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FLORA SÜSSEKIND

PALAVRAS
LOUCAS, ORELHAS
MOUCAS
Os relatos
de viagem
dos românticos
brasileiros
R
etomando a frase inicial de um en- dominante, de outro. Isto é: na literatura de
saio bastante conhecido de Ernst viagem produzida pelos escritores
Gombrich – “O tema deste artigo é oitocentistas nesse período de consolidação
um cavalo de pau dos mais co- da ficção romântica brasileira. Especialmen-
muns” (1) – é em torno de listas, ruínas, fron- te em algumas expedições imaginárias ou
teiras, mas sobretudo de alguns cavalos, tios humorísticas que, parecendo orientar-se se-
e percursos imaginários que se tratará aqui gundo a retórica característica ao gênero,
das formas e funções dos relatos de viagem servem, na verdade, de duplos críticos dos
dos românticos brasileiros e de sua contribui- relatos propriamente ditos. Como os Excertos
ção peculiar para a experiência narrativa das Memórias e Viagens do Coronel Bonifácio
oitocentista. Inclusive para o esboço de uma de Amarante, “publicados com notas e adi-
consciência crítica do gênero que praticam, no ções pelo Tenente Tibúrcio de Amarante”
momento mesmo em que a presença, na litera- (1848), de Araújo Porto-Alegre, a “Carta ao
tura brasileira, das viagens ilustradas e expedi- meu Amigo Dr. Cândido Borges Monteiro”
ções científicas desdobra-se numa coleção de (1833) e o Episódio da Infernal Comédia ou
tipos, topoi paisagísticos, conexões geográfi- da Minha Viagem ao Inferno (1836), de Gon-
cas, e, em especial, na fixação de um ponto de çalves de Magalhães, A Carteira de Meu Tio
mira (calcado no do viajante naturalista) para (1855) e Memórias do Sobrinho de Meu Tio
um narrador de ficção em formação. (1867-68), de Joaquim Manuel de Macedo.
Fixação por via a rigor paradoxal, é uma
espécie de avesso retórico seu – a capacidade EFEITO DE LISTA
descritiva – que serve de suporte a esse
narrador. Não é de estranhar, nesse sentido, Mas se, nesses contra-relatos, há uma
que, em A Confederação dos Tamoios (1856), ampliação do discurso narratorial, não foi essa
FLORA SÜSSEKIND se interrompa, subitamente, no quarto canto, a norma geral nos exercícios românticos no
é pesquisadora do
Instituto Casa de Rui não somente a descrição de floresta espessa, gênero. Nada mais breve, objetivo, por exem-
Barbosa, do Rio de grandiosa, mas todo o fio narrativo do poe- plo, do que o Diário da Viagem ao Rio Negro,
Janeiro, e autora,
entre outros livros, de
ma, para o narrador ceder lugar a uma voz de Gonçalves Dias.
Cinematógrafo das autoral que, meio de fora, dirige-se aos “ar- Trata-se do registro de uma das expedi-
Letras (Companhia tistas da Europa encanecida” e, em seguida, a ções pela Amazônia de que o poeta partici-
das Letras).
Araújo Porto-Alegre, reclamando “maravi- pou em 1861, enquanto os demais membros
lhas d’arte” inspiradas “neste Paraíso” (2). da Comissão Científica de Exploração das
1 E. H. Gombrich, “Méditations Exigência de quadros naturais locais que Províncias do Norte, na qual chefiava a seção
sur un Cheval de Bois ou
les Origines de la Forme levaria o próprio Porto-Alegre, num dos de etnografia, voltavam para a Corte. Gon-
Artistique”, in Méditations
sur un Cheval de Bois et muitos desvios e interrupções de que se com- çalves Dias viajaria, então, pelos rios Ama-
Autres Essais sur la Théorie
de L’art, Éditions W, Mâcon,
põe o seu prólogo ao Episódio da Infernal zonas, Madeira e Negro. E faria o diário de-
p. 15. Comédia (1836), de Gonçalves de Magalhães, talhado dessa última excursão, de 55 dias,
2 D. J. Gonçalves de Maga- a deter-se num demorado panorama aéreo do pelo Rio Negro, iniciada em 15 de agosto e
lhães, A Confederação dos
Tamoios, 2a edição, Rio de Rio de Janeiro, a partir do topo do Pão de concluída em 5 de outubro.
Janeiro, Livraria de B. L.
Garnier, 1864, pp. 110-1. Açúcar, passando das colinas do Castelo, de “Nesse diário quase nada transparece de
3 Lúcia Miguel-Pereira, A Vi- Santo Antônio, São Bento, Conceição, São íntimo”, comenta Lúcia Miguel Pereira, res-
da de Gonçalves Dias, Rio
de Janeiro, José Olympio,
Diogo, das torres do Carmo, da Candelária, ponsável pela sua divulgação em 1943. Nele
1943, pp. 295-6. do campo de Santana, do cais do Passeio “o explorador como que se substitui ao ho-
4 Antônio Gonçalves Dias, Público, dos chafarizes do Largo do Rocio e mem” (3). Coletam-se, com cuidado, mas sem
“Diário da Viagem ao Rio
Negro”, inLúcia Miguel-Pe- de Santa Rita, ao Saco do Alferes, ao Largo maiores interpolações, horários exatos, dis-
reira, A Vida de Gonçalves
Dias, op. cit., p. 410. do Paço e à Ilha das Cobras, para só depois tâncias, itinerários, povoados, vistas, varia-
5 Idem, ibidem, pp. 410-1. dessa minuciosa descrição narrar-se a primei- ções atmosféricas, expressões indígenas.
6 Idem, ibidem, pp. 414-5.
ra aparição demoníaca do livro. Como se tais indicações se sucedessem dire-
7 Philippe Hamon, Introduc-
Razão de ser descritiva para o narrativo, tamente, passassem pelo texto, obedientes
tion à l’Analyse du de um lado; hipertrofia da voz do narrador apenas a uma ordem cronológico-geográfica
Descriptif, Paris, Hachette,
1981, p. 7. exatamente onde o descritivo deveria ser o estrita. E, por vezes, não fosse a primeira

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“Utensílios Indígenas”, litografia do Reise in Brasilien..., de Spix e Martius (Munique, 1823-31), Biblioteca Nacional,RJ

pessoa do plural em que são feitos os regis-


tros do percurso, a impressão dominante se-
ria mesmo a de uma quase ausência do
narrador.
No diário de Gonçalves Dias, o que mais se
vê, na verdade, são indicações de dia, hora e
minuto, seguidas de mínima informação (par-
timos, largamos, paramos, chegamos) e de um
nome de lugar (Sítio do Simeão, Povoação da
Velha do Carmo, Igarapé do Cosme, Ponta do
Castanhal, Barcelos, Santa Isabel, e assim por
diante) do itinerário. Convertendo-se muitas
das notas em simples catalogação. Como a das
“4,30'“ do dia 22 de setembro de 1861: “Par-
timos. 1 paneiro de farinha, ovos, carne de
porco” (4). Como a das “10,10'“ do dia 24 do
mesmo mês: “Igarapé do Taburunia/ Turire
pecuma/ Iurupari roca/ Macarabi/ Cauaburi/
Paranaí/ Manacopuru/ Castanheira/ Abadá/ tronco e raízes (uma murta que só tem flor, C. J. Martin,
Sítio do Cometá” (5). Ou como a sucessão de sem frutos)”; “Curando do peito – Capim de “Vista da Baía
receitas medicinais registrada no dia 27: “Para colônia em infusão com uma folha de Paga de Guanabara
febres: Folhas de tamarindo cozidas; toma-se morioba, açúcar e um ovo batido sobre o qual
Tomada da Praia
a infusão quando a febre vai passando. Depois se deita o chá fervendo” (6).
do Russel”, óleo
[palavra ilegível] ponche e abafa-se para suar”; Se, como observa Philippe Hamon na sua
“Quando há inflamação do baço, aplica-se Introduction à l’Analyse du Descriptif, a lista sobre tela (1850),
sobre a parte emplastro de sucuba (leite) pol- é “a forma simples a que tende muitas vezes coleção Sergio
vilhado com excremento de Jacaré (almíscar)”; o enunciado descritivo” (7), é exatamente a Fadel, Rio
“Para desarranjo de barriga de mulher – murta esse extremo de objetivação que tende o rela- de Janeiro
do campo em banhos, cozimento de folhas, to de Gonçalves Dias. Inclusive nas

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brevíssimas descrições de lugares. Como a de lembrança deste mágico panorama” (11).
que se encontra nas notas referentes ao dia 19 Ónfase explicável quando se pensa no papel
de agosto: “4 h. da manhã – Chegamos a fundamental da natureza na sua obra poética,
Tomar – Partimos de Tomar às 8 h. 35' da inesperada, porém, diante do tom expositivo,
manhã. A Igreja sem janelas e sem fechadura metódico, adotado no diário.
– os santos e alguns pobres paramentos fe- Mas Gonçalves Dias se resguardaria aí de
chados na sacristia. O professor não tem alu- maiores subjetivações da vista ou do relato.
nos. É tudo miséria e destruição. O Diretor Não é à toa que foge, por exemplo, a um tema
dos índios de Mariná está no Pará – não dei- tão caro aos românticos como o das ruínas.
xou quem fizesse as suas vezes” (8). Contri- Freqüente inclusive na sua poesia. Basta lem-
buindo a série de travessões para acentuar o brar a comparação da saudade à “romântica
“efeito de lista”, a “não-relação” propositada donzela/ De roupas alvejantes/ Nas ruínas de
entre as anotações, e o restrito interesse do castelo levantado”, em “A Saudade”, ou a
poeta, nesse relato, pela criação de entrechos descrição do afeto como “estátua erguida entre
ou de uma unificação narrativa mais vasta. ruínas”, em “Urge o Tempo”. Ao contrário,
Há, porém, algumas pequenas histórias, no relato da viagem pelo Rio Negro, descar-
como a dos desentendimentos entre o coman- taria claramente, em nota do dia 25 de agosto,
dante do Forte de São Gabriel e o vigário e a tentação de enobrecer, por meio de um
diretor de índios local, como a da tormenta paisagismo meditativo, por meio da imagem
perto do sítio de Auanauacá, como a do das ruínas, o abandono local:
Jurupari, cuja visão por uma mulher acarreta-
ria sua morte imediata para evitar mau agou- “2,40' – Chegamos a Parauari – reunião
ro. E não faltam também alguns comentários de umas 6 palhoças, ou mais, e igreja aban-
de cunho nitidamente pessoal. Exemplos: logo donada. Goiabeiras por entre as matas. La-
no começo do relato, a crítica (em francês, no ranjeiras e limeiras cobertas de parasitas,
diário, acautelando-se contra a curiosidade mas ainda carregadas de frutos excelen-
alheia) ao comportamento do médico tes. Mamoeiros cujos frutos apodrecem
Canavarro, companheiro de expedição, que no chão. Ruínas de grandes cidades ou
se julgava merecedor de um barco exclusivo; edifícios ainda são monumentos, ruínas
o tom condenatório com que se refere aos de palhoças, taperas, onde em dois dias
“sargentos dos trabalhadores”, em Abadá, a tudo desaparece debaixo da grama [pala-
seu ver “senhores de faca e cutelo”, “que se vra ilegível] casas que caem antes que as
aproveitam dos serviços dos índios a troco de portas de esteira tenham tempo de apo-
darem alguns quando é preciso para serviço drecer, que se feche o estreito caminho do
público” (9); o carinho, pelo contrário, com roçado, são as verdadeiras ruínas. Abios
que elogia demoradamente, numa anotação no mato. Nem tivemos ânimo para jantar.
de Ponta do Remo, a gente pobre brasileira: Largamos daqui às 4,5' da tarde” (12).
8 Antônio Gonçalves Dias,
“Diário da Viagem ao Rio “Farinha à discrição, e haverá gente para tudo!
Negro”, op. cit., p. 386.
Peixe seco já é uma fortuna – carne, isso vem Trecho que parece dialogar criticamente,
9 Idem, ibidem, p. 388.
do céu. É o máximo que pedem. E esse máxi- por exemplo, com a agradável surpresa rela-
10 Idem, ibidem, p. 399.
mo não é ainda a mínima parte de qualquer tada por Nicolau Dreys, na sua Notícia Des-
11 Idem, ibidem, p. 413. miserável que nos vem da Europa” (10). critiva da Província do Rio Grande de S.
12 Idem, ibidem, p. 389. Sobre Ou, ainda, a exaltação, na ilha de Pedro do Sul, ao se defrontar com fragmen-
as “ruínas do novo”, lem-
bre-se, com relação a um Jucuruaru, em 26 de setembro, diante de um tos de vasilhas, peças de moeda de cobre,
período posterior da histó-
ria do país, a tese de pôr-do-sol como “poucas vezes me tem Deus “restos empoeirados” (13) de uma vila aban-
doutoramento – Trem Fan-
tasma – apresentada por concedido presenciar”. O que o leva, dessa donada, “ruínas”, sinais de historicidade
Francisco Foot Hardman à
USP em 1986.
vez, a alongar-se na descrição e a uma suces- onde julgava encontrar só natureza, em ter-
13 Nicolau Dreys, Notícia Des-
são de exclamações: “Quem resiste a uma ritório, a seu ver, recém-surgido “do nada”,
critiva da Província do Rio cena destas? Suicídio! Mas que importa! como o brasileiro. Daí, de um lado, a expli-
Grande de S. Pedro do Sul,
Porto Alegre, Ed. da Biblio- Quero tomar banho neste lugar. Ao menos no cação natural para a presença de tais restos
teca Rio-Grandense, 1927,
pp. 110-1. meu livro de notas quero deixar uma página (“areias invasoras”), de outro, uma quase

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J. Needham e
William Ouseley,
“Ruína de Capela
em São Gonçalo
(Bahia)”, litografia
colorida do livro de
Ouseley Views in
South America...
(Londres, 1852),
Biblioteca
do IEB-USP

estetização (“Cousa admirável!”) imediata. nheiros públicos. O aspecto de ruínas é


Porque, se esses restos ganham interesse sempre melancólico; estas mais do que
aos olhos de Dreys, é pela aparente seme- outras quaisquer, pois com presteza po-
lhança com ruínas de outro gênero, por uma voaram-se de fantasmas criados nas nar-
súbita monumentalização do cenário natural. rativas dos tropeiros, que fogem de tal
Para Gonçalves Dias, ao contrário, essas ru- pouso, não só por causas extraordinárias
ínas do que sequer tem tempo de envelhecer como pelas cobras venenosas que já têm
é que seriam as verdadeiras. E longe de se matado aí a mais de um imprudente” (14).
tornarem objeto de admiração, funcionam, no
seu diário, como registro de “miséria e des- Há uma perceptível ambigüidade de tom
truição”. no trecho de Taunay. Se, de um lado, subli-
nham-se a melancolia e os fantasmas, de ou-
NÃO HÁ OLHOS QUE CHEGUEM tro, desqualifica-se o antigo proprietário e
soma-se um medo bem concreto, de cobras
Outro texto que parece se opor, indireta- venenosas, à sensação de desalento provocada
mente, nesse sentido, ao de Gonçalves Dias, é pelo abandono da fazenda. Prosaização
a Viagem de Regresso de Mato Grosso à Corte sugerida, mas deixada de lado, em seguida,
(1867), do Visconde de Taunay. Aí, no relato diante da acumulação de motivos a mais de
referente ao dia 2 de julho, trata-se, também, melancolia: a deterioração de uma pitoresca
de ruínas, as de “uma tapera importante, cons- capelinha, “por haver morrido quem a cons-
tando de casas arruinadas e de um lindíssimo truíra com grande custo e perseverança” (15),
laranjal”, cuja história se sabe, mas cujo efeito, o aspecto desgostoso, desgrenhado, da viúva
na narrativa, diverso da admiração de Dreys e do dono da Fazenda do Váo, a visão do cre-
do desânimo de Gonçalves Dias, é de imediata púsculo perto do Pouso das Perdizes, a des-
sentimentalização da vista: coberta da sepultura de um oficial das forças
de Mato Grosso, “acometido de paralisia”. E
“Essa fazenda pertencera a um coletor e seria junto a ela que os viajantes acabariam 14 Alfredo d’Escragnolle Tau-
tinha sido abandonada por ocasião da pri- nay, “Viagem de Regresso
por passar a noite. Transformando-se, assim, de Mato Grosso à Corte”,
são do seu proprietário, o qual fora levado as observações finais referentes ao dia 3 de in Viagens de Outrora, São
Paulo, Melhoramentos,
de Santana a Cuiabá em ferros por crime julho em variações em torno do tema da tran- 1921, p. 54.

provado de prevaricação e desvio de di- sitoriedade da vida: “Ao lado do morto des- 15 Idem, ibidem.

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cansaram os vivos; companheiros de uma tipos”, “quadros da natureza”, itinerários,
noite, fruímos transitório o sono que ele tem objetos e bichos, e mantendo uma certa dis-
eterno” (16). tância expositiva (daí o emprego freqüente
Há, na verdade, melancolia quase tópica de uma terceira pessoa hipotética nas descri-
nos quadros da natureza de Taunay. Com fre- ções: “o viajante”), de outro lado, empreende
qüência associada a descrições do crepúscu- alguns exercícios de aproximação, entreme-
lo. Como na primeira seção de Inocência, ando episódios curiosos aos relatos. Como a
quando “parece que a solidão alarga os seus queda de um dos visitantes da “Gruta de
limites” a essa hora do dia e “se aperta de Tapiruçu” num sumidouro de cerca de quatro
inexplicável receio o coração” (17) ou no metros; como a história do viajante que ficou
comentário sobre “A Tarde”, incluído em tempo demais numa banheira com águas ter-
Céus e Terras do Brasil, em que a ela se as- mais em “As Caldas da Imperatriz” e, depois,
sociam “uma ansiedade que tem o seu quê de nem conseguiu se mover sozinho; como as
voluptuoso, um esmorecimento de forças, um histórias de sucuris, de “O Rio Aquidauana”,
quebrantamento desanimado de quem busca e o relato de como Floriano Alves dos Santos,
prolongar um gozo e não pode” (18). companheiro de viagem de Taunay, conse-
Melancolia inerente ao entardecer, mas, guira, certa vez, escapar de uma delas.
de certo modo, ao próprio exercício descriti- Voltando, porém, ao modo como se fixa
vo em geral. Como chama a atenção em “A nota melancólica nas observações referentes
Tarde”: “Mas como descrevê-la, se nela mal a 2 e 3 de julho da Viagem de Regresso de
pousam os nossos olhos”? (19). Ou quando Mato Grosso à Corte, não é um tipo especí-
se toma a “Aurora” como motivo: “O espetá- fico de figuração do narrador que a prolonga.
culo há pouco sereno e melancólico, trans- Isso é resultado, na verdade, de um acúmulo
forma-se agora: – é deslumbrante. Para tanto de dados descontínuos (a tapera em ruínas, a
não há olhos que cheguem” (20). Não só pa- capela abandonada, o desalento de uma viú-
rece impossível registrar aquilo que “é só o va, o entardecer, a sepultura de um comba-
que passa”, como o simples desejo de fixação tente), mas dotados de potencial emotivo se-
de um lugar, visão ou momento do dia já melhante. De uma narratividade, uma cone-
apontaria para a certeza de sua perda. Este o xão obtida paradoxalmente por uma série de
objeto de reflexão que acompanha passo a pequenas descrições independentes.
passo o texto sobre “O Rio Aquidauana”, mas
que, por vezes, ocupa o primeiro plano do FRONTEIRAS
relato: “É que a rápida contemplação de ta-
manhos primores nos trazia a certeza de que E se as ruínas de uma fazenda abandonada
os admirávamos pela primeira e última vez e aproximavam esse diário da volta à Corte do
de pronto nos incutia a saudade de logo per- de Gonçalves Dias sobre a viagem pelo Rio
dermos aquilo que ainda estava debaixo dos Negro, outro tipo de ruínas, as de Miranda,
nossos olhos” (21). aproxima, pelos quadros de guerra, A Retirada
Se as notas referentes aos dias 2 e 3 de da Laguna (1871), de Taunay, da “Caxias, que
julho de 1867, na Viagem de Regresso de Mato entre ruínas se lastima/ Que tão tarde viesse o
Grosso à Corte, parecem retomar, então, forte Lima”, da Memória Histórica e Docu-
16 Idem, ibidem, p. 56. motivo especialmente caro a Taunay, propor- mentada da Província do Maranhão desde
17 Idem, Inocência, 3a edição, cionam, por outro lado, situação privilegiada 1839 até 1840, de Gonçalves de Magalhães.
Rio de Janeiro/São Paulo,
Laemmert & Cia. Ed., 1896, para que se observe como, mantida a Afastando-se, de saída, porém, tais rela-
p. 28.
dominância do descritivo, sedimentam-se tos pelos tipos de combate de que tratam. O
18 Idem, Céus e Terras do
Brasil, 8a edição, São Pau- nexos narrativos em seus textos. de Gonçalves de Magalhães procura historiar
lo, Melhoramentos, p. 65.
A um primeiro olhar, seria possível atri- a Balaiada, luta provincial, interna ao Impé-
19 Idem, ibidem, p. 63. buir apenas ao seu narrador tal função. Por- rio. O de Taunay, a Guerra do Paraguai, um
20 Idem, ibidem, p. 43. que se, de um lado, comporta-se de modo confronto externo, com país limítrofe. Nos
21 Idem, “O Rio Aquidauana”, extremamente metódico, registrando o coti- dois casos, porém, uma das preocupações
in Viagens de Outrora, op.
cit., p. 9. diano das expedições, inventariando “cenas e centrais não só do confronto, como de sua

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narrativa, é com a questão das fronteiras. Por vezes o modo mesmo de observar
Não é sempre, no entanto, via testemunho outras terras parece servir de recurso de de-
de combates, que se figuram fronteiras nas marcação, de singularização do país de ori-
narrativas de viagem. Gonçalves Dias, por gem. É interessante, nesse sentido, como
exemplo, percorre fortalezas em desintegra- Varnhagen, por exemplo, numa breve descri-
ção tanto do lado brasileiro, quanto do ção de sua passagem pela Rússia, pela Suécia
venezuelano, na sua viagem pela Amazônia. e pela Dinamarca, enquanto delegado brasi-
“Que os espanhóis não têm fortaleza do lado leiro e membro da comissão permanente do
de lá, senão uma arruinada com que se não Congresso Estatístico de São Petersburgo,
importam hoje, e está caindo em ruínas” (22), retorna, quando possível, à paisagem brasi-
registra em 8 de setembro de 1861. E, no dia leira. Como termo de comparação – ao falar,
seguinte, sobre o que restava da fortaleza dos por exemplo, das “fortalezas ilhadas que de- Sunqua, trecho
portugueses em Marabitanas: “hoje dela só fendem” Copenhague, a seu ver “semelhan-
de “Panorama do
se tem o terraplano ou assento, os quartéis por tes à nossa Rasa”, “com a diferença de serem
Rio de Janeiro”,
detrás e seis peças de ferro” (23). Auxiliados, criadas pela arte desde os fundamentos” (27).
todavia, por um igarapé, situado atrás da po- Como elemento a ser transformado – daí o óleo sobre tela,
voação, espécie de barreira, de “furo natural” projeto “de alguma altíssima ponte, do morro coleção Paulo Geyer,
anti-invasões. Barreira com a qual não conta- de São Bento à ilha das Cobras” (28), inspi- Rio de Janeiro

ria a região próxima e pantanosa do forte de rado nas pontes “admiráveis” de Estocolmo.
Cocuí, onde o inimigo “poderia vir encober- Ou como objeto inesperado de uma visita ao
to” e atacar “por terra” (24), sem defesa. museu de Etnografia de Copenhague, no qual
Fortes, serras, rios, pântanos e invasões ape- se depara com índios, negros, com frutos de
nas hipotéticas (já que não parecia haver “in- um cajueiro, e porquinhos-da-índia presen- 22 Antônio Gonçalves Dias,
“Diário da Viagem ao Rio
vasões da Venezuela a temer”) (25), por meio tes nos “grandes quadros a óleo do pintor A. Negro”, op. cit., p. 404.

dos quais se vai construindo, de modo incru- Eckhout, feitos no Brasil de 1641 a 1643, os 23 Idem, ibidem, p. 405.

ento, nesse relato, quadro arquitetônico-na- quais são das primeiras pinturas executadas 24 Idem, ibidem, p. 406.
tural de fronteira para o Império ao norte. na América d’après nature” (29). Retornos 25 Idem, ibidem, p. 405.
Por vezes é de longe, de fora, que se tentam analógicos ou pictóricos ao território brasi- 26 Domingos José Gonçalves
visualizar limites. Como na descrição cômico- leiro, em meio à paisagem do norte da Euro- de Magalhães, “Carta ao
Meu Amigo Dr. Cândido
epistolar de sua primeira viagem a Paris, em- pa, bastante diversos da demarcação cruenta Borges Monteiro”, in Poe-
sias Avulsas, Rio de Janei-
preendida por Gonçalves de Magalhães na de limites relatada por Taunay ou Gonçalves ro, B. L. Garnier, 1864, p.
335.
“Carta ao Meu Amigo Dr. Cândido Borges de Magalhães. De que é particularmente
27 Francisco Adolfo de Var-
Monteiro”. Aí, à medida que o navio se afasta, exemplar o trecho final do sexto capítulo de nhagen, Em Serviço ao
Norte da Europa, Estocol-
é que se procura definir o “horizonte da pá- A Retirada da Laguna, de Taunay: mo, P. A. Norstedt & Sörer,
tria”: “Cabia aqui a pintura da imensa cadeia 1874, p. 5.

de montes, que em forma de enormíssimo gi- “[...] de repente partiu de muitos lados a 28 Idem, ibidem, pp. 6-7.

gante guarda a barra da nossa terra” (26). um tempo o grito: ‘A fronteira!’. Da emi- 29 Idem, ibidem, p. 6.

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nência em que se achavam, viam efetiva- culares, fiz melhorar a planta desta cidade
mente a mata sombria do Apa, limite das [São Luís], e mandei levantar a de Caxias
duas nações. com suas novas fortificações e os mapas dos
Foi esse um momento solene, e essa uma rios Itapucuru e Miarim” (33).
emoção a que ninguém pôde escapar, ofi- Mapeamento que seria reiterado em lin-
ciais e soldados. Ver a fronteira que de- guagem poética por Gonçalves de Magalhães
mandávamos impressionou a todos, como na Ode ao Pacificador do Maranhão. O Ilmo.
se fora uma surpresa. E era realmente nova e Exmo. Sr. Coronel Luiz Alves de Lima, de
para todos. Alguns podiam tê-la visto já, 1841. Aí, ao realçar-lhe os feitos, vai, ao
mas com olhos de caçador ou de campeiro mesmo tempo, recompondo o itinerário das
para quem todo terreno é o mesmo; a mor lutas travadas no Maranhão e a topografia
parte só ouvira falar dela vagamente, e agora básica da região. “Ei-lo já no Munim”, “Lá se
a fronteira estava ali, diante de nós, como restaura o Brejo!”, “Ei-lo na Vargem Gran-
ponto de encontro dos dous povos arma- de!”, “Ei-lo em Viana!”, “Ei-lo em
dos, como um campo de combate” (30). Caxias!” (34): multiplicam-se os topônimos
numa espécie de síntese geográfica do con-
Não é de estranhar que se dramatize par- fronto e do poema. Associando-se, assim,
ticularmente esse momento em que se reali- decisivamente, na ode, como na “Memória
za, via narrativa, operação fundamental à Histórica e Documentada da Província do
política imperial: a definição geográfica, Maranhão desde 1839 até 1840”, relato, exer-
territorial, de nação a rigor ainda inexistente. cício cartográfico e consolidação imperial.
Ali onde se defrontam com os paraguaios, Fora do terreno das expedições com fins
onde se opõem forças rivais, parece possível militares, outro tipo de relato de viagem de
figurar uma imagem concreta, coesa, de Bra- românticos brasileiros também parece ocu-
sil. Daí a solenidade, o caráter de fecho de par-se de questões de limites. Mas, nesse caso,
ouro de um capítulo atribuído por Taunay a ligadas à consideração dos gêneros do dis-
essa descrição da fronteira paraguaia. curso literário. Mais especificamente à com-
É bem mais difícil, para Magalhães, o tra- preensão do próprio “relato de viagem”, gê-
balho de demarcação. Não só por se tratar de nero do qual textos como a carta a Cândido
guerra civil ou pelos precários laços entre as Borges Monteiro e a Infernal Comédia, de
30 Alfredo d’Escragnolle Tau- províncias e o Estado imperial àquela altura, Gonçalves de Magalhães, os Excertos das
nay, A Retirada da Laguna,
tradução da 3a ed. france- mas, como expõe em diversas ocasiões, pela Memórias e Viagens do Coronel Bonifácio
sa, Paris/Rio de Janeiro, H.
Garnier, s/d, p. 45. errância característica aos rebeldes. “Como os de Amarante, de Araújo Porto-Alegre, e A
31 Domingos José Gonçalves rebeldes não defendiam ponto algum”, comen- Carteira de Meu Tio e sua continuação nas
de Magalhães, “Memória
Histórica e Documentada
ta, “não tinham acampamentos fixos, e fugiti- Memórias do Sobrinho de Meu Tio, de
da Revolução da Província
do Maranhão desde 1839
vos se apinhavam para os lados menos explo- Macedo, funcionam como avessos cômicos.
até 1840”, in Novos Estu- rados, caindo sobre as fazendas para se refaze-
dos no 23, março de 1989,
p. 40. rem do necessário” (31). Daí a dificuldade de CONTRA-RELATOS
32 Idem, ibidem. definir possíveis números, fronteiras para o
33 Luiz Alves de Lima. apud conflito ou de mapear a região por meio dele. A “Carta ao Meu Amigo Dr. Cândido
Gonçalves de Magalhães,
“Memória Histórica e Docu-
“Já dissemos que nenhum mapa havia do pes- Borges Monteiro”, de Gonçalves de Maga-
mentada da Província do
Maranhão desde 1839 até
soal das nossas forças, mas por um cálculo lhães, que parece tomar como modelo a “Carta
1840”, op. cit., p. 66. aproximativo calculava-se em quatro a cinco Dirigida a Meu Amigo João de Deus Pires
34 Domingos José Gonçalves mil homens; e menos se podia saber o exato Ferreira, em que lhe Descrevo a Minha Via-
de Magalhães, Ode ao Pa-
cificador do Maranhão. O número dos rebeldes” (32), assinala, ainda, gem por Mar até Gênova” (1790), de Sousa
Ilmo. e Exmo. Sr. Coronel
Luiz Alves de Lima, Gonçalves de Magalhães no seu relato. Caldas, como já observou Antonio Candido
Maranhão, Tipografia de I.
J. Ferreira, Rua do Sol, Daí encerrá-lo, de modo triunfal, exata- em O Discurso e a Cidade (35), relata, ora em
1841, pp. 6-8.
mente com o mapeamento da província do prosa, ora em verso, mas sempre em tom joco-
35 Cf. Antonio Candido, “Carta
Marítima”, in O Discurso e a
Maranhão. Relatado na voz de Caxias: “man- so, uma viagem marítima do Rio de Janeiro a
Cidade, São Paulo, Duas dei organizar e corrigir o mapa da província Paris em 1833. E se retoma diversos motivos
Cidades, 1993, em especi-
al, pp. 221-2. com os fragmentos que obtive de mãos parti- característicos das histórias do mar, como as

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tempestades, figuras mitológicas, calmarias, a dia ou da Minha Viagem ao Inferno.
solidão no meio do oceano, ou os batismos dos Nesse caso, as brincadeiras começam na
que cruzam a linha do Equador, é invariavel- folha de rosto, na indicação da tipografia res-
mente para desmontá-los de algum modo. ponsável: “Inferno, Rua do Fogo, canto da Rua
Se parece ver uma “corja de tritões”, que do Sabão, 1836”. E continuam no ocultamento
pensa descrever com “palavras esdrúxulas,/ e da autoria e na estruturação comicamente es-
versos bem esquipáticos”, é para, logo de- pecular do volume, no qual o prólogo, de Ara-
pois, sublinhar que se enganou: “Não são újo Porto-Alegre, funciona, ele também, como
Tritões, nem Netuno,/ São seis famosas ba- uma viagem onírico-infernal, à semelhança da
leias” (36). Se a noite solitária convida o que seria narrada na primeira seção – “Como
missivista a elevadas meditações, é para “as- me Achei no Inferno” – do relato de Maga-
sim poetizando, bafejado pelo relento, emba- lhães. E como um comentário, cheio de cortes
lado pelo navio” (37) ir adormecendo prosai- e desvios, do próprio processo de escrita dessa
camente. Se chama a atenção para a cerimô- história infernal.
nia do batismo no mar é para transformá-la Já o episódio de Gonçalves de Magalhães
em “comédia a bordo” (38), com o fito único é, sobretudo, uma sátira aos diplomatas re-
de tirar dinheiro dos viajantes. presentantes do Império Brasileiro no exteri-
Quanto ao período de calmaria, registra- or e aos mecanismos usuais de avaliação do
do a princípio em versos, acaba por invadir mérito intelectual. “No Brasil, como sabes,
literalmente o texto, o narrador e seu qualquer zote um formado doutor se
interlocutor potencial: “lê bocejando estes conceitua”, “Cuidam que no Brasil vale o
versos, e se dormires, não me darei por enfa- talento,/ Que virtude, ou razão! Vejam que
dado, porque também estou quase dormitan- estúrdios”, “Que o pedantismo no Brasil tem
do” (39). E nem mesmo a tempestade de dois sede”, “no Brasil moral é grande asneira,/ E
dias enfrentada no navio, cuja “horrenda sem moral se pode até ser bispo” (43): suce-
majestade” parecia pedir “uma descrição dem-se os comentários, deixando-se patente
pomposa”, escapa à perspectiva humorística. que a viagem pelo Inferno e a caricatura de
Anuncia-se, então, diversas vezes, o relato um diplomata desqualificado para seu posto
do temporal, mas apenas para interrompê-lo, são, de fato, pretextos para se falar da vida
em seguida, pelos mais variados pretextos: burocrático-cultural do país como uma espé-
desde a perda de um chapéu do Chile à neces- cie de mundo às avessas. Sobre o que, aliás,
sidade de vê-lo com vagar, para só depois não se deixa qualquer dúvida. “Co’a terra
escrever. E, por fim, quando está para se ini- Inferno é muito parecido”, avisa, de saída,
ciar a descrição – “Vou escrever a minha tem- um dos demônios, “cada nação tem seus re-
pestade, enquanto a tenho na cabeça” (40) – presentantes” (44). E exibe, para o viajante,
, avista-se terra e a exposição fica definitiva- “do Brasil várias cenas engraçadas,/ tão 36 Domingos José Gonçalves
de Magalhães, “Carta ao
mente interrompida: “Ora graças a Deus que burlescas, que ao vê-las todos riam” (45). Meu Amigo Dr. Cândido
Borges Monteiro”, op. cit.,
estamos no Canal da Mancha!” (41). Dentre elas a vida e o “fiel retrato” de um p. 339.

Tudo no navio, aliás, é submetido a incle- diplomata brasileiro, nos quais acaba por se 37 Idem, ibidem, p. 346.
mente derrisão: o beliche parece “prateleira”, o concentrar a Infernal Comédia de Gonçalves 38 Idem, ibidem, p. 351.
pão, um “bolo/ cor de tijolo”, o café “suspeito/ de Magalhães. 39 Idem, ibidem, p. 343.
de favas feito”, a sopa “repugnante”, o “bule Quanto aos Excertos das Memórias e Via- 40 Idem, ibidem, p. 362.
sujo”, as lentilhas duras, os franguinhos ma- gens do Coronel Bonifácio de Amarante, de
41 Idem, ibidem.
gros. E o próprio relato, apenas “uma carta Manuel de Araújo Porto-Alegre, teriam três
42 Idem, ibidem, p. 359.
escrita a bordo com o fim de matar o tempo” (42). edições no intervalo de dez anos. A primeira,
43 Domingos José Gonçalves
Três anos depois, curiosamente no mes- em 1848, na revista Íris; a segunda, em livro, de Magalhães, Episódio da
Infernal Comédia ou da
mo ano do lançamento da revista Niterói, o impresso, em 1852, na tipografia de Paula Brito; Minha Viagem ao Inferno,
mesmo Gonçalves de Magalhães publica- a terceira, no jornal A Marmota, em 1858. Paris, Imprimerie de
Beauté et Jubin, 1836, pp.
ria outra viagem humorística, outro texto Aproveitando histórias, das mais diversas fon- 50, 65 e 66.

com dicção bastante diversa da dominante tes, sobre a China, a Pérsia, sobre experiências 44 Idem, ibidem, p. 32.

em sua obra, o Episódio da Infernal Comé- com o magnetismo e o galvanismo, empreen- 45 Idem, ibidem, p. 35.

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de-se aí uma breve compilação, dividida em portar “escravos e senhores” (50). Na mesma
cinco excertos (“As Maravilhas do linha, comentários sobre as maravilhas da
Galvanismo”, “Os Raios Engarrafados”, “O telegrafia chinesa transformam-se em elogio
Magnetismo”, “Prodígios da Pintura Chine- à centralização, à unificação imperial:
sa”, “Maravilhas da Pintura Chinesa”) e
unificada em torno do Coronel Bonifácio de “Os liberais patriotas, que gritam contra a
Amarante, que os teria relatado a partir de suas centralização, sem saber o que ela é, nem o
antigas lembranças de viagem. que vale, ficariam de queixo caído à vista
Da primeira publicação, em revista, sob o dos benefícios da telegrafia, que poupa tem-
pseudônimo de “Noel”, para as duas seguin- po e milhões, e planta num estado o belo
tes, sob a suposta edição de Tibúrcio de sonho da unidade de pensamento, fazendo
Amarante, há modificações significativas não da capital o cérebro, e do império os mem-
só no modo de compilar as histórias, mas no bros que se movem imediatamente” (51).
processo de apropriação do gênero “relato de
viagem”. Enquanto na primeira versão, por Justaposições da paisagem e da vida polí-
exemplo, quase todas as notas do editor gi- tica locais aos personagens e vistas “exóticos”
ram em torno da veracidade, que “não é lícito referidos nos relatos, que convertem, mesmo
contestar” (46), dos “casos singulares” de essas viagens de fantasia, em exercícios de
Bonifácio de Amarante, na segunda, em li- delimitação da nacionalidade e, por vezes, de
vro, brinca-se, com maior desenvoltura, com afirmação política explícita do Império.
o seu caráter de memórias inventadas: “dei- Com a introdução do novo personagem,
xemos de pregar aos peixinhos, que nos di- Tibúrcio de Amarante, o que parece funda-
zem ‘palavras loucas, orelhas moucas’“ (47). mental, nas versões de 1852 e 1858 das me-
Na primeira diz-se de Bonifácio que teria mórias, é o desdobramento dos excertos di-
sido companheiro de armas de Napoleão e vulgados em 1848 em novas histórias e mai-
Bolívar, na segunda é comparado explicitamente ores comentários aos casos contados por
ao Barão de Münchhausen, com quem teria Bonifácio de Amarante. “Somos dous agora,
estudado e viajado por algum tempo, e seu di- tio e sobrinho, Bonifácio e Tibúrcio”, afirma
ário, “em quatorze volumes in-folio”, conside- o último, “somos dous agora, Srs. Sabichões,
rado “igual à Bíblia em merecimento” (48), “um e veremos se ainda se atrevem a duvidar” (52).
livro que vale uma biblioteca inteira” (49). E Duplicação literal, porque o sobrinho não se
que, nessa segunda publicação, passaria da res- limita a compilar e anotar o que é narrado
ponsabilidade do compilador anônimo da re- pelo tio, tornando-se, ele também, narrador
vista Íris para a do sobrinho do Coronel, de cujo de suas próprias experiências de viagem:
currículo se destaca, já na folha de rosto, o fato
46 Manuel de Araújo Porto-
de ser professor em “Petópolis”. Assim mesmo, “[...] para poder lutar heroicamente pela
Alegre (Noel), “Extratos do sem “r”, chamando-se a atenção para o caráter glória da família dos Amarante de Icaraí,
Diário do Coronel Bonifácio
de Amarante”, in Íris, vol. I, de “peta” das memórias. pus-me a panos, saí pela barra fora, e vi-
Rio de Janeiro, Tipografia
de L. A. Ferreira de Ao mesmo tempo que se sublinha a peta, ajei três anos consecutivos [...]. Andei por
Menezes, l848, p. 26.
aumentam as referências e críticas explícitas todos os lugares por onde andou, passei
47 Idem (Tibúrcio de Ama-
rante), Excertos das Memó- a coisas, não dos lugares visitados nas via- os mares que passou, e vi o que ele viu, e
rias e Viagens do Coronel
Bonifácio de Amarante, Rio
gens, mas da própria terra de origem dos mais ainda, porque vi que meu tio era o
de Janeiro, Tipografia da
Empresa Dous de Dezem-
Amarante. O que se evidencia no encontro de homem mais modesto do mundo e um
bro, de Paula Brito, 1852, Tibúrcio, em Pequim, com um sábio persa, varão de consumada prudência. [...] e
p. 19.
velho amigo do tio, que discorre longamente deixou à margem uma parte sublime das
48 A Marmota, 5/nov./1858.
sobre o Brasil, “terra de macacos e de papa- suas viagens e descobertas, que me pro-
49 Idem, 9/nov./1858.
gaios”, à qual faltaria o “siso nacional”. Daí, ponho de restituir e de comentar, para cabal
50 Idem, ibidem.
a seu ver, imitar “pouco o bom do velho instrução da nossa gente que de tudo du-
51 Idem, 3/dez./1858. mundo”, falar-se “mais do que se escreve”, vida, e que tudo acredita” (53).
52 Idem, 5/nov./1858. vestir-se “à européia vivendo-se na zona tór-
53 Idem, ibidem. rida”, e, podendo “ser uma nação livre”, im- E se as histórias de Bonifácio de Amarante

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apontam sobretudo para o caráter fantasioso Sobrinho de Meu Tio se fixa nas formas de
de suas viagens, as interpolações do sobri- acesso aos cargos públicos, tendo em vista
nho, a duplicação dos narradores-viajantes, a idêntico quadro político. Tudo isso em meio
ênfase na descontinuidade dos relatos que- a diversas viagens pela própria terra. No pri-
bram com a autoridade expositiva, com a meiro livro, a cavalo, e em companhia do
dominância da descrição metódica, caracte- Compadre Paciência, homem incorruptível,
rísticas em especial aos registros de expedi- espécie de avesso de todos os que cruzam o
ções científicas, e projetam a figura mesma seu caminho. No segundo, percursos interes-
do narrador, e não as paisagens ou os costu- sados, ligados às tentativas do sobrinho-
mes de que fala, ao primeiro plano desses narrador de se firmar numa carreira política,
Excertos das Memórias e Viagens do Coro- que, no entanto, a todo momento, parece es-
nel Bonifácio de Amarante. capar-lhe ao controle.
Coisa semelhante ocorreria em A Cartei- Viagens, na verdade meio sem paisagem,
ra de Meu Tio e nas Memórias do Sobrinho e muito mais pela vida política do que por um
de Meu Tio, de Macedo. Não à toa, aliás, território propriamente dito, que, todavia, não
dedica-se boa parte da introdução ao primei- deixam de registrar vista a rigor pouco vari-
ro livro a uma discussão sobre o “eu”. Dis- ada (“quer subam uns, quer subam outros, a
cussão que se, por um lado, chama a atenção cousa anda, pouco mais ou menos, sempre do
para a centralidade da voz do narrador, de mesmo modo”) (57), e passível de determi-
suas muitas digressões, nessas viagens pela nação, em sonhos: “parecia-se com o Império
própria terra, por outro, atribui a essa ênfase do Brasil, como as duas mãos de um mesmo
uma função nitidamente crítica: “Eu sigo as homem” (58). Geografia bastante próxima,
lições dos mestres. No pronome EU se resu- portanto, à do inferno de Gonçalves de Ma-
me atualmente toda política e toda moral: é galhães e, por vezes, das terras longínquas –
certo que estes conselhos devem ser pratica- vide os comentários do sábio persa sobre o
dos, mas não confessados: bem sei, bem sei, Brasil ou as possíveis aplicações imperiais da
isso é assim [...]” (54). telegrafia chinesa – descritas por Bonifácio e
“Eu” autodefinido, mais adiante, como Tibúrcio de Amarante.
aprendiz de político, como “sobrinho de meu Textos que se aproximam não só por essa
tio, e mais nada”. E, segundo diz, carinhosa- geografia implícita, ou pelo caráter fantasioso
mente, o próprio tio, “impostor e atrevido”. E ou humorístico de seus itinerários, pelo tom
cujo itinerário país adentro, para observá-lo e satírico ou pela amplificação da voz narratorial,
verificar, a mando do tio, se a Constituição do mas por uma desmontagem semelhante dos
Império era, de fato, letra morta, parecia relatos de viagem e por um repertório comum,
marcado por desterritorialização semelhante de que se destacam aqui dois topoi: o cavalo e
ao seu propositado anonimato autoral. Daí o tio. Não só por sua freqüência, mas por figu-
não ser possível indicar sequer o ponto de rarem respectivamente o próprio processo
partida do sobrinho – do – tio com exatidão, narrativo e, pelo avesso, a noção mesma de
contrariando a exigência característica às autoria no romantismo brasileiro.
narrativas de viagem de dados geográficos
precisos: “a casa de meu respeitável tio é uma CAVALOS DE PAU
espécie de velho castelo encantado, cuja situ-
ação geográfica não me é possível assinalar A descrição da montaria é, na verdade, qua-
54 Joaquim Manuel de Ma-
precisamente” (55). se obrigatória nos relatos de viagens por terra. cedo, A Carteira de Meu
Tio, Rio de Janeiro, Tipo-
É, pois, assim, sem dar nome aos lugares Lembrem-se, nesse sentido, os elogios ao burro grafia da Emp. Dous de De-
zembro, de Paula Brito,
percorridos – “o nome é uma voz com que se Paissandu nos Dias de Guerra e de Sertão, de 1855, 1o Folheto, p. 2.
encobrem as idéias” (56), diz, a certa altura, Taunay, as proezas do corcel lituano nas Aven- 55 Idem, ibidem, p. 23.
o narrador macediano – que, em A Carteira turas do Barão de Münchhausen, ou a transfor- 56 Idem, ibidem, p. 79.
de Meu Tio, exibem-se o descaso à lei, o des- mação, na Viagem à Roda do Meu Quarto, de 57 Idem, ibidem, p. 89.
prezo às garantias do cidadão e o desleixo da Xavier de Maistre, de uma janela em cavalo.
58 Idem, ibidem, 2o Folheto,
administração provincial. E em Memórias do É também como resultado de uma série de p. 61.

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transformações que aparece uma montaria no fora, por uma caixa e fios metálicos atados às
“Prólogo”, de Araújo Porto-Alegre, ao epi- suas extremidades. De que modo figura, en-
sódio infernal de Gonçalves de Magalhães. tão, nesse caso, o texto a que pertence? Como
Série iniciada depois que Mata-Zombando, ele, seu antigo proprietário, o Coronel
autor do prólogo, se vê, em sonhos, no alto do Bonifácio está morto. E, como ele, também,
Pão de Açúcar, diante de um diabo. E este se teve suas notas de viagem divulgadas por ação
metamorfoseia sucessivamente em papagaio, externa do sobrinho, que acrescenta a elas,
sabiá, tucano, num rio cheio de tubarões e ainda, alguns comentários seus. É, aliás, essa
peixinhos, de cujos ovos brotam raposas, ra- oscilação entre as notas de Bonifácio e as de
tos, cavalos, potros e, afinal, um burro. “E Tibúrcio, que as comentam e delas se separam
que burro tão desavergonhado!”, comenta por sinal tipográfico previamente indicado ao
Mata-Zombando, que seria acordado por ele, leitor, que move a narrativa.
“Porque em lugar de andar como andam os Já o “sobrinho” dos livros de Macedo trans-
burros, não; veio de revés como caranguejo, forma sua digressão sobre o cavalo ruço-quei-
e sela-me um couce na boca do estômago, e mado, emprestado pelo tio para sua viagem,
as costelas rincharam com dores numa espécie de portrait-charge do animal:
agudíssimas” (59). pescoço de ganso, cauda de carneiro, ossos
O que caracteriza esse burro nascido de salientes como espingardas, ancas que lem-
um peixe? Um modo de andar: de revés. E bram uma ladeira, olhos de boi, uma pipa de
influência decisiva no andamento narrativo: barriga, ventas murchas. Além disso, glutão,
interrompe um sonho e impele Mata-Zom- incapaz de rinchar e dar coice, de marchar e
bando, acordando-o, à leitura da Infernal trotar. Ou, na síntese do narrador macediano:
Comédia. Descontinuidade e reversão que
marcariam igualmente sobretudo “Peço a “O cavalo do meu tio é uma preguiça-
Palavra”, o prólogo ao texto de Magalhães. monstro com cascos nos pés, crinas no
Nele Porto-Alegre ensaia, a princípio, o que pescoço e cabeça de três palmos do foci-
chama de “estilo de juiz de Paz”, logo inter- nho às orelhas: é cavalinho que, se não
rompido por alguns “Fora! Fora!”, “A histó- anda para trás como o caranguejo, está
ria é outra, meus amigos!” (60). Mas essa outra pelo menos no caso da política do nosso
história se perde em reticências. E, tendo em país, pois que, suba quem subir, está sem-
vista que “os amados leitores esperam o re- pre no mesmo lugar, ou não sai de um
sultado da obra”, começa-se a contar um so- círculo vicioso” (61).
nho, cortado, por sua vez, pelo coice do bur-
ro. Passa-se, então, a falar de um outro prólo- Ao contrário do burro que derruba o Mata-
go, o da própria Infernal Comédia. Isto é: o Zombando da Infernal Comédia, o ruço-quei-
texto se volta sobre si mesmo, já que é ele o mado de A Carteira de Meu Tio não anda para
prólogo do livro em questão. E, como o burro trás. Mas sugere à narrativa situação igual-
que o derruba, seu movimento é de revés. mente curiosa: a imobilidade. A rigor incom-
Montaria igualmente curiosa, presente nou- patível com o fato de tratar-se do relato de
tro texto de Porto-Alegre, os Excertos das Me- uma viagem pelo país, tendo a Constituição
mórias e Viagens do Coronel Bonifácio de como guia. Adequada, porém, quando se
59 Manuel de Araújo Porto- Amarante, é o cavalo morto e ressuscitado, numa pensa que a sucessão de episódios do percur-
Alegre (Mata-Zombando),
“Peço a Palavra”, in D. J. experiência científica, pelo Doutor Galvani, de so parece reduzir-se a um único mote: desres-
Gonçalves de Magalhães,
Episódio da Infernal Comé- que se utiliza muitas vezes o Coronel Bonifácio peita-se a Constituição no Brasil de 1855. Ou
dia ou da Minha Viagem ao
Inferno, op. cit., p. 13. em passeios pelos arredores de Milão. O animal quando se pensa no andamento concêntrico
60 Idem, ibidem, p. 6. apareceria, aliás, logo no primeiro dos cinco do livro. No achatamento de tudo que não
61 Joaquim Manuel de Ma- excertos (“As Maravilhas do Galvanismo”), de seja a voz do narrador.
cedo, A Carteira de Meu
Tio, 1º Folheto, p. 33.
que se compõem as memórias. “Perguntamo-nos se este viajante alguma
62 Gérard de Nerval, As Noi-
Quanto a esse cavalo galvanizado, o que vez chegará ao porto” (62): o comentário
tes de Outubro, trad. Antô- parece distingui-lo é, de um lado, a condição presente nas Noites de Outubro, de Nerval,
nio Gonçalves, Lisboa,
Vega, s/d, p.18. de defunto, de outro, o fato de ser movido de parecendo caber, na medida, a esse narrador-

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viajante de Macedo, cujas digressões sobre- identidade autoral. Ou de Araújo Porto-Ale-
põem-se a qualquer itinerário. No que A Car- gre ter trocado o “compilador” em terceira
teira de Meu Tio e as Memórias do Sobrinho pessoa da primeira versão dos Excertos do
de Meu Tio parecem dialogar diretamente com Coronel Bonifácio Amarante, publicada na
toda uma série de contra-relatos, marcados revista Íris, pelo até então inexistente Tenen-
exatamente pela ênfase no narrador e pela te Tibúrcio de Amarante, sobrinho-narrador,
minimização da história propriamente dita, “o editor das suas obras, eu, ou não eu” (64),
como Viagem à Roda do Meu Quarto, de como se autodefine, caricaturando Fichte,
Xavier de Maistre, Viagens na Minha Terra, quando da edição em livro, em 1852.
de Almeida Garrett, As Noites de Outubro, de “Eu, ou não eu” que se aproxima da recusa
Nerval, ou Viagem à Roda do Meu Jardim, de de autoria de que fala o Mata-Zombando do
Alphonse Karr. prólogo, ainda de 1836, de Porto-Alegre para
Há, então, nessas versões críticas do rela- o episódio infernal de Magalhães: “Esta obra
to de viagem, produzidas no romantismo bra- não tem autor, aquele que a lança no mundo
sileiro por Gonçalves de Magalhães, Araújo não é mais que um taquígrafo que a apanhou
Porto-Alegre e Joaquim Manuel de Macedo, durante seu desenvolvimento” (65). Ou da
uma sucessão de imagens eqüestres que pare- ênfase no próprio anonimato por parte do so-
ce apontar diretamente para sua fonte: o brinho-do-tio de Macedo: “desafio a que me
hobby-horse do Tristram Shandy, de Sterne. distingam e me reconheçam no meio do formi-
Em especial, talvez, para uma definição da gueiro dos sobrinhos de seus tios que hoje em
própria narrativa, via cavalinho de pau, dia superabundam nas altas escalas sociais, e
dirigida ao leitor, já quase ao final do livro: nas mais brilhantes posições oficiais” (66).
“[...] se bem vos lembrais, o meu cavalo de Se o comentário de Mata-Zombando lem-
brinquedo não é um animal malévolo; não bra o conjunto de manuscritos achados, his-
tem pêlo que seja, ou feições, de asno. – É tórias ouvidas de um outro, ou autores que se
uma pequena potranca folgazã que vos carre- passam por editores, tão em voga no roman-
ga neste momento [...]” (63). tismo, como assinala Daniel Sangsue em Le
E é exatamente esse modo “folgazão” de Récit Excentrique (67), o que introduz as
carregar o leitor que o estático ruço-queima- Memórias do Sobrinho de Meu Tio busca, de
do de Macedo, o burro-caranguejo e o cavalo certo modo, na prática do apadrinhamento, a
galvanizado dos textos de Porto-Alegre es- razão para essa recusa de um nome próprio
forçam-se em figurar. por parte de seu narrador.
Assim como os vários não-autores e os Recusa a dar o próprio nome, alegação
sobrinhos-de-tios em torno dos quais se cons- de não-autoria, de um lado; expansão do dis- 63 Laurence Sterne, A Vida e
as Opiniões do Cavalheiro
troem esses contra-relatos. Nesse caso, po- curso narratorial no interior da ficção ro- Tristram Shandy, trad.
mântica, de outro. Movimento oposto àque- José Paulo Paes, Rio de
rém, se funcionam como versões auto-irôni- Janeiro, Nova Fronteira,
cas da imagem autoral, parecem apontar igual- le com que se procura estabilizar, via relatos 1984, p. 564.

mente, para certa consciência, por parte dos naturalistas, o ponto de mira do narrador, 64 A Marmota, 5/nov./1858.

escritores românticos brasileiros, de sua res- ainda na primeira metade do século, é no 65 Manuel de Araújo Porto-
Alegre (Mata-Zombando),
trita autonomia intelectual e para nítida inse- sentido da formação de uma consciência “Peço a Palavra”, op. cit.,
p. 16.
gurança com relação à própria função. crítica da experiência narrativa oitocentista
66 Joaquim Manuel de Ma-
que tendem esses contra-relatos. Lembre- cedo, Memórias do Sobri-
O SOBRINHO DO TIO se, no entanto, que nem Gonçalves de Maga- nho de Meu Tio, Rio de Ja-
neiro, Tip. Universal de
lhães, nem Araújo Porto-Alegre, nem Joa- Laemmert, 1867. Tomo I,
p.xxix-xxx.
A figura pode ter sido tomada de emprés- quim Manuel de Macedo reforçariam essa
67 Ver, sobre os “manuscri-
timo a Diderot, Töpfer, ao prólogo de Les nota reflexiva ao longo de sua obra. Caben- tos achados” e sobre as
“narrativas excêntricas”
Illuminés, de Nerval, ao tio de La Fée aux do a Machado de Assis essa tarefa. E uma em geral, o trabalho de
Daniel Sangsue, Le Récit
Miettes, de Nodier, ou ao próprio Tio Toby, inteligente releitura das notas desses sobri- Excentrique (Paris, José
de Sterne. A fonte não explicaria, no entanto, nhos de seus tios, de importância decisiva Corti, 1987). Sobre “a nar-
rativa romanesca como um
o fato de essas viagens críticas se iniciarem na idealização sobretudo das Memórias filho ilegítimo de que não
se quer assumir a paterni-
inevitavelmente com discussões em torno da Póstumas de Brás Cubas. dade”, cf. p. 53.

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