescindível a participação da sociedade na ela-
boração, no acompanhamento e na avaliação de tais políticas.
A construção dessas políticas em grande medida são impulsiona-
das pelos movimentos sociais, particularmente o das mulheres, buscan-
do um redirecionamento das ações do Estado e de suas prioridades no
sentido de concretizar os direitos fundamentais das mulheres, superar
as desigualdades de gênero e construir relações de poder que respei-
tem as diferenças e tenham como princípio a igualdade e a justiça. Tal
enfoque tem representado avanços na conquista da cidadania e da de-
mocracia do país, pois a democracia pressupõe igualdade de acesso a
direitos e a participação efetiva da população que é composta tanto por
homens quanto por mulheres.
Este artigo traz parte das reflexões sobre políticas públicas que
ocorreram durante o módulo 4 do curso “Construindo a igualdade na
escola: repensando conceitos e preconceitos de gênero”. Destaca-se a

193
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

relevância das políticas públicas na construção de um mundo justo e


igualitário, particularmente as de gênero, pois estas contribuem para
desconstruir estereótipos de gênero, preconceitos e discriminações ne-
gativas, possibilitando assim que as mulheres tenham acesso aos direi-
tos fundamentais, e contribuindo para a construção de uma sociedade
com justiça social.

Políticas públicas: delimitando conceitos


A política pública pode ser analisada a partir de várias acepções. Pode ser
vista como uma resposta às necessidades contemporâneas decorrentes
da concentração humana e do processo de industrialização, consistindo
em “instrumentos estatais de intervenção na economia e na vida priva-
da, visando assegurar as condições necessárias para a consecussão de
seus objetivos, o que demanda uma combinação de vontade política e
conhecimento técnico”(APPIO, 2005, p. 144).
Para Farah (2004) política pública é um curso de ação do Estado,
orientado por determinados objetivos, refletindo ou traduzindo um
jogo de interesses. Essas ações podem se expressar de inúmeras formas,
dentre as quais se destacam os planos e os programas de Estado e de
governo, as resoluções e as legislações.
A discussão das políticas públicas, segundo Frey (2000), deve le-
var em consideração três outros conceitos:

• polity (instituições políticas): refere-se à ordem do sistema políti-


co, delineada pelo sistema jurídico, e à estrutura institucional do
sistema político-administrativo;
• politics (processos políticos): refere-se ao processo político, fre-
qüentemente de caráter conflituoso, no que diz respeito à impo-
sição de objetivos, aos conteúdos e às decisões de distribuição;
• policy (conteúdos da política): trata dos conteúdos concretos,
isto é, da configuração dos programas políticos, aos problemas
técnicos e ao conteúdo material das decisões políticas.

Para Schmidt (2007), a análise das políticas públicas não pode ser
feita de forma fragmentada ou isolada de uma análise do Estado e da
sociedade, pois as políticas públicas (policies) estão intimamente asso-

194
nanci stancki da luz

ciadas aos processos políticos (politics) e às instituições políticas (polity).


Assim, sem compreender o sistema político e a dinâmica conjuntural,
fica mais difícil de apreender os limites e potencialidades de uma polí-
tica.
Neste artigo adotaremos, conforme Bucci (2002), política pública
como conjunto de ações ou normas de iniciativa governamental, visan-
do à concretização de direitos. Por tal perspectiva, assume-se que o ob-
jetivo de uma política pública deve ser a busca da justiça social com a
necessária eliminação das desigualdades sociais.
Nessa perspectiva consideramos que, conforme Höfling (2001), as
políticas públicas devem incluir as políticas sociais referentes a ações
que determinam o padrão de proteção social, implementadas pelo Es-
tado, voltadas para a redistribuição dos benefícios sociais e que visem
reduzir desigualdades estruturais produzidas pelo desenvolvimento so-
cioeconômico.
Vale destacar que sobre as políticas públicas incidem inúmeros
interesses, muitas vezes antagônicos. Assim, embora as políticas públi-
cas devam se voltar à concretização de direitos fundamentais, isso nem
sempre se efetiva na prática, pois depende da luta e organização daque-
les que são excluídos dos benefícios sociais, no sentido de exigir seus
direitos, formular propostas, fiscalizar a execução de planos e projetos
governamentais, entre outras ações.
O Estado é o responsável pela implementação e manutenção das
políticas públicas, no entanto, conforme Höfling (2001), o processo de
decisão e implementação das políticas públicas deve necessariamente
envolver outros sujeitos sociais além dos governantes. Assim, na exe-
cução e elaboração das políticas se fazem presentes relações de poder
– de gênero, de classe e étnico-racial. Para que as políticas atendam aos
interesses gerais, contemplem os diversos grupos sociais e não apenas
uma pequena parcela da população – que muitas vezes detém poder
para “dominar” as políticas, direcionando-as para interesses elitistas e
excludentes – faz-se necessário a organização e a participação popular,
exigindo que seus interesses sejam contemplados.
Nesse sentido, governos (municipais, estaduais e federal) devem
implementar mecanismos que facilitem a participação efetiva dos di-
versos grupos sociais nas diversas fases da política pública – definição
de prioridades, elaboração, fiscalização e avaliação das políticas – con-

195
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

tribuindo para que a aplicação dos recursos públicos seja revertida em


benefícios sociais.
Não obstante a todos os mecanismos à disposição do Estado para
a implementação de uma política, a efetividade de muitas delas depen-
de da participação social. Várias ações governamentais podem não
apresentar resultados positivos se não forem assumidas pela sociedade.
Políticas para prevenção de gravidez na adolescência quando imple-
mentadas nas instituições escolares, podem ser mais efetivas se houver
adesão e participação dos profissionais da educação.
Nesse sentido, o êxito de uma política pública exige participação
social. Essa participação envolve os processos de elaboração, possibi-
litando que as reais necessidades da população sejam contempladas,
a fiscalização sobre a implementação, que tem por atribuição verificar
se seus objetivos estão sendo atingidos e se os recursos públicos estão
sendo utilizados de forma adequada e, não menos importante, o pro-
cesso de avaliação dos seus resultados, que verifica como elas contribu-
íram para a efetivação dos direitos da população e para a redução das
desigualdades sociais. A avaliação contribui ainda para evitar que novas
políticas possam conter os mesmos equívocos detectados em políticas
já implementadas, melhorando a sua eficácia e melhor contribuindo
para a justiça social.
Democratizar os processos políticos e direcionar as políticas pú-
blicas no sentido de efetivar os direitos fundamentais sociais são desa-
fios a serem ainda enfrentados, particularmente no Brasil, que, embora
seja um Estado Democrático de Direito, ainda precisa avançar muito
para efetivar os direitos da sua população e, com isso, consolidar a de-
mocracia.
Para Bucci (2002), o estudo das políticas públicas, em uma pers-
pectiva democrática, preocupa-se com a participação popular na for-
mação da vontade da administração pública e dos governos e permite
construir mecanismos jurídico-institucionais de controle social, jurídico
e político dos programas de ação governamentais.
Se as políticas públicas devem buscar a concretização de direitos
e reduzir as desigualdades sociais, elas devem necessariamente atuar
sobre as desigualdades de gênero, contribuindo para a construção de
relações igualitárias entre homens e mulheres.

196
nanci stancki da luz

Políticas públicas de gênero


Draibe (2007) destaca o esgotamento do neoliberalismo marcado pelo
baixo crescimento do emprego, pelo aumento das desigualdades, pela
incapacidade de reduzir a pobreza e pela imposição de um modelo
único de reformas de programas sociais (pró-mercado). Tais políticas
privilegiaram o acúmulo do capital, gerando exploração, pobreza,
concentração de renda, deterioração do meio ambiente e contribuin-
do para a ampliação das desigualdades sociais. O acúmulo de capital
guiado por ambições ilimitadas traz inúmeros problemas socias e am-
bientais. Vale lembrar que as conseqüências para a população mais po-
bre são sempre mais graves, pois o enfrentamento dessses problemas
sociais, muitas vezes depende de ações do próprio Estado, que pode
voltar seus interesses para outras questões.
Nesse sentido, as mulheres que ainda constituem parcela sig-
nificativa dos pobres no mundo têm enfretando as conseqüências de
um desenvolvimento econômico sem preocupação social e grandes
dificuldades para a realização de seus direitos. Embora elas já acumu-
lem importantes conquistas na igualdade de direitos, uma visão es-
sencialista sobre a mulher, aliada a valores e a preconceitos sexistas,
machistas e misóginos ainda presentes em nossa sociedade contribui
para que muitas mulheres permaneçam em situações de violência,
seja no âmbito do trabalho – enfrentando segregações de gênero ex-
pressas em condições precárias de trabalho, desigualdades salariais e
pouca mobilidade de carreira – ou na esfera doméstica – espaço no
qual ainda são vítimas de violência física, moral e psicológica, além de
suportarem uma dupla ou tripla jornada de trabalho, sendo as princi-
pais responsáveis pelas atividades domésticas e cuidado dos familia-
res. Tal situação exige a organização das mulheres, bem como deci-
sões governamentais que priorizem ações no sentido de desconstruir
essa desigualdade e construir a eqüidade de gênero, o que exige o
compromisso social tanto de homens quanto de mulheres, no sentido
de não mais tolerar a desigualdade de gênero, implementando ações
que contribuam para a sua eliminação.
Pensar as políticas públicas a partir da perspectiva da eqüida-
de é, segundo Machado (1999), preocupar-se fundamentalmente com
as desigualdades entre homens e mulheres, tanto na esfera pública

197
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

quanto na privada. Para a autora, as mulheres foram prejudicadas pelo


processo de desenvolvimento, sendo necessário uma redistribuição
de poder entre homens e mulheres – por meio de políticas de discri-
minação positiva, por exemplo. A conquista da igualdade pressupõe a
necessidade de empoderamento e autonomia das mulheres, para que
elas ampliem o poder de decisão sobre seus corpos e suas vidas.
Para Mariano (2003), foi no decorrer da década de 1990, espe-
cialmente a partir de 1995, com a IV Conferência Mundial sobre a Mu-
lher, promovida pela Organização das Nações Unidas, que o debate
sobre a incorporação de gênero nas políticas públicas ganhou maior
relevância, relacionando-se com a democratização das relações sociais
entre homens e mulheres, partindo do entendimento de que estas são
relações de poder. Assim, as políticas públicas de gênero implicam im-
pactos na estrutura de poder e visam promover o empoderamento das
mulheres, de forma a abalar as relações de subordinação.
Alterações no âmbito legal possibilitaram a igualdade formal de
homens e mulheres. No entanto, para se avançar e conquistar a igual-
dade nas condições concretas de vida, há que se recorrer à eqüidade,
o que pressupõe respeito às diferenças.
Para Piovesan (2003), a implementação do direito à igualdade
faz parte de qualquer projeto democrático, pois democracia significa
igualdade (no exercício dos direitos civis, políticos, econômicos, so-
ciais e culturais) e a busca democrática requer o exercício dos direitos
humanos elementares e o direito à igualdade, que pressupõe o direito
à diferença, inspirado na crença de que somos iguais, mas diferentes.
Dessa forma, entendemos que o debate de igualdade de gênero
pressupõe o entendimento de que a igualdade leva em consideração
as diferenças entre homens e mulheres, o que pode gerar discrimina-
ções positivas, que são aceitáveis à medida que favoreçam a igualda-
de, no sentido de corrigir uma desigualdade anteriormente constata-
da. A violência contra a mulher, por exemplo, tem características que
exigem tratamento específico, independente se, no plano formal, pos-
sa ser configurado como discriminação, pois é exatamente essa dis-
criminação positiva que proporcionará a igualdade real ou de fato. A
discriminação positiva pode ser vista como ação em sentido contrário
à discriminação negativa e que tem o poder de neutralizar seus efeitos
negativos.

198
nanci stancki da luz

Assim, a discriminação positiva da mulher é aceitável quando


se tratar de uma forma de eqüidade para garantir a igualdade real de
gênero e contribuir para a consolidação do ideal de justiça social.
Políticas de incentivo à participação feminina no espaço público,
como no caso de cotas para candidatas mulheres e a Lei Maria da Penha,
consistem em processos de discriminação positiva que têm um papel
relevante, pois tendem a reduzir as discriminações negativas e suas con-
sequências. A Lei Maria da Penha, buscando coibir a violência doméstica
contra a mulher, possibilitou um tratamento específico para os casos de
violência doméstica. Esse tratamento tem contibuído para alterar con-
cepções de que o ambiente familiar só diz respeito aos familiares, derru-
bando ditados do tipo “em briga de marido de mulher, ninguém mete a
colher” e mostrando ser possível garantir os direitos fundamentais das
mulheres inclusive nas suas relações privadas, nas quais, por muito tem-
po, difundiu-se e defendeu-se a não-intervenção do Estado. As políti-
cas de discriminação positiva podem contribuir para a construção da
igualdade de gênero, pois consideram as diferenças de gênero e as rela-
ções de poder existentes entre homens e mulheres, de forma a construir
mecanismos que possam neutralizar as diferenças e com isso atingir a
igualdade – não apenas na lei, mas sobretudo a de direitos.
Convém ressaltar que política para as mulheres não quer dizer o
mesmo que políticas de gênero. Gênero se refere à construção social do
feminino e do masculino e consiste, conforme Scott (1995), em um ele-
mento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças entre
os sexos e em uma forma de dar significado às relações de poder. Dessa
forma, as políticas de gênero devem considerar as diferenças socialmen-
te construídas entre homens e mulheres – e que podem ser desconstruí-
das e recriadas − e as relações de poder entre ambos.
Bandeira (2005) ajuda a compreender a diferença entre esses dois
enfoques de políticas públicas:

• Políticas públicas para as mulheres: Políticas com centralidade


no feminino como parte da reprodução social, ou seja, não priori-
zam a importância e o significado que se estabelece no relaciona-
mento entre os sexos. Enfatiza a responsabilidade feminina pela
reprodução social, pela educação dos filhos, pela demanda por
creches, por saúde e outras necessidades que garantam a manu-

199
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

tenção e a permanência da família e não necessariamente o em-


poderamento e autonomia femininas.
• Políticas públicas de gênero: Consideram a diversidade dos pro-
cessos de socialização de homens e de mulheres, cujas conseqü-
ências se fazem presentes ao longo da vida nas relações individual
e coletiva. Tais políticas consideram a natureza dos conflitos e das
negociações que são produzidos nas relações interpessoais que
se estabelecem entre homens e mulheres e internamente entre
homens ou entre mulheres.

A autora complementa que as políticas para as mulheres não


são excludentes das políticas de gênero, entretanto, se os(as) agentes
públicos(as) deixarem de tratar determinadas questões como exclusi-
vamente femininas, passando a considerar a natureza das relações e os
padrões de comportamento entre os sexos, isso ampliaria as possibili-
dades de solução de um problema social (violência contra a mulher, por
exemplo).
Uma política que considere as demandas das mulheres, mas não
leve em consideração os conflitos e o poder das relações entre os gê-
neros, pode reforçar visões essencialistas e tradicionais do feminino e
dificultar o avanço das lutas das mulheres para a conquista de seus di-
reitos.
Dessa forma, de acordo com Novellino (2004), as políticas de gê-
nero devem ter como objetivo o empoderamento das mulheres e a erra-
dicação da desigualdade de poder entre mulheres e homens. Em países
como o Brasil, essas políticas deveriam ser um instrumento contra as
desigualdades de gênero, bem como desigualdades sociais e étnicas.
Nesse sentido, o atendimento das demandas por educação in-
fantil, por exemplo, não poderia reforçar que a responsabilidade pelo
cuidado dos filhos e pela educação das crianças seja exclusivamente das
mães, tampouco considerar que pais/mães possam participar de reuni-
ões em qualquer horário ou que suas jornadas de trabalho possibilitem
buscar as crianças na escola às 18 horas, por exemplo. Esta é uma situa-
ção inviável para um número significativo de mães e pais que não têm
jornada de trabalho que possa ser adaptada a tais horários. Tais fatos
podem contribuir para que muitas mulheres ao tentar conciliar horários
escolares e emprego, sejam levadas a aceitar atividades que possibili-

200
nanci stancki da luz

tem tal conciliação, mas que muitas vezes se traduzem em atividades


com condições precárias, informais e de tempo parcial.
As políticas públicas devem estimular a paternidade responsável
e a construção de uma distribuição de tarefas domésticas que permita
que as mulheres possam participar do mundo do trabalho sem sobre-
carga. Elas devem ainda considerar os conflitos nas relações de poder
de gênero e principalmente que as famílias se apresentam com diversas
configurações: famílias compostas por pai, mãe e filhos(as), dois pais/
mães e filhos(as); mãe e filhos(as); pai e filhos(as); avós e netos(as), etc. A
participação efetiva de mulheres e homens na elaboração dessas polí-
ticas – de educação infantil, por exemplo − pode contribuir para que se
encontrem soluções que possibilitem conciliar horários, estimulem uma
divisão de tarefas justa entre homens e mulheres no âmbito doméstico
e contribuam para relações de gênero igualitárias.
Considerando que o gênero é um elemento das relações sociais
e se manifesta em todos os espaços, as políticas de gênero não podem
ser pensadas de forma isolada, fazendo-se necessária a sua articulação
com outras políticas públicas. Assim, gênero deve estar presentes nas
concepções das políticas públicas, pois qualquer política que se pense
sempre envolverá homens e/ou mulheres, ou seja, temos que inserir a
transversalidade de gênero, possibilitando que em todas as políticas pú-
blicas sejam consideradas as relações de gênero e as demandas tanto de
homens quanto de mulheres.
Por transversalidade de gênero nas políticas públicas, de acordo
com Bandeira (2005), entende-se a idéia de elaborar uma matriz que per-
mita orientar uma nova visão de competências (políticas, institucionais
e administrativas) e uma responsabilização dos agentes públicos em
relação à superação das assimetrias de gênero, nas e entre as distintas
esferas do governo. Essa transversalidade garantiria uma ação integrada
e sustentável entre as diversas instâncias governamentais e, conseqüen-
temente, o aumento da eficácia das políticas públicas, assegurando uma
governabilidade mais democrática e inclusiva em relação às mulheres.
Nesse sentido, ressalta-se a importância do II Plano Nacional de
Políticas para as Mulheres. No Comitê de Monitoramento do referido
plano estão dezenove órgãos da administração pública, além de repre-
sentantes de mecanismos governamentais estaduais e municipais de
políticas para as mulheres e do Conselho Nacional de Direitos da Mu-

201
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

lher. Entre eles, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência


da República, o Ministério da Educação, o Ministério da Justiça, o Ministé-
rio da Saúde, o Ministério das Cidades, o Ministério do Desenvolvimento
Agrário, o Ministério do Trabalho e Emprego e o Ministério do Desenvol-
vimento Social e Combate à Fome.
Segundo informações contidas nesse plano, ele foi resultado da
mobilização de aproximadamente 200 mil mulheres que participaram das
conferências municipais, estaduais e nacional de políticas para as Mulhe-
res. Ele é considerado como um plano de governo que expressa a vontade
política de reverter o padrão de desigualdade entre homens e mulheres
e, dessa forma, contribuirá para toda a sociedade e não especificamente
para as mulheres.
Para sua implementação, considera-se necessário o envolvimento
da sociedade civil (particularmente as mulheres), bem como parcerias en-
tre a União e os governos estaduais e municipais. O referido plano é orien-
tado a partir dos seguintes princípios:

• Igualdade e respeito à diversidade: Mulheres e homens são iguais


em seus direitos e sobre esse princípio se apóiam as políticas de
Estado que se propõem a superar as desigualdades de gênero. A
promoção da igualdade requer o respeito e a atenção à diversidade
cultural, étnica, racial, à inserção social, assim como aos diferentes
momentos da vida. Demanda o combate às desigualdades de toda
sorte, por meio de políticas de ação afirmativa e consideração das
experiências das mulheres na formulação, na implementação, no
monitoramento e na avaliação das políticas públicas.
• Equidade: O acesso de todas as pessoas aos direitos universais
deve ser garantido com ações de caráter universal, mas também
por ações específicas e afirmativas voltadas aos grupos historica-
mente discriminados. Tratar desigualmente os desiguais, buscan-
do-se a justiça social, requer pleno reconhecimento das necessida-
des próprias dos diferentes grupos de mulheres.
• Autonomia das mulheres: Deve ser assegurado às mulheres o
poder de decisão sobre suas vidas e corpos, assim como as condi-
ções de influenciar os acontecimentos em sua comunidade e em
seu país, e de romper com o legado histórico, com os ciclos e espa-

202
nanci stancki da luz

ços de dependência, exploração e subordinação que constrangem


suas vidas no plano pessoal, econômico, político e social.
• Laicidade do Estado: As políticas públicas de Estado devem ser
formuladas e implementadas de maneira independente de prin-
cípios religiosos, de forma a assegurar efetivamente os direitos
consagrados na Constituição Federal e nos diversos instrumentos
internacionais assinados e ratificados pelo Estado brasileiro, como
medida de proteção aos direitos humanos das mulheres em todas
as faixas etárias.
• Universalidade das políticas: As políticas devem ser cumpridas na
sua integralidade e garantir o acesso aos direitos sociais, políticos,
econômicos, culturais e ambientais para todas as mulheres. O prin-
cípio da universalidade deve ser traduzido em políticas permanen-
tes nas três esferas governamentais, caracterizadas pela indivisibi-
lidade, integralidade e intersetorialidade dos direitos. Tais políticas
devem ser combinadas às políticas públicas de ações afirmativas,
percebidas como transição necessária em busca da efetiva igualda-
de e eqüidade de gênero, raça e etnia.
• Justiça social: Implica o reconhecimento da necessidade de re-
distribuição dos recursos e riquezas produzidas pela sociedade e a
busca de superação da desigualdade social, que atinge as mulheres
de maneira significativa.
• Transparência dos atos públicos: Deve-se garantir o respeito aos
princípios da administração pública − legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade e eficiência, com transparência nos atos
públicos e controle social.
• Participação e controle social: Devem ser garantidos o debate e
a participação das mulheres na formulação, na implementação, na
avaliação e no controle social das políticas públicas.
O plano está organizado em onze capítulos, que expressam as
prioridades levantadas pelas mulheres que participaram das con-
ferências, dentre os quais destacamos:
• “Autonomia econômica e igualdade no mundo do trabalho,
com inclusão social”, com o objetivo de promover a autonomia

203
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

econômica e financeira das mulheres, considerando as dimensões


étnico-raciais, geracionais, regionais e de deficiência; promover a
igualdade de gênero, considerando a dimensão étnico-racial nas
relações de trabalho; e elaborar o Plano Nacional do Trabalho De-
cente com base na Agenda Nacional, incorporando os aspectos de
gênero e considerando a dimensão étnico-racial.
• “Educação inclusiva, não-sexista, não-racista, não-homofóbica e
não-lesbofóbica”, objetivando contribuir para a redução da desi-
gualdade de gênero e para o enfrentamento do preconceito e da
discriminação de gênero, étnico-racial, religiosa, geracional, por
orientação sexual e identidade de gênero, por meio da formação
de gestores(as), profissionais da educação e estudantes em todos
os níveis e modalidades de ensino; consolidar na política educacio-
nal as perspectivas de gênero, raça/etnia, orientação sexual, gera-
cional, das pessoas com deficiência e o respeito à diversidade em
todas as suas formas, de modo a garantir uma educação igualitária;
garantir o acesso à permanência e o sucesso de meninas, jovens e
mulheres à educação de qualidade, prestando particular atenção
a grupos com baixa escolaridade (mulheres adultas e idosas, com
deficiência, negras, indígenas, de comunidades tradicionais, do
campo e em situação de prisão).
• “Saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos”,
com o objetivo de promover a melhoria das condições de vida e
saúde das mulheres, em todas as fases do seu ciclo vital, mediante a
garantia de direitos legalmente constituídos, e garantir a ampliação
do acesso aos meios e serviços de promoção, prevenção, assistên-
cia e recuperação da saúde integral em todo o território brasileiro,
sem discriminação de qualquer espécie, resguardando-se as iden-
tidades e especificidades de gênero, raça/etnia, geração e orienta-
ção sexual.
• “Enfrentamento de todas as formas de violência contra as mu-
lheres”, tendo por objetivo principal reduzir os índices de violência
contra as mulheres por meio da consolidação da Política Nacional
de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, com plena efe-
tivação da Lei Maria da Penha; implementação do Pacto Nacional
pelo Enfrentamento da Violência contra as Mulheres; e implemen-

204
nanci stancki da luz

tação do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas,


no que diz respeito às ações referentes ao tráfico de mulheres, jo-
vens e meninas.
• “Participação das mulheres nos espaços de poder e decisão”, com
o objetivo de promover e fortalecer a participação igualitária, plural
e multirracial das mulheres nos espaços de poder e decisão.
• “Enfrentamento do racismo, sexismo e lesbofobia”, com o objeti-
vo de instituir políticas, programas e ações de enfrentamento dos
problemas anteriormente citados e assegurar a incorporação da
perspectiva de raça/etnia e orientação sexual nas políticas públicas
direcionadas às mulheres.

Cada capítulo do plano prevê objetivos gerais, específicos, priorida-


des e metas a serem cumpridas. A leitura desse plano nos leva a acreditar
que é possível alterar as condições de vida das brasileiras, resgatando a
sua dignidade e autonomia, auxiliando-as a conquistar o direito a uma
vida plena.
Todavia, cabe lembrar que para que esse processo se efetive e
transforme as relações de gênero, o próprio plano considera em seus prin-
cípios que há necessidade da participação e do controle social para que
as propostas possam sair do papel e invadir a vida de homens e mulheres,
contribuindo para a construção da justiça social.

Considerações finais
Este artigo trouxe uma breve reflexão sobre as políticas públicas e como
elas podem ser redirecionadas para contemplar as demandas de mulhe-
res e homens e construir a relações de gênero igualitárias. Considera-se
que as políticas públicas são instrumentos essenciais para a promoção da
eqüidade de gênero necessária para a consolidação da justiça social.
As políticas públicas de gênero representam conquistas da organi-
zação dos movimentos sociais, particularmente das mulheres, que busca-
ram concretizar os ideais de igualdade entre homens e mulheres por meio
de ações governamentais. Isso, no entanto, exige a eliminação das desi-
gualdades de gênero, além de demandar investimentos de recursos pú-
blicos, bem como a participação de homens e mulheres e o compromisso
social na elaboração, na implementação e na avaliação dessas políticas.

205
desafios e avanços nas políticas públicas de gênero

As políticas de gênero devem considerar as relações de poder en-


tre homens e mulheres e as diferenças socialmente construídas entre o
masculino e o feminino. A construção social de homens e mulheres po-
dem contribuir para a manutenção da histórica desigualdade de gêne-
ro, assim uma política pública de gênero deve necessariamente alterar
as relações de poder entre homens e mulheres, promovendo, assim, a
justiça social.
Pode-se considerar as políticas para combate à violência domésti-
ca contra as mulheres como exemplo de política que assumiu a existên-
cia de relações de poder desiguais entre os gêneros e a necessidade de
um tratamento diferenciado para as mulheres que se encontram nessa
situação. As delegacias especializadas possibilitam a denúncia dos vários
tipos de violência presentes no âmbito doméstico. Assim, a Lei Maria da
Penha contribui para a construção da cidadania das mulheres e para isso
tornar-se possível, essa lei teve de considerar as desigualdades de gêne-
ro ainda presentes nas relações de poder no âmbito doméstico e, para
neutralizá-las e atingir a igualdade de direito à vida sem violência, con-
siderou que mulheres em situação de violência deveriam ter tratamento
específico, pois essa violência também tem características específicas.
Assim, as políticas públicas podem contribuir para reverter o qua-
dro de desigualdade de gênero e construir a igualdade de acesso a direi-
tos fundamentais e sociais, sendo essencial que nelas esteja presente a
de eqüidade de gênero, considerando que as diferenças entre homens e
mulheres não impedem a concretização da igualdade de direitos.

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208
marlene tamanini

11
DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS: A REPRODUÇÃO,
A SEXUALIDADE E AS POLÍTICAS

Marlene Tamanini

Preâmbulo
Inicio o texto com um poema datado de 1956, de Cecília Meireles, extra-
ído do texto de Maria Lúcia Dal Farra1. Segundo análise da autora - “Pri-
são” não se insere no espírito singular do título: ao contrário faz proliferar,
nele, uma progressão geométrica povoada de mulheres encarceradas:
“de quatro passam para quarenta, de quarenta para quatrocentas, de
quatrocentas para quatro mil, de quatro mil para quatro milhões – a
ponto de se perder a conta”2. Segundo ela, com quem concordo, trata-
se, aqui, “de estender a cela para todas as mulheres do mundo, para to-
das as mulheres do planeta, que, na verdade, estão encarceradas pelos
outros [...] ou por si mesmas”3.

Imagens femininas:

Prisão, de Cecília Meireles

Nesta cidade
quatro mulheres estão no cárcere.
Apenas quatro.
Uma na cela que dá para o rio,
outra na cela que dá para o monte,
outra na cela que dá para a igreja
e a última na do cemitério
ali embaixo.
Apenas quatro.
Quarenta mulheres noutra cidade,
quarenta, ao menos,
estão no cárcere.

209
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

Dez voltadas para as espumas,


dez para a lua movediça,
dez para pedras sem resposta,
dez para espelhos enganosos.
Em celas de ar, de água, de vidro
estão presas quarenta mulheres,
quarenta ao menos, naquela cidade.
Quatrocentas mulheres
quatrocentas, digo, estão presas:
cem por ódio, cem por amor,
cem por orgulho, cem por desprezo
em celas de ferro, em celas de fogo,
em celas sem ferro nem fogo, somente
de dor e silêncio, quatrocentas mulheres, numa outra cidade,
quatrocentas, digo, estão presas.
Quatro mil mulheres, no cárcere,
e quatro milhões – e já nem sei a conta,
em cidades que não se dizem,
em lugares que ninguém sabe,
estão presas, estão para sempre
- sem janela e sem esperança,
umas voltadas para o presente,
outras para o passado, e as outras
para o futuro, e o resto – o resto,
sem futuro, passado ou presente,
presas em prisão giratória,
presas em delírio, na sombra,
presas por outros e por si mesmas,
tão presas que ninguém as solta,
e nem o rubro galo do sol
nem a andorinha azul da lua
podem levar qualquer recado
à prisão por onde as mulheres
se convertem em sal e muro. (p.1759 -1760)

Penso que o espírito desse poema que se confronta com as pri-


sões, com os estereótipos, com as representações de gênero, por vezes
desiguais, se interpõe entre as relações sociais consideradas naturais, e a
consciência crítica do movimento feminista na sua origem e, em grande
medida, em muitos dos seus contextos contemporâneos.

210
marlene tamanini

Direitos Humanos e as mulheres


No tema que me cabe – direitos sexuais e reprodutivos, considerada a
longa tradição e as justificações sistemáticas a respeito dos direitos hu-
manos, produzidas desde o iluminismo – constata-se que as primeiras
fundamentações sobre os direitos das mulheres foram tomadas de em-
préstimo das teorias liberais e democráticas. A primeira grande atividade
feminista no século XIX era para garantir o direito ao voto, juntamente
com outras questões como o direito à propriedade, reforma do casa-
mento e liberdade sexual. A teoria democrática incentivava as mulheres
a verem o voto como correto e um meio prático para atingir as metas.
Acreditava-se que quando o sufrágio fosse concedido às mulheres, essas
estariam aptas a votar em favor da legislação que corrigiria a injustiça.
Porém, o fato é que mesmo se considerando um esforço no sentido da
promoção e da participação das mulheres na vida política, isso não mu-
dou a compreensão sobre o trabalho no lar que permaneceu vinculado
à concepção de que os homens eram seus chefes naturais. As mulheres
não participavam das relações morais entre os homens, nas quais, as so-
lidariedades naturais eram substituídas por normas de justiça. Recato
e castidade eram considerados virtudes para as mulheres, e Rousseau,
referência das teorias contratualistas, entrava em pormenores a res-
peito da natureza feminina que sujeitava as mulheres à autoridade do
masculino. Em Emile, expunha a educação espontânea e natural ideal
para um homem; e dizia que as mulheres deveriam ser educadas para
agradar os homens e serem mães. Deviam ser educadas na reclusão e
na castidade. Não foi sem freqüência que a interpretação de oposição
a esse tipo de argumento também tenha construído outros estereóti-
pos, como: as mulheres são iguais, mas suas emoções devem ser con-
troladas, porque destroem a felicidade dos indivíduos e da sociedade.
As mulheres, quanto às emoções, encontram-se em situação diferente
dos homens. A ambição e o orgulho do homem podem causar sua ruína,
mas numa mulher seus sentimentos jamais levam à felicidade. Quando
uma mulher se intromete na política, se jovem, é considerada atrevida,
se velha, é repugnante. A única paixão possível para as mulheres é o
amor, porém, é melhor não ser amada, porque, se você cede à necessi-
dade de ser amada, você se entrega aos homens. Desse modo, a nature-
za das mulheres era o seu destino. O contexto da revolução francesa e o

211
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

mundo do trabalho do século XIX trouxeram essas idéias para outras esferas,
mas restabeleceram sob outros patamares a pergunta sobre a feminilidade
de uma mulher que estivesse vinculada ao mundo do trabalho, no contexto
da revolução urbano-industrial.
Desde a constituição dos direitos humanos prevaleceu, portanto, uma
concepção naturalista do direito, ocultando o fato de que esta se constituía
por meio de uma declaração, que era uma auto-declaração na qual os homens
eram simultaneamente os sujeitos e os objetos de enunciação, e, ao fazê-lo,
constituíam-se em testemunhas e juízes uns dos outros. Locke, Rousseau e
os utilitaristas haviam modelado um mundo no qual os homens podiam ser
livres e iguais, e quando esses ideais foram aplicados às mulheres ganharam
um caráter reformador da família e da ordem social. No caso dos socialistas,
ao mesmo tempo em que acusavam o capitalismo de nada ter feito para mu-
dar a degradação econômica e social das mulheres, esses mantinham a famí-
lia burguesa com sua servidão doméstica. O fracasso da revolução marxista
levou muitas feministas, como Simone de Beauvoir, a estudarem a profundi-
dade das relações existenciais entre o eu e o outro. As teorias estruturalistas
da linguagem situaram o sexismo nas próprias origens da cultura.
Nesse sentido, é preciso considerar, no âmbito do debate, que a tra-
dição dos direitos humanos ocidentais é a ausência de referências transcen-
dentes, capazes de gerar a participação democrática. A democracia contem-
porânea é um convite a substituir a noção de regime regido por leis, como
um poder legítimo, pela legitimidade de um debate do que é legítimo e do
que se constitui a ilegitimidade. Para tanto, deixa-se de considerar os pode-
res absolutos e os referenciais fora da história; assim, não há autoridade que
esteja acima da sociedade, e não há juiz capaz de dirimir os conflitos sem que
eles passem por ampla discussão e organização social e por parâmetros de
justiça social. Como conseqüência, a justiça necessita de um espaço público
de debate, e a participação na esfera pública se converte em direito e em de-
ver para evidenciar entre outros processos os de desigualdade social.
A conseqüência dessa perspectiva é que o conteúdo das reivindica-
ções e as prioridades políticas no âmbito das lutas podem variar, desde que
se afirme o direito de ter direitos – e o direito ao debate público do conteúdo
das normas e leis – bem como se visibilize a situação vivida por mulheres,
crianças e pessoas em situação de vulnerabilidade social, étnica e racial.
Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento ado-
tado pelas Nações Unidas em 1948, encontra-se um marco básico para

212
marlene tamanini

a ação concreta: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em


dignidade e direitos, sem distinção de raça, cor, sexo, idioma, religião,
origem nacional ou social, posição econômica e nascimento”. Esses
fundamentos ganham novos suportes e novos desafios quando pensa-
mos nos direitos das mulheres e, sobretudo, se considerarmos que, nas
últimas décadas do século passado, os direitos sexuais e reprodutivos
se estabeleceram com base em algumas noções aglutinadoras de uma
série de demandas provenientes de vários movimentos sociais, inclusi-
ve, feministas e de mulheres que não se agregam a essa nominação. No
Brasil, estabelecer metas a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos
também representa um combate à homofobia, bem como a promoção
dos direitos humanos e da saúde da população de lésbicas, gays, bisse-
xuais, travestis e transexuais. Subvertendo o ordenamento normativo
da sexualidade que não dispõe o ser humano a múltiplas possibilidades
e a diversidade de direito a orientação sexual. A resposta brasileira está
se estabelecendo recentemente, com projetos de visibilização, mobili-
zação e escuta de cerca de 18 milhões de cidadãos e cidadãs em nosso
país que pedem igualdade de direitos e a criminalização da discrimina-
ção homofóbica, prevista no PLC 122/2006. Recentemente, foram de-
senvolvidas várias propostas e conferências regionais e a I Conferência
Nacional LGBT, convocada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, de
5 a 8 de junho de 2008, na qual foram aprovadas 559 estratégicas de
políticas públicas para LGBT. Por meio da Portaria nº 432, de 2 de julho,
a Secretaria Especial dos Direitos Humanos já convocou 18 ministérios
para formar uma comissão técnica interministerial para, com base nas
propostas da Conferência, elaborar o Plano Nacional de Promoção da
Cidadania e Direitos Humanos LGBT4.

Feminismo e Direitos
Considerando-se os direitos sexuais e reprodutivos com sua história
vinculada aos movimentos sociais, especialmente ao movimento de
mulheres e homossexuais articulado à crítica às políticas controlistas e
ao gerenciamento da sexualidade, surgidos a partir dos anos 60, o mo-
vimento feminista representou o rompimento do processo social de
construção da opressão do feminino. Sua posição inicial foi marcada
pela crítica ao patriarcado como forma de opressão, dando visibilidade,
desse modo, à subordinação das mulheres a várias práticas econômicas,

213
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

políticas, culturais e sociais. Isso também se inseriu nas lutas anti-


colonialistas (sobretudo na África e Ásia), e na constatação de que
havia uma variedade de estruturas de patriarcados convivendo com
movimentos em prol da mudança dos sistemas de opressão; fossem
eles de gênero, de classe, de etnia ou de raça, contexto prático im-
portante, porque dele também foram engendradas as teorias que
tratavam do feminismo da diferença.
O surgimento dos feminismos locais nos anos subseqüentes
trouxe, igualmente, uma variedade de esforços para promover mu-
danças culturais. Questionaram-se, sobretudo, os papéis de gênero
como um padrão unitário e funcional. Surgiram teorias sobre pa-
péis sexuais intercambiáveis e novos arranjos nas relações sociais
de sexo. Em alguns países mulçumanos, realizaram-se até mesmo
leituras alternativas do alcorão.
Os estudos de mulheres que caracterizaram muito da pro-
dução dos anos 60 e 70, ao problematizarem sua essencialização
primeira, produziram a categoria da diferença como problema de
análise. Despolarizaram as identidades únicas e construíram pers-
pectivas teóricas em direção às identidades múltiplas, para enfocar
a diversidade da experiência das mulheres, a relação com a subjeti-
vidade e as posições de sujeitos múltiplos, no conjunto da diversida-
de de concepções raciais, geracionais, sexuais e de práticas e valores
culturais em processos de transformação.
A temporalidade surge como experiência que vincula comuni-
dades, regiões, gerações, países e mundos distintos, desde o ponto
de vista cultural até o econômico e social. Questões essas que abri-
gam uma produção de conhecimento sobre o mundo das mulhe-
res, das famílias, das relações de gênero de gerações muito diversas.
Gênero se constrói nesse conjunto de questões como um conceito
agregador de experiências múltiplas, focalizando conjunturas pro-
visórias e relativas ao seu próprio tempo, substituindo a linearidade
evolutiva de um processo histórico nacional e universal pela apre-
sentação da experiência com o vivido no cotidiano, e pelos desafios
que se impõem na superação das relações de poder estruturadas
nas instituições, nas práticas cotidianas, na linguagem, nos meios
midiáticos e científicos em direção a uma atitude ética emancipa-
tória.

214
marlene tamanini

Desenvolve-se, teoricamente, a compreensão de que o universal


está implicado na necessidade de espelhamento com o específico e/ou
particular. Demonstra-se assim a limitação de se seguir com compara-
ções tomadas como categorias naturais, como se fossem entidades se-
paradas das práticas sociais, das relações de classe, de raça, de gênero e
dos seus significados como traduções de muitos sujeitos.
Foca-se a tensão entre a diversidade e a universalidade, a igualda-
de e a desigualdade, a semelhança e a diferença. Relações entendidas
como portadoras de conteúdos que expressavam as discussões quanto
ao direito à diversidade e ao respeito às especificidades das mulheres:
negras, pobres e lésbicas, com o objetivo de assegurar o acesso univer-
sal aos serviços de saúde e aos direitos.
As tensões que o feminismo da diferença trouxe para o centro das
problematizações dos conceitos universais, não descartaram, contudo,
as perspectivas dialéticas: como a necessidade de se levar em conta a
classe social. Acirram-se porém, as desanaturalizações dos processos
universais, inserindo-se questões analíticas sempre mais voltadas à rela-
ção, ao contexto, e as múltiplas situações que interagem com processos
de desigualdade. As idéias marxistas, embora não sejam únicas, foram
determinantes para a percepção das formas de dominação entre os indi-
víduos, e ao serem consideradas nos anos 70 pelas feministas socialistas
e comunistas. Permitiram trabalhar questões de opressão e de domi-
nação, especialmente aquelas questões vinculadas à divisão sexual do
trabalho, exploração salarial, ao conceito de classe social até então, não
problematizado como relação de sexo e de gênero. Situação que fazia
com que ele passasse pela história como se ela não tivesse sexo e como
se fosse a mesma coisa ser homem e ser mulher na apropriação que o
capitalismo faz da força de trabalho, no mercado de trabalho.
Mostrava-se como a sociedade, dominada por homens, inven-
tava, sob o pretexto de imperativos econômicos ou simbólicos, novos
meios para manter a divisão sexual do trabalho e do saber. Igualmen-
te, como só uma minoria melhor dotada de mulheres podia transgredir
suas regras e se beneficiar de um direito real ao trabalho, e de um salário
igual para um trabalho igual. Essas questões já estavam presentes no
chamado feminismo de primeira onda, do século XIX, quando a mulher,
apesar de sempre ter trabalhado, ganhou visibilidade por causa da gran-
de questão moral, sem precedentes na história, segundo Scott5 e que

215
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

versava sobre se era conveniente e legal a mulher exercer atividades


assalariadas. Esse problema, segundo a autora, implicava o próprio sen-
tido da feminilidade e a sua compatibilidade com o trabalho assalariado.
Segundo Scott, tanto fazia se a mulher era uma operária fabril, uma po-
bre costureira ou uma compositora tipográfica emancipada. Quer fosse
essa mulher descrita como uma jovem rapariga solteira, uma mãe de
família, uma viúva idosa, ou como a mulher de um trabalhador desem-
pregado ou de um hábil artesão, ou ainda fosse tomada como o exem-
plo último das tendências destrutivas do capitalismo ou como prova das
suas progressivas potencialidades, as questões por ela levantadas eram
sempre as mesmas: deve a mulher trabalhar por um salário? Qual o im-
pacto do trabalho assalariado no corpo feminino e na sua capacidade de
desempenhar as funções materiais e familiares? Qual tipo de trabalho é
adequado para uma mulher?6
As idéias liberais, que contribuíram para o processo de constitui-
ção dos direitos civis e políticos e centravam sua crítica sobre a domi-
nação, nas relações de poder, basicamente vinculadas às relações entre
Estado/Igreja e indivíduo, para além de sua reconhecida importância
histórica, foram também colocadas em cheque por posições argumen-
tativas feministas que consideraram a cultura como um fator fundamen-
tal na mudança das relações. Vínculos locais através do mundo foram
revelando as condições de vida das mulheres, a questão distributiva da
renda, os índices de miséria e pobreza. Muitas ONGs estabeleceram me-
tas de combate à pobreza e alertaram para a necessidade de projetos
geradores de renda. Metas como combate ao desemprego, à fome e
a busca do desenvolvimento foram estabelecidas a partir de ações de
mulheres empreendedoras nos locais e por meio do desenvolvimento
cultural, ligado à experiência com diversas regiões. Algumas metas se
destacaram em vários países, como a luta pela educação (na Ásia e Pa-
cífico). Nesse ponto, ressalta-se a luta pela satisfação econômica – prin-
cipalmente, ligada ao mundo rural, a exemplo da busca pelo acesso à
terra (em Angola), e o acesso às tecnologias e ao poder político, lutas
significativas em países asiáticos e africanos. Essas questões implicaram
muitas vezes a quebra do silêncio; o combate à sujeição sexual, estu-
pro, violência; o combate ao fundamentalismo religioso e do Estado; o
incentivo às mulheres produtoras de alimentos, especialmente na Ásia
e na África; a discussão da crise do petróleo; a seca e as práticas de sub-

216
marlene tamanini

sistência em muitas regiões do mundo; os debates a respeito da crise


da dívida externa; as denúncias contra processos de militarização, pro-
movidos pelas ditaduras militares. Implicaram ainda denúncias de prá-
ticas coloniais como: o preço da noiva, cliterectomia, os nacionalismos
e, recentemente, a expansão do HIV e sua feminização. Vários estudos
foram desenvolvidos para mostrar as injunções entre sistema patriarcal,
opressão e pobreza e os impactos relativos à remuneração e à renda das
mulheres sobre os níveis de igualdade de gênero, econômicos e sociais.
Esses estudos hoje se deparam, porém, com o esforço para conseguir
a participação dos homens na luta contra a AIDS, como um modo de
mudar o curso da epidemia.

Nas últimas décadas...


Nas últimas décadas também se observou o crescimento das organiza-
ções voluntárias de mulheres, a construção de instituições legais, jurídi-
cas, e de experiências de proteção a mulheres em situação de violência.
Recoloca-se, desse modo, a discussão do direito ao aborto atendido no
serviço público, sua descriminalização, seu atendimento, sua visibiliza-
ção com bancos de dados e registros nacionais, para que de fato se pos-
sa estabelecer a magnitude do problema, implantar, capacitar e expan-
dir a rede de serviços de atendimento nos hospitais, no sistema público
de saúde. Conforme rege nossa constituição federal, em se tratando de
estupro da mulher, risco de vida para a mãe, anencefalia, ou outras ano-
malias graves para o feto, o Estado deve prover esse serviço.
Na ordem prática, o aborto precisa deixar de ser crime e ser nor-
matizado com regulamentação legal e serviços médicos; portanto, es-
tão em questão os parâmetros de assistência, segurança, regulamenta-
ção, contratação de médicos para os serviços e representação junto ao
Ministério Público – quando isso não se cumpre –, além da divulgação
desse direito de escolha, que é um direito humano da mulher e uma luta
de homens e mulheres.
Em geral, quando se fala de aborto, utiliza-se argumentos tanto
a favor como contra o ato e, no interstício, com essa ordem simbólica,
muitos se recusam a discutir sua descriminalização. Os últimos baseiam-
se em pressupostos construídos com base nos dilemas da origem da
vida, do pecado e, por vezes, do crime. Os primeiros discutem a autono-
mia da vontade da mulher e a morte das mulheres. Nesse caso, o assun-

217
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

to é introduzido nos parâmetros do que deveria reger a saúde pública


no Brasil, porque, embora, raramente se morra por aborto, seguramen-
te, morre-se em conseqüência de seqüelas do aborto. Especialmente,
quando esse é realizado em condições de risco de todas as ordens. Se-
jam elas compostas por recortes geracionais, de classe, ou de gênero,
situação que necessita ser visibilizada com bancos de dados e registros
claros, nacionais, para, de fato, poder-se estabelecer a magnitude do
problema, e desfocar os critérios regionais, que estão gerando os pro-
cessos atuais referidos a estimativas vinculadas aos centros onde se tem
algum tipo de estudo ou dado e que carecem de expansão.
Os problemas também mudam sua natureza quando se trata do
embrião fixado no útero de uma mulher e concebido por meio de re-
lação sexual, a partir do encontro entre óvulo e espermatozóide no in-
terstício da ordem reprodutiva vinculada a relação sexual. Ou quando
se trata do embrião em processos de reprodução assistida em labora-
tórios, cujos gametas estão nas mãos de algum especialista. Ou quando
se trata do uso dos embriões para pesquisa, cujo a priori, além da sua
concepção e parte do desenvolvimento fora do corpo, é a utilização de
células potencialmente reprodutivas (óvulos e espermatozóides) para
outros fins, ou do uso de células matrizes em processos de clonagem,
conforme tratei em texto apresentado no Fazendo Gênero 87.
Ao tratar-se da sua nidação no útero, os argumentos utilizados
pró e contra a descriminalização do aborto são com freqüência a respei-
to da concepção e da potencialidade da pessoa. Sobretudo, estão sem-
pre se referindo à possibilidade da continuidade da vida, situação que
se viabiliza somente se o embrião for transferido para um útero, se nele
se fixar, e encontrar condições de trocas biológicas para chegar a termo.
Isso depende exclusivamente de outro corpo, o da mulher que o sus-
tenta e lhe dá suporte, e que deseja, ou não, vir a ser mãe. No conjunto
desse processo, que não é meramente natural, mas que envolve ques-
tões de decisão da vontade de seguir com o concepto, pressupõe-se au-
tonomia da escolha e condições de decisão. Não haverá transformação
em futuro feto, e, conseqüentemente, futuro bebê e posterior criança,
se isso não for um ato deliberado da mulher que recebeu uma quanti-
dade de células germinativas, os espermatozóides, que se uniram aos
seus óvulos, compondo um ovo. Agora nidado em seu útero, representa
uma quantidade de células embrionárias humanas, material humano re-

218
marlene tamanini

produtivo, que poderá seguir se desenvolvendo naturalmente, ou não,


já que muitos óvulos fecundados são expelidos, sem que alguém se dê
conta disso. Mas, uma vez nidados, em se tratando de gravidez para fins
de feto, bebê, filho, criança, precisa da decisão e do desejo atuante da
mulher no processo das escolhas, uma vez que embrião sem útero não
se transforma em vida. Desse ponto de vista, a fertilização em laborató-
rio é nada por si só. O zigoto não tem potencialidade para criar um ciclo
vital sem um útero. Os processos estão todos separados do corpo da
mulher e o embrião ganha outro lugar em relação a sal origem. Pode
ser criopreservado e escrutinado, escaneado de todos os modos, por in-
teresses outros relacionados a processos de pesquisa dos mais diversos.
O embrião é um material humano que pode vir a ser utilizado ou servir
para muitos fins, tanto reprodutivos, quanto para produzir células, ou-
tros órgãos, ou como base em pesquisas experimentais, embora, sendo
resultado de um processo que envolveu gametas de homens e de mu-
lheres, ou de mulheres, esteja enredado em uma questão de direito que
exige um ato de cessão, já que não se pode tirar de um casal o direito
sobre os embriões e não se pode dele servir para fins de comercialização
nem de eugenia. Além desses aspectos, há de se pensar como se inse-
rem noções a respeito do estatuto da vida e da pessoa, tomados muitas
vezes como um a priori. Situação sobre a qual se referiu o Ministro Cezar
Peluso, diante da corte de julgamento do uso das células tronco, em seu
voto recente, no dia 28 de maio de 2008, ao dizer: “a potencialidade do
zigoto de criar um ciclo vital não basta para se identificar uma vida ou
reivindicar a aplicação do Estatuto Ético da vida”. “É difícil que um óvulo
ou um espermatozóide tenha capacidade, por si só de criar uma vida”,
continuou8. Ou como se referiu um médico que entrevistei por ocasião
do estudo de campo de minha tese em 2001, “nós somos absurdamen-
te hipócritas em relação ao aborto; veja só, se eu derrubar uma pipeta
com um embrião dentro dela! E esse embrião se perder no ralo, ou no
chão! Quem abortou? Fui eu? Foi a pipeta? Foi a mãe que me entregou
o embrião?”. Resguardadas as naturezas dos embriões e as proporções
que cada contexto, o do útero e o do laboratório, trazem e a necessária
discussão sobre os valores que estamos protegendo ou não, essas situ-
ações nos levam, conforme já me referi, para lugares argumentativos
diferentes. No caso do embrião do útero da mãe, seguramente nos le-
vam para um campo teórico e de ética prática focado sobre a visão con-

219
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

cepcional e evolutiva. Na visão concepcional, a vida humana tem início


tanto ontologicamente como eticamente no momento da concepção,
originando-se o ser humano enquanto pessoa. Esse é o posicionamento
que encontramos na teoria oficial da Igreja Católica, cujos pressupostos
se baseiam na potencialidade e no conceito de pessoa. Na verdade, nes-
se caso, a potencialidade é reduzida em favor da idéia essencializada do
zigoto como pessoa. Na visão evolutiva, a vida humana teria seu come-
ço e seu status moral, através do surgimento de algum traço morfológi-
co ou evolutivo do embrião, ou em determinado momento do processo
de gestação.
No caso do laboratório, a matéria é remodelada; a noção de em-
brião como algo pronto, potencialidade de vida, parece não existir.
Esse conjunto de questões se vincula aos direitos sexuais e repro-
dutivos como direitos humanos e, de maneira geral, também se inserem
em dinâmicas como: Estado, instituições e políticas públicas; sociedade
civil, movimentos sociais e cultura; ciência saber e tecnologia; trabalho,
profissões e formação profissional; subjetividade, corpo e pessoa; prá-
ticas corporais, atenção e cuidado com a saúde; bioética e biotecnolo-
gia.
O segundo aspecto a respeito do qual vamos nos referir trata da
reprodução vinculada à idéia de controle da população, um demarca-
dor muito utilizado quando se fala de direitos sexuais e reprodutivos. O
continente Latino-americano, e com ele o Brasil, sempre esteve ligado a
heranças autoritárias, que vêm sendo rompidas por vários movimentos
sociais, dentre eles o movimento feminista. Nesse conjunto de buscas
por uma participação democrática também se visibilizou o tema popu-
lacional – vinculado às questões do Estado, de ordem pública – e muitas
políticas foram estruturadas envolvendo a capacidade reprodutiva da
mulher e sua função social, familiar na ordem procriativa. A mulher de-
finida por sua determinação biológica é utilizada, muitas vezes, no con-
junto do imaginário que constituiu o ideal da santa mãezinha e, como
conseqüência do século XIX, está regrada sob a égide do controle do
seu corpo, da população e dos nascimentos.
No Brasil, o discurso do planejamento familiar já se expressava
nos primórdios do Brasil colonial. No período colonial, a Igreja Católica
foi a instituição que sustentou, quase que exclusivamente, o ideário
social a respeito do aperfeiçoamento e da melhora da raça, através da

220
marlene tamanini

construção de uma sociedade portuguesa cristã. O sucesso desse pro-


jeto envolvia estratégias no plano da regulação reprodutiva e da inter-
venção na vida sexual, o que ocorria por meio de discursos cotidianos
da Igreja e do Jurídico Estatal. Dessa forma, a Igreja contribuiu para a
promoção da mentalidade androcêntrica de subordinação, obediên-
cia e servidão da mulher em relação ao homem, incluindo a procriação
de tantos filhos quanto “Deus” e a “natureza” determinassem.
Na década de 1930, por exemplo, o discurso populacional se
constitui sob argumentos que coadunavam teorias racistas, sexistas e
de gestão clara de uma política de branqueamento. A valorização da
mestiçagem é o exemplo mais contundente de como se podem asso-
ciar lógicas diversas quando se trata de fazer agir certas práticas em
reprodução humana, práticas institucionais, sociais e relacionais, efica-
zes no ocultamento de um profundo racismo, mesmo quando ele não
é objetivado por meio da e na linguagem.9
Nessa década, ocorreu uma mudança radical na compreensão
da essencialização e a naturalização da raça; passou-se a compreender
o processo como uma construção sociohistórica, o que se faz pela im-
posição de regras sobre o fluxo migratório branco, para fins de bran-
queamento e atendimento à indústria nascente. Nesse ponto, vários
autores, como Corossacz, mostram como a ideologia da mestiçagem
se forjou como positiva porque foi captada em torno das idéias de de-
mocracia racial. Embora essa ideologia tenha construído dificuldades
importantes, a saber: na demarcação da interferência do racismo nas
condições de saúde das mulheres afrodescendentes; nas doenças di-
tas raciais, como a anemia falciforme; nas doenças advindas da pres-
são arterial; no ocultamento de certos tipos de fibromas, que atingiam
as mulheres africanas; no impacto das políticas de esterilização sobre
as mulheres afrodescendentes. E como muitos estudos têm demons-
trado, há que se considerar também outras formas de racialização das
relações: situações de racismo no meio hospitalar, quando do trata-
mento e do comportamento dos profissionais em relação a informa-
ção escassa dada à pessoas afrodescendentes, mesmo quando essas
pertencem a mesma classe social e possuem o mesmo nível de instru-
ção, são um exemplo disso.
Do ponto de vista histórico, ocorre no Brasil uma profunda gestão
social da reprodução e da sexualidade, que ocupa um espaço discursivo

221
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

de poder, de identidade social, de prazer e sofrimento, além de diferen-


tes espaços discursivos, onde homens e mulheres não estão em posi-
ções iguais e simétricas.
A década de 1930, com o desenvolvimento pós-guerra e, por par-
te do governo Vargas, manteve a tendência pró-natalista. Mesmo quando
no cenário internacional eram retomadas as teses do Reverendo Thomas
Robert Malthus (1766-1834), que alertava os perigos da superpopulação se
não houvesse o correspondente crescimento da produção de alimentos.
Forja-se, assim, o discurso de que a pobreza se devia ao número de pessoas
e não às práticas políticas de concentração de riqueza e estratificação da mi-
séria. A lógica malthusiana é tomada como referência para a discussão do
“planejamento familiar” que deveria ser, assim, gerenciado pelo Estado10.
Esse novo contexto retira do casal a possibilidade de gerenciar o nú-
mero de filhos como o faziam na Antiguidade, com o uso de alguns mé-
todos contraceptivos, tais como o pessário, as lavagens vaginais e o coito
interrompido. Na China, produziam-se preservativos feitos com folhas de
papel de seda untadas com óleo; os egípcios e cretenses o faziam desde
1600 a.C.; eles fabricavam seus preservativos com intestinos cozidos de
animais. Na entrada da Modernidade, Gabriel Fallopius (século XVI) inven-
tou um tipo de preservativo feito de linho. O século XVII (o Dr. Condom)
inventou um tipo de preservativo para o Rei Carlos II, da Inglaterra, que de-
sejava evitar o nascimento de filhos ilegítimos, feito com tripas de animais
(como a de carneiro). A partir da descoberta do processo de vulcanização
da borracha, os preservativos ou camisinhas passaram a ser fabricados com
esse material, tornando-os elásticos e melhor adaptáveis ao órgão peniano,
conferindo-lhe maior grau de eficácia. Em outras palavras, não se trata aqui
da inexistência de métodos contraceptivos – e isto desde a Antigüidade.
A questão passa pelo modo como se lançava mão deles e da forma como
o governo contou, ou não, com o apoio financeiro de diversas instituições
interessadas no controle demográfico, especialmente, dos países pobres e,
desse modo, restringindo a liberdade reprodutiva da mulher ou dos casais.
Em termos de reprodução humana e controle populacional, pode-se
afirmar que dos anos 1930 a 1980 o Brasil constituiu um tenso sistema de
políticas sociais, apoiado pela forte capacidade regulatória do Estado, com
a maior parte dos beneficiários restrita ao mercado formal e fortes vínculos
com o setor privado. Tratou-se este de um conjunto de ações meritocráti-
cas e estratificadas, assentado na lógica de expansão dos privilégios, que ao

222
marlene tamanini

mesmo tempo ampliava no plano jurídico institucional os direitos sociais e


aprofundava o fosso entre os que estavam habilitados para benefícios de
serviços sociais11.
A atenção à saúde da mulher ocorreu muito em função das políticas
globais de adestramento e regulação das populações. A Nova República as-
sumiu esse papel e, assim, ganharam prioridade ações dirigidas ao grupo
materno-infantil e as que contemplavam a assistência clínico-ginecológica e
educativa, o controle pré-natal, a assistência ao parto e puerpério, o incenti-
vo ao aleitamento materno, a prevenção do aborto provocado, abordagens
que se propunham a olhar para a mulher desde a adolescência até a velhice.
Incluía-se também o controle das doenças sexualmente transmissíveis e do
câncer cérvico-uterino e a assistência à concepção e à contracepção.
Com a campanha do movimento feminista norte-americano “nosso
corpo nos pertence”; viveu-se uma nova compreensão do valor da autono-
mia expresso no campo da sexualidade e da reprodução, o que implicava
incompatibilidade da regulação Estatal sobre o corpo das mulheres e o efe-
tivo exercício da cidadania. Nesse contexto, foi reativado o debate sobre a
reprodução humana e a questão se colocou no conjunto das discussões a
respeito dos direitos dos cidadãos, nos seus aspectos éticos, sociais e jurídi-
cos, suscitando medidas estatais que tendiam, nesse particular, ao exercício
de maior fiscalização e normatização das intervenções no campo da repro-
dução humana.
O regime militar brasileiro instigava o discurso de que a segurança
nacional estaria ameaçada pelo grande contingente de pobres e numero-
sas famílias, o que era reforçado por idéias eugênicas sobre a condição de
uma sub-raça brasileira. A participação das mulheres na luta contra a dita-
dura ocorria também na busca dos direitos civis e políticos, e alguns grupos
de mulheres, dentro da lógica de expansão desses direitos, foram, parale-
lamente, inserindo a discussão da sexualidade e da reprodução, ou seja, o
direito de ter ou não ter filhos e a relação com os serviços de saúde. Essas
reivindicações faziam com que as mulheres brasileiras processassem uma
ruptura com o clássico e exclusivo “papel social” que lhes era atribuído, im-
plicando a necessidade de repensar as relações sociais como um todo.
Essa nova perspectiva teve como respaldo o processo avançado da
reforma sanitária brasileira, que definiu a saúde como um direito do cida-
dão e um dever do Estado em provê-la, culminando com o surgimento, em
1983, do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM)12.

223
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

Hoje, o Programa de Saúde da Família é um retrocesso em relação a essas


concepções.
Ao mesmo tempo, nesse momento, temos no país a criação do pri-
meiro Conselho da Condição Feminina que tem como uma de suas pautas
a discussão do planejamento familiar. Paralelamente, existem políticas de
controle de natalidade, dentre outras práticas, que se conflitam com o in-
centivo à natalidade como forma de garantir a soberania estatal. Os partidos
de esquerda e os movimentos de mulheres seguem, por sua vez, apontan-
do críticas às políticas controlistas com a inserção da idéia de planejamento
e da sua associação à saúde. A substituição do termo “controle” por “plane-
jamento” implicou uma nova percepção da reprodução e da sexualidade
como questões desvinculadas da biologia, pois, inseriu a idéia de autono-
mia; o “natural”, e o “biológico” não são mais os justificadores das políticas,
bem como do Direito, surge o indivíduo como integrante de uma socieda-
de moral diversificada. A idéia de autonomia, porém, pressupõe liberdade
e direito de decisão, ou seja, capacidade. O que não era possível sem o ofe-
recimento, pelo Estado, de condições de escolha – serviços e a vinculação
direta dos direitos civis e políticos com os direitos sociais. O PAISM expres-
sou uma linguagem que, posteriormente, foi legitimada pela Constituição
Federal de 1988, e representada na Convenção do Cairo em 1994.
No Cairo, o conceito de cidadão é inserido nas relações com a vida
reprodutiva e sexual dos adolescentes, das mulheres solteiras, dos homens
e das pessoas de terceira idade, isto é, ampliado, incluindo questões de di-
reitos e deveres, sem condicionamentos religiosos, políticos, econômicos,
raciais ou sociais.
É importante destacar que tanto a Constituição Federal de 1988, no
que se refere ao planejamento familiar, quanto Cairo e Beijing refletem a
mobilização e as demandas dos movimentos sociais, gerando conseqüên-
cias concretas, principalmente, no perfil dos serviços oferecidos ou geren-
ciados pelo Estado. Desde então, vem crescendo a consciência de que cabe
ao executivo federal a função administrativa atuar, direta ou indiretamente,
na execução de programas ou prestação de serviço público.
Apoiar os estados e municípios, na Política Nacional de Atenção
Integral à Saúde da Mulher, é construir um consenso em torno da ne-
cessidade de se desenvolver políticas públicas de saúde da mulher, de
forma integrada, nos diversos níveis do sistema, buscando, assim, coe-
rência e sinergia entre elas. Desde que o Programa de Atenção Integral à

224
marlene tamanini

Saúde da Mulher (PAISM) foi concebido, as questões sobre a vida repro-


dutiva e sexual, no âmbito da saúde e dos direitos, vêm sendo objeto de
análises e, conforme Ávila13, demandar políticas sociais na área da saúde
é seguir uma visão de que os direitos reprodutivos e sexuais são parte
dos direitos sociais, por isso, tarefa do Estado como promotor de bem-
estar e de transformação social.
Outro fator determinante para a redefinição das relações sociais
foi a sexualidade. A partir dos anos 1960, a sexualidade deixou de ser
tratada exclusivamente pelas ciências da saúde e se tornou objeto de
estudo das ciências humanas. Não é que a sexualidade não tenha sido
abordada pela Sociologia ou pela Antropologia, desde seus primór-
dios.14 Mas, nessa década, com o desenvolvimento dos métodos contra-
ceptivos hormonais e, posteriormente, com o advento da epidemia HIV/
AIDS nos anos 80, deu-se um novo impulso aos estudos sobre a relação
entre reprodução e sexualidade e um esforço de desconstrução ou de
revisão da concepção “naturalizada” desta.
Nos anos 1980 e 1990, houve um significativo crescimento da
pesquisa e reflexão a respeito da sexualidade e da experiência sexual. As
razões desse crescimento são complexas, estando, sem dúvida, associa-
das ao conjunto de mudanças que vêm ocorrendo nas relações sociais,
principalmente, através dos vários movimentos sociais que se desenvol-
veram ao longo da década de 196015. Essa década se destaca pela visi-
bilização das condutas e da cultura gay e lésbica, pela perda do valor da
virgindade e liberação dos costumes no corpo feminino.
Em meados dos anos 1980, depois do Congresso Internacional de
Saúde e Direitos Reprodutivos, ocorrido em Amsterdã, (em 1984), houve
uma significativa expansão desse tema. A essas dinâmicas juntaram-se
às práticas dos movimentos sociais e a criação da Comissão de Estudos
sobre os direitos da Reprodução em fevereiro de 1986, a quem cabia
diagnosticar a situação da reprodução humana no Brasil. Enfocava-se
seus aspectos econômicos, políticos e éticos, propondo normas, instru-
mentos legais de intervenção e controle das ações relacionadas à re-
produção dos serviços referentes a ela. Essa proposta encontrou muitas
resistências por parte da corporação médica, que eram relacionadas à
reprodução dos serviços, à orientação, à contracepção e às pesquisas
tecnológicas na área, no sentido de dificultar um maior controle e fis-
calização do Ministério da Saúde e da Sociedade Civil. Dessa forma,

225
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

necessitou-se da intervenção do movimento feminista, porque o que


estava em jogo era a proteção da cidadã e o uso indiscriminado dos cor-
pos femininos como objeto de intervenção médica. A pauta de, então,
privilegiava denúncias das políticas demográficas em curso nos países
do hemisfério sul, ao mesmo tempo em que assinalava questões emer-
gentes, tais como o incremento das técnicas conceptivas nos países do
norte (hoje, claramente, entre nós também16). Essa conjuntura permitiu
também o surgimento de um novo discurso, baseado nos princípios do
direito à saúde, da autonomia das mulheres e dos casais e na definição
do tamanho de sua prole. Princípios éticos mais amplos, especialmente,
quando se tratava do corpo das mulheres no cerne da discussão sobre
direitos sexuais e reprodutivos. Fato que nos reporta ao que foi deline-
ado por Petchesky e Corrêa17, como componentes inegociáveis dos di-
reitos sexuais e reprodutivos, ou seja: integridade corporal, autonomia,
pessoal, igualdade e diversidade.
O princípio da igualdade segundo as autoras, se aplica aos direi-
tos sexuais e reprodutivos em duas esferas principais: as relações entre
homens e mulheres (sistema de gênero) e as relações entre mulheres
(condições como classe, idade, nacionalidade entre outras). Consideran-
do que historicamente as mulheres sempre foram relegadas a esferas
sociais inferiores – privadas e imbricadas diretamente com a reprodu-
ção – é preciso conceber os direitos a partir da leitura das relações de
poder.
Sobre o princípio de igualdade, é preciso dizer que não pode ser
aplicado numa perspectiva universalista abstrata. Faz-se necessário re-
conhecer que os direitos, aspirações e demandas variam segundo clas-
se, cultura, raça, etnia, questões que o feminismo da diferença tão bem
construiu. O princípio da diversidade, por sua vez, implica considerar
certos contextos culturais específicos e interpretá-los dentro do sentido
que eles produzem para suas práticas. No entanto, esse esforço de reco-
nhecimento do outro, da diversidade cultural e religiosa. Esse compro-
misso com o diálogo através da diferença não deveria significar um des-
lizamento na direção do relativismo cultural absoluto, principalmente,
quando está em jogo a dignidade de mulheres, crianças, idosos, ou seja,
pessoas humanas, em qualquer situação de vulnerabilidade social, emo-
cional, ou econômica, ou de orientação sexual. Práticas problematizadas
e que tocam esse princípio, poderiam ser lembradas. Como é o caso da

226
marlene tamanini

circuncisão, da infibulação, dos pés pequenos na China, mas também


o genocídio de meninas, ou as barbáries cometidas quando se trata do
uso do estupro de mulheres como armas em crimes de guerra, ou do
sexismo e homofobia, dentre outras. O quadro da autonomia pessoal,
quando tomamos por base o conceito de gênero, assume um significa-
do crítico. As mulheres devem ser ouvidas e respeitadas como sujeitos
humanos habilitados a tomarem decisões e, sobretudo, decisões éticas.
Sabemos por meio de várias pesquisas, assim como por meio da ex-
periência cotidiana, que esse é um dos princípios mais desrespeitados.
O fundamento da integridade corporal é fundamental para que uma
pessoa tenha direitos. A integridade corporal implica direitos afirmati-
vos para usufruir inteiramente de seu potencial corporal. Aqui podemos
lembrar o abuso sexual infantil, a violação sexual, a violência doméstica,
o assassinato. Também deveriam ser incluídas neste rol todas as práti-
cas relacionadas à reprodução no campo da tecnologia médica: as este-
rilizações sem consentimento, as cesáreas desnecessárias, os métodos
concepcionais de longa duração, o tratamento dado às mulheres nas
salas de parto, os procedimentos médicos invasivos, ou as tecnologias
conceptivas da reprodução humana, com suas várias implicações.
É ainda necessário dizer que o princípio da integridade corporal
está associado também ao direito à sexualidade prazerosa. Num con-
texto como o do Brasil, onde se evidencia a rápida “feminização” da epi-
demia de HIV/AIDS, o uso da camisinha não ultrapassa 3% do conjunto
da população usando métodos anticoncepcionais. Mulheres brasileiras
são informadas de que estão contaminadas pelo HIV depois do parto.
A idéia de que a AIDS se dissemina entre as trabalhadoras do sexo ou
entre as mulheres que usam drogas não é verdadeira, pois, registra-se
uma elevada incidência de HIV entre mulheres esposas, mães e donas
de casa.
O PAISM foi o que mais parece ter se aproximado do aperfeiçoa-
mento do conceito de integralidade no qual se reflete a oferta de prá-
ticas educativas que visavam, além da promoção da saúde, superar a
tradicional assimetria de poder entre usuários e equipe de saúde.
O programa de saúde da família e o programa de agentes comu-
nitários de saúde, a despeito de constituírem estratégias adequadas ao
enfrentamento da extensão de cobertura e da correção de iniqüidades,
quando tomados como ações únicas e isoladas do conjunto de outras

227
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

necessidades em saúde, tornam-se impróprios e ineficientes. Para as


mulheres, esses programas buscam apenas potencializar os serviços de
assistência básica à saúde (pré-natal, planejamento familiar e prevenção
do câncer de colo, por exemplo).
No presente, esse debate está sendo ampliado para se pensar
uma visão alternativa positiva dos direitos sexuais. Petchesky18 sugeriu
que esses ossem pensados a partir de dois componentes integrais e in-
terligados: um grupo de princípios éticos (a substância ou a finalidade
básica dos direitos sexuais) e uma ampla gama de condições capacitan-
tes. Os princípios éticos por ela apresentados incluem a diversidade se-
xual, a diversidade habitacional (as diversas formas de família), a saúde,
a autonomia para tomar decisões (autonomia como pessoa e a eqüida-
de de gênero como questões que me parecem válidas).
Outro fator que influenciou o aumento da pesquisa e a reflexão
a respeito da sexualidade foi o crescente interesse internacional em tor-
no de temas como população e desenvolvimento e a saúde reprodutiva
de mulheres e homens. A conquista do gerenciamento da reprodução
(métodos contraceptivos) contribuiu diretamente para separar a rela-
ção sexual da reprodução, alterando ou refletindo, significativamente,
na moral. Outro destaque é a pandemia do HIV/AIDS que interagiu, em
grande parte, com a construção de agendas em torno dos interesses
feministas e de gays e lésbicas19. Esses movimentos indicam uma mu-
dança nas práticas sexuais e a sua desvinculação da identidade sexual,
seguindo a lógica das categorizações sociais e pensando a sexualidade
por uma perspectiva de construção social: daí o direito à livre orientação
sexual20. Além disso, mudanças nas condições de vida da população21
contribuíram, também, para a transformação dos significados atribuídos
à concepção e à contracepção. Isso ressalta que as práticas reprodutivas,
assim como a sexualidade, além de serem episódios biológicos, estão
condicionadas por determinantes socioculturais, remetendo-se, assim,
ao campo da ética e do Direito.

O que vale ainda dizer sobre os Direitos Sexuais e Reproduti-


vos?
Hoje, esses desafios são enormes, podendo incluir uma série de pre-
ocupações, sendo a principal delas a reivindicação por autodetermi-
nação reprodutiva. O conceito de direitos sexuais e reprodutivos em

228
marlene tamanini

várias situações acabou por ser incorporado aos organismos estatais.


Também significou o uso de métodos contraceptivos pesados, como
a esterilização feminina, ou a cultura de buscar um filho a qualquer
preço, que se expressa nas práticas que estão se desenvolvendo com
muito investimento afetivo, emocional e econômico, a saber: práticas
referentes a tecnologias conceptivas que englobam a fertilização in
vitro, a inseminação artificial, a injeção intracitoplasmática de esper-
matozóide, o rejuvenescimento de óvulos, e até, como recentemente
em Curitiba, a campanha da Cegonha22. Essas práticas podem tanto
trazer em si a discussão sobre a medicalização do corpo da mulher e
os riscos para sua a saúde, quanto a do direito que as mulheres têm de
buscar ajuda médica e laboratorial para ter um filho.
O uso de métodos contraceptivos pesados tem suscitado inú-
meras polêmicas e os dados sobre isso nos fazem pensar a respeito:
por onde estão passando as questões da saúde reprodutiva, da liber-
dade e da autonomia, principalmente, das mulheres? E, dentre todas
essas questões, inclui-se as do câncer de colo de útero e de mama,
ou de próstata, que hoje passa a ser incluído como uma questão de
direito sexual e reprodutivo para os homens.
A partir dessa percepção, incorpora-se o princípio de que, na
vida reprodutiva, existem direitos a serem respeitados, mantidos ou
ampliados. Isso implica obrigações positivas para promover o acesso
à informação e aos meios necessários para viabilizar escolhas. O con-
ceito de direitos reprodutivos não é meramente explicativo, porquan-
to, imputa responsabilidades e ações diretas do Estado. Já no caso do
de direitos sexuais, ele significa que o Estado, além de ter que coibir
práticas discriminatórias que restrinjam o exercício do direito à livre
orientação sexual (tanto no âmbito estatal quanto das relações so-
ciais), não deve regular a sexualidade, bem como as práticas sexuais.
No Cairo, em 1994, a Conferência Internacional sobre População
e Desenvolvimento introduziu um novo paradigma à temática do de-
senvolvimento populacional, deslocando-se da questão demográfica
para o âmbito dos direitos reprodutivos e de desenvolvimento. Nessa
Conferência, ficou firmado o princípio de que as políticas relacionadas
à população devem ser orientadas pelo respeito aos direitos humanos
universais. A participação ativa do movimento internacional de mu-
lheres nas fases preparatórias, e durante a própria Conferência, per-

229
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

mitiram a legitimação da noção de direitos reprodutivos, apontando


a necessidade de amplos programas de saúde reprodutiva e reconhe-
cendo o aborto como um grave problema de saúde pública.
Em 1995, a Cúpula Mundial de Desenvolvimento Social, realiza-
da em Copenhague, deu ênfase à necessidade de erradicação da po-
breza, incluindo iniciativas destinadas a medir e a reduzir os impactos
sociais do ajuste econômico, especialmente, sobre as mulheres e crian-
ças. Ainda em 1995, em Beijing, foi realizada a IV Conferência Mundial
sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz, que incorporou as agendas
das Conferências de Direitos Humanos (de 1993), de População e De-
senvolvimento (de 1994) e da Cúpula de Desenvolvimento Social (de
1995), avançando e firmando, de modo definitivo, a noção de que os
direitos das mulheres são direitos humanos; a noção de saúde e di-
reitos reprodutivos, bem como o reconhecimento de direitos sexuais,
com a recomendação de que sejam revistas as legislações punitivas
em relação ao aborto, considerado um problema de saúde pública, tal
como na Conferência Internacional de População e Desenvolvimento,
anteriormente citada.
Os direitos reprodutivos, como direitos sociais, centram-se mais
na percepção da sua efetivação e garantia. As respostas para pergun-
tas como “Onde e como as pessoas se informam sobre métodos con-
traceptivos? A informação faz sentido, é eficiente? Quais são os para-
digmas nos quais as políticas de planejamento familiar estão calcadas?
Essas políticas contemplam a diversidade? Por que o Brasil ainda tem
índices tão alarmantes de cesarianas e esterilização de mulheres, e o
que essa informação denuncia? Por que a esterilização se concentra
em camadas populares e entre mulheres negras?” passam, invariavel-
mente, pela forma como o Estado desenvolve suas políticas e pensa os
direitos dos cidadãos.
Ao mesmo tempo em que o centro da questão circula em torno
do respeito aos direitos individuais de integridade, não discriminação,
dignidade humana, autonomia etc., há a necessidade de políticas re-
almente efetivas que viabilizem a garantia desses direitos, ou seja, o
modelo de política econômica adotada pode implicar maior ou menor
garantia dos direitos declarados, além de contribuir para a exclusão e
empobrecimento da população.

230
marlene tamanini

A compreensão da saúde reprodutiva como direito reprodutivo é


uma ponte ainda pouco utilizada. No entanto, o desafio trazido pelos di-
reitos sexuais e reprodutivos se concentra no fato de que não basta pen-
sar o seu reconhecimento, é necessário visualizar sua garantia. Assim,
impõe-se a difícil tarefa de conciliar no plano da saúde: direitos sociais e
difusos, autonomia e direitos individuais. Conceber os direitos sexuais e
reprodutivos como direitos humanos significa compreender o exercício
da sexualidade e da reprodução como inerentes à dignidade humana.
Todos os principais documentos que tratam dos direitos huma-
nos, desde a Declaração Universal de 1948, têm muito a dizer dos di-
reitos humanos das pessoas em suas vidas particulares e pessoais: ca-
sar e formar família, expressar suas crenças e religiões, educar os filhos,
ter respeitadas a sua privacidade e propriedade etc. No entanto, nada
consta no sentido de expressar e ter liberdade em sua sexualidade23. Ne-
nhum instrumento internacional relevante, anterior a 1993, faz qualquer
referência ao mundo da sexualidade. Antes dessa data, a sexualidade de
qualquer espécie e sua manifestação estava ausente do discurso inter-
nacional a respeito dos direitos humanos.
Segundo Samantha Buglione24 somente com a Conferência Mun-
dial sobre Direitos Humanos, de 1993, em Viena, houve, valendo-se dos
esforços dos movimentos sociais, a inclusão da questão da sexualidade.
A Declaração de Viena foi importante, não só pelo fato de reconhecer
a violência sexual como uma violação dos direitos humanos, mas, tam-
bém, porque finalmente se introduziu o sexual na linguagem dos direi-
tos humanos. Entretanto, foi apenas na Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento, que a sexualidade começou a aparecer
nos documentos internacionais como algo positivo, em lugar de algo
sempre violento, insultante, ou santificado e escondido pelo casamento
heterossexual e pela gravidez. Pela primeira vez em um documento in-
ternacional de direitos humanos, é incluída de modo explícito a saúde
sexual na lista dos direitos que devem ser protegidos pela população
e pelos programas de desenvolvimento. Contudo, a liberdade de ex-
pressão sexual e a orientação sexual jamais receberam reconhecimen-
to como um direito humano, nem na Conferência do Cairo, nem em
qualquer outra.
A Plataforma de Ação elaborada em Beijing, em 1995, avançou
alguns passos no sentido de formular um conceito referente aos di-

231
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

reitos sexuais como parte dos princípios dos direitos humanos. O que
inclui o direito a ter controle e decidir livre e responsavelmente sobre
questões relacionadas à própria sexualidade, incluindo a saúde sexual
e reprodutiva, livre de coação, discriminação e violência.
A autodeterminação e os direitos sexuais implicam tanto a liber-
dade de impedir intrusões indesejadas, violações e abusos, quanto a
capacidade de buscar e experimentar prazeres em uma variada gama
de modos e situações de experiências relativas à sexualidade.
Para melhor esclarecer que tipos de conteúdo têm os direitos
sobre os quais falamos, destacamos, conforme organizado por Chia-
rotti e Matus25, que direitos sexuais e reprodutivos incluem: a) o direito
de adotar decisões relativas à reprodução sem sofrer discriminação,
coerção ou violência; b) o direito de decidir livre e responsavelmente
o número de filhos e o intervalo entre seus nascimentos; c) o direi-
to de ter acesso a informações de métodos anticoncepcionais, meios
seguros (serviços) disponíveis, acessíveis e à toda a tecnologia dispo-
nível para ter ou não ter filhos; d) o direito de acesso ao mais elevado
padrão de saúde reprodutiva; e) a reprodução como direito de perso-
nalidade. Por sua vez, os direitos sexuais compreendem: a) o direito a
decidir livre e responsavelmente sobre sua sexualidade; b) o direito
a ter controle sobre seu próprio corpo; c) o direito a viver livremente
sua orientação sexual, sem sofrer discriminação, coação ou violência;
d) o direito a receber educação sexual; e) o direito à privacidade; f) o
direito a fruir do progresso científico e a consentir livremente com a
experimentação, com os devidos cuidados éticos recomendados pelos
instrumentos internacionais; g) o direito de ter a prática sexual desvin-
culada da gerência do Estado e da reprodução; h) a sexualidade como
direito de personalidade.
As últimas questões a que vou me reportar dizem respeito à
mortalidade materna e a esterilização de mulheres.
A mortalidade materna é um importante indicador de saúde, por
refletir as condições de assistência ao pré-natal, parto e puerpério, aos
aspectos biológicos da reprodução humana e às doenças agravadas ou
provocadas pelo ciclo gravídico-puerperal. Como mortalidade materna
se compreende a morte durante a gestação ou dentro de um período
de 42 dias após o seu término, independentemente da duração, ou da
localização da gravidez, devida a qualquer causa relacionada com, ou

232
marlene tamanini

agravada pelo estado gravídico, ou por medidas tomadas em relação a


ela, porém, não decorrente a causas acidentais ou incidentais26.
No Brasil, as mortes maternas correspondem a mais ou menos 6%
de óbitos das mulheres entre 10 e 49 anos, que poderiam ser evitadas
em 90% dos casos, com baixo custo e medidas simples na área da saúde.
Em todo o mundo morrem, anualmente, por causas maternas em torno
de meio milhão de mulheres; 99 % dessas mortes ocorrem nos países em
desenvolvimento27.
Para se ter uma idéia, nações bem menos desenvolvidas economi-
camente (o Brasil ostenta a oitava economia do mundo), como Tunísia,
Equador e Colômbia, têm melhores índices de atenção à gravidez e ao
parto que o Brasil. Segundo a OMS, a assistência à mãe no nosso país
está no nível de países paupérrimos como o Vietnã, Turquia e Irã.
Especialistas afirmam que – com vontade política somada a um
baixo investimento em recursos humanos – cerca de 80% das mortes
maternas em nosso país poderiam ser evitadas. As principais causas da
morte de gestantes se concentram na inexistência de um pré-natal de
boa qualidade e no atendimento tardio e precário. O Relatório de As-
sistência à Saúde (SAS), do Ministério da Saúde, mostra que no ano de
1996 foram realizadas 3, 5 milhões de consultas pré-natal no SUS: uma
freqüência média de 127,4 consultas para cada 100 partos. Isso represen-
ta pouco mais de uma consulta por parto, quando o mínimo deveria ser
a realização de seis consultas médicas e exames complementares para
cada gestação.
As quatro principais causas de morte materna no Brasil são: síndro-
mes hipertensivas, hemorragias, complicações do aborto e as infecções
puerperais, que são causas obstétricas diretas, responsáveis por 89% das
mortes maternas no Brasil28. As causas obstétricas diretas são mais evitá-
veis que as indiretas, pois, dependem da qualidade da assistência duran-
te o ciclo gravídico-puerperal.
Os problemas assistenciais ocorrem, principalmente, nas causas
hipertensivas e nas hemorrágicas, seja pela inexperiência do médico em
cuidar da doença, seja pela demora em admitir a gravidade do caso29.
No Brasil, em 1995, as mortes devidas às síndromes hipertensivas apa-
receram em 29% das declarações de óbito; as síndromes hemorrágicas,
em 17%; o aborto, em 9%; e as infecções puerperais, em 6% dos casos30.

233
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

Dentre as causas de morte materna não se pode esquecer que,


além das complicações anestésicas, as infecções e hemorragias estão
relacionadas à via de parto, principalmente, à cesariana e às conseqü-
ências do aborto.
Nesse contexto, vale destacar que a aprovação da Lei de Planeja-
mento Familiar no Brasil, em 1996, representou um momento marco para
a atual política nacional de direitos sexuais e direitos reprodutivos, pois,
esta lei é fruto das reivindicações e embates que tiveram lugar desde as
décadas de 1970 e 1980. Em 1997, também ocorreu a regulamentação
da Lei de Esterilização, com a elaboração de uma norma técnica especí-
fica sobre esterilização, visando garantir alguns procedimentos básicos
para a sua implementação.
A partir do ano 2000, pode-se dizer que cinco eventos são consi-
derados importantes. O pacto nacional pela redução de morte materna e
neonatal, em 2003 e 2006, trouxe à tona o debate a respeito da materni-
dade segura, dos anos 1980. Na primeira gestão do governo Lula, houve
uma grande preocupação da área técnica da saúde da mulher em ela-
borar normas técnicas que deixassem clara a posição do governo na for-
mulação e implementação das políticas públicas. Entre esses documen-
tos, que traçam as diretrizes mínimas preconizadas pela gestão, estão: a
Política Nacional de Direitos Sexuais e Reprodutivos, de 2005; a Norma
Técnica de Violência, de 1998 (versão da gestão anterior, atualizada em
2005); a Norma Técnica de Atenção ao Abortamento, de 2005.
Durante o ano de 2004 foi realizada a primeira conferência gover-
namental de políticas públicas para mulheres, precedida de uma articu-
lação nacional por meio de pré-conferências municipais e estaduais, que
resultou em um plano de ação que vem sendo implementado: Plano Na-
cional de Políticas para as Mulheres31. O fim do PAISM, em 2007, é uma
das críticas elaboradas por parte do Movimento Feminista à gestão do
governo Lula, no período do segundo mandato. Essa crítica é decorrente
da análise do orçamento da União e das rubricas/atividades que cons-
tam do Plano Plurianual 2008-2011, em comparação com o anterior, pois,
mesmo com todas as normas técnicas elaboradas e publicadas, não se
observam claramente discriminadas rubricas para custear as ações volta-
das para a saúde das mulheres32.
Nesse sentido, algumas ativistas e pesquisadoras do campo estão
decretando o fim do PAISM. Nesse conjunto de discussões, é preciso di-

234
marlene tamanini

zer que a saúde do homem começa a ser inserida gradativamente no


fórum das políticas públicas.
Essas discussões se configuram a partir de interesses de muitos
atores sociais, além do movimento feminista, encontram-se outros ativis-
tas sociais, vinculados a movimentos sociais diversos, como movimento
sanitarista, movimento estudantil, movimento negro, movimento pela
humanização do parto e movimento gay.
A Esterilização de mulheres é outra das questões históricas.
Esse método é o mais utilizado por mulheres heterossexuais, casa-
das no Brasil, considerando-se que, em 1996, 40,1% dessas mulheres já
haviam sido esterilizadas aos 28,9 anos de idade. Em 1996, no Brasil como
um todo, metade das mulheres unidas, com até dois filhos, (50%) estava
esterilizada; e com três, 66,4%. As taxas de esterilização são “mais do que
o dobro daquelas prevalentes nos países ricos”, e bem maiores também
que no terceiro mundo, onde 25% dos casais estariam esterilizados33.
Para alguns autores, a cultura da esterilização se relaciona com o
fato de ter se instalado no país a alta prevalência de partos cirúrgicos,
que representam quase 50% de todos os partos no país34. Tal prática se
agrava porque essas cirurgias são utilizadas para processos de esterili-
zação, como a ligadura de trompas, realizadas tanto por solicitação das
gestantes como por decisão do próprio médico. Um estudo desenvol-
vido no estado de São Paulo mostrou que a laqueadura era combinada
com o médico durante o pré-natal, antes do parto, ou mesmo durante o
parto e, em 32% dos casos, mulheres relataram terem engravidado ape-
nas para virem a ser esterilizadas durante o parto cirúrgico35. Quem de
nós ignora isso?
O aspecto mais negativo das laqueaduras no Brasil é, sem dúvida,
sua realização como fonte ilegítima de lucro; pois, além da exploração, tal
forma de prática nega a possibilidade de escolha, mesmo desse método
radical, num contexto de esclarecimento e dentro de uma perspectiva
de atenção à mulher e à sua saúde. Disso resulta que o número de partos
cirúrgicos e de hospitalizações é elevado, ao mesmo tempo em que uma
mulher, muitas vezes, precisa percorrer vários hospitais até conseguir
uma vaga para ser internada. É uma dificuldade que se apresenta muito
agravada, se o parto é de risco, é porque a cobertura pré-natal não ga-
rante o devido referenciamento a ele, até pela simples carência de leitos
hospitalares36.

235
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

Bom, conforme você mesmo já deve ter concluído, isso já fere o direi-
to básico, de ser atendido e o direito básico de cuidado à saúde. A Constitui-
ção de 1988, em seu artigo 196, afirma:“a saúde é direito de todos e dever
do Estado”. Esse princípio está sendo ferido, quando no Brasil coexiste uma
alta medicalização da gravidez e do parto, com elevadas taxas de mortali-
dade materna e infantil, contrariando o esperado, ou seja, que, junto com a
queda da fecundidade, altas prevalências de assistência pré-natal e ao parto
favoreçam a redução daquelas taxas. A esterilização não se encontra crimi-
nalizada no Código Penal, e os que defendem a sua criminalização dizem
que se trata de uma lesão corporal de natureza gravíssima, porque resulta
em perda, ou inutilização de membros, sentido ou função. Nessa linha, con-
sideram a esterilização como um dano, uma lesão à função reprodutora da
mulher, tal ato seria passível de punição, e a pena aplicável seria de 2 a 8
anos. Assim, a esterilização cirúrgica seria passível de enquadramento nos
crimes de lesão corporal com perda de função, ou exposição da vida e da
saúde de outra pessoa. Por esses motivos, até há bem pouco tempo, ela foi
utilizada para fins de campanha eleitoral, ou com finalidades mercantilistas,
segundo Brauner37.
A lei n. 9. 263/96 cria uma previsão legal para esse procedimento,
desde que a pessoa tenha capacidade civil plena e mais de 25 anos, ou te-
nha pelo menos 2 filhos vivos. Também é permitido o procedimento, se
houver risco de vida ou à saúde da mulher, ou do concepto, atestado por
dois médicos. Além disso, é necessário um registro expresso da vontade, em
documento escrito e firmado após informações dos riscos e efeitos da cirur-
gia, observando-se ainda que deva existir um tempo de até 60 dias, entre a
manifestação de vontade e o ato cirúrgico. Se existe sociedade conjugal, é
preciso a manifestação expressa dos cônjuges, o que configura um envolvi-
mento relacional nas decisões reprodutivas. A lei não autoriza a esterilização
cirúrgica da mulher durante o parto, podendo ser realizada somente em ca-
sos de grande necessidade. Além disso, todo ato de esterilização cirúrgica
necessita ser notificado à direção do Sistema Único de Saúde38.
Esses pressupostos já são avanços significativos, mas uma CPI, pre-
sidida em 1993, por Benedita da Silva, revelou que no Brasil havia esterili-
zação em massa das mulheres - um contexto perverso, que não permitia à
mulher outras alternativas – e um percentual significativo de esterilizações
realizadas durante as cesarianas – que também eram indicadas com o obje-
tivo de realizar a laqueadura tubária.

236
marlene tamanini

Esses dados são indicadores de grandes desigualdades de gênero.


O modo como os corpos das mulheres vêm sendo tratados em algumas
situações está longe de qualquer declaração sobre direitos humanos.
Quem dirá sobre direitos reprodutivos e sexuais, enquanto liberdade, di-
reito à assistência, atendimento e informação, autonomia e escolha. Ago-
ra, a grande questão é por que se fala tão pouco a respeito disso? Será que
as mulheres podem continuar com esses sofrimentos e se considerar que
está tudo bem? É possível começarmos a tratar dessas questões, em sala
de aula? Como e quando?
A pílula, o segundo método mais usado, é o que apresenta maior
índice de abandono da parte dos serviços e do Estado: quase 80% das
mulheres já o utilizaram alguma vez em suas vidas39. Em geral, as mulhe-
res utilizam a pílula antes de se decidirem pela laqueadura de trompas;
por isso, é um método que entra na vida da mulher por um tempo e pode
apresentar problemas como obesidade, varizes, insônia, problemas circu-
latórios, como também, segundo já foram relatados, casos de câncer pro-
vocados pelos anticoncepcionais injetáveis, como é o caso do Norplant40.
Ligada à auto-administração do medicamento, a interrupção do
uso do contraceptivo hormonal oral é determinada pela alta incidência de
efeitos colaterais desagradáveis e indesejados, expondo a mulher a uma
gravidez indesejada, na falta de orientação de médico ou de serviços de
saúde.
Essa discussão se insere no contexto das discussões sobre planeja-
mento familiar como um conjunto de ações de regulação da fecundida-
de que garanta direito igual de constituição, limitação ou aumento da
prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal.
A Constituição brasileira em seu artigo 3o afirma que o planeja-
mento familiar é um conjunto de ações de atenção integral à saúde às
mulheres, ao homem e ao casal, obrigando as instâncias gestoras do SUS
a garantir tais ações e programas de atenção integral à saúde, que inclu-
am, entre outras atividades básicas, a assistência à concepção e contra-
cepção, o atendimento pré-natal, a assistência ao parto, ao puerpério e
ao neonato, o controle das doenças sexualmente transmissíveis, o con-
trole e prevenção do câncer cérvico-uterino, do de mama e de pênis.
A constituição Federal de 1988, em seu artigo 226, inciso 7, declara
que o planejamento familiar está fundado nos princípios da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsável e que compete ao Estado

237
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direi-


to, vedando qualquer forma coercitiva por parte de qualquer instituição,
seja privada ou pública. O problema é que essa regimentação de direi-
tos esbarra na concepção de que planejamento familiar é regulação dos
nascimentos, da contracepção, esterilização e de todos os outros meios
que agem diretamente sobre as funções reprodutivas do homem e da
mulher. Talvez não tenhamos a consciência desse direito, mas, devido ao
que trata a nossa constituição, existe a possibilidade de acionar o Estado
diante da morte materna evitável, para que ele faça a garantia do direito
social à saúde, isso também, por causa da lei de planejamento familiar, Lei
9263/96.
Cabe lembrar que 74% das esterilizações no Brasil são realizadas no
momento do parto, das quais 80% em um parto cesáreo.41 Entre as medi-
das adotas pelo Ministério da Saúde para reverter esse quadro, face aos
riscos de saúde à mulher e os custos do Estado, estão o aumento em 30%
para os médicos que fizerem parto, a equiparação de enfermeiras obsté-
tricas, e o limite de 40% de cesáreas por hospital.
A vinculação entre escolaridade e esterilização ressalta que a que-
da da fecundidade está associada à generalização do conhecimento e do
uso de métodos contraceptivos na sociedade brasileira. Apesar de os anos
mais recentes simbolizarem uma maior diversidade dos métodos contra-
ceptivos, a esterilização continua sendo o método mais freqüente.42 Por
outro lado, a idade média das mulheres que se esterilizam diminuiu de
31,4 anos, em 1986, para 28,9 anos, em 1996, indicando um aumento de
precocidade na decisão de não mais procriar.43 Os argumentos a favor da
esterilização se baseiam em inúmeros fatores, entre os quais se destacam:
a) a falta de outras opções contraceptivas; b) a sua eficácia contraceptiva;
c) a não verificação de efeitos imediatos sobre a saúde das mulheres; d) a
sua característica de atuar sem a necessidade de controle diário.
É inócuo desvincular a prática de esterilização das mulheres bra-
sileiras das desigualdades sociais existentes no país. As regiões mais po-
bres do país, por exemplo, são as que têm as mais altas taxas de esteri-
lização e estas aumentam conforme diminui os anos de escolarização,
mostrando-nos o alcance dessa prática entre as camadas mais pobres
da sociedade.44 Ainda há o agravante relacionado às dificuldades que
ainda enfrentam as redes públicas de saúde em oferecerem um serviço
integral de anticoncepção, acabando por colocar muitas mulheres dian-

238
marlene tamanini

te de uma perigosa encruzilhada: esterilização, aborto clandestino ou


gravidez não planejada45.
A partir da lógica dos direitos reprodutivos, o debate a respeito
da esterilização feminina no Brasil levantou vários problemas, num pri-
meiro momento, com o caráter de denúncia contra o crescimento ine-
xorável do fenômeno, resultado das práticas políticas controlistas de
natalidade, ressaltando: a) sua aplicação como política de controle do
crescimento das populações mais pobres no país e/ou da raça negra;
b) sua associação com partos cesáreos; c) o desconhecimento de suas
conseqüências para a saúde das mulheres; d) seu caráter definitivo e o
arrependimento que pode provocar; e) o distanciamento das mulheres
esterilizadas do funcionamento reprodutivo de seus corpos. Isso refor-
çou uma redefinição das práticas do Estado, facilitando a incorporação
de políticas condizentes com o princípio da dignidade da pessoa huma-
na, que ocorreu, inicialmente, com o programa de assistência à saúde
da mulher: PAISM.
Em 1996 a esterilização voluntária foi regulamentada pela Porta-
ria 144/96 e, posteriormente, pelas Portarias 048/98 e 085/99, com base
na Lei 9.263/96 que regulamenta o parágrafo 7º do artigo 226, da CF/88.
Dessa forma, a esterilização passa, por lei, a ser oferecida pelo Sistema
Único e Saúde (SUS), podendo ser feita em qualquer um dos mais de
seis mil hospitais públicos e afiliados do SUS. O procedimento deverá
ser feito gratuitamente, configurando-se como direito de homens e mu-
lheres, com mais de 21 anos de idade e que tenham pelo menos 2 filhos
vivos, ou acima de 25 anos de idade, mesmo sem filhos, podem optar
por esse método de contracepção. Em ambos os casos a pessoa tem que
manifestar a sua vontade por escrito, pelo menos dois meses antes do
procedimento; quando um casal estiver envolvido, o consentimento de
ambas as partes é requerido.
A lei proíbe, ainda, a esterilização no período do parto e aborto, e
por meio de histerectomia (remoção do útero, em extensão variável) e
ooforectomia (extirpação de ovário em extensão variável), embora sai-
bamos que por vezes acontece. O artigo 12 da lei proíbe a indução ou
instigamento individual ou coletivo à prática da esterilização cirúrgica.
O art. 13 reafirma a proibição existente na Lei 9.029/95 de se exigir ates-
tado de esterilização ou teste de gravidez para quaisquer fins. No capí-
tulo II, artigos 15 a 21, a lei cuida dos crimes e penalidades, para o caso

239
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

de descumprimento das previsões nela contidas. Passam a ser crimes: a)


a omissão por parte do médico de notificação à autoridade sanitária das
esterilizações cirúrgicas que realizar, art. 16; b) induzir ou instigar dolo-
samente a prática de esterilização cirúrgica, art. 17; c) exigir atestado de
esterilização para qualquer fim, art. 18.
Acredito que este mapeamento pode nos dar uma idéia dos inú-
meros desafios envolvidos nessa temática, sem contar que cada aspec-
to desses merece uma teia de relações e amarrações que se conduzem
para os problemas específicos neles envolvidos.

Notas
1 DAL FARRA, Maria Lúcia, 2006.
2 IDEM, 2006, p.363
3 IBIDEM
4 Informação retirada de correspondência pessoal
5 SCOTT, Joan W.,1994.
6 SCOTT, Joan W. 1994; RAGO, Elisabeth Juliska, 2000.
7 Laboratório, embriões, mães, médicos e éticas, apresentado no Simpósio Temático: Aborto
e tecnologias reprodutivas conceptivas: reprodução humana e sua interface com as dinâmi-
cas sociais, coordenado por mim e por Rozeli Porto.
8 PELUSO, Cezar. VOTO. Disponível em: <http://conjur.estadao.com.br/static/
text/66801?display_mode=print>. Acesso em: 19 jun. 2008.
9 TAMANINI, Marlene, Livro 120, lista 38 - Resenha para a revista Lusotopie. Livro de Valeria
Ribeiro Corossacz, Identité nationale et procréation au Brésil: Sexe, classe, race et stérilisa-
tion féminine. Paris: L’Harmatan, 2004, 180 p. (no prelo).
10 A teoria malthusiana argumenta também que o aumento da natalidade leva a um dese-
quilíbrio econômico, posto que a produção de riquezas e bens é mais lenta que o aumento
da população. Esta seria a causa da miséria. Portanto, se houvesse uma preponderância do
desejo e da paixão que não levasse em conta a questão financeira, a tendência seria uma
condição econômica bastante desfavorável. Em contrapartida, o casamento tardio ou o ce-
libato propiciariam um tempo maior para produção de trabalho e riqueza, enquanto a taxa
populacional permaneceria estável.
11 CANESQUI, 1986; DRAIBE, 1993.
12 O PAISM foi fruto da articulação e organização do movimento de mulheres frente à forma
como se dava a assistência à saúde da mulher: uma política que reiterava uma pré-dispo-
sição da mulher à reprodução alienando outras questões de sua saúde. A percepção de
integralidade nada mais é do que o resultado de que a reprodução não é uma dádiva ou um

240
marlene tamanini

dom natural, mas parte do exercício da cidadania. Há uma inversão da relação reprodutiva,
esta deixa de ser o principal adjetivo da mulher para ser parte da sua humanidade. A repro-
dução começa a ser percebida como algo de foro individual, devendo habitar no universo
dos direitos civis. Além disso, esta linguagem representa um rompimento nas relações en-
tre o Estado “controlista” de natalidade para o de “planejamento”, o que implica numa ação
substancialmente provedora de informações e acesso, ou seja, incrementando o princípio
da cidadania que só se viabiliza através da autonomia.
13 ÁVILA, 2003.
14 Na antropologia sempre houve um grande interesse pela descrição das práticas sexuais
dos diversos grupos humanos, ou seja, estudar a sexualidade como esta se inseria no con-
junto das regras que regulavam a reprodução biológica e social de uma dada comunidade.
A sociologia também contribuiu com importantes pesquisas sobre o comportamento sexu-
al da população. (HEILBORN; BRANDÂO, 1999)
15 Crescimento do movimento feminista, gay e lésbico na década de 1960 e sua afirmação
ao longo dos anos 70 e 80, do mesmo século, principalmente ao se introduzirem como pau-
ta nos estudos das Ciências Sociais e no Direito.
16 TAMANINI, Marlene. 2008; TAMANINI, Marlene; PARZIANELLO, Diógenes, 2008.
17 CORRÊA, Sônia; PETCHESKY; Rosalind, Pollack, 1996.
18 IDEM
19 BARBOSA, Regina Maria; PARKER, Richard, 1999.
20 Op. cit.
21 Por exemplo: a crescente entrada da população feminina no mercado de trabalho, trans-
formação das práticas sexuais, desenvolvimento e disponibilidade de tecnologias anticon-
ceptivas, expansão dos modernos sistemas de comunicação etc.
22 Desenvolvida por conhecido Centro de Reprodução Humana assistida em convênio
com o Hospital de Clínicas.
23 PETCHESKY, Rosalind Pollack, 1996.
24 BLUGIONE, Samantha, 2002.
25 CHIAROTTI, Susana; MATUS, Verônica, 1997.
26 MEDICI, André Cezar, 1999.
27 ARAUJO, Maria José Oliveira de., 2002.
28 DataSUS, 2000.
29 Bouvier-Colle e cols, 2000.
30 Ministério da Saúde, 1998.
31 BRASIL, 2004
32 CFEMEA, 2007

241
direitos sexuais e reprodutivos: a reprodução, a sexualidade e as políticas

33 BEMFAM,1996.
34 IDEM
35 BERQUÓ, 2002.
36 BERQUÓ, 1999.
37 BRAUNER; Crespo, Maria Cláudia, 1998.
38 BUGLIONE, Samantha, 2002.
39 BEMFAM,1996.
40 ISRAEL; DACACH,1993.
41 BEMFAM, et al., 1997.
42 Em 1996, 40% das mulheres em união estavam esterilizadas, e 21% utilizavam pílulas
anticoncepcionais. O condom (camisinha) é o terceiro método mais utilizado (BEMFAM et
al., 1997).
43 BEMFAM et al., 1997.
44 59,5% de mulheres unidas estão esterilizadas na região Centro-Oeste, e 51,3% na re-
gião Norte, contra 29,0% na região Sul; 45,7% das mulheres com nenhuma escolarização
estão esterilizadas, contra 35,7% das mulheres com 12 anos de escolarização (BEMFAM et
al., 1997).
45 BERQUÓ, Elza, 1999.

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245
toni reis

12
HOMOFOBIA E A ESCOLA

Toni Reis1

Resumo
A escola é um ambiente detentor de um potencial que pode tornar a
sociedade mais solidária e justa, por meio de uma educação voltada
para a cultura da paz e ao respeito aos direitos e diversidade humana,
entre outros fatores que são capazes de produzir uma transformação so-
cial positiva. Por outro lado, a escola também é um lugar que, não raras
vezes, reproduz valores que estigmatizam quem é diferente do padrão
convencionalmente aceito pela sociedade em geral, normatizando e
enraizando na concepção de mundo dos estudantes em formação pre-
conceitos que podem levar à rejeição e até à discriminação de quem
foge à regra. Mas a escola também não é estanque, isolada ou livre da
influência da sociedade ao seu redor. Ela também é um reflexo da cultu-
ra predominante e muitos entendem que a escola tem justamente o pa-
pel de perpetuar os valores e “bons costumes” que se acreditam serem
corretos. Os estudantes na escola, bem como pessoas fora dela – que
de alguma forma não se encaixam no padrão imaginado, dependendo
do grau de não-conformidade – podem sofrer diferenciação, humilha-
ção e até rechaço social. Exemplos claros incluem pessoas com defici-
ência, pessoas com características consideradas “esquisitas” e pessoas
com orientação sexual e identidade de gênero diferentes daquelas im-
postas pelo padrão heteronormativo. Esse é o caso de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais [LGBT]. É comum ouvir relatos de pes-
soas, notadamente aquelas cuja orientação sexual e/ou identidade de
gênero “diferentes” se manifestam de maneira mais marcada, como no
caso de travestis e transexuais (de ambos os sexos), que abandonaram
a escola por não suportar a discriminação sofrida. Pior ainda é que, em
muitos desses casos, esse processo vem acompanhado da expulsão da

247
homofobia e a escola

família, da impossibilidade de encontrar emprego, podendo levar à to-


tal marginalização já muito cedo na vida. Aqueles que têm orientação
homossexual ou bissexual, mas que não aparentam ser gay ou lésbica,
por exemplo, já que não correspondem aos estereótipos comumente
associados aos homossexuais, podem se submeter ao isolamento so-
cial, levar uma vida de disfarce ou até não se aceitar, devido ao medo
de sofrer essa mesma discriminação. A organização da comunidade
LGBT, em associações ou grupos menos formais, representa uma pos-
sível resposta a muitos dos problemas enfrentados por esses segmen-
tos da população. Por meio da organização, é possível influenciar po-
líticas públicas, especificamente, políticas de educação, a fim de que
se elaborem currículos escolares voltados ao respeito à diversidade,
inclusive, sexual, e para que se capacitem os docentes quanto a como
lidar com a diversidade sexual na escola. Em alguns países, já faz parte
da rotina escolar convidar associações LGBT na abordagem dessa te-
mática. Afinal, a educação é a principal ferramenta para promover um
mundo mais justo e igualitário.
Palavras-chave: Associações LGBT; educação; estigma; diversidade
sexual.

Introdução
A escola é um lugar privilegiado para promover a cultura do respeito
às diferenças, à diversidade e da inclusão social, rumo a uma verdadei-
ra democracia em que todos os cidadãos e cidadãs possam conviver
com igualdade e sem discriminação.
O papel da escola e das pessoas que trabalham na área da edu-
cação nesse processo é fundamental. É por meio da educação que a
promoção desses tipos de cultura pode acontecer de forma mais efeti-
va, moldando novos valores e atitudes de respeito e paz, desconstruin-
do velhos e arraigados preconceitos, formando cidadãos e cidadãs que
constituirão uma sociedade mais justa.
A homossexualidade ainda é um tema cercado de preconceitos
em nossa sociedade. O preconceito, de modo geral, surge em razão de
falta de conhecimento – sendo essa uma lacuna que compete à escola
preencher. O preconceito, quando colocado em prática, transforma-se

248
toni reis

em discriminação que, inclusive, marginaliza as pessoas cuja sexuali-


dade é diferente da “ortodoxa”.
Na pior das situações, a conseqüência dessa discriminação da
sexualidade não ortodoxa é a expulsão pela família, a rejeição pelos
colegas, a evasão escolar, a resultante falta de qualificação para o mer-
cado de trabalho, a discriminação na busca por emprego e, para al-
guns, a prostituição, como uma última alternativa de sobrevivência,
considerando-se toda a vulnerabilidade social e pessoal que essa situ-
ação acarreta.
Menos visível, mas não menos pesado para muitas lésbicas,
gays, bissexuais, travestis e transexuais [LGBT], é o isolamento social
decorrente da reação de outras pessoas do convívio social diante da
homossexualidade, ou, ainda, do próprio medo de se assumir como
homossexual, preferindo o afastamento social ou a ocultação da pró-
pria orientação sexual à temida rejeição.

Entendendo atitudes atuais contrárias à homossexualidade com


base na história
Pode-se dizer que a cultura predominante no Brasil, com exceção dos
povos pré-colombianos, é “ocidental”, significando que os valores e os
costumes que prevalecem hoje derivam de uma construção milenar,
originados nas sociedades da Antigüidade Clássica, incluindo gregos,
romanos e nações da região da Palestina. Essa cultura consolidou-se
na Europa medieval e, a partir das grandes navegações, estabeleceu-se
também nas Américas com a colonização, iniciada século XVI. As atitu-
des que existem hoje em relação à sexualidade em nosso país refletem
as formas como a homossexualidade tem sido vista, tomando-se por
base a ótica ocidental.
Historicamente, houve culturas, como nas da Grécia e da Roma da
Antigüidade (portanto, há mais de 2000 anos), em que os relacionamen-
tos homossexuais, ainda que não tivessem esse nome, eram permitidos,
porém, somente se estivessem de acordo com regras sociais rigorosas.
Por exemplo, os gregos da Antigüidade permitiam relações homossexuais
entre homens mais velhos e adolescentes, relações estas vistas em parte
como uma forma de transmissão de sabedoria. Relacionamentos homos-
sexuais afetivos entre homens também eram relativamente comuns entre
soldados em determinadas regiões da Grécia, como Esparta e Tebas.

249
homofobia e a escola

Da mesma forma, a homossexualidade feminina, naquela época,


existia de maneira aberta na Grécia, conforme relatos da poetisa Safo
(610-580 a.C.), cuja obra fala de amor entre mulheres. Safo vivia na Ilha
de Lesbos, onde existia uma forte cultura de convivência entre mulhe-
res. Essa é a origem da palavra “lésbica”.
Entre os romanos da Antigüidade, a homossexualidade não era
reprovada, mas também existiam regras. Um senhor, por exemplo, não
podia ser sexualmente passivo com seu escravo. Já em outras cultu-
ras, da mesma época da história, a homossexualidade era reprovada,
como no caso dos Hebreus2 e outros povos que viviam na região que
hoje conhecemos, principalmente, como Israel.
Na Europa, à medida que as sociedades clássicas – principal-
mente a grega e a romana – entraram em declínio e perderam seus
impérios e o poder político-econômico, suas culturas de aceitação
da homossexualidade também se perderam no tempo. No seu lugar,
construíram-se gradativamente, no decorrer de séculos, culturas de
reprovação e também uma concepção cristã da homossexualidade
como pecado.
Em determinados momentos da história, vários países europeus
passaram a criminalizar atos homossexuais. Um exemplo importante
disso foi a sanção, em 1533, da Lei da Sodomia3 (Buggery Statute) na In-
glaterra, que criminalizou as relações sexuais entre homens; entre um
homem e um animal e entre uma mulher e um animal – a lei foi omissa
em relação ao sexo entre mulheres. Essa lei vigorou até 1861, quando
a pena passou a ser a prisão perpétua. A criminalização de atos sexuais
entre homens na Inglaterra só foi revogada em 1967, após mais de 400
anos. Essa forma de legislação se replicou na maioria das colônias bri-
tânicas, inclusive na América do Norte e no Caribe (Jamaica, Trindade
e Tobago, entre outros países).
Dessa forma, as culturas de repressão à homossexualidade, em
particular à masculina, vigente nos principais países responsáveis pela
colonização do Novo Mundo, inclusive Portugal e a Espanha, instala-
ram-se aqui junto com os colonizadores.
Contudo, o Brasil já tinha seus habitantes indígenas muito antes
da chegada dos europeus. Luiz Mott, ao tratar dos encontros dos cro-
nistas coloniais com os indígenas, informa:

250
toni reis

É incorreta a suposição de que índios (...) ostentassem (...) uma conduta se-
xual homogênea. O correto é falarmos de “sexualidades indígenas...” posto
coexistirem, lado a lado na Ameríndia (...) centenas e centenas de padrões
sexuais completamente diversos e às vezes antagônicos. Em comum, po-
demos detectar duas macro-tendências: a enorme diversidade estrutural
destas sexualidades e uma menor rigidez repressiva (...). Não só os Tupi-
nambás, como diversas outras tribos nas três Américas, abrigavam em suas
aldeias grande número de “invertidos sexuais” de ambos os sexos, chaman-
do aos homossexuais masculinos de “tibira” e às lésbicas de “çacoaimbegui-
ra”. (MOTT, 2007a)

Assim, enquanto a prática homossexual já aparecia com naturalida-


de no Brasil entre alguns povos indígenas, a cultura do colonizador em rela-
ção à homossexualidade foi fortemente repressora, inclusive com a punição
dos “sodomitas” pela inquisição portuguesa.
No Brasil, com o fim da Inquisição e por influência do Código de Na-
poleão, a “pederastia”4 deixou de ser um pecado passível de penalização, e
aos poucos passou a ser tratada como doença (MOTT, 2007b).

A repressão sexual
A partir do século XVIII, os Estados europeus também começaram a estabe-
lecer padrões e normas no que diz respeito à moralidade sexual e ao con-
trole sobre as ações da população. Marilena Chauí descreve o surgimento
desse papel do Estado da seguinte maneira:

O sexo, que até então era da responsabilidade de teólogos, confessores, mo-


ralistas, juristas e artistas, foi deixando de pertencer exclusivamente ao campo
religioso, moral, jurídico e artístico e de concernir apenas às exigências da vida
amorosa (conjugal e extraconjugal) para começar a ser tratado como problema
clínico e de saúde. Ou seja, passou a ser estudado e investigado num contexto
médico-científico preocupado em classificar todos os casos de patologia física
e psíquica, em estudar as doenças venéreas, os desvios e as anomalias, tanto
com finalidade higiênica ou profilática quanto com a finalidade de normaliza-
ção de condutas tidas como desviantes ou anormais. (1991, p.16)

Iniciou-se, então, um processo de repressão sexual por parte do Esta-


do. A expressão do que é considerada uma sexualidade correta passa a ficar
cada vez mais padronizada, mais restritiva. Cerceia e impõe normas univer-
sais incompatíveis com a singularidade inerente à sexualidade das pessoas.
Chauí define a repressão sexual como sendo:

251
homofobia e a escola

O sistema de normas, regras, leis e valores explícitos que uma sociedade es-
tabelece no tocante a permissões e proibições nas práticas sexuais genitais...
Essas regras, normas, leis e valores são definidos explicitamente pelo direito
e, no caso de nossa sociedade, pela ciência também. (1991, p. 77)

A homossexualidade, a Medicina e a Psicologia


Somando-se à reprovação histórica da homossexualidade – essa no
sentido de pecado e crime – houve também um período em que a ho-
mossexualidade foi vista como doença, especialmente, a partir da se-
gunda metade do século XIX. Esse entendimento foi oficializado pela
Organização Mundial da Saúde entre 1948 e 1990, período em que
classificou a homossexualidade como um transtorno sexual. Nos anos
1950, em particular nos Estados Unidos, era comum o tratamento de
homossexuais por meio de choques elétricos, na tentativa de mudar
sua orientação sexual, e transformá-los em heterossexuais.
No Brasil, em 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Me-
dicina transferiu o diagnóstico de ‘homossexualidade’ [302.0] da ca-
tegoria de ‘desvios e transtornos sexuais’ [301] para a de ‘outras cir-
cunstâncias psicossociais’ [V.62], todas categorias estabelecidas pela
Classificação Internacional de Doenças (CID, 9ª revisão, 1975, apud
OLIVEIRA, 1985).
Em 17 de maio de 1990, a 43ª Assembléia Geral da Organização
Mundial da Saúde aprovou a retirada do código 302.0 (homossexuali-
dade) da Classificação Internacional de Doenças. A nova classificação
entrou em vigor entre os países-membro das Nações Unidas, inclusive
no Brasil, em 1993, de modo que a homossexualidade não é mais con-
siderada doença pela Medicina desde então.

A homossexualidade na atualidade
Em suma, embora a homossexualidade tenha existido com naturalida-
de em várias culturas da Antigüidade e também entre determinadas
tribos nas Américas, na história da cultura ocidental, ela tem sido con-
siderada pecado, crime e doença. É relativamente recente o reconhe-
cimento oficial pela Medicina da homossexualidade como mais uma
forma das múltiplas expressões da sexualidade, quando comparada
com sua milenar reprovação.

252
toni reis

Observamos com isso que as atitudes contrárias à homossexualida-


de estão fortemente arraigadas em nossa sociedade e que somente por
meio de uma educação que ensine o respeito à diversidade e às diferen-
ças os LGBT poderão assumir, gradativamente, seus postos de cidadãs e
cidadãos plenos na sociedade brasileira.
Atualmente, embora tenham os mesmos deveres, os LGBT no Brasil
não são tratados com igualdade no que se refere a determinados direitos,
a saber: o direito de ter a união civil reconhecida, o de adotar crianças na
condição de casal homossexual, o de herdar o patrimônio de seu parcei-
ro ou parceira em caso de falecimento ou de ser-lhe curador quando um
companheiro ou companheira é declarado judicialmente incapaz.
Como o censo demográfico não identifica a orientação sexual da
pessoa, não se tem uma estatística oficial a respeito do tamanho da po-
pulação homossexual ou bissexual no Brasil. Tomando-se por base uma
amostra da população norte-americana, estudada por Kinsey (1948), o
pesquisador avaliou que 10% da população são homossexuais. Em outra
pesquisa, realizada sobre atitudes e práticas na população brasileira, em
2004, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2006) estimou em 3,2% a população
homossexual masculina na faixa dos 15 a 49 anos apenas, de modo que,
tomando o restante da população masculina, e acrescentando a popula-
ção feminina, essa taxa parece corroborar a estimativa feita por Kinsey,
sendo esse um dado mais recente e mais próximo da realidade brasilei-
ra. Dessa forma, é possível que a população homossexual no Brasil seja o
equivalente a 18 milhões de pessoas.

Homofobia, lesbofobia e transfobia


Apesar do reconhecimento da homossexualidade como mais uma ma-
nifestação da diversidade sexual, os LGBT ainda sofrem cotidianamente
as conseqüências da homofobia, lesbofobia e transfobia, que podem ser
definidas como o medo, a aversão, ou o ódio irracional a gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e/ou transexuais.
Segundo Breiner (2007), a homofobia, na forma mais grave, se
manifesta de duas formas: na primeira, a pessoa se afasta em estado de
pânico de qualquer situação que, para ela, implicaria contato com a ho-
mossexualidade ou com homossexuais; na segunda, a pessoa odeia irra-
cionalmente os homossexuais, podendo machucar ou até matar alguém
que representa uma ameaça homossexual para ela. Nesse contexto, a

253
homofobia e a escola

fobia contra LGBT assume uma natureza patológica, que pode até ser in-
voluntária e impossível de controlar, em reação à atração, consciente ou
inconsciente, por uma pessoa do mesmo sexo.
Segundo dados do Grupo Gay da Bahia (GGB) – obtidos por meio
de levantamentos de noticiários, uma vez que crimes homofóbicos não
possuem uma categoria própria nas estatísticas oficiais – foram assassina-
dos no Brasil, entre 1980 e 2007, 2.802 LGBT em razão de sua orientação
sexual ou identidade de gênero. Desses, 67% eram gays, 30%, travestis e
transexuais e 3%, lésbicas. Cabe lembrar que esses números podem estar
aquém dos casos reais de assassinatos, pois o levantamento do GGB se
baseou em casos noticiados pela imprensa.
O Terceiro Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil
(2005) – que focaliza o período de 2002 a 2005, e foi elaborado com infor-
mações coletadas pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade
de São Paulo (NEV-USP) e pela Comissão Teotônio Vilela de Direitos Hu-
manos (CTV) junto a organizações governamentais e não-governamen-
tais, nacionais ou estrangeiras – informa que “o número de homossexuais
assassinados no país passou de 126 em 2002, para 125 em 2003, e 157 em
2004. Este número recuou significativamente para 78 em 2005, mas de
fato ainda há muitos estados que não dispõem de informações consisten-
tes sobre assassinatos de homossexuais.” (MESQUITA NETO, 2007, p. 16)
Mas nem toda manifestação de homofobia se dá de maneira pato-
lógica, ao ponto de ser caracterizada como violência física ou assassinato.
Segundo Breiner (2007), há pessoas que podem se sentir desconfortáveis
em relação à homossexualidade alheia por uma série de fatores, sem que
isso gere uma reação de violência ou de discriminação.
Já Warren J. Blumfeld (1992) se aprofunda na análise da homofobia,
definindo quatro formas que vão desde o nível individual até chegar ao
nível cultural:

• Homofobia individual: um sistema de crenças pessoais (um pre-


conceito) de que se deve sentir pena das minorias sexuais, pois são
seres infelizes, incapazes de controlar seus desejos; ou de que se
deve odiá-las;
• Homofobia interpessoal: ocorre quando um viés ou preconcei-
to pessoal afeta as relações entre indivíduos, transformando o pre-
conceito em seu componente ativo – a discriminação;

254
toni reis

• Homofobia institucional: refere-se às formas como gover-


nos, empresas e organizações educacionais, religiosas e profis-
sionais discriminam sistematicamente indivíduos com base em
orientação ou identidade sexual;
• Homofobia cultural: ocorre quando as normas sociais ou os
códigos de conduta, mesmo quando não expressamente escri-
tos na forma de lei ou política, operam dentro de uma socieda-
de a fim de legitimar a opressão. (BLUMFELD, 1992)

Um exemplo de como as diversas formas de homofobia per-


meiam a sociedade brasileira se encontra nos resultados da abran-
gente pesquisa intitulada “Juventudes e Sexualidade”, realizada pela
UNESCO, no ano 2000, e publicada em 2004 (ABRAMOVAY et al.,
2004). A pesquisa foi aplicada em 241 escolas, públicas e privadas,
em 14 capitais brasileiras. Foram entrevistados 16.422 estudantes,
3.099 profissionais da educação, e 4.532 pais e mães de estudantes.
A pesquisa comprova cientificamente a dimensão da homofobia en-
tre os adultos e entre os jovens, que ainda estão em formação, nas
escolas brasileiras. Na pesquisa, 39,6% dos estudantes masculinos
não gostariam de ter um colega de classe homossexual, 35,2% dos
pais não gostariam que seus filhos tivessem um colega de classe ho-
mossexual, e 60% dos professores afirmaram não ter conhecimento
o suficiente para lidar com a questão da homossexualidade na sala
de aula. (ABRAMOVAY et al., 2004, p. 277-304). Mais reveladoras ain-
da são as entrevistas apontando os motivos que levam LGBT a deixar
de estudar, além do próprio despreparo de professores, pais e mães:

Eu estou abobada com que eu estou percebendo, vendo, lendo e assistin-


do, porque eu estou achando que está demais, alguma coisa está errada.
E aí o pessoal fala assim que com mulheres é a mesma coisa, mas eu não
vejo. A gente parece que vê menos. (Grupo focal com pais, escola privada,
Cuiabá, depoimento citado em ABRAMOVAY et al., 2004, p. 284-285).

Teve um menino que era homossexual, os alunos ficavam chateando ele e


os professores não ligavam, que ele desistiu de estudar. (Grupo focal com
alunos, escola pública, Maceió, idem, p. 286).

255
homofobia e a escola

Eu vi dois homossexuais caminhando de mãos dadas, dois homens, aqui


na frente passando, e eu fiquei olhando e não acreditava no que eu estava
vendo. (Grupo focal com professores, escola privada, Porto Alegre, idem,
p.292)

Pesquisas realizadas nas Paradas LGBT no Rio de Janeiro (2004),


São Paulo (2005) e Pernambuco (2006) revelaram que 56% dos LGBT en-
trevistados sofreram agressão verbal e 19% agressão física em algum
momento. Um total de 69% já sofreu discriminação por ser LGBT. As tra-
vestis e transexuais foram as que mais sofreram violência física (72%),
seguido dos gays (22%) e das lésbicas (9%). Ainda segundo os índices
apontados, 32% dos gays, 32% das lésbicas e 26% das trans sofreram
discriminação no ambiente familiar (CLAM, 2007).
Todos esses dados revelam o quanto a homofobia, a lesbofobia
e a transfobia ainda vigoram na nossa sociedade, sendo responsáveis
pelo preconceito e pela discriminação a LGBT, em ambientes como o do
trabalho, da escola, da igreja, da rua, do posto de saúde, dentre outros.
Esses dados revelam também a falta de políticas públicas afirmativas
que contemplem esse segmento.
Daniel Goldman (2007) reitera as idéias de Blumfeld, denominan-
do de “homofobia cultural” essa forma de discriminação contra LGBT:

A maior parte da discriminação contra os homossexuais surge de uma


combinação composta por medo e moralismo, no qual os homossexuais
são tidos como ameaças para o universo moral (...). Violência anti-gay ainda
é aceita, porque os líderes políticos falam contra a discriminação racial e
religiosa, mas ignoram a violência contra os gays e as lésbicas.

Infelizmente, ainda, os valores homofóbicos, presentes em nossa


cultura, podem resultar em um fenômeno chamado homofobia inter-
nalizada, através da qual os próprios LGBT podem não gostar de si pelo
fato de serem homossexuais, devido a toda a carga negativa que apren-
deram e assimilaram a esse respeito.
Segundo Warren J. Blumfeld (2007), exemplos de comportamen-
tos associados à homofobia internalizada podem incluir:

• Tentativas de se passar por heterossexual, casando, por vezes,


com alguém do sexo oposto para ganhar aceitação social, ou na
esperança de “se curar”;

256
toni reis

• Negação da própria orientação sexual (do reconhecimento de


sua atração emocional e sexual) para si mesmo e perante os ou-
tros;
• Desprezo por LGBT mais assumidos;
• Atitudes defensivas;
• Raiva e/ou ressentimento;
• Vergonha e/ou depressão;
• Desejo, tentativa e concretização de suicídio;
• Práticas sexuais não seguras e outros comportamentos destruti-
vos e de risco. (BLUMFELD, 2007).

Associações LGBT
O Movimento LGBT Brasileiro está completando 30 anos em 2008. Os
principais eventos que marcaram o início do Movimento foram o lança-
mento do jornal Lampião da Esquina (Rio de Janeiro, 1978) e a formação
do Grupo Somos – de afirmação homossexual (São Paulo, 1978).
Em 30 anos, avançamos muito. Nos anos 1980, a epidemia de
AIDS provocou retrocessos no desenvolvimento do Movimento, mas,
a partir dos anos 1990, o Movimento vem crescendo, fortalecendo-se,
estabelecendo suas identidades e se organizando.
E os resultados desse processo e de todos esses esforços estão
começando a ter um impacto positivo sobre a cidadania das pessoas
LGBT. Já foram realizados 12 Encontros Brasileiros LGBT. O Movimento
colaborou de forma significativa com a elaboração do Programa Brasil
Sem Homofobia, e vem acompanhando e contribuindo para sua imple-
mentação. Em 2008, o Brasil terá pelo menos 140 Paradas do Orgulho
LGBT. Há 15 anos não havia nenhuma. Hoje o Brasil tem mais de 300
grupos LGBT organizados. Há 15 anos havia menos de 30.
2008 é um ano especial para os direitos humanos, porque nele se
celebram 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e 20
anos da Constituição Cidadã. No entanto, para a comunidade LGBT, o
acontecimento mais significativo do ano 2008 foi a realização, pelo go-
verno federal, da I Conferência Nacional LGBT, precedida de conferên-

257
homofobia e a escola

cias estaduais nas 27 unidades da federação e mais de 100 conferências


municipais e/ou regionais. Mais importante ainda será a implementação
de políticas públicas para a comunidade LGBT, por meio do Plano Na-
cional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais.
Especificamente em relação à educação, a I Conferência aprovou
60 propostas, que devem ser contempladas no Plano Nacional, que vi-
sam promover “o respeito e o reconhecimento da diversidade da orien-
tação sexual e identidade de gênero e que colaborem para a prevenção
e a eliminação da violência sexista e homofóbica na educação básica e
superior.” (BRASIL, 2008).
Através da organização, as associações LGBT no Brasil, após 30
anos de luta e perseverança, finalmente, foram plenamente ouvidas
pelo Governo, a ponto de se iniciar a elaboração e a implementação de
políticas públicas específicas e democraticamente elaboradas. O primei-
ro passo está dado para a construção de uma sociedade mais justa, mais
inclusiva e menos discriminatória em relação às pessoas LGBT. A escola,
nesse sentido, terá um papel fundamental de transformação, através da
formação de novas gerações melhor informadas e orientadas a respeito
da diversidade sexual e o respeito.

Conclusão
Por meio de uma análise, ainda que sucinta, do contexto sociohistórico
que envolve as pessoas LGBT, tem sido possível demonstrar várias das
origens de atitudes negativas presentes na sociedade em relação a es-
ses segmentos da população. Também foi possível analisar as conseqü-
ências dessas atitudes negativas sobre a população LGBT, em especial,
no contexto escolar, graças à pesquisa da UNESCO (ABRAMOVAY et al.,
2004).
Profissionais da educação têm respaldo, ancorado na Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional, nos Parâmetros Curriculares Nacio-
nais, no Programa Brasil Sem Homofobia, no Estatuto da Criança e do
Adolescente, nas deliberações da 1ª Conferência Nacional de Educação
Básica e também da 1ª Conferência Nacional LGBT, entre outras diretri-
zes, para tratar em sala de aula dos assuntos diversidade sexual e res-
peito às diferenças. O Programa Saúde e Educação nas Escolas também
está contribuindo nesse processo.

258
toni reis

O que ainda falta, de modo geral, é a capacitação dos profissio-


nais da educação, o que lhes dará mais segurança para lidarem com
esses assuntos em sala de aula. As políticas de promoção do respeito
à diversidade na escola estão se consolidando, mas ainda há que se pro-
porcionar aos profissionais da educação subsídios práticos para a im-
plementação efetiva de tais políticas. Uma das formas concretas de se
alcançar esse objetivo é a disponibilização de cursos de especialização
em educação sexual – entendida não somente como uma educação a
respeito da reprodução humana, como também da sexualidade e da di-
versidade sexual –, qualificando, assim, profissionais para o ensino des-
se assunto no ambiente escolar. Outra possibilidade é a inclusão dessa
mesma matéria, da maneira como descrita aqui, nos currículos dos cur-
sos de formação de professores. Tudo isso com o intuito de informar a
classe estudante quanto à diversidade sexual e, valendo-se dessa infor-
mação, prepará-los para uma convivência pacífica e respeitosa com essa
diversidade.

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260
lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

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“O OLHAR NÃO É MAIS O MESMO”: UMA ANÁLISE SOBRE OS RESULTADOS DE UM
CURSO SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE NA ESCOLA

Lindamir Salete Casagrande


Marilia Gomes de Carvalho
Nanci Stancki da Luz

Durante o ano de 2008, o Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Rela-


ções de Gênero e Tecnologia realizou o curso “Construindo a igual-
dade na escola: repensando conceitos e preconceitos de gênero”.
Inicialmente planejado para ser ofertado a 160 profissionais da
educação de Curitiba e Região Metropolitana, devido à grande pro-
cura, o curso foi estendido e atingiu 381 professoras e professores,
sendo 313 mulheres e 68 homens . Essa diferença entre a partici-
pação feminina e a masculina é um provável reflexo da composi-
ção de gênero do Magistério do Paraná e de um maior interesse
das mulheres para discutir a temática do curso. A maioria das(dos)
participantes faz parte do quadro de professores da Secretaria Esta-
dual de Educação (SEED) do Estado do Paraná, porém, profissionais
da rede municipal de ensino de Curitiba e Região Metropolitana,
bem como estudantes de cursos de licenciatura também marcaram
significativa presença.
A grande procura pelo curso demonstrou a importância que
as(os) docentes têm atribuído à temática, assim como a carência
de cursos de formação continuada, particularmente no que se re-
fere aos temas gênero e diversidade sexual. Quando surge alguma
oportunidade, as professoras e professores se dispõem a participar
e a buscar novos conhecimentos, nas mais diversas áreas, com o in-
tuito de melhorar suas práticas docentes e possibilitar uma melhor
compreensão da diversidade que se encontra no espaço escolar.

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“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

Este capítulo é baseado nos trabalhos finais produzidos no refe-


rido curso. Este trabalho poderia ser feito individualmente ou em gru-
pos de até quatro pessoas. Elaboramos perguntas que buscavam iden-
tificar as possíveis transformações que porventura tivessem ocorrido
após o curso nos olhares das pessoas que participaram. As respostas
deveriam ser pessoais, com base nas percepções de cada participan-
te. O título do capítulo, “O olhar não é mais o mesmo”, foi retirado da
fala de uma dupla de professores (um homem e uma mulher) sobre
as transformações em suas formas de ver e perceber as questões de
gênero no ambiente escolar e na sociedade em geral, após a realização
do curso.
A seguir, demonstraremos a análise de 110 (cento e dez) desses
trabalhos, escolhidos aleatoriamente. Após a leitura dos mesmos, re-
colhemos algumas frases significativas para a análise . Na seqüência,
apresentaremos a leitura feita sobre as respostas para as perguntas
dadas pelas professoras e professores, permeada por citações diretas
da fala das/dos integrantes do curso.

A fala das professoras e professores


Na primeira pergunta, buscava-se identificar quais as situações relacio-
nadas ao gênero e à diversidade sexual que passaram a ser percebidas
pelas(os) participantes após a conclusão do mesmo. Entre as respos-
tas, destaca-se o fato de que as(os) integrantes passaram a perceber e
a prestar mais atenção às manifestações de preconceito no ambiente
escolar e na sociedade como um todo.
Esses preconceitos surgem, segundo os relatos, por meio de
piadas, apelidos e brincadeiras que, na maioria das vezes, manifestam
o incômodo com a sexualidade do outro, que deveria seguir padrões
heterossexuais, e revelam a presença de homofobia na escola:
na escola vemos quando um aluno ou aluna age diferente (...) eles são
motivo de risos, falatórios, piadinhas maldosas e, muitas vezes são con-
siderados aberrações, considerados coitadinhos e não considerados ape-
nas seres que têm sentimentos diferentes do “modelo correto”, acredito
que ainda temos que evoluir muito e conviver com as pessoas como seres
humanos e não classificá-las por sua sexualidade, ou pelo gosto amoroso
das pessoas que as completam, sejam mulher/mulher, homem/homem;
mulher/homem. (Id 25 )

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lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

Percebemos que a luta sobre o preconceito de gênero é árdua. Mas não


impossível (...) ainda tem grande dificuldade com o que é considerado “di-
ferente” do que se espera. (Id 14)

A necessidade de estar atenta/o às manifestações de preconcei-


to e discriminação de gênero no âmbito escolar foi um dos temas en-
fatizados durante a realização do curso e que foi assimilado pelas(os)
participantes, pois a maioria das respostas analisadas revelou que as(os)
docentes mudaram a forma de olhar o cotidiano escolar. Essas respostas
tornam-se relevantes, na medida em que podemos conjecturar que elas,
de alguma maneira, irão se traduzir em mudanças na prática educati-
va que visem minimizar as situações de constrangimento que algumas
brincadeiras podem causar, acarretando em mudanças que contribuam
para que o ambiente escolar se torne um espaço de desenvolvimento
integral do ser humano.
Em outras falas, pode-se perceber que a discussão realizada du-
rante o curso sensibilizou as(os) participantes e forneceu subsídio para
reflexão sobre suas práticas educativas. Essa reflexão é importante, pois
acreditamos que a transformação da realidade exige a sua problemati-
zação e a percepção de que ela não corresponde aos princípios da justi-
ça, pois os direitos de determinados grupos sociais não são respeitados.
Consideramos as falas a seguir como expressivas dessa sensibilização.
Ficou mais fácil perceber algumas coisas que antes não via na escola. Re-
almente temos que mudar nossa maneira de agir, de falar sem pensar. (Id
15)

Comecei a indagar sobre as questões relacionadas às desigualdades dentro


da sala de aula (...) creio que o curso veio a dar um maior subsídio e também
uma maior segurança para essas questões (...) através do curso senti-me
menos sozinha nestas questões. (Id 5)

Considerar as alunas como “burras” em matemática, é natural para os pro-


fessores, colegas de turma e os pais. O mais chocante é que para as profes-
soras, as mães e as próprias alunas também o é. (...) No grupo de estudos de
gênero, comecei a notar como a “Construção da história humana” nos fez
acreditar que tudo era natural. (Id 20)

Com certeza o olhar não é mais o mesmo. A partir do curso temos uma nova
visão do mundo em relação aos próprios costumes e tradições (...). (Id 7)

263
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

Me tornei mais sensível à presença de velhos e sutis estigmas, até um tanto


ingênuos, como rotular uma caligrafia bem ou pouco legível como caracte-
rística de menina ou menino , respectivamente(...). (Id 1)

Por meio dessas falas, pode-se perceber que os preconceitos de


gênero ou de orientação sexual estão presentes no cotidiano. Porém,
na maioria das vezes, tais preconceitos passam despercebidos ou são
considerados normais. Perceber que a maneira como se vê a realidade
foi algo socialmente construído permite pensar em novas relações so-
ciais, nas quais as pessoas possuem direitos iguais e podem expressar
livremente sua maneira de pensar e de agir, o que pressupõe que elas
conhecem e respeitam seus diretos bem como os direitos dos outros.
Muitas(os) participantes ressaltaram a necessidade de discussão
sobre a temática nos diversos espaços sociais. Salientaram também
que falar sobre sexualidade é difícil e raro de acontecer. Muitas(os) se
dizem despreparadas(os) para essa função. As falas a seguir ilustram
bem situação.
A orientação sexual é uma das questões mais delicadas para se debater
em sala de aula. (Id 8)

Não é um tema discutido e muito menos incentivado a ser discutido(...).(Id


13)

Não há uma discussão sobre as questões discutidas no curso, sendo que a


maioria dos profissionais sejam eles professores, pedagogos ou funcioná-
rios prefere fazer de conta que esses problemas não existem (...) os casos
pontuais devem ser discutidos só quando acontecem e mesmo assim a
portas fechadas para ninguém ficar sabendo(...) (Id 19)

E necessário estar atento a isto e levar a discussão, a reflexão e a descons-


trução destas concepções tão arraigadas em nossa cultura. (Id 84)

Porém, para que essa discussão seja possível, acreditamos que


seja necessário que um número maior de profissionais da educação
seja sensibilizado e preparado para discutir as questões de gênero e
diversidade sexual com os discentes, as mães, os pais e a comunida-
de em geral. Isso pode ser relizado de diversas formas, tais como a
realização de cursos de sensibilização (como este) e de outros cursos
de formação continuada, graduações nessa área (gênero e diversidade

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lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

sexual), disciplinas específicas, seja no ensino médio ou no superior,


pós-graduações lato (especialização) e stricto senso (mestrado e dou-
torado) que abordem a temática, assim como a disseminação de pales-
tras e debates nos meios de comunicação e nas escolas e a publicação
de estudos sobre o tema. A falta de discussão pode levar a preconcei-
tos por desconhecimento.
Outras(os) participantes argumentaram que mudaram sua per-
cepção sobre a manifestação de preconceitos de gênero e homofobia
presentes na mídia, particularmente nas novelas, entre outras progra-
mações. Os preconceitos com relação aos homossexuais também pas-
saram a ser melhor percebidos pelas(os) participantes.

A homossexualidade é tratada como doença e como pecado (...) a mídia


muitas vezes “vulgariza” a homossexualidade(...). (Id 3)

Na mídia, passamos a perceber as propagandas direcionadas aos homens


e às mulheres. Através do consumo de produtos de beleza, da casa ou
relacionados ao cuidado da família, para as mulheres. Já para os homens
produtos ligados ao trabalho, à força, a conquista das mulheres ditas “per-
feitas” e do sustento da família. (...) a utilização do corpo feminino para a
venda de produtos e também sua exploração em novelas, filmes e seria-
dos(...). (Id 4)

Estava assistindo tv com meu filho de 5 anos, quando passou uma propa-
ganda de uma boneca que parecia bebê de verdade, que mamava e suja-
va a fraldinha, ele comentou que achava muito legal, então perguntei a
ele se ele queria uma e me respondeu com cara de espanto. Eu não! Vão
pensar que sou menininha! (Id 103)

Essas falas evidenciam o papel da mídia na formação das opi-


niões das pessoas sobre a sexualidade. A forma como os programas
televisivos, de modo especial os humorísticos, apresentam a questão
da homossexualidade, na maioria das vezes, é estereotipada. Esses
programas costumam fazer piadas com aqueles que são considerados
“diferentes”. Tais piadas configuram uma violência dirigida principal-
mente aos homossexuais, às loiras, aos judeus, aos pobres e aos ne-
gros, contribuindo para estimular a intolerância e a discriminação.
Na terceira fala, pode-se perceber que, desde cedo, as crianças
trazem em seus discursos a noção de papéis diferenciados entre ho-

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“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

mens e mulheres. A recusa em ter uma boneca indica que, na concep-


ção do menino citado, boneca não é brinquedo de menino. Essa idéia
pode ter sido construída pelos comentários de adultos, pelas propa-
gandas e programas da mídia, pelo contato com coleguinhas, enfim,
nas relações sociais. Ainda sobre essa fala, restou-nos uma indagação.
Será que essa mãe teria feito a mesma pergunta a seu filho antes de estar
sensibilizada para as questões de gênero?
A segunda questão proposta aos participantes do curso era: “Como
são tratadas em seu ambiente de trabalho as questões de gênero?”.
A maioria delas(es) afirmou que, nas escolas em que trabalham, o
assunto não é abordado, fato que lhes causa tristeza e pesar, pois essas
questões se fazem presentes no ambiente escolar, sendo comum que dis-
centes e docentes reproduzam preconceitos, particularmente por meio de
piadas e brincadeiras. Alguns relatos demonstram que a escola, quando
se depara com um aluno ou aluna que demonstre não ser heterossexual,
em vez de tomar atitudes para acolhê-lo(a), permite que se faça piadas
com a situação, o que contribui para a exclusão desse discente.
Destacou-se entre as respostas a dificuldade de se abordar essa te-
mática na escola; no entanto, foi igualmente ressaltada a importância de
se tratar as situações discriminatórias com atenção e cuidado, para que
os alunos e alunas que estão sofrendo o preconceito não sejam excluídos
dos processos de formação escolar:
Infelizmente devido a tabus e falta de esclarecimento na maioria das vezes
esses assuntos são ignorados ou vistos como interesse de uma minoria que
sofre essas violências ou daqueles que se sensibilizam diante dessas situa-
ções. (...) se o preconceito, a discriminação e os estereótipos forem esclareci-
dos desde cedo a sensibilização pode ser um passo importante em direção
ao respeito, à conscientização e à mudança de atitudes. (Id 2)

Os poucos profissionais que se dispõem a trabalhar assuntos relacionados


têm muita dificuldade e resistência da escola, dos alunos, dos colegas e da
comunidade escolar(...). (Id 4)

Na escola esse assunto ainda é tratado como um grande tabu, mas esse tabu
está caindo aos poucos na forma de respeito e defesa desses alunos perante
a classe. (Id 7)

Isso ocorre até mesmo dentro da própria universidade, onde percebemos


claramente que essas questões são deixadas de lado(...). (Id 21)

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lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

A decepção foi grande ao perceber que aqueles (os educadores) que deviam
ter um maior conhecimento sobre o assunto e tratá-lo de forma clara e sem
preconceitos, são os que reforçam os estereótipos e os preconceitos. (Id 24)

Estas questões normalmente nem são consideradas porque as pessoas nem


percebem o preconceito no que fazem(...). (Id 84)

Essas falas reforçam a importância da formação contínua dos do-


centes, preparando-os para enfrentar esse debate e para dar-lhes segu-
rança para tratar dessa temática com os(as) alunos(as). Vencer os próprios
tabus e preconceitos é parte fundamental para que tais profissionais te-
nham condições de iniciar um trabalho nessa área com os(as) estudantes.
Sem dúvida, este é um grande desafio para todos(as), porém fundamental
para a minimização de situações de preconceito e discriminação no espa-
ço escolar e, por conseguinte, na sociedade como um todo.
Porém, relatos apontam que, em algumas escolas, atitudes têm sido
tomadas e ações estão sendo implementadas para que as situações de
preconceito e discriminação sejam minimizadas. As falas a seguir exem-
plificam ações realizadas nessa direção:
Na escola que eu trabalho essas questões discutidas no curso são levadas a
sério pela direção e coordenação escolar (...) sempre fazendo palestras e dis-
cussões sobre o assunto com professores e é claro com os alunos. (Id 9)

É diário e constante o trabalho das questões do curso. O contato com pesso-


as que passam ou passaram por situações de violência, em especial social ou
racial, que os expulsou da escola (...) acaba sendo uma triste rotina. (Id 17)

Pode-se perceber que, na maioria das escolas, não se tem nenhu-


ma iniciativa com o intuito de minimizar as conseqüências de um trata-
mento discriminatório na vida dos(as) estudantes. Existe uma carência de
trabalho contínuo sobre gênero, diversidade sexual, educação sexual e
violência de gênero, pois as escolas que desenvolvem alguma atividade,
de forma geral, acabam caracterizando apenas ações pontuais. Acredita-
mos que, para se atingir uma educação igualitária, faz-se necessário a im-
plementação de programas contínuos para abordar essas temáticas nas
diversas fases de desenvolvimento das crianças e adolescentes, eviden-
temente, com atividades e linguagens apropriadas ao amadurecimento
intelectual dos alunos e alunas.

267
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

Quando questionados sobre algum fato que presenciaram ou vi-


venciaram no ambiente de trabalho ou de estudo que poderiam ser
considerados violência de gênero, as respostas giraram em torno de
brincadeiras que professores e alunos fazem com relação a colegas que
apresentam alguma característica diferente do que se está acostumado
a considerar como “normal”, ou seja, referente à heterossexualidade nor-
mativa. A homofobia é o principal problema presenciado pelas(os) parti-
cipantes do curso. Os excertos abaixo exemplificam as situações relatadas
pelas/os participantes.

Piadas feitas a respeito de homossexuais, loiros, negros, gordos, magros, defi-


cientes físicos (...) falta de respeito com o professor homossexual. (Id 10)

Assumir que fui e deixei de ser homofóbico, por circunstâncias da quebra de


paradigmas que o ambiente das artes proporcionou-me e em específico um
amigo de faculdade que mostrou, sem “panfletarismo, pedantismo ou afe-
tação”, o quanto eu, que me considerava não discriminatório, estava errado.
(Id 1)

Na escola em que atuamos aconteceu o fato de termos um aluno da 6ª série


que possui gestos afeminados... é um aluno meigo, comportado e quieto. Os
meninos da sala começaram a lhe por apelidos. (...) levou o caso à orientação
(...) chamou os pais (...) o aluno foi encaminhado ao psicólogo (...) mudou de
turma. (Id 3)

No colégio onde trabalho, existem alguns professores com orientação sexual


diferente dos padrões impostos pela sociedade. (...) já presenciei alguns cole-
gas de trabalho dizendo que não iriam tomar café nas xícaras fornecidas pela
escola, pois estavam com nojo. (Id 5)

Até discriminei alunos considerados homossexuais. ( Id 7)

Num primeiro momento pude notar que a diretora e uma professora da esco-
la que trabalhava vivia maritalmente há muitos anos. (...) naquela escola uma
aluna me contou sobre sua orientação homossexual e seu relacionamento
com outra aluna (...) me limitava a ouvi-la e aceitá-la como tal. (...) uma delas
foi chamada a conversar com a diretora e o setor psicológico. O resultado foi
a transferência dela para o período noturno enquanto a outra continuou no
período da manhã. (...) a do noturno acabou se prostituindo e a da manhã
fechou-se em seu mundo. (Id 12)

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lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

Por meio dessas afirmações, pode-se perceber que a homofobia é


forte e presente no ambiente escolar Esses relatos evidenciam o quan-
to um tratamento preconceituoso pode marcar a vida de uma pessoa,
como no caso do aluno citado por Id 3 e das alunas do caso relatado por
Id 12. Práticas homofóbicas são recorrentes nas escolas e precisam ser
eliminadas para que se possa efetivar o direito à educação de todas e
todos. Nesse sentido, existe a necessidade de atenção para que, nos mo-
mentos em que ocorram tais manifestações, haja também a problemati-
zação e o debate com as/os estudantes. Isso pode acontecer na aula de
qualquer disciplina, portanto, todas as pessoas envolvidas no processo
de ensino e aprendizagem devem estar preparadas para tal discussão.
Uma conversa bem fundamentada, com serenidade e respeito pode ser
suficiente para que a homofobia seja afastada do cotidiano da escola,
contribuindo também para que isso ocorra na sociedade.
As(os) participantes também relataram experiências de violência,
particularmente as simbólicas, vivenciadas no mercado de trabalho e as-
sociadas à questão de hierarquia. Relatos apresentam preconceitos de
gênero em relação aos funcionários e de um professor com a estagiária.
Quando me apresentei ao professor responsável ele disse-me – Que bom!
Mulheres são mais dedicadas e sabem fazer limpeza (...) no final de cada
aula, lave as lâminas e (...) lembre de varrer e tirar o pó. Isso aconteceu há
mais de 20 anos (...) quanto a mim, não voltei ao laboratório. (Id 84)

Já presenciei algumas pessoas tratarem mal os empregados, como inferio-


res, até com certa violência, dando ordens agressivas, fazendo com que se
sentissem menores, à parte do mesmo mundo. (Id 5)

No caso do professor, pode-se perceber nitidamente que a ca-


pacidade intelectual da estagiária não tinha a importância, valorizando
características que ela supostamente deveria ter por ser mulher. Se, por
um lado, podemos avaliar que a estagiária teve um gesto de não confor-
mação e não subjugação, por outro, a atitude sexista do professor impe-
diu que ela aproveitasse uma oportunidade de crescimento profissional
conquistado por sua capacidade intelectual.
As(os) participantes também falaram sobre as ações que vêm sen-
do tomadas em suas escolas para minimizar os preconceitos de gênero
no espaço escolar. As(os) integrantes ressaltaram a importância de se

269
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

criar espaços para a discussão do tema com os(as) docentes, os(as) dis-
centes e pais e mães. Ressaltaram ainda que com base na sensibilização
ocorrida com a realização do curso estão conseguindo espaços para o
debate, bem como encontrando formas de buscar mais informações e
teorias sobre a temática. Porém, é importante frisar que a maioria das(os)
participantes relata que em suas escolas não estão sendo implementa-
das ações nesse sentido:
Estamos conseguindo abrir espaços para discussões, reflexões e busca de
informações e fundamentação teórica, com a consciência de que não existe
uma receita pronta (...). (Id 2)

O Governo do Estado do Paraná este ano está disponibilizando um grupo


de estudos aos sábados (...) para a reflexão de textos sobre sexualidade, mas
poucos professores estão participando (...). (Id 4)

Alguns professores falam sobre esses assuntos, mas somente em sala de


aula, veladamente, até porque existe a dificuldade de entendimento dos
pais (...). (Id 5)

Conversas informais, projetos e palestras sobre os diferentes temas, dando


prioridade à violência e sexualidade, procurando sanar as dúvidas dos alu-
nos e familiares. (Id 11)

Cursos estão sendo desenvolvidos entre professores com o intuito de que


sejam preparados para lidar com a situação. No entanto, são ainda poucos
os que participam. (Id 78)

Uma professora de Português abordou o tema do sexismo em uma palestra


e foi questionada pela coordenação se o tema estava de acordo com o seu
planejamento (...) de acordo com a equipe pedagógica ela deveria “dar aula”
e não perder tempo com questões que fogem do currículo. (Id 102)

Os relatos anteriormente citados demonstram que algumas ações


já estão em curso, porém, na maioria dos casos, de forma tímida e isola-
da. Percebe-se também uma preocupação com o envolvimento da fa-
mília nessas ações. Faz-se necessário ressaltar a participação do Gover-
no do Estado na disponibilização de espaços para as discussões sobre a
temática, embora ainda haja pouca adesão por parte dos(as) docentes
a esses projetos. Outro fato a ser ressaltado é a dificuldade que muitas
vezes as equipe pedagógicas impõem às professoras e aos professores

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lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

que tomam a iniciativa de introduzir a temática em suas aulas, como no


caso relato pela Id 102. Atitudes como essas podem inibir e desestimular
um trabalho cada vez mais importante e necessário.
No que se refere às sugestões sobre formas de abordar a temática
no espaço escolar, a maioria das respostas reflete a necessidade de capa-
citação dos professores e professoras para que estes tenham condições
de agir e reagir diante de uma situação de preconceito e discriminação:

Ofertar cursos de sensibilização e capacitação (...) de toda a comunidade.


(Id 4)

Incluir, aos poucos, no currículo (...) temáticas relacionadas ao sexismo e a


homofobia para serem trabalhadas em todas as disciplinas. (Id 5)

Preparar com os alunos de todas as séries uma semana de discussão sobre


os temas de homofobia, violência e discriminação de gênero. (Id 9)

Ensinar aos alunos a importância da igualdade de gênero respeitando as


peculiaridades de cada um. (Id 13)

O primeiro passo para enfrentar a violência de gênero e a homofobia é reco-


nhecer que eles existem, estão aí e necessitam ser discutidos. (Id 21)

Promover debate com alunos, corpo docente incluindo coordenação e dire-


ção, bem como funcionários, pais ou responsáveis. Além de palestras com
convidados da área de gênero e sexualidade. (Id 22)

Trabalhar de forma continuada e sistêmica de tal forma a mudar a idéia que


o professor tem dos seus medos e preconceitos (...). (Id 78)

Inserir em uma das disciplinas esse tema como obrigatório (Id 81).

Quebra da lei do silêncio por meio de atitudes de repúdio ou denúncia (...).


(Id 103)

Observa-se que as(os) participantes sugerem transformações em


suas próprias atitudes, possibilitando que elas(eles) saiam da inércia e
passem a assumir que existe um problema em seu ambiente de trabalho
e que há necessidade de se tomar atitudes para minimizar o impacto do
preconceito e da discriminação na vida dos(as) estudantes e da comuni-
dade escolar, sendo o argumento da Id 21 ilustrativo dessa situação.

271
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

De fato, só é possível transformar uma situação quando se perce-


be que ela é problemática e que deve sofrer mudanças. Só então iniciati-
vas são tomadas com vistas à sua transformação. E, para que essa trans-
formação seja mais efetiva, faz-se necessário o envolvimento de toda a
comunidade escolar, bem como dos familiares nas ações que vão desde o
planejamento até a execução do projeto.
Com relação ao combate à gravidez precoce e à abordagem dos di-
reitos sexuais e reprodutivos de meninas e meninos – outra questão pro-
posta aos participantes do curso – as(os) participantes reconhecem que
esse tema, embora já seja abordado em muitas escolas, ainda não tem
produzido os resultados esperados, pois o número de adolescentes grávi-
das continua elevado. Mais uma vez há ênfase na indicação de que sejam
realizados cursos de capacitação de professores para trabalhar a temática
com o corpo discente. A adequação da linguagem e a necessidade de se
escutar os(as) estudantes também foram apontadas como possibilidades
de se realizar um trabalho que produza resultados mais efetivos. Dentre
as sugestões destacamos:
Investir em cursos e palestras para os adolescentes, pais e educadores (...) de-
senvolver materiais informativos com os alunos envolvendo-os em projetos
e pesquisas (...) aproveitar as situações do dia-a-dia para abordar e esclarecer
questões de gênero, de sexualidade, diversidade sexual, preconceito, direitos
reprodutivos e sexuais, gravidez na adolescência, dentre outros. (Id 2)

Trabalho com estas questões quando estudamos função exponencial e juros


compostos, pois os alunos e alunas pesquisam sobre custos com um bebê e
discutimos em sala sobre o quanto é importante planejar e se preparar antes
de se ter um filho. (Id 5)

A melhor forma de prevenção é o conhecimento acerca do assunto (...). (Id


7)

Não se deve apenas falar aos jovens o quê fazer, deve-se também escutar o
que esse jovem tem a dizer (...) (Id 9).

Se partirmos da suas próprias experiências poderemos entender melhor


como eles se sentem e a partir de então, elaborar métodos de trabalho mais
eficientes. (Id 21)

Mudanças curriculares sérias com o objetivo de inserir esses assuntos tanto


no dia-a-dia dos alunos como também em livros didáticos. (Id 78)

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lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

Um projeto permanente, contínuo e interdisciplinar, envolvendo as diver-


sas áreas do conhecimento tanto dentro como fora do ambiente escolar. (Id
102)

Não dramatizar o tema. Abordar com segurança. (Id 103)

Pelas falas anteriormente apresentadas, pode-se perceber que esse


tema é relevante, que precisa ser abordado de forma mais efetiva e que as
sugestões dadas são simples e de fácil implementação. Resta, no entanto,
buscar ações que viabilizem a formação de professores nessa temática.
Outra pergunta feita às pessoas que participavam do curso foi se
na sociedade em que vivemos é possível que as pessoas exerçam seus
direitos sexuais e reprodutivos. Em caso negativo, as(os) integrantes de-
veriam explicitar quais as ações que deveriam ser tomadas para promo-
ver a defesa desses direitos. As(os) participantes ficaram divididas(os) em
suas respostas. Porém, mesmo nas afirmações nas quais as(os) partici-
pantes acham que “sim, é possível exercer os direitos”, pode-se encontrar
indícios que essa possibilidade se limita ao que é aceito como “normal”,
sendo esse o caso do comentário da Id 6 (transcrito na sequência). As(os)
participantes ressaltaram que houve mudanças nas últimas décadas; no
entanto, essas mudanças não foram suficientes para garantir os direitos
às pessoas, sejam homens ou mulheres, heterossexuais ou homossexuais,
de viver sua sexualidade livremente. As pessoas que integravam o curso
salientaram ainda que mesmo os educadores, que, teoricamente teriam
mais conhecimento e preparo do que a maioria da população para lidar
com os mais diversos assuntos, ainda assim encontram dificuldades em
respeitar as diferenças e os direitos:
Não são exercidos em sua plenitude como reflexo de uma educação e de
uma cultura que recrimina (...) sensibilizar a comunidade escolar em relação
ao respeito às singularidades, à diversidade sexual e às orientações sexuais
dos indivíduos. (Id 2)

Percebemos o despreparo muito grande deste adolescente, pois os pais não


conversam sobre o assunto, as escolas não estão preparadas para abordar o
assunto e eles buscam onde encontram, na prática (...). (Id 3)

Na maioria das situações sim. Claro que quando se foge à regra estabelecida
pelos padrões impostos pela sociedade, a pessoa encontra dificuldades. (Id
6)

273
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

Não é impossível (...) é algo difícil. (Id 9)

Serviços de saúde devem garantir atendimento, principalmente aos adoles-


centes, antes mesmo do início de sua atividade sexual e reprodutiva para
ajudá-los a lidarem com sua sexualidade de forma positiva, responsável,
incentivando comportamento de prevenção e de auto cuidado. (Id 12)

Hoje já se tem muito mais liberdade de exercer esses direitos do que há al-
gumas décadas, mas o preconceito com os que optam por comportamento
fora do que se cristalizou como “padrão social de conduta” ainda é muito
forte. (Id 17)

As pessoas ainda não têm seus direitos respeitados (...) há muitas questões
envolvidas, em especial, as questões religiosas que entravam o debate so-
bre o assunto (Id 19).

Sim. As pessoas têm livre arbítrio para decidirem sua vida sexual. (Id 22)

É difícil exercer o direito sexual e reprodutivo (...) existem muitas leis que
proíbem o aborto, por exemplo. (Id 25)

Infelizmente, ainda estamos longe de aceitarmos os direitos das pessoas


que fogem do “modelo padrão” de sociedade. Mesmo nós, que somos edu-
cadores, temos dificuldade de lidar com o “diferente”. (Id 102)

A legislação e a religião, juntamente com o desconhecimento do


tema, foram apontados como entraves para que se concretizem os di-
reitos sexuais. As falas anteriormente citadas ressaltaram que “viver a
sexualidade com liberdade não significa ter uma vida promíscua e ir-
responsável” e que “a liberdade traz junto a responsabilidade consigo
e com os outros”. Quando se fala em direitos, fala-se obrigatoriamente
em deveres; isso precisa ficar claro quando se aborda essa questão com
os(as) estudantes.
Também foi ressaltado o desrespeito em relação ao corpo da mu-
lher, pois ainda existe a necessidade de se recorrer à justiça em casos de
interrupção de uma gravidez que oferece riscos à saúde física e mental
da mãe. Relatos apontam que uma iniciativa importante no que diz res-
peito a assegurar o direito das mulheres de decidirem sobre a continui-
dade de uma gestação é garantir que essas mulheres tenham condição
de decidir se querem ou não ter a relação sexual e o conhecimento das
formas de se evitar a gravidez indesejada. Algumas vezes, as meninas

274
lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

iniciam a vida sexual ativa motivada pelo fato de que as suas amigas já
iniciaram ou porque os seus namorados as pressionam, fazendo com
que elas acabem por ceder sem que estas se sintam preparadas para
isso e sem prevenção contra uma gravidez não planejada e contra do-
enças sexualmente transmissíveis.
É importante frisar que assegurar os direitos sexuais e reproduti-
vos não significa incentivar meninos e meninas a iniciarem a vida sexual.
Ao contrário − significa dar argumentos para que esses(as) jovens pos-
sam fazer valer sua vontade e não cedam a pressões externas (amigos/
as, namorados/as, familiares) para iniciar a vida sexual ativa antes de se
sentirem preparados para isso. Discutir sexualidade com os alunos e alu-
nas fará com eles se conheçam melhor e assim possam se cuidar e res-
peitar o seu corpo, podendo evitar o início de vida sexual irresponsável.
O conhecimento sobre o corpo, sobre a sexualidade, sobre a homosse-
xualidade, enfim, sobre os mais diversos temas pode diminuir o precon-
ceito bem como o índice de gravidez precoce. Sendo assim, a discussão
em sala de aula é de fundamental importância.
As(os) participantes foram convidadas(os) a propor políticas pú-
blicas para o enfrentamento da violência de gênero, do sexismo e da
homofobia. As propostas privilegiaram a formação de professores para
que estes possam abordar a temática de forma mais sistemática e apro-
fundada. Dentre as sugestões, destacamos:
Investir em projetos que discutam e desenvolvam ações frente à violência
de gênero, o sexismo e a homofobia. (Id 2)

A implementação dentro da secretaria da Educação de um setor especiali-


zado sobre o tema (...) sistematizar, dentro do currículo escolar, conteúdos
que possam ser debatidos com os alunos sobre assuntos diversificados (...).
(Id 3)

Inserção de disciplinas nos currículos das faculdades e universidades para


que os acadêmicos dos mais diversos cursos possam discutir e refletir sobre
as questões (...) disponibilizar palestras, teleconferências, seminários, con-
gressos, mesas redondas, para que a comunidade escolar possa ter uma
nova visão sobre gênero, sexismo e homofobia (...). (Id 4)

Confeccionar material informativo para a comunidade escolar. (...) criar a


escola de pais (...) talvez seja necessário uma lei que obrigue o combate ao
sexismo e à homofobia (...) (Id 5)

275
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

Inclua na formação docente não só a perspectiva de gênero, mas também


a de classe, etnia, orientação sexual e geração. (Id 12)

Um maior investimento em pesquisa, produção teórica, cursos de forma-


ção, incentivo a produção de material pertinente à temática (Id 16).

As sugestões demonstram a necessidade de transformação nos


currículos escolares nos mais diversos níveis, desde o ensino fundamen-
tal até o universitário. A inserção das discussões de gênero e homofobia
nos currículos acadêmicos revela-se de fundamental importância para
preparar os profissionais da educação para abordar a temática com os
alunos e, assim, transformar as relações de gênero no espaço escolar. A
formação docente parece ser o ponto principal para que se possa iniciar
a transformação nas relações de gênero no espaço escolar e fora dele.
As(os) participantes do curso tiveram ainda a oportunidade de
avaliar o curso, possibilitando que a equipe responsável pela organi-
zação do mesmo possa fazer as mudanças necessárias para a melhoria
das próximas edições e verificar se a formação forneceu elementos que
contribuíssem para a consolidação de uma educação não sexista, não
homofóbica e para a efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos.
A maioria das(os) participantes avaliou que o curso atingiu os ob-
jetivos propostos, tanto os do curso, quanto os das(os) participantes. Nas
falas das pessoas que participaram do curso pode-se perceber a necessi-
dade de se proporcionar outros momentos similares a esse para contri-
buírem com a formação das professoras e professores. Pode-se perceber
também que, para muitas(os) das(os) participantes, a sensibilização foi
atingida e proporcionou a reflexão sobre suas ações:
Nos proporcionou a construção de novos conhecimentos, uma nova visão
e novas atitudes sobre situações vivenciadas, não somente na escola, mas
também na sociedade (...). (Id 2)

Passei a fazer mais comentários em sala de aula, deu uma maior bagagem
para se falar do assunto, proporcionou maior segurança (...). (Id 5)

Os objetivos foram atingidos, porém os temas são muito polêmicos, exten-


sos, faltando um aprofundamento maior. (Id 10)

Atingiu os objetivos. Despertou em nós curiosidade em estudar mais sobre


o assunto. (Id 13)

276
lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

A flexibilidade foi uma das coisas que aprendi. (Id 25)

Podemos participar explicando aos alunos (...) a diversidade, a liberdade de


escolhas (...) acabar com a repressão e discriminação que impede conhecer
as pessoas como elas realmente são. (Id 101)

Como cidadãs, a nossa contribuição é socializar os conhecimentos apreen-


didos, levando a reflexão dentro da nossa própria casa (...). (Id 102)

Sendo o objetivo do curso a sensibilização dos profissionais da


educação sobre a temática, pode-se dizer que esse objetivo foi atingido.
É importante que as(os) participantes tenham argumentado que existe a
necessidade de maior aprofundamento e que o curso propiciou o reco-
nhecimento da necessidade e da possibilidade da busca por um conhe-
cimento mais abrangente sobre a temática. Com base na sensibilização,
é possível buscar o aprofundamento pela busca de literaturas e teorias
sobre o tema, por palestras e seminários, por cursos de pós-graduação,
enfim, quando se pensa sobre a temática é possível buscar formações e
formas de melhor trabalhar o assunto com os alunos e alunas.
As(os) integrantes argumentaram que o curso contribuiu para
a sua formação pessoal e profissional, fornecendo subsídios para que
essas(es) profissionais possam buscar novas formas de ação e de reação,
bem como uma melhor capacitação para abordar essas e outras temá-
ticas.

Foi esclarecedor, atual e instigante. Desmistificou tabus, além de incentivar


a abertura e criação de idéias. (Id 1)

Representou o início de uma caminhada rumo à reconstrução da igualdade


na escola (...). (Id 2)

Percebemos o quanto somos despreparados para lidar com algumas situ-


ações (...). (Id 3)

Permitiu uma revisão de conceitos (...) mudanças de atitudes diante de cer-


tas situações que para nós era correto e depois do curso percebemos o
preconceito que havia por traz daquilo e não nos dávamos conta. (Id 10)

Nos proporcionando conhecimento teórico nos levando a discussões que


antes não eram comuns em nossa rotina de trabalho, pois não observáva-

277
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

mos os problemas com a clareza que observamos agora. (Id 13)

Estou mais atenta às minhas atitudes, dos meus colegas e dos alunos, te-
nho condições de perceber se determinados atos q1ue são considerados
inofensivos, no fundo escondem muita violência e preconceito. (Id 20)

Este curso foi um delicioso ingrediente para utilizarmos o cérebro, pensan-


do duas vezes antes de falarmos algo que pode ser interpretado de manei-
ra preconceituosa (Id 23).

Diante do questionamento sobre quais as contribuições que


as(os) participantes possam dar ao combate à violência, à homofobia e
ao sexismo e para a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos, as(os)
integrantes do curso argumentaram que poderiam contribuir debaten-
do o tema em sala de aula, com os familiares e com os demais professo-
res. Essa é uma contribuição importante para que se inicie a discussão
sobre a temática e, com isso, o preconceito e as desigualdades de gêne-
ro possam ser diminuídos.

Precisamos compreender que o gênero não determina a capacidade, inte-


ligência ou força. (Id 2)

Introduzindo nas aulas debates sobre estes temas. (Id 3)

Conversando com as pessoas sem constrangimentos, sem tabus, sem dis-


criminá-los. (Id 5)

Em sala de aula, com os alunos, fazendo-os entender que esses assuntos


fazem parte de suas vidas atuais e futuras. (Id 10)

Com os demais professores teremos o compromisso de instigá-los a pes-


quisar e a disseminação do conhecimento que o Grupo GeTec nos propor-
cionou. (Id 11)

Abrir discussão para a quebra de preconceitos e construir uma concepção


justa a todos os gêneros (Id 14).

Discutir a temática, contribuindo para que outras pessoas ve-


nham a refletir sobre suas ações, pode parecer uma ação singela, no en-
tanto pode se tornar o primeiro passo rumo à promoção da equidade

278
lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

de gênero, a minimização das desigualdades sociais e do preconceito


de qualquer espécie. Nesse sentido, a maioria das(os) participantes ava-
liou positivamente o curso, destacando a importância de espaços como o
do referido curso para iniciar o debate. As pessoas que integraram o curso
ainda ressaltaram a importância de se repetir essa experiência, atingindo um
maior número de professoras e professores. As(os) participantes argumen-
taram que os temas abordados nesse curso são pertinentes e interessam a
professores de todas as áreas do conhecimento e que, portanto, deveria ser
estendido ao maior número possível de profissionais da educação.
As(os) integrantes do curso sugeriram a sua continuidade em forma
de especialização, para que a discussão pudesse ser mais aprofundada, pois
em 60 horas não foi possível tratar os temas com profundidade. As (os) parti-
cipantes salientaram a importância de ter contato com a teoria sobre a temá-
tica e que, com base nessa sensibilização, poderão buscar mais informações
e materiais para melhorar cada vez mais sua atuação docente.
As(os) participantes elogiaram a estrutura do curso, a clareza dos ob-
jetivos e o conhecimento e preparo dos professores responsáveis pelos mó-
dulos. Essas afirmações podem ser observadas nas seguintes falas:

O curso foi objetivo e bastante claro em seus objetivos (...) Que pena que o curso
não será para todos os professores pois as vagas eram limitadas. (Id 6)

Não ficou apenas na teoria, teve espaço para discussão e troca de experiências
entre as professora e professores, como seria bom se os cursos fossem sempre
assim. (Id 9)

Foi ministrado de forma inteligente e muito bem fundamentado por teóricos,


com falas dinâmicas. (Id 11)

Existem grupos pensantes e bem fundamentados em mobilizar cursos como


este. (Id 14)

O curso foi realizado por pessoas realmente engajadas no processo de pesquisa


de gênero. (Id 24)

Foi tão bem ministrado. Todas as pessoas envolvidas tinham muita segurança e
domínio do que estavam falando. (Id 102)

Mais disponibilizado para a comunidade escolar e acadêmica. (Id 4)

279
“o olhar não é mais o mesmo”: uma análise sobre os resultados de um curso sobre gênero e sexualidade na escola

Pudesse ser contínuo para a participação da comunidade em geral. (Id 5)

Continuasse com outras propostas ou aprofundamento. (Id 25)

Que tal se o curso se tornasse uma especialização? (Id 17)

Esses comentários servem como estímulo para que se assuma no-


vos compromissos e se busque formas de dar continuidade ao trabalho
de formação de professores, que nos relatos das(os) participantes, é fun-
damental para minimizar as situações de preconceito e discriminação.
Mesmo sendo oferecidos a um pequeno número de profissionais, os re-
sultados foram significativos e algumas sementes foram espalhadas, se-
mentes estas que podem germinar e dar frutos, levando a ações impor-
tantes a serem desenvolvidas nas escolas.

Considerações finais
A análise dos trabalhos revelou que as professoras e professores estão
interessadas(os) em debater as temáticas do curso e que demonstram
estar dispostas(os) a transformar suas práticas cotidianas com o objetivo
de construir uma educação justa e democrática, que possibilite a inclu-
são de todos(as), independentemente de gênero ou orientação sexual,
diminuindo, assim, os preconceitos e discriminações.
A análise mostrou também a pertinência do curso e a necessidade
de se desenvolver propostas similares para atingir um número cada vez
maior de profissionais. Muitos manifestaram o interesse de atuar como
multiplicadores nas suas escolas, fato que é muito importante, pois, quan-
to mais pessoas estiverem disseminando o conhecimento sobre a temáti-
ca, mais rápido os objetivos propostos nos cursos serão alcançados.
O ensino, a pesquisa e a extensão são os três pilares que sustentam
e direcionam o trabalho das universidades. Este curso evidenciou a neces-
sidade de se reforçar o trabalho de extensão, pois os resultados podem
ser muito profícuos, e, por serem cursos mais curtos, atendem a um nú-
mero grande de pessoas da comunidade, apresentando resultados mais
rápidos.
Pudemos identificar transformações significativas na forma das(os)
participantes perceberem as relações de gênero na sociedade em geral
e de modo especial na escola. Isso já havia sido notado durante as aulas,
nas quais muitas(os) expressavam as transformações pelas quais estavam

280
lindamir salete casagrande, marília gomes de carvalho e nanci stancki da luz

passando por meio de depoimentos em sala de aula ou nos corredores,


quando nos procuravam para falar das experiências que estavam viven-
ciando no seu cotidiano.
O objetivo do curso foi sensibilizar as(os) profissionais da educa-
ção sobre a importância de se refletir sobre as desigualdades de gênero,
sobre o sexismo, sobre a homofobia, bem como assegurar os direitos
sexuais e reprodutivos de meninas e meninos. Esse objetivo foi atingido
com sucesso. Após a sensibilização, as professoras e professores podem
buscar outros materiais, bibliografias e apoio para seus estudos na in-
ternet, nas universidades, nas bibliotecas, junto a grupos e núcleos de
estudo de gênero, e com isso, se preparar cada vez mais para enfrentar
as manifestações de preconceito que surgem no dia-a-dia.
Os argumentos de que o curso não pode aprofundar a discussão
sobre os temas já era esperado, pois estávamos conscientes de que não
haveria tempo para isso. O curso despertou em muitos a vontade de
continuar estudando e aprofundando seus conhecimentos. As suges-
tões de cursos de especialização são bons indícios dessa disposição.
Salientamos a importância do apoio governamental nessa em-
preitada. Sem o apoio do MEC/Secad, não seria possível viabilizar essa
oportunidade de estudo às professoras e professores. Agradecemos
também a Universidade Tecnológica Federal do Paraná pela cessão dos
espaços para planejamento e realização do curso e ao Programa de Pós-
Graduação em Tecnologia – PPGTE pelo apoio institucional dado ao Ge-
Tec durante todo este trabalho.

Notas
1 Como a maioria das/dos participantes era mulheres, usaremos o feminino como primeiro
elemento do par binário, com o objetivo de visibilizar essa predominância.
2 Agradecemos as mestres Solange Ferreira dos Santos e Cíntia de Souza Batista Tortato pela
cuidadosa leitura e seleção das falas significativas, o que facilitou este trabalho.
3 Para cada trabalho foi atribuído um código formado pelas letras “ID”, seguido de um nú-
mero que indica a seqüência de leitura. Esse código permite identificar as citações retiradas
do mesmo trabalho, bem como a diferenciação de trabalhos distintos. Assim, Id 25 significa
que a citação foi retirada do 25º trabalho lido.

281
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES

Nanci Stancki da Luz é graduada em Matemática pela Universidade Federal do Paraná e em


Direito pela UNICURITIBA, Especialista em Ensino Tecnológico e Mestre em Tecnologia
pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) e Doutora em Política Científica
e Tecnológica pela UNICAMP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e
do Departamento Acadêmico de Matemática da UTFPR. Pesquisadora e Vice-coordenadora
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Relações de Gênero e Tecnologia - GeTec. Pesquisa
sobre a temática gênero e trabalho.

Marilia Gomes de Carvalho possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Feder-
al do Paraná, mestrado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Fez Pós-Doutorado
na Université de Technologie de Compiègne-França. Atualmente é professora associada da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná e docente/pesquisadora do Programa de Pós-
Graduação em Tecnologia, onde atua na área de Dimensões Sócio-culturais da Tecnologia e
dos Estudos de Gênero e Tecnologia. Coordena o GeTec e tem diversas publicações na área
de Gênero e Tecnologia em livros, periódicos e eventos científicos nacionais e internacionais.

Lindamir Salete Casagrande é graduada em Ciências com Habilitação em Matemática pela


Fundação de Ensino Superior de Pato Branco – FUNESP, Especialista em Fundamentos da
Matemática pela mesma instituição, mestre em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Fed-
eral do Paraná – UTFPR e doutoranda em Tecnologia pela mesma Universidade. É pesquisa-
dora do GeTec e coordenadora Editorial dos Cadernos de Gênero e Tecnologia, publicação
do GeTec. Tem publicações na área de gênero e educação em eventos e periódicos nacionais
e internacionais.

Beatriz Ligmanovski Ferreira é graduada em Ciências Biológicas pela Universidade Es-


tadual de Londrina – UEL. Especialista em Metodologia e Didática de Ensino Superior pelo
Centro de Estudos Superiores de Londrina – CESULON e Especialista em Adolescência,
com Ênfase a Prevenção as Drogas pelo Centro Universitário Campos de Andrade - UNI-
ANDRADE. Mestranda em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná
– UTFPR. É pesquisadora do GeTec e assessora pedagógica da Secretaria de Estado da
Educação - SEED. Tem publicações na área de gênero e educação em eventos nacionais e
internacionais.

283
Benedito Guilherme Falcão Farias Mestre em Tecnologia pela UTFPR. É graduado
em Filosofia pela Universidade Federal de Alagoas e em Psicologia pelo Centro de Estu-
dos Superiores de Maceió - CESMAQ. Atualmente é professor da Faculdade Teológica
Batista do Paraná. É pesquisador do GeTec e tem experiência na área de Psicologia,
com ênfase em Desenvolvimento Social e da Personalidade. É Terapeuta Sexual e Es-
pecialista em Psicologia Clínica e, em Gerontologia Social . Pós-Graduado em Teologia.
Tem publicações na área de gênero e Tecnologia em eventos científicos e periódicos.

Cíntia de Souza Batista Tortato é graduada em Pedagogia pela Universidade Fed-


eral do Paraná, Especialista em Psicopedagogia pela Pontifícia Universidade Católica do
Paraná e em Educação, Tecnologia e Sociedade pela UTFPR. É Mestre em Tecnologia
pela mesma Universidade e tem experiência como professora e pedagoga em escolas
da rede pública e privada. Atualmente leciona em cursos de capacitação de professores
abordando as questões de gênero. Participa do GeTec e tem publicações na área de
gênero e educação em eventos nacionais e internacionais.

Luciana Martha Silveira é graduada em Artes plásticas pela UNICAMP, Mestre em


Multimeios pela UNICAMP e Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. At-
ualmente é coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia, PPGTE da
UTFPR; é pesquisadora do GeTec e tem publicações na área de Tecnologia e Sociedade,
com ênfase em Arte e Tecnologia.

Maria Aparecida Fleury Costa Spanger é graduada em economia, administração e


contabilidade pela PUC - MG. Possui especialização em Planejamento regional e de-
senvolvimento rural pela PUC-RS. Tem mestrado em Tecnologia pela UTFPR; é dou-
toranda do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia da UTFPR. É pesquisadora do
GeTec e desenvolve pesquisa sobre interculturalidade em empresas transnacionais.

Marlene Tamanini é graduada em ciências sociais e políticas pela Fundação Escola de


Sociologia Política, mestrado em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa
Catarina, doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina
e doutorado sanduíche no CNRS/França. Atualmente é editora colaboradora - Revista
Estudos Feministas e Revista sociedade e tecnologia da Universidade Tecnológica Fed-
eral do Paraná, professora adjunto da Universidade Federal do Paraná. Tem experiência
na área de Sociologia, com ênfase em metodologia, gênero e Trabalho. Pesquisa tec-
nologias reprodutivas conceptivas e reprodução humana, atuando principalmente nos
seguintes eixos: Produções tecnológicas e médicas em laboratório e seus efeitos produti-
vos e prescritivos nas práticas sociais, nos modelos tecno-científicos e jurídicos, referidos
a embriões, filiação, maternidade, paternidade e família.

284
Maristela Mitsuko Ono possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela UFPR,
graduação em Formação de Professores pela UTFPR, mestrado em Tecnologia pela
UTFPR e doutorado em Arquitetura e Urbanismo pela USP. Professora do Programa
de Pós-graduação em Tecnologia da UTFPR e professora colaboradora do Programa de
Pós-graduação em Design da UFPR. Editora da Revista Tecnologia e Sociedade (UTF-
PR) e autora de diversos livros na área de design e cultura. Coordena o Núcleo de Design
de Mídias Interativas no PPGTE e lidera o grupo de pesquisa Design, Arte e Tecnologia
(DArT). Dedica-se principalmente à linha de pesquisa Design e Cultura.

Ronaldo de Oliveira Corrêa é graduado em Desenho Industrial pela FT-UFAM,


Mestre em Tecnologia pelo PPGTE-UTFPR, doutor em Ciências Humanas pelo
PPGICH-UFSC. Professor da UFPR. Participa do GeTec e do Grupo de Estudos so-
bre Design e Cultura do DADIN-UTFPR. Tem publicações na área de antropologia
e estética; gênero e cultura material. Fez parte do grupo de trabalho que organizou o I
Simpósio de Gênero e Mídia que aconteceu na UTFPR; a I Jornada Simmel na UFSC;
além de coordenar, com a professora Drª. Luciana Martha Silveira o GT sobre gênero e
imagens técnicas no Congresso Internacional Fazendo Gênero, na UFSC em 2006.

Solange Ferreira dos Santos é graduada em Pedagogia pela Universidade Positivo.


Especialista em Práticas Pedagógicas em Educação Infantil e Ensino Fundamental pela
mesma instituição. Mestre em Tecnologia pelo Programa de Pós-Graduação em Tecno-
logia da UTFPR. Participa do GeTec da Universidade Tecnológica Federal do Paraná
- UTFPR.

Tânia Rosa Ferreira Cascaes é Mestre em Tecnologia pela UTFPR, Especialista


em Magistério Superior e Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do
Paraná. Atuou como professora em instituições de ensino universitário. É pesquisadora
do GeTec e participou da criação da Revista DIVERS@. Membro Efetivo do Centro de
Letras do Paraná e da Academia de Letras José de Alencar.

Toni Reis é graduado em Letras pela UFPR, especialista em Sexualidade Humana pela
Universidade Tuiuti do Paraná e Mestre de Filosofia na área de ética e sexualidade pela
Universidade Gama Filho. Atualmente é doutorando em Educação pela Universidad de
la Empresa (Montevidéu). Foi fundador do Grupo Dignidade (Curitiba) e co-fundador
da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT).
Ocupa o cargo de presidente da ABGLT (gestão 2006-2009). É integrante do Grupo de
Trabalho de acompanhamento da implementação do Programa Brasil sem Homofobia
no Ministério da Educação.

285
Este livro foi composto em tipologia MyriadPro Regular 10,8pt.
Miolo em papel off-set 75 g/m2. Capa em supremo 250 g/m2.
Impresso na Ajir Artes Gráficas e Editora.
Tel. (041) 3229-5313
vendas@ajirgrafica.com.br
Curitiba, Dezembro de 2009

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