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Da sociedade industrial à sociedade urbana: apontando caminhos do

prolongamento da utopia marxista a partir de Henri Lefebvre


Elisa Favaro Verdi
Universidade de São Paulo – USP
elisafverdi@yahoo.com.br

Neste trabalho, que constitui parte de um projeto de mestrado, buscamos


compreender o movimento dos aspectos quantitativos e qualitativos da relação entre a
sociedade e a natureza. Baseando-nos principalmente em Karl Marx e Henri Lefebvre,
acreditamos que a busca pela compreensão dessa relação poderá nos revelar alguns
apontamentos sobre a produção. Nos desafiamos, assim, a buscar em Henri Lefebvre
esse movimento, tentando apontar como o filósofo compreende essa relação entre
qualidade e quantidade no âmbito da produção. A partir desses autores, nos
questionamos como o processo industrial se relaciona com o mundo da mercadoria e
transforma as relações sociais, conforme desenvolvido por Lefebvre (1973; 1999; 2008)
e também por Smith (1988). De acordo com Carlos (2011a), é o filósofo Henri Lefebvre
que identifica em Karl Marx o processo quantitativo e qualitativo que citamos
anteriormente. Dessa relação dialética, Lefebvre desenvolve a produção no seu sentido
filosófico: de mercadorias, da arte, do conhecimento, do humano.
Em vários momentos de sua longa obra, Lefebvre insiste sobre a dupla
determinação da noção de produção a partir da observação de que ela
tem um duplo caráter. O primeiro deles é o caráter da produção lato
sensu, que diz respeito ao processo de produção do humano. Baseado
na tradição hegeliana, Lefebvre aponta a produção do ser enquanto ser
genérico. O segundo é o da produção strictu sensu, que diz respeito,
exclusivamente, ao processo de produção de objetos. Mas o processo
de produção de mercadorias se realiza produzindo não só a divisão
técnica do trabalho dentro da empresa, a divisão entre processo de
produção e processo de circulação, mas, também, produzindo relações
sociais mais amplas e complexas que extrapolam as esferas da
empresa e tomam a sociedade como um todo. Dessa forma, ambos os
modos estão interconectados. (CARLOS, 2011b; 49).

Para Lefebvre (1973), esse processo é o fundamento do que o autor vai


denominar de a reprodução das relações sociais de produção. A reprodução das
relações sociais de produção, para Lefebvre (1973), se coloca como conceito e como
realidade por tratar-se do capitalismo como modo de produção, como realidade nunca
acabada nem sistematizada, sempre em reprodução. Lefebvre (1973), na sua obra
intitulada A re-produção das relações de produção, se coloca a seguinte questão: como,
depois de inúmeras crises econômicas, o capitalismo ainda se mantém? Onde ele se
reproduz, se reinventa, superando as crises econômicas? Se, como nos mostrou
Lefebvre (1973), as relações capitalistas deixam o chão da fábrica e se espraiam,
transformando qualitativamente as relações sociais fora da empresa, se a divisão do
trabalho se espraia, é nesse movimento que devemos buscar o lugar da reprodução
capitalista. Aqui, Lefebvre (1973) encontra a reprodução das relações sociais de
produção, movimento que revela a capacidade do capitalismo de se manter quando
passados os seus momentos críticos. “Desta análise resulta que o lugar da re-produção
das relações da produção não se pode localizar na empresa, no local de trabalho e nas
relações de trabalho. A pergunta proposta formula-se assim em toda a sua amplitude:
onde se reproduzem essas relações?” (LEFEBVRE, 1973; 93).
Lefebvre (1973) argumenta que a reprodução das relações de produção revela,
muito mais que o modo de produção, as contradições existentes na reprodução do
capitalismo. Para Lefebvre (1973), o conceito de reprodução das relações de produção
aflora na obra de Marx no momento em que ele formula o conceito de modo de
produção.
No decurso do processo aqui brevemente analisado, o modo de
produção capitalista realizou o seu conceito tal como Marx o havia
determinado, deixando na obscuridade as modalidades dessa
realização; ele absorveu, resolveu, integrou o que lhe transmitia a
história, quer dizer, as relações de produção pré-capitalistas, a
agricultura, a cidade, os diversos sub-sistemas e aparelhos pré-
existentes, tais como o conhecimento, a justiça, etc. Subordinou tudo
ao seu funcionamento, estendendo-se a todo o espaço; ao mesmo
tempo, e por via disso, ele realizou, quer dizer, desnudou e
aprofundou as suas contradições. Ele produziu até novidades, que
tendem a transbordá-lo. (LEFEBVRE, 1973; 41).

Para Lefebvre (1973), o modo de produção não é estritamente econômico, pois


abarca as ideologias, as relações sociais como relações de produção. As relações de
produção, para Lefebvre (1973), são resultado incessantemente renovado do processo de
produção, e portanto a reprodução é também reprodução das relações de produção. Nas
palavras dele,
Ora, as relações sociais não se produzem nem se reproduzem apenas
no espaço social em que a classe operária age, pensa e se localiza, isto
é, a empresa. Reproduzem-se no mercado, no sentido mais amplo do
termo, na vida quotidiana, na família, na ‘cidade’; reproduzem-se
também onde a mais-valia global da sociedade se realiza, se reparte e
é despendida, no funcionamento global da sociedade, na arte, na
cultura, na ciência e em muitos outros sectores, mesmo no exército.
(LEFEBVRE, 1973; 110).
Neste trecho, percebemos o momento em que Lefebvre (1973), inicialmente,
identifica o lugar da reprodução das relações sociais, que são relações de produção, a
partir do momento em que essas relações de produção deixam a empresa, o lugar da
produção de mercadorias strictu sensu, e se espraiam para toda a sociedade. Lefebvre
(1973), a partir dessa consideração, nos coloca uma outra questão: onde se reproduz a
reprodução das relações de produção? Considerando que as gerações passam, os
homens, os trabalhadores, a burguesia muda e as relações sociais estruturais
permanecem, onde está essa manutenção, essa reprodução?
Para descortinar essa questão, Lefebvre (1973) nos coloca diante da educação,
da ideologia, do discurso, do quotidiano e do urbano, para finalmente alcançar a
produção do espaço1. A partir de agora, nesse trabalho, vamos caminhar na direção de, a
partir das leituras realizadas de Henri Lefebvre, acompanhar esse movimento mais
especificamente no urbano.
Para Lencioni (2008), Lefebvre situa a sociedade urbana no âmbito da
industrialização, não sendo um subproduto desta. A sociedade urbana se refere à
sociedade que nasce da industrialização e a sucede, no sentido da urbanização completa
da sociedade, que é hoje virtual e amanhã real, ou seja, um movimento em constituição
(LEFEBVRE, 1999). Assim, a sociedade urbana, ou o urbano, constituem o que
Lefebvre (1999) denomina de objeto virtual, um objeto contido na hipótese (nesse caso,
a urbanização completa da sociedade), que indica mais do que o empírico, mas a
tendência e a virtualidade da realização desse objeto. “Para nós, aqui, o objeto se inclui
na hipótese, ao mesmo tempo em que a hipótese refere-se ao objeto. Se esse ‘objeto’ se
situa além do constatável (empírico), nem por isso ele é fictício. Enunciamos um objeto
virtual, a sociedade urbana, ou seja, um objeto possível, do qual teremos que mostrar o
nascimento e o desenvolvimento relacionando-os a um processo e a uma práxis (uma
ação prática).” (LEFEBVRE, 1999; 16). Dessa forma, a industrialização caracteriza a
sociedade moderna, que se pode definir como a sociedade urbana, a realidade social que
nasce à nossa volta (LEFEBVRE, 2008b).
Nesse momento, é importante fazer uma diferenciação entre o que denominamos
até aqui, apoiados em Lefebvre (1973; 1999; 2008b), de urbano, e o que o próprio autor

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“O capitalismo não subordinou apenas a si próprio sectores exteriores e anteriores: produziu sectores
novos transformando o que pré-existia, revolvendo de cabo a rabo as organizações e as instituições
correspondentes. É o que se passa com a ‘arte’, com o saber, com os ‘lazeres’, com a realidade urbana e a
realidade quotidiana.” (LEFEBVRE, 1973; 95).
denomina de cidade. Para Lefebvre (1999), a cidade é anterior à industrialização, e
portanto ao urbano. Traçando um eixo que vai “da ausência de urbanização (a ‘pura
natureza’, a terra entregue aos ‘elementos’) à culminação do processo” (LEFEBVRE,
1999; 20), à sociedade urbana, ou seja, do 0 ao 100% de urbanização, Lefebvre (1999)
localiza nesse eixo, tanto temporalmente quanto espacialmente, diferentes balizas do
fenômeno urbano, buscando tanto a origem histórica quanto a origem lógica da
urbanização, buscando os seus fundamentos (CARLOS, 2011a). Em torno do “zero
inicial”, Lefebvre (1999) localiza os primeiros agrupamentos humanos, de coletores,
pescadores, caçadores e pastores, que marcaram e nomearam o espaço. Essa topologia,
depois da sedentarização, foi aperfeiçoada pelos camponeses, na forma das aldeias. Para
Lefebvre (1999), “O que importa é saber que em muitos lugares no mundo, e sem
dúvida em todos os lugares onde a história aparece, a cidade acompanhou ou seguiu de
perto a aldeia.” (LEFEBVRE, 1999; 20). É em torno desse momento, pouco depois do
zero inicial, que a cidade política surge, acompanhando o estabelecimento de uma vida
social organizada da agricultura e da aldeia.
Arrisquemo-nos, então, a colocar a cidade política no eixo espaço-
temporal perto da origem. Quem povoava essa cidade política?
Sacerdotes e guerreiros, príncipes, ‘nobres’, chefes militares. Mas
também administradores, escribas. A cidade política não pode ser
concebida sem a escrita: documentos, ordens, inventários, cobrança de
taxas. Ela é inteiramente ordem e ordenação, poder. Todavia, ela
também implica um artesanato e trocas, no mínimo para proporcionar
os materiais indispensáveis à guerra e ao poder (metais, couros etc.),
para elaborá-los e conservá-los. Conseqüentemente, ela compreende,
de maneira subordinada, artesãos, e mesmo operários. A cidade
política administra, protege, explora um território freqüentemente
vasto, aí dirigindo os grandes trabalhos agrícolas: drenagem, irrigação,
construção de diques, arroteamentos etc. Ela reina sobre um
determinado numero de aldeias. Aí, a propriedade do solo torna-se
propriedade eminente do monarca, símbolo da ordem e da ação.
Entretanto, os camponeses e as comunidades conservam a posse
efetiva mediante o pagamento de tributos. (LEFEBVRE, 1999; 21).

Lefebvre (1999) sinaliza que, no decorrer do eixo espaço-temporal, as trocas e o


comércio aumentam, fazendo da cidade o lugar do encontro das coisas e das pessoas,
através da troca. Esse lugar torna-se, assim, arquiteturalmente diferente da cidade
política, no sentido de que a cidade agora se organiza em torno do mercado, com a praça
do mercado tornando-se central, suplantando a praça da reunião, a ágora. É nesse
momento que surge, no eixo, depois da cidade política, a cidade mercantil. “De todo
modo, a cidade mercantil tem seu lugar, no percurso, depois da cidade política. Nessa
data (aproximadamente no século XIV, na Europa Ocidental), a troca comercial torna-se
função urbana; essa função fez surgir uma forma (ou formas: arquiteturais e/ou
urbanísticas) e, em decorrência, uma nova estrutura do espaço urbano.” (LEFEBVRE,
1999; 23). Na cidade mercantil, a relação entre a cidade e o campo ainda dá a primazia
para o campo, para os produtos do solo e para a riqueza imobiliária.
No entanto, ocorre uma inversão nessa primazia do campo em relação à cidade,
momento em que o campo passa a ser apenas a circunvizinhança da cidade. “Essa
inversão de sentido não pode ser dissociada do crescimento do capital comercial, da
existência do mercado. É a cidade comercial, implantada na cidade política, mas
prosseguindo sua marcha ascendente, que a explica. Ela precede um pouco a
emergência do capital industrial e, por conseguinte, a da cidade industrial.”
(LEFEBVRE, 1999; 25). Lefebvre (1999) trata, nesse momento, a partir da cidade
industrial, da generalização das trocas, do crescimento da produção industrial que impõe
a generalização da forma mercadoria à cidade.
O crescimento da produção industrial superpõe-se ao crescimento das
trocas comerciais e as multiplica. Esse crescimento vai do escambo ao
mercado mundial, da troca simples entre dois indivíduos até a troca
dos produtos, das obras, dos pensamentos, dos seres humanos. A
compra e a venda, a mercadoria e o mercado, o dinheiro e o capital
parecem varrer os obstáculos. No curso dessa generalização, por sua
vez, a conseqüência desse processo – a saber: a realidade urbana –
torna-se causa e razão. O induzido torna-se dominante (indutor). A
problemática urbana impõe-se à escala mundial. (LEFEBVRE, 1999;
26).

A partir desse trecho, acreditamos ser importante destrinchar os significados da


relação entre indutor e induzido da industrialização e da urbanização, sinalizados por
Lefebvre (1999), para assim chegarmos à problemática urbana.
Para Lefebvre (2008b), o ponto de partida da problemática urbana está no
processo de industrialização. A cidade, que pré-existe à industrialização, como
acabamos de desenvolver, permite a concentração dos meios de produção (ferramentas,
matéria-prima, mão de obra) num pequeno espaço, onde também está localizada a troca
comercial. Nesse sentido, a cidade, enquanto concentração, desempenhou um papel
importante na arrancada da indústria. Assim, podemos identificar a cidade como
indutora da industrialização, indutora do crescimento da produção industrial e da
generalização da forma mercadoria.
Entretanto, nesse processo, Lefebvre (2008b) identifica a implosão-explosão das
cidades. A concentração de meios de produção, o crescimento da produção industrial e
o crescimento populacional geram a extensão do fenômeno urbano sobre uma grande
parte do território nos grandes países industriais. Ao mesmo tempo, muitos núcleos
urbanos antigos se deterioram, explodem, e as pessoas se deslocam para as periferias
distantes, residenciais ou produtivas. Lefebvre (2008b) encontra, assim, na implosão-
explosão das cidades antigas, pré-existentes ao capitalismo, o processo de urbanização.
Lefebvre (2008b) entrevê, aqui, a dialética entre os processos de industrialização e
urbanização: “Temos à nossa frente um duplo processo ou, preferencialmente, um
processo com dois aspectos: industrialização e urbanização, crescimento e
desenvolvimento, produção econômica e vida social. Os dois ‘aspectos’ deste processo,
inseparáveis, tem uma unidade, e no entanto o processo é conflitante.” (LEFEBVRE,
2008b; 16), e se refere à essa dialética ao elaborar que a industrialização, portanto,
mesmo sendo induzida, é indutora da urbanização: “(...) esse processo [a
industrialização] é, há um século e meio, o motor das transformações na sociedade. Se
distinguirmos o indutor e o induzido, pode-se dizer que o processo de industrialização é
indutor e que se pode contar entre os induzidos os problemas relativos ao crescimento e
à planificação, as questões referentes à cidade e ao desenvolvimento da realidade urbana
(...)” (LEFEBVRE, 2008b; 11).
Aqui encontramos em Lefebvre (2008b), mais uma vez, a dialética apontada em
Marx (1985) entre quantidade e qualidade. Um processo, a industrialização, que pode
ser caracterizado pelo crescimento da concentração dos meios de produção nas cidades,
pelo crescimento da produção de mercadorias, gera, ou induz, uma transformação
qualitativa das cidades e da sociedade, o processo de urbanização. Para Lefebvre (1999;
2008b), a urbanização, a partir da virtualidade da realização da sociedade urbana, coloca
um outro sentido para a história, que de acordo com o filósofo não estava colocado por
Karl Marx.
Para o próprio Marx, a industrialização trazia em si mesma sua
finalidade, seu sentido. Fato que provocou a seguir a dissociação do
pensamento marxista em economia e filosofia. Marx não mostrou (em
sua época não podia fazê-lo) que a urbanização e o urbano contém o
sentido da industrialização. Ele não viu que a produção industrial
implicava a urbanização da sociedade, e que o domínio das
potencialidades da indústria exigia conhecimentos específicos
concernentes à urbanização. A produção industrial, após um certo
crescimento, produz a urbanização; fornece as condições desta e lhe
abre possibilidades. A problemática se desloca e torna-se a
problemática do desenvolvimento urbano. (LEFEBVRE, 2008b; 85).

Nesse sentido, percebemos que Henri Lefebvre desloca, a partir da obra de Karl
Marx, o sentido e a finalidade da história, da industrialização para a urbanização. A
realização completa do processo de industrialização, identificado por Marx, não coloca
a realização da história no sentido da realização da humanização do homem, da
superação das alienações e das cisões praticadas pelo capitalismo (CARLOS, 2011a).
Lefebvre (1973; 1999; 2008b) desloca a realização da humanização do homem para a
realização da sociedade urbana, ao identificar que é através do espaço, pelo e no espaço,
que o capitalismo se mantém, se generaliza e se reproduz, reproduzindo as relações de
produção e superando as suas crises econômicas. Lefebvre (1999; 2008b), dessa forma,
desloca a problemática da indústria para o urbano, chegando ao que denomina de
problemática urbana.
A extensão do capitalismo ao mundo inteiro, com o desenvolvimento
da troca, e com ele o do mundo da mercadoria (de sua lógica,
linguagem), gera a necessidade de desvendamento do conteúdo e
sentido dessas transformações, centrando a analise no momento e
movimento da reprodução da sociedade, saída da história da
industrialização. Assim, para entender o mundo de hoje existe uma
nova problemática, a urbana, que revela os conflitos humanos e as
contradições da sociedade situadas no conjunto dos problemas de
nossa época. (...) É nesse sentido que Lefebvre afirma que a
problemática urbana se desloca e modifica profundamente a
problemática saída do processo de industrialização pela existência de
um salto qualitativo importante: o crescimento quantitativo da
produção econômica produz um fenômeno qualitativo que a traduz
numa problemática nova, a problemática urbana. (CARLOS, 2011b;
34-35).

É, portanto, por isso, que Lefebvre (1973) identifica que a reprodução das
relações de produção é uma prática sócio-espacial. “Não é apenas toda a sociedade que
se torna o lugar da reprodução (das relações de produção e não já apenas dos meios de
produção): é todo o espaço. Ocupado pelo neo-capitalismo, sectorizado, reduzido a um
meio homogêneo e contudo fragmentado, reduzido a pedaços (só se vendem pedaços de
espaço às ‘clientelas’), o espaço transforma-se nos paços do poder.” (LEFEBVRE,
1973; 95).
Aqui, encontramos em Henri Lefebvre a noção de produção do espaço, que
surge justamente da problemática urbana, e busca iluminar os conteúdos da reprodução
capitalista no e pelo espaço, demonstrando como a reprodução das relações de produção
é uma prática sócio-espacial.
De acordo com Carlos (2011b), a produção do espaço se insere na totalidade do
processo de produção social, e por isso acreditamos ter sido importante a realização
desse caminho desenhado anteriormente entre Karl Marx e Henri Lefebvre. Nos
baseamos neste trecho para estabelecer essa relação:
(...) a preocupação de Henri Lefebvre com o entendimento do mundo
moderno coloca-o diante de novas questões, o que implica, do ponto
de vista metodológico, a necessidade de superação e/ou
desenvolvimento de alguns conceitos trabalhados por Marx como o de
modo de produção, ressaltando o sentido filosófico da noção de
produção e, com isso, iluminando, em sua profundidade, a noção de
reprodução. Nesse movimento o autor se depara com o que chama de
novas produções: o urbano, cotidiano e espaço social. É assim que a
problemática do espaço desenvolve-se nas obras do autor, a partir da
discussão em torno da noção de produção, posto que a situação das
forças produtivas não acarreta somente a produção de coisas no
sentido clássico do termo, a produção é também reprodução de
relações sociais; o que acrescenta algo de novo à produção. Existe,
portanto, a produção-reprodução do espaço social como necessidade
do modo de produção enquanto manutenção das relações de
dominação. (CARLOS, 2011b; 29).

A produção do espaço se baseia, fundamentalmente no fato de que todas as


relações sociais se realizam concretamente como relações espaciais. “É através da e na
prática sócio-espacial que o individuo se realiza enquanto tal ao longo da história, numa
prática que revela a construção da humanidade do homem.” (CARLOS, 2011b; 10). Isso
significa dizer que “(...) as relações sociais ocorrem num lugar determinado sem o qual
não se concretizariam, num tempo fixado ou determinado que marcaria a duração da
ação – uma ação que se realiza como modo de apropriação na escala da reprodução da
vida.” (CARLOS, 2011b; 11).
Essa relação intrínseca e imanente entre a sociedade e o lugar pode ser
interpretada, a partir de Smith (1988) e Carlos (2011b) como uma relação intrínseca e
imanente entre a sociedade e a natureza. “O homem, primeiro reunido em grupo e
depois organizado em sociedade, transforma a natureza numa segunda natureza por
meio da atividade do trabalho. O momento requer a passagem, na história, do
nomadismo à sedentarização, que foi capaz de transformar a natureza objetivando a
sobrevivência do grupo humano. A sedentarização do homem abarca a localização e
tem como pressuposto a relação entre homens de um grupo, ou tribo, entre si e com os
outros.” (CARLOS, 2011b; 40). A relação entre o homem e a natureza, como visto neste
trecho, é mediada pelo trabalho, e essa mediação nos coloca diante da produção social
da natureza – como desenvolvido por Smith (1988) como ato de produção social da
própria existência humana. É aqui que se situa a produção do espaço, na totalidade da
produção social, que não é somente a produção de mercadorias, de objetos, mas a
produção do homem em si, como um ser genérico (CARLOS, 2011b). “Portanto, é
possível traçar o caminho do desvendamento dos momentos (formação) da produção do
espaço, a partir da relação homem/natureza, como fundamento do processo constitutivo
do mesmo, como possibilidade reveladora dos conteúdos explicativos do mundo
moderno, que tem como pressuposto a natureza e a atividade humana produtiva
transformadora do mundo.” (CARLOS, 2011b; 48).
É este caminho, do traçado do desvendamento da relação entre o homem e a
natureza, da produção social da natureza, que revela a trans-historicidade da produção
do espaço.
Daqui derivamos a hipótese de que o ato geral de produzir da
sociedade – no sentido de permitir sua reprodução enquanto espécie
como atividade que produz a vida em todas as suas dimensões –
apresentar-se-ia como ato de produção do espaço, e, ao mesmo
tempo, esse espaço é condição e meio de realização das atividades
humanas em sua totalidade. Trata-se da reprodução da sociedade
definindo-se como processo/movimento em constituição como o da
própria sociedade. Sintetizando os argumentos, é possível constatar
que as relações sociais realizam-se como relações reais e práticas,
como relações espaço-temporais. A produção do espaço, nesse
sentido, é anterior ao capitalismo e se perde numa história de longa
duração iniciada no momento em que o homem deixou de ser coletor e
caçador e criou condições de, através de seu trabalho, transformar
efetivamente a natureza (dominando-a) em algo que é próprio do
humano. O espaço como produção emerge da história da relação do
homem com a natureza, processo no qual o homem se produz
enquanto ser genérico numa natureza apropriada e condição de sua
produção. Desse modo, no processo a natureza vai assumindo
inicialmente a condição da realização da vida no planeta, meio através
do qual o trabalho se realiza, até assumir a condição de criação
humana – como resultado da atividade que mantém os homens vivos e
se reproduzindo – no movimento do processo de humanização da
humanidade. (CARLOS, 2011b; 33).

Percebemos, em Carlos (2011b) e em Smith (1988), a característica da produção


do espaço como condição espacial (CARLOS, 2011b), como condição da reprodução da
vida numa história de longa duração, como necessidade para a manutenção do homem e
das sociedades.
Acreditamos ser nesse sentido que a produção do espaço é imanente à produção
da sociedade (CARLOS, 2011b), não somente da sociedade capitalista. No modo de
produção capitalista, a produção do espaço ganha especificidades, e, de acordo com
Lefebvre (1973; 1999; 2008b) e Carlos (2011b) se torna não só condição de reprodução
da vida, mas condição de reprodução do capital. A superação das crises econômicas,
como desenvolvido anteriormente, é localizada por Henri Lefebvre também na
produção do espaço, e por isso passa a ser fundamental, para a compreensão da
Geografia do Capitalismo, a compreensão dos conteúdos da produção capitalista do
espaço. Assim, articulamos Harvey (2005) e Smith (1988), baseados em Marx (1985) e
em Lefebvre (1973; 1999; 2008b), na importância que ambos atribuem à produção do
espaço, como revelador da reprodução das relações de produção, para a compreensão do
mundo moderno e da sua reprodução.

BIBLIOGRAFIA:
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