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O papel decisivo

de mulheres
no Antigo Israel
Centro de Estudos Bíblicos – CEBI
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Centro de Estudos Bíblicos – CEBI


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O papel decisivo
de mulheres
no Antigo Israel

Preparado por
CEBI – Região Amazônica

Organização
Francisco Jovane Rodrigues da Silva

São Leopoldo
2022
Direitos de publicação e comercialização do
Centro de Estudos Bíblicos – CEBI

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

P232 O papel decisivo de mulheres no antigo Israel [livro eletrônico] / organização de


Francisco Jovane Rodrigues da Silva. – São Leopoldo : Centro de Estudos Bíblicos -
CEBI, 2022.
1,5 Mb ; ePDF

Bibliografia
ISBN 978-65-86739-26-8 (e-book)

1. Bíblia – Estudo e ensino 2. Mulheres 3. Histórias bíblicas I. Silva, Francisco


Jovane Rodrigues da

22-5390 CDD 220.7

Índices para catálogo sistemático:


1. Bíblia N. T. – Estudo e ensino

Capa
Fábio Martins Gomes de Melo

Revisão
Francisco Leandro Quenupe Campos

Projeto gráfico e diagramação


Rafael Tarcísio Forneck

A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas


que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins
didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita
e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Sumário

Introdução.......................................................................................................... 7

Sara e Agar.......................................................................................................... 9

Rebeca................................................................................................................... 13

Lia e Raquel........................................................................................................ 16

Tamar.................................................................................................................... 19

A esposa de Putifar.......................................................................................... 22

Várias mulheres no Êxodo............................................................................ 24

Raab....................................................................................................................... 27

Débora.................................................................................................................. 30

Rute e Noemi...................................................................................................... 33

ANA........................................................................................................................ 35

5
Micol...................................................................................................................... 38

Betsabeia............................................................................................................. 42

A viúva de Sarepta........................................................................................... 46

Josaba.................................................................................................................... 50

Hulda..................................................................................................................... 53

6
Introdução

O relato que segue é fruto do estudo realizado por lide-


ranças do CEBI na Região Amazônica em 2016. Foram dois
encontros, sendo que o primeiro foi em Manaus, entre os dias
21 e 24 de abril, e o segundo em Boa Vista, entre os dias 08 a
11 de dezembro daquele ano. O tema para os seminários foi
o estudo sobre algumas mulheres que exerceram um papel
decisivo nos destinos do Antigo Israel. E o título escolhido foi:
“Mulheres, fonte de mudanças na história do Antigo Israel”.
Naquela ocasião, ainda estavam entre nós as saudosas
companheiras Ir. Nilda Nair Reinehr e Nilva Cardoso Baraúna.
Hoje, suas presenças seguem em nova dimensão, animando
a caminhada de Leitura Popular da Bíblia em nossa região.
Parte deste trabalho é contribuição delas. Outra parte foi ela-
borada por Ivoneide Pinheiro Salucci e pelo Diácono Fran-
cisco Jovane, com a colaboração de Ildo Bohn Gass.

7
De um lado, optamos por estudar a presença de algu-
mas mulheres no Pentateuco. São elas: Sara e Agar, Rebeca,
Lia e Raquel, Tamar, a esposa de Putifar; bem como as mulhe-
res presentes no Êxodo: as parteiras Sefra e Fua, a mãe e
irmã de Moisés e a princesa do Faraó. Por outro lado, estu-
damos também mulheres presentes na História Deuterono-
mista, que são os livros de Josué, Juízes, 1 e 2 Samuel e 1 e
2 Reis. Optamos por Raab, Débora, Ana, Micol, Betsabeia, a
viúva de Sarepta, Josaba e a profetisa Hulda. Incluímos, aqui,
Rute e Noemi, embora esta novela bíblica seja uma narrativa
pós-exílica inserida na obra deuteronomista pelos editores
finais da Bíblia Hebraica.
A motivação para o estudo da presença dessas mulhe-
res foi sobre o rumo que a ação delas demarcou para o futuro
de Israel. Nesse sentido, “se” e “então” tornou-se um refrão
durante nosso estudo, tal como você pode acompanhar na
sequência.

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Sara e Agar

“Se” não houvesse a ação de Sarai, levando sua serva


para Abrão, “então” Ismael não teria nascido. Com a
reação de Agar, Ismael recebeu a mesma bênção de
Isaac: ser pai de uma grande nação
(Gn 16).
“Se” Sara tivesse esperado o tempo de Deus, “então”
Ismael não teria nascido, e o mundo não teria uma
grande nação, isto é, a dos ismaelitas
(Gn 21,1-20).
Reflexões1

Percebemos, no texto de Gn 16, duas partes. A primeira


está nos vv. 1-6, e nela aparece claramente o patriarcado que
domina a casa de Abrão e Sarai (Abrão somente será cha-
mado de Abraão a partir de Gn 17,5, e Sarai de Sara a partir de
Gn 17,15). Nosso texto está construído sob esse sistema, onde
Abrão é o senhor de Sarai. Ela é a senhora de Agar e decide
sobre sua vida. Agar é joguete nas mãos de sua senhora, a
patroa, e de seu patrão, a quem é dada e por ele possuída
para dar filhos à patroa. Na casa patriarcal também é citada a
presença de Deus, mas este é acusado por ser o culpado pela
esterilidade (v. 2).
Depois de ser “possuída” por Abrão, Agar engravida. Ao
se ver grávida, geradora de vida, começa a reagir e já não é
mais submissa, mas olha com desprezo sua senhora (v. 4).
Sarai queixa-se com Abrão, e este lhe diz que a escrava está
em suas mãos. A subjugação a um casamento patriarcal, onde
ela não tem nem maturidade e nem liberdade. Mulher sem
autonomia. E Abrão, com a resposta que deu a Sarai, reforça
esse sistema (v. 6). Sarai então passa a maltratar Agar.
Na segunda parte do texto (vv. 6-16), inicia a ação/
reação de Agar: a fuga. Agar reage, agredindo Sarai ainda

1 O texto que segue foi elaborado pela Irmã Nilda (em memória).

10
dentro da casa patriarcal. Precisa sair, abrir caminho de vida
e liberdade. Essa segunda parte já abre caminho novo. Já apa-
rece o “Mensageiro de Deus”, do Deus da vida, por 4 vezes
(vv. 7.9.10.11). Aqui, a aparição de Deus é algo inusitado
naquela cultura patriarcal. Deus aparece a uma mulher afri-
cana e escrava. A pergunta do Mensageiro de Deus é muito
importante: “Agar, serva de Sarai, de onde vens e para onde
vais?”. Sua orientação é para que volte e se submeta a sua
senhora. Não será para a sua sobrevivência e de seu filho,
uma vez que uma escrava fugitiva não seria aceita noutro
clã, e no deserto gestante não sobreviveria? Volta para a casa
da opressão, porém com outra experiência, como veremos a
seguir.
Agar recebe, então, a mesma promessa de grande des-
cendência que Deus fez a Abrão (Gn 12,1-3). Agar, apesar do
desprezo de Sarai e da inação de Abrão, nunca ficou só, e foi
protegida. No deserto, na aridez, no abandono, na dificul-
dade, acontece o ENCONTRO. Agar, que já recebeu a visita de
Deus no seu mensageiro, agora vê o Deus da vida, no poço
(na fonte) que se faz visível a seus olhos. Deus se lhe revela
numa Epifania. A este Deus, Agar dá nome: “o Deus que vê”
(El Roy). É o Deus que dá nome ao filho “Ismael”, “o Deus que
ouve”. Esse filho recebe o nome dado por Deus, é um filho da
escrava, estrangeira, negra, explorada e excluída. Ele recebe

11
a identidade do Deus da vida. Deus não é Deus apenas de um
único povo. Aqui, já percebemos uma abertura para a uni-
versalidade. Resgata-se o valor da identidade das pessoas
excluídas. Depois dessa experiência, Agar já não será mais a
mesma. Volta à casa de onde saiu, e aí Abrão confirma o nome
do filho que Deus lhe dera, Ismael.

12
Rebeca

Se” não houvesse a ação de Rebeca na hora


da bênção ao primogênito, “então” o terceiro
patriarca não seria Jacó, mas Esaú
(Gn 27).
Reflexões

Vamos manter muito cuidado quando formos refletir


sobre a atitude de Rebeca protegendo seu filho Jacó. Não
podemos esquecer que Esaú também era seu filho. Mas, por
que ela toma esta atitude, a ponto de enganar seu esposo
Isaac? Ora, o que está por trás do texto é a tradição de Rebeca.
Ela deu prioridade a Jacó devido à sua tradição e cultura. Ela
era de uma família de criadores de ovinos. Tanto que Jacó,
fugindo do irmão para a região da sua mãe, vai trabalhar para
seu tio, Labão, irmão de sua mãe. Ali, ele não encontra pro-
blema, pois sabia lidar com o rebanho.
É importante termos presente que, na família patriar-
cal, a autoridade está nas mãos do pai e do primogênito,
enquanto a mãe e os demais filhos ficam em segundo plano.
No entanto, é o filho caçula e favorito de Rebeca que recebe o
favorecimento de Deus, aquele que está do lado dos mais fra-
cos. A casa era o único espaço em que a mulher podia exercer
a sua autoridade. E isso Rebeca faz com maestria.
Esaú, o primogênito, era homem do campo, caçador e
guerreiro, e fazia por onde merecer estes adjetivos. Quando o
pai se preparava para a bênção da primogenitura, assim fala
a Esaú: “Agora, toma tuas armas, tua aljava e teu arco, sai ao
campo e apanha-me uma caça”. Ora, Isaac jamais iria pedir
isto de Jacó! Agora, veja o que Rebeca vai pedir a Jacó: “Vai

14
ao rebanho e traze-me de lá dois belos cabritos, e prepararei
para teu pai um bom prato, como ele gosta”.
Aqui está o drama das culturas: Isaac queria e preci-
sava de um filho guerreiro para defender sua terra. Enquanto
Rebeca queria um filho para cuidar do rebanho da família.
Entretanto, tudo terminou dando certo para as duas tradi-
ções. Então: depois de alguns anos, ao se reencontrarem os
dois irmãos, Esaú sai correndo ao encontro toma-o em seus
braços e, chorando, beija-o. Jacó disse: aceita o presente que
te ofereço, porque Iahweh me favoreceu. Esaú aceita. Por
meio do perdão, os irmãos conseguiram a paz.
É fato que nenhuma mãe deveria amar um filho mais
do que outro. Às vezes, porém, nos vemos diante de uma
situação em que temos que decidir algo que está sendo dis-
cutido ou disputado entre dois filhos, para, então, tomar uma
decisão, e nunca decidir por gostar mais de um do que do
outro. Isto seria uma crueldade. Por que machucar psicologi-
camente um filho a vida toda?

15
Lia e Raquel

“Se” não houvesse a resistência de Raquel, lutando


pelo amor de Jacó, “então” não seriam 12 os filhos
de Jacó e, mais tarde, as 12 tribos de Israel
(Gn 29,33-35; 30,1-24).
Reflexões

Esaú, depois que perdeu a bênção da primogenitura,


começou a ameaçar de morte Jacó. Então, assim lhe fala
Isaac: “Levanta-te, vai a Padã Aram, à casa de Batuel, o pai
de tua mãe, e escolhe uma mulher de lá, entre as filhas de
Labão, irmão de tua mãe”. Quando chegou lá, Jacó encon-
trou Raquel junto ao poço, levando o rebanho para beber
água. A partir desse encontro com ela, Jacó vai morar na
casa de Labão, irmão da sua mãe e pai de Lia e Raquel. Jacó
trabalha 14 anos para Labão pelo amor a Raquel, mas tam-
bém fica com Lia porque, segundo a tradição, a filha mais
velha casa primeiro.
Jacó volta para Canaã e vai morar em Betel. Agora, vai
iniciar a luta das duas mulheres pelo amor a Jacó. A disputa
era quem dava mais filhos a ele. Quem estava na frente era a
Lia, a esposa da tradição. Em poucos anos, já tinha dado, na
linguagem patriarcal daquela época, 5 filhos a seu marido.
São eles: Ruben, Simeão, Levi, Judá e Issacar. Raquel, a mulher
amada, era estéril. Ela chama Jacó e pede para ele gerar um
filho na sua serva Bala. Assim, este filho seria de Raquel para
Jacó. Com Bala, ele gerou dois filhos: Dã e Neftali. Lia não gos-
tou da atitude de sua irmã, chama Jacó e exige que ele faça o
mesmo com sua serva, Zelfa. Jacó amou Zelfa e gerou também
dois filhos: Gad e Aser. Quando Lia pensava que já não daria

17
mais filho a Jacó, veio a surpresa. Depois de 9 meses, nasce
Zebulon. A mulher amada faz um tratamento com “Mandrá-
goras”, planta considerada afrodisíaca, e inesperadamente
vai gerar dois filhos para Jacó: José e Benjamim.
O relato tem ótica patriarcal e revela a situação humi-
lhante das mulheres naquela sociedade. Seu reconhecimento
pelos homens passa pela capacidade delas de gerar filhos
para eles. E as escravas Bala e Zelfa não passam de meras
posses de suas senhoras a fim de procriarem para o marido
delas. Enquanto isso, o olhar dos homens para as mulheres é
de desejo por sua beleza (cf. 29,17-18).
De um lado, Deus favorece Raquel com a superação
humilhante da sua esterilidade, tal como já fizera com Sara
e Rebeca (Gn 21,1-6; 25,19-28). De outro, reabilita Lia, pois
é a mãe de Judá, o filho antepassado da dinastia de Davi em
Israel, aquele de quem “o cetro não se afastará” (Gn 49,8-12;
cf. v. 10).
Nesta trama de disputas, quem ganhou foi Jacó (Israel),
tendo 12 filhos, 8 com as esposas e 4 com as servas. Mais
tarde, Josué, em homenagem a eles, vai dividir Israel em 12
tribos e vai dar uma porção de terra à geração de cada filho.
Distribuiu a 10 filhos e as outras duas para dois filhos de
José: Manassés e Efraim. Como Levi é a tribo sacerdotal, não
ganhou terra.

18
Tamar

“Se” não houvesse a ousadia da estrangeira Tamar,


buscando seus direitos nas tradições de Judá, “então”
ela não seria mãe de Farés e Zara (Gn 38) e também
não estaria na genealogia de Jesus
(cf. Mt 1,3).
Reflexões2

Tamar é uma estrangeira que é dada em casamento a


Her, da tribo de Judá. Essa tribo se torna conhecida como
misturada por causa do casamento de Judá com uma estran-
geira. E Tamar casa-se com o primeiro filho de Judá que
morre sem deixar filhos. Casa-se com o segundo, Onã, que
também morre por não querer ter filhos com a cunhada, uma
vez que o filho que nascesse seria considerado filho do irmão
falecido, segundo a lei do cunhado (Dt 25,5-10). O sogro
manda-a de volta para a casa de seu pai no aguardo que o
filho mais novo cresça. Contudo, o menino cresce, e o sogro
não cumpre a promessa feita à nora Tamar, descumprindo a
lei do cunhado.
Tamar conhece a lei e sabe do seu direito a ter uma
descendência. Então, arquiteta um plano para resgatar esse
direito. Ela conta com o apoio do seu clã (Gn 38,13): “Comu-
nicaram a Tamar que seu sogro estava indo tosquiar as ove-
lhas do rebanho”. Se o sogro não cumpriu a lei do cunhado,
ela vai à luta para exigir o cumprimento da lei. Apesar dos
riscos que corria, veste-se como prostituta sagrada e fica à
espera do sogro. Ele, como a maioria dos homens, é atraído
pela jovem prostituta e cai na cilada. Tamar tem uma atitude

2 Este texto foi produzido por Nilva (em memória) e Ivoneide, de Porto
Velho, RR.

20
sábia ao ficar com os pertences do sogro. Como todas as notí-
cias correm longe e rápidas, Judá, ao saber da gravidez de
Tamar, ordena que seja queimada. Tamar, então, mostra os
pertences do sogro.
Judá reconhece que sua nora foi mais justa do que ele ao
fazer cumprir a lei do cunhado. Embora estrangeira, Tamar
foi incorporada ao clã de Israel e, através de seu filho Farés,
tornou-se antepassada do rei Davi (Rt 4,12.18-22) e de Jesus
(Mt 1,3; Lc 3,33), o qual também carrega o sangue de muitos
povos.

21
A esposa de Putifar

“Se” não fosse a ação desta mulher, “então” José


não teria sido preso e não teria se aproximado do
poderoso Faraó e, mais tarde, se tornado
ministro de Estado
(Gn 39,1-20).
Reflexões

José foi vendido pelos seus irmãos para Putifar, um


egípcio, eunuco do Faraó e comandante dos guardas. José foi
morar na casa de Putifar, era o escravo de confiança dele. A
esposa de Putifar se apaixonou por José e iniciou seus ata-
ques de assédio. José se livrou de vários, mas em uma inves-
tida, ela ficou com o manto dele em suas mãos. Foi o início
da sorte de José. Você lembra daquele ditado que diz: “Tem
mal que vem para o bem”? Foi o que aconteceu com José.
Para vingar-se de José, ela entrega o manto ao marido Puti-
far, acusando o escravo José. Ele não teve saída e foi parar na
prisão do palácio do Faraó. Ora, José tinha o dom de inter-
pretar sonhos e foi interpretando um sonho do Faraó que ele
se livrou da prisão e se tornou um ministro de Estado. Mais
tarde, trouxe seu pai Jacó (Israel) e seus irmãos para o Egito,
onde passaram a residir. O pai e os 12 filhos morreram no
Egito.
Hoje, nem todos os assédios terminam bem, como no
caso da esposa de Putifar. Sabemos que, em nossa cultura
fortemente patriarcal, as maiores vítimas de assédio são as
mulheres. Graças a Deus, há uma lei que o considera crime.
O ideal é que os homens vivessem novas masculinidades
sem obrigação da lei. Infelizmente, porém, muitos aprendem
somente com o rigor das leis.

23
Várias mulheres no Êxodo

“Se” não houvesse as reações de algumas mulheres


em defesa da vida de Moisés, “então” o libertador dos
hebreus não teria sobrevivido ao poder do Faraó
(Ex 1,15-22; 2,1-10).
Reflexões

Por meio de um decreto, o Faraó ordenou em relação


ao povo hebreu, isto é, ao povo excluído: “Jogai no rio todo
menino que nascer, mas deixai viver as meninas”. Ele convo-
cou também as parteiras hebreias, Sefra e Fua, e ordenou a
mesma coisa. Corajosamente, elas decidem pela defesa da
vida e não da morte. Com uma mentira, as parteiras enga-
naram o Faraó, dizendo: “As mulheres dos hebreus não são
iguais às egípcias. As mulheres hebreias são cheias de vida.
Antes que as parteiras cheguem, já deram à luz”. Assim, Sefra
e Fua tornaram-se instrumentos que Deus escolheu para
constituir o povo de Israel a partir de hebreus e hebreias no
Egito.
Foi neste contexto de morte que nasceu Moisés. Seus
pais conseguiram escondê-lo por três meses. Depois, sua mãe
o colocou no rio num cesto de papiro, e sua irmãzinha Miriam
(cf. Ex 15,20) ficou vigiando, até a filha do Faraó encontrá-lo.
Através da irmãzinha de Moisés e da princesa, a mãe Joca-
bed (cf. Ex 6,20) recebeu a criança e a criou. E ainda recebeu
um pagamento para amamentar seu próprio filho. Quando o
menino cresceu, ela o entregou à filha do Faraó, que o adotou
e lhe pôs o nome de Moisés, dizendo: “Eu o tirei das águas”.
Assim, com a sabedoria e a coragem de Sefra e Fua, de
Jocabed, de Miriam e da princesa do Faraó na defesa da vida,

25
foi que Moisés conseguiu sobreviver às maldades do Faraó.
Mais tarde, também Séfora, a esposa de Moisés, salvá-lo-á
da morte (cf. Ex 4,24-26). Todas essas mulheres deram uma
grande contribuição para a missão que Moisés viria a desem-
penhar, isto é, libertar o povo hebreu do antro da escravi-
dão, sob a condução de Deus. O exemplo dessas mulheres nos
move a sempre defendermos a vida, em qualquer situação,
mesmo que seja necessário mentir.

26
Raab

“Se” não tivesse ocorrido a atitude de Raab, de ficar do


lado do povo hebreu, “então” ela não estaria no meio
do povo de Israel, nem na genealogia de Jesus
(Js 2,1-21; 6,22-25; Mt 1,5).
Reflexões

Vamos analisar a situação de mais uma mulher intitu-


lada estrangeira. No capítulo 2 do livro de Josué, ela é cha-
mada de prostituta. Ela foi uma mulher inteligente. Notou
que seu povo iria ser derrotado por Josué, então fez um
pacto com os espiões hebreus. Ela está na casa dela, não na
de seu pai ou marido (v. 1). Ela tem nome, é Raab, enquanto
os espiões são anônimos. Raab os ocultou dos emissários
do rei de Jericó que vieram procurá-los. Ela os ajudaria na
fuga e manteria silêncio a respeito, e eles a protegeriam,
juntamente com o seu clã (cf. Js 2,1-21). Raab aconselhou os
homens hebreus (vv. 15-16), os quais obedeceram à mulher
prostituta (v. 22).
Será que o pacto deu certo? Vamos conferir o texto:
“Josué disse aos dois homens que haviam espionado a terra.
Entrai na casa da meretriz e fazei essa mulher sair de lá
com tudo que lhe pertence e seu clã, conforme lhe jurastes”.
Israel queimou a cidade e tudo o que nela havia. Josué os sal-
vou com vida, e o clã da meretriz habitou no meio de Israel
(cf. Js 6,22-25). Esta mulher marcou a história deste
povo, ao ponto de Mateus incluí-la na genealogia de Jesus
(cf. Mt 1,5).
Nunca devemos perder a oportunidade de fazer pactos
justos para defendermos a vida de nossas famílias, do povo.

28
E qual é a situação das “mulheres da vida” hoje? Por que se
prostituem? Como nossa sociedade as considera? Há hipocri-
sia e preconceitos nas condenações feitas a elas? Como Jesus
considerava as prostitutas (cf. Mt 21,28-32)?

29
Débora

“Se” não houvesse a ruptura na tradição dos clãs


das tribos israelitas, Débora, por ser mulher,
“então” ela não seria juíza em Israel
(Jz 4–5).
Reflexões

Primeiro, vamos analisar o contexto do tribalismo, das


tradições patriarcais. Naquela situação de moral machista,
quem diria, surgiu uma mulher, Débora, uma profetisa, que
foi juíza em Israel. Quando as tribos de Israel estavam amea-
çadas por Jabin, rei de Canaã, e Sísara, chefe do seu exército,
que se preparavam para atacar as tribos israelitas, Débora
convoca Barac para liderar o exército de Israel. Barac diz que
só aceitaria comandar as tropas se ela estivesse ao lado dele
na guerra.
Será que ela vai aceitar esta proposta, sendo mulher?
Vamos recorrer ao texto para conferir a resposta de Débora:
“Irei, pois, contigo, disse ela. Então, Débora se levantou e, com
Barac, foram para Cedes. Barac convocou dez mil homens e
Débora foi com ele” (Jz 4,9). Imaginemos, naquela época,
uma mulher na frente de batalha, com seu general e mais dez
mil homens! Além do protagonismo de Débora, há ainda uma
segunda mulher a exercer um papel decisivo nesse relato. É
Jael, aquela mulher que, com coragem e habilidade, derrota
definitivamente o seu opressor (4,17-22).
No capítulo 5, Débora e Barac dedicaram um cântico
aos guerreiros, ao povo, e a Iahweh. É a mesma façanha de
Débora e Jael do capítulo 4, agora cantada em poesia.

31
Hoje, nós temos mulheres na Marinha, no Exército e na
Aeronáutica. E mulheres como ministras de Estado! Todas
preparadas para a guerra. No entanto, não é de guerras nem
de ódio que a humanidade precisa. Precisa de paz, de traba-
lho, de justiça, de perdão, de democracia.

32
Rute e Noemi

“Se” não fossem as ações destas duas guerreiras


e a ruptura das tradições, “então” Rute não teria
acompanhado a sogra, não teria se tornado bisavó de
Davi e não estaria na genealogia de Jesus
(cf. Mt 1,5).
Reflexões

O livro de Ruth foi escrito mais ou menos em 400 a.C. Os


estudiosos dizem ser um livro de resistência, uma novela ou
um conto. Mais tarde, no cânon, foi colocado depois de Juízes,
como uma crítica às tradições e aos preceitos teocráticos do
Judaísmo que, elaborados por Esdras, defendem a raça pura e
alimentando preconceitos contra outras culturas. As autoras do
livro de Rute estão recuperando o tribalismo, relembrando que,
neste contexto, não havia problemas referentes aos casamentos
com estrangeiras. Estes preconceitos são da época pós-exílica
e vão chegar até Jesus, quando ele chama uma estrangeira de
“cachorrinha” (cf. Mc 7,27). Mas Jesus, desafiado pela fé de uma
estrangeira, dá um passo à frente, superando a lei de pureza
étnica, e recupera a saúde da filha da mulher siro-fenícia.
Por mais que o livro de Rute retrate pontos históri-
cos, como o desrespeito aos direitos dos pobres e a exclu-
são de estrangeiros, ele é uma narrativa em estilo novelístico.
Vamos ver dois textos: “As vizinhas deram-lhe um nome: Nas-
ceu um filho a Noemi e o chamaram de Obed”. Obed, que sig-
nifica servo, foi o pai de Jessé, e Jessé o pai de Davi (Rt 4,17;
cf. Mt 1,5.). A luta das duas mulheres, Rute e Noemi, pelos direi-
tos dos pobres e pela superação de preconceitos contra pessoas
estrangeiras, certamente é fonte de motivação para seguirmos
seus exemplos hoje.

34
ANA

“Se” não houvesse resistência e


ruptura com as leis e tradições
humilhantes por parte de Ana,
“então” o grande juiz e profeta
Samuel não teria nascido
(1Sm 1).
Reflexões
Ana era uma mulher estéril, que vivia no final da época
do tribalismo. Para a sobrevivência e a defesa de seu clã, era
muito importante que a mulher procriasse e gerasse filhos
para o esposo. Essa é, numa sociedade patriarcal, a função
primeira da mulher. E era isso o que Ana não podia fazer, por-
que era estéril. Seu esposo, chamado Elcana, a amava, porém,
tinha outra mulher, chamada Fenena, que havia lhe dado
vários filhos. Embora o esposo gostasse mais de Ana, Fenena
e seus filhos receberiam maiores porções dos bens de Elcana.
Isso revela como o valor da mulher era medido pelo número
de filhos. Enquanto isso, Ana era estéril, tal como Sara
(Gn 11,30), Rebeca (Gn 25,21), Raquel (Gn 29,31) e a mãe de
Sansão (Jz 13,2-3). E sabemos que a esterilidade era a con-
dição de maior humilhação para a mulher naquela cultura.
Tal discriminação, por conta de sua esterilidade, deixava Ana
muito humilhada diante de sua rival. Ana chorava, mas não
reclamava. Somente pedia um filho a Deus. Tal fato pode ser-
vir como uma lição para muitos de nós que, por muito menos,
nos lamentamos e blasfemamos contra Deus.
Para completar sua humilhação, quando Ana se encon-
trava no templo e em completa amargura de sua alma, chega
o sacerdote Eli, que a acusa de estar embriagada: “Até quando
estarás embriagada? Livra-te do teu vinho” (v. 14). Diante de
tal acusação, Ana quase chega ao “fundo do poço”, mas, com

36
muita fé e esperança, coloca-se na presença de Iahweh, que
restituiu a dignidade desta mulher.
Vamos ao Texto: “Elcana se uniu à sua mulher Ana, e
Iahweh se lembrou dela. Ana concebeu e, no devido tempo,
deu à luz um filho a quem chamou de Samuel” (vv. 19-20).
Nós precisamos sempre entender os sinais e o tempo de
Deus. Na maioria das vezes, nós fazemos o nosso tempo e
reclamamos da demora de Deus. E foi no devido tempo de
Iahweh que chegou o nosso Samuel, e Ana cumpre sua pro-
messa e consagra o filho a Iahweh. E foi assim, com muita fé
e esperança, que Ana deu ao povo de Israel o último juiz do
tribalismo (7,15-16), e o primeiro profeta a resistir contra a
instituição do reinado (3,20; 8,1ss).
Neste universo de mulheres discriminadas e humi-
lhadas, encontramos muitas histórias de lutas e vitórias,
que só acontecem por causa de sua fé e esperança em Iah-
weh, o Deus que escuta o clamor de seu povo e o liberta
(cf. Ex 3,7-10). Que luzes a perseverança de Ana nos ajudam
hoje a gerar vidas proféticas?

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Micol

“Se” não houvesse a ação corajosa e inteligente


de Micol em defesa da vida e do amor por Davi,
enfrentando seu próprio pai, o rei Saul, “então”
Davi seria um homem morto pelos ciúmes do seu
sogro, e a dinastia davídica não teria acontecido
na história de Israel
(1Sm 19,8-17).
Reflexões

Este texto é um dos menores nesta pesquisa, mas não


deixa de ser importante, porque trata de duas personagens
lutando pela vida e pelo amor, e combatendo o mal, encar-
nado no rei Saul.
Vamos falar da personagem mais importante da trama:
Micol. Ela amava Davi (1Sm 18,20) e foi a sua primeira esposa.
Era filha do rei Saul. Desde jovem, via seu pai perseguindo
Davi. O texto diz que ela soube que seu pai iria mandar matar
Davi numa determinada noite. Ela preferiu defender a vida
de seu amado a ficar contra seu pai. Micol fez Davi descer
pela janela, e ele escapou. Na cama do casal, ela coloca um
terafim, que é uma imagem de divindade com forma humana,
grande ou pequena. Nesse caso era grande, a ponto de enga-
nar os mensageiros do rei. Para defender a vida de seu amor,
mesmo correndo risco de vida, Micol vai mentir duas vezes!
Aos mensageiros do rei disse: “Ele está doente” (v. 14). E para
seu pai: “Foi ele quem me disse: deixa-me partir ou te mato”
(v. 17). Aqui, é importante lembrar que, de um lado, Micol
está situada na cultura patriarcal enquanto pertencente e
fiel a Davi, de quem era mulher. De outro lado, precisamos
valorizar o papel de Micol enquanto salvadora da vida de
Davi diante da perseguição de Saul. Desse modo, ela está ao

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lado de outros homens que também salvaram Davi: Jônatas
(1Sm 19,2-7) e Samuel (1Sm 19,18-24).
A segunda personagem é Davi, homem justo, um tanto
mulherengo, mas que amava sua mulher, Micol. Por que
justo? Porque ele teve duas oportunidades para matar o rei
Saul enquanto ele dormia. Seu companheiro na fuga pegou a
espada e disse a Davi: “Agora, podes te vingar!” Davi lhe res-
pondeu: “Não posso matar o ungido de Iahweh”.
Já o rei Saul, perseguidor de Davi por ciúme do rei-
nado, é homem doente (provavelmente da mente), violento e
cruel. Passou a maior parte do seu reinado perseguindo Davi
e morreu do jeito que viveu: numa guerra violenta, pedindo
que o matassem.
Ontem e hoje, todos que defendem a vida são chamados
de justos. Em Mt 1,19, é dito que José é justo. É justo porque
defendeu a vida de Maria e a de seu filho ainda no útero de
sua mãe. Naquela cultura patriarcal, José podia tanto apedre-
já-la, como também podia mandar apedrejá-la, mas ele foi
justo, pois agiu em defesa da vida, foi além da letra da lei.
Quantas Micol e Davi já passaram pela humanidade em
defesa da vida! Nós, pessoas cristãs, temos o maior exemplo,
que foi o nosso próprio Jesus. De tanto defender a vida de
quem se encontrava na exclusão, seja por causa da opressão
dos romanos seja por causa da discriminação religiosa, Jesus

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foi perseguido e eliminado. Sua execução foi por uma causa
justa e, por isso, sua morte tem sentido. E nós, hoje, seríamos
capazes de mentir para salvar uma vida, de doar a nossa vida
por causas justas?

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Betsabeia

“Se” não fosse a articulação de Betsabeia, “então” o


sucessor de Davi seria Adonias, o filho mais velho de
Davi ainda vivo. Mas foi com suas ações e tramas que
Salomão, o filho dela, se tornou rei
(1Rs 1,28-40).
Reflexões

Essa narrativa mostra certa autoridade que Betsabeia


exerce junto com o profeta Natã sobre o rei Davi. Afinal, ela
era a rainha. Porém, o seu poder não estava no fato de seu
protagonismo enquanto mulher autônoma, mas derivava
de uma função permitida pelo patriarcado às mulheres, ou
seja, a influência de algum homem ligado a ela, no caso, seu
filho Salomão e seu marido, o rei Davi. Antes de irmos ao
nosso texto, convém lembrar que Betsabeia se tornou esposa
de Davi depois de este obrigá-la a transar com o rei, engra-
vidá-la e mandar matar Urias, o amado dela (cf. 2Sm 11).
Não é por acaso que o profeta Natã fez duras críticas ao rei
assassino (cf. 2Sm 12).
Agora, vamos às tramas no palácio de Jerusalém.
Quando Davi estava com idade avançada, seu filho mais velho
ainda vivo, Adonias, começa anunciar a todos: “Sou eu que
vou reinar” (1Rs 1,5). Ora, pela tradição de Israel, o filho mais
velho ainda vivo tinha este direito. O erro de Adonias foi não
esperar seu pai morrer. Promoveu um grande banquete, con-
vidou seus irmãos (menos Salomão), os oficiais e o sacerdote
Abiatar. Mandou imolar bois, bezerros e ovelhas. E, enquanto
estavam comendo e bebendo em sua presença, eles clama-
vam: “viva o rei Adonias!” (v. 25).

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Ora, o profeta Natã soube da notícia e convoca Betsa-
beia, a mãe de Salomão, e relata o que está acontecendo por
trás das cortinas do Palácio. Natã sabia que, num certo dia,
Davi, apaixonado por Betsabeia, teria prometido o trono para
Salomão (nas Escrituras, não há referência a essa suposta
promessa). Então, Natã disse a Betsabeia: queres salvar a tua
vida e a do teu filho? Procure o rei e peça que ele cumpra
a promessa que fez a você (vv. 12-13). E assim ela fez. Mas
o rei, já muito velho, ficou pensativo porque sabia que, por
direito, o trono era de Adonias.
Natã entra no aposento do rei e relata as atitudes de
Adonias, enquanto o pai ainda estava vivo. O rei Davi manda
chamar Betsabeia e diz: “Pela vida de Iahweh, como te jurei
que teu filho Salomão haveria de reinar depois de mim, assim
o farei hoje mesmo”. Disse Betsabeia: “Viva para sempre o
rei Davi, meu senhor” (vv. 28-31). O rei, depois de convo-
car o sacerdote Sadoc, o profeta Natã e Salomão, manda que
seu filho monte na sua mula e siga para Gion, o local onde
o sacerdote e o profeta irão ungir o rei de Israel. Depois da
cerimônia, todos gritavam: “Viva o rei Salomão” (vv. 32-34).
Se Davi tivesse respeitado o direito de Adonias à suces-
são, certamente a história da dinastia de Davi seria outra,
uma vez que Adonias representava os interesses mais ligados

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ao povo pobre do campo, enquanto Salomão representava os
interesses da elite citadina.
No 1º Testamento, nós vamos encontrar muitas histó-
rias de amor, e esta é uma delas. Quantas histórias iguais a
esta já aconteceram nas nossas vidas! Quantas articulações
foram feitas nos poderes do país para promover golpes con-
tra quem estava do lado do povo!

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A viúva de Sarepta

“Se” não fossem a reação e a fé desta viúva anônima,


“então” não teríamos o profetismo do povo e a crítica
aos profetas dos reis. A partir de Elias, o pobre passou
a ter voz através da justiça
(1Rs 17,7-24).
Reflexões

No contexto de Elias, os profetas da corte comiam


na mesa do rei e eram chamados “profetas do rei”. Pro-
fetizavam a pedido do rei, ou faziam oráculos para o rei
(cf. 1Rs 22,5-12). Elias profetizou no tempo de Acab, rei de
Israel (874–853 a.C.; cf. 1Rs 16,29-34). Acab ampliou o seu
poder político, desposando Jesabel, filha de Etbaal, rei dos
Sidônios. Com apoio do esposo, Jesabel introduziu no palácio
o Deus Baal (vv. 31-32) e a Deusa Aserá (v. 33). O rei passou
a adorá-los, erguendo altares para eles. As divindades foram
usadas para legitimar o poder da corte.
Quem manda no palácio agora é Jesabel. Ela introduziu
seus deuses na corte e levou os seus profetas para mesa do
rei (cf. 18,16-19). Contando com o apoio real, Jesabel perse-
guiu os profetas de Iahweh, uma vez que representavam a
fé numa divindade libertadora do povo oprimido. Foi neste
contexto que os profetas de Iahweh foram expulsos do palá-
cio (cf. 18,1-15).
Em Sarepta, segundo 1Rs 17, Elias teve o encontro com
outra realidade: fome e morte na casa de uma viúva sem
nome e sem cidadania, tal qual acontece nas comunidades
das periferias de muitas cidades do Brasil. Foi aí que Elias
descobriu sua vocação: conviveu um bom tempo com uma

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mulher estrangeira, sem nome, pobre e viúva, a quem conse-
guiu restituir a cidadania, recuperando suas condições finan-
ceiras e ressuscitando o seu filho.
O texto bíblico não determina o tempo, mas diz: “Pas-
sado muito tempo, a palavra de Iahweh foi dirigida a Elias”
(cf. 1Rs 18,1). A partir desta convocação de Iahweh, inicia-se
a nova vocação de Elias: ele agora é o profeta do povo, ini-
ciando, dessa forma, o “Profetismo”, que se propõe a defen-
der aqueles que não têm justiça e nem voz. Ele descobriu
que, na casa do pobre há fome e morte, porque nas casas das
elites há acúmulo e injustiça, violência e opressão.
Jesus vai seguir esta linha profética de Elias e, por causa
disso, quase antecipam a morte dele (cf. Lc 4,25-26). Quando
assumimos ser profetas e profetisas do povo, podemos estar
preparados para a cruz das perseguições e das calúnias, pois
os poderosos, nos seus palácios de hoje, não vão aceitar as
denúncias proféticas, nem um povo que tem esperança. No
entanto, seremos bem recebidos pelas viúvas e outros sem
teto e sem voz.
Hoje, mais de 2.800 anos desde Elias, quase nada
mudou. O que importa é não ser profetas para legitimar
governos fundamentados na mentira, uma vez que o Diabo
é mentiroso e o pai da mentira (cf. Jo 8,44). Profetas assim
comem no prato dos poderosos. Importa é estar do lado

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certo da história, na mesma luta de Elias, superando a fome
e a morte, animando a esperança. Este foi também o lado de
Jesus, o profeta da Galileia.

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Josaba

“Se” não fossem a ação e a coragem de Josaba


em defesa da vida e da dinastia de Davi, “então”
Joás, o único herdeiro, não teria sobrevivido às
crueldades de Atalia
(2Rs 11).
Reflexões

Nos relatos bíblicos, há várias narrativas escritas na


ótica da corte, da dinastia de Davi como sendo prometida
por Iahweh a ele (cf. 2Sm 7,12b.16 e Sl 89,4-5). O rei Jorão
(848–841 a.C.) reinou por 8 anos em Judá, no Sul, e se
casou com Atalia, filha ou irmã de Acab (cf. 2Rs 8,18.26),
rei de Israel, no Norte. Quando Atalia, rainha-mãe de Judá
(841–835 a.C.), soube que seu filho Ocozias havia sido morto em
841 a.C., ela toma posse do reino em Jerusalém. Lembramos
que a rainha Atalia não era filha de Judá, e sim de Israel, e,
durante 6 anos, reinou em Judá, “quebrando” a dinastia
davídica. No entanto, é importante termos presente que,
naquela cultura patriarcal, a mulher somente tinha acesso ao
trono quando estavam mortos todos os homens de quem ela
dependia e que estivessem em condições de serem o rei. Sua
primeira atitude enquanto rainha foi exterminar toda a des-
cendência do seu filho, Ocozias, inclusive seus netos.
Contudo, Josaba, irmã de Ocozias, raptou Joás, o filho
caçula do rei assassinado e o escondeu durante 6 anos no
Templo. Conforme 2Cr 22,11, seu esposo, Joiada, era sacer-
dote do Templo. Aqui, convém lembrar que Josaba arriscou
a sua vida para salvar a vida de seu sobrinho. Dessa forma,
salvou também a dinastia de Davi. E ela não estava sozinha

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na defesa da vida do menino, pois a própria Josaba também
escondeu a ama anônima no quarto para cuidar do menino
(1Sm 11,2). Assim, também esta ama sem nome contribuiu
para a continuidade da dinastia davídica.
Depois de 6 anos, volta a dinastia de Davi com o rei Joás
(835–796 a.C.). Atalia foi morta pela espada, no palácio real.
E, assim, a dinastia de Davi foi até o reinado de Sedecias, em
587 a.C., quando Nabucodonosor, rei de Babilônia, deportou
o último rei e sua corte para o exílio na Babilônia. Até hoje, os
judeus esperam a vinda de um Messias descendente de Davi
para restituir sua dinastia.
Resumindo, embora vivamos mais de 2.800 anos desde
o reinado de Atalia, o sistema político de opressão sobre o
povo segue do mesmo jeito. É que, tanto no passado como
hoje, as estruturas do Estado são capturadas pelas elites e
colocadas a serviço de seus interesses. Dá-se bem quem
“comer no prato” das suas ideologias. Jesus diria “do fermento
deles” (cf. Mc 8,15). E o povo é massa de manobra e de explo-
ração. O sistema, portanto, continua cruel. Mas o exemplo de
Josaba, que salvou a vida do menino, anima nossa esperança
de reconstruirmos, em nosso país, a democracia golpeada.

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Hulda

“Se” não fosse a ação firme e corajosa da


profetisa Hulda, “então” não teria acontecido a
reforma religiosa do rei Josias
(2Rs 22,11-20).
Reflexões

O majestoso Josias foi um dos reis mais elogiados pelos


autores dos livros que chamamos História Deuteronomista
(Js, Jz, 1-2Sm e 1-2Rs; cf. 2Rs 23,25). É que eles são favorá-
veis à restauração do Templo e à reforma promovida pelo rei
Josias e que visava impor em todo Israel o culto exclusivo a
Iahweh no Templo de Jerusalém, perseguindo a diversidade
de cultos populares no campo e nas aldeias do interior, acu-
sando-os de idolatria. Por trás dessa reforma, havia inte-
resses de centralização política e econômica na capital e de
expansão do estado de Judá. A centralização do culto em
Jerusalém servia como legitimação religiosa desse projeto
expansionista e excludente.
Quando o rei autorizou a reforma no Templo, o sumo
sacerdote Helcias acha o Livro da Lei, que, mais tarde na tra-
dução Grega da Bíblia Hebraica, vai receber o nome de Deute-
ronômio. É possível que o Livro da Lei encontrado no Templo
seja o núcleo do livro do Deuteronômio, isto é, capítulos 12 a
26. Ao ouvir as palavras contidas no Livro da Lei, o rei rasgou
as vestes. Esse é um gesto de angústia, arrependimento, tris-
teza ou perturbação, diante do não cumprimento dessa Lei
de Deus. Então, o poderoso Josias envia uma embaixada para
consultar Iahweh por meio de “uma mulher”, algo inusitado
naquela época fortemente patriarcal. O rei era o senhor da

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guerra, porém, não entendia a Lei de Iahweh. Por isso, pro-
curou quem a entendia e quem ouvia Iahweh. Ele encontrou
a pessoa certa, a profetisa Hulda. Ela fala com autoridade,
pois proclama a palavra de Iahweh, anunciando a ruína do
reino de Judá. Anuncia o fim da dinastia de Davi. No entanto,
típico da cultura patriarcal, ela é identificada por seu marido,
Selum (v. 14). Hulda é uma das mulheres a quem se aplica o
termo “profetisa”. As outras foram Miriam (Ex 15,20), Débora
(Jz 4,4), Noadias (Ne 6,14) e a companheira de Isaías (Is 8,3).
Então, Iahweh disse: “Mas porque teu coração se como-
veu e te humilhaste diante de mim ...” (v. 19). O rei Josias, a
partir da ação profética de Hulda, cumpriu as leis deuterono-
mistas contidas no livro encontrado. Então, o Livro da Lei foi
lido solenemente e, com autorização do rei, os sacerdotes ini-
ciaram a “Reforma Religiosa”. A centralização do culto unica-
mente no Templo de Jerusalém representou a destruição dos
santuários que ficavam no meio das comunidades, acusando
as suas práticas de idolatria (2Rs 23,4-15).

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Hoje, o exemplo de Hulda nos leva a perguntar:

1) Entre nós, ainda há quem use o livro da Boa-Nova de


Jesus para legitimar a violência, a morte, o ódio e a
mentira?
2) Em que sentido, a lei de Deus, isto é, o cuidado da
vida e o amor incondicional, nos ajuda a fazer as
reformas necessárias para que haja paz e justiça em
nosso país?
3) Ao afirmar “não podeis servir a Deus e ao dinheiro”
(Mt 6,24; Lc 16,13), Jesus nos indicou onde está a
idolatria. Como a idolatria se manifesta em nossa
sociedade? Como superá-la para que o projeto do
Reino de Deus e de sua justiça sejam realidade entre
nós?

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