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2. Representação literária.

Nesta seção traremos a teoria de representação da vida cotidiana


através da literatura. Para isto, usaremos como base Susan Sontag (1988) que
evidência a utilização das metáforas da AIDS; assim como Paul Ricoeur ( 1997) que
trabalha no quinto capítulo do seu livro Tempo e narrativa sobre a interseção da
Literatura e da História. Por fim nos utilizaremos do aporte teórico de Umberto Eco
( 1971) para estabelecer as questões introdutórias a respeito da semiótica e os
signos literários que servirão como base das análises que virão em sequência. Este
tópico então é essencial para o início da compreensão do estudo.

2.1 Literatura, história e a metáfora da doença.

A história e a literatura sempre estiveram, unidas, para existir o texto


necessita de um contexto que é fornecido pela história que vivemos não é incomum
encontrarmos obras literárias que se passam durante eventos históricos ou
apresentam críticas e mudanças da sociedade em que vivemos. No livro A poética,
Aristóteles afirma que a arte literária é imitação( mimese), a arte que é imitada pela
palavra e que o imitar é congênito ao homem e é isso que o difere dos outros seres
vivos pois aprende pela imitação e isso os diverte. A exemplo prático podemos citar
o desenvolvimento infantil, as crianças sobretudo na primeira infância são tidas
como “espelhos” dos adultos com quem convivem, confirmando que o homem é por
natureza um imitador; na literatura não seria diferente, as obras literárias necessitam
de um ponto de partida para sua criação, este na maioria das vezes é nitidamente a
história e o contexto vivenciados pelo autor como ocorre em Pílulas azuis: uma obra
autobiográfica que relata o relacionamento de seu autor e as dificuldades
encontradas em conviver com uma doença pouco conhecida e arraigada de
preconceitos na sociedade em que estão inseridos.

Ricoeur (1997), afirma que a história também herda da escrita as


armações e tradições da criação literária não é difícil associar que encontramos na
literatura tudo o que está ao nosso redor e na nossa própria vida: sonhos, amor,
alegrias, doenças, dúvidas, dificuldades, entre outros. Dessa forma concordamos
com o autor quando diz que, “ O espantoso é que esse entrelaçamento da ficção à
história não enfraqueça o projeto de representância desta última, mas contribua para
a sua realização” (RICOEUR, 1997, p. 323).
A arte literária e a história então estão intrinsecamente ligadas de forma
que ambas são referenciais para a sociedade de determinado período e para os que
virão, é também através dos relatos históricos e produções literárias que nós, como
indivíduos podemos sentir representatividade, conhecer realidades distintas e
desmistificar preconceitos.
É natural que o processo de produção da literatura se dissipe das
referências históricas já que a arte por diversas vezes ultrapassa a realidade e não
seja tão somente uma cópia dos fatos em que foram inspirados, concordamos com
Pesavento (2003) quando afirma:

“Ainda como desdobramento desta compreensão da História que a


aproxima da Literatura, temos o entendimento de que ambas as narrativas
realizam a configuração de um tempo². Seja este o que se passou, no caso
da História, ou que poderia ter se passado, mas que realmente se passa,
para
a voz narrativa da Literatura, este tempo se constrói como uma nova
temporalidade, nem presente nem passado, mas que ocupa o lugar do
passado e, no caso da História, a ele se substitui. É este presente da escrita
que inventa um passado ou constrói um futuro, para melhor explicar-se.
Nesta medida, o momento da feitura do texto torna-se essencial para o
entendimento das ações narradas, sejam elas acontecidas ou não.
(PESAVENTO,2003, p.33).

A literatura tem então a liberdade de assumir um papel lúdico perante os


fatos históricos de maneira que reproduza e represente da melhor maneira possível
os acontecimentos temporais e sociais de determinado período, não seria diferente
com a narrativa de Pílulas Azuis que se passa no final do Séc.XX trazendo
socialmente uma grande mudança e quebra de paradigmas no contexto histórico e
social.
2.2 O “boom” do vírus HIV

Entre a década de 60 e 80 a comunidade médica teve que lidar com


sintomas avassaladores de uma doença até então desconhecida, os pacientes
apresentavam combinações de enfermidades aparentemente sem ligação comum
mas que progrediam rapidamente prejudicando severamente o estado de saúde dos
pacientes, dentre eles: Pneumonia, baixa imunidade, fadiga e perda de peso. A
infecção ocasionada pelo vírus HIV só foi identificada e confirmada de fato no ano
de 1981, apesar disso, diversas outras mortes em anos anteriores foram associadas
ao vírus.

A partir do início da década de 80, pesquisadores passaram a rastrear as


possíveis causas da doença não desconhecida, em 1981 identifica-se o conhecido
“paciente zero” da síndrome que até então não possuía nome: Gaëtan Dugas,
acreditava-se que ele tenha sido um dos primeiros indivíduos a proliferar a epidemia
de AIDS que se daria nos Estados Unidos nos anos seguintes. Dugas era um
comissário de voo franco-canadense homossexual, sua condição de saúde foi
identificada quando os centros de saúde dos Estados Unidos começaram a gerar
relatórios sobre o novo vírus que apresentava grande incidência em homens que
mantinham relações homossexuais.

Apesar de nunca aceitar o estigma de “paciente original” que recebeu,


Dugas colaborou com a investigação durante o tempo em que viveu após a
descoberta, ele forneceu o nome e número de telefone de todos os companheiros
que tinha acesso, a partir desse material, os pesquisadores do Centers for Disease
Control and Prevention (CDC),associaram que 40 dos primeiros pacientes
identificados com o vírus nos Estados Unidos haviam tido relações sexuais com
Gaëtan Dugas pelo menos uma vez (Straub,2005 apud Cardoso,2013). Os
cientistas ainda não haviam chegado em um consenso a respeito do nome da
doença que começou a ser tratada pela imprensa como “Peste gay” ou GRID - Gay-
Related Immune Deficiency. Ainda em 1981 pelo menos 14 países relataram casos
da doença, em sua esmagadora maioria em indivíduos homo ou bissexuais.

Os anos seguintes foram permeados de incertezas e informações que


estigmatizaram ainda mais os pacientes portadores do vírus HIV, em 1983, a
população ficou aterrorizada com a possibilidade de transmissão pelo ar ou
utensílios domésticos já que foram identificados os primeiros casos em crianças nos
Estados Unidos, começa então pelo menos na comunidade científica a se desfazer
da ideia de doença como punição, de acordo com Sontag( 1989): “ A noção da
doença como punição gerou a ideia de que a doença poderia ser um castigo
especialmente adequado e justo.” De acordo com os pensamentos homofóbicos
presentes na sociedade ainda hoje, têm-se a concepção de que indivíduos que
mantém relações sexuais com pessoas do mesmo sexo e/ou com vários parceiros
diferentes merecem ser castigados de acordo com as leis morais da igreja e os bons
costumes, o argumento da punição entretanto não é sustentado no caso de crianças
que sequer tem uma vida sexual ativa.

1983 e 1984 foram anos revolucionários na linha do tempo de descobertas


da AIDS, mais de 3.000 casos e 1.200 óbitos já eram confirmados nos Estados
Unidos e pela primeira vez os pesquisadores conseguiram isolar o vírus. Em 1984,
Dugas morre de complicações renais causadas pelo vírus, o governo vê a
necessidade de tentar frear a contaminação visto que a disseminação permanecia
incontrolável, apesar disso, os pesquisadores mantinham-se otimistas e afirmavam
ter uma vacina para a AIDS antes da virada da década, no fim desses anos, mais de
5000 pacientes tinham a doença apenas nos Estados Unidos.

Nos anos que se seguiram, o estigma do vírus ainda muito pouco


conhecido apenas aumentava, os próprios cientistas, assim como grandes
influenciadores da mídia difundiam ideias errôneas a respeito da contaminação por
HIV. Para além das dificuldades ocorridas pelo pouco conhecimento da doença,
ainda era necessário lidar com o grande conflito de interesse dos laboratórios e
políticos-econômicos, devido a estes, o teste sorológico que facilitou bastante o
rastreio de indivíduos contaminados demorou mais do que esperado a ser acessível
a população. Em 1987, quase 10 anos após o primeiro diagnóstico a Princesa Diana
abre o primeiro hospital especializado em tratamento de AIDS na Inglaterra, a
imagem da princesa apertando as mãos de pessoas com o vírus sem utilizar luvas
que é até hoje amplamente divulgada e tornou-se símbolo da mudança de estigmas
para com indivíduos soropositivos.
Figura 1-Princesa Diana e um portador de HIV- Canadá

Fonte: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/princesa-diana-e-o-aperto-de-maos-
que-representou-uma-conquista-na-luta-contra-o-estigma-social-da-aids.phtml.

Ao final dos anos 80 e início dos anos 90, juntamente com a grande
evolução de medicamentos e tratamentos para o vírus HIV e suas doenças
oportunistas, mais um estigma foi associado à doença: Além dos indivíduos
homossexuais, a parcela de pacientes usuários de drogas injetáveis que postavam
positivo para AIDS, era assustadora,nesse tocante o governo estabelece metas e
campanhas de conscientização populacional com temas como “ cuide de si e
também dos outros” além de declarar o dia 1 de dezembro como o dia mundial da
AIDS, neste período estima-se que mais de 10 milhões de indivíduos já haviam se
contaminado pela doença.

Em 1995, pela primeira vez fala-se em cura da AIDS, após o início do


tratamento com o primeiro “coquetel” de medicamentos, após a utilização a
mortalidade diminuiu imediatamente e a imunidade melhorou proporcionando a
recuperação das conhecidas como infecções oportunistas, após a grande euforia, os
exames indicaram uma evolução, mas não a eliminação total do vírus no organismo
dos pacientes. Apesar da cura não acontecer, a evolução medicamentosa diminui a
transmissão viral entre mães e bebês assim como o índice de mortes de indivíduos
já infectados.

O advento do séc. XXI estabeleceu mudanças significativas em diversas


áreas no mundo inteiro, com a pesquisa e tratamento da AIDS não foi diferente, a
partir desse período, as condições de possíveis contaminações pelo vírus e as
medidas de precaução foram e ainda são amplamente divulgadas por estratégias
dos governos de todos os países; para indivíduos já infectados ou que foram
expostos ao vírus, existe um tratamento eficaz que se seguido corretamente torna a
carga viral indetectável proporcionando uma vida plena aos pacientes; em Pílulas
azuis, Cati e seu filho seguem o tratamento de maneira correta com
acompanhamento médico regular que propicia saúde e qualidade de vida à ambos,
com ajuda médica, Cati e Frederik inclusive têm uma criança não portadora do vírus.

Sontag (1989) afirma que: “Na formulação mais recente de Karl


Menninger, a doença é em parte aquilo que o mundo fez a uma vítima mas, na maior
parte, é aquilo que a vítima fez ao seu mundo e a si mesma.” Este excerto traz o
pensamento ainda hoje difundido sobre os portadores de AIDS, apesar do intenso
trabalho dos profissionais de saúde e os governos, o preconceito com indivíduos
soropositivos é ainda muito latente da sociedade, esse fato prejudica a comunidade
como um todo, os indivíduos que se expõem ao vírus são resistentes a realizar os
exames e tratamentos na maioria das vezes porque não querem carregar consigo
um estigma social, para grande parte da população, diversas IST’S mas sobretudo
a AIDS, são o sinônimo de uma sentença de morte cruel e solitária.

As manifestações artísticas como o cinema e a literatura entram como


artifícios para contar a história de maneira que consigam quebrar os padrões já tão
reproduzidos socialmente, além de personagens históricos como Cazuza e Freddie
Mercury que se tornaram símbolos da luta contra a AIDS, existem diversas
produções, que tem o intuito de causar comoção aos espectadores mostrando as
vivências do portadores do vírus, uma delas, Filadélfia (1993) concedeu a Tom
Hanks um Oscar de melhor ator pela interpretação de um indivíduo homossexual
portador de HIV que contrata um advogado homofóbico para defender seu caso
perante a justiça.

Apesar da importante referência de situações cotidianas nos meios


artísticos, muitas obras tem seu conteúdo exibido de forma branda para que sejam
bem aceitos pela produção e consumidores de determinada obra, é possível
perceber situações como essa no filme A cura (1995), que narra a história de
amizade de Dexter e Eric, duas crianças onde uma foi contaminada pelo vírus HIV
durante uma transfusão de sangue, concordamos com o crítico Stephen Holden,
quando diz:

"Quando "The Cure" centra-se nos ritos da infância, ele evoca com uma
claridade intensa a mistura especial de inocência, a curiosidade, terror e
bravatas que leva as crianças para cometer atos desesperados. Embora o
filme lança-se diligentemente em um nível mais elevado do que o típico
filme de doença-da-semana na televisão, ocasionalmente tem lapsos no
sentimentalismo. E a sua imagem dos estragos da AIDS é muito amolecida,
sendo reduzida a sintomas de fraqueza, febre ocasional e alguns ataques
de tosse leve. [...] O que ele [o diretor Peter Horton] e o roteirista, Robert
Kuhn, criaram é um filme de amigos pré-adolescentes, cujo comovente
apelo emocional não depende do fato de que um dos personagens
principais tem uma doença fatal." ( Stephen Holden, The New York Times,
21 de abril de 1995).

Ao mesmo tempo que busca apresentar a sociedade um tema relevante como as


vivências de uma criança com AIDS, as condições colocadas na produção seguem
muito o conceito já difundido na sociedade, o personagem Dexter é uma criança
frágil e muito infantilizado pela mãe, sem vida social, não frequenta à escola e é
constantemente excluído e xingado por crianças e adultos, há cenas inclusive em
que o próprio personagem age com naturalidade sobre a previsão de morte iminente
e chega a brincar sobre ter “um sangue venenoso”. O papel dos pais e familiares
das crianças é bastante distorcido, Eric sofre diversas agressões por parte da mãe o
que é exibido de forma bastante naturalizada no entanto, é o único que consegue
conviver com Dexter de forma comum, uma relação comum de amigos durante as
férias de verão.

Nessa perspectiva, de acordo com o contexto histórico e alguns exemplos


citados nesta seção, iremos adiante nos aprofundar nos conceitos de análise
semiótica afim de analisar uma obra que segue na contramão do pensamento de
grande parte da população que ainda hoje exclui e condena à morte rápida os
indivíduos portadores de HIV baseada em conceitos equivocados surgidos que há
mais de uma década tratam a doença como sinônimo de morte.

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