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A FRAGMENTAÇÃO DO ESPAÇO
E DA PERSONALIDADE 1
A m élia Luisa Dam iani
RESUM O :
A proposta deste artigo é perseguir um cam inho de com preensão do tema proposto, norteado pela com plexida
de do trabalho de Milton Santos, especialm ente no livro A n a tu re z a do Espaço; assim, iniciando por considerar
a potência m etodológica deste trabalho como eixo principal. O movimento do desvendam ento da tem ática
geográfica, a pertinência do encadeam ento dos temas, pretende não subestim ar os pressupostos filosóficos
que definem uma concepção de totalidade, que orienta o significado do tem ário geográfico, não conceber esse
m ovim ento pode criar um processo de vulgarização de sua análise, com conseqüências quanto ao sentido das
possibilidades e da ação renovadora, que lhe são conclusivas.
PALAVRAS-CHAVE:
fragm entação, totalidade, lugar, ação, cidadão.
RÉSUM É:
Le but de cet article consiste en suivre un parcour de compréhension des idées regi par la com plexité de 1'ouvre
de Milton Santos, partfculièrem ent dans le livre La nature de L'Espace. De cette façon, dês le début, 1'axe
principal est la prise en c nnsidération de la puissance méthodologique de ce travail. Le m ouvement de décryptage
des thém es géographiques, de leur enchevitrem ent, vent que les fondements philosophiques soient soulignés
ainsi que la rencontre de la conception de totalité, qui donne leur signification. Ignorer ce m ouvem ent peut
consolider un processus de vulgarisation de son analyse, avec des conséquences concernant le sens des possibilités
et de Faction rénovatrice qui leur sont décisives.
MOTS-CLÈS:
fragmentation, totalité, lieu, action, citoyen.
A questão central que move minha inda porque capturada por uma disciplina, a Geogra
gação, neste momento, é a da totalidade. Há mui fia. Assim, na forma de incôm odo li a noção de
to me incom oda uma leitura possível de alguns Milton Santos de formação sócio-espacial. Não a
escritos geográficos mais atuais - como os da Ci concebia mais abrangente que a noção de for
ência Espacial e o estudo dos padrões e siste mação econõmico-social, porque apontava a ne
mas -2, ou, inclusive, passagens do trabalho do cessidade de pensar o significado do espaço, ao
prof. Milton Santos, que aproximava a noção de contrário, ela me aparecia redutora. As notas de
estrutura daquela de totalidade, preterindo a idéia rodapé remetiam, neste caso, a marxistas estru-
de form ação, de história, claram ente ou não. Vis turalistas, que a história dem onstrou com o equi
lum brava uma versão estrutural do marxismo, e, vocados. Por outro lado, o sentido de tudo que
até, uma leitura vulgarizada do estruturalismo, vivem os parece sugerir uma força reprodutora
inesgotável, que pode real ou m etaforicam ente, da com preensão do desm antelam ento da rede
rem eter à idéia de globalização, reprodução que urbana com a m odernização tecnológica e a ten
atualiza essa literatura estrutural e a torna o fici tativa de com preender a dialética entre os fato
al. Ela reina no m ercado, no cotidiano, até no res de concentração e de dispersão, que ap are
im aginário. Mas ela está com prom etida com o ce no livro O Espaço Dividido. A estrutura apare
eterno presente, não com o devir. Politicam en cia móvel, provisória, também como desestruturação.
te, é o o u tro do saber crítico. Em relação à urbanização, configurando uma teo
A noção de totalidade não envolveria, en ria crítica sobre a urbanização nos países po
tão, a de estru tura? Certam ente envolve, mas bres, alternativa aos m odelos consolidados e de
num p ro cesso com plexo entre estruturação e m asiadam ente inseridos nas estratégias políti
desestruturação. Mão é a idéia de com posição, cas e econôm icas de exploração dos países po
articulação ou equilíbrio permanente, aquela que bres, tive a oportunidade de tentar pensar, mais
a alim enta, mas a de negação, de movim ento. globalm ente, à propósito do Sim pósio sobre sua
"O pensam ento dialético segue a form ação do obra, realizado em 1996, em São Paulo.4 O que
todo a partir das contradições, com o momento para mim é mais caro é a idéia de econom ia ur
e fase de seu d esenvolvim en to."3 bana segm entada, que move a interpretação da
A estrutura é sempre provisória, "ameaçada, existência de um crescim ento eco n ôm ico que
minada em seu interior, pela negação" e a totali supera o crescim ento populacional, rebaixando
dade envolve o todo em m ovim ento, "nunca fe o rendimento médio e expandindo empregos mal
chado, nunca term inado" Além disso, prenhe remunerados, fruto das diversas tem poralidades
de desigualdades. Trata-se do desenvolvim ento do capital. Dela eu me apropriei sedenta de aju
desigual, com o motriz. O desenvolvim ento de da para com preender o significado do urbano
sigual não rem ete a uma fatalidade, um destino no processo de acum ulação global do capital. O
irreparável, com o a concepção de subdesenvol acento sendo nas diversas tem poralidades do
vim ento, em certo m om ento, parecia apontar; capital, no seu processo reprodutivo desigual,
mas às d iferen ças reais, aos níveis diversos, nega, portanto, a dicotom ía do atrasado e do
co n ten d o , tam bém , inúm eras po ssib ilidades, moderno. Configura a com preensão da m oder
quase im previstas. nização perversa e seu papel estratégico. O novo
O desenvolvim ento desigual entre o eco reinventa o "velh o " e dele se vale, com o face
nôm ico, o político e o social. obscura do m oderno, que não só se move por
É sempre possível a crítica, mas quando a lta s te c n o lo g ia s , m as p e la e x p lo r a ç ã o e
eia não persegue a obra de um autor, ela pode clandestinização do trabalho, definida por Alain
ser parcial, chegando m esm o ao nível do pre Lipietz com o flexibilização do trabalho. Pesso
conceito. Porque ela não acom panha o projeto alm ente, estudo a urbanização configurando um
m aior que alim enta cada trabalho, cada m om en setor produtivo extrem am ente com plexo e es
to do percurso pretendido. E o sentido de nos tratégico para a reprodução do capital, reprodu
sa época, o sentido hegemônico, é aquele de zindo um proletariado, que sequer se reconhe
inform ar, o am ontoado das produções sugere ce como trabalhador, dados os term os crassos
isso, e não, exatam ente, c o n h e ce r. As inform a da exploração que sofre. Essa produção do es
ções, produzindo retóricas, substituem o saber, paço define-se, prim ordialm ente, nas, e a partir
o conhecim ento. das, grandes cidades. A elasticid ad e dos lucros,
Q uanto ao trabalho do prof. Milton Sa n nesses negócios econôm icos, define, nas c id a
tos, do qual não sou uma conhecedora, eis o des, a reprodução de um cap italism o rentista,
infinito lim ite, um m om ento para mim precioso, em nosso país. Moção configurada por Jo s é de
de aproxim ação e não de distanciam ento, é o Souza Martins, tendo com o universo de re fle
Urbanização e globalização: a fragmentação do espaço e da personalidade 21
tornam realidade. As "determ inações do todo se do lugar, isto é, a resistência do lugar não signifi
dão de forma diferente, quantitativa e qualitati ca, no limite último, a im possibilidade de trans
vam ente, para cada lugar."12 Em píricam ente (e fo rm ar o g lo b al, que se a p re s e n ta ria co m o
essa é a possibilidade aberta pelos progressos avassalador, indestrutível, e a m udança possível
técnicos e pelas formas atuais de realização da apresentar-se-ia como apenas localizada, fruto de
vida económ ica), o global existe através do local insurgências locais, redução da perspectiva da
13; e assim o lugar, que não é estrita parte do realização do internacional, previsto no século
global e seu reflexo, contrapõem-se a ele; é pos XIX, por Marx, restringido no século XX, pela for
s ib ilid a d e de h is t o r ia , de m o v im e n to , de ça reprodutora da sociedade existente, im previs
insurgência, de resistência. A explicação não se ta anteriorm ente. A interpretação exige m aior
esgota na elucidação de um m ovim ento vertical, com plexidade. O g lo bal se re a liz a no lugar,
que d e fin a a e s p e c ia liz a ç ã o fu n c io n a l dos co m o p ro c e s s o , h is tó ria e d e v ir. O g lo b a l
subespaços e sua interdependencia, mas envol in d e te rm in a d o , determ ina-se no lugar, num
ve um movimento horizontal, em que "as forças m ovim ento d ialético , previsto por íie g e i, e n
oriundas do local, das horizontalidades, se ante tre o universal e o particular. O m undo d eser
põem às tendências meramente verticalizantes."14 to, p ro d u z id o p e la m u n d ia liz a ç ã o , a firm a ,
A racionalidade que se impõe, é limitada, porque dialeticam en te, o lugar com o ligação, relação
exclui, econôm ica, social e politicam ente, por real, próxima. Contudo, estam os diante de uma
que produz seu inverso, a irracionalidade, ou aporia prática e teó rica: a p o tên cia e o sig n ifi
m e lh o r, o u tr a s fo rm a s de r a c io n a lid a d e , cado históricos da força do lugar.
racionalidades paralelas e divergentes, daí inclui, A in su rreição dos p a rticu la rism o s, no
c o n tra d ito ria m e n te , a vo n ta d e e a a çã o de Contrato de Cidadania, do Grupo de Mavarrenx,
contrariá-la. Im erso no mundo, o lugar se dife aparece como um fenôm eno anti-estatista, pro
rencia, é a g lo c a lid a d e de George Benko, citado põe a deterioração do Estado, a negação do E s
por Milton S a n to s.15 E a grande cidade é, neste tado colado na econom ia m undializada, o reco
sentido, o mais significativo dos lugares, "é o n h e cim e n to dos e s p a ço s de d ife re n ç a e de
espaço onde os fracos podem subsistir" consti alteridade e, ao m esm o tem po, apresenta-se
tuindo subsistem as de cooperação, diversos da como a em ergência possível de despotism o, de
cooperação de tipo hegemônico, e de solidarie dom inante tradicionalista com elem entos reli
dade, criando formas de sobrevivencia e vida giosos, nacional-populistas, etc. Mão pode ser
extremamente plásticas, adaptáveis, criativas, nas lida, portanto, sob as luzes de um progressism o
zonas urbanas "opacas" abertas, não estritamen universalista; pode reproduzir micro-absolutis-
te invadidas pela lum inosidade restringida da mos, recusando a legitim idade da diferença e
ra c io n a lid a d e té c n ica , ra cio n a lid a d e té c n ica do diverso, e sem potência para contrapor-se à
reprodutora de uma mecânica rotineira e sem sur- ordem mundial, senão sim b o licam e n te.18 Con
presas, de urna cultura de massa uniforme e siderei, pessoalm ente, a interpretação do lugar,
indiferenciada -.16 Dialeticamente, as cidades in tam bém , com o p a r tic u la r iz a ç à o , seg reg ação ,
cluem , além dessa cultura de massa, que aí tem privação, o limite do homem privatizado do co
seu am biente propício e, ao mesmo tempo, des tid ian o .19
prezado, pois ela é indiferente à ecologia social, Esses m ovim entos podem, tam bém , re
uma cultura popular, com raízes na terra, onde fletir uma resistência potente, ainda em curso,
se vive, encarnando a vontade de enfrentar o da qual não vislum bram os os resultados. (Pen
futuro, sem romper com o lugar.17 sam ento sugerido por E. J. Hobsbawm , em arti
E, assim, podemos esclarecer, a partir go reproduzido pelo Jo rn a l "Folha de S. Paulo"
dessas últimas observações, o a lca n ce m u n d ia l com data desconhecida).
Urbanização e globalização: a fragmentação do espaço e da personalidade 23
autonom ização infundada das regras, com o in "estrutura coagulada de interação": diluição da
te n sificação do político vazio de conteúdo, que autonomia, definição de uma "pseudo-afetividade
age sobre os indivíduos fazendo crescer sua in difusa, como expressão de uma inacreditável po
segurança, pois as regras estão mais rígidas e, breza sim bólica" 28 Eles se calam e vivem a "nor
paradoxalm ente, não regem mais. m alidade" a indiferença.
"Aqueles que as sofrem , na insegurança "Mas, talvez, o sofrim ento, que acom pa
e na precariedade da existência, são te rrific a d o s nha a consciência desta desestruturação do eu,
pelas regras e por sua ineficácia, ao mesmo tem possa justam ente constituir o ponto de partida
po que eles percebem com o perigoso o o u tro , de um engajamento responsável em favor de uma
no olhar do qual eles vêem se refletir seu pró atitude crítica e negativa renovada."29 Uma "figu
prio m e d o ."27 Então, existe, hoje, uma transfor ra de sujeito que é composta pelas diferenças e pelas
m ação radical da vida dos indivíduos, definindo alteridades, que conheça o outro como sua própria
uma m odificação histórica da subjetividade, uma determinação."30 Além da solidão, que se redescubra
vacu id ad e geral do eu, a considerar; indivíduos na solidariedade e no desejo de negação. Mo senti
sujeitos a uma disciplina renovada e, ao mesmo do trágico da crise. Ma crítica do político.31
te m p o , m u tila d o s , d iv id id o s em in ú m e ro s Mos pobres e na sua comunicação o prof.
pertencim entos, constituindo seu caráter como Milton Santos lê esta possibilidade.
M o tas