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METAMORFOSES DA DONZELA-GUERREIRA

Walnice Nogueira Galvão


Profª. Titular da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo

Desde a aurora dos tempos, a Dois pontos são indecidíveis no


donzela-guerreira transgrediu simulta- exame do arquétipo literário: se ocorre por
neamente, e no mínimo, duas fronteiras. A autoctonia ou por difusão, e se, além de
primeira delas entre os gêneros, ao colocar- literário, é também histórico. E isso porque o
se a cavaleiro do masculino e do feminino; arquétipo visita tempos e espaços, sem que se
a segunda, entre os estatutos do real e do possa precisar se nasceu ali ou chegou por
imaginário. empréstimo. E, quando pensamos ter
resolvido a questão, pondo-a à conta da
literatura, surgem documentos que
Perfil da heroína comprovam uma existência histórica.
Se tomarmos como ponto de
partida a mais arrematada donzela- Na aurora dos tempos
guerreira de nossa literatura – Diadorim
A presença da donzela-guerreira se
de Grande sertão: veredas, de Guimarães
faz sentir logo de saída nos textos que são
Rosa –, montaremos um paradigma de
fundadores da tradição ocidental. Na Grécia,
traços constitutivos para identificar outras
computam-se numerosos mitos de
personagens de mesma estirpe. Adotando
mulheres que se recusam a casar, preferem a
trajes de homem; cortando rente o cabelo,
prática de esportes e se vestem de homem. As
de preferência com tesoura de prata;
amazonas povoaram a imaginação grega,
banhando-se sozinha, no escuro da noite; além de migrarem mais tarde para nosso
usando colete apertado, para disfarçar os país, dando nome a um estado e ao maior
seios; criada pelo pai por ser órfã de mãe; rio do mundo. Atalanta, exímia caçadora e
ocupando na fratria a posição de filha atleta, é mais um desses casos, embora o
única ou mais velha; submetendo-se a mais prodigioso seja o da deusa Palas Atena,
voto de castidade; destacando-se pelo padroeira da pólis, que nasceu da cabeça de
destemor e pela belicosidade; ao fim, seu pai, o deus supremo Zeus, envergando
abandonando a indumentária masculina armadura, empunhando lança e escudo. Já
e as lides de combate para casar-se, ou havia uma no Olimpo, portanto, com todo o
então morrendo: certamente, estamos seu prestígio de divindade e de criadora da
diante de uma donzela-guerreira. civilização urbana.

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A Ilíada e a Odisséia contam várias andante. Spenser, em The faerie queene,


dessas histórias. Depois, em Roma, a chama a sua de errant damzel. Mas é
Eneida poria em cena Camila, general igualmente por esses tempos que irrompe a
comandando esquadrões de Volscos que fisionomia de Joana d’Arc, até hoje dentre
pelejaram para deter a invasão liderada por as mais celebradas, mobilizando o
Enéias, perecendo de armas em punho à imaginário de várias épocas e percorrendo
frente de um destacamento de virgens. uma carreira fora do comum. Além de
O que se passa na Bíblia é um tanto liderar coortes de compatriotas franceses
diferente. Trata-se ali, no Velho Testamento, para confrontar as forças inglesas, seria
de tribos nômades, que viviam em tendas, queimada na fogueira como bruxa, para
pastoreando ovelhas, e que só tardiamente depois vir a ser canonizada como santa.
se assentaram. Tais circunstâncias abriram No período do Renascimento, não só
extraordinárias oportunidades para várias mulheres participavam de expedições
mulheres dotadas de autonomia. Na fase militares como até era considerado de bom-
histórica em que, anteriormente ao tom fantasiar-se de donzela-guerreira. À obra
aparecimento da monarquia, o cargo mais de Shakespeare comparecem heroínas
alto naquela sociedade era o de juiz, travestidas, como Rosalinda, em Como lhes
constatam-se várias mulheres juízas. Entre aprouver (As you like it). À época, havia um
apenas onze desses magistrados militares e picante agregado: no teatro elisabetano todos
civis que a Bíblia consigna, figura uma os atores, invariavelmente, eram do sexo
mulher, Débora, que compôs peãs e masculino, pois o outro sexo não tinha
conduziu exércitos à vitória. Outras são acesso ao palco, como aliás se passa ainda
mulheres belicosas que atraíam a suas hoje no Nô e no Kabuki japoneses, bem como
tendas o general-em-chefe das hostes na Ópera chinesa. O que se via no teatro de
inimigas, a quem seduziam e justiçavam, Shakespeare, portanto, era algo bastante
garantindo a seu povo o triunfo. Foi o complexo: homens vestidos de mulheres que
destino que Judite deu a Holofernes, no livro se vestiam de homem. Aqui pelo Brasil-
bíblico que leva seu nome, e Jael a Sísara,
colônia se procedia de modo similar, e os
conforme celebra (“Bendita sejas tu entre
viajantes assistiram e registraram espetáculos
as mulheres, Jael”) o cântico de Débora
nos quais os atores que encarnavam papéis
integrante de outro livro, o de Juízes.
femininos eram homens.
Durante a vigência do
Percurso no tempo Romantismo, que se dedicou a uma
Quando, no fim da Idade Média, a redescoberta do bardo inglês, valorizado
novela de cavalaria se torna o gênero sobretudo por sua atenção às paixões da
predominante, assinala-se uma profusão alma, ressurgem mulheres vestidas de
de donzelas-guerreiras, as quais, elas homem. Beethoven colocou uma na ópera
também, almejam tornar-se um cavaleiro Fidelio, sob cujo perfil se esconde a esposa

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de Florestan. Mais tarde, observa-se um simbólico do sangue vertido ritualmente


fenômeno bizarro, que se poderia nas fundações da uma cidade ou de uma
denominar ‘a vingança de Sarah casa, e se, nesse caso, o sangue não seria o
Bernhardt’. Ciosa das belas pernas e do de uma virgem.
perfil andrógino, divergente da silhueta de
ampulheta predominante na Belle Époque, Questão de método
a atriz francesa manifestava preferência
por protagonistas masculinos. Um de seus Para escapar da crença na
maiores sucessos, reencenado vezes sem transmissão literária, ou do perigo de
conta, foi Hamlet; outro, o papel-título de restringir-se apenas a um fenômeno de
L’Aiglon, de Sardou. difusão de um mesmo mito a partir de um
único foco de origem, vejamos um exemplo
em que a genealogia é comprovável. É o
Literatura e História que se dá com a Balada de Mu-lan, que os
Quando nos voltamos para a portugueses poderiam ter trazido da China,
história e literatura brasileiras, notamos a gerando toda uma saga de poemas de Dom
presença de várias donzelas-guerreiras, Varão ou Barão (“Ai minha mãe/ Os olhos
completas ou apenas esboçadas. Canga- de Dom Barão / São de mulher, de homem
ceiras, mandonas, bandidas, aventureiras, não”), que passariam da metrópole para o
soldados nas guerras da Independência ou Brasil, onde, entre outros, Sílvio Romero os
do Paraguai, personagens da poesia estudaria.
popular e do romance de cordel, elas vão Mas nem sempre é assim e, para
desde Dona Damiana, a Escopeteira, em tanto, seria salutar proceder a indagações
Lourenço, de Franklin Távora, até a em culturas ágrafas, talvez mais próximas
caricatura que Alencar fez de Dona Severa, de nós e de Diadorim. É verdade que esta
em Guerra dos mascates. mantém a ambigüidade, pois tanto poderia
Se deixarmos a literatura de lado e ser fruto da tradição oral quanto da
formos verificar o que a história nos diz, transmissão literária, já que o próprio
comprovaremos a existência de donzelas- Guimarães Rosa anotou, em “Uma estória
guerreiras por toda parte. Se elas estão nos de amor”, de Corpo de baile, uma canção
mitos, como o das amazonas, também da donzela-guerreira, da qual transcreve
estão documentadas – na Índia, na Rússia, alguns versos.
na Inglaterra, no Vietnã, na Checos- Na festa de Iamaricumá, celebrada
lováquia, na China ou na Grécia moderna, ainda hoje no Parque do Xingu, as índias se
onde Bubulina, no século XIX, tornou-se revestem dos paramentos masculinos e
uma heroína das campanhas contra o tomam simbolicamente o poder por um dia,
invasor turco. É tão freqüente a presença ocupando o pátio central da aldeia com sua
delas, associada ao nascimento ou à defesa dança. Vários mitos e ritos, registrados por
da nacionalidade, que faz pensar no valor antropólogos, dão conta desse costume e de

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outros similares. Quanto às fontes africanas, tanto na ordem do histórico quanto do


provêm de um continente onde o imaginário, os limites que lhes impuseram.
matriarcado se afirma em vários setores da A assimetria também nos ajuda a
vida social. No candomblé mais ortodoxo, o raciocinar ab contrario. No caso da
sacerdócio supremo da mãe-de-santo é donzela-guerreira, que segue os passos do
exclusivo das mulheres, e só por pai, a mãe foi eliminada. Torna-se
contaminação do patriarcado da sociedade necessária a verificação de quais são as
brasileira é que os homens conseguiram se instâncias – os mitos, as histórias, a
alçar ao prestígio da posição de pai-de- iconografia – em que o contrário ocorre,
santo. Aqui, novamente, as coisas se ou seja, uma relação entre filho e mãe em
embaralham, e uma figura de nosso que o pai foi excluído. Conhecidíssimo,
folclore, a rainha Jinga, que aparece no quase um clichê, o arquétipo da Pietà ou
Congo ou Congado, vem a ser a da Mater Dolorosa domina as
reminiscência de uma personagem imaginações e preside a religiões. Ninguém
histórica, a rainha de Angola, N’zinga ignora o par formado por Jesus Cristo e a
M’bandi, que levantou seu povo em armas Virgem Maria, ou seus correlatos em vários
contra os conquistadores portugueses. outros credos e sistemas. Já o par de que
aqui tratamos, constituído por filha e pai,
Gênero e assimetria mais uma vez enfatizando a assimetria que
reina nas paragens dos gêneros,
A esta altura, algumas conclusões
permaneceu obscurecido.
provisórias podem encaminhar a reflexão. A
primeira delas diz respeito à verificação de A contraposição entre as duas
uma assimetria incontornável que se faz díades elucida alguns tópicos. Quando
presente em todos esses enredos. Sim, as Freud diagnosticou a inveja do pênis, para
mulheres sempre quiseram desempenhar sempre condenando as mulheres à posição
papéis masculinos, mas o contrário não é de seres mutilados e aspirando à
verdadeiro: raramente os homens se completude, efetuou uma notável
prestaram a desempenhar papéis femininos, descoberta. É até de estranhar que não lhe
a não ser numa exceção representada pelo tenha ocorrido, apesar de sua acuidade e
carnaval, e aí é por deboche. Do que fala perspicácia, a existência de outros motivos
uma tal assimetria? Fala que o feminino de inveja provocados pela assimetria entre
jamais deixou de ser relegado a uma esfera os gêneros: a só um deles cabe a gestação
inferior: basta pensar que o trunfo em de novas vidas. E, em matéria de poder, o
disputa é o poder, de que os homens detêm o que pode ser maior do que esse? A tal ponto
monopólio. Ainda mais: que as mulheres ou que, se quisermos, podemos ver na noção
recalcaram, ou reprimiram, ou dissentiram, freudiana uma inversão do princípio de
ou se ressentiram, mas não se resignaram. inveja da gestação.
Tanto é que nunca deixaram de transgredir, Examinando dois mitos

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fundadores – para fins de análise, apenas uma contradição severa entre lição e desejo.
dois, mesmo que os exemplos se Lévi-Strauss mostrou que todo mito encerra
multipliquem –, notamos um traço uma lição, e essa lição é conservadora. O
renitente. Naquele acima mencionado, do fato de que a donzela-guerreira esteja
nascimento de Palas Atena diretamente da submetida alternativamente a apenas dois
cabeça de Zeus, um elemento fica faltando, destinos – ou casar e ter filhos, deixando de
ou seja, a mãe. Um homem dá à luz sem ser donzela-guerreira, ou então morrer –
intervenção feminina – o que deve ser mostra que a lição, além de conservadora, é
corrente nos domínios do imaginário, tal a uma ameaça: ou se enquadra, ou morre,
freqüência com que vêm à tona. Na própria seja essa morte real ou simbólica.
religião cristã, vê-se que Jeová também
Mas os mitos, de modo similar,
criou Adão sem intervenção feminina, ou
sugerem que a transgressão é inovadora e
seja, sem mãe. Trata-se, como se vê, da
criativa, e se Prometeu não furtasse o fogo
concretização mítica de uma fantasia
aos deuses, não haveria civilização. À lição
masculina de maternidade.
– com sua ameaça – contida nos mitos da
donzela-guerreira se contrapõe o desejo,
Lição versus desejo que repetidas vezes desafia o interdito na
Filha da fantasia de maternidade demanda de um destino maior, embora
do pai, transparece na donzela-guerreira negado a seu gênero.

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