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Desenvolvimento e Sociedade | n.

º 7 - Dezembro 2019
ISSN impresso: 2183-9220 | ISSN eletrónico: 2184-2647

Progresso, modernidade e colonialismo na América Latina

Sidney Reinaldo da Silva [*]


Instituto Federal do Paraná (IFPR/Brasil)
sidneyreinaldos@outlook.com

Resumo
O progresso tem sido uma forma de identificação da América Latina pela falta, pelo o que ela deve ansiar e
buscar. O texto mostra como essa forma de ver a região pela ótica da modernidade passou a ser recusada, a
partir de um esquadrinhamento teórico do tema. Aponta-se também o modo como a região foi enredada nas
estratégias colônias do progresso. Em seguida, é indicado como nas concepções de desenvolvimento da
CEPAL e do neodesenvolvimentismo o progresso passou a ser ponderado na perspectiva de estilos nacionais,
contudo sem romper com sua base epistemológica moderna, o que passou a ser feito no âmbito da abordagem
pós-desenvolvimentista e do Bem Viver.
Palavras-Chave: América Latina; progresso; pós-desenvolvimentismo; Bem Viver.

Abstract
Progress is a way of identifying Latin America for its lack, and what it must look forward to. The text shows how
this way of viewing the region from the perspective of modernity came to be rejected, based on a theoretical
examination of the theme. It also points out the way in which the region was entangled in the colony strategies
of progress. Then, is indicated the ways in which, from ECLAC's conceptions of development and neo-devel-
opment, progress has been weighted from the perspective of national styles, but without breaking with its mod-
ern epistemological basis, what has been done within the framework of the post-developmental approach and
the Good Life.
Key-words: Latin America; progress; post development; Good Life.

Introdução forma, o esforço maior em dissociá-la do colonialismo


tem levado muitos a uma radical recusa da mesma.
É comum depararmos com recomendações, recusa,
louvor ou condenação de algo em nome do “desen- Este texto faz uma análise dos significados do pro-
volvimento” de um país. A ideia de progresso, tal gresso no contexto da América Latina esquadri-
como um fantasma, sempre está reaparecendo. Teori- nhando a produção teórica em torno do tema. Inicial-
camente desacreditada, ela, na esfera prática, não mente, faz-se uma abordagem da relação entre pro-
deixa de ser um móvel moral. Sua maior mancha, con- gresso, modernidade e colonialismo. Mostram-se,
tudo, refere-se ao modo como vinculou-se ao coloni- posteriormente, a imposição colonial dessa ideia, a re-
alismo, algo denunciado e combatido como estratégia apropriação dela por teorias cepalinas na forma de de-
de desqualificação do outro, sobretudo na perspectiva senvolvimentismo nacionalista e a recente abordagem
dos povos do Sul (Santos, 2009). Na América Latina, desconstrutivista do progresso pelos teóricos do pós-
de uma forma muito especial, a ideia de progresso, ou desenvolvimentismo e do Bem Viver. Finalmente, in-
suas congêneres, continua sendo catalizadora de dis- dica-se, que, não obstante as suas origens, a ideia de
cussões teóricas e práticas. Contudo até que ponto progresso ainda tem força crítica e é capaz de orientar
essa ideia tem perdido sua carga crítica? De qualquer políticas e práticas sociais pós-coloniais.

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Progresso, modernidade e colonialismo na América Latina
Sidney Reinaldo da Silva

1. A modernidade como modo de ser do pro- Retomando o discurso de Turgot sobre as etapas do
gresso progresso humano, Condorcet (1998) percebeu na
Revolução Francesa, da qual participou ativamente,
As formas de vida moderna produziram um colapso um marco da irreversibilidade da marcha do aperfei-
das práticas tradicionais, onde elas se afirmaram, ge- çoamento humano. Kant, espectador da mesma revo-
rando “uma catastrófica desarticulação na vida das lução, a via como sinal histórico da possibilidade do
pessoas comuns” (Polanyi, 2000, p. 51). A moderni- progresso. Para Kant, a Revolução Francesa vale não
dade é marcada pela crença na infalibilidade da autor- como uma causa (Ursache) do progresso, mas como
regulação do mercado, no ininterrupto aprimora- sinal histórico: “(...) nur als hindeutend, als Geschichtszei-
mento das técnicas de produção e na autonomia dos chen (signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon),
indivíduos e dos povos como forma de autopreserva- angesehen werden müsse und so die Tendenz des menschlichen
ção e desabrochar de potencialidades. Progredir, Geschlechts im Ganzen, d.i. nicht nach den Individuen betra-
como modernizar, significa liberar as faculdades e os chtet (denn das würde eine nicht zu beendigende Aufzählung
meios do aperfeiçoamento humano, ou de prosperi- und Berechnung abgeben), sondern wie es in Völkerschaften
dade, identificado como a base da autorrealização pes- und Staaten getheilt auf Erden angetroffen wird, beweisen
soal. Isso exige aprender a diagnosticar possibilidades könnte.” (1798, p, 84).
e articular meios a fins de melhoramentos e, também,
a realizar um ideal de moralidade, de respeito à huma- Com o iluminismo, o progresso torna-se uma referên-
nidade e promoção de formas dignas de convivência cia civilizacional na forma de parâmetro, por excelên-
entre indivíduos e entre nações (Kant, 2011). Nesse cia, da racionalidade teórica, técnica e prática.
sentido, conceitualmente, a modernidade do Ilumi-
nismo do Século XVIII tem muito mais a ver com A ideia de progresso foi se estabelecendo com a emer-
cosmopolitismo humanista do que com o colonia- gência de uma compreensão da historicidade humana
lismo e a rapacidade, embora historicamente tenha como processo de aperfeiçoamento contínuo e neces-
prevalecido este último. sário, que pode ter suas crises e retrocessos, mas que,
de uma maneira ou outra, terá sua marcha retomada
O conceito de progresso foi sendo delineado pelos fi- rumo ao melhor. Segundo Nisbet (1979), isso se deve
lósofos iluministas que procuravam compreender o a crença de que a civilização caminhou, caminha e
ser humano a partir das grandes transformações soci- continuará sempre a caminhar rumo ao seu aprimora-
ais e econômicas vivenciadas desde o fim do século mento. Além do mais, trata-se de um processo que se
XVII. O progresso, segundo Locke (1999) remete há universalizaria, a ponto de atingir todos os povos da
uma inquietude que leva o ser humano a querer incre- terra. Formas de vida arcaicas e tradicionais tende-
mentar, melhorar, a situação em que vive: “[the] only riam, portanto, a desaparecer, quer simbolicamente,
spur to human industry and action is uneasiness” (p. 215). sendo incorporada culturalmente pela modernidade,
Rousseau identificou na capacidade de aperfeiçoar um ou mesmo fisicamente, caso, de modo ferrenho, resis-
aspecto contraditório característico do ser humano, tissem cultural e politicamente a esse processo.
que nem sempre leva a um bom viver. Segundo o au- Mesmo condenando a violência do colonizador euro-
tor, a faculdade de aperfeiçoar-se com “l'aide des circons- peu, Condorcet não deixou de constatar isso como
tances, développe successivement toutes les autres, et réside parmi uma espécie de necessidade histórica: “peut-être même
nous tant dans l'espèce que dans l'individu, au lieu qu'un ani- que, réduits à um moindre nombre, à mesures qu´ils se verront
mal est, au bout de quelques mois, ce qu'il sera toute sa vie, et repoussés par les nations civilisées, ils finiront par disparaître
son espèce, au bout de mille ans, ce qu'elle était la première année insensiblementent, ou se perdre dans leurs sein.” (Condorcet,
de ces mille ans. (...) Il serait triste pour nous d'être forcés de 1988, p. 270)
convenir que cette faculté distinctive, et presque illimitée, est la
source de tous les malheurs de l'homme” (Rousseau, 2011, p. A modernização, apresentada na forma de solução
280). para os problemas dos povos do Sul, acabou, con-
tudo, revelando-se mais como uma prática destrutiva

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de acumulação capitalista (Latoche, 2001). O pro- O progresso, portanto, passou a ser identificado com
gresso passou então a ser visto como verdadeiro en- a expansão de uma forma de vida específica, a das na-
godo, sobretudo entre os críticos dos países incorpo- ções ocidentais, onde o capitalismo tem suas raízes.
rados à modernidade de modo subalterno. O termo Ao subordinar a sociedade à junção da da riqueza, “la
foi sendo associado a uma forma de excrecência, idea de progreso ofreció la nueva justificación de la desigualdad
como uma patologia de crescimento – econômico, de y de la expansión de los occidentales. (Sbert, 1996, 307).
bem-estar e de comodidade promovido pela ciência e Junta-se a isso uma forma de regulamentação interna-
a técnica - sem ser acompanhada de aprimoramento cional que passou a dar um verniz de legalidade as prá-
moral e político, mantendo, no âmbito das relações ticas mais perversas de dominação econômica e ex-
internacionais a mesma lógica colonial de seus pri- ploração dos povos e territórios categorizados como
mórdios, a pilhagem (Mattei & Nader, 2008). A pró- atrasados e periféricos em relação à modernidade.
pria lógica do progresso passa a ser questionada, perde Tais como nas antigas práticas coloniais, o atual capi-
a sua plausibilidade, no âmbito prático das decisões talismo comandado pelas grandes corporações trans-
públicas e dos movimentos sociais. Entre as nações formou o ideal moderno de “rule of law” numa ideolo-
mais “avançadas” em termos de modernização tam- gia imperialista (Mattei & Nader, 2008).
bém há desencantamento com o progresso: “so machte
die Anti-Atom-Bewegung auf die nicht beherrschbaren Folgen Com a modernidade, o resto do mundo, sua parte não
bestimmter (Groß-) Technologien aufmerksam, der Club of ocidental, foi sendo “redescoberto” e sujeitado a he-
Rome zeigte die „Grenzen des Wachstums auf und die Ökolo- gemonia das nações que definia o que é progredir, co-
gen prangerten die fortschreitende Zerstörung der menschlichen locando-se a si mesmas como valor, modelo e telos a
Lebensräume an. Das bislang dominierende Argument, Wis- ser perseguido pelas demais. “Or, ce noyau dur, que tous
senschaft und Technik seien ihrem Wesen nach neutral und les développements ont en commun avec cette expérience-là, est
erhielten ihren Wert erst durch die Zwecke, für die sie eingesetzt lié à des «valeurs » qui sont le progrès, l’universalisme, la
würden, verlor seine Plausibilität” (Lotter, 2011, p. 10). maîtrise de la nature, la rationalité quantifiante. Ces valeurs,
et tout particulièrement le progrès, ne correspondent pas du tout
Para a América Latina, a incorporação do progresso à des aspirations universelles profondes. Elles sont liées à l’his-
como principal objetivo a ser alcançado desembocou toire de l’Occident et recueillent peu d’écho dans les autres so-
não no florescimento democrático e plural do ser hu- ciétés (2). Les sociétés animistes, par exemple, ne partagent pas
mano, mas numa situação de aprofundamento de de- la croyance dans la maîtrise de la nature. L’idée de développe-
sigualdades, violência, e mal viver, ou seja, em coisifi- ment est totalement dépourvue de sens et les pratiques qui l’ac-
cação da natureza e do humano. Sobre o significado compagnent sont rigoureusement impossibles à penser et à mettre
da coisificação da natureza ver Honneth (2008): “we en oeuvre parce qu’impensables et interdites. (Latouche,
then perceive animals, plants, or things in a merely objectively 2001, p. 2)
identifying way, without being aware that these objects possess a
multiplicity of existential meaning for the people around us.” Contudo é esse modo de vida ocidental, a economia
(p. 63). que o mantem, que deve ser questionado para que se
encontre soluções para os problemas do mundo con-
Mas as consequências do desencantamento e da perda temporâneo e assim evitar catástrofes globais eminen-
de esperança no progresso são catastróficas. Sachs tes.
(1996) aponta que isso exige uma ruptura radical, pois
“la fe en el progreso forma parte del hombre moderno a tal grado
que no se da cuenta de que la tiene, igual que los peces no se dan
cuenta de que existe el agua hasta que se les saca de ella” (p.
6). Sair dessa água significa deixar de ser moderno ou
pelo menos romper com esse propósito de vida. Mas
como fazer isso sem “morir en el assombro”? (Sachs,
1996, p. 6).

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2. Progresso como epistemologia e prática do poder colonial pero tambien podia servir para destruirlo y, des-
porvir pues, para alcanzar los mismos beneficios materiales y el mismo
poder que los europeos; para conquistar la naturaleza. En fin,
O progresso como autocompreensão das sociedades para el "desarrollo. La cultura europea pasó a ser un modelo
modernas vai muito além do que é percebido pelos cultural universal. El imaginario en las culturas no-europeas,
indicadores quantitativos de desenvolvimento. Nem hoy dificilmente podria existir y, sobre todo, reproducirse, fuera
tudo que essa ideia contém pode ser reduzida em es- de esas relaciones. (pp. 12-13).
quemas e modelos de desenvolvimento, onde a neces-
sidade de definições operacionais comanda a percep- Denuncia-se, nesse âmbito, a relação colonialidade-
ção dos fatos relativos ao progresso (Rist, 1996). O modernidade e o modo como a ocidentalização do
progresso molda formas de vida, desejo e crenças. mundo impôs um padrão de racionalidade aos povos
então considerados arcaicos, atrasados, tradicionais,
A modernidade como modo de vida baseado no que- terceiro-mundistas, subdesenvolvidos e em desenvol-
rer ser cada vez melhor -aprimorando (técnica, polí- vimento (Escobar, 2002; Pescader & Díaz, 2012;
tica e moralmente) instituições, formas de produção e Quintero, 2014). Isso faz sentido sobretudo perante o
de bem-estar- configurou-se como uma visão hege- reconhecimento de que o progresso produz uma an-
mônica sobre o futuro. Contudo, reduziu-se o apri- tropologia, molda não só um modo de ser, mas tam-
morar ao maximizar produtividade, aumentar a eficá- bém de querer ser, de propor objetivos, propósitos e
cia e ampliar a acumulação de riqueza, subordinando finalidades que podem ou não ser autênticos e autóc-
trabalhadores, consumidores e a natureza a isso. Ou- tones (Quintero, 2015; Esteva, 2000; Escobar, 2003;
tros povos e o meio ambiente foram sendo mais e Mignolo, 2009, 2010; Grosfoguel, 2008, Lander,
mais arrastados por essa lógica do progresso mo- 2005).
derno.
A autocompreensão na perspectiva do progresso en-
Frente às contradições da modernidade, a própria volve uma projeção de si, uma espécie de conheci-
forma de compreender e operar com a ideia de pro- mento do que ainda não se é, mas se pode ou se deve
gresso acaba tendo que se afeiçoar. Novas redefini- ser enquanto indivíduo e coletividade. O progresso,
ções do progresso têm sido propostas buscando ir portanto, remete a um conjunto de questões cujos
além da mera abordagem quantitativa do crescimento pressupostos configuram um campo da ação humana
do Produto Interno Bruto (PIB), incorporando aspec- (Lotter, 2011).
tos qualitativos aos seus modelos, tais como a quali-
dade de vida, as capacidades humanas, a sustentabili- Como política de desenvolvimento, o progresso en-
dade da economia, a distribuição de renda e a partici- volve três vertentes interligadas: a pragmático, a epis-
pação democrática (Sen, 2000). Tudo vai se aperfei- temológica, e a ideológica (Graciarena, 2000). Na di-
çoando, está é a percepção construída, especialmente mensão pragmática, apresentam-se questões relativas
na forma de se aferir o progresso passado, mas tam- ao encaminhamento das políticas públicas, formas de
bém de projetar o futuro desejável. planejamento ou outras ações mais pontuais para pro-
mover o desenvolvimento. Na vertente, epistemoló-
* gica, têm-se saberes e disciplinas mobilizados para co-
nhecer e propor medidas supostamente progressivas.
O movimento de descolonização epistemológica tem O aspecto ideológico refere-se aos valores mobiliza-
no combate a ideia de progresso o seu principal eixo dos na constituição de sujeitos passivos e ativos do
de ação. Retomando a abordagem de Quijano (1992,) progresso – funcionários do governo, técnicos de or-
a colonização epistêmica diz respeito a una imagen mis- ganismos internacionais, indivíduos e comunidades
tificada de sus propios patrones de producci6n de conocimientos alvos de programas e medidas de desenvolvimento.
y significaciones. (...) De modo que a “europeización cultural se
convirtió en una aspiración. Era un modo de participar en el

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A crença no progresso se fortifica quando se propõe 3. O progresso, estratégia colonial e resistên-


aperfeiçoar e descobrir novos modelos de verificação cia na América Latina
e promoção do desenvolvimento. É partir das possi-
bilidades de conhecimento e relevância operacional O progresso pressupõe que o ocidente seja um mo-
que se dá maior ou menor peso seja a dimensão eco- delo para o resto do mundo. Contudo, ainda que teo-
nômica, social, tecnológica, do consumo, do impacto ricamente o progresso feito por alguns povos possa
ambiental, humana (bem-estar, felicidade, liberdade, ser reproduzido por outros, nada garante que esse
capacidades), acrescentando esta ou aquela variável. A processo possa ser universalizável, seja por uma ques-
prioridade dos objetivos e meios para o progresso e a tão de um colapso do próprio crescimento desenfre-
hierarquização das dimensões catalogadas dependem ado, seja devido às contradições nas relações de poder
do que se entende por “ser desenvolvido” e quais va- mundial. Mas, o colonialismo exige bem manipular
lores disso decorrem. Conhecer o que pode progredir isso a seu favor.
remete, portanto, à justificação das medidas a serem
tomadas. Na perspectiva das relações entre os povos, a defini-
ção ético-política de progresso presume uma assime-
Definir o que o futuro pode/dever ser exige modelos tria a ser corrigida, como se o progresso, na forma de
de desenvolvimento. Contudo, na América latina, têm uma força centrífuga, levasse a uma equiparação entre
surgido recusas dos modelos de aperfeiçoamento so- os níveis de desenvolvimento nos diversos pontos do
cial e adequação à modernidade. Concepções que ne- globo. Para essa concepção, a homogeneização do de-
gam o progredir como marca primordial do humano senvolvimento mundial não seria de modo algum ca-
passam a dar base para se pensar alternativas não ape- tastrófica, pois, para ela seduzir, não interessa mostrar
nas a certas formas de desenvolvimento, mas a pró- que os custos de sua extensão levariam a ruína da pró-
pria ideia de progresso como sinal de vida boa. Des- pria condição de sua expansão, a disponibilidade de
taca-se, nesse sentido, modos de pensar o viver fora recursos naturais, e que uma padronização e unifor-
dessa diretriz, isto é, sem alvos indiciados pelo critério mização levaria à destruição da diversidade cultural.
do aperfeiçoamento moderno. Frente a essa recusa, o
desabrochar da vida social na perspectiva latino-ame- Contudo, isso tem-se revelado cada vez mais como
ricana do Bem Viver e do pós-desenvolvimentismo um engodo. Um crescimento exponencial tem seus li-
(Acosta, 2009, 2010, 2015, 2016; Gudynas, 2011, mites físicos e quanto mais diversos pontos crescem
2012, 2014, 2017; Quintero, 2014, 2015; Unceta, 2014; ao mesmo tempo, mais rapidamente os recursos dis-
Gutiérez, Baquero & Sarmiento, 2017) é visto como poníveis chegam ao seu fim (Hardin, 1968). Uma de-
uma opção aberta em permanente construção. Com mocratização mundial do desenvolvimento tenderia a
essas categorias, resgatam-se tanto elementos das cos- equilibrar também a distribuição de forças entre as na-
mologias indígenas pré-modernas, anteriores ao ad- ções, tornando a concorrência por recursos muito
vento do progresso como critério de decisão e forma mais acirrada. Perante a lógica prevalecente do tabu-
de orientação social, quanto aspectos pós-modernos leiro político mundial, os países desenvolvidos não
ligados às concepções de projeto vazio, alinhados à fi- aceitariam transformar-se numa minoria frente a um
losofia pós-estruturalistas. efetivo progresso dos países que não teriam ainda al-
cançado o desenvolvimento (Castoriadis, 1976). Até
As formas de aceitação e rejeição da modernidade nas onde, os Estados Unidos aceitariam uma América La-
narrativas ligadas ao progresso e seus congêneres no tina mais forte do que eles, caso as potencialidades da-
continente latino-americano, especialmente o termo quela fossem desenvolvidas, científica, técnica e poli-
desenvolvimento e neo/desenvolvimentismo e pós- ticamente? Assim, por razões não apenas ambientais,
desenvolvimentismo, remetem ao drama real da Amé- mais também geopolíticas, é falso o pressuposto de
rica Latina e ao modo como ela foi sendo forjada no que o progresso, nas condições em que ele tem se
encontro com o estrangeiro. dado, pode ser estendido igualmente para todos os pa-
íses.

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A noção de país desenvolvido remete a um estado de modernidade, o progresso tem suas raízes num terri-
progresso em ato, isto é, na forma de crescimento que tório marcado por severas condições de vida e con-
mantem a si mesmo como processo autoalimentado. frontos entre seus habitantes. Nesse contexto euro-
Segundo o modelo de Rostow (1974), há um conjunto peu, ele foi se constituindo como uma “fé” no “paula-
de etapas bem delimitadas a serem cumpridas para um tino pero firme mejoramiento de sus medios para hacer más to-
país ou região alcançar isso. Na passagem da década lerable la existencia en esas duras regiones” (Sbert, 1996, p.
de 50 para a década 60, o referido autor delineou cinco 307). Mas contrariando o ingênuo pressuposto de um
etapas do desenvolvimento econômico, oferecendo compromisso de superação das assimetrias, no âmbito
um novo modo de investigar o progresso como um das relações entre os povos, o progresso afirma-se
fenômeno supostamente universalizável. Em seu mo- como um ideário associado à visão econômica utilitá-
delo, passou-se a levar em conta as precondições, o ria e bélica do outro, ou seja, por uma “feroz competencia
arranco, a maturidade, a difusão maciça do consumo en el mercado y la guerra en múltiples fronteras” (Sbert, 1996,
de produtos duráveis e serviços como estágios do pro- p. 307). Nesse processo, foi decisivo “un prodigioso
gresso (Rostow, 1974, p. 15). Desenvolvido é consi- ritmo de innovaciones tecnológicas - en el conocimiento, la orga-
derado o país que passou pela fase de decolagem, tor- nización política y social, las herramientas y las armas - que
nando seu desenvolvimento autossustentado, e entra hicieron invencibles a los europeos en todos los frentes” (Stert,
num processo de expansão para fora, levando para 1996, p. 307). O progresso, dessa forma, nasce como
outros povos a possibilidade ou a ilusão de fazer a um modo de pensar o autodesenvolvimento dos eu-
mesma decolagem. ropeus e de como outros povos seriam a ele incorpo-
rados.
Por outro lado, país não desenvolvido diz respeito a
uma economia que ainda não alcançou o mesmo nível Logo que a ideia de progresso surgiu no Ocidente, ela
de progresso dos europeus ocidentais ou dos norte- foi transportada pelos conquistadores ao “Terceiro
americanos. Quando uma nação tomada como “atra- Mundo”, sendo seguida neste pela escravidão, pelo
sada” entra em contato “cooperativo” com os países holocausto no sistema plantation (Mbembe, 2018) e,
considerados mais avançados em termos de pro- depois, pelos confrontos, não menos violentos, liga-
gresso, a categoria subdesenvolvimento dá lugar a de dos ao modo como se deram os enfrentamentos em
país em desenvolvimento. Mas a noção de país em desenvol- torno da independência. De qualquer modo, o Estado
vimento não deixa também de significar país que nunca “liberal autoritário”, contraditoriamente se encarre-
será desenvolvido (Castoriadis, 1976). Os termos liga- gou de “incubar” o progresso numa sociedade frag-
dos ao progresso sempre guardam uma carga ideoló- mentada, ruralmente paternalista e autoritariamente
gica concernente às dissimetrias das relações coloni- coercitiva. Isso acabou sendo a mais palpável negação
ais. O tecnicismo torna-se chave para promover a su- de que, para o mal do subdesenvolvimento do “Ter-
perioridade dos que promovem o progresso dos ou- ceiro Mundo”, já existia no “Primeiro Mundo” o re-
tros. Trata-se de um empreendimento paternalista a médio, o progresso, bastando apenas que este fosse
partir do qual os países desenvolvidos pretendem ga- partilhado, ou seja, aplicado também na situação local.
rantir a arrancada dos países em atraso. Esse processo
de engenharia social guiado por especialistas interna- A concepção de progresso que foi incorporada na
cionais mostra como os outros, os inferiores na esca- América Latina, como espaço terceiro-mundista, peri-
lada do progresso, precisam se desenvolver, como férico, subdesenvolvido ou em desenvolvimento, foi
ocorreu especialmente entres os anos de 1945 e 1975 baseada no reconhecimento da superioridade da civi-
(Latouche, 2001). lização ocidental e no seu modo de usar a ciência e a
tecnologia como instrumento de produção/domina-
No que se refere ao termo “Terceiro Mundo”, umas ção, especialmente, ambiental. Isso foi uma tendência
das formas de se referir a América Latina, o progresso, persistente. O modo de dominação do “Terceiro
inicialmente, era tão desconhecido quanto o era na Mundo” passou por transformações. Novas fases sur-
Idade Média (Crawford, 1982). Cooriginário da giram e, com elas, novas formas de apresentação do

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progresso se despontaram. Destaca-se, por exemplo, ganhou expressão, inicialmente, no discurso de Tru-
a forma como a ideologia da missão civilizadora, na mam, representante das nações industrializadas que,
qual incialmente se ancorou o colonialismo, deu lugar em 20 de janeiro de 1949, identificou o hemisfério sul
a sujeição baseada na dicotomia moderno versus tra- como subdesenvolvido. Com isso criou-se uma forma
dicional. Mais recentemente, após os anos 60, com as de olhar a região como lugar de “autocompasión patética”
revoluções nacionais, intensificou-se a importação da (Sachs, 1996, p. 5).
ciência e tecnologia, que, associadas aos movimentos
de libertação e ressurgimento cultural, passaram a ser, Os Estados Unidos da América, com as catástrofes
“a core dimension of the idea of progress in the Third World” bélicas e civilizacionais culminadas na Segunda
(Crawford,1982, p. 99). O encantamento com o pro- Guerra Mundial, passaram a promover o progresso
gresso enfeitiçou as elites dos países subordinados, como ideologia associada à reconstrução das nações
para as quais os males do desenvolvimento era algo centrais e ao desenvolvimento dos países “atrasados”.
irrelevante, a tal ponto que um representante do go- Com eles, surgem os programas associados à Aliança
verno brasileiro, numa conferência internacional so- para o Progresso, visando sobretudo combater os
bre problemas globais em Estocolmo, em 1972, ter avanços das políticas de esquerda na América Latina.
abordado os representantes de países “desenvolvi-
dos” com a seguinte frase: “mande-nos a sua poluição” Em seus desdobramentos recentes, depois da queda
(Crawford, 1982, p. 100). do chamado “socialismo real”, o “triunfo do capita-
lismo global apossou-se integralmente do conceito de
Desejada ou não, a tragédia ligada ao progresso foi se progresso frente aos “formidáveis” avanços científicos
configurando. Associado à ocidentalização da Amé- e técnicos (Dupas, 2007, p. 75) Nesse sentido, o pro-
rica Latina, o progresso significou, antes de tudo, co- gresso passou a ser o discurso hegemônico das elites
lonialismo, numa relação definida por quem explora o globais. Cabendo apenas saber quem manda, quem es-
meio natural de quem, quem consome produtos ma- colhe a direção desse progresso. Contudo, com o re-
nufaturados e informatizados vendidos por quem e conhecimento da crise ecológica que assolou o globo,
quem polui quem. O colonialismo, mostra Sbert e de que o crescimento econômico não foi acompa-
(1996, p. 301), em suas várias formas, mais ou menos nhado necessariamente da criação de postos de traba-
veladas, em nome do progresso, “quebrou por inteiro as lho e renda, a suposta superioridade do Norte (inter-
culturas estabelecidas” no continente, e a solidariedade vencionismo arrogante, imagem de estar acima na es-
interna do povo, pois as elites caudatárias do domínio cala evolutiva) mostrou sua verdadeira face predató-
estrangeiro mantiveram um “fé ambígua no pro- ria. A corrida rumo ao desenvolvimento ilimitado
gresso”, marcado por conflitos e contradições, em conduziu ao abismo socioambiental e a acentuação da
nada aprimorando as condições de existências da po- desigualdade econômica.
pulação que mais tem sofrido os impactos negativos
do mal desenvolvimento. O resultado disso foi deso- *
lador em termos de aprimoramento social. Os balan-
Mas houve resistência ao colonialismo via progresso
ços negativos das promessas de bem-estar mostraram
na América Latina, que, embora, num primeiro mo-
o quanto as esperanças no progresso foram ilusórias.
mento, não tenha rompido significativamente com
Depois da segunda metade do século XX, os esforços
sua ontologia e epistemologia, propôs modelos e esti-
em prol do desenvolvimento “arrojaron resultados muy
los de desenvolvimento autênticos para a região. Des-
pobres, problemas cruciales como la pobreza o la desigualdad
tacam-se nesse sentido os debates no interior da
persistieron, e hicieron desaparecer una rica variedad cultural de
CEPAL - Comissão Econômica para a América La-
opciones. (Gudynas, 2014, p. 64)
tina e o Caribe. A CEPAL tem sido uma importante
A era do desenvolvimento, uma forma de ressignifi- fonte de pesquisa sobre o desenvolvimento na Amé-
cação da ideia de progresso (cf. Castoriadis, 1976), rica Latina e Caribe. Desde os finais dos anos cin-
teve seu início e fim já bem demarcados. Essa era quenta, ela apresentou-se como palco de um trabalho

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Progresso, modernidade e colonialismo na América Latina
Sidney Reinaldo da Silva

engajado na formulação de políticas públicas para o economia num quadro de enorme concentração de
progresso e de críticas aos descaminhos do desenvol- renda e a carência de infraestrutura social (Dweck,
vimento na região, num contexto periférico de depen- 2019, p. 1). Mas isso ainda depende do enfrentamento
dência, buscando modelos para um desenvolvimento político das forças neoliberais e do fortalecimento da
inédito na América Latina, desviando, sobretudo, do centralidade do Estado, sem o que não se poderia
“falso universalismo” rostowniano. romper com a condição periférica do subdesenvolvi-
mento (Tavares, 2019, p. 9). Ressalta-se também que
Com o pensamento prebischiano, descortina-se à não se trata de mero crescimento econômico, mas de
consciência de investigar e aproveitar um conheci- diversificar o “tecido produtivo”, tornando-o mais com-
mento e experiência vindos de fora sem se submeter plexo e marcado por atividades intensivas de conheci-
às estruturas mentais na quais foram produzidos (Bi- mento, levando em conta o modo como dimensões
elschowsky, 2000, p. 27). As propostas nacional-de- macroeconômicas, industriais, sociais e ambientais se
senvolvimentistas para o desenvolvimento da CEPAL articulam politicamente. Para o neodesenvolvimen-
passaram por fases distintas: legitimação e orientação tista, os motores do crescimento e do desenvolvi-
do da industrialização, nos anos 1950; foco no redis- mento são as próprias políticas de sustentabilidade, de
tribuir para crescer, nos anos 1960; estilos de cresci- enfrentamento aos desafios à mudança climática, as-
mento com homogeneidade social e com intensifica- sociados às políticas de inclusão social e de redução
ção de exportação industrial, nos anos de 1970; cres- de desigualdades (Leite, 2019, p. 12).
cimento com ajuste e estabilização econômica, nos
anos de 1980; transformação produtiva com equidade, *
nos anos 1990 (Bielschowsky, 2000). A partir do se-
gundo milênio, seus teóricos se empenharam sobre- Embora continue a ser proposto como base para o
tudo em pensar as possibilidades de desenvolvimento retorno da América Latina aos trilhos do progresso, o
no contexto da globalização (CEPAL, 2002). Con- imperativo do desenvolvimento perdeu a sua hege-
tudo, a CEPAL acabou, assumindo também um pen- monia como força legitimadora para a emancipação
samento reformista conservador, apostando nas re- da região. Sachs usa uma metáfora muito especial para
formas pró-mercado, no reduzido papel de agente re- descrever o fim da força normativa do desenvolvi-
gular do Estado e nos princípios neoliberais como “a mentismo: La flecha del progreso esta rota y el futuro ha per-
única forma possível para o desenvolvimento das economias dido su brillo: “lo que nos depara son mas amenazas que pro-
emergentes” (CARCANHOLO, 2008, p. 140). De qual- mesas” (Sachs, 1996, p. 7). Não se trata, contudo de
quer forma, a CEPAL permanece como referência dizer que o desenvolvimentismo fracassou, foi o su-
para se pensar o progresso na América Latina, atual- cesso dessa ideologia que mais a condenou, pois com
mente marcado pela agenda do desenvolvimento sus- isso foi revelado o modo como seu propósito foi ex-
tentável (CEPAL, 2019). cludente. Mesmo em hipótese, um mundo totalmente
desenvolvido seria inadmissível, perante os limites dos
* recursos naturais disponíveis. No contexto latino-
americano, a busca pelo desenvolvimento incessante
A atualização crítica do modelo desenvolvimentista de novas comodidades (bem-estar) e commodities
tem exigido a superação do que tem sido identificado agrícolas e minerais, de maior eficiência produtiva e
como uma falsa dicotomia entre questões socioambi- maior intensidade do aproveitamento dos recursos
entais e econômicas. Nesse âmbito de pensamento, naturais, não tem, na prática, levado em conta o seu
propõe-se que as potencialidades de desenvolvimento impacto nas formas locais de viver, gerando falta de
aguardam apenas políticas públicas capazes de pro- trabalho e renda, poluição e destruição ambiental,
mover crescimento, com as devidas restrições ambi- mesmo quando isso foi feito com a promessa ou o
entalistas e redistribuição de renda. Trata-se de um compromisso de equidade (Acosta, 2016).
projeto de garantia de maior justiça social e reparação
histórica de desigualdades, capaz de dinamizar a

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ISSN impresso: 2183-9220 | ISSN eletrónico: 2184-2647

Contrapondo-se ao progresso como sentido e propo- desenvolvimentista de moldagem da vida. Recusa-se


sito social, emerge na América Latina o ideário do com ela a aposta no viver melhor expresso na acumu-
Bem Viver. Essa emergência é ao mesmo tempo teó- lação material, no ser mais competitivo, mais produ-
rica, prática institucional: “en efecto, estas propuestas se tivo e mais consumista (Gudynas, 2017).
expresan concretamente en las constituciones de Ecuador
(2008) y Bolivia (2009); en el primer caso es el Buen Vivir Contudo, o Bem Viver tornou-se um novo horizonte
o Sumak Kawsay (en kichwa), y en el segundo, en particular el para se falar do progresso. Àquele refere-se tanto
Vivir Bien o suma qamaña (en aymara) y también Sumak como uma alternativa ao desenvolvimento quanto
Kawsay (en quechua). Existen nociones similares (mas no idén- uma forma de desenvolvimento alternativo, no sen-
ticamente iguales) en otros pueblos indígenas, como los mapuche tido de ser um caminho para o pós-desenvolvimento,
(Chile), los guaraní (Bolivia y Paraguay), los kuna (Panamá), compreendido desabrochar de potencialidades que
los achuar (Amazonia ecuatoriana), pero también en la tradi- rompe ou vira as costas para modernidade, recusando
ción Maya (Guatemala), en Chiapas (México), entre otros” a centralidade do crescimento econômico para o de-
(Acosta, 2015, p. 301). Contudo, a despeito de sua senvolvimento.
raiz latino-americana, o Bem Viver tem sido visto
como um bem comum da humanidade (Houtart,
2011).
Considerações finais
Frente à base normativa do Bem Viver, as sociedades
avançadas passaram a ser vistas mais como uma aber- O progresso tem sido assim apontado como um mito,
ração a ser evitada do que um modelo a ser seguido. uma religião, uma enganosa manipulação ou ideologia
O desenvolvimento modernizante abrangente mos- de que o aperfeiçoamento contínuo do ser humano,
tra-se assim incompatível com um dos maiores valo- apesar de seus momentos injustos em que se favorece
apenas uma elite, seja mundial ou nacional, tenderia, à
res do Bem Viver, o respeito pela diversidade de for-
mas de existência humana, ao lado da vida em harmo- la longue, a beneficiar todo mundo. Contudo, a crença
nia reverente à natureza e sua variedade de formas. nesse modo de ver o desenvolvimento já recebeu o
seu réquiem (Rist, 1996). Na América Latina, a crítica
Assim, “los tuaregs, los zapotecos o los rajasthanis no son vis-
tos como si vivieran modos diversos y no comparables de la exis- ao progresso foi sendo reelaborada, somando-se a es-
tencia humana, sino como quienes son carentes en términos de forços teóricos e práticos de pensar um mundo pós-
lo que ha sido logrado por los paises avanzados” (Sachs, 1996, desenvolvimentista, baseado na recusa da excrescên-
p. 8). A mútua fertilização entre discurso pós-desen- cia do crescimento econômico. No horizonte da tra-
volvimentismo e Bem Viver tem sido uma estratégia dição do Bem Viver, ligado às formas de vida origina-
de afirmação desses modos de vidas “invisibilizados” e rias dos habitantes encentrais do nosso continente, as
concepções de desenvolvimento predominantes para
de desconstrução da modernidade como forma de
progresso (Escobar, 2014). a região, como as da CEPAL, passam a ser avaliadas
(Sarmiento & Baquero, 2016).
O progresso, como manifestação dos feitos da razão
e da capacidade de aperfeiçoar do ser humano, revela- O cosmopolitismo e a democracia, como valores mo-
se, no prisma do Bem Viver, como um mito, crença, dernos, são certamente os maiores desafios para a
culto à ciência e reverência à técnica como um bem si. América Latina no sentido de superar a violência, as
tradições de autoritarismo, instaurar bases republica-
E como toda fantasia, brota e morre, não tanto por-
que é considerada falsa, mas por que porta promessas nas do Estado de Direito e desenvolver uma genuína
que se tornam “irrelevantes” (Sachs, 1996, p. 10). Esse confederação de estado pluriétnicos e pluriculturais
diagnóstico repercutiu na discussão em torno do de- (Barreto, 2018). Nesse sentido, fazer progresso signi-
senvolvimento no seio polifônico do Bem Viver. A fica, numa visão abrangente, partilhar formas de de-
concepção de pós-desenvolvimento surge como crí- senvolvimento que afirme e potencialize a existências
tica ao progresso e a sua recente versão dos diversos povos no interior das nações regionais
conforme os valores do Bem Viver. Sem isso não se

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Progresso, modernidade e colonialismo na América Latina
Sidney Reinaldo da Silva

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