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O Segredo Espiritual de Madame Guyon

Carmen Lucia Maioli M. Campos


cmcampos@ufla.br

Na historia da Igreja poucas pessoas têm atingido o alto grau de espiritualidade


alcançado por Mme Guyon. Em sua autobiografia ela não somente conta sua vida,
como também revela o seu íntimo, as suas lutas interiores para obter a purificação de
sua alma e a sua sensibilidade em relação à presença de Deus em sua vida. No mundo
secular ela é conhecida como uma francesa mística e escritora, uma figura central nos
debates teológicos do séc. XVII na França pela sua defesa pública do "Quietismo" (a
crença de que se deve aceitar calmamente o que acontece e que não se deve tentar
mudar as coisas).

Nascida em uma época corrupta, em uma nação marcada por sua degeneração, criada
em uma igreja devassa assim como o mundo em que estava inserida, perseguida em
cada passo do seu caminhar, tateando como fez em ignorância e desolação espiritual, ela
subiu, todavia, ao pináculo mais alto de preeminência em espiritualidade e devoção
cristã. Tendo vivido e morrido na Igreja Católica, ainda assim foi atormentada e
afligida, maltratada e abusada, e foi aprisionada por anos pelas mais altas autoridades da
Igreja. O seu único crime foi o de amar a Deus. A sua culpa foi a sua suprema devoção
e afeição a Cristo. Quando pediram seu dinheiro e propriedade, alegremente os
entregou.

Mme Guyon, cujo nome completo de solteira era Jeanne Marie Bouvier de La Motte,
nasceu em 13 de abril de 1648 em Montargis, França. Seus pais, particularmente seu
pai, eram extremamente piedosos, mas para seu pai isto era um comportamento e
conduta hereditários. Muitos de seus ancestrais eram santos.

Foi um bebê prematuro de oito meses devido a um choque que sua mãe sofreu. Com
isto teve de lutar muito para sobreviver, o que deixou seus pais muito apreensivos, pois
eles temiam que ela não chegasse a ser batizada, o que não aconteceu. Ela continuou
muito doente até à idade de dois anos e meio, quando então foi enviada por seus pais
para o Convento das Ursulinas, onde permaneceu por poucos meses. Sua mãe não lhe
dava nenhuma atenção, não gostava muito de filhas e com isso a entregou inteiramente
aos cuidados das servas. Em sua autobiografia, Mme Guyon diz que se não fosse pela
constante vigilância de seu Protetor (Deus), a quem sempre se referia como a
¡¥Providência¡¦, teria tido severos sofrimentos em todos os sentidos. O Senhor a
protegeu e a guardou de muitas coisas.

Aos quatro anos, por permissão concedida por seu pai, foi viver no Convento das
Beneditinas, levada pela Duquesa de Montbason, a qual gostou muito da menina devido
à sua maneira alegre, doce e esportiva de ser. Como toda criança, ela fazia muitas artes,
mas já era desde esta tenra idade atraída pelas coisas de Deus. Gostava de ouvir falar
Dele, de estar na Igreja e de ser vestida com vestes religiosas. Já nesta época lhe foi dito
sobre os terrores do inferno, o que acreditava que houvesse sido com a intenção de
intimidá-la, devido ao fato de ser extremamente cheia de vivacidade e presença de
espírito. Todavia esta impressão deixada nela foi tão forte que, em sua autobiografia, ela
disse que o tempo nunca foi capaz de amenizar estas idéias temerosas da sua mente.

Depois deste período voltou para casa, e novamente foi negligenciada por sua mãe e
entregue aos cuidados dos empregados.

Aos sete anos voltou para o Convento das Ursulinas, onde encontrou duas meia-irmãs.
Sua irmã por parte de pai foi de muita ajuda para sua vida espiritual. Ela veio a ser
quem proveu os primeiros meios de salvação na vida de Mme Guyon. Era muito gentil e
amava muito a menina, sabendo despertar nela as boas qualidades que ela tinha e
instruí-la na piedade.

Por solicitação de seu pai, ela sempre o visitava em casa e em uma destas visitas
encontrou a rainha da Inglaterra, a qual ficou tão impressionada com suas atitudes e
respostas que pediu a seu pai consentimento para levá-la para a corte, sob seus cuidados,
para ser dama de companhia da princesa. Seu pai não permitiu, o que ela atribuiu à
providência de Deus para que não fosse influenciada pelas tentações e divertimentos da
corte. Assim continuou ainda um tempo com as Ursulinas, tempo em que por não poder
permanecer continuamente com sua irmã, adquiriu muitos maus hábitos como mentira,
impertinência e falta de devoção, passando às vezes dias inteiros sem pensar em Deus.
Mas ela conta que apesar disto, Deus sempre a observava e vigiava, providenciando
para que voltasse aos cuidados de sua irmã, deixando assim os péssimos hábitos. Deus
sempre lhe mostrou Sua graça, mesmo nas suas infidelidades.

Tinha tremendo prazer em ouvir falar de Deus, não se cansava da Igreja, gostava de
orar, tinha afeto pelos pobres e tinha um desgosto natural pelas doutrinas que eram
julgadas infundadas. É impressionante como Mme Guyon, ainda uma criança de sete
anos, tinha certas atitudes de auto-sacrifício. É bom salientar aqui que mesmo muitas
vezes sendo castigada, tanto em sua infância como também depois em sua fase já adulta,
ela declarou em seu livro que não se lembrava de temer qualquer castigo mais do que
temia causar dor Àquele a quem amava, a ponto de declarar que mesmo que não
existisse "céu ou inferno" ela sempre iria reter o mesmo temor de desagradar a Deus.

Aos dez anos foi transferida do Convento das Ursulinas para outro da ordem de St.
Dominie. Aliás, apesar da Madre gostar muito dela, não tinha muito tempo para a
menina e ela com isto não teve quase nenhum cuidado, caiu muito doente e passava
muito tempo sozinha. Achando uma Bíblia, passava dias e dias lendo-a de manhã até à
noite, sendo esta a sua distração.

Após oito meses retornou para casa, onde conseguiu obter um cuidado um pouco
melhor de sua mãe. Mesmo assim, era maltratada e sofria muitas injúrias por parte de
seu irmão, o qual estava sempre certo e com razão. Sua mãe, e por conseqüência
também os criados, fazia uma distinção muito grande entre ela e seu irmão, o qual
também aprendeu com isto a desprezá-la. Esta animosidade dele para com ela nunca se
desfez e isto trouxe muitos problemas mais tarde no relacionamento entre ambos. Ela
sofreu neste tempo muitas doenças, perseguições e incompreensões dentro da própria
casa, vindas muitas vezes de sua própria mãe. Este comportamento da família em
relação a ela foi a causa de muitas de suas atitudes erradas, pois não tinha estímulo
nenhum de fazer o certo. Ela nunca tinha razão de coisa alguma. Mas apesar destas
faltas, era muito amável e caridosa com os pobres, orava a Deus assiduamente, amava
ouvir falar sobre Ele e ler bons livros. Apesar de todas as suas faltas o Senhor sempre a
cercou e a conquistou.

Aos onze anos recebeu sua Primeira Comunhão no meio das Ursulinas. Nesta ocasião se
dispôs a entregar-se a Deus com vontade. Ela sempre possuía esta luta em seu interior
entre as suas boas inclinações e seus hábitos ruins. Por causa disto sempre fazia
penitências. O tipo de educação que teve, contribuiu muitas vezes para afastá-la das
coisas de Deus, pois por sua própria natureza, era muito atraída ao bem e a Deus.

Como cresceu e se tornou uma jovem muito bonita, sua mãe a aceitou melhor, tendo um
certo orgulho desta beleza que Deus tinha presenteado a sua filha (para louvor Dele).
Entretanto, esta beleza trouxe a Mme Guyon uma espécie de orgulho e vaidade. Tinha
apenas doze anos e já recebia muitas propostas de casamento, as quais seu pai recusava.
Mme Guyon começou a despertar-se tremendamente para sua salvação, o que a levou a
procurar seu confessor, preocupada com isto. Tinha lutas constantes: ora cheia de ardor
pelo Senhor, ora tão longe Dele. Mas ela declarou que "o Deus de amor sempre batia à
porta do seu coração¨.

Nessa época ela seguia os exercícios religiosos, lia e orava o dia todo, dava tudo o que
tinha aos pobres, ensinava-lhes o catecismo e os servia com alimentos. Lia também
muitas obras de escritores religiosos, entre eles os escritos de Mme Chantal, a qual a
influenciou de tal maneira que Mme Guyon procurava imitá-la em tudo. Nesta mesma
época ela expressou um grande desejo de se tornar uma freira, contra a vontade de seu
pai, por isto este desejo nunca se concretizou. Também outra coisa que influenciou
muito sua vida, foi o fato de sua mãe ser muito caridosa, nunca deixando o necessitado
sem ajuda. Ela disse que Deus a favoreceu com a benção de ser a sucessora da sua mãe
neste hábito santo.

Mme Guyon tinha altos e baixos. Apesar de manter as aparências, interiormente


começou a se afastar de Deus e dar lugar à vaidade. Vaidade esta tanto em relação à sua
aparência como também à sua reputação. A alta estima que tinha por si mesma a fazia
achar erros em todas as outras pessoas. Nesta fase começou a ler outros livros ao invés
de literatura santa, gastando horas em alimentar sua vaidade própria. Mas como dizia,
"Deus sempre batia à porta do seu coração", o que muitas vezes a levava às lágrimas.
Ela conta em sua autobiografia que esta triste experiência lhe deu muita compaixão
pelos pecadores, ensinando-a a razão de tão poucos emergirem deste estado miserável
no qual são tão suscetíveis de entrarem. Ela declarou que na luta que as pessoas têm
contra a apatia espiritual, da qual é difícil sair, o único remédio é a oração. Sobre isto
afirmou: "o diabo se opõe tremendamente tentando convencer as pessoas de que
primeiro elas precisam ser perfeitamente convertidas¨.

Aliás, ela faz uma ressalva aqui! O diabo usa todas as suas forças contra a oração e
contra aqueles que a praticam, porque ele sabe que este é o verdadeiro meio de tomar
uma presa das mãos dele. Ele não se importa muito com os serviços que fazemos e nem
com a nossa inteireza de caráter na qual procuramos andar, mas tão logo entramos na
vida espiritual, uma vida de oração, temos que estar preparados para todo tipo de cruz
que virá. Todo tipo de desprezo e perseguição que neste mundo está reservado para esta
vida.

É interessante mencionar aqui que, como se sabe, Mme Guyon viveu em uma fase de
transição da Igreja, quando havia ainda muita mistura e a verdade não havia sido
totalmente restaurada. Com isto ela recorria ao seu confessor em busca de ajuda para a
sua luta interior de altos e baixos, confessava regularmente, não falhava em recitar suas
orações todos os dias, tomar parte na comunhão quinzenalmente e orar à "Abençoada
Virgem" para obter a sua conversão. Quando seus pais iam a alguma romaria, não
conseguia dormir de tão excitada com o evento. Seu pai em tais épocas sempre
conversava sobre assuntos divinos aos quais ela preferia ao invés de qualquer outro.
Amava aos pobres e era muito caridosa.

Ao falar sobre os sentimentos de luta interior que tinha nesta época, declarou em seu
livro: "Quão estranho isto pode parecer às pessoas, quão difícil de reconciliar coisas tão
opostas."

Aos quinze anos Mme Guyon se casou com Jacques Guyon, Lord du Chesnoy, em um
casamento arranjado por seu pai. Deste casamento teve cinco filhos. A princípio ela
ficou satisfeita, pois via neste casamento uma oportunidade de livrar-se dos maus tratos
de sua mãe. Mas Deus tinha um propósito totalmente oposto. A condição na qual se
encontrou mais tarde frustrou suas esperanças.

Mesmo antes deste casamento se realizar, apesar de feliz a princípio, ela entrou em
tremenda luta e confusão interior. Lembrou-se de seu desejo anterior de se tornar uma
freira e isto lhe trouxe muita insegurança. Ela conta que enquanto estavam todos se
alegrando, somente ela estava deprimida e triste.

Com seu casamento, viu-se obrigada a mudar sua conduta, perder toda sua maneira
nobre e elegante de viver, seus tratos finos, enfim, tudo o que havia adquirido com tanta
dedicação em sua educação. O modo de vida da família de seu marido era muito
diferente do da casa de seu pai. Ela havia sido ensinada e incentivada a expor suas
idéias com firmeza, sendo aplaudida por isto. Agora tudo o que dizia era tido como uma
afronta a eles e sempre ocasionava mal entendido, levando-os a distratarem-na. Sua
sogra sempre censurava a família dela. Eles a forçavam a ficar em silêncio de uma
forma bruta e vergonhosa e brigavam com ela de manhã até à noite.

Sua sogra tanto se opunha a ela que lhe dava as tarefas mais humilhantes para fazer.
Toda a ocupação de sua sogra era de frustrá-la e inspirar os mesmos sentimentos em seu
filho, o qual dava muito crédito a tudo que sua mãe dizia a respeito dela, embora muitas
vezes tomasse sua defesa. A diferença de idade entre ela e seu marido também agravava
a situação, pois isto lhe dava uma certa distância (ele era vinte e dois anos mais velho).
Apesar disto, ela afirmou que seu marido a amava; não fosse por sua sogra e sua serva,
poderia ter sido muito feliz com ele. Sua sogra a difamava entre as pessoas dizendo que
ela tinha um espírito mau, fazendo com que cada vez mais ela se fechasse dentro de si
mesma. Para aumentar ainda mais suas cruzes, sua própria mãe falava mal dela com sua
sogra.

Faziam com que as pessoas de classe inferior fossem colocadas acima dela. Sua
condição no casamento era mais a de uma escrava do que a de uma pessoa livre. Deram
a ela uma serva que além de destratá-la o tempo todo de formas absurdas (com berros e
maus tratos), a vigiava constantemente como uma governanta, não somente ela, mas
também todos os outros empregados.

Tal era seu sofrimento que estava quase pronta a morrer com as agonias de sua dor e
contínuo tormento e afronta. Ela disse que comia o pão de dores e misturava as suas
lágrimas com a sua bebida.

Mme Guyon se referiu em seu livro a esta nova fase de sua vida da seguinte maneira:
"Eu lhe peço para não interpretar as coisas aos olhos da criatura, o que faria com que
essas pessoas pareçam piores do que eram. Minha sogra era virtuosa, meu marido era
religioso e não tinha nenhum vício. Devemos olhar todas as coisas aos olhos de Deus.
Ele permitiu tudo somente para a minha salvação e porque Ele não queria que eu me
perdesse. Além disso, tinha tanto orgulho, que tivesse eu recebido qualquer outra forma
de tratamento, teria continuado da mesma maneira, sem talvez me voltar para Deus da
forma como fui induzida a fazê-lo, pela opressão de uma multidão de cruzes¨.

Foi nessa condição tão deplorável que começou a perceber a necessidade da assistência
de Deus. Essas cruzes a atraíram a Ele. Orava ao Senhor para ajudá-la e Ele era o seu
refúgio. Ela declarou em seu livro: "A conduta deles em relação a mim, a qual parece
tão sem sentido, não deve ser encarada com olhos terrenos. Devemos olhar mais alto e
então veremos que isso foi direcionado pela Providência para minha vantagem e
galardão eterno¨.

Tudo isto, como ela mesma afirmou, a fez morrer para sua vã e soberba natureza. Ela
começou a achar em Deus razões para o sofrimento, o qual lhe era bem necessário.

Foi perto de seus dezoito anos, próximo dos dias de ganhar seu segundo filho que Mme
Guyon experimentou sua verdadeira conversão, com a ajuda de um religioso da ordem
de São Francisco, com poucas palavras tais como: "Procure Deus no seu coração e você
o encontrará ali". Estas palavras foram como um dardo que penetrou até o fundo do seu
coração, trazendo-lhe aquilo que ela havia estado procurando por tantos anos. Ainda
mais, elas lhe revelaram o que estava ali, o que ela ainda não havia desfrutado por não
saber.

Diante disto, exclamou: "Ó Senhor, Tu estavas em meu coração, e somente esperavas
por um simples voltar-me para dentro de mim mesma para perceber a Tua presença. Ó
Infinita Bondade! Quanto que eu corria de lá prá cá procurando a Ti; minha vida era um
fardo para mim, apesar da minha felicidade estar dentro de mim mesma. Eu era pobre
no meio de riquezas, e pronta a perecer de fome junto a uma mesa fartamente posta
numa festa contínua. Ó Formoso, antigo e novo, por que fui Te conhecer tão tarde? Ai
de mim! Eu Te procurava aonde não estavas, e não aonde Tu estavas. Eu estava à
procura de entendimento destas palavras do Teu evangelho: "...Não vem o reino de
Deus com visível aparência... o reino de Deus está dentro de vós" (Lucas 17:20,21). Isso
agora eu experimentei, pois Tu Te tornaste o meu Rei, e o meu coração o Teu reino, no
qual Tu Te tornaste supremo e realizaste toda a Tua vontade sagrada.

Eu não tenho agora qualquer outra visão, senão a de Jesus Cristo somente. Quão
tremenda é a revelação de Jesus Cristo à alma quando a Palavra Eterna é comunicada.
Isso nos torna novas criaturas, criadas de novo Nele¨.
Depois desta experiência ela começou a buscar mais ainda os interesses de Deus do que
os dela, a esperar grandes sofrimentos e a desejar uma mortificação a tudo do eu. O
amor de Deus ocupava o seu coração tão constante e fortemente que não podia pensar
em mais nada. Na realidade, ela não julgava nada digno de seus pensamentos que não
fosse Deus. Esta sua imersão em Deus absorveu todas as coisas. Apesar de amar
ternamente certos santos como São Pedro, São Paulo, Santa Maria Madalena, Santa
Teresa, ainda assim não podia pensar mais neles, nem invocá-los, senão a Deus. Seu
único prazer agora era arranjar momentos para ficar completamente sozinha com o
Senhor. Todos os outros prazeres lhe eram dolorosos. Em sua feliz experiência, sabia
que a alma tinha sido criada para desfrutar do seu Deus.

Suas palavras: "Quando a vontade da criatura se submete a Deus inteiramente,


entregando tudo à vontade divina, deixando-se ser totalmente aniquilada, através da
operação de amor (cruzes), essa vontade é absorvida pela de Deus e o ser é purificado
do eu. Quanto mais Deus aumenta o meu amor e minha paciência, menos temor e
respeito tenho pelas cruzes mais opressoras, mas o amor as torna fáceis de suportar¨.

Ela ainda deixou escritas estas palavras para definir o que estava se passando em seu
coração: "Eu esperava continuamente Nele e Ele me vigiava incessantemente, e de tal
forma me conduzia pela Sua Providência que esquecia todas as outras coisas. Eu não
sabia como comunicar o que sentia para ninguém. Estava tão imersa em mim mesma
que raramente conseguia fazer um auto-exame. Quando tentava, tudo na minha mente se
confundia. Eu me encontrava ocupada com o meu Único Objeto. Estava absorvida numa
paz inexprimível, via com os olhos da fé que era Deus que me possuía totalmente dessa
forma. Mas não era de se supor que o amor divino permitisse que as minhas faltas
ficassem sem punição. Com que rigor o Senhor pune os Seus fiéis e amados filhos.
Nessas horas não devemos buscar aliviar nossas dores tentando achar consolo em outras
pessoas, abrindo o nosso coração. Deveríamos antes suportar as provações
passivamente enquanto duram, para que a obra que o Senhor quer realizar em nós seja
completada e assim avancemos mais no nosso processo espiritual. Isso é difícil e requer
grande firmeza e coragem. Muitos não avançaram mais no seu caminhar por causa da
impaciência e por procurarem meios de consolação¨.

Quando enxergou tudo isto, começou a suportar silenciosamente os agravos de seu


marido e de sua sogra. Isto passou a não ser tão difícil para ela devido à grandeza de sua
ocupação interior, o que a mantinha insensível a todo o resto. Com esta atitude, sua
situação em casa piorou ainda mais. Todos em sua casa desfaziam dela, desde o marido
até a criada. Suportava tudo em profundo silêncio, estando recolhida no Senhor. Desta
forma passou a viver, e o mundo, vendo que ela o tinha deixado, passou a perseguí-la,
fazendo-a passar por ridícula e objeto de muitas fábulas. Ele não podia aceitar que uma
mulher ainda tão nova, com quase vinte anos agora, pudesse desprezá-lo e ser vitoriosa
sobre ele. Ela tinha bem pouca comunhão com este mundo e parecia experimentar
literalmente as palavras de Paulo: "...já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em
mim". Ela não foi compreendida apenas no mundo secular, mas também passou a ser
incompreendida no mundo religioso. Aqueles que estavam aquém desta nova
experiência que ela vivia, ou por inveja ou por ignorância, também passaram a perseguí-
la.

Mme Guyon começou a experimentar um estado de oração contínua, uma vida de


oração silenciosa. Ela declarou: "A oração para mim era recompensada com a cruz, e a
cruz com a oração. Dons inseparáveis e unidos em meu coração e vida". O clérigo de
Paris da época declarou que nunca tinha visto uma mulher a quem Deus mantinha tão
perto Dele e em tão grande pureza de consciência. Ela declarou que o que a mantinha
assim era o cuidado contínuo de Deus sobre si, fazendo-a sentir a sua presença como
Ele prometeu no Evangelho.

"Se alguém me ama, guardará a minha Palavra; e meu Pai o amará, e viremos para ele e
faremos nele morada". (João 14:23)

"Se o Senhor não edificar a casa, em vão trabalham os que a edificam; se o Senhor não
guardar a cidade, em vão vigia a sentinela". (Salmo 127:1)

Ela disse: "Deixem outros atribuírem a vitória à própria fidelidade deles. Quanto a mim,
nunca a atribuirei a coisa alguma que não seja o Teu cuidado paternal".

É interessante notar que mesmo tendo atingido esta compreensão espiritual, ainda tinha
tempos de lutas interiores com sua vaidade, que segundo ela mesma mencionou, foi
algo muito difícil de deixar, pois emergia quando ocasiões eram proporcionadas,
embora ela rapidamente retornasse para Deus.

Ela declarou: "Ó Senhor, não és todo suficientemente forte para erradicar esta
duplicidade injusta do meu coração? Pois se alguém ler esta vida com atenção, verá da
parte de Deus somente bondade, misericórdia e amor; e da minha parte, fraqueza,
pecado e infidelidade".

Fosse o que fosse que tivesse de suportar, suportava em silêncio, sem se justificar,
entregando tudo Àquele que é amor. O seu coração tinha uma linguagem que era feita
sem o som de palavras, entendida por Deus, visto que só Ele é capaz de entender a
linguagem da Palavra, a qual incessantemente fala bem dentro da alma.

Outro golpe na vida de Mme Guyon foi a perda de seu pai e sua filha ao mesmo tempo,
logo após ela se restabelecer de varíola. Ambos morreram em 1672 quando Mme
Guyon estava então com vinte e quatro anos.

Ela teve mais dois filhos depois disto (um filho e uma filha, à qual deu à luz pouco antes
de seu marido falecer).

Com a morte de seu marido, em julho de 1676, Mme Guyon entrou em seu quarto e em
frente à imagem de Cristo, renovou seu contrato de casamento com seu esposo divino,
fazendo um voto de castidade e fidelidade eternas.

Sendo agora uma viúva, suas dores aumentaram ainda mais. Sua sogra e criada
mostraram um desprezo ainda mais intenso por ela. Passado algum tempo, ela se
separou amigavelmente de sua sogra, passando a viver sozinha com seus filhos. O
curioso é que com o tempo Deus mudou a situação, e ela passou a ter um bom
relacionamento com sua sogra. Também aos poucos foi sendo mal entendida pelos
religiosos da igreja e perseguida.

Foi então que conheceu o Padre Lacombe, mais ou menos na mesma ocasião em que
um forte impulso no seu interior a impelia para ir a Genebra, ao que ela teve uma certa
relutância, indagando-se se seria correto: "Deverei chegar a tal excesso de impiedade a
ponto de abandonar a fé através da apostasia? Estarei a ponto de largar essa Igreja, pela
qual daria mil vidas? Ou, cairia da fé à qual eu selaria até mesmo com o meu sangue?"

Contudo recebeu muitas confirmações para ir a Genebra, através de cartas, sonhos, e até
mesmo do Padre Lacombe, com quem a partir de então passou a ter fortes laços
espirituais. Eles tinham um entendimento espiritual mútuo e compartilhavam de uma
influência e compreensão espirituais recíprocas.

Com muita relutância se separou de seus filhos, levando consigo somente sua filha mais
nova. Entendeu firmemente que esta era a vontade de Deus, e se dispôs a deixar todas as
coisas em submissão a seu Senhor, já que era isto que Ele estava requerendo dela, e
entregou tudo à Providência. Ela disse: "Os laços com os quais o Senhor me mantém
unida a Ele, são infinitamente mais fortes do que aqueles da carne e do sangue".

Ela nunca duvidou desta ter sido a vontade de Deus; mesmo quando a criticavam,
permanecia firme. Renunciou à família, posição, seus bens, passando a viver sem muito
sustento, tendo por grande gozo poder padecer tudo por Aquele que " Si mesmo se
entregou por nós".

Para resumir, ela começou a viajar com a ajuda do Padre Lacombe, que a conduziu
através de muitos ciclos de desenvolvimento espiritual pessoal, para Genebra, Turim e
Grenoble.

A natureza dos seus ensinamentos, considerada herética pela Igreja Católica, porque
tendia a excluir o mundo exterior e os mecanismos da Igreja, levantaram suspeitas e
resistência de bispos locais, sendo com isso sempre obrigada a mudar dos lugares e até
muitas vezes a se esconder. Mas sempre encontrava aqueles que estavam em busca
dessa comunhão com Deus, aos quais não negligenciava em ajudar. Como ela mesma
declarou em seu livro, passou a ser mãe de muitos filhos. Nesta época ela teve
revelações de que as suas cruzes aumentariam e de que ainda iria padecer muito por
Cristo, o que recebeu com grande alegria e paz interior.

Foi neste período que publicou a mais importante de suas obras, cujo título é "O
Resumido e Fácil Método de Oração".

Em 1687, Lacombe foi preso, onde morreu, e Mme Guyon foi aprisionada em 1688.
Mas não ficou presa muito tempo. Foi solta poucos meses depois sob a intervenção de
Mme de Maintenon, a segunda esposa de Luis XIV, que além de admirá-la muito,
introduziu-a no círculo real, onde Mme Guyon pôde influenciar espiritualmente muitas
pessoas.

Foi quando conheceu seu maior discípulo, Frei Fénelon, o qual encontrou nos seus
ensinamentos as respostas para seus dilemas espirituais. Os escritos de Fénelon, então
influenciados pelo ¡¥¡¥Quietismo¡¦¡¦, geraram um grande alarme no meio religioso e
político, o que acabou ocasionando uma Conferência em Issy em 1695, na qual Fénelon
defendia os ensinamentos de Mme Guyon.

Estes ensinamentos foram condenados pela Igreja Católica e Mme Guyon acabou sendo
presa, ficando ali até 1703, quando então foi solta. Um de seus grandes perseguidores
foi o Padre de La Motte, seu próprio irmão. Ela passou a viver então em Blois, onde
escreveu muitos dos seus ensinamentos e experiências.

Morreu em 9 de junho de 1717, aos setenta anos.

Afirmações que ela fez:

"Nosso Senhor tem dado a esta minha alma as qualidades da pedra: firmeza, resignação,
insensibilidade e poder para suportar as duras lutas e provações sob as operações de
Suas mãos".

"Eu vi que o amor de Deus na minha alma era perfeito, sendo sem nenhuma reserva,
divisão ou qualquer interesse. Pobreza perfeita, pela privação total de tudo que era meu,
tanto interiormente como exteriormente. Obediência perfeita à vontade de Deus,
submissão à Igreja e honra a Jesus Cristo por amar somente a Ele. Quando pela perda de
nós mesmos, nos entregamos ao Senhor, nossa vontade se torna a mesma e única com a
do Senhor, conforme a oração de Cristo: 'a fim de que todos sejam um, e como és Tu,
O¡¦ Pai, em mim e eu em Ti, também sejam eles em nós'. (João 17:21)

"Quanto a mim, eu posso dizer que tenho uma dependência de Deus contínua, em
qualquer situação; minha alma está sempre pronta a obedecer todo movimento do Seu
Espírito. Penso que não há nada no mundo que o Senhor possa requerer de mim, que eu
não entregue prontamente e com prazer a Ele. Não tenho qualquer forma de interesse
por mim mesma. Quando Deus requer qualquer coisa desta pobre alma, que está
reduzida a nada, não encontro nenhuma resistência em mim em fazer a Sua vontade, por
mais dura ou rigorosa que possa ser. Se existe um coração neste mundo, do qual Ele é o
Mestre único e absoluto, o meu parece ser um deles. A Sua vontade, embora rigorosa é
a minha vida e prazer".

"Perder tudo por Ele é o meu maior ganho; e ganhar tudo sem Ele seria a minha maior e
pior perda".

"Enquanto eu era prisioneira em Vincennes, e o Senhor De La Reine me interrogava, eu


passava o meu tempo em grande paz, contente de passar o resto da minha vida lá, se tal
fosse a vontade de Deus. Eu entoava cânticos de alegria, os quais a criada que me servia
aprendia a cantar, tão rápido eu os compunha. Juntas cantávamos Seus louvores, O¡¦
meu Deus! As pedras da minha prisão pareciam aos meus olhos como rubis; eu as
estimava mais do que o brilho sedutor de um mundo vão. Meu coração estava cheio
daquele gozo, o qual Ele concede àqueles que O amam, no meio de suas grandes e
pesadas cruzes".

BIBLIOGRAFIA

Madame Guyon - An Autobiography, Moody Press - Chicago. (1988).

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