Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
m
••
Pablo R.Andinach
Introdução
m .
Hermenêutica ao
ANTIGO
TESTAMENTO -•ti
Introdução
Hermenêutica ao
ANTIGO
TESTAMENTO
Pablo R.Andifiach
ISBN 978-85-8194-068-7
Editora
J>EST SlNODAL 9 788581 940687
Pablo R. Andinach
Introdução
hermenêutica ao
Antigo
Testamento
Tradução
Mônica Malschitzky
^ FAC U LD AD ES
jéEST
Editora
SiNODAL
2015
Traduzido do original Introducción hermenéulica al Aníiguo Testamento —© Editorial Verbo
Divino, Estella (Navarra) / Espanha, 2012.
Andinach, Pablo R.
Introdução hermenêutica do Antigo Testamento / Pablo R. Andinach.
Traduzido por Mônica Malschitzky. - São Leopoldo : Sinodal/EST, 2015.
CDU 22.06
Catalogação na publicação: Leandro Augusto dos Santos Lima - CRB 10/1273
r
Indice
Abreviaturas e siglas..................................................................................... 17
Prefácio........................................................................................................... 19
SEÇÃOI
A PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
1. A perspectiva hermenêutica.................................................................. 25
1. A leitura como produção de sentido....................................................... 25
2. As três dimensões do texto..................................................................... 27
3. Da experiência histórica aos textos........................................................ 30
4. O círculo hermenêutico.......................................................................... 31
5. Críticas e riscos da perspectiva hermenêutica....................................... 32
SEÇAOII
O ANTIGO TESTAMENTO OU A BÍBLIA HEBRAICA
SEÇAOIII
O PENTATEUCO
4. Gênesis........................................................................................................ 71
1. Os gêneros literários em Gênesis........................................................... 72
1.1. O mito............................................................................................... 73
1.2. A lenda.............................................................................................. 74
1.3. A genealogia..................................................................................... 75
2. As fontes de Gênesis............................................................................... 75
3. Estrutura literária e articulação do texto................................................ 76
3.1. Da cosmogonia até Abraão (1-11)................................................... 79
3.2. História dos patriarcas: de Abraão a Jacó (12-50).......................... 81
a) A história de Abraão.................................................................... 81
b) A história de Isaque e Jacó.......................................................... 82
4. Temas teológicos..................................................................................... 83
4.1. Criação e libertação......................................................................... 83
4.2. O Deus que acompanha................................................................... 84
5. A teologia de Gênesis.............................................................................. 85
5.1. Em Gênesis há um começo e um fim ............................................. 85
5.2. O Deus Criador que não está sozinho............................................ 86
5.3. O ser humano real............................................................................ 87
5. Êxodo........................................................................................................... 89
1. Autor e data............................................................................................. 90
2. O livro de Êxodo e a história.................................................................. 90
3. Os habiru e os hebreus........................................................................... 91
4. Moisés e o relato de vocação................................................................. 92
4.1. Relato de vocação de Moisés....................................................... 93
5. Estrutura literária e articulação do sentido............................................ 94
6. Israel no Egito (1.1-12.36)..................................................................... 94
6
Índice
6.1. A opressão........................................................................................ 94
6.2. O nascimento de M oisés................................................................. 95
6.3. As pragas do Egito............................................................................ 96
7. Do Egito ao Sinai (12.37-18.27)............................................................ 98
7.1. Cânticos de Moisés e de Miriã........................................................ 98
7.2. Criação do sistema judiciário (18.13-27)....................................... 99
8. O acampamento no Sinai (19.1-40.38).................................................. 100
8.1. A idolatria em Israel........................................................................ 102
8.2. Articulação do sentido..................................................................... 103
9. Teologia de Êxodo................................................................................... 103
9.1. Deus está ao lado dos oprimidos..................................................... 103
9.2. A identidade de Deus....................................................................... 104
6. Levítico........................................................................................................ 107
1. Continuidade de Levítico emseu contexto literário.............................. 108
2. Estrutura e articulação do texto.............................................................. 109
2.1. Os sacrifícios (1-7).......................................................................... 110
2.2. A consagração dos sacerdotes (8-10)............................................. 110
2.3. Leis referentes à pureza e à impureza (11 -16)................................ 111
2.4. A lei de santidade (17-26)................................................................ 112
2.5. Os impostos do templo (27)............................................................ 113
2.6. A articulação das seções.................................................................. 114
2.7. A teologia de Levítico..................................................................... 114
7. Números...................................................................................................... 117
1. Estrutura literária e articulação das seções............................................ 118
1.1. A geração do êxodo (1-25).............................................................. 118
1.2. A geração da terra prometida (26-36)............................................. 120
2. Temas teológicos de relevância hermenêutica...................................... 122
2.1. Censos, listas e a ordem do acampamento..................................... 122
2.2. A bênção sacerdotal (6.22-27)......................................................... 124
2.3. O ciclo do profeta Balaâo (22.2-24.25).......................................... 124
3. Contribuição de Números à teologia do Pentateuco............................. 125
8. Deuteronômio............................................................................................ 129
1. Título e autores........................................................................................ 130
2. O rei Josias e Deuteronômio.................................................................. 130
3. Estrutura literária e articulação.............................................................. 132
3.1. Capítulos 1-11: Descrição histórica................................................ 133
3.2. Capítulos 12-26.15: A exposição da Lei......................................... 134
3.3. Capítulos 26.16-29.20: A aliança.................................................... 135
3.4. Capítulos 29.21-34.12: O futuro de Israel...................................... 136
4. A teologia de Deuteronômio................................................................... 137
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
SEÇAOIV
LIVROS HISTÓRICOS
8
Í ndice
3.2. História dos reis até a queda de Samaria (IRs 12-2Rs 17)........... 187
a) Os ciclos de Elias e Eliseu........................................................ 190
3.3. História de Judá até a queda de Jerusalém (2Rs 18-25)................. 190
4. Teologia do livro de R eis..................................................................... 191
SEÇAOV
LIVROS PROFÉTICOS
10
Indice
11
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
SEÇAO VI
LIVROS SAPIENCIAIS
12
Índice
13
I ntrodução hermenénutica ao A ntigo T estmiento
SEÇAO VII
LIVROS APÓCRIFOS E DEUTEROCANÔNICOS
14
Índice
15
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
APENDICES
Mapas.............................................................................................................. 539
16
Abreviaturas e siglas
17
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
18
Prefácio
Ler é interpretar signos. É unir as letras para formar palavras, depois ora
ções, mais tarde a frase, até chegar ao oceano do relato ou do poema. Esse ofício
parece ser simples, mas envolve um sem-número de variáveis, que obrigam o
leitor a optar quase em cada momento de sua leitura. A busca do equilíbrio na
interpretação para encontrar o sentido é um exercício que se aproxima mais das
disciplinas poéticas do que das científicas. Entretanto, nos últimos duzentos anos
de pesquisa bíbliea, a ênfase foi dada ao caráter eientííico da leitura bíbliea, até o
ponto em que se costuma falar de “ciências bíblicas” do mesmo modo como de
ciências biológicas ou físicas. A expressão é questionável, a menos que se refira às
chamadas disciplinas auxiliares, como a arqueologia, a linguística, a sociologia;
porém, aplicada em geral ao estudo e à interpretação das Escrituras, confunde
sobre a natureza tanto do método a seguir como do que se busca ao aproximar-se
delas. Isso se deve ao prestígio que as ciências adquiriram a partir da moderni
dade, que levou a buscar aplicar métodos científicos à leitura da Bíblia, a fim de
mostrar sua dignidade ao utilizar as mais sofisticadas ferramentas da cultura da
época. Desse modo, avançou-se muitíssimo em conhecimento sobre a formação
do texto e o mundo em que suas narrações foram modeladas, porém ao preço - a
nosso critério pago sem necessidade - de perder de vista o caráter essencialmente
literário de suas páginas. Ao insistir ao extremo em 1er, levando em consideração
o contexto histórico, social, cultural, redacional, esqueceu-se o principal contexto,
que deu forma aos textos do Antigo Testamento, que é a experiência religiosa da
comunidade de fé. Ela os reconheceu como fonte de inspiração divina e legou-os
às próximas gerações de crentes.
Esta introdução ao Antigo Testamento busca oferecer ferramentas para
uma leitura que permita interpretar o texto bíblico como documento literário, que
surgiu e alimenta a fé de Israel e da igreja cristã. Buscamos iniciar um caminho
que nos conduza ao sentido investigando os textos em sua forma final. Inclinamo
-nos a ver nas dissonâncias, repetições, cortes abruptos, problemas de cronologia
etc. dados textuais que foram construídos e aceitos porque implicam um sentido
na economia semântica e são formas que respondem à intenção última de trans
mitir uma mensagem. Desse modo, o peso de nossa leitura não recai em explicar
19
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
a origem de uma particular forma literária senão em interpretar seu papel na cons
trução da mensagem do texto em que se encontra. Mesmo sabendo dos riscos de
dizer o que vem a seguir, afirmamos que nossa tarefa nesta introdução é contribuir
para que se deem as condições para que o texto fale por si mesmo, libere suas
forças e nos faça pensar.
Consideremos que ainda hoje muitas introduções ao Antigo Testamento
disponíveis privilegiam a informação histórica como chave de leitura. Não é es
tranho encontrar expressões como “ao longo dos anos os diversos autores atri
buíram em particular este livro a quase todos os períodos da história de Israel”
para depois postular um deles e dirigir a interpretação de acordo com tal opção.
A honestidade dessa declaração não impede que seja prova suficiente contra sua
validade como porta de entrada ao sentido do texto. Os imensos avanços feitos na
reconstrução do passado de Israel empalidecem - com grande injustiça para com a
própria disciplina crítica da história antiga de Israel - quando o exegeta os utiliza
para vincular um texto a um período em particular e assumi-lo como contexto de
sua redação e chave que abra sua mensagem. Simplesmente acreditamos que não
se pode confiar a interpretação de um texto à pá do arqueólogo ou à sagacidade
do historiador para reconstruir o passado com a informação muitas vezes escassa
de que se dispõe.
Porém esse não é o único problema. Em Pierre Menard, autor de Quixote,
Jorge L u ís Borges apresenta-nos um escritor francês do começo do século XX
que não renega ser Menard, mas busca reescrever palavra por palavra a obra ca
pital de Cervantes. Pretende que as coordenadas do universo que ocorreram no
século XVII sobre o famoso maneta voltem a encontrar-se agora nele e produzir
com fidelidade aquela obra com sua própria pena. Faz todos os esforços possíveis
e, como é de esperar, não consegue, mas - reflete o narrador - contribuiu para
enriquecer a leitura com a técnica do “anacronismo deliberado e as atribuições
errôneas”. Borges leva-nos a pensar que a relação entre autor, texto literário e
cosmos é tão íntima, que não é possível voltar a editá-la. Não há outro remédio
senão ler a Ilíada, Cem anos de solidão ou o profeta Isaías, como se as mesmas
palavras ali utilizadas - chuva, céu, pão, rocha, vento... - evocassem as mesmas
imagens e sentimentos em nós do que em suas primeiras testemunhas. Sabemos
que não é assim, mas pouco podemos fazer contra isso. Procurar modificar essa
condição humana e tentar colocar-nos na pele de Homero ou de Isaías não ajuda,
nem é necessário, para a compreensão de suas obras ou das Escrituras. Na verda
de, os textos que formam o cânone foram reconhecidos como Sagradas Escrituras
porque se viu neles a condição de superar o contexto original que lhes deu vida
e de continuar sendo significativos para outras pessoas e situações, apesar dessa
inevitável distância.
Na apresentação que fazemos do Antigo Testamento, existem duas dimen
sões que são essenciais: o texto e o ato de ler. A primeira remete-nos às Escritu
ras; a segunda, à hermenêutica. Por texto aqui assumimos as Escrituras canôni
cas, assim como são consideradas pelo conjunto das igrejas cristãs, também pelo
20
___________________________________________________________________________________________ P refácio
21
Introdução hermenënuttca ao A ntigo T estamento
uma sequência narrativa ou uma linha semântica. Uma vez descrita a estrutura,
analisa-se a articulação do sentido entre as diferentes partes que a compõem, a
fim de compreender como se constrói a mensagem. Na perspectiva hermenênti-
ca, entende-se que os livros biblicos nascem dentro do contexto teológico da fé
de Israel, mas ao mesmo tempo contribuem para configurá-la. Por essa razão é
importante concluir com a descrição dos principais aspectos teológicos presentes
em cada obra. Esses são oferecidos como orientação e exercício hermenêutico a
fim de abrir um aspecto que fica para ser explorado pelo leitor em relação a seu
próprio contexto de leitura.
Agradecimentos
Pablo R. Andinach
22
S eção I
A PERSPECTIVA
HERMENÊUTICA
1
A perspectiva hermenêutica
Toda leitura é interpretação, e isso vale não só para os textos, mas também
para a própria vida. Interpretar faz parte da condição humana e é um ato cotidiano
que toma corpo tanto quando descobrimos figuras nos contornos das nuvens como
quando lemos o jornal todas as manhãs. Todos eles são atos únicos e, como tais,
capazes de suscitar novas leituras cada vez que voltamos a exercitá-los. Porém,
nesta obra, nós nos atemos à interpretação dos textos do Antigo Testamento, os
quais, embora participem dessa condição geral, têm suas particularidades.
Entre a multiplicidade de métodos exegéticos que se aplicam à leitura dos
textos bíblicos a hermenêutica não é apenas mais um. Em princípio, porque não
se especializa em um aspecto do texto, como fazem outros métodos (a história, a
estrutura, a psicologia dos personagens, as relações sociais e políticas, a retórica, a
leitura narrativa etc.), porém busca, mais exatamente, estabelecer uma convergên
cia de métodos (cf Ricoeur, 1976). A hermenêutica não busca excluir, mas somar.
Afirma-se que o acesso ao sentido não se pode limitar a uma única entrada no
25
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
texto, pois desse modo se reduz a dimensão de sua mensagem à medida de cada
método. Cada texto é um testemunho de vida, e a vida tem muitas facetas, que são
irredutíveis e que devem ser levadas em consideração a fim de não empobrecer a
pluralidade de sentidos presentes na obra que lemoS.
Em segundo lugar, porque a hermenêutica, longe de rivalizar, clama pela
necessidade de submeter o texto a diversos métodos mencionados (e outros), que
contribuem para clarificar as relações literárias internas, os aspectos ideológicos
e políticos, a história da redação etc. Não se pode fazer uma interpretação séria
prescindindo da crítica bíblica, mesmo que essa seja apenas considerada uma par
te do caminho em direção ao sentido. Ao mesmo tempo, como é de esperar de toda
leitura fundamentada, a hermenêutica considera de maneira crítica as ferramentas
que utiliza para evitar que a interpretação fique presa a conceitos alheios ao texto.
Porém, chegado o momento em que o texto é submetido a um estudo minucioso,
a hermenêutica apresenta-se - como assinalaremos mais adiante - como o salto
final em direção ao sentido do texto, assim como é lido em cada contexto parti
cular. E não pretende - por princípio próprio - ser a interpretação definitiva nem
a correta pelo simples fato de que considera que toda leitura no momento de ser
efetuada é assumida pelo leitor como a melhor possível, mas que, sem dúvida,
pode ser modificada em cada nova situação.
Em consequência, ao falar de “método hermenêutico” ou de “perspectiva
hermenêutica”, referimo-nos à aplicação na interpretação de determinados crité
rios que surgem de considerar e tomar evidentes os mecanismos que conduzem a
toda interpretação (cf. Croatto, 2000, p. 9-18).
Estes são os princípios básicos que a hermenêutica revela:
1 - 0 sentido surge no encontro de um texto com um leitor. O leitor pode
ser uma pessoa ou comunidade, mas o que interessa aqui é que o encontro exige
duas realidades diferentes. Por um lado, a realidade do texto - que em nosso caso
é um texto estabelecido por sua condição de canônico - e, por outro, a realidade
do leitor. Enquanto, no término da leitura, o primeiro permanece invariável, o
segundo é modificado por ela. Não somos os mesmos —ou a comunidade não é a
mesma —após ter explorado o sentido de um texto e ter sido interpelado por esse.
2 - Todo texto tem uma reser\>a de sentido, que se revela na leitura. Po
rém a leitura não pode esgotar essa reserva, pois toda leitura está condicionada
pelo contexto do leitor, que lhe permite ‘descobrir’ ou ‘atualizar’ um sentido, mas
persistem outros que serão atualizados em futuros encontros. Esse processo é cha
mado por nós de “releitura”, porque os textos bíblicos, por sua própria natureza,
são lidos e relidos por cada geração. Assim que o texto se revela uma realidade
insondável, da qual, por mais que se o interprete e estude em profundidade, sem
pre restará água para beber desse poço.
3 - 0 que foi dito no ponto anterior se estende ao constatar que os textos são
polissêmicos. Isso quer dizer que abrigam uma multiplicidade de sentidos e reque
rem ferramentas para trazê-los à luz. Se isso vale para qualquer obra escrita - um
poema, uma novela - , no caso dos textos bíblicos, adquire uma dimensão particu-
26
A PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
27
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
um lado, o longo processo de produção que levou à obra que temos hoje, mas,
por outro lado, no âmbito da mensagem, afirmamos que o que interessa de um
texto é 0 que diz e não quem o diz. O autor material do texto apaga-se, e cresce o
autor semiótico, que é a figura virtual que subjaz a toda narração e que se observa
ao considerar a dimensão sincrônica do texto. Porém agora o que nos interessa é
assinalar que os textos bíblicos por sua natureza têm um “atrás” que revela sua
condição de obra composta ao longo de séculos e por diversas mãos. Costuma
-se dizer que há uma ‘arqueologia’ dos textos bíblicos no sentido de que se busca
reconstruir um hipotético texto original a partir dos restos literários que sobrevi
veram no texto atual. E um erro - hoje cada vez menos comum - considerar que o
sentido do texto surge de descrever e distinguir esses estágios preliminares. Quan
do se considera desse modo, distinguem-se textos “originais do autor” de textos
“agregados”, “tardios”, “glosas” etc., e se considera que os textos originais são
os que revelam a verdadeira mensagem, ao passo que os outros são secundários.
A perspectiva hermenêutica não aceita essa distinção e considera que estudar os
diferentes estratos permite compreender a história do texto, suas repetições e la
cunas e que isso contribui para a interpretação. Entretanto considera que os textos
chamados “secundários” são obra da redação final e são tão importantes quanto os
outros porque revelam o processo de expansão do texto, deixam em evidência a
teologia do relato final e, definitivamente, são os que dão o padrão literário a toda
a obra. O sentido não se encontrará em um texto fracionado, mas na compreensão
da totalidade da obra. Proeurar e permanecer nos supostos textos originais obscu
rece boa parte do potencial do texto e desvia o sentido da obra como totalidade.
A segunda dimensão é o “texto em si mesmo” como uma entidade acabada
e sujeita a uma estrutura literária. Essa dimensão foi explorada pela semiótica e
outras disciplinas da linguagem, que a desenvolveram para a literatura, que, como
é óbvio, não possui um “atrás” do texto nem uma arqueologia. Considera o texto
assim como ele é, sem perguntar por seus estágios anteriores, e busca descrever
as relações internas que levam a criar o sentido. Elá dois níveis nessa análise do
texto. Uma indaga as relações profundas e revela os valores que estão em jogo em
cada texto. Clarifica os atores e os eixos de sentido e descreve as diferentes forças
em luta —geralmente de pares em oposição. E útil se essas relações aparecem con
fusas ou contraditórias e, portanto, requerem ser explicadas. Um segundo nível é
a análise da superfície do texto; é o que chamamos de “análise literária”. Estuda,
descreve e avalia as relações presentes no texto, tais como os personagens, os
cenários, a evolução da trama, as palavras-chave, as figuras linguístieas. Quando
é pertinente, busca comparar o texto em questão com outros textos bíblicos ou
extrabíblicos no que chamamos de intertextualidade. A análise literária considera
cada detalhe do texto como um ator semiótico. Por exemplo, se um livro profético
começa com a informação da data de atuação do profeta, não se pergunta sobre
a veracidade desse dado, mas se assume como informação semiótica que oferece
sentido ao relato. Se o Cântico dos Cânticos é atribuído em 1.1a Salomão, não
interessa constatar se foi ele realmente o autor material, mas se pergunta: o que
28
A PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
significa que o livro diga que foi composto por Salomão? Ao ver que em Gn
12.10-20 e 20.1-18 são narradas duas histórias muito parecidas sobre Abraão e
Sara, a pergunta da semiótica é: qual é o sentido dessas duas histórias? A análise
do “atrás” revela-nos que cada história provém de fontes diferentes (a primeira
javista, a segunda eloísta), mas isso não é suficiente para explicar a presença de
ambas as narrativas, pois o narrador poderia ter omitido uma delas. Na análise
literária, observará que uma cena acontece no Egito enquanto a outra em Gerar, já
perto de Canaã; que do Egito no fim foram expulsos, enquanto em Gerar são aco
lhidos e lhes dão animais e dinheiro e lhes oferecem uma terra para viver. Esses e
outros detalhes ‘ampliarão’ o sentido dos textos e permitirão uma indagação que
levará a interpretar o porquê de incluir as duas narrativas.
Uma vez examinado o texto pela análise literária, importa passar à dimen
são seguinte. Chamamos “à frente do texto” a tarefa hermenêutica propriamente
dita. Essa se desenvolve como uma exploração do sentido do texto. Já mencio
namos que todo texto tem uma “reserva de sentido” a ser indagada pelo leitor ou
pela comunidade que lê. A situação do leitor é, de certo modo, privilegiada, por
que goza do que chamamos de triplo distanciamento. O primeiro distanciamento
é o do autor material do texto, que, ao produzir uma obra e dá-la por terminada,
“desprende-se” dela, e essa adquire autonomia em relação a ele. A busca do autor
histórico de um texto bíblico do Antigo Testamento não tem sentido, em primeiro
lugar, porque não contamos com ferramentas para reconstruir o passado em seus
detalhes; porém, mesmo quando em algum caso fosse possível estabelecer, não
teria nenhum valor no momento de interpretar o texto, pois pouco importa quem
construiu a obra, mas o que ela diz. Uma vez constituídas a mensagem e as rela
ções semânticas que a compõem, já não necessitam do autor material, até o ponto
em que se costuma dizer que, para efeitos hermenêuticos, o autor ‘morreu’. O
segundo distanciamento é o que corresponde ao interlocutor a quem esse texto foi
dirigido pela primeira vez. Acontece com o autor que, ao perder-se o contexto da
comunicação e desconhecer-se a situação particular desse interlocutor, a pergunta
por suas preocupações e interesses perdem todo sentido. A pergunta pelo que o
autor quis dizer e pelo que pode ter significado para os primeiros ouvintes ou lei
tores tem valor como parte do “atrás” do texto, como uma hipotética reconstrução
que colabora com um aspecto valioso e que deve ser levada em consideração,
mas que reconhecemos como limitada e que necessita ser superada na abordagem
hermenêutica.
O terceiro distanciamento tem a ver com o contexto inicial - que pode
ser social, psicológico ou cultural; esse exige algumas determinações. Também
o contexto inicial desaparece no texto, mas em certas ocasiões é substituído pelo
que chamamos de “contexto textual”. E pouco o que se pode dizer do contexto de
uma coleção de Provérbios, por exemplo. Porém, como ler um livro como Daniel,
cujo contexto textual é a corte do rei Nabucodonosor na Babilônia, mas a crítica
bíblica nos mostra, sem dúvida, que foi escrito durante as perseguições de Antío-
co IV Epífanes (meados do século II a.C.)? Em princípio, devemos nos perguntar
29
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
O que significa essa passagem contextuai do século II ao VI, qual é seu interes
se, por que foi escolhido como contexto textual. É preciso indagar o que estava
sucedendo em Jerusalém naquele momento (século II) que induzisse a escolher
para o relato um contexto diferente do próprio. Se a narrativa está situada em um
momento determinado, esse contexto tem valor semiótico independente de não
ser o contexto material da produção do texto. O mesmo vale para qualquer dado
sobre o tempo ou o lugar que seja informado no relato. Como dado oferecido pelo
relato é portador de sentido a totalidade da obra. Deve-se insistir em afirmar que
o esforço da crítica bíblica por descrever o contexto social, religioso, cultural em
que surgiu cada livro é uma contribuição de alto valor, que em princípio evita as
leituras literais e simplistas, mas, eomo já apontamos, o sentido não reside nessa
reconstrução, mas a hermenêutica se aproveita dela para ir mais além.
30
A PERSPECTI\'A HERMENÊUTICA
viver e interpretar sua vida atual. Ainda que tenha aparência de ser um registro
do passado - todo cânone é narrativa de acontecimentos do passado, inclusive as
orações como os salmos ou as reflexões dos sábios expressas em provérbios ou
em poemas espera-se que o texto feito cânone ilumine o presente e seja uma
palavra ‘atual’. E como palavra atual modifica o leitor e leva-o a modificar seu
presente e a história que vive. Assim o texto que nasceu de uma experiência vital
é devolvido à vida na releitura que muda a vida do leitor e o conduz a modificar
sua realidade pessoal, social e política. A releitura chega a seu ponto culminante
na proclamação da Palavra, quando os textos voltam a se confrontar com a vida e
a enriquecer a experiência histórica. Nesse sentido, sob o ponto de vista da comu
nidade que guarda uma escritura sagrada, esse texto é, ao mesmo tempo, eterno e
sempre contemporâneo.
4. O círculo hermenêutico
31
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
32
A PERSPECTI\’A HERMENÊUTICA
33
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
34
A PERSPECTIVA HERMENÊUTICA
BIBLIOGRAFIA
35
S eção II
O ANTIGO TESTAMENTO
OU A BÍBLIA HEBRAICA
2
o Antigo Testamento
ou a Bíblia Hebraica
39
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
40
o A ntigo T estamento ou a B íblia H ebraica
41
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
42
o A ntigo T estamento ou a BIblia H ebraica
43
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
para uso nas sinagogas, chamadas pelos nomes dos supostos tradutores Áquila,
Teodócio e Símaco. Essas versões gregas foram mais tarde abandonadas por de
suso da língua grega e apenas chegaram até nós por meio de fragmentos citados
em outras obras e pelo que sobreviveu da Hexapla de Orígenes.
4. O Pentateuco samaritano
5. As versões aramaicas
44
o A ntigo T estamento ou a B íblia H ebraica
6. As traduções ao latim
A igreja cristã do Ocidente adotou com rapidez o latim como língua cor
rente, enquanto nas igrejas do Oriente se manteve o grego e a Septuaginta era
seu texto de uso litúrgico. Não demorou muito para aparecer a tradução ao latim,
conhecida como “Vetus Latina” ou “Vetus ítala”. Dessa versão contamos apenas
com fragmentos breves, citações que aparecem nos Padres Latinos, em liturgias
da época e em textos de Orígenes. Essa tradução parece ter sido feita da Septua
ginta ou teve uma forte influência dela, pois coincide em muito com seu texto,
se comparada com o texto hebraico. Suas limitações levaram a que se pedisse
a Jerônimo uma tradução que a substituísse, e esse fez o texto conhecido como
“Vulgata latina”, que foi publicado entre os anos 390 e 405. O texto está acom
panhado de introduções e comentários - muitos acrescentados posteriormente à
morte de Jerônimo —,tomados de seus próprios escritos. Essa versão foi corrigida
várias vezes durante os anos seguintes à sua publicação. Sob o ponto de vista téc
nico, é a primeira tradução que busca ser ‘crítica’ e recorre a ferramentas técnicas
da época. Jerônimo, que trabalhou em Israel, consultou com assiduidade eruditos
judeus sobre questões idiomáticas e fez uma severa avaliação dos livros que de
viam compô-la, o que o levou a traduzir apenas os textos correspondentes à Bíblia
Hebraica. Só mais tarde foram incorporados os demais livros que formam a LXA
e que depois foram chamados de “deuterocanônicos” e “apócrifos”.
Já nos contextos da Reforma e Contrarreforma, o Concilio de Trento, da
Igreja Católica, declara-a texto oficial em sua sessão IV, de 8 de abril de 1546,
ao dizer: “Além disso, o mesmo sacrossanto Concilio, considerando que podia
vir não pouca utilidade à Igreja de Deus se de todas as edições latinas que fluem
dos sagrados livros se desse a conhecer qual será tida por autêntica, estabelece e
declara que essa mesma edição antiga e vulgata, que está aprovada pelo longo uso
de tantos séculos na própria igreja, seja tida como autêntica nas públicas lições,
disputas, pregações e exposições e que ninguém, sob qualquer pretexto, seja ou-
45
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
sado ou conjeture rejeitá-la”. Por outro lado, as igrejas protestantes, embora uti
lizassem e citassem a Vulgata, viam com suspeita essa tradução, em parte porque
era o texto que se identificava com a igreja medieval e em parte porque entendiam
que alguns dogmas eontroversos, próprios do catolicismo, eram construídos sobre
expressões presentes no texto latino. Na tradição protestante, a ênfase em fornecer
o texto bíblico nas línguas vernáculas fez com que logo a Vulgata deixasse de ser
utilizada em suas congregações e fosse substituída pelas diferentes traduções às
línguas europeias modernas.
7. A Bíblia em castelhano
8. As Escrituras canônicas
46
o A ntigo T estamento ou a B íblia H ebilaica
47
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
ANTIGO TESTAMENTO
BÍBLIA HEBRAICA IGREJAS CATÓLICO
PROTESTANTE
ORTODOXAS ROMANO
Torá Pentateuco Pentateuco Pentateuco
Gênesis Gênesis Gênesis Gênesis
Êxodo Êxodo Êxodo Êxodo
Levítico Levítico Levítico Levítico
Números Números Números Números
Deuteronômio Deuteronômio Deuteronômio Deuteronômio
48
o A ntigo T estamento ou a B íblia H ebraica
ANTIGO TESTAMENTO
b íb l ia h e b r a ic a IGREJAS CATÓLICO
PROTESTANTE
ORTODOXAS ROMANO
Profetas Profetas Profetas
Isaias Isaías Isaías
Jeremias Jeremias Jeremias
Lamentações Lamentações Lamentações
Baruque (inclui Carta Baruque (inclui Carta Ezequiel
de Jeremias) de Jeremias) Daniel
Ezequiel Ezequiel Oseias
Daniel (com Daniel (com Joel
acréscimos) acréscimos) Amós
Oseias Oseias Obadias
Joel Joel Jonas
Amós Amós Miqueias
Obadias Obadias Naum
Jonas Jonas Habacuque
Miqueias Miqueias Sofonias
Naum Naum Ageu
Habacuque Habacuque Zacarias
Sofonias Sofonias Malaquias
Ageu Ageu
Zacarias Zacarias
Malaquias Malaquias
Observações: 4 Macabeus não é canônico, porém as igrejas ortodoxas incluem-no em suas
edições como obra para a edificação da fé. A Oração de Manassés é canônica apenas para as igrejas
ortodoxas do Leste (Grega, Russa etc.), mas não para as pré-calcedonianas (Copta, Etíope, Siriana
etc.). O livro 1 Enoque é canônico só para a Igreja Ortodoxa Etíope, comunidade onde o livro 2
Esdras é chamado de “Apocalipse de Esdras”.
BIBLIOGRAFIA
49
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
LEVINE, Amy-Jill. The Misunderstood Jew. The Church and the Scandal of the
Jewish Jesus. São Francisco, 2006.
MESTRE, Gabriel. “Métodos y acercamientos exegéticos en la interpretación de
la Biblia”, in: LEVORATTI, A. et al. CBL. Estella, 2005. p. 45-69.
SIMIÁN YOFRE, Horacio (ed.). Metodologia del Antiguo Testamento. Salaman
ca, 2001.
STRACK, H. L.; STEMBERGER, Gunther. Introducción a la literatura targúmi-
ca y midráshica. Valença, 1988.
50
S eção III
O PENTATEUCO
3
Estrutura, formação
e m ensagem do Pentateuco
Cinco rolos que originaram cinco livros compõem a primeira seção do An
tigo Testamento, que na tradição judaica é chamada de “Torá” e na cristã de “Pen
tateuco”. Nela se narra desde a origem “dos céus e da terra” (Gn 1.1) até finalizar
com a morte de Moisés, momentos antes do povo atravessar o rio Jordão e ingres
sar na Terra Prometida (Dt 34). Como obra literária é, devido à sua extensão e seu
conteúdo, a mais complexa e também a mais debatida de toda a literatura bíblica,
até o ponto em que, desde meados do século XVIII, em boa parte as conclusões
que se tiravam para o conjunto dos livros bíblicos dependia da compreensão que
se tivesse da composição e da história de suas páginas. Nesses quase três séculos,
houve o esforço para descrever a origem, a evolução e a história da composição
do Pentateuco. Assumiu-se que descrever esse processo permitia compreender
melhor o sentido de sua mensagem, e portanto o esforço colocado nisso produ
ziu uma inumerável quantidade de trabalhos, a maioria de notável seriedade e
qualidade. Entretanto, em muitos casos, a pesquisa sobre a origem e o desenvol
vimento do texto transformou-se em uma meta em si mesma, e a investigação
do processo histórico de criação do texto foi confundida com a mensagem que
esse oferecia. A consequência imediata foi que a leitura crítica elaborada com as
ferramentas técnicas de investigação afastou-se da leitura teológica e pastoral que
se entendia como uma disciplina dominada pela pregação, pela sinagoga e pelo
templo. O âmbito religioso e o interesse teológico que formaram suas páginas
foram deixados de lado, e é imperioso resgatá-los para voltar a colocar a Escritura
em seu próprio contexto literário e social (cf. Fretheim, 1996, p. 28).
53
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1. Torá ou Pentateuco
O nome “Torá” deriva de uma raiz hebraica que significa ‘direção’, ‘ensi
nar’, ‘instruir’ e, por conseguinte, faz alusão à sua condição de manual de vida e
guia geral para o povo de Israel. Com esse nome é denominado, entre outros, em
Lv 7.37, Nm 5.30, Dt 1.5, 4.8, Jr 2.8 e Zc 7.12. A partir do pós-exílio, esse nome
foi entendido como ‘lei’ e assim aparece em numerosos textos, inclusive do Novo
Testamento. Entre muitas outras passagens encontra-se como “lei de Deus” em
Ne 10.28-29; como “livro de Moisés” em Ez 6.18, Ne 13.1 e Mc 12.26; como “a
Lei” em Js 8.34, Ez 10.13, 2Cr 14.4 e Lc 10.26; como o “livro da Lei de Moisés”
em Js 8.31, 23.6, 2Rs 14.6 e Ne 8.1. Foi o teólogo cristão Orígenes quem, na
primeira metade do século III, em seu comentário ao Evangelho de João, chamou
pela primeira vez essa seção de “Pentateuco”, que em grego significa ‘cinco rolos’
ou ‘cinco estojos’, em alusão às caixas em que os rolos estavam guardados.
Orígenes era oriundo de Alexandria, lugar onde havia sido realizada a tra
dução que chamamos de Septuaginta e onde imperava a língua grega. E provável
que a comunidade judaica que guardava a Septuaginta tivesse cunhado anterior
mente 0 nome Pentateuco para denominar a Torá e que Orígenes o tivesse tirado
desse contexto cultural. Desconhecemos se a mudança foi intencional, mas é uma
pena que essa última expressão não reproduza a riqueza do nome hebraico e ape
nas consista na descrição de seu aspecto exterior.
54
E strutura, formação e mensagem do P entateuco
2. Autor e data
55
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
pode afirmar - não sem questionamentos de variada forma - que existem textos
que podem ter sido escritos no século X, ao passo que outros seriam do período
pós-exílieo (final do século VI e começo do V a.C.) ou talvez alguns ainda mais
recentes, os quais se procura localizar em seus contextos social e religioso (cf. Li
vingston, \9?,1, passim). Aos primeiros poderiam corresponder trechos como Gn
2.4-25 ou o chamado “Cântico de Moisés” (Ex 15.1-21); entre os segundos podem
ser consideradas as coleções de leis e provavelmente os discursos de Moisés em
Deuteronômio. Porém, se dirigirmos nossa pergunta ao texto final com sua estru
tura e conteúdo consolidados, ao menos em sua estrutura geral, tal como o cânone
o assume, a pergunta receberá como resposta uma data muito diferente, ainda que
também com um grau de incerteza.
A tradução grega Septuaginta dá-nos uma pista. A julgar pelo que foi dito
na Carta de Aristeias, durante o reinado de Ptolomeu II Filadelfo [285-247 a.C.]
em Alexandria teria sido encomendada e concluída a tradução da Torá ao grego.
Isso nos indica a data mais tardia para sua confecção, mas, ao ir em busca da pos
sível data mais antiga para estabelecer o outro extremo do período, é difíeil deter
miná-la. Sabemos que no ano de 247 já estava composto, mas não quanto tempo
antes fora redigido. O texto do Pentateuco samaritano - o cânone samaritano,
veja-se o item seguinte - não nos ajuda, porque, embora seja antigo, a pesquisa
atual considera que foi editado não antes da segunda metade do século II a.C. (cf.
Trebolle Barrera, 1939, p. 317). E carecemos de outros testemunhos categóricos.
Assim como as coisas estão, a margem de datas vai desde os autores que
situam o Pentateuco no final do cativeiro na Babilônia (final do século VI a.C.)
até os mais cautelosos que preferem caminhar sobre solo firme e indicam com o
texto da Carta de Aristeias que “já no ano 247 a.C.” o texto que hoje conhecemos
como Pentateuco estava completo.
3. Lugar no cânone
56
E strutura , formação e mensagem do P entateuco
57
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
va com a criação do homem e um jardim para que fosse cultivado e cuidado por
ele. Nessa oeasião, somente no final do processo de criação da natureza é criada
a mulher como companheira do homem. A partir da observação dessas caracte
rísticas começou-se a buscar uma explicação literária para essas formas, a fim de
compreender como o texto chegou a ser construído dessa maneira e ter acesso a
uma interpretação mais profunda de sua mensagem. O caminho foi muito longo
e exigiu um enorme esforço de criatividade e honestidade teológica, já que em
muitas ocasiões a pesquisa dos textos sincera e livre de preconceitos produzia
conclusões que desafiavam e até contradiziam a fé simples e direta dos crentes
ou a compreensão que, durante séculos, havia sido oferecida como norma pelas
igrejas cristãs.
São várias as principais formas de abordagem do texto do Pentateuco que
se desenvolveram e que têm - com modificações e adaptações - vigência hoje.
Aqui expomos as principais. Uma apresentação um pouco mais detalhada pode
ser vista nas obras citadas na bibliografia de Félix Garcia López.
58
E strutura , formação e mensagem do P entateuco
59
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
gêneros literários. Esses últimos são abstrações e não existem realmente, mas as
formas são os textos concretos que, quando se repetem e suas características co
muns podem ser identificadas, formam o que chamamos de gênero literário. Sua
proposta é que os textos surgem de momentos particulares da experiência social
e religiosa e são modelados por esse contexto. Por isso sua preocupação era iden
tificar o contexto em que um texto em particular fora produzido (por exemplo o
culto, a guerra, a reunião familiar, a oração pessoal ou comunitária, o templo, uma
festa em especial etc.). A partir dessa preocupação, entende que se pode ter aces
so ao estágio anterior dos textos, à tradição oral que estaria por trás das formas
literárias. Essa escola dá muita importância às lendas, que entende que formam a
maior parte dos relatos de Gênesis e são a matéria-prima para o desenvolvimen
to posterior dos textos maiores. Gunkel nunca pensou que sua compreensão dos
textos devia substituir a teoria das fontes de Wellhausen, mas a concebeu como
complementar. Entendeu que era um estágio mais avançado no estudo dos textos,
que devia ser acrescentado aos já apresentados por seus antecessores.
Eíma consequência dessa postura é a proposta de Gerhard von Rad de que
a origem do Pentateuco (ele o considera Hexateuco) devia ser procurada nos cre
dos, em especial no que está presente em Dt 26.5b-9. Apartir das diferentes partes
do credo se teriam desenvolvido as formas literárias, assim como as considera
Gunkel, e somente então os documentos maiores (javista, eloísta), para concluir
depois de um longo e complexo processo com a formação do que se chamou de
“Hexateuco” (isto é, seis livros). Para von Rad, os relatos do Pentateuco devem
continuar no livro de Josué, a fim de incorporar a história da conquista às narra
tivas patriarcais. Para ele, a conquista deveria fazer parte do texto central e, por
essa razão, estende até Josué a unidade maior do Pentateuco, o que leva a sugerir
a existência de um Hexateuco (cf von Rad, p. 11-80). A nosso critério, a proposta
de von Rad é criativa e complexa, porém padece de um alto grau de precarie
dade no momento de procurar fundamentos textuais. Sem querer rejeitá-la por
completo, desejamos observar que sofre o mesmo problema de muita pesquisa
histórico-critica: apresenta como fatos provados, nos quais se baseia toda a argu
mentação, 0 que, na verdade, não são mais do que reconstruções hipotéticas de
difícil comprovação.
Já na segunda metade do século XX, pode-se afirmar que a teoria doeumen-
tal era seriamente questionada, e desses questionamentos surgem as tentativas de
dar outro tipo de resposta à pergunta pela origem e pela estrutura do Pentateuco.
Mas é necessário entender em que sentido foi questionada para compreender as
novas propostas que foram oferecidas. Por um lado, mostrou-se que a ênfase na
identificação das fontes preliminares ao texto atual (Y, E, S e D), tanto literárias
como do estágio de transmissão oral, era um zelo historicista que não oferecia re
sultados positivos pela precariedade de seus fundamentos. Com o avanço da pes
quisa tomava-se cada vez mais evidente que os textos tinham muito mais teologia
do que história, no sentido moderno da palavra. Quer dizer que estavam mais
interessados em dar respostas a perguntas sobre a vida, o universo, a justiça, a
60
E strutura, formação e mensagem do P entateuco
violência etc. do que em narrar os fatos com rigor científico. Desse modo, podia
-se entender que as repetições ou a soma de duas narrativas sobre a criação não
se contradiziam porque não tentavam dar uma versão exata dos fatos, mas falar
sobre seu sentido. Cada vez mais se compreendia que a teoria documental, que
tanta luz havia trazido sobre o processo de redação do Pentateuco, era pouco fe
cunda no momento de dar elementos para a compreensão de seu sentido e de sua
mensagem.
A segunda crítica tem como base a questão hermenêutica. Consiste em
apontar que tentar extrair a compreensão do mundo expressa em cada uma das
fontes preliminares ao texto amai não somente foi constatado como uma tarefa
árdua e incerta, mas que, mesmo chegando a elas, não se entendia que valor po
diam ter para a compreensão da teologia do Pentateuco. Se a obra foi construída
em determinado momento da história e encontrou sua redação final em uma forma
sem dúvida significativa para o redator e para a comunidade de fé desde então, é
esse texto que nos é oferecido para a tarefa interpretativa e ao qual devemos diri
gir nossas perguntas teológicas, e não a documentos preliminares cuja reconstru
ção resultava em textos por demais fragmentários e muitas vezes de identificação
duvidosa.
As origens Gn 1-11
As histórias dos patriarcas Gn 12-50
A saída do Egito Êx 1-14
A teofania no Sinai Êx 19-24 e 32-34
A marcha pelo deserto Êx 16-18 eN m 1.11-20.13
A conquista da Transjordânia Nm 20.14-36.15
61
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
agruparam-se por temas e assim criaram grupos de textos. Para o caso da história
de Abraão, as narrativas foram incorporadas unindo-as com frases muito simples
como “depois dessas coisas sucedeu que...”, assim que um texto em especial pode
ser lido mesmo sem necessidade de referência ao anterior ou posterior. As histó
rias de Jacó e Isaque exigem uma leitura mais completa porque são consideradas
obras acabadas, que são entendidas não por suas partes, mas em sua totalidade.
Nesses casos, as unidades menores - caso existam ~ foram muito bem trabalhadas
e redigidas de novo em um todo indivisível. Rendtorff conclui que o último está
gio foi unir essas coleções em uma única história patriarcal para constituir o bloco
de tradições que hoje encontramos em nossas Bíblias. Desse modo desvincula a
história patriarcal da história das origens (Gn 1-11) e das histórias posteriores a
partir do Êxodo (o deserto, o Sinai etc.), blocos que, por sua vez, têm sua própria
história de redação e mensagem.
De acordo com essa teoria, não há um autor javista nem uma escola sa
cerdotal responsável pelas narrativas ou por dar uma interpretação teológica às
tradições antigas. Sobretudo se reconhecem textos de influência sacerdotal (Gn
1.1-2.3; 9), mas que são entendidos como tratados teológicos intercalados e não
como textos que estruturam a obra. O elemento unificador das narrativas (com
exceção de Gn 1-11, que é um bloco independente, colocado como preâmbulo)
foram as promessas de terra e prosperidade no contexto de uma nítida confiança
na fidelidade de Javé à sua própria palavra. Essa tarefa teria sido levada a cabo
pelos círculos de autores deuteronomistas, os quais não só seriam responsáveis
por Deuteronômio e pelos livros históricos até Reis, mas também pela estrutura
ção de todo 0 Pentateuco a partir dos diferentes blocos de tradições (cf Lohfink,
p. 28-30).
Posteriormente, Blum modifica a proposta de seu mestre e fala de duas
composições literárias que se estendem a partir de Gn 12, uma vinculada à tradi
ção deuteronomista e outra à sacerdotal, em que a primeira é anterior e teria sido
elaborada no começo da restauração (aprox. 539-515 a.C.), enquanto a segunda
seria de uma época já avançada do período persa (século V a.C.). Postula depois
que ambas teriam sido unidas em um único relato e seriam responsáveis pela for
ma atual do Pentateuco.
62
E strutura, formação e mensagem do P entateuco
ao estilo do que foi Heródoto para a cultura grega, que produziu o relato que vai
de Gênesis a Números como uma introdução à história da conquista de Canaã até
a destruição de Jerusalém e do templo. Essa história é entendida como escrito an
terior ao Pentateuco. Em consequência, considera a formação do Pentateuco pos
terior à redação da história deuteronomista (Js-2 Rs) e que foi escrito em função
dessa história. Esse Javista historiador teria concedido sua narração baseado em
documentos, tradições orais, relatos breves e teria preenchido os espaços vazios
da história com sua própria imaginação. Considera os textos sacerdotais como
subordinados aos javistas e rejeita a existência de uma coleção de textos eloístas.
Assim, van Seters constrói sua própria sequência D-Y-S como a ordem mais pro
vável da formação do Pentateuco (cf. van Seters, passim).
Antes de avançar, é necessário especificar que os modelos até aqui expos
tos são todos devedores da compreensão que privilegia a história e a formação
do texto antes de sua mensagem. Embora tenha ocorrido uma mudança desde as
primeiras propostas de tendência histórica até as posturas dos que buscam no tex
to suas próprias marcas e características, tanto a teoria documental como as dos
fragmentos e aquela que considera o Javista como o historiador por trás da obra
não vão muito além de propor a reconstrução do passado como porta de entrada
para o texto atual. Neles a pergunta que os move é; Como se formou o Penta
teuco? Por conseguinte, a história do texto é considerada a chave para chegar à
compreensão de sua redação atual. Uma avaliação dessas propostas mostra que,
embora as posturas desse tipo perdessem força, ainda não surgiram outras alterna
tivas com suficiente solidez para gestar um novo campo de debate. Até esse ponto
é assim que, em nossos dias, em que poucos sustentariam a teoria documental ori
ginal, qualquer pessoa que queira estudar o texto do Pentateuco com um mínimo
de criticidade precisa conhecer seus postulados e incorporar em seu vocabulário
as principais palavras e conceitos que foram gerados ou não poderá compreender
a literatura básica que hoje mesmo é produzida sobre ele.
63
Introdução hf.rmenênutica ao A ntigo T estamento
para então ver como se reflete também - porém de uma forma particular - no livro
de Gênesis.
É notável a quantidade de textos que anunciam saídas ou chegadas como
parte do itinerário nos livros de Êxodo até Números. Esta é a lista para esses
livros: Êx 12.37; 14.2; 15.22,23,27; 16.1; 17.1; 19.1-2; Nm 10.11,33; 11.3,35;
12.16; 20.1,22; 21.4,10-13,18-20; 22.1. A seguir, o relato de Deuteronômio volta
a citar, no primeiro discurso de Moisés (1.6-4.40), o itinerário, mesmo que com
algumas diferenças, mas o importante é comprovar que essa outra tradição textual
também organizou o relato sobre a base dos cenários: Dt 1.2,19; 2.1,8,13,24,36;
3.1,29. Os V. 4.44-49 são por demais eloquentes em demonstrar a importância
que o texto confere ao lugar geográfico onde ocorrem os fatos. Isso não deve ser
entendido como mero zelo detalhista, mas sim como uma marca teológica que
busca consolidar com dados geográficos a realidade do fato que vai ser narrado.
Da sequência de etapas marcadas em Êxodo-Números a mais chamativa e extensa
é a do Sinai, à qual se chega em Êx 19.1-2 e se sai depois de Nm 10.11.
Para o caso do livro de Gênesis, a sequência de cenários se dá sem utilizar
de maneira consistente a fórmula própria do itinerário (“saíram de tal lugar e
chegaram a tal outro”), porém é notório que a condição de errantes, migrantes e
o constante traslado de um lugar a outro é parte essencial de sua narrativa e con
tribui para estruturá-lo. Nesse caso, combinam-se os traslados geográficos com
um critério de caráter cronológico que o caracteriza. Em Gênesis, estabelece-se
uma periodização da história, que divide o texto em etapas temporais marcadas
com a fórmula “esta é a história de...” ou “estas são as gerações de...”, cuja ex
pressão hebraica é ‘’elle toledot, que se traduz, segundo o caso, por uma daquelas
expressões. Mais adiante, vamos nos ocupar minuciosamente com essa estrutura
ao apresentar o livro de Gênesis.
O seguinte esquema permite visualizar os diversos cenários que estruturam
o Pentateuco (cf. Croatto, 1982, p. 202):
Gn 46.6-Ex
Texto Gn 1-11 Gn 12.1-46.5 Êx 16-18
15
Quantidade de caps. 11 34 20 3
Agrupados 68
Vamos analisar esse esquema. O relato das origens (Gn 1-11) não tem um
lugar geográfico determinado, mas se localiza “no Oriente” (Gn 2.8). Sucede-o
64
E strutura, formação e mensagem do P entateuco
O que foi observado até aqui nos permite especificar os aspectos desta
cáveis da teologia do Pentateuco. Sob o ponto de vista teológico, o Pentateuco
contribuiu para o que poderíamos chamar de primeira teologia narrativa da tradi
ção bíblica. Nela, o pensamento não se expressa em discursos abstratos, mas em
relatos que exigem ser interpretados e que levam o leitor ao interior da mensagem
65
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
e envolvem-no inevitavelmente. Por sua forma literária, mais do que uma men
sagem que transmite, encontramos uma exposição de histórias nas quais quem se
aproxima delas é levado a mergulhar em busca da mensagem. A forma narrativa
de expor a teologia exige do leitor que se envolva e coloque sua própria sensibi
lidade para discernir a mensagem, já que nela não há cláusulas rígidas nem afir
mações taxativas tampouco modelos claros a imitar. O que nos é apresentado são
relatos que sugerem e expõem uma experiência de vida, a fim de que, lendo-os,
nos confrontemos com eles. Sem dúvida, uma análise pormenorizada - que não
corresponde a esta introdução - permitirá aprofundar esses conceitos e inclusive
revelará outros omitidos aqui. Porém, antes de fazer uma exposição, é necessário
destacar que ler em perspectiva hermenêutica implica os seguintes três elementos:
1) A teologia do Pentateuco é única e não a soma dos temas teológicos
presentes em cada livro que o compõe.
2) Aceitar a existência de documentos preliminares (tradições javistas,
eloístas, sacerdotais etc.) não é obstáculo para que o nível do relato atual, no qual
essas tradições foram fundidas, seja o único passível de nossa investigação.
3) Os postulados teológicos do Pentateuco, em sua qualidade de textos
fúndacionais, permeiam a totalidade do Antigo Testamento, inclusive daquelas
passagens que podem ter sido escritas antes dele e que tiveram que ser reelabora-
das em função dessa nova realidade teológica.
Vamos destacar quatro temas teológicos que percorrem o Pentateuco e
projetam-se ao longo de toda a literatura do Antigo Testamento:
1 ~ O primeiro tema é o das promessas. As promessas são duas: constituir-
-se em um povo e possuir uma terra. No âmbito do Pentateuco, nenhuma delas é
cumprida plenamente desde o momento em que o relato termina antes de entrar
em Canaã e conquistar a terra. Até mesmo o caráter de povo é limitado ao não
possuir território, templo nem uma monarquia organizada. Esse fato narrativo
causou muita confusão entre os intérpretes e motivou que se postulasse a existên
cia de um Hexateuco, a fim de incorporar a conquista da terra ao núcleo central
da fé de Israel e do cristianismo. Porém essa proposta mostra que a mensagem
do Pentateuco não foi compreendida. Se o relato finalizasse com a posse da terra,
a experiência histórica das gerações sucessivas não teria podido identificar sua
situação social com o texto. A história de Israel a partir da queda de Samaria e
depois de Jerusalém é a de um povo que habita um território, mas não o possui,
cultiva-o, mas não lhe é dado desfrutar do produto de seu trabalho, e que dis
põe de suas próprias autoridades religiosas, mas não tem liberdade política nem
econômica para decidir sobre seu destino. Inclusive as fronteiras estão longe do
prometido, pois a Judá pós-exílica na qual o império persa lhe permite viver ocupa
apenas uma pequena porção do território que chegou a ser domínio das tribos nos
tempos de Salomão, apesar dos exageros geográficos próprios das narrativas do
livro de Reis (cf IRs 4.25). Ao ficar no horizonte a expectativa do cumprimento
da promessa da terra, restabelecem-se a fé e a ação de cada nova geração que se
sente oprimida em seu próprio território.
66
E strutura, formação e mensagem do P entateuco
67
Introdução hermenénutica ao A ntioo T estamento
Apesar de que logo vamos considerar cada livro em separado, achamos que
é necessário adiantar aqui a questão de que o Pentateuco se apresenta dividido
em cinco livros. Em princípio, parece que a divisão corresponde à comodidade
de manipular rolos menores do que o necessário para incluir todo o texto em um
único pergaminho, o qual, por outro lado, seria materialmente impossível. Po
rém, mesmo assim, cabe a pergunta por que cinco e não quatro ou seis livros ou
rolos. Talvez nunca possamos responder essa pergunta, mas sim observar que a
divisão em cinco livros deixa Levítico no centro e destaca-o do resto. Levítico é
o livro em que com total clareza são expostas as questões jurídicas que tangem a
constituição formal da fé de Israel (sacrifícios, oferendas, festas, dietas etc.), e é
provável que essa seja a razão por que a obra foi dividida em cinco partes.
68
E strutura , formação e mensagem do P entateuco
BIBLIOGRAFIA
69
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
70
4
Gênesis
71
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
72
G énesis
1.1. O mito
73
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1.2. A lenda
A lenda diferencia-se do conto por esse ser ficção e não almejar valor his
tórico algum, enquanto a lenda remete a um fato ou personagem histórico que
reclama ser real.
No relato de Gênesis, encontramos lendas a partir do capítulo 12. Quando
entramos na história de Abraão e Sara, vemos que há um herói (Abraão), que as
coordenadas geográficas e temporais são razoáveis e que cada cena busca dar sen
tido a uma afirmação da história de Israel. Por exemplo, as promessas da terra e de
uma descendência próspera (12.1-2; 15 etc.), a circuncisão (17.1-14), a rejeição
dos sacrifícios humanos (22.1-19). Ao seguir de perto as narrativas sobre Abraão,
vemos que, por eertos detalhes como a razoabilidade de seu percurso da Meso-
potâmia até o Egito ou sua busca por descendência, é compreensível que por trás
de toda a roupagem lendária e popular se encontre um núeleo histórico. É muito
provável que uma pessoa chamada Abraão tenha existido de verdade e concluído
esse périplo que deu origem à lenda. Por outro lado, é claro que reconhecer isso
74
G énesis
1.3. A genealogia
2. As fontes de Gênesis
75
I n TRODU(;'ÃO HERMENÊNUTICA AO A n TIGO T e STAMENTO
76
G ênesis
N A R R A T IV A G E N E A L O G IA
P R E Â M B U L O A T O D O O P E N T A T E U C O (1 .1 -2 .3 )
77
Introdução hermenênutica aq A nttgo T estamento
de Isaque”, mas desde o capítulo 21 já se narram fatos relacionados a ele (seu nas
cimento, seu eventual sacrifício, seu casamento com Rebeca); então concluímos
que, quando se anuncia “a história de. . o que ocorre é que vai ser contado o fato
que 0 texto considera central para sua vida. Nesse caso são narradas as dificulda
des de Rebeca para conceber e depois o nascimento de Jacó e Esaú. Para conhecer
toda a sua história, é necessário voltar à história de seu pai e de seu avô Terá. Isso
acontece assim em todos os casos.
Constatar o anterior leva-nos a destacar outro efeito literário. Quando em
2.4 se anuncia a “história dos céus e da terra”, essa expressão refere-se tanto a
1.1-2.3 como à narrativa que vem depois (2.4-4.26). Por isso podemos afirmar que
0 primeiro relato termina em 2.3 e que 2.4a é o elo entre ambos, e não o final do
primeiro. Em consequência, 1.1-2.3 não deve ser considerado um período da his
tória, mas atua como preâmbulo de todo o Gênesis e também de todo o Pentateu-
co. Também não é correto falar de dois relatos da criação, como se costuma fazer
(1.1-2.4a e 2.4b-26); sem dúvida foi assim, mas nesse momento foram unidos de
modo que ambos têm um papel diferente no novo relato, pois, ao mesmo tempo
em que se complementam, conferem sentido à estrutura literária, assim como a
descrevemos (cf Birch, p. 46-52; Andinach, p. 368).
2 —A segunda observação é que uma hermenêutica correta pede que os
períodos sejam considerados unidades literárias. Isso, em muitos casos, ajuda a
desvendar o sentido que o texto quer dar a uma cena em especial. Chama a aten
ção o texto de 2.4-4.26. Tomado como unidade, vemos que os relatos da trans
gressão de Adão e Eva e do assassinato de Abel por seu irmão Caim estão dentro
do mesmo período, e portanto ambas as transgressões vinculam-se entre si. Em
consequência, é difícil aceitar que a situação da humanidade muda depois que
Adão e Eva desobedecem a Deus.
A estrutura literária leva-nos mais exatamente a compreender que a des
mesura de Adão e Eva acompanha a tendência a assassinar o próximo de Caim e
que ambos os fatos apresentam-se como condutas dissonantes, que revelam a in-
elinação a violar as leis que Deus estabeleceu para a vida das pessoas. Lido assim,
parece ser mais uma descrição da condição humana - certamente uma descrição
muito realista —do que um relato que busca estabelecer uma separação entre um
período prévio de pureza e harmonia e um posterior aos fatos de impureza e dor.
3 - 0 sexto período incorpora o sétimo, assim como o oitavo incorpora o
nono. As histórias de Ismael e de Esaú são breves e reduzem-se a poucos dados
genealógicos que são anexados às histórias extensas de Terá (Abraão) e Isaque.
Foram incorporadas para testemunhar essas tradições e para atingir o número de
dez períodos, uma ciífa com valor simbólico que se repete em outros textos, como
no Decálogo e no Salmo 15.
4 - A história de Jacó inclui a extensa narrativa sobre a sorte de seu fi
lho José no Egito (37.2-50.26), uma lenda ampliada, como já mencionamos (cf.
Longacre, passim). Porém, sob o ponto de vista literário, essa novela inscreve-se
dentro do período da história de Jacó e é devedora dela. Assim entende o texto, e
78
G énesis
79
Introdução hermenènutica ao A ntigo TESTA^^ENTO
80
G ênesis
a) A história de Abraão
81
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
82
G ênesis
para si mulheres hititas (26.34) e cananeias (28.6-9) e que de sua pessoa procedeu
Edom (36.8), um povo com o qual Israel manteve uma inimizade centenária e
contra o qual são dedicadas profecias muito duras nos livros proféticos (Am 1.11
12; Joel 3.19; Is 36.5-6; Ez 36.5; todo o livro de Obadias). Incorporar a história de
Esaú (36.1-37,1) na de Isaque se faz para estabelecer com clareza seu caráter de
edomita e, em consequência, sua condição de se ter afastado da bênção de Deus.
Com o episódio em que Jacó engana Isaque e apropria-se da bênção que corres
pondia a Esaú (cap. 27) dá-se legitimidade à continuação da sucessão de Isaque
por intermédio do segundo filho em detrimento do direito de primogenitura que
pertencia ao mais velho. Essa fraqueza na biografia de Jacó é compensada no
relato com dois episódios que o mostram em uma relação especial com Deus. O
primeiro é 28.10-22, em que Deus aparece em um sonho no qual promete a Jacó a
terra na qual descansa nesse momento e que, por meio dele, serão benditas todas
as demais nações. Ambas as promessas imitam aquelas que foram feitas a Abraão
e transformam-no em um novo patriarca. O segundo texto é 32.23-32; esse sela a
autoridade de Jacó ao narrar, em um enigmático episódio, seu encontro e sua luta
com Deus. Após pelejar com ele, pede e recebe a bênção de Deus, e ocorre a troca
de seu nome de Jacó para Israel. O relato finaliza com a afirmação de que Jacó
viu Deus ‘face a face’ e sobreviveu, o que concede uma auréola particular à sua
pessoa, pois se entendia que vê-lo ocasionava a morte.
Para concluir, vemos que as diferentes partes do relato de Gênesis são ar
ticuladas harmoniosamente. A função do livro foi passar da criação do cenário
à evolução da humanidade para delinear um povo eleito entre todos os outros.
Segue uma linha sucessória que começa com Noé e continua com Abraão, Isaque
e Jacó. O povo acaba constituindo-se com os doze filhos de Jacó, que serão os fun
dadores de cada uma das tribos. Gênesis finaliza com a morte de Jacó momentos
antes de mudar a sorte dos israelitas no Egito.
4. Temas teológicos
O relato das origens (caps. 1-11) tem uma forte conotação libertadora. À
margem das discussões sobre a data de cada fonte ou de sua redação, o que sur
ge da leitura é que quem confirmou esses textos como Escritura que deviam ser
preservados fê-lo em um contexto onde a maior preocupação era a situação de
opressão social e religiosa. O período persa (539-334 a.C.) e depois o helenístico
(333-64 a.C.) foram tempos de estabilidade social, mas não de paz. A estabilidade
era oportunizada pela dominação estrangeira e pelo controle social exercido pelos
governantes locais, designados pelo poder central. Por isso subjaz no relato da
criação uma teologia que se eontrapõe ao discurso hegemônico do império. Isso
se observa, por exemplo, na história da torre de Babel, com a qual se denuncia
83
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
84
G ênesis
5. A teologia de Gênesis
Como livro que abre o Pentateuco e toda a Bíblia, Gênesis cria conceitos
teológicos que depois serão assumidos como normais nos demais livros. A reserva
teológiea é imensa, e nela há três earacterísticas que Gênesis lega ao pensamento
bíblieo e que queremos destaear.
85
I ntrodução hermenénutica ao A ntigo T estamento
pela violência desatada na criação. É verdade que Deus recomenda construir uma
arca para preservar casais de todos os animais com os quais depois o solo voltará
a ser povoado, mas a descrição do dilúvio não deixa de fazer alusão à possibi
lidade concreta de que tudo seja eliminado alguma vez. Talvez por deixar essa
sensação é que o texto é tão claro ao afirmar que não voltará a destruir “todo ser
vivente”, porém enfeita essa afirmação quando permite vislumbrar - talvez sem
querer - que será assim “enquanto durar a terra” (8.21-22). Não é de estranhar
que a literatura apocalíptica, que floresceu em círculos judaicos e depois cristãos
durante os séculos III a.C. até VI da era atual, projete motivos criacionais em sua
descrição do final dos tempos. Isso pode ser percebido em 2 Esdras, 1 Enoque e
no Apocalipse de João.
Se nas narrativas dos patriarcas Deus é descrito como aquele que acompa
nha, nos textos criacionais de Gn 1-11 é descrito como aquele que compartilha
sua criação com os seres humanos. A cosmogonia de Gênesis supõe uma relação
entre o Criador, o cosmos e os seres humanos. Longe estão os textos bíblieos de
descrever uma harmonia celestial. Desde o começo manifesta-se a falta de acordo
entre a vontade do Deus Criador e os anseios e as expectativas dos seres huma
nos, o que eulmina no estabelecimento de dores de parto para a mulher, trabalhos
extenuantes para o homem e uma terra que deixa de ser qualificada como “boa”
no capítulo 1 para ser maldita. O conflito entre o Criador e a própria natureza
amplia-se quando figuras gigantes {nefilim, 6.4), que fazem parte da criação, al
teram a ordem e unem-se a mulheres para encher a terra de violência. A decisão
foi eliminar a natureza por meio da inundação da superfície terrestre. Entretanto
o relato mostra a vontade de Deus de preservar a criação ao proteger Noé e sua
família. O jogo teológico consiste em mostrar que as transgressões teriam mere
cido o abandono do projeto de vida por parte de Deus, mas o relato mostra, uma
e outra vez, o Criador proeurando que a vida continue e prospere. Mais acima já
mencionamos as bênçãos concedidas após cada transgressão, e agora devemos
acrescentar que Gênesis deixa em evidência a vontade de Deus de estabelecer
que tem no ser humano um companheiro de caminho no cenário da história. No
relato criacional, tudo é feito por Deus, mas imediatamente designa o casal huma
no para que administre o que foi eriado. O fato de encarregar o homem —e depois
podemos deduzir a mulher - de dar um nome a cada coisa (2.19) é um ato pelo
qual lhes transfere soberania sobre o nomeado, mas também - e talvez o mais
importante sob o ponto de vista hermenêutico —cria um vínculo com os seres e
as coisas. Colocar nome é uma maneira de adquirir poder sobre o nomeado, mas
também de sentir que nasceu uma relação inalterável. Ao criar esse vínculo entre
as pessoas e a criação, o Criador estabelece também um vínculo entre ele próprio
e os seres humanos.
86
G ênesis
O relato dos capítulos 1-11 mostra um ser humano que, desde o primeiro
dia, está em conflito com quem o cerca. É um ser humano real, com capacidade
tanto de amar como de invejar seus irmãos; tem talento para projetar cidades
(4.17) e também para destruí-las nas guerras (10.8-12); cria música (4.21) e ma
nipula os metais com os que farão instrumentos musicais, objetos que serão sa
grados e armas para as lutas (4.22); domina as palavras para dar nome às coisas,
mas também as utiliza para mentir (4.9). Gênesis está longe de mostrar um ser
humano criado perfeito e harmonioso, que, num segundo momento, decaiu à ca
tegoria de um ser baixo e afastado de Deus. Os personagens centrais de cada cena
comportam-se como seres normais, que têm capacidade de ser fiéis e solidários,
mas também de ser cruéis e mesquinhos: Abraão mente para preservar sua vida
ao apresentar sua mulher Sara como se fosse sua irmã (12.10-13); Sara tem inveja
de sua criada e manda expulsá-la ao deserto com seu filho Ismael, condenando-os
a uma morte certa (21.8-10); Isaque e Rebeca tiveram filhos gêmeos, e cada um
preferiu um filho e menosprezou o outro (25.8; 27.1-17); José, que é de origem
humilde, chega a ser um funcionário que rouba em favor da coroa egípcia e o
responsável pela aplicação de uma política econômica que empobrece a maioria
do povo e enriquece ainda mais o faraó e sua corte (47.13-26). Esse realismo
radical em relação ao ser humano permeará o resto das Escrituras e fará com que
reis israelitas e profetas sejam apresentados em seu esplendor e sua desonra. Na
Bíblia, as pessoas são descritas como seres humanos frágeis, sujeitos aos vaivéns
da vida e da história.
BIBLIOGRAFIA
87
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
88
5
Exodo
89
Introdução hermenênutica ao Antigo T estamento
1. Autor e data
Durante boa parte do século XIX até meados do século XX, a corrente
principal da arqueologia dedicada à Bíblia teve grande confiança na proximidade
entre aquilo que os textos narram e os fatos históricos assim como sucederam.
Dentro desse esquema, os fatos narrados em nosso livro devem ter ocorrido em
tomo do século Xlll a.C., época na qual, sob o ponto de vista cultural, finalizava
a Idade do Bronze para começar a do Ferro. Costuma-se postular como data o
período entre os anos 1280-1230 a.C., quando os faraós Ramsés, Seti e Memeptá
governavam o Egito. Desse último dispomos de sua esteia - bloco de pedra en
talhada em que se gravava a história de batalhas e eventos importantes - , na qual
encontramos a descrição de sua expedição a Canaã e a menção de Israel mais
antiga fora da Bíblia.
90
Ê xodo
3. Os habiru e os hebreus
91
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
92
Ê xodo
O B J E Ç Ã O D E M O IS É S R ESPO STA D E D EU S
3 .1 -1 0 Revelação de Deus e chamamento de Moisés
3 .1 1 -1 2 Não tenho autoridade Eu estarei contigo
3 .1 3 -1 5 Qual é 0 seu nome? Eu sou 0 que sou
3 .1 6 -2 2 Projeto de libertação e posse da terra
4 .1 -9 Não crerão Darei sinais
4 .1 0 -1 2 Nunca fui eloquente Eu te ensinarei o que hás de falar
4 .1 3 -1 7 Envia aquele que hás de enviar Arão será quem falará por ti
93
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
6.1. A opressão
A obra começa com um prólogo (1.1-7), que funciona como elo para vin
cular o que vem com a narrativa de Gênesis. Os vínculos são marcados por vários
fatos, como a menção de que “vieram ao Egito”, a separação de José da lista de
seus irmãos —o que pressupõe que o leitor conhece a história anterior —e a insi
nuação sobre o cumprimento da promessa dada a Abraão de que se tomaria pai
de um povo numeroso. O fato de mencionar que eram setenta os descendentes de
Jacó também é um vínculo com a narrativa que a precede. Ao mesmo tempo, esse
prólogo cumpre o papel de abrir uma nova etapa ao destacar que todos morreram
e que os israelitas passaram de setenta pessoas a uma multidão. Chama a atenção
ao citar os filhos de Jacó que foram ao Egito com ele, esses sejam enumerados
em quatro gmpos, que correspondem a suas mães: primeiro são mencionados os
seis filhos de Lia, depois um de Raquel - visto que José não viajou com Jacó,
pois já estava no Egito a seguir os dois de Bila e finalmente os dois de Zilpa.
Fazê-lo dessa maneira antecipa o papel central que as mulheres terão na história
de Moisés. Quando o faraó tenta acabar com todos os meninos hebreus, serão as
mulheres que expressarão sua oposição ao rei.
Após o fracasso das primeiras ações repressivas, o faraó buscará aper
feiçoar sua estratégia para exterminar os israelitas. Quando não pode deter as
gestações através do enfraquecimento dos homens, tentará matar os meninos no
momento de nascer e dará instruções específicas às parteiras para exterminar os
meninos que nascessem no exato momento do nascimento. Chama a atenção que
as parteiras desafiam a ordem do homem mais poderoso da terra e mentem a ele
sobre a razão pela qual não podem executar a ordem. Elas iniciam o processo de
libertação ao rebelar-se contra uma ordem injusta e cruel. Não o fazem opondo
ao faraó um poder igual ou mais forte - isso teria sido impossível e talvez até sui
cida ” , mas através da astúcia de argumentar que as mulheres hebreias são mais
94
Ê xodo
A cena seguinte mostra um faraó que já não tolera mais fracassos e recorre
a uma estratégia final. A ordem agora é dada a todo e qualquer egípcio e consiste
em jogar no rio Nilo todo menino hebreu. Desde a estratégia inicial de endu
recer as condições de trabalho dos pais até a instrução de jogar os filhos no rio
percorreu-se um caminho que vai do medo ao estrangeiro e do desejo de deter sua
expansão até o desejo de genocídio. A narrativa mostra uma profunda realidade do
espírito humano ao tomar evidente a contradição de ver como a cmeldade não tem
limites quando se trata de defender as condições sociais que permitem dominar e
tirar proveito do trabalho do próximo ao mesmo tempo em que mostra a solidarie
dade de outros que arriscam sua vida para defender a alheia.
Naquele momento, casar-se e ter filhos era uma equação indiscutida. Por
isso chama a atenção que a angústia criada no leitor pela definitiva condenação à
morte de todo menino hebreu em 1.22 é seguida pelo anúncio incrível de que um
casal procura casar. O gênero literário continua sendo a lenda, mas nesse caso se
tomam mais nítidas suas características e a ênfase ao colocar no centro o motivo
do herói e deixar que o resto dos personagens gire ao redor dele com um papel
secundário. Ler a passagem nessa perspectiva permite ir a seu tema central e evita
perder-se em questões que não correspondera ao interesse do relato. Desse modo,
as aparentes ingenuidades da narrativa explicam-se pelo gênero a que pertencem.
Que a mãe deixe o menino no lugar onde a filha do faraó costuma tomar banho;
que sua irmã possa falar com a princesa e sugerir-lhe ações; que essa aceite o me
nino sem demora e procure uma mulher hebreia para criá-lo; e finalmente que seja
apresentada falando em hebraico, a língua dos escravos, são alguns dos detalhes
que mostram até que ponto a narrativa não nos pretende convencer da historicida
de dos fatos, mas sua intenção é dizer algo essencial sobre o personagem central.
95
Introdução hermenënutica ao A ntic.o T estamento
O relato das pragas tem uma estrutura literária significativa. Sua interpreta
ção exige que sejam vistas em conjunto e em sua dinâmica interna (cf Andinach,
2006, p. 204-208). Para visualizá-la, é necessário começar em 7.8 e chegar até
13.16. Vejamos o seguinte esquema para 7.8-13.16, onde anotamos também o
contexto literário e o principal executor para cada caso:
96
ÊXODO
ao mesmo tempo em que se diz que, no primeiro caso, os magos egípcios puderam
reproduzir o fenômeno, mas no último sua atuação já ficou fora da narrativa.
E importante observar os diversos recursos literários que estão em jogo
para fortalecer as imagens. Existem atos simbólicos como estender a mão, bater
com a vara, elevar os braços ao céu, jogar cinzas etc. Seu sentido consiste em
que, através de gestos ou objetos, abre-se a porta para um fenômeno que se efe
tua na história, mas completa seu significado em uma dimensão mais profunda
da realidade. Cada abertura a uma praga é conseguida a partir de determinado
gesto, o qual dá aos fatos um clima cerimonioso e quase ritual e faz com que as
pragas sejam concebidas como atos de Deus e não como fenômenos próprios da
natureza. Isso se reforça com a construção de sentido impresso na narrativa. Pare
ce importante que foram escolhidos fenômenos que podem ser confundidos com
situações naturais, porém foram dimensionados de maneira cósmica. Cada um
deles é uma forma superlativa e impensável de um fenômeno natural.
O equilíbrio natural que impede que as rãs invadam a terra ou que as mos
cas se multipliquem até o infinito fica suprimido, e a terra sofre o ataque de for
ças desatadas. Até mesmo a morte dos primogênitos tem essa característica de
fenômeno natural levado a um ponto superlativo. E óbvio que, em qualquer casa,
podia morrer um jovem primogênito por causas normais para a época, mas que to
dos morram na mesma noite é impensável e, portanto, aponta em direção ao trans
cendente e inexplicável. Que os magos egípcios, em vez de reverter as pragas, as
reproduzam (7.11,22; 8.2) só faz sentido se for lido como uma radicalização da
selvageria das forças desatadas. Não interessa ao relato que as pragas sejam deti
das - o que seria desejável se se tratasse do plano histórico, a fim de aliviar a dor
- , mas mostrar que eles também podem criar o mesmo caos. O aumento da força
de cada praga permite que possam fazer isso apenas nas duas primeiras, já que
depois serão superados pelos próprios fatos.
Como um golpe que antecede o que significará a derrota final, a praga das
trevas simboliza o triunfo do Deus dos escravos sobre o deus solar egípcio e com
ele prepara-se o relato para a décima praga, que não é da mesma natureza que
0 resto. Ali se concentrarão e resolverão elementos que eram embrionários nas
primeiras. A tensão acumulada por três sucessivas séries, em que a última leva a
narrativa a um instante iminente e catastrófico, não resulta em um final apressa
do, mas conduz a um momento que será sabiamente demorado. Por essa razão,
a décima praga está enquadrada por textos litúrgicos que lhe dão uma dimensão
transcendente e a posicionam mais de frente ao futuro do que ao presente. A mor
te dos primogênitos marcará o ponto máximo de demonstração da soberania de
Deus sobre a vida e a morte. Aquilo que está em jogo é o nascimento de um povo
que abandonará a escravidão para encarar a vida em liberdade.
97
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamento
A seção seguinte tem seu similar em Nm 10-22, onde Israel volta a enfren
tar o deserto depois da estadia ao pé do monte Sinai. Para o caso de Êx 12-18, são
sete etapas nas quais sucedem fatos de todo tipo, desde a perseguição egípcia até
milagres naturais. O narrador utiliza a estrutura chamada “de itinerário” para es
miuçar diversos acontecimentos e situações em particular. Assim, cada etapa está
bem delimitada: começa com uma expressão do tipo “partiram de tal lugar...”,
a qual, em algumas ocasiões, vai acompanhada de “e acamparam em tal outro
lugar”, mas esse esquema não é consistente. Em várias ocasiões, a informação é
protelada ou está combinada com outros dados.
No caminho do deserto vão acontecer várias situações que prepararão o
tempo de estadia no Sinai. Os fatos descritos não são uma mera narrativa de even
tos casuais, mas respondem a uma cuidadosa construção literária que senta as
bases teológicas para o que haverá de vir. A medida que se avança no itinerário
vão se acumulando experiências que levarão à recepção da Lei. Podemos obser
var que a unidade começa com indicações de ordem litúrgica (12.43-13.16), que
apresentam eventos em que a ação de Deus vai proteger a vida do povo. Assim
acontece com o milagre do mar (14.15-31), com o envio de codomizes e maná
para a alimentação (16.13-36) e com a provisão milagrosa de água no deserto
(17.1-7). Isso vai entrelaçado com mais indicações litúrgicas e jurídicas, como a
instituição do sábado em 16.22-30 e a construção de um altar em 17.15, após o
povo ter vencido a batalha contra os amalequitas.
O capítulo 15 merece uma reflexão, pois é uma das peças mais antigas
entre os textos dessa narrativa, apesar de não faltar quem o considere tardio. Con
tém o chamado “Cântico de Moisés” (15.1-18) e a “Antífona de Miriã e das mu
lheres” (15.20). Ambos poderiam ser considerados um único cântico “de Moisés
e Miriã”, em especial ao levar em consideração que 15.21 é repetição de 15.1.
Entretanto, a divisão em prosa entre ambos os textos (15.19-20) sugere que não
se tentou uni-los, mas sim diferenciar um do outro. Do mesmo modo que Jz 4 e
5, onde um relato em prosa é cantado logo depois de um poema, aqui o capítulo
15 apresenta em poesia o que foi narrado no capítulo que o antecede (cf. Garcia
López, 2000, p. 169).
O poema ou os poemas apresentam a derrota dos egípcios e o milagre da
abertura do mar, não com a intenção de acrescentar informação ao que já foi nar
rado, mas para oferecer uma amostra da gratidão de Israel diante da experiência
de libertação e proteção de Deus. No texto. Deus é o único responsável pelo ato
de libertação enquanto Israel é mencionado de forma marginal (v. 19) e Moisés
está ausente do texto. Afirmar a veracidade dessa vitória seria a finalidade última
98
Ê xodo
99
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
100
ÊXODO
que certas leis que se contrapõem sejam negligenciadas e exijam ser modificadas;
são os casos da proibição de matar (20.13) e da condenação à morte de 21.12-17,
22.17 e outras. A força que tem essa estrutura de ‘lei fundamental’ que abre as ‘leis
particulares’ mostra-se no fato de que o mesmo esquema será repetido em Deute-
ronômio, onde o Decálogo (Dt 5.6-21) encabeça outra vez as leis pormenorizadas.
As instruções para a construção do Tabernáculo e seus móveis e a narrativa
da construção são dois relatos espelhados. Embora não sejam uma cópia exata, a
maioria dos textos da primeira parte (24-31) repete-se na segunda (35-40), com a
única diferença de trocar o verbo “farás” por “fez”. Todo o esforço do texto está
colocado em demonstrar que a construção não se afastou nem um pouco do que
foi indicado por Deus a Moisés. Deve-se levar em consideração que um texto não
tem importância apenas por aquilo que diz, mas também pelo lugar no qual ele o
diz e pelas condições literárias que o cercam. Sob o ponto de vista literário, que
remos destacar que entre esses dois textos há uma mudança dramática de situação,
que é crucial para a sua leitura. Destacamos quatro elementos a serem levados em
consideração no momento de avaliar o sentido desses textos.
1 - Surpreende que a construção seja concluída depois da narrativa da ido
latria. Em 25-31, as instruções são dadas no contexto de um povo que teve mur
múrios e queixas que podem ser considerados normais ao enfrentar um futuro des
conhecido em um ambiente hostil como é o deserto. Não havia acontecido nada
grave que pusesse em dúvida o vínculo entre Deus e Israel. Porém a violação do
segundo mandamento ao construir um ídolo mostra a incompreensão do povo em
relação ao projeto de libertação de Deus. Devido a essa situação, podemos dizer
que o Israel posterior ao bezerro de ouro não é o mesmo de antes desses fatos; em
certa medida, é um Israel mais real e humano.
2 —0 tempo e o espaço são diferentes em cada texto. Enquanto as instru
ções são dadas em quarenta dias, podemos assumir que a construção leva o tempo
real que os artesãos precisam para realizar seu trabalho. Assim, as instruções são
dadas no padrão dos tempos de Deus, mas a construção é realizada de acordo com
os tempos humanos. Também os espaços são diferentes: as instruções são dadas
na solidão de um lugar santo, no meio de uma nuvem e no contexto de uma apa
rição de Deus. Ao contrário, a construção será feita no centro do acampamento,
onde a tenda estará rodeada pelo povo.
3 - Os personagens mudam. Deus dialoga com Moisés, que é apresentado
como uma pessoa fiel e eomprometida com o processo de libertação e de cuja
vida conhecemos dezenas de detalhes. Porém o Tabernáculo será construído por
Bezalel e Aoliabe, de quem sabemos apenas que são excelentes artesãos, que não
são levitas e que Deus os escolheu para que conduzam um grupo de operários de
cujas vidas também não sabemos nada.
4 - A descrição do Tabernáculo é ordenada de acordo com o grau de santi
dade das coisas: descreve-se, em primeiro lugar, o mais santo (a arca) e se avança
para outros móveis, depois a tenda para finalizar com o mais externo, como o
portão da entrada. Ao narrar a construção, segue-se um caminho diferente, pois
101
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
102
E xodo
9. Teologia do Êxodo
Não é aqui o lugar para expor a teologia do Êxodo, o que seria redundante
e extenso. Entretanto queremos mencionar dois elementos que são contribuições
específicas desse livro para a teologia geral do Pentateuco e do Antigo Testamento.
103
Introdução hermenénutica ao A ntíoo T estamento
legitimador das estruturas sociais e em apoio a quem detinha o poder, nesse caso
o Deus de Israel manifesta-se a favor dos fracos e oprimidos e opõe-se com fir
meza ao plano dos opressores. Essa decisão de Deus será a base para a prédiea dos
profetas, que vão utilizá-la mais adiante para criticar as próprias classes dirigentes
de Israel, e será a medida para boa parte da literatura sapiencial que contrastará a
vontade de Deus com a realidade social e espiritual do povo. Sob o ponto de vista
teológico, também estamos diante de uma novidade ao constatar que o Deus de
Israel coloca-se a seu lado e oferece um plano de libertação, ao mesmo tempo em
que anima seu povo a levá-lo adiante. Se em Gênesis Deus havia sido revelado
como 0 que acompanha o povo e sua liderança, em Êxodo mostra-se como o Deus
que age, que toma partido e age consequentemente. Não é uma divindade que dita
leis do alto nem que envia o povo e seus líderes sem se comprometer com a sorte
dos que o invocaram.
Em 3.14, revela-se a identidade de Deus. Muito foi escrito sobre esse ver
sículo e, sem dúvida, continuará sendo escrito (cf. Houtman, I, p. 94-100; Childs,
p. 60-70; Andinach, p. 82-85). E importante para uma perspectiva hermenêutica
não perder de vista o contexto literário no qual se apresenta essa passagem. Cons
tatar que o nome de Deus (Javé) já é conhecido desde os relatos de Gênesis (cf.
2.1; 4.26) desacomoda quem entende essa passagem como revelação do nome de
Deus. Por outro lado, a tradução clássica “Eu sou o que sou” não diz nada com
preensível e mais parece uma frase enigmática e obscura do que uma verdadeira
revelação. Como tradução segue mais o grego da LXX do que o texto hebraico,
que também possui certa complexidade. Porém tudo parece indicar que o texto
não está dando o nome - que já era conhecido -, mas a identidade de Deus, aquilo
que o caracteriza e distingue do resto dos deuses. Uma leitura cuidadosa mostra
-nos que a chave deve ser buscada no próprio texto, e propomos ler 3.14 junto
com o versículo que o segue, onde o coneeito é ampliado e se diz que “meu nome
etemamente” é “o Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão... Isaque...
e Jacó”. O versículo 15 esclarece o 14 ao especificar que a identidade de Deus se
revela em quem esteve junto aos pais em seus caminhos e desafios. O que Moisés
perguntou não é o nome, mas a identidade, e portanto a resposta é que o próprio
do Senhor é a sua presença, sua companhia, o permanente acompanhamento de
seu povo. A resposta de Deus a Moisés em 3.14 é mais fiel se traduzida como: “Eu
sou 0 que estou”.
104
Ê xodo
BIBLIOGRAFIA
105
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
OLMO LETE, Gregorio del. La vocación del líder en el Antiguo Israel. Sala
manca, 1973.
PIXLEY, Jorge. Exodo, una lectura evangélica y popular. México, 1983.
SARNA, Nahum. Exodus. The Traditional Hebrew Text with the New Jewish
Publication Society Translation. Filadélfia, 1991.
VAN SETERS, John. Prologue to History. The Yahwist as Historian in Genesis.
Louisville, 1992.
___________ . The Life o f Moses. The Yahwist as Historian in Exodus-Numbers.
Louisville, 1994. [Também Kämpen, 1994].
106
6
Levítico
Diversos fatores contribuíram para que Levítico fosse uma obra marginali
zada da leitura e das reflexões teológicas. Destacamos três, e todas elas mostram
que, quando se erra na abordagem hermenêutica, levantam-se barreiras que de
pois pareeem naturais à leitura e não precisam ser desembaraçadas. A primeira,
mãe das outras duas, é ter isolado o livro de Levítico do contexto literário do Pen-
tateuco. Ler esse livro de maneira separada transforma-o em uma simples coleção
de leis e prescrições; muitas delas já não nos competem nem são praticadas, o que
faz com que seja identifieado como um livro antiquado. A segunda é consequência
direta da primeira e consiste na equivocada oposição que normalmente se estabe
lece entre rito e fé, do que se deduz que o Levítico se dedica aos ritos e menciona
pouco a fé. Isso se constrói sobre uma certa compreensão da teologia do Antigo
Testamento que assume que a fé de Israel era dinâmica, criativa, aberta às mudan
ças da sociedade e da história e, em sentido oposto, o templo, o culto e seus ritos,
uma esfera estática e ultrapassada, que se opunha ao pleno desenvolvimento da
vontade de Deus. Nessa compreensão se aloja o conceito muito discutível de que
os profetas expressavam o aspecto dinâmico e desafiante da religião israelita en
quanto os sacerdotes exprimiam o tom conservador e portanto propenso ao estáti
co (cf. Douglas, 1999, p. 1). Em terceiro lugar, a teologia cristã, que entende que
o sacrifício de Cristo substitui todo sacrifício e que sua prédica supera todo ritual,
relegou as páginas de Levítico ao setor do Antigo Testamento menos interessante
e que contém palavras consideradas superadas por essa nova situação teológica.
Essa última conclusão perde de vista que o valor de Levítico não consiste em
transmitir leis de validade universal - mesmo que tenham sido consideradas assim
no momento de sua canonização mas no sentido que elas tiveram para Israel
no momento em que foram promulgadas e de que maneira contribuíram para or-
107
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
ganizar a vida social e religiosa durante séculos. Para o cristão, é importante ver
qual é o lugar que essas páginas ocupam na revelação que Deus faz de si mesmo
por meio da Escritura.
Não foi pouco com o que contribuiu para esses desvios o nome que o cris
tianismo adotou para o livro. Em hebraico, segue-se a tradição de intitular com a
ou as primeiras palavras do documento, e assim faz a Bíblia Hebraica, que o de
nomina vaikrá, que significa “e chamou”, palavra que continua com “... o Senhor
a Moisés... e lhe disse...” (1.1). Essa densidade teológica de afirmar que o que
segue é revelação direta de Deus não se refletiu na tradução grega da Septuaginta,
que o denominou leviticon (no sentido de “pertencente aos levitas”), nome que
depois seria adotado pela Vulgata latina e que deu lugar ao nome “Levítico”, que
utilizamos em espanhol e nas línguas modernas. Porém se percebe que os levitas
estão ausentes no texto - são mencionados apenas em uma passagem e de maneira
eventual (25.32-33) - e que boa parte do texto estabelece leis e prescrições para a
vida cotidiana de todos os israelitas.
108
L evítico
109
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
A seção anterior é seguida por uma seção narrativa. O caráter narrativo pa
rece ser exigido pelo fato de que nela não se expõem leis nem prescrições, mas se
busca estabelecer o modo de consagrar os sacerdotes e de advertir sobre o perigo
de desviar-se do indicado. Para isso se narra a consagração de Arão e seus quatro
filhos como sacerdotes autorizados para executar os sacrifícios recém-prescritos.
Esse ritual será modelo para a consagração dos sucessivos sumos sacerdotes e
seus ajudantes. Tudo o que foi efetuado nos capítulos 8 e 9 está em ordem com o
indicado por Deus a Moisés e certificado pela expressão “é o que o Senhor orde
nara” ou similar. Ao concluir (9.22-24), Moisés e Arão saem da tenda e abençoam
o povo, o que produz uma grande alegria e gestos de adoração entre as pessoas.
Entretanto, o texto não menciona o que acontece quando os sacerdotes falham em
suas responsabilidades, e em um episódio pouco claro, conta-se que dois filhos
de Arão oferecem um “incenso estranho” (cf. Êx 30.9), que não estava de acordo
com 0 estabelecido. O resultado é a morte imediata de ambos os filhos e a indi
cação de que o luto por eles será feito pelo povo em geral, porém é proibido que
seja observado pelos outros dois irmãos, também consagrados sacerdotes. Talvez
a indicação que vem a seguir no relato - abster-se de beber álcool antes de entrar
no santuário (10.8-11) ~ possa orientar sobre a falta cometida por Nadabe e Abiú,
porém o texto não nos dá outras pistas sobre o que realmente aconteceu. Sob o
ponto de vista hermenêutico, a morte desses dois primeiros sacerdotes é um in
dicativo da seriedade do ofício e da santidade dos elementos que lhes é facultado
usar. Menciona que, em cada objeto, cada palavra, cada gesto, está em jogo a vida
de quem é responsável por sua execução.
110
L evítico
111
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
112
L evítico
aos filhos de Noé, e em textos proféticos como Ez 16.8; 22.10 e em Os 2.9, entre
outros. Em todos os casos, é uma forma elíptica de mencionar relações sexuais
que se consideram ilegítimas. O capítulo 18 tem uma estrutura similar ao capítulo
20 ao começar e finalizar com uma exortação e incluir no centro as proibições de
caráter sexual e a de sacrifícios de crianças a Moloque. Ambos os capítulos mar
cam 0 19, no qual são expostas leis que fazem lembrar o Decálogo, mesmo que
nesse easo estejam apresentadas de maneira desordenada. Nele é apresentada a
proibição da adoração aos ídolos, não roubar nem mentir, prescreve-se não guar
dar rancor nem cometer injustiças no tribunal e indica-se a regra que deve servir
de critério: amar o próximo como a si mesmo, que mais tarde, nos evangelhos,
Jesus assumirá como um dos dois principais mandamentos de sua tradição judai
ca (Mt 22.39; Mc 12.31; Lc 10.27). Ensinam-se respeitar os anciãos, não comer
as três primeiras colheitas de frutos novos - pois são considerados impuros - e
rejeitar o recurso a feiticeiros e necromantes. Renovam-se a proibição de comer
sangue, a exigência de observar o sábado e respeitar o forasteiro. Lido em conjun
to, o capítulo 19 é uma coleção de normas éticas fundamentais que regulam a vida
pessoal e social da comunidade.
A partir do capítulo 22, o texto concentra-se em questões mais rituais,
como as comidas sagradas (cap. 22), as festas anuais (23), a chama e os pães que
devem estar sempre presentes na Tenda da Congregação (24), para finalizar com
o regime de cuidado da terra e os anos sabáticos para seu descanso. O jubileu que
deve ser celebrado a cada cinquenta anos permitia que qualquer um recuperasse a
propriedade da terra familiar caso tivesse sido vendida; dessa maneira, garantiam
-se a continuidade da família e a preservação do patrimônio herdado dos pais (25).
Dada a situação do mundo - antigo e atual -, é emocionante constatar a consciên
cia que já naqueles tempos se tinha de que a terra não devia ser passível de ser
vendida porque toda ela pertence a Deus, e portanto os frutos que oferece não
podem ser considerados propriedade de ninguém em particular, mas pertencem a
toda a comunidade (25.23); o que Deus dá é dado a todos sem distinção alguma. O
capítulo final (26) é uma lista de bênçãos e maldições, encerrada com uma longa
exortação para ouvir a palavra de Deus e colocá-la em ação, sob o risco de cair
em desgraça e perder tudo. E difícil não perceber nessas palavras ecos do que será
a história deuteronomista, que culminará no desastre da queda de Jerusalém e na
destruição do templo.
O capítulo final não deve ser encarado como alguns comentários costumam
fazer, minimizando-o e chamando-o de “apêndice”. O fato de que começa com
a típica fórmula “disse o Senhor a Moisés” - mesmo sabendo que pode ter sido
acrescentada posteriormente - indica que lhe foi dado o mesmo valor do que às
prescrições mencionadas antes. Nessa ocasião, tem a ver com o valor monetá
rio de cada oferenda, de modo que tanto uma propriedade, uma pessoa ou um
13
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Levítico é o livro que apresenta com maior clareza a si mesmo como pala
vra de Deus. Já mencionamos a repetição 36 vezes da frase “disse o Senhor a ..
quase todas dirigidas a Moisés, e em cinco ocasiões também a Arão. Sob o ponto
de vista hermenêutico, quer expressar o momento culminante da relação entre
Deus e seu povo, que, ao concluir a Tenda da Congregação, onde irá comunicar
-se com as pessoas, entrega essas palavras a Moisés como continuação das Já
dadas no topo do monte Sinai. Agora há um lugar que lhe é próprio e onde Deus
habita, e a partir desse lugar entrega essas leis.
114
L evítico
115
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
alcançar o perdão dos pecados. Enquanto que com a saída do Egito Deus livrou
Israel do pecado dos outros - dos egípcios personificados na figura de seu faraó
com Levítico fornece o meio para alcançar o perdão de seus próprios pecados
(cf. Birch, p. 136).
BIBLIOGRAFIA
116
7
Números
117
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
118
___________________________________________________________________________________________N úmeros
prova já dez vezes... verá a terra” (14.22-23). É a ingratidão que deve ser erradi
cada de Israel para que o povo seja capaz de valorizar a terra que lhe é oferecida.
A seção começa com os censos da população e dos levitas (caps. 1-4), aos
quais voltaremos mais adiante. Em seguida, há dois capítulos dedicados a leis e
à descrição dos nazireus (cap. 6), personagens pouco frequentes, com exceção
de Sansão (Jz 13-16) e talvez de Samuel (ISm 1.11). O fato de que seja talvez
a única vez em que se apontam as características dos nazireus em todo o Antigo
Testamento e sua escassa menção nas narrativas (como exceção c f Am 2.11-12)
levam a supor que foi um movimento presente ao longo da história de Israel, cujos
membros exerciam uma liderança baseada em seu carisma, porém não chegaram
a institucionalizar-se nem a exercer um poder formal sobre a comunidade (cf De
Vaux, p. 588-589). De fato, há indícios de que, como movimento religioso, chega
ao tempo do Novo Testamento, em que provavelmente João Batista participou
desse grupo, e descobrimos que o apóstolo Paulo e outros judeus de seu tempo
fazem votos que se assemelham aos dos nazireus (At 18.18; 21.23).
Depois seguem os capítulos 7-8, nos quais se volta a Êx 40, quando Moisés
inaugura a Tenda da Congregação. Agora se conta que cada tribo fez uma ofe
renda a Deus, que foi destinada aos levitas. Essa narrativa é muito detalhada e, a
partir de 7.10 até o versículo 83, são registradas as doze oferendas que os chefes
de cada tribo entregaram, uma por dia. Essas estão descritas uma por uma, e todas
são iguais. Ao finalizar o relato, é feito o resumo de tudo o que foi oferendado (v.
84-88). Cabe a pergunta pela necessidade de repetir doze vezes a mesma relação;
em nosso entendimento, devemos procurar a resposta no fato de garantir a legi
timidade de cada tribo de ocupar o lugar que lhe havia sido designado no acam
pamento e na ordem da marcha (cap. 2). Com esse relato fica claro que todas têm
direitos e que reconheceram a Tenda da Congregação como o lugar onde o Deus
que os lidera se expressa e comunica por intermédio de Moisés.
Em 10.11 termina a estadia no Sinai. Os israelitas haviam chegado ali no
terceiro mês após a saída do Egito (Êx 19.1) e agora partem no dia 20 do segun
do mês do segundo ano: permaneceram ali quase dois anos completos, e esse
período mereceu que lhe fosse dedicado um terço de todo o Pentateuco (veja-se
a introdução a “O Pentateuco”, Seção III). O que é apresentado nesses capítulos
até a narrativa do segundo censo (cap. 26) é uma sucessão de elementos em que
se expõem situações, a maioria delas negativas, de rebeldia e disputa entre o povo
e Moisés. As queixas do povo multiplicam-se até produzir a ira de Deus. Lamen
tam contra Moisés em 11.1-6; 14.1,39-45; 16.1-35; 20.1-11; poderíam ser lem
brados mais alguns episódios que repetem os lamentos do povo e a reclamação
diante de quem os liderara até aquele momento. Destaque para o capítulo 12, em
que se fala das queixas de Arão e Miriã contra Moisés, irmão de ambos, devido à
sua esposa estrangeira. A cena é obscura, mas Deus se coloca ao lado de Moisés
e castiga de maneira exemplar Miriã, sem que se mencione um castigo a Arão.
Esses textos de lamentação estão misturados com o relato da viagem de um grupo
seleto de israelitas a Canaã; com atos litúrgicos (os incensários - 17.1-5; 19.1-10);
119
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
com descrições das funções dos sacerdotes, que por momentos repetem instruções
de Lv 6-7; e com leis que repetem de maneira abreviada ou prática (19.11-22) as
normas de pureza e impureza já estabelecidas em Levítico.
É significativo que sejam narradas as mortes de Miriã (20.1) e Arão (20.22
29). A primeira de maneira sucinta e sem oferecer nenhum comentário. Se recor
darmos o episódio do capítulo 12, onde apenas ela é castigada com lepra, porém
recebe o apoio do povo que espera a sua cura para continuar a marcha, é possível
imaginar que haveria certa apreensão dos líderes por sua pessoa e que isso se re
fletiu na indiferença com a qual é narrado seu falecimento. Em marcante diferen
ça, a morte de Arão ocorre no contexto de uma cerimônia de transferência de sua
liderança sobre os sacerdotes a seu filho Eleazar. E sua rebeldia que o impede de
ingressar na terra prometida, mesmo que de maneira curiosa não se faça referên
cia ao episódio do bezerro de ouro (Êx 32), mas ao das águas de Meribá (20.1-13),
talvez porque seja mais próximo narrativamente ou porque participa de uma fonte
diferente. Há uma simbologia no fato de que a morte ocorre no topo de um monte,
um lugar considerado privilegiado para o encontro com a divindade. O relato não
diz, mas se pode aceitar que Arão foi sepultado ali. O ato no topo de um monte e o
mês de lamentação que o povo ofereceu por sua morte mostram que em Arão está
a dupla característica de reconhecer que ele teve seu lado humano, com suas faltas
e rebeliões, e ao mesmo tempo sua entrega ao plano de Deus, nesse caso como
aquele que oficiava os ritos e sacrifícios no âmbito da Tenda da Congregação, que
permitiam que o povo se reconciliasse com Deus.
Em 22.1, os israelitas chegam às campinas de Moabe, onde permanecerão
até o final do Pentateuco. Como em outros textos em que um estrangeiro reconhe
ce o Deus de Israel (Melquisedeque em Gn 14.17-24; os marinheiros em Jonas
1.14; também Rute 1.16 etc.), aqui a seção encerra com a história do profeta
Balaão (22-24), que vem das margens do rio Eufrates e que, apesar de no começo
maldizer Israel, termina por descobrir a grandeza de seu Deus e o bendiz, para
desgosto de quem o havia contratado contra os israelitas. Mais adiante, voltare
mos a esse episódio.
Esta seção participa das dificuldades para organizar seu conteúdo, que já
meneionamos, da mesma maneira que de diversos gêneros literários. Encontra
mos censos e listas, itinerário, narrativas, textos litúrgicos e jurídicos etc. Come
ça com um segundo censo, que é mais breve do que o primeiro, porém segue a
mesma estrutura de diferenciar entre as tribos regulares e a dos levitas. Entretanto
uma diferença substancial com aquele é que, nesse caso, é feito no horizonte da
distribuição da terra. Explicitamente diz: “A estes se repartirá a terra em herança”
(26.53). E uma segunda diferença destaca que, com exceção de Calebe e Josué,
nenhum dos recenseados naquela ocasião estivera no Egito (26.64).
120
_____________________________________________________________________ _____________________ N ümeros
121
I ntrodução hermenènutica ao A ntioo T estamento
122
N úmeros
1. N o a c a m p a m e n to (2 .1 -3 4 )
norte
sul
2 . E m m a r c h a (1 0 .1 1 -2 8 )
G érson
DA E F R A IM Coate RUBEN JU D A
Merari
ASER . . MANASSÉS . (levando o SIMEÃO . ISSACAR
* (levando o
NAFTALI BENJAMIM santuário) GADE ZEBULOM
tabernáculo)
123
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Sob o ponto de vista hermenêutico, essa história com tom didático procura
mostrar que um profeta estrangeiro, a quem se paga para profetizar contra Israel,
teme a Deus e termina por abençoá-lo. E um relato enigmático em muitos senti
dos, pois não menciona Moisés nem Arão; o povo de Israel parece alheio a toda a
narrativa, e as próprias figuras de Balaão e do rei Balaque de Moabe apresentam
-se desvinculadas de tudo o que foi dito em Números. Em relação às fontes, é um
texto que combina as tradições j avistas e eloístas e no qual o redator sacerdotal
esteve ausente, com exceção da introdução em 22.1 (cf. Noth, p. 171; Budd, p.
256). Existem coisas chamativas, como por exemplo as quatro profecias de Ba
laão (23.7-10; 18-24; 24.3-9; 15-24), que estão escritas em poesia hebraica com
traços arcaicos, que denotam corresponder a poemas anteriores ao Pentateuco;
inclusive alguns autores consideram que competem com o cântico triunfal de Ex
15 e com o cântico de Débora em Jz 5 como os textos mais antigos da Bíblia.
O relato divide-se em três partes. Na primeira, Balaque manda buscar Ba
laão para que esse amaldiçoe Israel e desse modo possa vencê-lo em uma ba
talha e expulsá-lo de Moabe. Deus ordena a Balaão não ir com eles (22.2-14).
Na segunda parte. Deus muda sua atitude e instrui Balaão para que vá com os
124
___________________________________________________________________________________________ N úmeros
emissários de Balaque, mas com a ressalva de que dirá o que o Senhor lhe disser
que deve dizer (22.15-35). Na terceira parte (22.36-24.25), Balaque faz tentativas
infrutíferas para que o profeta amaldiçoe Israel, porém, em cada caso, esse termi
na por abençoá-lo. Na segunda parte, a cena em que discute com a burra parece
aproximar-se do gênero fábula (em que os animais falam e têm reflexões huma
nas), porém não se deve considerar que chegue a isso, dado que é um episódio se
cundário ao relato, e é evidente que o diálogo com o animal não constitui o centro
do que se deseja contar. O miolo desses capítulos está na relação entre Balaque
e Balaão e como o primeiro procura dominar a palavra profética pela qual pagou
(22.7) e como Balaão não tem condições para contradizer o que Deus leva-o a
dizer em cada caso. O desfecho da narrativa, em que é dito que “então Balaão
se levantou, e se foi, e voltou para a sua terra; e também Balaque se foi pelo seu
caminho” (24.25), está em conformidade com uma narrativa que ingressa em uma
obra maior de maneira inesperada e silenciosa e que do mesmo modo se retira.
Porém, longe de ser tão somente uma história, chama a atenção que se gestou
uma prolífera tradição que compreendeu a atitude de Balaão de maneira negativa
e produziu numerosos textos que o lembram como exemplo de um inimigo da fé
e do povo de Israel. Já em Nm 31.8 e 16, é narrada sua morte e atribui-se a ele ter
pervertido as mulheres que levaram os homens israelitas a pecar. Em textos como
Dt 23.4-5, Js 13.22, 24.9-10, Ne 13.2 e Mq 6.5, recorda-se a figura negativa de
Balaão; ele é lembrado como o modelo da oposição ao plano de Deus. A tradição
chega até mesmo ao Novo Testamento, onde em 2Pe 2.15, Jd 1.11 e Ap 2.14 esse
episódio é mencionado como “o caminho de Balaão” ou “a doutrina de Balaão”,
que afasta da fé; em Judas, é mencionado ao lado de Caim. O que em Números
não passa de um parêntesis didático tomou-se, com o curso dos anos, um símbolo
da oposição a Deus e da distorção da fé.
125
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
BIBLIOGRAFIA
126
___________________________________________________________________________________________N úmeros
127
8
Deuteronômio
129
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
ca vai inclinar-se por diferentes sentidos. É preciso dizer que a alternativa é falsa,
pois em sua forma literária atual o Pentateuco é uma unidade teológica e literária
incontestável, que inclui Deuteronômio, e porque a influência da teologia que
emana desse livro nos livros históricos posteriores também é. Obviamente não é
necessário dividir o Pentateuco em dois para reconhecer a influência teológica nas
narrativas seguintes de uma de suas fontes.
1. Título e autores
131
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
o caso dos livros históricos mencionados - ou porque se restaura boa parte da li
teratura profética e não poucos salmos, o estilo deuteronomista estará presente na
teologia de Israel a partir desse momento. E mais ainda: para não poucos autores,
a teologia de Deuteronômio está no centro da teologia do Antigo Testamento (cf.
Childs, p. 204). Embora se discuta se existe influência deuteronomista nos livros
de Gênesis a Números ~ para alguns há muitos textos envolvidos e para outros
quase nada —, de qualquer forma os conceitos de centralidade do templo e de iden
tificação das desgraças como consequência do pecado de idolatria pessoal ou “de
nossos pais”, em alusão à geração que provoca a divisão do reino e a instalação
de templos alternativos a Jerusalém (IRs 12.26-33), influenciarão o pensamento
teológico de quase todo o Antigo Testamento (cf. Nelson, p. 9-12).
Sabe-se que iniciar novos discursos é uma maneira de indicar uma estrutu
ra e, nesse caso, ainda mais devido ao uso de quatro aspectos do pensamento teo
lógico de maneira explícita. Assim, cada começo instala uma questão teológica de
acordo com uma sequência intencional. O primeiro é a mensagem (“palavras”),
cujo ponto culminante é a reunião do povo no monte Horebe para receber a Lei.
Depois é exposto o recebimento da Lei, a seção mais extensa e, sem dúvida, a
principal do livro. Em seguida, uma nova formulação da aliança, diferente da an
terior em vários aspectos, porém sem que o texto seja apresentado como alternati
va ou em conflito com aquela. Note-se que, em consequência, o texto da Lei fica
enquadrado entre duas alianças de cunho similar. Finalmente ocorrem as bênçãos,
que o Senhor derrama sobre o povo de Israel por meio de Moisés.
Ao observar o conjunto, pode-se comprovar que não fala apenas de nosso
livro, mas se refere a todo o Pentateuco. Sem dúvida, estruturar o livro de acordo
com essas quatro fórmulas dá o que pensar e deve ser feito quando observamos que
132
D euteronómio
cada uma delas abre um novo discurso de Moisés, que pode ser analisado como
uma unidade em si mesma. Entretanto a sensação que se tem da leitura completa
é que esses documentos talvez reflitam um estágio literário anterior, mas já não
permitem organizar o texto atual de toda a obra. Se alguma vez esses documen
tos deram consistência ao texto maior do livro posteriormente, parece que foram
relocalizados em uma nova estrutura, que os incluiu ao mesmo tempo em que os
privou daquele mérito.
Outra corrente procurou identificar duas fontes, baseando-se em textos no
singular e no plural. Por exemplo, em 4.35: “A ti te foi mostrado...”; 7.1: “quando
o Senhor, teu Deus.. 9 . 1 : “tu passas, hoje, o Jordão.. porém o plural aparece
em 3.1: “nos viramos e subimos...”; 11.8: “guardai, pois, todos os mandamen
tos...”; 11.18: “ponde, pois, estas minhas palavras...” etc. Em princípio, admitiu
-se que os textos no plural eram de caráter histórico e dirigiam-se à “geração do
Horebe”, a dos israelitas que saíram do Egito. Em outra direção, os textos no sin
gular seriam de caráter homilético e estariam dirigidos à “geração da conquista”
ou “da terra prometida”, os israelitas nascidos no deserto e que não conheceram
a escravidão. Essa diferenciação de gerações é severa em textos como 1.34-40 e
confirma a importância hermenêutica de distinguir essas duas gerações, que já
mencionamos na ocasião de analisar a estrutura e a teologia do livro de Números
(veja-se o capítulo 5, “Números”). Entretanto, buscar uma estrutura para Deute-
ronômio com base na presença de verbos e pronomes singulares e plurais não é
suficientemente convincente: a maioria dos textos está no singular, e somente em
1-11 existe uma clara alternância do número.
Uma estrutura mais visível é a seguinte (cf. von Rad, 1975, p. 34, apresen
tada aqui com modificações):
A seção divide-se em duas partes bem distintas. A primeira (1.1 -4.43) enfa
tiza a narração dos fatos históricos que conduziram o povo até esse lugar. O texto
fala a um ouvinte que não parece conhecer a história e precisa que alguém a conte.
A segunda (4.44 em diante) é constituída por uma série de unidades de diferente
significado, porém com o denominador comum de ser parenética. Nessa última
estão incluídos uma segunda versão dos Dez Mandamentos (5.6-21), quase sem
133
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
134
D euteronômio
Esta seção está emoldurada por dois textos que fazem referência à aliança
(26.16-27.8 e 29.9-20). É assim com o objetivo de que se compreendam as bên
çãos e maldições que formam a maior parte desta seção (27.9-28.68) no contexto
do compromisso de ambas as partes assumido no Sinai. Desse modo são apresen
tadas não como caprichos de uma divindade anônima, mas sim como consequên
cia de ser fiel ou infiel a um pacto já firmado.
A estrutura desta seção parece lembrar os tratados de vassalagem vigentes
no antigo Oriente Próximo daqueles anos, dos quais há muitos exemplos entre os
hititas, assírios e arameus a partir do século X a.C. Esses tratados eram estabeleci
dos entre um monarca triunfante e o rei do povo vencido por esse ou com um povo
de menor poder militar e político. Em geral, possuíam seis partes;
a - Um preâmbulo no qual se apresentam o rei poderoso e a outra parte do
pacto. O texto apresenta-os como iguais, mas é evidente que o poderoso impõe o
tratado ao rei de menor categoria.
b - Uma seção histórica em que são narrados os fatos que levaram ao trata
do e no qual se exalta a generosidade do rei mais poderoso e sua boa vontade para
com o povo vencido ou mais fraco.
c - Os termos e o regulamento do pacto, os direitos e deveres de cada um.
d - A exposição detalhada dos direitos e deveres, o que em geral incluía
a disposição do vencedor para proteger o povo vencido e esse se comprometia a
respeitar, pagar impostos e a colaborar com o povo vencedor em caso de guerra.
e ~ Uma invocação aos deuses que atuam como fiadores do pacto e, em
alguns casos, também a testemunhas humanas.
f - Uma lista detalhada das bênçãos e maldições que seriam recebidas por
quem violasse o pacto.
135
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Uma vez selado o paeto, depositavam-se cópias nos templos dos deuses de
ambos os parceiros e se os instruía para lê-las publicamente de forma periódica
ou em determinadas festas. A partir da comparação dessa estrutura com os diver
sos pactos presentes no Antigo Testamento pode-se comprovar, por um lado, que
existem pontos de contato evidentes, enquanto, por outro, podemos observar que
não há nem um único exemplo que contemple as seis partes do formulário.
No caso da seção que consideramos, não é difícil identificar diversas pas
sagens com as partes do formulário do pacto de vassalagem. O ponto b está con
templado na seção histórica de 29.1-8; os pontos c e d, sobre direitos e obrigações,
podem ser vistos em 27.2-8 e em 29.9-20; o ponto f, de bênçãos e maldições, está
presente em 27.9-28.68. Entretanto, não seria prudente identificar sem matizes os
termos da aliança aqui descrita com a fórmula de vassalagem. Uma diferença es
sencial e notória é ideológica; enquanto que, nos preâmbulos (ponto a) dos pactos
entre reis, o rei poderoso impunha ao fraco os termos do pacto, mas o apresentava
como um pacto subscrito entre povos iguais e livres, no caso bíblico se oferece um
pacto que o povo pode aceitar ou rejeitar, e em nenhum caso se admite que é entre
partes iguais. Tanto nesse como em outros casos ao longo do Antigo Testamen
to, o discurso teológico assumiu do meio cultural diversos elementos seculares e
reformulou-os baseando-se em sua própria concepção de vida e de mundo.
Percebe-se que nessa seção existe uma desproporção a favor das maldições
em relação às bênçãos. São apresentadas dentro de uma estrutura inclusiva:
27.9-26 Maldições
28.1-14 Bênçãos
28.15-68 Maldições
136
D euteronômio
que Israel é exposto em 30.15-20 (“ ... proponho, hoje, a vida e o bem, a morte e o
mal... a vida e a morte, a bênção e a maldição.. fortalece essa compreensão da
história e leva a entender as maldições como consequência dos atos de Israel. Ao
mesmo tempo, esse texto olha para trás e atua como símbolo da alternativa à qual
o primeiro casal foi submetido em Gn 2.16-17. Ali, o casal recebeu a responsabi
lidade de dominar a terra; aqui, o povo de Deus recebe a responsabilidade de levar
adiante a vontade de Deus para com a criação (cf Birch, p. 170).
Tanto o Cântico de Moisés (cap. 32) como as Bênçãos (cap. 33) são poemas
de alta literatura, que expressam um futuro venturoso para Israel. No primeiro
caso, exaltam-se a glória de Deus e sua vocação de abençoar Israel. No segundo
poema, cada tribo é mencionada e exaltada em função de suas peculiaridades,
com exceção da de Simeão, talvez porque naquele momento já estava integrada
a Judá e não existia mais. O importante nesses dois poemas é que encerram o
Pentateuco com palavras de esperança e destacam que as promessas de Deus per
manecem firmes e serão cumpridas apesar dos desvios do povo.
O capítulo 34 narra a morte de Moisés como corresponde à dos grandes
personagens da história de Israel, se considerarmos as narrativas, entre outras,
da morte de Abraão (Gn 25.7-11), Jacó (Gn 49), José (Gn 50.22-26) e Josué (Js
24.29-31), todas elas diferentes e com suas próprias características, porém com o
denominador comum de ser relatos necessários para concluir a vida de um líder
relevante (cf. Coats). No caso de Moisés, tem uma dupla função, pois funciona
como desfecho e abertura para o que vem. Isso pode ser constatado ao ver como
se menciona Josué: “ ... que estava cheio do espírito de sabedoria...” (v. 9), perso
nagem que já fora anunciado como sucessor em 31.3. Dessa maneira, a morte de
Moisés não deixa Israel na orfandade, mas Deus proporciona outro líder para que
esse continue o projeto ainda inconcluso de receber a terra.
4. A teologia de Deuteronômio
137
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
138
D euteronômio
BIBLIOGRAFIA
139
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
140
S eção IV
LIVROS HISTÓRICOS
9
A s duas histórias de Israel
Os livros que formam esta seção fazem parte de dois grupos de textos:
os que na Bíblia Hebraica são denominados de “profetas anteriores”, que são os
livros de Josué, Juizes, 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis, e - o segundo grupo - os livros
de Esdras, Neemias e 1 e 2 Crônicas, os quais, na tradição judaica, são colocados
na terceira parte, denominada de “Escritos”.
A primeira coletânea narra a história de Israel desde a conquista de Canaã,
após 0 tempo no deserto, até o fim da monarquia, a perda da terra e do templo
e as deportações ao exílio, com as quais conclui 2 Reis. Essa sucessão de livros
conectados pela linha histórica é conhecida como a obra histórica deuteronomista.
Apesar de ser evidente - e iremos destacá-lo em cada caso - que esses livros não
foram produzidos de maneira uniforme nem eoneebidos eomo uma única obra, a
redação atual organizou-os e deu-lhes personalidade e coerência por meio de sua
adesão aos princípios teológicos expressos no livro de Deuteronômio (cf. Baena,
p. 599-603). Em suas páginas, os sucessivos eventos e personagens são julgados à
luz daqueles princípios entendidos eomo “a vontade de Deus” e a observância de
sua Lei. Assim, o longo deelínio da monarquia e seus líderes, até seu desapareci
mento, é interpretado como consequência da desobediência à Lei. Por exemplo,
de todos os monarcas mencionados a partir da morte de Salomão e da divisão
do reino em duas coroas, apenas oito são avaliados positivamente (os melhores:
Ezequias, 2Rs 18.3, e Josias, 2Rs 22.2), enquanto os demais são considerados
responsáveis pelo destino trágico de Israel por ter desrespeitado o paeto com Deus
e ter desobedecido a Lei.
A segunda eoletânea é o agrupamento de duas obras (1 e 2 Crônicas e
Esdras-Neemias), as quais, na Bíblia Hebraica, estão colocadas em uma ordem
diferente, como será explicado em cada caso. Esse conjunto costuma-se chamar
143
Introdução hermenênutica ao A ntiqo T estamento
de “o Cronista”, pois em sua configuração atual age como uma versão alternativa
à história deuteronomista (cf. Nelson, p. 67-78). Nesse caso, começa com Adão
e avança na história através de genealogias de diferentes personagens, passando
em seguida pelas tribos de Israel, até começar a seção narrativa com a ascensão
do rei Saul. A história de Israel, nessa versão, continua depois do exílio, com o
período da restauração e reconsagração do templo. Como detalharemos no devido
momento, os estudos linguísticos, de gênero e teológicos revelam que essa coletâ
nea foi elaborada posteriormente à deuteronomística. Há quem defenda que é uma
obra unitária, porém, ao passar de 1 e 2 Crônicas a Esdras-Neemias, tomam-se
evidentes os diferentes estilos, vocabulário e até mesmo gêneros literários, que
indicam que, em um momento tardio, foram agmpados para formar uma linha his
tórica contínua. Por sua vez, no interior de Esdras-Neemias existem dificuldades
em sua estrutura e cronologia, que complicam ainda mais a suposta unidade de
toda a obra. Tudo isso contribuiu para que, até poucos anos atrás, fosse atribuída
pouca credibilidade histórica às suas narrativas. Entretanto isso mudou, e hoje se
reconhece que possui uma abordagem da história a partir de um lugar diferente do
que os outros livros e, portanto, também merece atenção como material historio-
gráfico (cf Botta, p. 846).
A pergunta hermenêutica primária ao abordar esses livros é: O que é a his
tória para eles? Sem dúvida, não é a história crítica que hoje cultivamos, na qual
exigimos documentar cada afirmação, mas é uma história em que Deus e sua Lei
são atores centrais, que, de forma direta ou dissimulada, estão presentes em cada
cena (cf Brettler, p. 454). Os diferentes atores e eventos narrados incorporam ao
texto o juízo de avaliação do narrador, de maneira que aos fatos é acrescentada a
opinião que os exalta ou rejeita. Isso em muitos casos é explícito, como quando
em ICr 10.13-14 são comentados os motivos da morte de Saul e são atribuídos à
“palavra do Senhor, que ele não guardara”, porém, em outros, pode ser expresso
de maneira sutil ao assinalar um detalhe na vida de um personagem ou de um fato
que deixará entrever a opinião do autor. O breve e sutil comentário em Js 21.43-45
sobre a fidelidade de Deus e o cumprimento de suas promessas deve ser lido em
contraste com o capítulo 22, no qual as tribos que se assentaram a leste do Jordão
violam a Lei ao construir um altar.
Três critérios hermenêuticos a serem levados em consideração ao abordar
os livros históricos são:
1 - Essas obras - como quase todos os livros do Antigo Testamento - são
coletivas e anônimas. Foram concebidas com base em fontes escritas e orais, sem
distinguir entre o valor de umas e outras, e complementadas com textos de inte
resse teológico para o autor.
2 - Retomam velhas tradições, porém ao mesmo tempo estabelecem novas
tradições. Como as obras geralmente foram concebidas sobre a autoridade de per
sonagens de prestígio (Josué, Davi, Salomão, Esdras), suas narrativas não eram
discutidas nem eram colocadas em dúvida. Portanto não era necessário justificá
-las, e os eventuais desajustes na narrativa não afetavam a credibilidade do relato.
144
As DUAS HISTÓRIAS DE ISRAEL
BIBLIOGRAFIA
145
10
Josué
147
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Na tradição judaica, Josué é o primeiro dos livros proféticos. Com ele ini
cia a segunda seção da Bíblia Hebraica chamada nebiim (“profetas”), dentro da
qual se faz uma diferenciação entre profetas anteriores e posteriores. Os primeiros
abrangem os livros de Josué a Reis (sem Rute), e os segundos de Isaías a Mala-
quias (sem Daniel). Percebe-se que colocar esses livros - que a tradição cristã
chama de históricos - com os proféticos propriamente ditos não é um erro de
concepção, mas uma valorização hermenêutica. Os profetas são os encarregados
de comunicar uma mensagem de Deus, e a tradição judaiea entendeu que essa é a
função das narrativas presentes de Josué em diante. Assim não os concebe como
históricos no sentido de que narrariam fatos do passado com a finalidade de reter
sua memória, mas os lê como parte do que Deus tem a dizer a seu povo. As antigas
narrativas da história de Israel são inseparáveis de sua interpretação e levam uma
mensagem que transcende os fatos narrados. Por isso devem ser entendidas como
obras teológicas e proféticas.
Sob 0 ponto de vista literário, há duas propostas para colocar Josué na or
dem dos livros do Antigo Testamento, e ambas excluem-se mutuamente. Em um
caso, Josué é considerado o final de uma obra que começa com Gênesis. Nesse
caso fala-se de hexateuco, quer dizer, uma obra composta por seis livros em vez
de cinco, assim como se concebe o Pentateuco. Os autores que sustentam essa
proposta (G. von Rad, O. Eissfeldt, G. Fohrer) consideram que é natural que as
narrativas do tempo do deserto e as promessas aos pais concluam com a efetiva
posse da terra. Destacam que finalizar com a morte de Moisés e sem atravessar
o Jordão é deixar a narrativa truncada e sem solução de continuidade. Apontam
também que as tradições ou fontes presentes no Pentateuco devem ter continuado
em Josué e tentam descrevê-las. E, para terminar, questionam o fato de que, em
algum momento - e por alguma razão desconhecida por nós - , Josué foi separado
do Pentateuco e rompeu-se a unidade original da obra. Essa proposta é interes
sante e atrativa a partir do momento em que literariamente parece completar a
narrativa finalizada de maneira abrupta com Deuteronômio. Entretanto padece
sob o aspecto de que a formação do Pentateuco é muito antiga e não existem
provas de que alguma vez no passado tenha havido uma obra concebida como
hexateuco (de Gênesis a Josué). Por mais complexa que tenha sido a formação do
Pentateuco, carecemos de qualquer menção, alusão ou simples sugestão de que no
passado existiu a ideia de uma obra com essas características. O corte na narrativa
após a morte de Moisés no final de Deuteronômio não parece ter incomodado a
sensibilidade do leitor antigo.
A segunda proposta foi fonnulada por M. Noth e A. Jepsen e recebeu maior
aceitação, mesmo com as nuanças e mudanças que outros autores observaram
com o tempo (cf. van der Meer, p. 121-127; O'Brien, p. 3-23). Ela propõe que
Josué faz parte de uma obra que tem Deuteronômio como preâmbulo teológico
e que se estende até o livro dos Reis. Dessa maneira, o Pentateuco fica reduzido
148
J osué
149
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
2. Estrutura e articulação
1. Introdução 1
Observando a estrutura, podemos ver que a obra foi construída com es
mero, sendo separadas em partes iguais as duas seções centrais, dedicadas à con
quista e à distribuição da terra conquistada entre as tribos. O fundo teológico está
presente no começo e no final, nos capítulos 1 e 22-24, e em outros textos que
o narrador colocou estrategicamente em momentos importantes da narrativa (cf.
Sánchez, p. 611). Esses textos têm uma clara teologia deuteronomista (vejam-se
12; 21.43-22.6; 23), nos quais se enfatizam o papel exclusivo do Senhor na entre
ga da terra e o cumprimento pleno de sua promessa.
A obra começa com palavras de Deus a Josué, em que lhe dá o mandato
de suceder Moisés e atravessar o rio Jordão (1.1-9). Deus anuncia que estará com
ele assim como esteve com Moisés, de maneira que se realiza uma transferência
de autoridade do líder falecido para o novo guia do povo. Aquilo que foi dito em
Dt 31.1-8 sobre a sucessão de Moisés por Josué é confirmado nessa nova etapa.
Depois Josué começa a exercer sua liderança e ordena preparar-se para atravessar
Canaã (1.10-18) e confirma que os homens das tribos de Rúben, Gade e a meia
-tribo de Manassés —que haviam recebido terras a leste do rio Jordão (Nm 32;
Dt 3.12-20) - acompanharão o restante na conquista para depois retomar à terra
de sua herança, onde fieariam as crianças, as mulheres e os rebanhos (sobre o
papel das mulheres em Josué cf. a obra de D. Fewell). A teologia presente nes
se capítulo toma-se evidente no versículo 3, quando o Senhor diz que lhes dará
“todo lugar que pisar a planta do vosso pé” e que “ninguém te poderá resistir”.
É uma declaração de apoio frontal e sem fissuras. Ao mesmo tempo, indica que
150
J osué
deve “fazer segundo toda a Lei que Moisés ordenou” para ter êxito na conquista.
A teologia deuteronomista coloca ênfase no cumprimento da Lei como acesso à
bênção de Deus. A presença e o apoio de Deus estarão garantidos enquanto agi
rem “conforme o que está escrito”. Sob o ponto de vista hermenêutico, devemos
recordar que toda essa narrativa foi reescrita à luz do exílio, e portanto esta intro
dução teológica já profetiza que as desgraças que Israel sofrerá mais adiante na
história - a destruição de Jerusalém, do templo e o cativeiro na Babilônia - serão
consequência de seu afastamento desse mandato.
151
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
152
J osué
AS TRIBOS DE ISRAEL
ÊXODO 1 NÚMEROS 26 JOSUÉ
F ilh o s d e L ia
Rúben Rúben Judá
Simeão Simeão Manassés
Levi Gade Efraim
Judá Judá Rúben
Zebulom Issacar Gade
Issacar Zebulom Benjamim
Manassés Simeão
F ilh o s d e R a q u e l Efraim Zebulom
(José, omitido) Benjamim Issacar
Benjamim Dã Aser
Naftali Naftali
F ilh o s d e B ila Aser Dã
Dã
Naftali
F ilh o s d e Z ílp a
Gade
Aser
O b s e r v a ç õ e s : Êxodo continua a linha materna e omite José - que já estava no Egito. Em
Números, omite José —que havia falecido - , mas inclui seus filhos Manassés e Efraim;
também omite Levi, que não possuiria território. Josué repete a lista de Números, mas
em uma ordem diferente, na qual Rúben já não é o primeiro, mas Judá.
153
Introdução hermenénütica ao A nticío T estamento
levitas, que não receberam um território próprio (cap. 21; veja-se Nm 35.1-8). A
importância desses capítulos consiste em revelar que havia situações que excediam
o esquema de distribuição por tribos e que deviam ser contempladas na descrição
do território. Alguns grupos, cidades e famílias já estariam assentadas desde anti
gamente e teriam ganho seu direito à terra muito além da divisão em tribos.
Uma vez distribuídas as terras, o texto apresenta uma série de fatos neces
sários para encerrar a obra. Percebe-se zelo na descrição e atenção para evitar que
diferentes elementos do relato fiquem sem resolução. As tribos de Rúben, Gade e
a meia-tribo de Manassés são despedidas e retomam a suas terras transjordania-
nas. O episódio de edificar um altar altera os ânimos, porém é resolvido paciíica-
mente e em conversa (cap. 22). Josué faz seu discurso de despedida e nele anuncia
antecipadamente - em um claro texto deuteronomista - que “quando violardes a
aliança... e servirdes a outros deuses... a ira do Senhor se acenderá contra vós
e logo perecereis na boa terra que vos deu” (23.16). Enterrar os ossos de José e
Eleazar (24.32-33) também se coloca nessa linha de concluir temas ainda abertos
(Ex 13.19). Finalmente, diante da assembléia das tribos, Josué enumera os prodí
gios de Deus em prol de Israel e enfatiza que a terra “não foi trabalhada por eles”
nem edificaram as cidades que hoje possuem, tampoueo plantaram as vinhas e
olivais dos quais comem. Tudo eles devem a Deus. Depois os desafia a eseolher o
Senhor como seu Deus, o que aceitam. O pacto é feito em Siquém, e não por coin
cidência. E a cidade onde Deus se dirigiu a Abraão (Gn 12.7), onde Jacó comprou
um terreno para a sepultura de José (Gn 33.18-20); é o lugar onde Jacó enterra os
ídolos (Gn 35.2-4), coisa que adquire mais relevância porque nesse pacto se insis
te em abandonar os deuses estranhos. O lugar escolhido lembra a fidelidade dos
pais, que agora é proposta como modelo para a nova geração (cf. Creach, p. 119).
Chama a atenção que 23.1-13, ao mencionar os atos de Deus, não cita a
permanência no Sinai nem a entrega da Lei a Moisés. Isso induz a pensar que
estamos diante de um texto muito antigo, com possibilidade de que pertença a
uma tradição que não conheceu esse evento ou tradição. De todo modo, aqui
é utilizado como sinal de toda a conquista e pressupõe a fidelidade para com a
aliança do Sinai, mesmo sem mencioná-la explicitamente. Sob o ponto de vista
hermenêutieo, não se opõe nem substitui aquela aliança. Pelo contrário; ela é con
firmada e atualizada.
A morte de Josué conclui o período que teria sido iniciado com sua ascen
são a líder de Israel no eomeço do livro. A obra foi construída de forma detalhada,
a fim de deixar, em seu final, um povo organizado e estabelecido, apesar de que
ainda com muitas coisas por resolver. Todo o relato possui uma certa artificiali-
154
J osué
dade, que confirma seu caráter literário e portador de uma mensagem que haverá
de ser esclarecida no resto da história deuteronomista. Permanecer nesse final
seria assumir um triunfalismo que o texto não possui. Cada alusão à fidelidade
necessária para sustentar o pacto com Deus é uma advertência ao povo sobre o
que acontecerá se não guardar os mandamentos. O leitor daquele momento —ou
redator que sofre o exílio ou o abandono em sua própria terra - já conhece o ca
minho trágico para onde se dirige a história.
3. A violência de Deus
155
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamento
práticas passam a um segundo plano se o que está em jogo é cumprir um ato ritual
cuja finalidade é receber a aprovação de Deus.
Tentou-se explicar esses textos com diversos argumentos. Num caso, ana
lisa-se o conceito de violência e destaca-se que na Bíblia se diferencia a violência
individual (agredir um vizinho, violar sexualmente etc.) da agressão a uma cidade
no eontexto de uma guerra. A primeira é rejeitada legalmente, ao passo que a se
gunda é aceita como parte da dinâmica bélica. Porém, mesmo assim, o conceito de
anátema continua sendo repulsivo se for invocado para fundamentar o assassinato
maciço de inocentes. A respeito disso foram assinaladas duas coisas: a primeira
é que provavelmente isso nunca aconteceu dessa maneira, pois as narrativas de
conquistas eram aumentadas e exageradas, do mesmo modo que fazem outras nar
rativas (fertilidade das israelitas no Egito, separação das águas do mar na travessia
do Mar Vermelho etc.). A segunda é que os israelitas foram, na maior parte de sua
história - e sem dúvida do exílio em diante, quando se consolidaram esses textos
- , um povo fraco, subjugado às superpotências, dominado e empobrecido pelos
impérios. Não é de estranhar que, nesse contexto, toda a narrativa do passado his
tórico se iluminasse com proezas que descreviam um Israel muito mais poderoso
do que foi na realidade (cf Creach, p. 14-18). Outros autores tentaram reconstruir
um estágio anterior do texto, em que a violência de Israel pode ser considerada
defensiva (cf. Stone; Rowlet). Entretanto, isso não elimina o problema de ter esses
textos diante de nós na atual forma canônica. Não está em jogo se esses massacres
realmente aconteceram ou se são uma ficção literária; o que preocupa é que são
apresentados como parte do plano de Deus. Em nossa opinião, a dificuldade surge
ao desconhecer o caráter do relato e tratar os textos bíblicos como se fossem um
manual de conduta. Depois se reflete que, se Deus permite e até mesmo exige a
matança de inimigos, ele nos abre a porta para que nós façamos o mesmo. Porém
não é assim. As Escrituras são o registro daquelas coisas que a comunidade de fé
considerou que expressavam, da melhor maneira, sua relação com Deus. Nesse
caso, a conquista da terra - um bem para qualquer nação - é entendida como
dom de Deus e celebrada em toda a sua dimensão, sem silenciar sobre aspectos
que para nós são repugnantes. Hoje rejeitamos a violência e lamentamos que ela
exista mesmo quando, em certas circunstâncias, há a necessidade de exercê-la
com legitimidade e com consenso social. Naquela época, exibiam-na com orgu
lho como um instrumento da justiça de Deus. Não havia nenhuma razão para que
a ocultassem, assim como não há razão para que a tomemos como norma para
nossas opções éticas.
156
J osué
BIBLIOGRAFIA
157
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
ROWLET, Lori. Joshua and the Rhetoric o f Violence: A New Historicist Analysis.
Sheffield, 1996.
SANCHEZ, Edesio. “Josué”, in; LEVORATTI, A. (ed.). CBL I. Estella, 2005. p.
611-632.
SICRE DÍAZ, José Luis. “El paso del Jordán (Jos 3-4). Intento de lectura unitaria
y otras propuestas”, in: HANSEN, Guillermo (ed.). Los caminos inexhauri-
bles de la palabra. Buenos Aires, 2000. p. 161-185.
SOGGIN, Alberto. Jo5/zM(3. Londres, 1972.
________ . Introduction to the Old Testament. Londres, 1980.
STONE, Lawson. “Ethical and Apologetic Tendencies in the Redaction of the
Book of Joshua”. CBQ 53. 1991. p. 25-36.
VAN DER MEER, Michael. Formation and Reformulation. The Redaction of the
Book of Joshua in the Light of the Oldest Textual Witness. Leiden, 2004.
158
11
Juízes
159
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
tar para consolidar sua permanência em Canaã. Simplesmente expor essa questão
já nos previne sobre o fato de que, em certa medida, é uma crítica à narrativa pre
sente em Josué, pois deixa em evidência que a conquista não foi plena e definitiva,
como se havia anunciado, e que a integração das tribos, assim como é narrada no
Pacto de Siquém (Js 24), tinha algo de artificial e precipitado. Se tivermos presen
te Js 21.43-45 com sua confirmação da entrega de “toda a terra” e que “nenhum de
todos os seus inimigos resistiu diante deles” e em seguida lermos Jz 1.1, em que as
tribos perguntam, após a morte de Josué, “quem dentre nós, primeiro, subirá aos
cananeus para pelejar contra eles?”, toma-se evidente que o discurso carregado
de certezas do livro de Josué necessitava alguma correção. Muito ficara por fazer,
e disso trata esse livro.
Sob o ponto de vista histórico, encontramos relatos lendários, com traços
de elementos populares e de ações grandiloquentes de verificação impossível,
cujo valor reside em dar-nos uma descrição de como era a vida social e religiosa
de Israel antes da monarquia e preparar-nos para compreender e justificar teolo
gicamente a necessidade de passar ao modelo que será inaugurado com Saul (cf.
Collins, p. 204). É provável que essas lendas remontem a épocas antigas e que
foram repetidas oralmente como parte do acervo popular até o momento em que
foram fixadas por escrito. No exílio (586-539 a.C.), foi necessário fortalecer esse
tipo de histórias, a fim de sustentar, por intermédio da memória de um passado
glorioso, a esperança de que ainda havia um futuro para Israel.
Como já mencionamos a respeito de Josué, essa obra também não deve ser
lida como um manual de condutas sugeridas para o crente, mas antes como uma
série de relatos agrupados que retratam o mundo cultural, político e religioso do
Israel pré-monárquico. Assumir que as condutas aprovadas por Deus no livro de
Juízes habilitam-nos a repeti-las seria como dizer que os servos e servas dados
por Deus a Abraão como prêmio (Gn 24.25) convidam-nos hoje a confirmar a
escravidão.
1. Os juizes de Israel
O livro denomina de juizes (em hebraico shofetim) aqueles que são chama
dos por Deus para conduzir o povo nesse período. Na verdade, não há quase nada
neles da ação de julgar, pois sua função é mais serem líderes militares, guerreiros
e libertadores (cf. Soggin, p. 1-4; Sánchez, p. 635). Há quem os descreva como
caudilhos, pessoas carismáticas que instigavam a vontade das pessoas e as con
duziam em um determinado empreendimento. Nota-se que nenhum é chamado
de “servo do Senhor”, uma expressão aplicada a Moisés (Js 1.1,13 etc.) e a Josué
em 2.8 e depois a Davi (SI 18.1), porém negada aos juizes. Entretanto sua função
tem elementos muito importantes para contribuir à narrativa. Os fatos sucedem-se
de maneira esquemática em todos os casos: Israel vai atrás de ídolos ou deuses
cananeus como Baal e Astarote (2.11-13), que arruinam sua vida religiosa e não
160
J uízes
somente os fazem perder a proteção de Deus, mas esse também age contra eles.
Em consequência, são vítimas da pilhagem das nações que os rodeiam, despojam,
exploram ou vendem como escravos. Essa nova situação suscitava a compaixão
de Deus, o qual lhes envia um libertador para que os livre desse flagelo. O líder
atuava com a ajuda de Deus e conseguia libertar e colocar a nação nos trilhos,
porém, com a morte do juiz, Israel voltava a corromper-se moral e religiosamente
(2.11-19). Assim, cada juiz surge em resposta a uma situação particular, e com sua
morte Israel volta a cair na idolatria. Em cada caso, o ciclo repete-se com maior
ou menor detalhamento.
I. Introdução (1.1-3.6)
a) aspectos militares 1.1-2.5
b) aspectos religiosos 2.6-3.Ó
A obra enquadra os relatos dos juizes entre essas duas partes. A introdução
tem como finalidade, em primeiro lugar, mostrar que a conquista não foi comple
ta. A narrativa de Josué esmorece quando aqui se aponta toda a terra que ainda fal
ta por conquistar. Mais adiante, voltaremos a esse ponto. O principal de 1.1-3.6 é
a justificação dos juizes como instituição, baseada na rebeldia de Israel. O redator
deuteronomista deixa perceber que a necessidade dos juizes encontra-se na falta
de cumprimento do pacto pelo povo. Porém, se essa é a função da introdução,
a conclusão será a justificação da monarquia. Na passagem de um texto a outro
ocorreu uma mudança no cenário social e religioso, que exige o caminho em di
reção à nomeação de um rei. Em ambos os casos, os fatos são apresentados como
consequência da conduta do povo, o qual, desse modo, é responsabilizado por sua
realidade histórica. Em 2.16, é dito: “suscitou o Senhor juizes ...” em resposta à
idolatria dentro de Israel. Em 21.25, a obra encerra com o estribilho: “naqueles
dias, não havia rei em Israel; cada um fazia o que achava mais reto”, o que é uma
forma de convidar para procurar um.
161
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
162
J uízes
Débora é a única juíza dos doze da qual se diz que também é profetisa.
Seu relato completa-se com um poema (cap. 5) que é considerado a peça literária
mais antiga do Antigo Testamento (cf. Schneider, p. 85ss). Sua linguagem arcai
ca, o caráter de poema de vitória militar e eertos elementos temáticos são fatores
que apontam nesse sentido e aproximam-no de Êx 15, em que um canto similar é
atribuído a Moisés e, em parte, à sua irmã Miriã. Como obra literária assemelha
-se aos salmos, e seu conteúdo expõe alguns problemas até hoje sem solução. Em
seus versos, as tribos que a seguiram na luta são reconhecidas e é criticado quem
não respondeu a seu chamado (v. 16ss). Menciona-se Maquir, uma tribo desco
nhecida, e omite-se o nome de Judá e Simeão. Em geral, esses problemas são atri
buídos à sua antiguidade, o que transforma o poema em testemunho de uma época
em que ainda não estariam consolidadas as identidades e quando talvez Judá e
Simeão ainda não se tivessem unido ao restante das tribos. De qualquer maneira,
toda especulação é arriscada, dada a falta de informação para construir um quadro
histórico com certa coerência. No relato, a figura de Débora é unida à de Baraque,
mas esse age obedecendo a suas ordens como o general responsável pela milícia.
E Débora quem conduz as ações e mostra capacidade para organizar a guerra.
Nessa história, outra mulher - Jael, a quenita (4.17-22) - terá um papel central,
pois essa engana Sísera, o chefe inimigo, dando-lhe asilo em sua casa e depois o
assassinando. Devido à tendência de omitir o papel das mulheres nas narrativas
bíblicas, essa menção de Débora e Jael sugere que houve muito mais liderança
feminina do que ficou registrado nos textos (cf. Ackerman, p. 29-46; p. 93-102).
A história de Débora é sucedida pela de Gideão, uma das mais extensas
narrativas de juizes (6-9), a qual inclui o relato de Abimeleque. Gideão é um líder
duvidoso, ambíguo, que a própria narrativa faz agir à noite para acentuar seu te
mor à exposição. Começa a lutar contra a idolatria e termina com a feitura de um
ídolo de ouro (8.27). Seu filho Abimeleque concentra em si mesmo todos os erros
do pai e terminará seus dias com uma morte indigna. E rei em Siquém e, mesmo
que 9.22 diga que dominou “sobre Israel” - o que é um comentário acrescentado
com a intenção de estabelecer um antecedente monárquico -, em nenhum mo
mento se percebe que fundara uma monarquia ultrapassando os limites da cidade
e seus arredores. As cartas de Tel elAmarna no Egito do século XIV a.C. mostram
a existência de muitas cidades-estado em Canaã, governadas por um rei local de
suas características. Sob o ponto de vista literário, a história de Abimeleque tem
como finalidade mostrar um rei em sentido negativo e que não serve ao projeto de
Israel (cf Assis, p. 171-173; Soggin, p. 193).
A história de Jefté (10.6-12.7) continua o estilo dos demais juizes, mesmo
supondo que no começo era um juiz menor, cujo relato se ampliou até chegar à
sua forma atual. Liberta Israel de inimigos, e após sua morte o povo volta a cair
na idolatria. O capitulo 12 narra uma guerra interna contra Efraim e Gileade, que
revela os conflitos não resolvidos entre as tribos. Essa passagem é famosa porque
documenta a técnica de mandar uma pessoa suspeita pronunciar uma palavra de
modo a reconhecer, por meio de seu sotaque, a identidade tribal (12.5s).
163
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
3. A guerra santa
164
J u íz e s
165
I n t r o d u ç ã o h e r m e n è n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
do povo - moral, religioso, social - com o qual será encarado o período posterior
de sua história. Em termos do interesse do texto, os dois relatos de 17-21 são
fundamentais para compreender os passos que serão dados no estágio seguinte da
história deuteronomista.
Para compreender a função desses relatos, é fundamental deter-nos na fra
se que se repete quatro vezes e que diz; “Naqueles dias não havia rei em Israel”
(17.6; 18.1; 19.1 e 21.25). Essa é seguida, nos dois casos extremos, pelas palavras
“cada um fazia o que achava mais reto”, que dão unidade aos dois relatos ao abri
-los e encerrá-los com a mesma frase. O vínculo se estabelece entre a ausência de
rei e a desordem social causada pela falta de uma direção central que estabeleça
os limites da conduta. Que uma pessoa crie seus ídolos e contrate um sacerdote
para seu culto é uma aberração para a teologia deuteronomista. Que israelitas
procurem maltratar um levita e terminem por violentar e assassinar sua mulher
desencadeia uma guerra fratricida em que morrem milhares e quase desaparece a
tribo de Benjamim; e que, no final, a crise seja resolvida com o assassinato de toda
uma aldeia, mesmo que se preservem suas virgens para que forneçam seus ventres
e possibilitem a eontinuidade dessa tribo, além de roubar as mulheres que ainda
faltavam, é um fato infame que suscita a rejeição de qualquer pessoa de bem tanto
daquela época como de hoje. Seria um erro acreditar que o que foi contado cor
responde a métodos habituais naqueles tempos. A crueldade e a violação sexual
nunca foram consideradas condutas decentes e civilizadas por nenhum povo. O
que está em jogo aqui é que a razão pela qual se chegou a tal nível de deterioração
explica-se pela falta de rei e pela condição anárquica que permitia que cada um
“fizesse o que achava mais reto” (cf. Abadie, p. 39). Foi apontado, com razão, que
esses relatos pressupõem o tempo da monarquia, pois neles se observam as tribos
como um corpo orgânico, ao contrário do que foi visto nas histórias individuais
dos juizes. Teriam sido acrescentados na redação final da obra ou ao menos du
rante o tempo em que houve rei em Jerusalém (cf. Exum, p. 259). Sendo assim,
reforça-se nossa ideia de que carregam uma intenção teológica relacionada com
a justificação da monarquia. A conclusão de Juizes é que o sistema de caudilhos
libertadores já não serve para conter a sociedade e tão somente precipita a deca
dência e a queda nas mais grosseiras formas de idolatria e crueldade social (cf.
Brueggemann, p. 129). De forma suspeita, ante a evidência da deterioração, o
relato não olha em direção ao passado para ter saudade de um tempo ideal - o
deserto, a conquista etc. - , mas dirige a atenção do leitor para o futuro (cf. Childs,
p. 259). Nesse momento da história, o antídoto para esses males parece ser a pos
sibilidade de ter uma figura que concentre o poder e organize a sociedade. O livro
prepara o leitor para a criação da monarquia no livro seguinte.
166
J uízes
BIBLIOGRAFIA
167
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
EXUM, Cheryl. “Judges”, in: MAYS, J. (ed.) HBC. São Francisco, 1988. p. 245
261.
FEWELL, Danna Nolan. “Judges”, in: NEWSOME, Carol e RINGE, Sharon. The
Woman s Bible Commentary. Londres, 1995.
KWASI, Fidele Ugira. “Judges”, in: PATTE, Daniel (ed.). Global Bible Commen
tary. Nashville, 2004.
MARGALIT, Baruch. “Observations on the Jael-Sisera story: (Judges 4-5)”, in:
WRIGHT, David R; FREEDMAN, David Noel e HURVITZ, Avi (eds.).
Pomegranates and golden bells: Studies in biblical, Jewish, and Near East
ern ritual, law, and literature in honor of Jacob Milgrom. Winona Lake, 1995.
MCCANN, J. Judges. Louisville, 2002.
NELSON, Richard. The Historical Books. Nashville, 1998.
NIDITCH, S. “Eroticism and Death in the Tale of Jael”, in: Women in the Hebrew
Bible. Nova York, 1999. p. 305-315.
O'BRIEN, Mark. The Deuteronomistic History Hypothesis: A Reassessment.
Gotinga, 1989.
O’CONNELL, Robert H. The Rhetoric o f the Book o f Judges. Leiden, 1996.
SCHNEIDER, Tammi J. Judges. Collegeville, 2001.
OLSON, Dennis. “Judges”, in: The New Interpreter’s Bible II. Nashville, 1998.
PRESSLER, Carolyn. Joshua, Judges and Ruth. Louisville, 2002.
SÁNCHEZ, Edesio. “Jueces”, in: LEVORATTI, A. (ed.). CBL I. Estella, 2005.
p. 633-661.
SCHNEIDER, Tammi. Judges. Collegeville, 2000.
SCHÕKEL, Luis Alonso. “Arte narrativa en el lihro de los Jueces”, in: Hermenêu
tica de la Palabra II: interpretación literaria de textos biblicos. Madri, 1987.
p. 359-381.
SOGGIN, Alberto. Jwífges. Londres, 1981.
SPRONK, Klaas. “Deborah, A Prophetess: The Meaning and Background of
Judges 4:4-5”, in: DE MOOR, Johannes C. (ed.). The Elusive Prophet: The
Prophet as a Historical Person, Literary Character and Anonymous Artist.
Leiden, 2001.
WONG, Gregory T. K. Compositional Strategy o f the Book o f Judges: An Intro
ductive. Rhetorical Study. Leiden, 2006.
168
12
1 e 2 Samuel
169
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
170
1 E 2 S amuel
2. Estrutura e articulação
171
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
172
1 E 2 S amuel
tretanto, sob uma perspectiva hermenêutica, cumpre uma importante função que
se revela quando vemos que sua linguagem se relaciona com 2 Sm 21-24, em que
são incluídos dois poemas declamados por Davi (compare-se 2.2 com 2Sm 23.3;
2.10 com 22.8-9 e 51; 2.6 com 22.28; e 2.6-7 com 22.17-18). Após Ana, uma
mulher estéril, receber o dom de um filho, eleva um cântico de gratidão no qual
se exaltam o poder e a bondade de Deus e sua opção pelos fracos, pobres e humil
des, para finalizar com palavras de bênção a seu ungido. Colocado nesse lugar, o
poema oferece uma chave para interpretar a totalidade da obra tanto na descrição
da vontade de Deus a favor dos fracos como no respaldo a Davi, o rei ungido para
liderar o povo (cf. Childs, p. 272).
A 8.1-22
B 9.1-10.16
A 10.17-27
B 11.1-15
A 12.1-25
173
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
E interessante ver de que forma os textos marcados com asterisco são fa
voráveis à monarquia, mas estão localizados em passagens que em seu conjunto
são hostis a ela (textos A). Não somente se aponta que a ocorrência da monarquia
acontece pela deterioração da instituição dos Juizes, mas que o eleito reúne todas
as virtudes de piedade, respeito, valor militar e habilidade para governar que se
esperam de um líder. Nenhum dos textos diz algo que menospreze a pessoa de
Saul. Em conclusão, embora a passagem desvie os argumentos contra a instau
ração da monarquia por considerá-la uma instituição que surge da desconfiança
na proteção de Deus, não a degrada, mas deixa a porta aberta para que, caso se
desenvolver no marco da observância das leis e da busca por “servir de todo o
coração” ao Senhor, ele não abandonará seu povo (12.22). Sob o ponto de vista
hermenêutico, o que acontece é que, embora se reconheça uma mancha de origem
na monarquia, é necessário que haja alguma forma de valorização dela para que
a figura de Davi possa ser construída sobre a base de uma instituição que tenha o
respaldo de Deus.
174
1 E 2 S amuel
175
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamento
CO, pois aponta na direção de centralizar o culto em um lugar fixo e coloca sobre a
mesa a questão da necessidade de construir um templo. Não é ingênua a menção
de que a Arca foi colocada em uma tenda que “lhe armara Davi” (6.17).
Talvez um dos textos mais influentes do Antigo Testamento seja o capítulo
7, em que o Senhor estabelece ura pacto com Davi. É um relato básico que será
lembrado pelo resto dos séculos na literatura do Antigo Testamento e, em certa
medida, também na do Novo Testamento. Consta de duas partes: o pacto transmi
tido por Deus ao profeta Natã e esse a Davi (7.4-17) e a oração de Davi (v. 18-29).
No pacto, brinca-se com a palavra “casa”, que em alguns casos significa ‘templo’
(v. 5,7,13) e em outros se refere à descendência de Davi, à “casa de Davi” (v.
11,16). Dessa maneira, Deus lhe diz que não será Davi quem lhe vai construir uma
casa (o templo), porém, ao mesmo tempo, lhe anuncia que como rei sua casa (sua
descendência) será abençoada e etema. Existem ecos desse pacto no SI 89.28-30,
onde se afirma o compromisso de Deus com a casa de Davi. Em sua oração de
resposta às palavras transmitidas por Natã, Davi consolida o pacto e afirma que as
palavras de Deus “são verdade” (v. 28) e que, com sua bênção, a casa de Davi será
abençoada “para sempre” (v. 29). Assim, ao concluir o relato, fica estabelecida a
perpetuidade da escolha da dinastia davídica e sua condição de exclusividade em
relação ao Deus de Israel.
Daqui em diante, os fatos narrados até o capitulo 20 são uma sucessão de
cenas de conquistas militares (cap. 8; 10; 12.26-31; 20), de intrigas palacianas,
como a sedução de Bate-Seba e o assassinato de seu esposo (11-12) ou a violação
de Tamar por seu meio-irmão Amnom (13), o conflito familiar e político com seu
filho Absalão, que muitos autores consideram uma tradição independente, adicio
nada à história de Davi, e que termina com sua morte nas mãos de Joabe, o coman
dante do exército de Davi (13-18). Chama a atenção o papel das mulheres no livro
de Samuel, onde proporcionalmente há mais do que em qualquer outra obra do
Antigo Testamento (cf. os excelentes estudos em Hemández, p. 667-671; Hackett,
p. 85-95; Jobling, p. 176-194). Em suma, os capitulos 9-20, que narram a chamada
“sucessão no trono de Davi” ou “história da corte de Davi”, contam as vicissitudes
de sua vida, que terminará em 1Rs 2 com a declaração de sua morte.
176
1 E 2 S amuel
tro dois poemas (um salmo e uma declaração) declamados por Davi (22 e 23.1-7),
sendo o capítulo 22 uma duplicação do Salmo 18. As histórias dos extremos mos
tram Davi em ações comprometedoras e obscuras, porém, em ambos os casos, sai
garboso por sua humildade e sensibilidade diante da viúva Rispa (21.11-14), por
seu arrependimento perante 0 pecado (24.17) e por preocupar-se em construir um
altar e oferecer sacrifícios (v. 24-25), atos nos quais demonstra possuir uma fé sin
cera e honesta. As listas dos trinta valentes lembram a equipe que colaborou com
ele em suas façanhas e são uma forma de lembrar todos os seus atos guerreiros. É
no centro onde se oferece mais material teológico. No salmo - que é uma ação de
graças pela proteção de Deus - expressa-se a angústia pela proximidade da morte,
mas se confia que Deus está perto (5-7); depois apresenta uma teofania do Senhor
como Deus da tormenta (8-16), texto que parece reeordar as palavras de Deus no
meio do redemoinho em Jó 38-39. No poema de 23.2-7, Davi apresenta-se como
profeta (v. 2), como rei que governa com justiça (v. 3-4), como aquele cuja casa
tem um pacto eterno com Deus (v. 5) e cujos inimigos não têm nenhum futuro e
serão consumidos pelo fogo (v. 6-7). O poema confirma as promessas do capítulo
7 e dialoga com o cântico de Ana (ISm 2.1-10), com o qual compartilha vários
temas, como a gratidão, a exaltação do ungido e o reconhecimento do poderio de
Deus. Essas últimas palavras de Davi carimbam a teologia e a ideologia de toda
a obra de Samuel, que conduziu o leitor desde o tempo tribal até a organização
de um Estado e a liderança de um rei cuja casa será eterna. À instabilidade do
período dos juizes opõe-se a nova monarquia chamada a ser uma instituição durá
vel e eterna. Assim, os dois poemas juntos expressam o pensamento teológico do
deuteronomista ao reforçar as ênfases presentes ao longo da obra.
Uma questão pendente e de interesse hermenêutico é examinar se esses
capítulos concluem a história de Davi ou se se deve continuar até IRs 2.12. A
presença dos poemas, em especial o segundo, introduzido com a expressão “pa
lavras derradeiras de Davi”, induz a pensar que são assumidos como o final de
sua história. De fato, em IRs 2, as palavras finais são dirigidas a Salomão, como
forma de conselhos para o governo, mas não há, como se poderia esperar, um
testamento dirigido à posteridade. Em nosso entendimento, a resposta não deve
ser buscada na história da redação ou nos prováveis sucessivos estratos literários
que teriam exigido dois relatos do fim de seus dias, mas no valor semântico de
ambos os relatos. Nessa perspectiva, tanto 2Sm 21-24 como IRs 1-2 são narrati
vas incompletas se quisermos lê-las como encerramento da vida de um herói. Na
primeira, é evidente que falta a menção à sua morte e, portanto, é de esperar que a
história continue. Mesmo quando se diz que está cansado e com dificuldades por
causa de sua idade (21.15-17), no final do capítulo 24 é mostrado com toda a sua
energia intacta ao promover um censo da população. Em Reis, seria de esperar
que Davi declame um salmo ou expresse sua gratidão a Deus, assim como fez no
salmo do capítulo 22. Acreditamos que a leitura correta está em recordar a técnica
já utilizada de sobrepor narrativas para estabelecer a continuidade da história. Em
perspectiva hermenêutica, deve-se entender que a declaração da morte de Davi
177
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Já apontamos que as narrativas dos livros de Samuel devem ser lidas como
parte de um todo que é a obra histórica deuteronomista (Josué-2 Reis). Sua finalida
de e teologia estabelecem-se como um elo do caminho em direção ao final trágico
de 2Rs 25. No contexto geral desse projeto, Samuel proporciona à teologia ele
mentos próprios que o caracterizam. Em primeiro lugar, é notório o caráter secular
dessas histórias. São narrativas sem elementos sobrenaturais, em que Deus age de
maneira real, porém sem violar as leis que ele mesmo criou. Isso que está presente
em outras narrativas do Antigo Testamento é levado aqui à sua máxima expressão.
Chama a atenção que a única cena estranha e sobrenatural é a consulta que Saul faz
à médium de En-Dor (ISm 28), mediante a qual aparece o já falecido Samuel para
conversar com ele, mas o relato não dá mostras de ser tomado como algo verídico,
mas parece estar escrito para mostrar Saul quase como um demente e insensato.
Um segundo tema teológico tem a ver com a escolha dos líderes feita por
Deus. Em Samuel, são escolhidos os dois primeiros reis de Israel, e isso é feito por
intermédio do profeta e com base em critérios não muito comuns na antiguidade.
Ambos, Saul e Davi, são de origem humilde, sem antecedentes reais, e foram cha
mados quando exerciam tarefas simples como pastorear ou por serem membros
de uma das menores tribos e famílias de Israel. Foram escolhidos com cuidado
por Deus após um processo de seleção que os textos se preocupam em detalhar
(ISm 9-10.16 e 16.1-13). Em nenhum caso são pessoas de conduta irrepreensível,
mas são apresentados em sua mais plena humanidade, earregados de paixões e
contradições, mas com uma forte vocação para servir a Deus. O texto narra muitos
erros de Saul e Davi (como também de Eli), mas esses, embora no caso de Saul
cheguem a ofuscar sua condição de rei, não são motivo para sua exclusão do plano
de Deus; mesmo que uma e outra vez sejam chamados a modificar suas condutas.
Note-se que Davi, quando morre Saul, apresenta uma canção em sua homenagem
e memória.
Por fim, os livros de Samuel proporcionam um conceito ético político que
se faz presente no discurso de Samuel ao povo (ISm 12.20-25), mas que permeia
toda a narrativa. Essa ética consiste em relativizar qualquer forma de governo
humano para subordiná-lo ao exercício do “temor do Senhor”. O autor não con
fia nas virtudes da monarquia, porém anuncia que, se existe fidelidade a Deus,
também essa forma de organizar a sociedade pode ser um instrumento de Deus
para salvar seu povo. Dessa maneira, mesmo reeonheeendo as limitações de todo
0 projeto humano, permite entrever que Deus age por meio de nossos planos e
ações.
178
1 E 2 S amuel
B IB L IO G R A F IA
AUZOU, George. La dama ante el Arca. Estúdios de los Libres de Samuel. Ma
dri, 1971.
BAENA, Gustavo. “Introducción a la Historia deuteronomista”, in: LEVORAT-
TI, A.; ANDINACH, P. et al. (eds.). CBL I. Estella, 2005. p. 600-610.
BIRCH, Bruce C. “First and Second Books of Samuel”, in: The New Interpreter's
Bible, V. II. Nashville, 1998. p. 947-1382.
BRUEGGEMANN, Walter. First and Second Samuel Louisville, 1990.
__________ . Introduction to the Old Testament. The Canon and Christian Imagi
nation. Louisville, 2003.
CAMPBELL, Anthony e O'BRIEN, Mark. “ 1-2 Samuel”, in: FARMER, William
étal. (eds.). Comentário Bíblico Internacional. Estella, 1999.
CHILDS, Brevard. Introduction to the Old Testament as Scripture. Filadélfia,
1979.
COHN, Robert. “ 1 Samuel”, in: MAYS, J. (ed.). HBC. São Francisco, 1988. p.
268-286.
COLLINS, John. Introduction to the Hebrew Bible. Minneapolis, 2004.
GIBERT, Paul. Los libros de Samuel y de los Reyes. Estella, 1984.
GONZALEZ LAMADRID, Antonio. Las tradiciones históricas de Israel. Es
tella, 1993.
GUNN, David. “2 Samuel”, in: MAYS, J. (ed.). HBC. São Francisco, 1988. p.
287-304.
HACKETT, Jo Ann. “ 1 and 2 Samuel”, in: NEWSOME, C. e RINGE, Sharon.
The Woman’s Bible Commentary. Londres, 1995. p. 85-95.
HARRISON, R.K. Introduction to the Old Testament. Grand Rapids, 1969.
HERNÁNDEZ, Lucia e GIMÉNEZ, Humberto. “Los libros de Samuel”, in: LE-
VORATTI, A.; ANDINACH, P. et al. (eds.) CBL I. Estella, 2005. p. 663-720.
HERTZBERG, Hans Wilhelm. I and II Samuel, OTL. Londres, 1964.
HUGO, Philippe e SCHENKER, Adrian. Archeology o f the Books o f Samuel. The
Entangling of the Textual and Literary History. Leiden, 2010.
JOBLING, David. I Samuel, Berit Olam. Collegeville, 1998.
KLEIN, Ralph W. I Samuel, Word Biblical Commentary. Waeo, 1983.
__________ . 2 Samuel, Word Biblical Commentary. Waco, 1989.
LOHFINK, Norbert. “La obra histórica deuteronomista”, in: SCHREINER, J. Pa
labra y mensaje del Antiguo Testamento. Barcelona, 1972. p. 269-285.
MCCARTER, Ky\&. I Samuel, AB. Nova York, 1980.
__________ . II Samuel, AB,. Nova York, 1984.
MCKENZIE, Steve. King David: A Biography. Nova York, 2000.
MESTERS, Carlos. Lecturaprofética de la historia. Estella, 1999.
NELSON, Richard. The Historical Books. Abingdon, 1998.
VAN SETERS, John. In Search o f History. Historiography in the Ancient World
and the Origins of Biblical History. New Haven, 1983.
179
13
1 e 2 Reis
181
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
182
1 E 2 Reis
183
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
184
1 E 2 R eis
Adonias, que era mais velho do que Salomão (2Sm 3.4) e, portanto, com direito
a sentir-se o sucessor natural de Davi. Frases de afirmação do direito de Salomão
(1.13,17,24-27) e as palavras atribuídas a Davi nesse sentido (1.30) têm um alto
valor ideológico, pois procuram diminuir a reclamação de Adonias e estabelecer
a legitimidade de Salomão ao receber o trono.
O realismo do autor não deixa de nos assombrar. Desde o primeiro mo
mento, ele distancia-se em relação ao suposto altruísmo de Salomão e narra, em
trinta e três versículos, de que forma esse assassina três líderes sociais e desterra
outro para colocar pessoas de confiança em seus lugares. São eles: Adonias (even
tual sucessor, que é assassinado —2.25), o sacerdote Abiatar, que é desterrado e
substituído por Zadoque (2.26 e 35), o comandante Joabe, que será assassinado
e substituído por Benaia (2.34-35), e Simei, um inimigo dos tempos de Davi, a
quem ordena assassinar pelas mãos de Benaia (IRs 2.46; ver 2Sm 16.5). Ao ter
minar esse banho de sangue e crueldade, o texto sentencia em IRs 2.46: “Assim
se firmou o reino sob o domínio de Salomão” (cf. Walsh, p. 45-67; Sweeney, p.
62-71).
a - A sabedoria e a criação
b - O templo e as construções
185
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamentí)
O tempo justo e necessário para ser o melhor templo. Observar que seu palácio
demandou treze anos pode ser entendido como sendo uma obra mais valiosa do
que o templo - e portanto deveria ser lido como uma ironia do autor, uma crítica
dissimulada a Salomão - ou como um elogio no sentido de que a fez em um se
gundo momento e que exigiu mais tempo, porque o empenho dos construtores foi
menor do que o empenho colocado no templo. A construção do templo completa
-se com a transferência da Arca do Pacto para seu interior. Nesse momento se diz
que “a glória do Senhor enchera a casa do Senhor” (8.11), palavras que lembram
o ingresso na tenda (Êx 40.34-35) e buscam equiparar aquela prestigiosa tenda
no deserto na qual o Senhor hahitava em liberdade com essa nova casa fixa a um
lugar. Essa crítica deve ter sido ouvida, pois em sua oração Salomão responde a
esse pensamento quando se pergunta; “Mas, de fato, habitaria Deus na terra?”
(8.27-29). O pacto com o qual esta seção termina tem a intenção de deixar clara
a teologia do autor. Nessa oportunidade. Deus fala e, após afirmar seu desejo de
bênção e prosperidade para a casa de Salomão, indica que toda a sua presença e
sustento estão condicionados à observância de seus mandamentos e ao afasta
mento da idolatria. Os versículos 9.6-9 são apresentados como advertência, mas
devem ser lidos como uma antecipação do que serão a destruição e a desonra em
que terminará o destino de Israel no final do livro. Sob o ponto de vista narrativo,
é um modo de estabelecer um tema que será crucial mais adiante.
O discurso e a oração de Salomão na inauguração do templo são uma de
claração de sua ideologia e teologia. O extenso texto (8.14-61) tem três partes (v.
14-21; 22-53; 54-61), das quais a principal é a oração e os extremos são bênçãos
ao povo, declamadas na presença de todos (cf Buis, p. 11). Exaltar o lugar cons
truído e confirmar nele a presença de Deus fortalece sua própria figura e poder
como rei.
186
1 E 2 R eis
ses era algo talvez inevitável sob o ponto de vista político, mas inaceitável para
0 autor de Reis, que anuncia que o Senhor declara a ruína de Salomão e de seu
reino (v. 11). Ainda durante a vida de Salomão, provoca-se o anúncio do profeta
Aías, que declara que haverá um cisma e que Jeroboão, um servo de Salomão,
será rei sobre dez tribos (11.31). A sentença está declarada, e Salomão nada pode
fazer para evitá-la, inclusive falha em sua tentativa de assassinar Jeroboão (v. 40).
3.2. História dos reis até a queda de Samaria (1Rs 12-2Rs 17)
Esta seção inclui uma primeira parte na qual se narra o cisma que levará à
criação dos dois reinos de Judá e Israel (capítulo 12) e a confirmação da idolatria
na qual Jeroboão, rei de Israel, caiu desde o começo (capítulo 13). O cisma é mo
tivado pela opressão econômica que Roboão pretende exercer sobre o povo e que
leva as tribos do norte a separar-se da “casa de Davi” e constituir uma monarquia
alternativa a Judá (12.19). Que o relato proponha que isso detona e não outra coisa
é sinal de que o autor compreende a dinâmica social que leva a coroa unificada
à ruptura. Entretanto, constatar que, em princípio, não era uma questão religio
sa, mas social e política, não impediu que o autor oferecesse sua interpretação
teológica dos fatos. Em 12.24, quando Roboão quer atacar as tribos separatistas, o
profeta Semaías adverte que não devem brigar entre irmãos, pois Deus disse “eu
é que fiz isso”, colocando como motor da ação a vontade de Deus e não as ações
humanas.
Uma vez consolidada a divisão, sucedem-se as histórias dos reis de Judá
e Israel de maneira entrelaçada e seguem um modelo mais ou menos fixo, que
consiste no seguinte esquema:
a) Data de ascensão.
b) Nome do rei do outro reino (Judá ou Israel) e seu pai.
c) Nome do rei (para os de Judá inclui o da mãe).
d) Idade do rei (somente os de Judá).
e) Tempo do reinado.
f) Menção da capital.
g) Narrativa dos atos do rei e qualificação do reinado.
h) Menção dos anais reais como fonte dos atos de cada rei.
i) Morte e sepultura.
j) Menção do sucessor.
187
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
T A B E L A D O S R E IS D E J U D Á E S A M A R IA
M O N A R Q U IA U N IF IC A D A
Saul 1020-1000
Davi 1000-961
Salomão 961-922
JU D Á I S R A E L (S A M A R I A )
D in a s tia d e O n r i
Josafá 873-849 Onri 876-869
Jeorão 849-843 Acabe 869-850
Acazias 843-842 Acazias 850-849
Jorão 849-843
Atalia 842-837
Joás 837-800 D in a s tia d e J e ú
Amazias 800-783 Jeú 843-815
Uzias 783-742 Jeoacaz 815-802
Joás 802-786
Jotão 742-735 Jeroboão 11 786-746
Q u e d a d e J e r u s a lé m 586
Cabe para esses textos a pergunta pela historicidade daquilo que foi narra
do. É significativo que o autor tenha o cuidado de reconhecer que seu texto narra
188
1 E 2 R eis
apenas o que lhe interessa em função de seu projeto teológico e deixa os demais
atos dos reis para quem tiver interesse em buscá-los nas fontes históricas. Essa é
a finalidade da frase repetida: “Quanto aos mais atos de..., porventura não estão
escritos no livro da História dos Reis de Judá (ou Israel)?” (IRs 14.19,29; 15.7;
16.20 etc.). Essa frase adverte o leitor de que o que foi dito é apenas uma seleção
de seus atos, remete o interessado a essas obras para encontrar mais informação
e deixa a porta aberta para reconhecer que o interesse final do texto não é contar
o que já estava disponível para o leitor nas fontes citadas, mas dar uma versão da
história que permita entender a razão da perda da cidade e do templo. Dito isso, é
preciso apontar que tudo indica que o que foi narrado tem um alto grau de verossi
milhança com 0 acontecido em cada reinado e que o autor deuteronomista utilizou
dessas fontes fidedignas aquilo que convinha a seu próprio interesse ideológico e
teológico e se ajustava a seu projeto. Para ser justo com essa situação é que uma
hermenêutica correta dessas narrativas deve levar em consideração a tensão inter
na nos relatos. Essa se expressa na dupla dimensão de, por um lado, apresentar-se
literariamente como história fática e, por outro, mostrar sua condição de texto
teológico. Ambas as dimensões da narrativa, longe de se anular, potencializam
-se. A história porque deixa de ser uma sucessão de fatos casuais para encaixar-se
numa linha coerente de sentido; a teologia porque se agarra a fatos reais que têm
como referência a ação direta de Deus na atividade humana.
O relato da queda de Samaria (2Rs 17) tem a intenção de estabelecer a
situação dos samaritanos. Reflete a necessidade no tempo do exílio ou da primeira
restauração para dar uma explieação histórica sobre a distância que os separa dos
filhos de Judá e, ao mesmo tempo, justificar por que adoram o mesmo Deus. A
arqueologia e a história estabeleceram que a maioria dos habitantes do Reino do
Norte não foi desterrada, mas permaneceu na terra para proporcionar mão de obra
aos novos governantes; também uma parte dos líderes conseguiu fugir para Jeru
salém enquanto um grupo minoritário foi forçado ao desterro. E muito provável
que, como diz o texto, se tenham unido à população nativa pessoas desterradas
provenientes de outras partes do império e que essas trouxeram seus deuses e os
adoravam. Porém o que interessa ao autor destacar nesse caso não é a idolatria,
mas o sincretismo. Pois não se trata de que os samaritanos adorem “outros deu
ses”, mas reconheçam o mesmo Deus, porém o adoram de forma paralela a outros
e de uma maneira, a seu parecer, incorreta. Visto de Judá, há uma falha na relação
entre os samaritanos e o Deus Javé, que se prolonga até “o dia de hoje” e este
capítulo apresenta como uma mácula de nascimento. E notório que a ênfase esteja
posta em que “temiam o Senhor e serviam as suas próprias imagens de escultura”
(v. 41), recurso com o qual se explica a proximidade, mas também a distância
do judaísmo pós-exílico em relação à comunidade samaritana. Não deve parecer
estranho que o parágrafo termine assim: “como fizeram seus pais, assim fazem
também seus filhos e os filhos de seus filhos, até ao dia de hoje” (cf. Sõding, p.
777; Sweeney, p. 393-396; Cohn, p. 116-122).
189
Introdução h e r m e n ê n u t ic a ao A ntigo T estamento
E pertinente perguntar por que não há livros dos profetas Elias e Eliseu
assim como há de seus contemporâneos, como Amós, Oseias e outros profetas. A
pergunta não nos deve levar em direção às razões históricas, pois seria improdu
tivo especular, já que não contamos com informação que nos oriente. Mais enri-
quecedor será elucidar o valor hermenêutico da presença em Reis das narrativas
sobre esses profetas, em especial se considerarmos que sua inclusão é claramente
artificial sob o ponto de vista literário, pois são intercaladas dentro da regularida
de das histórias bem ordenadas e alternadas dos reis de Judá e Israel.
Embora existam diferenças entre os ciclos de Elias e Eliseu, o texto apre
senta-os em sequência e, como já mencionamos, entrelaça suas narrativas ao co
locar a chamada de Eliseu no contexto das narrativas de Elias (IRs 19.19-21).
Elias recebe um mandato superior ao ser enviado para ungir o rei da Síria, o rei
de Israel e o profeta Eliseu (v. 15-16), mas não concretizará essas tarefas, e em
bora convoque Eliseu, não o unge, pois não havia a tradição de ungir profetas.
A Eliseu, 0 sucessor de Elias, são destinados oito capítulos e uma atitude mais
benevolente em relação aos sofrimentos cotidianos de nativos e estrangeiros, os
quais ajuda com milagres e ações simbólicas. Um fato notório para a teologia do
Antigo Testamento é que, quando Eliseu morre, o contato com seu corpo faz com
que um morto ressuscite. Por isso tudo indica que a função hermenêutica desses
relatos é colocar, no período mais obscuro dos reis de Israel, a luz lançada por
esses homens de Deus. A mensagem é que nem tudo o que acontece em Israel é
corrupção e idolatria e que Deus continua atento ao que acontece e chama pessoas
que 0 representam com fidelidade. Elias é o expoente máximo do javismo, ao
passo que Eliseu mostra o rosto de um Deus que não se detém diante de nada para
abençoar seu povo e atendê-lo em suas necessidades.
190
1 E 2 Reis
191
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
B IB L IO G R A F IA
192
1 E 2 R eis
193
14
1 e 2 Crônicas
195
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
babilónico mas omite toda menção ao sucedido nesse tempo de cativeiro, in
clusive desconhece os poucos dados oferecidos por 2Rs 25. Narra os fatos de
maneira diferente à da chamada “história deuteronomista”, que vai de Gênesis a
Reis, pois certos períodos são reduzidos à sua expressão mínima e outros são am
pliados, porém, em geral, se pode afirmar que é uma história que se concentra no
destino de Judá e no rei Davi, motivo pelo qual toda a sua apresentação é feita em
função de destacar o valor dessa tribo e de seu principal rei. Escrita no ímpeto da
necessidade de construir a sociedade pós-exílica, sua característica reside em des
tacar os valores que darão fundamento à fé e servirão de exemplo para consolidar
o presente e o futuro de Israel. A intenção de Crônicas não é fazer constar os fatos
históricos, mas reler o passado a partir de uma nova perspectiva para fortalecer o
projeto histórico à frente.
1. Lugar no cânone
196
1 E 2 C rônicas
2. Data e língua
197
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
de 2Cr 36.22-23, deve-se continuar a leitura em Ed 1.1. Por outro lado, 2Cr 36.23
finaliza de maneira abrupta com um verbo sem seu correspondente predicado (“...
e subam”), o que reforça o fato de que a leitura deve ser continuada em outro
lugar (cf. Eskenazi, p. 57-58). É difícil saber se 2 Crônicas copiou de Esdras ou
vice-versa, ainda que a primeira hipótese seja a mais provável. Porém é certo que
essa marca foi colocada nos primeiros tempos da redação dos textos, pois não há
indícios de versões que a omitam em nenhum dos dois casos.
Até o século XIX, entendia-se que Crônicas, Esdras e Neemias eram uma
única obra. Pressupunha-se que eram produto de um único autor, o qual foi de
nominado de “o Cronista”. Já antes dessa época, havia suspeitas de que não era
assim, mas a corrente principal ia nessa direção. A unidade da obra baseava-se
na observação de que nesses três livros se encontravam os seguintes aspectos
comuns (cf. Botta, p. 846):
198
1 E 2 C rônicas
SÓ não se pode postular um autor comum, mas de sua leitura surgem diferenças
formais e teológicas que impedem vinculá-los (cf. Japhet, 1993, p. 4-5).
Salvo alguma breve informação adicional, esses capítulos não valem pelo
que dizem senão por seu caráter. Estão aqui para lembrar-nos de que a história
a seguir (de Davi, Salomão e do reino de Judá) está enraizada nas origens e que
esses atores desfmtam da companhia de Deus desde o começo do mundo. Ao
finalizar a seção com a lista de quem habita Jerusalém, procura-se consolidar os
direitos dos repatriados. Existe um material similar em Ne 11, em que as pequenas
diferenças devem ser atribuídas ao fato de que nossa lista provavelmente corres
ponda à realidade dos habitantes de um momento posterior a Neemias. Entretanto
tudo está dito no modelo de um anacronismo evidente, pois mesmo que a lista
se apresente em 9.1 como a daqueles que retomaram em 539 a.C., o apêndice
(9.35-44) conclui com a genealogia de Saul, que corresponde, na linha histórica,
a vários séculos antes. Esse apêndice sobre Saul é a transição entre as genealogias
e a história propriamente dita que inicia no capítulo seguinte.
A articulação das unidades é diferente em 1.1 -2.2 do que na longa lista dos
capítulos 2-9. No primeiro caso, as genealogias estão ordenadas de maneira que,
para cada geração, são mencionados os descendentes e depois se descartam os que
199
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
não serão seguidos. Em último lugar, é mencionado aquele com o qual a linhagem
continuará. É uma estrutura bem armada e busca esquematizar para garantir cla
reza na continuidade das dinastias. Vamos representá-la da seguinte maneira, com
um esquema de Sarah Japhet (1993, p. 9);
B. De Sem a Abraão
Ismael 29-31
Quetura 32-33
Isaque 34a
200
1 E 2 C rônicas
A terceira seção (2Cr 10-36) é dedicada à lista dos reis de Judá desde o cis
ma de Samaria até os últimos reis durante as invasões caldeias, que arruinaram o
reino de Judá e levaram a população para a Babilônia em cativeiro. O Decreto de
Ciro encerra, como um apêndice, a obra com o convite para regressar a Jerusalém
com 0 objetivo de reconstruir o templo. A seção começa com uma introdução na
qual se narra o cisma das tribos do norte (2Cr 10.1-11.4) e depois continua em or
dem cronológica com cada rei de Judá num estilo narrativo e simples. O que mais
se destaca nesse texto em relação a seu paralelo em Reis é a omissão de qualquer
referência aos monarcas do Reino do Norte (Samaria). Crônicas considera-os em
rebeldia e afastados da fé e do culto legítimo, razão pela qual eles não têm lugar
em sua história. Na narrativa da dinastia davídica, há reis aos quais é dedicado
mais espaço e que são destacados. São eles: Asa (14.1-16.14), Josafá (17-20),
Ezequias (29-32) e Josias (34-35), dos quais apenas os dois últimos são aprovados
em seus atos em virtude das reformas religiosas que implantaram em Jerusalém.
5. As fontes históricas
Como toda obra de caráter histórico. Crônicas utilizou as fontes que teve
à sua disposição. Em nosso caso, são vários os documentos dos quais o autor
lançou mão. Podemos distinguir entre aqueles que são citados de maneira explí
cita e aqueles que podemos deduzir que foram utilizados. Entre os não explícitos
destacam-se Samuel e Reis como fontes principais, apesar de que há material nos
textos paralelos de Crônicas que não provém dessa fonte. Geralmente se rejeita
a ideia de que esses textos são produto da imaginação do autor e se pensa que
ele teve à sua disposição outras fontes ou contou com um texto do conjunto de
201
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Samuel-Reis diferente desse que possuímos hoje. Resta sempre um espaço para
presumir que houve informação que o autor recebeu como tradições orais ou onde
deixou que sua própria imaginação preenchesse vazios literários quando conside
rou necessário ampliar um relato ou incluir o que, a seu critério, eram fatos que
deviam ter ocorrido por simples bom senso. Esse último grupo, como é óbvio, não
é fácil de identificar. Esta é a lista que, com certa margem de segurança, podemos
afirmar que consta na obra;
202
1 E 2 C rônicas
uma variante em 25.26); O Livro dos Reis de Israel (20.34); Crônicas dos Reis de
Israel (33.18). É muito provável que todos esses nomes façam referência a uma
mesma obra e não a materiais diversos (cf. Childs, p. 645).
b - Uma fonte corresponde a um Midrash dos Reis de Israel. Menciona
-se esse comentário em 2Cr 24.27. É um material desconhecido sobre o qual não
dispomos informação e nem nos chegou seu conteúdo.
c —Doze obras são citadas com o nome de seu autor, em todos os casos
profetas, como “A história do vidente Samuel” (ICr 29.29), “A história do profeta
Natã” (2Cr 9.29) etc. Os profetas citados com essa fórmula e em diferentes mo
mentos do relato são; Samuel, Natã, Gade, Aías, Semaías, Ido, Jeú, Isaías e Josai.
203
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
por exemplo quando somente eles carregam a arca para o templo (ICr 15.11-15).
Além disso, desfrutam da exclusividade de ministrar a música no templo (ICr
16.4-37), têm a função de ensinar o povo (2Cr 17.7-9; 35.3) e de administrar
justiça (2Cr 19.8-11). Porém a divisão entre sacerdotes e levitas persistirá até a
destruição do templo (70 d.C.) e não será modificado seu papel, em certa medida
subordinado ao do sacerdócio.
204
1 E 2 C rônicas
B IB L IO G R A F IA
205
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
206
15
Esdras e N eem ias
207
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
208
E sdras e N eemias
Abaixo vamos oferecer uma estrutura literária que nos ajuda a entrar na
obra. Mas é preciso apontar que o texto resiste a ser organizado de forma ge
ral. Esdras-Neemias é a combinação de memórias com relatos, de documentos
textuais com listas genealógicas, de orações com outras listas genealógicas que
repetem as anteriores, mas que são diferentes, de narrativas lendárias com secos
dados historiográficos. Tudo isso de forma mais ou menos desordenada ou pelo
menos com uma ordem que não nos foi revelada. Isso é combinado com dados
cronológicos confusos e às vezes contraditórios. Dada essa situação, postulou-se
que Ed-Ne pode ser um ou vários apêndices aos livros de Crônicas e não uma obra
em si mesma. Sendo assim, não seria nem sequência de 1-2 Crônicas tampouco
um material separado, mas textos acrescentados logo depois deles. Isso expliearia
a aparente desordem e as incongruências internas, assim como o pouco interesse
em oferecer um fio condutor que misture todo o material. O difícil dessa proposta
é explicar as partes narrativas de Ed-Ne, que efetivamente ampliam a história
concluída em 2 Crônicas e que não são mais do que documentos com informação
complementar ao que já foi narrado (cf. Abade; Cortese, p. 789).
1.3. A cronologia
Foi dito com razão que a cronologia de Ed-Ne é um dos problemas mais di
fíceis de resolver de todo o Antigo Testamento (cf. Soggin; Childs). Assim como
as coisas estão ditas, não existe solução possível, e talvez devéssemos resignar
-nos a essa situação e assumir uma posição transitória a fim de poder avançar na
interpretação da obra. As coisas são assim: de acordo com o que lemos em Ed
7.7, esse teria chegado a Jerusalém antes de Neemias no ano 7 de Artaxerxes
(458 a.C.). De acordo com Ne 2.1, Neemias teria feito isso no ano 20 do mesmo
rei (445 a.C.). Dessa maneira, suas chegadas estariam separadas por apenas tre
ze anos. Teriam sido contemporâneos, e com certeza seus trabalhos complemen
taram-se para organizar a comunidade pós-exílica. Até aqui tudo parece claro,
porém o problema surge ao atribuir os textos a um e a outro. Por exemplo, é
surpreendente que Neemias nunca mencione Esdras em seus escritos. Também
que, quando Neemias chegou a Jerusalém, se revela que as muralhas não estão
restauradas (Ne 2.13-15), fato que contradiz a informação de Ed 7-10. Quando,
em Ne 5.15, Neemias critica com extrema dureza a corrupção dos governadores
que atuaram antes dele, dever-se-ia entender que as críticas incluem Esdras, que
o precedeu em alguns anos, ou, não sendo assim, ao menos deveria ser claro em
isentá-lo dessas práticas, mas não o faz. Parece estranho que Neemias proíba os
casamentos mistos (Ne 13.23s) quando se pressupõe que isso já fora feito por
Esdras (Ed 10.11). A menção dos diferentes monarcas complica o cenário, pois se
diz que, durante o reinado de Artaxerxes, os oponentes dos judeus enviaram uma
carta ao rei (Ed 4.7) para solicitar que mandasse parar a reconstrução da cidade,
209
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Longe da imagem tradicional de uma caravana única que volta à terra de
pois de setenta anos de cativeiro, de acordo com a informação que se pode deduzir
de Ed-Ne, teriam existido quatro grupos de exilados, que retomaram em momen
tos diferentes.
1 - O primeiro gmpo retomou sob a liderança de Sesbazar no ano 538 a.C.
no contexto do Decreto de Ciro. Esse grupo teria começado a construção do tem
plo, porém, devido à oposição de gmpos locais, não teria conseguido terminá-lo.
2 - 0 segundo gmpo voltou da Babilônia com Zorobabel e Josué durante
o reinado de Dario I (521-485 a.C.); apesar das hostilidades, finalizou o templo e
o inaugurou.
3- 0 terceiro gmpo era liderado por Esdras sob a proteção de Artaxerxes
(464-423 a.C.). Nessa viagem teria trazido uma cópia da Lei de Moisés e ter-se-ia
deparado com o fato de que a comunidade de Jemsalém estava muito afastada da
fé mosaica.
4 - 0 quarto e último gmpo teria chegado com Neemias nos tempos de
Artaxerxes II (404-358 a.C.) e teria encarado a reconstmção do muro perimetral
da cidade e outras reformas sociais.
210
E sdras e N eemias
1.5. Os documentos
211
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1.6. Os personagens
212
E sdras e N eemias
sol) preserva o pai’. É a ele que Ciro entrega os utensílios do templo que Na-
bueodonosor havia trazido depois do saque, a fim de que volte a colocá-los no
futuro templo reconstruído. Sesbazar é mencionado novamente em Ed 5.14-16 no
contexto da carta que Tatenai envia a Dario para solicitar que parem as obras da
cidade. Essa citação de um documento em aramaico confirma de certo modo sua
liderança e acrescenta a informação de que fora nomeado governador por Ciro e
que havia comandado a construção dos alicerces do templo. Seja qual for nosso
grau de confiança na credibilidade desse documento, o certo é que o texto aceita
Sesbazar como o legítimo líder da comunidade, que retoma e sobre quem cai a
responsabilidade de reconstmir o templo.
Especulou-se que pode ser a mesma pessoa que é mencionada em 1Cr 3.18
como Senazar e que é descendente do rei Salomão. Também que Sesbazar é a
forma persa do nome Zorobabel, de modo que seria a mesma pessoa; porém isso é
muito improvável, pois não se vê razão para que o redator mantivesse dois nomes
diferentes e criasse confusão na narrativa. Não se volta a falar nele em nenhum
texto, e chama a atenção sua ausência na lista dos que voltaram em Ed 2.2.
Zorobabel - Seu nome significa ‘gerado na Babilônia’; em princípio, sur
preende que com tal nome tenha sido um líder da comunidade que regressa a Judá.
Entretanto, é de linhagem real (ICr 3.19 e Ed 3.2 expressam-no por intermédio de
linhas diferentes, mas ambas conduzem a Davi), e talvez se deva entender que a
avaliação da experiência do cativeiro pelos sobreviventes foi positiva no sentido
teológico - permitiu a purificação da fé por meio da dureza da prova - e como
experiência cultural em que renovaram sua escrita e adquiriram novos valores
culturais. Se foi assim, seu nome condiz com a função que lhe coube exercer.
Os profetas Ageu e Zacarias celebram-no como aquele no qual se deposi
tou a confiança de Deus para a reconstrução do templo e a fé da comunidade. O
estranho desse personagem é que desaparece sem deixar rastros. Não se mencio
nam sua morte nem seu destino, e seu nome passa a ser ignorado a partir do mo
mento da inauguração do templo (Ed 6.16-22). Sua figura aparece vinculada à do
sacerdote Josué e - congruente com essa amizade - à busca de preservar a pureza
da fé. Em 4.1-3, Zorobabel rejeita o desejo dos habitantes de Judá de fazer parte
dos construtores do templo, apesar de que argumentam que eles buscam “a vosso
Deus; como também já lhe sacrificamos desde os dias de Esar-Hadom”. Ele pre
fere trabalhar sozinho a unir-se àqueles que viviam nas imediações de Jerusalém.
Esdras - Em hebraico significa ‘ajuda’ e provavelmente foi entendido
como “o que facilita o acesso” ao conhecimento da Lei de Deus. A definição
de sua personalidade é dada em 7.10; preparou-se para estudar a Lei, cumpri-la
e ensiná-la. Era de estirpe sacerdotal, escriba e conhecedor da Lei. Durante o
reinado de Artaxerxes, empreende sua viagem a Jemsalém, acompanhado de um
grande número de judeus. Uma de suas principais preocupações era eliminar os
casamentos de judeus com mulheres cananeias, o que conseguiu à custa de insistir
e promover um novo pacto entre a população, que incluía a expulsão das atuais
mulheres e dos filhos nascidos com elas.
213
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
214
E sdras e N eemias
215
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
216
E sdras e N eemias
B IB L IO G R A F IA
217
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
218
S eção V
LIVROS PROFÉTICOS
16
A literatura profética
221
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1. Os gêneros literários
222
A LITERATURA PROFÉTICA
todas as obras, cada uma com sua forma peculiar de abordagem dos problemas
sociais. E, sem dúvida, para os profetas é um tema recorrente e central, mas é pre
ciso notar que não está sozinho, porém é acompanhado pela preocupação com o
culto, a construção do templo, as lideranças nocivas, o vínculo com outras nações,
a santidade do sacerdócio, bem como com muitos outros temas. Definitivamente,
a literatura profética não oculta sua matriz religiosa, e os livros apresentam, com
toda a crueza, o conflito entre a fé e a realidade social ou entre a fé e a vida daque
les que conduzem a comunidade. Os profetas concebiam a realidade sem evitar
o contexto político local e internacional no qual o Deus de Israel agia e chamava
para agir (cf. Petersen, p. 37-42).
B IB L IO G R A F IA
223
17
Isaías
225
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
226
ISAÍAS
dança também implicava um giro no tema tratado - o que sugere uma ruptura - ou
uma resposta à situação anterior - o que exigiria continuidade.
Com mais perspicácia, observou-se que diferentes textos respondiam a si
tuações sociais muito diversas ou contextos políticos que não correspondiam uns
aos outros. Mesmo que houvesse posturas conservadoras que buscavam explicar
intemamente esses detalhes a fim de manter a unidade do livro, quase no começo
do século XX já se havia chegado a um consenso sobre as diferentes partes da
obra. A consideração daqueles elementos levou os pesquisadores a descrever, em
um primeiro momento, duas partes bem definidas. A primeira abrangia os capítu
los 1-39 e foi identificada com o profeta pré-exílico apresentado em 1.1, ao passo
que os capítulos 40-66 foram atribuídos a um profeta pós-exílico anônimo. Em
um segundo momento, identificou-se uma divisão dentro da segunda parte, reco
nhecendo 40-55 como uma obra independente de 56-66, e atribuiu-se a primeira a
um profeta dos últimos anos do exílio babilónico e o restante foi considerado uma
obra - talvez uma antologia - composta de textos pós-exílicos. Assim se chegou a
um consenso em relação à composição de Isaías, expressa de forma esquemática
do seguinte modo: um profeta pré-exílico que denominamos de Primeiro Isaías e
que abrange os capítulos 1-39; um Segundo Isaías exílico (40-55) e um Terceiro
Isaías pós-exílico (56-66), esse último representado mais por uma escola do que
por um único profeta. Hoje em dia, essa divisão é aceita até o ponto em que não é
estranho ver que alguns comentários bíblicos os publicam em volumes separados
e redigidos por diferentes autores, como se se tratasse de três livros independen
tes. Entretanto, sob uma perspectiva hermenêutica, é preciso fazer algumas obser
vações e expressar várias consequências dessa divisão do texto.
227
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
contribuições do novo autor. Cada uma das três partes modifica as anteriores em
dois sentidos: a) em sentido material, ao incorporar ou modificar o texto recebido;
b) modifica-o sob o ponto de vista semiótico ao provocar uma nova constituição
semântica: o antigo final já não é; o centro mudou; os temas (também os preexis
tentes) foram localizados em uma perspectiva diferente ao ser ampliados como
parte de uma obra mais extensa e com um novo final. Ao concluir esse processo
de elaboração literária, estamos diante de uma nova obra.
2 - A leitura crítica coloca o contexto histórico como o principal agente na
interpretação de Isaías. Além de que geralmente a descrição do contexto social e
histórico de um texto costuma ser hipotética e produto de uma opção entre várias,
no caso dos três tempos históricos aos quais cada parte do livro é atribuída, vemos
que se combinam e entrelaçam de tal modo que os incapacita como chave de leitu
ra. Em sentido estrito, nenhuma das três partes, assim como hoje são encontradas
no cânone, corresponde aos contextos anunciados, pois todas integram textos de
outros períodos.
3 - E preciso lembrar que a obra não é um registro da vida dos profetas
envolvidos. Portanto pressionar a identidade dos autores individuais de cada uma
das partes, sua personalidade e temas de interesse é uma empreitada de sucesso
duvidoso e que pode desviar do sentido impresso no livro todo. De fato, dos cha
mados Segundo e Terceiro Isaías não nos são dados os nomes nem a data de seu
ministério, tampouco há dados pessoais, e ainda mais: a obra faz claros esforços
para invisibilizá-los. A intenção é que o leitor identifique 40-55 e 56-66 como
obras de um mesmo profeta chamado Isaías, fato que tem importantes consequên
cias hermenêuticas e teológicas, que não devem ser evitadas em nossa leitura.
4 - Como já afirmamos a respeito de outros livros, a leitura que enfatiza a
abordagem histórica confunde unidade da obra com o punho de um único autor, e,
portanto, ao revelar o caráter fragmentário de sua redação, costuma perder de vis
ta a unidade teológica. Isaías (Zacarias é outro exemplo) possui unidade teológica
se for lido como totalidade, muito além das transformações de sua composição.
Isso não significa que não seja um livro complexo, que inclua subterfúgios e con
trastes, mas houve uma mão que deu a forma final a essa imensa obra e criou uma
peça teológica que não existia antes. Esse autor é aquele que chamamos de Quarto
Isaías.
3. O Quarto Isaías
A identificação dos três contextos que correspondem a cada uma das partes
não abrange a totalidade dos textos do livro (cf. Croatto, 2004, p. 207-211). En
quanto podem ser identificadas passagens pré-exílicas nas quais a denúncia das
injustiças sociais e a insensibilidade dos poderosos se sobressaem a outros aspec
tos da vida do povo (1.23; 3.16-4.1); enquanto os textos de consolo e de anúncio
do perdão de Deus podem ser vinculados ao final do exílio babilónico, quando a
228
ISAiAS
229
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
4. Consequências hermenêuticas
230
I saías
232
ISAÍAS
nesse instante. E possível que esse versículo seja produto da mão do Segundo
Isaías, que considerava necessário atualizar o texto e destacar que no presente já
estão vivendo as consequências dessas condutas. Deixá-las como insinuação para
o futuro tirava-lhes eficácia diante dos fatos concretos de viver no cativeiro. A
seção encerra com o anúncio de uma invasão estrangeira que conquistará a terra.
Será um exército bem treinado e profissional. Perto do final, o texto assume um
tom cósmico ao apontar que haverá trevas, dor e a luz do céu escurecerá. Assim,
a consequência dos pecados será materializada na perda da terra em mãos de um
exército estrangeiro. Isso, num primeiro momento, deve ter feito referência à in
vasão de Senaqueribe no ano 701 a.C., mas, no novo contexto linguístico gerado
pela redação final, deve-se interpretar como uma alusão a uma perda muito maior
do que a da liberdade política - situação desfrutada muito esporadicamente e de
maneira condicional depois do fim da monarquia. O que está em jogo é o desapa
recimento como nação e como povo de Deus.
Esta unidade reúne uma série de profecias contra - às vezes apenas sobre
- diversas nações e compartilha o gênero com outros textos proféticos, como
Amós 1-2, Jeremias 46-51 e Ezequiel 25-32. Alguns autores incluem os capítulos
24-27 (às vezes chamados de “Apocalipse de Isaías”) entre as profecias contra as
nações, porém o estilo cósmico desses capítulos contrasta com o mais contextual
alusivo às nações (cf. Petersen, p. 83). Em todos os casos, seu conteúdo reflete por
momentos a angústia, em outros a vingança e em outros ainda a sede de justiça
em relação àquelas nações que oprimiram ou traíram Israel. Pode-se afirmar que
o núcleo dessas profecias é pré-exílico, mesmo que seja mais difícil determinar se
0 autor delas é o mesmo profeta Isaías ao qual o restante dos textos dessa época
são atribuídos ou se estamos diante de um gênero independente, que mais tarde foi
acrescentado às palavras dos grandes profetas já mencionados. Nós nos inclina
mos pela segunda opção, a qual estabelece uma diferença hermenêutica em rela
ção ao resto dos textos. Se fôssemos muito meticulosos a respeito da identificação
de autores, teríamos que falar de um Quinto Isaías ou de uma fonte ou escola de
profecias contra as nações, da qual vários profetas teriam lançado mão.
Há alguns aspectos que devem ser destacados. Em primeiro lugar, essas
profecias são dirigidas a Israel e Judá e não às demais nações. A teologia que os
estrutura é j avista, e portanto somente o povo que reconhece esse Deus pode sen
tir a importância do que é dito ali. Um ouvinte moabita ou babilônio não ficaria
impressionado com essas palavras que se fundamentam em um Deus desconhe
cido e cujo poder é duvidoso para ele. O segundo aspecto é que sua razão de ser
é testemunhar a história passada de Israel e a memória de Deus sobre os fatos
denunciados. A angústia pela opressão ou por ter visto seus filhos e filhas vendi
dos ao estrangeiro não é esquecida. Ao contrário, é resgatada pelo texto profético
e mantida em alta como promessa de justiça pendente. Revela que a história de
233
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Israel não está desvinculada do restante do destino daqueles que o rodeiam, nem
vice-versa, e que seus dias estão ligados àqueles que compartilham a história com
eles e agiram em prejuízo de sua vida. Por último, essas profecias expressam o
crescente sentir da ação universal de Deus (cf. Croatto, 1989, p. 93). A passagem
do Deus “dos pais” e do Deus “do lugar” - o primeiro exclusivo para uma se
mente, e 0 segundo focalizado no templo e sujeito ao destino da construção - ao
Deus “dos céus” abre o caminho em direção a uma compreensão em que o poder
e a ação do Deus de Israel interessam a outras nações e outros lugares e pode ser
entendida como se fosse mais além do horizonte do povo que o reconhece. Textos
nos quais Ciro é apontado como braço do Deus de Israel (41.1-7; 44.28-45.6; Ed
1.1-4) são construídos sobre esse entendimento. Um rei que não sabe do Senhor
nem o adora, que proclama outros deuses como superiores e que respeita, porém
não compartilha a fé de Israel, é apresentado como instrumento inconsciente do
plano delineado pelo Deus dos israelitas.
234
I saías
235
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
do Senhor” (no plural), uma expressão ausente até o momento, mas recorrente em
56-66 (56.6; 63.17; 65.8,15; 66.14). Isso nos deixa em alerta sobre a necessidade
de ler mais além do capítulo 55 em busca de vínculos que transcendam a fronteira
clássica do Segundo Isaías. Ao mesmo tempo, ao ler com cuidado os temas do ca
pítulo 55, descobrimos que, mais do que se referir a 40-54 (que vimos que já têm
sua conclusão em 54.47b), vinculam-se melhor aos capítulos que vêm a seguir.
Não se pode atribuir à mera coincidência a simpatia e o sentido de certas questões.
O que aconteceu é que, ao estender o texto com o acréscimo de 56-66, ressignifi-
cou-se o papel do capítulo 55 na configuração de 1-66. Note-se que, em 55.3, se
volta a falar da confirmação da aliança de Deus com a dinastia davídica, porém
agora em uma nova forma, pois já não se centra na pessoa de Davi, mas em todo
o povo. Passou-se de uma aliança com a figura emblemática da monarquia - que
se entendia representante do povo - para uma com o próprio povo, sem necessi
dade de um mediador. Essa afirmação é crucial para a teologia do pós-exílio, pois
se tinha assinalado que o Senhor havia eleito Ciro da Pérsia como seu messias,
construtor do templo e benfeitor do povo. Se esse rei estrangeiro havia cumprido
as expectativas da promessa, qual era o sentido de continuar esperando um mes
sias do tronco de Davi? Aos ouvidos de muitos, isso punha em dúvida a vigência
da aliança davídica, mas o capítulo 55 permite compreender que, embora a figura
de Davi pareça desvanecer-se, a vocação pela aliança não tem a mesma sorte e
continua como pacto com “os servos do Senhor”. É o povo que receberá os be
nefícios da aliança, mesmo que esses se expressem através de “um povo que não
conheceram” (cf. Sweeney, 1997, p. 45-48). E justamente o tema crucial de 55-66
será a permanência da promessa de Deus de estar com seu povo, apesar de suas
rebeldias e do amor de Deus por Jerusalém, que será constituída casa de reunião
para todos os dispersos. Dessa maneira, comprovamos que a função retórica do
capítulo 55 não coincide com seu lugar na história do texto, isso porque o redator
final utilizou suas palavras como introdução à seção 55-66. Ao introduzir 54.47b
como conclusão de 49-54 e de todo o Segundo Isaías, o redator liberou o texto do
capítulo 55 para que funcionasse como introdução à seção na qual o tema essen
cial será garantir que a aliança de Deus com seu povo ainda continue viva, mesmo
que no momento não se possa insistir na figura de um descendente de Davi.
236
I s a ía s
O livro finaliza com um salmo de louvor (capítulo 12), que contrasta com a men
sagem geral de julgamento e condenação presente em 6-12. Visto que ambos os
textos têm - por motivos diferentes - um forte tom litúrgico, é possível ver nessa
seção uma unidade de sentido, ainda que construída com materiais diversos e
provenientes de todas as épocas da redação de Isaías.
A figura à qual se faz referência recebeu sucessivas releituras, que enri
queceram seu valor semântico, mas no texto se refere, em primeiro lugar, a um
menino (7.14) cujo nascimento é iminente. Isso faz pensar que se refere ao filho
de Âcaz, rei de Judá, que fez aliança com a Assíria para defender-se de Damasco
e Samaria no contexto da guerra siro-efraimita e que agora parece confiar mais no
rei assírio do que no Senhor. Ainda que seja muito provável que se refira a ele, isso
não impede que o símbolo do menino seja controverso. A interpretação geral vê-o
como o portador da libertação, como o messias. Assim o entendeu Mt 1.23, que
através da Septuaginta leu “virgem” onde no texto de Isaías diz “donzela”, mulher
jovem, que envolve ser mãe pela primeira vez. Entretanto é pouco provável que a
intenção do texto seja outra senão fazer referência a uma figura iminente, humana
e concreta, que será um sinal de esperança para os habitantes de Judá naquele
momento (cf. Asurmendi, p. 50-54).
O alimento do menino (“manteiga e mel”, v. 15) não tem importância real,
pois menciona um tempo de pobreza e devastação no qual o filho do monarca se
alimentará de comida simples e silvestre. O fato de que antes que chegue à ma
turidade um povo estrangeiro dominará não apenas sobre os inimigos Damasco
e Samaria, mas sobre a própria Jerusalém, acrescenta uma dose de dramatismo à
particularidade do menino. Por outro lado, a sucessão de textos de condenação,
que se alternam com anúncios de libertação, faz com que os primeiros textos se
harmonizem e, no final, se conclua com a esperança na proteção de Deus (12.2).
Denunciam-se o recurso à idolatria e à magia (8.19), as injustiças aos pobres
(10.1-2), a devastação pela Assíria como castigo pelas rebeldias (10.6). E tudo
isso contrasta com o anúncio de 9.1-6 de um rei que governará com justiça e
igualdade. Ainda que o texto não faça alusão a quem seria essa pessoa, é preciso
colocá-la na linha de 7.14 (Ezequias, o filho de Acaz, que já mencionamos), que
teve uma amação destacada e foi reconhecido como um dos grandes reis de Judá
(2Rs 18-20). Também o Quarto Isaías deixou seu vestígio em 11.10-16, onde se
combina uma profecia sobre os cativos da Babilônia com palavras mais tardias
sobre a diáspora em outras partes do mundo mediterrâneo (v. 11).
O capítulo 11 é o mais explícito a respeito da estirpe davídica do rei anun
ciado. Porém esse rei não surgirá da sucessão natural, mas de um tronco mutilado.
Embora o anúncio seja de salvação, deve ser lido no contexto textual que prevê
uma séria crise na linha sucessória antes que esse rei chegue a ser coroado. Não
é um texto triunfalista, muito pelo contrário. São palavras que assinalam que é
necessário passar por um momento muito difícil, depois do qual o Senhor enviará
um salvador. É uma sutileza que revela a alta qualidade de estilo do texto o fato
237
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
238
ISAÍAS
239
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
240
ISAÍAS
BIBLIOGRAFIA
241
Introdução hermenênutíca ao A ntigo T estamento
RUPPERT, Lothar. “Crítica a los dioses en el libro de Isaías”. RevBíbl 58. 1996.
p. 129-159.
SICRE DÍAZ, José Luís. Los dioses olvidados. Poder y riquezas en los profetas
preexílicos. Madri, 1979.
_______ . Con los pobres de la tierra: la justicia social en los profetas de Israel.
Madri, 1984.
_______. Profetismo en Israel. Estella, 1992. p. 195-202 e 284-296.
SMITH, P. A. Rethoric Redaction in Trito-Isaiah. The Structure, Growth Author
ship of Isaiah 56-66. VT Sup. Leiden, 1995.
SWEENEY, Marvin. “The Reconceptualization of the Davidic Covenant in Isa
iah”, in; VAN RUITTEN, J. e VERVENNE, M. (eds.). Studies in the Book o f
Isaiah. Festschrift Willem A. M. Beuken. Lovaina, 1997. p. 41-62.
TULL WILLEY, Patricia. Remember the Former Things. The Recollection of Pre
vious Texts in Second Isaiah. SBLDS 161. Atlanta, 1997.
VAN RUITTEN, J. “The Intertextual Relationship Between Isaiah 65,25 and Isa
iah 11,6-9”, in: GARCÍA MARTiNEZ, Florentine et al. (eds.). The Scrip
tures and the Scrolls. Leiden, 1992. p. 31-42.
WESTERMANN, Claus. Isaiah 40-66. OTL. Londres, 1978.
WHYBRAY, R. N. Isaiah 40-66. NCBC. Grand Rapids, 1990.
_________ . The Second Isaiah. Sheffield, 1995.
242
18
Jeremias
243
I ntrodução hermenénutica ao A ntiqo T estamento
quem escreveu suas palavras, sem dúvida uma fórmula que faz alusão à sua au
toria intelectual, mas não que tenha sido ele próprio quem escreveu no rolo. Essa
insistência no escrito anuncia o desejo de transcendência da mensagem do profe
ta. Quando os outros profetas bíblicos parecem não se preocupar com o registro de
suas palavras, no caso do livro que nos ocupa há uma expressa intenção de legar
à posteridade sua mensagem. Mesmo que a historicidade de Baruque como secre
tário provavelmente foi real, ao ler sob perspectiva hermenêutica observamos que
essa condição de obra ditada a um escrevente é um recurso literário que vale por
si mesmo e não necessariamente por sua condição histórica. Coloca o leitor no
lugar de ter acesso a uma obra que se apresenta desde seu próprio texto como obra
literária, produto de alguém que dita e alguém que coloca em um rolo o que é dito
e até chega a modificar um primeiro texto para reescrevê-lo e acrescentar informa
ção ao anterior (veja-se 36.32). O processo de escrita e reescrita que deduzimos
para quase cada livro da Bíblia está descrito aqui com extrema naturalidade.
A obra termina no capítulo 52 com uma reprodução quase literal de 2Rs
24.18-25.30, em que se descrevem a queda e a destruição de Jerusalém e do tem
plo. Isso é um indício de que, sob o ponto de vista hermenêutico, toda a obra
deve ser lida na perspectiva daquele final e, ao mesmo tempo, adverte-nos sobre
o risco das leituras historicistas. A vida do profeta finaliza pouco depois da queda
de Jerusalém, e portanto suas palavras foram ditas ou escritas em sua maioria
- senão todas —antes desse evento. Porém a obra literária que chamamos de Je
remias é uma elaboração posterior à destruição da cidade, que demonstra pouco
interesse em registrar os fatos históricos com objetividade, mas investe muito em
interpretá-los. Assim, o final escolhido para o livro termina por definir o sentido
de todo o anterior.
244
J eremias
Essa diversidade de situações, que incluem o reinado de Joacaz por três meses,
entre a morte de Josias e a ascensão de seu irmão Joaquim, também expressam di
ferentes climas religiosos e políticos: Josias é um rei com energia e poder próprio,
o grande reformador da fé e que expulsa os ídolos e destrói os altares, enquanto
seus sucessores voltarão à idolatria e estarão muito condicionados politicamente
pelas repercussões em Israel das tensões entre o Egito e a Babilônia.
A menção de que o lugar de origem de Jeremias é a aldeia de Anatote e que
seu pai era um dos sacerdotes daquela localidade tem valor hermenêutico, pois
coloca-o entre o grupo de sacerdotes descendentes daquele Abiatar, sacerdote de
Davi, que fora expulso por Salomão e confinado a essa terra (IRs 2.26-27). A
aldeia está situada ao norte de Jerusalém, no território de Benjamim, e portanto
corresponde ao que havia sido o Reino do Norte, eliminado por Salmanasar, rei
dos assírios, no ano 722 a.C. Essa região possuía suas próprias tradições religiosas
e sua particular visão da história de Israel, que nem sempre coincidia com a de
Judá, a qual se tomara a história oficial. Essa origem demonstra a preocupação
de Jeremias pelo destino das tribos do Reino do Norte (Israel), pois carregava
em sua história familiar a perda de sua própria nação, assim como a preocupação
pelos exilados, sem dúvida uma evocação da diáspora dos israelitas do norte (2Rs
17.23). Ainda assim, os sacerdotes de Anatote, contemporâneos de Jeremias, que
viviam distantes do templo e das intrigas palacianas, também não serão partidá
rios da mensagem de Jeremias, mas irão buscá-lo para o assassinar (11.18-23).
Durante sua vida. Jeremias não contou com nenhuma região - nem sua própria
aldeia - que lhe fosse fiel e o apoiasse.
Com a ressalva de que a Bíblia Hebraica o inclui entre aqueles que chama
de “profetas posteriores”, pois denomina de “profetas anteriores” os livros de
Josué, Juizes, Samuel e Reis, Jeremias ocupa, em todos os cânones conhecidos,
o segundo lugar na ordem dos profetas, sucedendo Isaías. Como já menciona
mos em outros casos, por razões que desconhecemos, a versão grega Septuaginta
transfere os três grandes profetas (Isaías, Jeremias e Ezequiel) para o final do
conjunto dos livros proféticos (veja-se a tabela de cânones no item “As Escrituras
canônicas” da Seção II), porém não altera sua ordem interna.
O texto hebraico de Jeremias é geralmente claro e sem fissuras, mas o
problema se apresenta quando se constata que a versão grega da Septuaginta é
substancialmente diferente. O texto grego é um oitavo mais breve (tem cerca de
2.700 palavras a menos), e essa diferença não consiste na ausência de parágrafos
completos, mas excepcionalmente se revela em pequenas omissões ao longo de
todo o texto. Ao mesmo tempo, a estrutura do texto grego é diferente, pois coloca
as profecias contra as nações a partir do capítulo 25 em vez de apresentá-las no
final, como no texto hebraico, em que ocupa os capítulos 46 a 51. A isso deve-se
245
Introdução hermenenutica ao A ntioo T estamento
acrescentar que, embora ofereça o mesmo conteúdo, apresenta-o com uma dispo
sição das profecias diferente da hebraica. Nesta lista podem ser vistas ambas as
distribuições das profecias contra as nações:
Hebraica LXX
Egito Elão
Filístia Egito
Moabe Babilônia
Amom Filístia
Edom Edom
Damasco Amom
Quedar Quedar
Elão Damasco
Babilônia Moabe
246
J eremias
1 Ouvi a palavra que o Senhor vos fala a vós outros, ó casa de Israel.
2 Assim diz o Senhor: Não aprendais o caminho dos gentios, nem vos espan
teis com os sinais dos céus, porque com eles os gentios se atemorizam.
3 Porque os costumes dos povos são vaidade; pois cortam do bosque um ma
deiro, obra das mãos do artífice, com machado;
4 com prata e ouro o enfeitam, com pregos e martelos o fixam, para que não
oscile.
5 Os ídolos são como um espantalho em pepinal e não podem falar; necessitam
de quem os leve, porquanto não podem andar. Não tenhais receio deles, pois
não podem fazer mal, e não está neles o fazer o bem.
6 N in g u é m h á s e m e lh a n te a ti, ó S e n h o r ; tu és g r a n d e , e g r a n d e é o p o d e r
d o te u n o m e .
7 Q u e m te n ã o te m e r ia a ti, ó R e i d a s n a ç õ e s ? P o is isto é a ti d e v id o ; p o r
q u a n to , e n tr e t o d o s o s sá b io s d a s n a ç õ e s e em to d o o se u r e in o , n in g u é m
h á s e m e lh a n te a ti.
8 M a s e le s to d o s s e to r n a r a m e s tú p id o s e lo u c o s ; se u e n s in o é v ã o e m o r to
c o m o u m p e d a ç o d e m a d e ir a .
9 Trazem prata batida de Társis e ouro de Ufaz; os ídolos são obra de artífice e
de mãos de ourives; azuis e púrpuras são as suas vestes; todos eles são obra
de homens hábeis.
10 M a s o S e n h o r é v e r d a d e ir a m e n te D e u s; e le é o D e u s v iv o e o R e i e te r n o ;
d o se u fu r o r tr e m e a te r r a , e a s n a ç õ e s n ã o p o d e m s u p o r ta r a su a in d ig
n ação.
11 Assim lhes direis: Os deuses que não fizeram os céus e a terra desaparece
rão da terra e de debaixo destes céus.
247
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
ao anunciar que os ídolos que foram descritos como inertes também devem de
saparecer da terra. Temos a sensação de que esse último versículo corresponde a
uma situação extrema na qual a simples menção dos deuses e ídolos estrangeiros
produzia uma rejeição visceral nos líderes religiosos de Israel. Se assumimos que,
por razões linguísticas, o versículo aramaico pode ter sido o último a ser integrado
ao texto, é possível imaginar que corresponde ao contexto da segunda metade do
século II a.C., quando Israel se recupera, com a invasão dos macabeus, de ter sido
obrigado a adorar os deuses estrangeiros em seu próprio templo. Dessa maneira,
a leitura do texto atual leva-nos a uma teologia que, por um lado, denuncia a in
sensatez da adoração de ídolos sem vida e, por outro, contrasta com a grandeza e
o poder do Deus de Israel. A conclusão da passagem no versículo final anuncia a
erradicação quase cósmica dos ídolos que não fizeram os céus e a terra e, portanto,
não merecem habitá-los.
Devemos tirar outra conclusão desse exemplo. Surge dessa análise que
para os séculos II-I a.C. o texto de Jeremias ainda estava em processo de elabo
ração e fixação. A pena hermenêutica ainda não havia chegado à sua meta e con
tinuava incorporando texto a fim de enfeitar a mensagem. Falar contra os ídolos
não é suficiente se não se anuncia a força do verdadeiro Deus. Anunciar Deus
não é suficiente se não se determina a impossibilidade dos ídolos de criar nada e,
portanto, seu destino insignificante e banal.
a) Profecias em poesia
b) Narrativas sobre Jeremias
c) Palavras e sermões de Jeremias
d) Profecias de esperança
248
_________________________________________________________ ___ ______ ________________ ______ J eremias
grupo, que não se mistura com os outros. O problema para o leitor e para quem
tenta organizar o texto é que esses quatro grupos se apresentam intercalados, mis
turados e com limites imprecisos. Os textos B são geralmente atribuídos à pena de
Batuque, com base no que foi dito no capítulo 36, onde se narra que Jeremias dita
as palavras recebidas do Senhor e aquele as põe por escrito. Entretanto, isso não
deve ser entendido de maneira direta e franca, pois mesmo dentro dos relatos bio
gráficos e de estilo autobiográfico observam-se diferenças que permitem duvidar
do monopólio de um único redator para todos esses textos. Porém, independente
mente de quem foi o autor ou os autores, os textos B têm elementos em comum
que permitem identificá-los e reuni-los em contraste com o resto. Os textos C
têm um forte tom homilético e permitem perceber seu caráter deuteronomístico.
Por essa razão não são considerados de Jeremias, mas posteriores à sua época;
entretanto por suas características não é difícil pressupor que podem ter recupe
rado textos ou testemunhos do próprio profeta ou de seus seguidores imediatos.
Da mesma maneira, os textos A, embora contenham confissões que são íntimas e
que não parecem proceder de outra pessoa senão do profeta, evidentemente foram
editados e em sua forma atual participam de um texto muito complexo que não
pode ser reduzido a uma simples autobiografia. Os textos A - profecias em poesia
- e os textos B - narrativas em prosa - intercalam-se na primeira parte, ao passo
que na parte II encontramos narrativas em prosa, com exceção dos capítulos 30
e 31 (grupo D), que estão escritos na forma de poesia, mas têm a particularidade,
para esse livro, de ser profecias de esperança e restauração. Os textos C - palavras
e sermões de Jeremias - aparecem nas partes I e II de maneira indeterminada. O
grupo D, além da seção 30-33 - composta de poesia e prosa dentro da segunda
parte inclui textos preliminares como 3.14-17 e 23.3-8, incluídos na primeira
parte (cf. Alonso Schõkel, I, p. 411-415; Collins, p. 334-335).
Para avaliar a riqueza e a complexidade dessa obra, é preciso compreender
sua condição literária - mesmo não sendo histórica em todas as suas partes - de
“obra ditada”, que se apresenta como um texto mediado por um escrevente e, por
tanto, assume sem rodeios sua condição de ser um texto editado. A impressão que o
conjunto da obra dá ao leitor é que, em determinado momento, um redator teve so
bre sua mesa diversos textos de Jeremias, tradições populares sobre sua vida, textos
de seus discípulos, material proveniente da pena de Bamque e outros textos vincula
dos com a vida e a pregação do profeta. Com eles teria consfiuído a obra que, depois
de sucessivos estágios, chegou a ser aquilo que o cânone reconhece como o livro de
Jeremias. Tudo isso fala da complexidade da redação dessa obra e das dificuldades
enfrentadas por quem quiser dominar sua forma literária e sua mensagem.
249
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Esta seção é na sua totalidade em prosa, com exceção dos capítulos 30-31,
que tratamos mais adiante. Tradicionalmente atribuída a Baruque, nela se encon
tram relatos da vida de Jeremias, que enquadram as profecias de salvação 30-33.
Os capítulos 26-29 descrevem ameaças e um tempo de tribulações de Israel por
seus pecados e terminam com uma carta enviada aos que estão cativos na Babi
lônia, solicitando-os a fortalecer-se e preservar sua identidade, pois, após setenta
anos, seus descendentes voltarão a Sião. Mesmo que provavelmente a carta tenha
sido redigida após os fatos, o que ela busca é atenuar o efeito das profecias de cas
tigo e destruição que a cercam. Ao colocá-la como abertura para os capítulos de
salvação (30-31), ela permite anuneiar a esperança em “um novo pacto” (31.31
34) em meio a um relato de juízo. O capítulo 39 narra a queda de Jerusalém nos
mesmos termos de 2Rs 25.1-12, texto que voltará a aparecer no capítulo 52. E
significativo que esse relato suceda os capítulos 37-38, em que se busca eliminar
o profeta e sua mensagem. Em primeiro lugar, o rei ordena queimar o rolo que
contém suas palavras e depois prende Jeremias e manda jogá-lo no interior de
uma cisterna, uma forma de condená-lo à morte (38.9).
250
J eremias
251
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
5. O chamado de Jeremias
252
___________________________________________________________________________________________ J eremias
de serem enviados a essas nações. Esse matiz tem a ver com o complexo clima
político internacional que se viveu durante o tempo de Jeremias e que repercutiu
com força na vida nacional de Judá. O segundo aspecto é que sua missão inclui,
ao mesmo tempo, “arrancar e derribar, destruir e arruinar” junto com “edificar
e plantar” (1.10). O simples argumento que suspeita de que os últimos verbos
foram acrescentados ao texto original não explica o fato de encontrarmos na obra
profecias de ameaça, mas também de salvação. Por outro lado, se a hipótese da
origem tardia das palavras de salvação é correta - e é provável que seja assim,
pois é uma questão própria do pós-exílio chama a atenção que a composição
literária integrou muito bem os textos tanto no relato de vocação como nas pro
fecias espalhadas pelo livro e, em especial, no chamado “Livro da consolação”
(capítulos 30-33) e criou uma obra na qual ambas as missões são cumpridas no
ministério de Jeremias.
O terceiro aspecto característico de sua vocação é a menção de ter sido
eleito “antes que eu te formasse no ventre materno” (1.5). Essa condição confere
uma qualidade universal e cósmica a seu ministério. Parece dizer que aquilo para
0 qual foi convocado transcende o tempo e a realidade presente, inclusive sua
própria decisão pessoal de assumir ou não o ministério. Como de nenhum outro
profeta, é dito de Jeremias que foi eleito por Deus desde a aurora do tempo para
exercer essa função. Em certo sentido, essa afirmação coloca o ministério e o
tempo de Jeremias numa situação especial ao profetizar um tempo de transforma
ções, talvez comparável apenas ao que se esperava para o tempo em que o messias
chegaria à terra e tudo fosse renovado.
6. As confissões de Jeremias
253
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
254
____________________________________________________________________________ _______________ J eremias
lônia (capítulo 29), onde, em especial no v. 10, fala-se dos setenta anos de cativei
ro e de sua firme vontade de reencontrá-los em Jerusalém no término desse tempo.
Sob uma perspectiva hermenêutica, as passagens anteriores antecipam os
capítulos 30-33 e deixam entrever que ainda existe uma possibilidade de salvação
ao angustiar o leitor com uma sucessão incontestável de palavras do profeta de
castigo e ameaça. As profecias são dirigidas a Judá e a Israel (esse último tomado
no sentido do Reino do Norte), mesmo quando o Reino do Norte já não existia
desde o ano 722 a.C., data em que caiu com a invasão assíria. Porém a combi
nação de ambas as referências dá um caráter universal às promessas, ao mes
mo tempo em que anuncia o reencontro da diáspora em Jerusalém. As ameaças
concentram-se em denunciar a idolatria e sua consequência mais grave, que são
os sacrifícios humanos (v. 35), mas, ao mesmo tempo, a narrativa leva a anunciar
o desejo de restauração, a indicar-lhes “um caminho” e a renovação do pacto que
se descreve como “eterno” (v. 37-41).
O segundo ponto a destacar é que, na estrutura maior da seção 26-45, os
textos de salvação ocupam o centro de um quiasmo, sendo enquadrado por textos
de ameaça e perseguição:
8. Teologia de Jeremias
255
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
uma palavra de esperança ou, pelo contrário, como uma descrição da humilhação
à qual se submetera a descendência de Davi (vejam-se “ 1 e 2 Reis”). O certo é
que, no caso de nosso livro, o capítulo final não tem como função anunciar a espe
rança, mas o destino histórico ao qual Judá é submetido como resultado de tudo o
que foi descrito em 1-51. Que 51.64 termine com a frase “até aqui as palavras de
Jeremias” e aponte o final do que diz respeito à sua pena, dá mais força semântica
ao que vem em seguida e orienta-nos sobre sua função na mensagem. Ao dar por
concluído o trabalho do profeta, confere ao relato final o mérito de descrever o
que aconteceu em consequência da desobediência e de rejeitar a palavra de Deus
anunciada através de Jeremias. Dessa maneira, o texto não oculta que o capítulo
52 é um acréscimo tomado de outra obra (é cópia de 2Rs 24.18-25.30), porém
seu conteúdo remete ao corpo de Jeremias, pois age a título de confirmação das
denúncias do profeta e eomo palavra final sobre o destino de Judá. Entretanto é
preciso levar em eonsideração que a redação final da obra é pós-exíliea, de manei
ra que já são conhecidos a restauração e o fato de que o povo de Israel pode voltar
a ter esperança em seu futuro e em sua renovada relação com Deus, especialmente
nos anos imediatamente posteriores ao regresso. Assim, os relatos da queda e da
destruição da cidade e do templo atuavam como memória daquilo que ocorreu,
com a intenção de ganhar em experiência e orientar o povo sobre a forma de rela
cionamento com Deus, que lhe dará a paz e a justiça por que tanto anseia.
E difícil falar de uma teologia de Jeremias. Sua obra caracterizou-se por
responder a diversas situações sociais, políticas e religiosas em um contexto mu
tável. Como também acontece com outros profetas, seu interesse estava em ser
fiel à palavra recebida, mais do que em ordenar e sistematizar seus pensamentos,
que nesse caso valem apenas na medida em que são respaldados por suas ações.
Ainda assim, podemos destacar três elementos da teologia de Jeremias. O primei
ro é a estreita relação que estabelece entre lei e profecia. Devemos lembrar que
Jeremias foi testemunha da reforma de Josias (narrada em 2Rs 22-23) e, mesmo
que não a mencione de maneira direta, seu espírito transpassa a obra. No contexto
daquela reforma, vemos que em Jeremias ser fiel a Deus é respeitar e cumprir sua
lei até o ponto em que o próprio profeta sofre em seu interior, pois, por um lado,
ama seu povo e busca o melhor para ele e, por outro, deve obediência à lei de
Deus, que inclusive o proíbe de interceder para pedir clemência por suas faltas e
pecados (veja-se 7.16 e 11.14). Esse conflito do profeta atravessará toda a obra e
é uma de suas características.
Em segundo lugar, observamos que existe uma mudança na compreensão
do pecado. A partir de Jeremias, começa-se a conceber a responsabilidade pessoal
da ação e suas consequências, coisa que será reafirmada em Ez 18, onde se utiliza
o mesmo refrão que citamos abaixo, o que denota que expressa uma corrente de
pensamento difundida na época. Até o tempo de sua pregação valia a máxima de
que 0 Senhor exercia sua resposta aos pecados das pessoas “até a terceira e quarta
gerações”. Isso era aceito no contexto de que o pecado manchava o prestígio e o
nome de toda a família por várias gerações. Agora Jeremias determina com um
256
____________ ____ ________ ___________________________________________________________________ J eremias
provérbio novo que “naqueles dias já não dirão: os pais comeram uvas verdes, e
os dentes dos filhos é que se embotaram”, para deixar transparecer que cada ge
ração e cada pessoa deverão responsabilizar-se por seus próprios pecados (31.29
30; Ez 18.2). E um passo significativo, pois possibilitará que aqueles que voltaram
a Judá já não carreguem os pecados de seus antepassados e, dessa maneira, poderá
haver uma autêntica restauração social, política e religiosa (cf. Alonso Schõkel,
I, p. 564). Ainda mais: abriu a senda para compreender a condição humana como
pecadora em sua raiz e sempre a caminho para afastar-se de Deus. Textos como
4.22; 5.3 e ainda com maior clareza 13.23 descrevem o ser humano em todo o seu
realismo e colocam o pecado na própria essência da conduta humana. Não é um
fatalismo superficial, mas uma descrição da experiência histórica, o que a metáfo
ra escolhida em 13.23 exala quando diz: “Pode, acaso, o etíope mudar a sua pele
ou o leopardo, as suas manchas?”, para refletir que, da mesma maneira, também o
ser humano não poderá erradicar o pecado de sua vida (cf Soggin, p. 295).
O terceiro ponto é que a obra afirma a radical obediência a Deus como
resposta à sua Palavra. O culto e a adoração não substituem a ética, mas a com
plementam, de modo que no plano de Deus para seu povo não há lugar para um
culto desvinculado de uma vida ética pessoal e social, também não sem gratidão
pelas bênçãos recebidas. Por mais difíceis que sejam os tempos, e os de Jeremias
foram os piores. Deus sempre está ali para acompanhar seu povo.
BIBLIOGRAFIA
257
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
SICRE DÍAZ, José Luís. Los dioses olvidados. Poder y riquezas en los profetas
preexílicos. Madri, 1979.
_______. Con los pobres de la tierra: la justicia social en los profetas de Israel.
Madri, 1984.
_______ . Profeíismo en Israel. Estella, 1992. p. 124-127, 176-180, 308-318 e
501-504.
TORREBLANCA, Jorge. “Jeremias: Una lectura estructural”. RIBLA 35/36.
2000. p. 68-82.
WINTERS, Alicia. “Oíd la palabra. Jeremias 7-10 e 34-38”. RIBLA 35/36. 2000.
p. 83-86.
258
19
Ezequiel
259
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
nal (da aldeia de Anatote, cf. Jr 1.1), enquanto nosso profeta desfruta do prestígio
de pertencer ao grupo do templo em Jerusalém e do reconhecimento da comuni
dade exí lica, que, em várias ocasiões, vem consultá-lo (8.1; 14.1;20.1). Ezequiel,
como profeta, está atordoado e obcecado com a possibilidade de reconstruir o
templo e a cidade e anuncia que, após ter cumprido um tempo de castigo. Deus
promove a restauração daquelas coisas quebradas pela rebeldia e que se tomaram
reais com a queda de Jerusalém e a interrupção da dinastia davídica.
Flávio Josefo menciona dois livros de Ezequiel, mas é provável que se re
fira aos capítulos 1-24 como “Livro do juízo” e aos capítulos 25-48 como “Livro
da consolação”. Por outro lado, também houve outros livros atribuídos a Eze
quiel durante o primeiro século, como os chamados “Apócrifo de Ezequiel”, do
primeiro século, e “Ezequiel, o trágico”, compilado perto do ano 200 a.C. em
Alexandria.
Esse livro fica em terceiro lugar entre os profetas, logo depois de Isaías e
Jeremias. Isso se deve à sua extensão, que, apesar de grande, é menor do que a dos
livros precedentes. Dificilmente se deve a uma ordem cronológica - mesmo que
Isaías e Jeremias sejam anteriores—, porém o fato de que começa com uma cena
situada na Babilônia e nos tempos do exílio pode ter influenciado para determinar
seu lugar. De qualquer modo, vários livros dentre os Doze Profetas são anterio
res a Ezequiel, e isso não impediu que fossem colocados depois dele. Apenas
uma tradição rabínica medieval oferece a sequência Jeremias, Ezequiel, Isaías,
construída sobre o fato de que o final do livro de Reis vincula-se melhor com o
tema da destruição em Jeremias e esse com o começo de Ezequiel, que finaliza
com uma mensagem de consolo que se entende análoga à de Isaías (cf. Talmud
Baba Bathra, p. I4b; Zimmerli, p. 74). Essa sequência não prosperou nem mesmo
na tradição rabínica.
O texto da Septuaginta difere em determinadas passagens do texto masso-
rético. Muitos acreditam que a tradução para o grego foi feita sobre um texto he
braico de melhor qualidade do que o atual, e por essa razão costumava-se corrigir
o texto seguindo a LXX. Entretanto essa prática foi abandonada porque não foram
encontradas testemunhas desse eventual texto hebraico e, especialmente, porque
os documentos de Qumrã não produzem nenhuma evidência sobre esse texto,
mas, ao contrário, confirmam para sua época (II a.C-I d.C.) o texto que temos hoje
(cf. Soggin, p. 359).
260
___________________________________________________________________________________________ E zequiel
261
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
e oferece uma sustentação razoável aos diversos âmbitos em que o texto coloca
cada cena.
Com esses dados e de acordo com o conteúdo do livro pode-se dizer, sem
medo de estar longe da verdade histórica, que o trabalho profético de Ezequiel
divide-se em duas partes. Essas têm consequências hermenêuticas, pois posicio
nam o autor de maneira diferente diante de sua audiência; a primeira vai do ano
de sua vocação (593 a.C.) até o ano 586 a.C., quando Jerusalém é tomada pelos
babilônios; a segunda parte corresponde, em sua totalidade, ao tempo do exílio.
Durante a primeira parte são anunciadas as profecias contra Judá e Jerusalém para
advertir o povo sobre as consequências de seus atos, enquanto na segunda parte
- talvez com um natural lapso de tempo entre ambas, mesmo que 40.1 indique
o contrário - seus temas mudam e concentram-se na consolação dos exilados e
depois na descrição do plano de Deus para o futuro de Israel.
Ezequiel teve que enfrentar e procurar resolver a situação teológiea mais
desafiadora da história de Israel, situação que nenhum outro profeta teve que en
carar, nem antes nem depois dele. O imprevisto, o que não podia acontecer, acaba
va de acontecer: o antigo pacto de Deus com Abraão havia rompido, e tudo indica
va que era uma ruptura definitiva. Ezequiel narra de que maneira Deus abandona
primeiramente o templo (10.18-22) e mais tarde a cidade de Jerusalém (11.22-23).
O Deus que os libertara da escravidão, que lhes dera uma Lei em que basear sua
vida e que morara na Arca desde os tempos de Moisés, a qual depois foi colocada
no templo, agora os abandonava à sua própria sorte, ao exílio e à morte. Entre
outras consequências, isso se tomava realidade com o dramático desaparecimen
to da monarquia davídica e a supressão dos sacrifícios devido à destmição do
templo, o que levou a uma crise teológica com consequências religiosas, sociais
e políticas como nunca antes acontecera na história de Israel. Essa foi a situação
que Ezequiel teve que enfrentar.
Introdução 1-3
Profecias contra Judá e Jerusalém 4-24
Profecias contra as demais nações 25-32
262
____________________________________________________________________________________________ E zequiel
A dinâmica dessas duas visões demonstra que a visão do carro busca mos
trar a presença de Deus a fim de dar esperança aos exilados de que o Senhor
continua interessado neles. A visão do livro tem outro interesse: busca mostrar as
faltas e os pecados cometidos para que não se confunda a presença de Deus com
0 esquecimento daquelas coisas que o levaram a essa situação. Atua ao mesmo
tempo como relato de vocação, no qual, dessa vez, o profeta não rejeita a missão,
como ocorreu com Isaías, Jeremias e Amós. O ato de comer o rolo, cujo conteúdo
não se menciona, porém se assume que é a própria palavra de Deus (“doce como o
mel” - 3.3), enquadra-se nos atos simbólicos com os quais os profetas respaldam
sua prédica (cf. Davis, p. 70-71). Assim como em Isaías e em Jeremias, o símbolo
está vinculado à boca do profeta, o órgão que utiliza para proclamar a mensagem.
Vinculada ao relato de vocação está a imagem do atalaia (3.16-21), que se retoma
em 33.1-9. Essa imagem caracteriza as profecias contra as nações, se somarmos
as duas seções (4-24; 25-32), e enfatiza a responsabilidade do profeta em ser fiel
ao mandato recebido. Se não cumprir sua missão, será responsabilizado pelos
pecados cometidos por outros e terá que prestar contas disso. Sob o ponto de vista
hermenêutico, a imagem do atalaia é uma chave para compreender as profecias
centrais, pois também coloca parte da responsabilidade em quem deve ser prote
gido pelo atalaia.
Ambas as visões devem ser lidas juntas para compreender a mensagem
com a qual abre o livro. Deus está com eles, porém não para aboná-los em suas
desordens, mas para corrigir seus caminhos.
263
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
264
___________________________________________________________________________________________ E zequiel
Assim como Am 1-2, Is 13-23 e Jr 47-51, Ezequiel tem sua seção de profe
cias contra as nações estrangeiras. E provável - como já mencionamos - que em
algum momento tenha sido uma coletânea isolada, que mais tarde foi incorpora
da ao texto de Ezequiel, aereseentando-lhe alguns parágrafos para compatibilizar
estilos e sequência. A linguagem comum e a harmonia de temas permitiram-lhe
crescer de maneira independente, porém, de acordo com a teologia de Israel, mais
tarde teve que ser incorporado a uma coletânea maior, que incluísse palavras de
esperança e salvação.
Sob o ponto de vista hermenêutico, é importante levar em consideração
que, em todos os casos, são profecias dirigidas a Israel e não às nações mencio
nadas. Pouco efeito faria, aos ouvidos do faraó, saber que um Deus de um povo
menor teria anunciado desgraças sobre ele. Os destinatários dessas profecias são
os israelitas, que, ao ouvi-las, sentiam que seu Deus também condenava as na
ções que os haviam oprimido ou maltratado. As profecias estão datadas em sete
ocasiões e abrangem um período de três anos (de 587 a 585 a.C.), período em que
ocorrem o cerco, a tomada e a destruição da cidade. Uma única profecia dirigida
contra Tiro está datada quinze anos depois (ano 571 a.C.), para fazê-la coincidir
com a invasão de Nabucodonosor, que aconteceu naquele mesmo ano (29.17-21).
Provavelmente no começo, a coletânea constara de poucas profecias contra
duas ou três nações. Com o tempo, expandiu-se tanto no número de nações como
no de profecias, e agruparam-se aquelas que foram reunidas por nação. Após algum
tempo, chegou-se ao número simbólico de sete nações, em que provavelmente a
profecia contra Sidom fora a última a ser integrada; a maneira bastante artificial de
sua localização na estrutura sugere essa conclusão (28.20-23). Algo similar acon
tece com a ordem em que estão apresentadas. De acordo com a ordem cronológica,
as profecias contra Tiro deveríam ter sido colocadas logo depois daquelas do Egito,
mas o fato de agrupá-las por nações foi mais forte do que a linha histórica. Assim,
sobre a base de duas coletâneas (Tiro e Egito) é construída uma estrutura de sete
nações em uma ordem que começa com os amonitas e termina com o Egito. Parte
de um povo próximo e termina com aquele que está mais longe.
Não se evitam os relatos simbólicos nessas profecias. No capítulo 27, a
cidade marítima e o porto de Tiro são comparados a um barco que naufraga. O
faraó é comparado em um longo e belo poema a um cedro - que não existia em
sua terra, mas no Líbano - e que foi cortado pela mão de estrangeiros (31). O
próprio faraó é representado mais tarde como um crocodilo, típico animal feroz
das margens do rio Nilo, que é devorado por animais como símbolo de sua queda
perante o rei da Babilônia (32).
265
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
266
___________________________________________________________________________________________ E zequiel
A seção sobre Gogue (cap. 38-39) refere-se a um rei indefinido que parece
destinado a atacar Israel, mas que será vencido para que se inaugure o tempo da
restauração. Pode ser que se refira ao deus das trevas, pois na língua suméria giig
significa ‘trevas’, porém nada sabemos sobre a existência desse deus. O relato
apresenta-se como a batalha com a qual serão eliminadas todas as batalhas futu
ras, como o fim do mal (cf Pfisterer Darr, 1512; Joyce, p. 108-111). Esses dois
capítulos (38-39) contêm elementos que, mais tarde, serão desenvolvidos na lite
ratura apocalíptica. Existe uma certa desordem em suas diversas partes; o capítulo
39, por exemplo, não é uma continuação literária do anterior, mas uma ampliação
de 38.18-23; os diversos lugares mencionados não podem ser localizados. Finali
za com 0 convite para um banquete carregado de imagens macabras, em que todos
os inimigos de Israel serão devorados. Fora de Ezequiel, Gogue é mencionado
apenas em Ap 20.8 e de maneira confusa. A finalidade desses capítulos - como
de toda esta seção —é exaltar a glória e o triunfo do Senhor sobre todas as nações.
267
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
(cf. Galambusch, p. 154). O símbolo do rio perene e vital lembra os rios do Éden,
mas agora localizados em uma geografia concreta e visível.
A segunda dimensão é a ritual. São detalhadas as funções dos levitas, aos
quais são impostas tarefas de menor valor e serviços secundários. Explicitamente,
diz-se que abandonaram Deus e foram atrás de outros deuses. Isso vincula-os
com os serviços religiosos nos altares a deuses cananeus (os chamados “lugares
altos”). Ao contrário, os sacerdotes da linhagem de Zadoque —instalado por Salo
mão em 1Rs 2.35 - são ratificados e mencionados como aqueles que mantiveram
a fé no tempo em que o povo de Israel se afastava de seu Deus. Em seguida são
descritas as festas religiosas que serão realizadas no templo.
A maior afirmação desta seção é o regresso do Senhor ao templo (43.4-9).
O profeta havia anunciado sua retirada em 10.18-22 e agora descreve sua vontade
de voltar a habitar sua casa em Jemsalém. A importância desse texto, que acom
panha toda a seção 40-48, é que o profeta anuncia algo que parecia impensável
no momento em que o proclama. De fato, teriam que passar quarenta e cinco anos
(em tomo de 539 a.C., ano do começo da restauração) antes que essas palavras
começassem a ter reflexos de um certo realismo.
O que chama a atenção no livro de Ezequiel é seu relato linear. Outros pro
fetas (Isaías, Jeremias, Amós, Miqueias etc.) intercalam nas seções de julgamento
profecias de salvação e esperança. Não é o caso desse livro. No começo, o pro
feta é convocado para anunciar condenação e juízo da parte de Deus. Assim faz
desde o capítulo 1 até o 32, não se encontrando neles palavras que enfeitem essa
dura mensagem. A partir daí e com o anúncio da queda de Jemsalém, ocorre uma
mudança substancial na dinâmica do texto: passa de condenatório a apresentar
palavras de consolo para as vítimas, porém o faz de maneira gradual, dedicando
os capitulos 33-39 a passar de um lugar teológico a outro. Não se alegra que suas
profecias se tenham cumprido, mas busca dar apoio espiritual e social aos que
agora vivem em angústia pelas notícias recebidas: a morte de seus familiares, a
destmição da Casa de Deus, o sentimento de que Deus os abandonou e o desa
parecimento da casa de Davi, a dinastia sobre a qual se fundava a identidade de
Israel. No entanto, o profeta não para na consolação. Desenvolve um programa de
restauração (40-48), apresentado como visão de futuro, mesmo que de sua leitura
suqa um plano concreto que pretende ser levado a cabo no plano histórico; Deus
reeria Israel a partir de suas minas (cf. Granados Garcia, p. 266-270). O livro
conclui com a presença de Deus em seu templo e com o povo reconciliado com
seu Deus. Esse é o novo cenário teológico ao qual o livro de Ezequiel quis levar
o leitor desde o iníeio.
268
___________________________________________________________________________________________ E zequiel
4. Gêneros literários
Mesmo que Ezequiel seja um livro profético, seu recurso às imagens e aos
simbolos toma-o um precursor do gênero apocalíptico. Seu estilo influenciou o
autor de Daniel, livro com o qual compartilha o gosto pelos atos simbólicos e
pelas narrativas com enigmas. Em Ezequiel encontramos os seguintes gêneros;
269
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
preciso esperar até 33.22 para voltar a 1er sobre o assunto e que sua voz lhe seja
devolvida. Alguns consideram que essa situação desmerece o ato simbólico e que
lhe tira importância na estrutura do livro. Entretanto, nota-se que, somente ao
chegar ao relato da tomada da cidade, é que a boca do profeta se abre.
O símbolo é extremamente significativo. Se um sábio se caracteriza por
pensar e um rei por governar, um profeta caracteriza-se por falar. Um profeta
mudo é quase uma enteléquia; por isso em quase todos os escritos proféticos “a
voz” do profeta tem um lugar tão importante. Em termos reais, quase nenhum pro
feta foi escritor, mas, ao contrário, seu ministério era a proclamação da Palavra.
Por isso as expressões “Assim diz o Senhor...” ou “Veio a mim a palavra do Se
nhor e me disse...” são tão importantes na literatura profética, tanto porque falam
da voz como porque comparam a palavra de Deus à voz do profeta que a anuncia.
Essa mudez que se desprende em 33.22 é a causa do recurso aos atos sim
bólicos em Ezequiel. O profeta não pode falar, mas pode expressar-se por meio de
gestos. Em 4.1, um tijolo simbolizará Jerusalém e uma assadeira de ferro o muro
que será construído para sitiá-la; em seguida, o profeta deverá deitar-se de um
lado e depois do outro durante 390 dias até que a cidade seja castigada. Em 5.1,
utiliza-se o ato de raspar a cabeça com uma espada para anunciar que a cidade será
destruída e seus habitantes serão mortos ou levados ao cativeiro. Em 6.11, pede
-se ao profeta que bata palmas e que bata com o pé como sinal da tragédia que
se aproxima, na qual os que estiverem longe morrerão de peste, os que estiverem
perto pela espada e quem estiver sitiado morrerá de fome. Em 12.1-20, pede-se
que 0 profeta se mostre diante do povo como um errante e vagabundo que carrega
sua pouca bagagem como símbolo da debilidade em que se encontra a cidade e de
seu iminente e trágico futuro. E o recurso para criar um símbolo ou uma imagem
para depois rejeitá-la (cf. Middlemas, p. 113-138). Todos esses atos são executa
dos durante sua mudez, ainda que o relato apresente, ao mesmo tempo, momentos
em que o profeta é convocado a proclamar determinada mensagem. Em 14.1-11,
por exemplo, é convocado a proclamar com sua voz a mensagem (14.4: “fala com
eles e dize-lhes...”); em 22.3, acontece da mesma maneira (“e dize: Assim diz
0 Senhor Deus...”). Essas contradições não afetam a mensagem, pois o caráter
simbólico dos atos faz com que estejam acima da contingência histórica. O que
interessa hermeneuticamente é que a gravidade dos fatos levou a produzir um
evento da magnitude de um profeta que é privado de sua principal ferramenta
para comuniear a mensagem. Um profeta que Deus impede de falar é a própria
mensagem que o povo deveria compreender.
270
____________________________________________________________________________________________ E zequiel
271
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
272
___________________________________________________________________________________________ E zequiel
evitar uma leitura desencarnada da narrativa. O texto quer transmitir que aquilo
que foi dito aconteceu de verdade e que, portanto, o que se anuncia também se
cumprirá. A dialética entre exatidão de data e lugar com textos visionários e por
momentos apocalípticos —cujo gênero literário impõe ambiguidade em relação a
esses parâmetros - é um recurso do autor para sugerir que a narrativa é levada a
sério por Deus e que as coisas anunciadas serão cumpridas.
Já mencionamos o quarto elemento teológico. Ezequiel é o primeiro que
estabelece a responsabilidade pessoal pelo pecado (14.12-23; 18; 33.10-20). Em
tempos de tranquilidade, diluía-se a responsabilidade na comunidade ou na fa
mília. As culpas são compartilhadas porque também as bênçãos são recebidas
por todos. Porém, se a adversidade fere um povo, começa-se a tentar discernir as
responsabilidades e já não se responde às necessidades de compreender a ação
de Deus de que esse puna quem é inocente. Esse avanço na concepção do pecado
levará ainda muito tempo para que seja assumido pela teologia de Israel, mas é
uma afirmação de que já não se voltará atrás. Um exemplo é mostrado no livro de
Esdras, onde, ao reconhecer o erro de ter tomado como esposas mulheres cana-
neias, elabora-se a lista dos que assim fizeram (Ed lO.lSs) para diferenciar entre
os transgressores e aqueles que haviam observado a Lei.
BIBLIOGRAFIA
273
Introdução hermenênutica ao A ntiüo T estamento
LAPSLEY, Jacqueline. “Ezekiel”, in: PETERSEN, David et al. (eds.). The New
Interpreter’s Bible One Volume Commentary. Nashville, p. 456-481.
_______. Can This Bones Live? The Problem of the Moral Self in the Book of
Ezekiel. BZAW. Berlim, 2000.
MEIN, Andrew. Ezekiel and the Ethics o f Exile. Oxford, 2001.
MIDDLEMAS, Jill. “Transformation of the Image”, in: TOOMAN, William e
LYONS, Michael A. (eds.). Transforming Visions. Transformation of Text,
Tradition and Theology in Ezequiel. Eugene, 2010. p. 113-138.
PETERSEN, David. The Prophetic Literature. An Introduction. Louisville, 2002.
p. 181-184.
PFISTERER DARR, Katheryn. Ezekiel in: New Interpreter’s Bible Commentary,
V. VI. Nashville, 2000. p. 1.073-1.609.
RENDTORFF, Rolf. The Old Testament. An Introduction. Filadélfia, 1986.
SICRE DÍAZ, José Luis. Profetismo en Israel. Estella, 1992.
_______. Con los pobres de la tierra: la justicia social en los profetas de Israel.
Madri, 1984.
ZIMMERLI, Walter. A Commentary’ on the Book o f the Prophet Ezekiel /-//. Fi
ladélfia, 1979-1983.
274
20
Daniel
1. Lugar no cânone
275
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
2. Idiomas e acréscimos
276
D aniel
uma parte do texto está em aramaico e não foi traduzido todo o livro de Daniel,
ainda que se pudesse postular que a seção narrativa tem mais possibilidade de ter
sido composta na diáspora oriental, onde a influência macabeia não chegou a ser
significativa, e que o redator final a teria incorporado assim como a recebeu. Seja
como for, a questão permanece obscura.
Ao lado disso, devemos levar em consideração que a Septuaginta insere
três acréseimos em grego (Susana; Bel e o dragão; e a Oração de Azarias e o
cântico dos três jovens). Esses acréscimos são anexos que não fazem parte da es
trutura literária de Daniel e padecem de certas inconsistências tanto em seu texto
como no lugar que ocupam no livro, questões que tratamos mais adiante na seção
“Apócrifos e Deuterocanônicos”.
277
I ntrodução hermenénutica ao A ntigo T estamento
Jerusalém por Nabucodonosor. Entretanto esse fato não pode ter acontecido nessa
data, mas após a batalha de Carquemis, que ocorreu no ano 605 ou 604 a.C. Em
5.1, é mencionado o rei babilónico Belsazar; sabemos que essa pessoa nunea foi
rei, mas um funcionário de categoria na corte de seu pai, o rei Nabonido. Outras
ambiguidades levam a pensar que não é a cronologia que interessa ao texto, porém
lhe compete estabelecer o tempo da diáspora na Babilônia como essência para as
histórias de seu personagem Daniel. Por outra parte, é provável que foram narra
das assim durante anos e com essa forma chegaram ao autor que as pôs por escri
to. Esse processo, que nos pode causar admiração, leva-nos a uma dupla reflexão.
Por um lado, o recurso à pseudoepigrafia, que é habitual em textos antigos, vem a
ser o preferido nos textos de teor apocalíptico. Embora 1-6 não seja apocalíptico,
essa característica poderia ter ajudado a união com 7-12 pela familiaridade com
esse recurso. Em segundo lugar, o tempo do cativeiro babilónico aparece como
referência para classificar o próprio tempo da obra. Elá um consenso geral de que
sua mensagem se ajusta aos fatos da segunda metade do século TI a.C., quando
Antíoco IV Epifânio, o monarca selêucida, governava a região e ocorria o levante
dos macabeus (1 Macabeus 3). Já o sobrenome de Antíoco é significativo: Epifâ
nio significa “Deus revelado”. No livro, há alusões às expedições de Antíoco con
tra o Egito e - ainda mais importante - sua intromissão no templo para reprimir
as práticas religiosas judaicas e introduzir o que Daniel chama de “abominação
desoladora” (9.27; 11.31; 12.11). Em 11.45, menciona-se a morte do monarca
opressor em combate contra Jerusalém, o que, na verdade, ocorreu com Antíoco
no ano 163 a.C., embora não contra Israel, mas numa expedição ao Oriente. E
provável que 8.14 (“até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário será
purificado”) seja uma referência à restituição da dignidade do templo por Judas
Macabeu no ano 165 a.C. Essa era uma época que exigia heroísmo e compromis
so, em que muitos foram assassinados por causa de sua fé e outros viram a morte
de seus seres queridos, fatos que estão narrados nos livros 1 e 2 Macabeus. As
histórias de Daniel 1-6 foram exemplo e estimularam o testemunho dos judeus;
a segunda parte (7-12) contribuiu para proclamar a justiça final de Deus sobre os
opressores.
278
D aniel
O juízo sobre os reis, tema central dessa estrutura, está enquadrado pelos
sonhos e pelos relatos de mártires. Esses capítulos correspondem à seção em ara-
maico completa e que, vistos dessa maneira, rompem com a divisão em partes,
não porque não exista a divisão formal, mas porque o arranjo teológico que se
realizou expressa que o redator final fez algo mais do que unir duas peças literá
rias diferentes. Seu trabalho consistiu em integrar duas coletâneas em uma nova
279
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
280
D aniel
mano”, “pessoa” (cf. Collins e Yarbro, p. 304-310). Mas o fato de que essa pessoa
venha “nas nuvens”, que se aproxime de Deus e que lhe sejam dados “domínio,
glória e reino” dá-lhe um caráter peculiar. Em certa medida, participa do poder de
Deus a partir do momento em que “nações e línguas” lhe servirão. Não se toma
semelhante à divindade, pois a expressão “como um ...” separa-o da realidade
de Deus, porém essa mesma palavra também o vincula de um modo que não en
contramos em outros personagens. Entre os diversos autores distinguem-se três
interpretações: a primeira faz referência a um ser humano de características ex
cepcionais. Pensou-se em Daniel ou em Judas Macabeu, figuras entendidas como
o messias esperado. A segunda é considerá-lo uma figura coletiva, ao estilo do
servo sofredor de Is 40-55. Nesse caso, faria alusão ao conjunto dos justos do
povo de Israel. Em terceiro lugar, é possível entender o filho do homem como um
ser celestial. Se fosse assim, pensa-se no anjo Miguel (10.13,21; 12.1) ou em Ga
briel, mencionados em 8.16 e 9.21. Essa última interpretação tomou força a partir
da observação nos documentos de Qumrã de uma forte presença das figuras dos
anjos, que mostram seu valor no pensamento daquela época.
A resposta que se der a essa pergunta não deve vir da história, mas do
próprio texto e de sua interpretação como mensagem. Em nosso entendimento,
nem a exaltação de uma pessoa em particular tampouco a alusão a um anjo se jus
tificam no texto. Nele não se mencionam Daniel nem outro visionário, tampouco
um profeta; também não se entende por que deveria ser ocultado o nome de um
anjo se fosse esse o caso. Na explicação do anjo sobre o texto (7.16-27), o filho
do homem é omitido, como se sua figura não tivesse maior transcendência para a
narrativa. Além disso, esse personagem aparece em oposição aos quatro reis que
rejeitam e blasfemam contra o próprio Deus, não contra o ser humano nas nuvens
(cf. Davies, p. 104). Por essas e outras razões que excedem nosso espaço, parece-
-nos mais coerente interpretar que o filho do homem é um símbolo do povo fiel de
Israel, daqueles que suportaram as perseguições e a quem, por intermédio dessa
figura, é anunciado que no final dos tempos sairão vitoriosos da tribulação (cf.
Lacocque, p. 145-147).
281
I ntrodução hermenênutica ao A nticío T estamento
BIBLIOGRAFIA
ALBERTZ, Rainer. “The social Setting of the Aramaic and Hebrew Book of Dan
iel”, in: COLLINS, John J. e FLINT, Peter W. The Book o f Daniel, Composi
tion and Reception I. VT Sup. Leiden, 2001. p. 171-204.
ALONSO SCHÕKEL, Luis e SICRE DÍAZ, José L. Profetas 1-11. Madri, 1980.
AZURMENDI, Jesus. “El libro de Daniel en la investigación reciente”. EB 55.
1999. p. 509-540.
COLLINS, John J. e COLLINS, Adela Yarbro. Daniel, Hermeneia. Minneapolis,
1993.
_______. Daniel with an Introduction to Apocaliptic Literature. FOTL 20. Grand
Rapids, 1984.
DAVIES, P. R. Daniel. Sheffield, 1993.
282
D aniel
DEQUEKER, L. “King Darius and the Prophecy of Seventy Weeks, Daniel 9”,
in: WOUDE, A. S. van der (ed.). The Book o f Daniel in the Light o f New
Findings. Lovaina, 1993. p. 187-210.
DIMANT, D. “The Seventy Weeks Chronology (Dan 9,24-27) in the Light of
New Qumranic Texts”, in: WOUDE, A. S. van der (ed.). The Book o f Daniel
in the Light o f New Findings. Lovaina, 1993. p. 57-76.
GOLDINGAY, John. “Daniel in the Context of Old Testament Theology”, in:
COLLINS, John J. e FLINT, Peter W. The Book o f Daniel, Composition and
Reception II. VT Sup. Leiden, 2001. p. 639-660.
GRELOT, Pierre. El libro de Daniel. Estella, 1993.
KNIBB, Michael. “The Book of Daniel in Its Context”, in: COLLINS, John J.
e FLINT, Peter W. The Book o f Daniel, Composition and Reception I. VT
Sup. Leiden, 2001. p. 16-36.
LACOCQUE, André. The book o f Daniel. Louisville, 1979.
POLAK, F. H. “The Daniel Tales in their Aramaic Literary Milieu”, in: WOUDE,
A. S. van der (ed.). The Book o f Daniel in the Light o f New Findings. Lovai
na, 1993. p .249-265.
RAMIREZ KIDD, José Enrique. “Daniel”, in: LEVORATTI, A. (ed.). CBL II.
Estella, 2005. p. 599-620.
SEOW, C. L. Daniel. Louisville, 2003.
SMITH-CHRISTOPHER, Daniel. “Prayers and Dreams: Power and Diaspora
Identities in the Social Setting of the Daniel Tales”, in: COLLINS, John J. e
FLINT, Peter W. The Book o f Daniel. Composition and Reception I. VT Sup.
Leiden, 2001. p. 266-290.
283
21
o livro dos D oze Profetas:
Um livro ou doze livros?
285
Introdução HERMENÊNurrcA ao A ntigo T estamento
antigos, o que indica a alta consideração que se teve por eles desde o primeiro
momento.
A segunda questão a ser destacada é que se especulou muito sobre a pos
sibilidade de encontrar uma estrutura para a totalidade da coletânea na busca por
compreendê-la como uma única obra. Em geral, as tentativas não foram convin
centes, pois são construídas sobre uma ou duas variáveis e se desconhecem as
muitas razões que falam que estamos diante de uma antologia (cf House,/?«^^™).
Ao menos os seguintes argumentos devem ser levados em consideração:
a - A ordem dos livros não é estável, mas varia entre a Bíblia Hebraica e a
Septuaginta, seguindo diferentes interesses teológicos (na LXX, os seis primeiros
livros seguem esta ordem; Oseias, Amós, Miqueias, Joel, Obadias e Jonas). Isso
sugere que a denominação “livro dos Doze Profetas” não deve ser entendida como
uma única obra, mas como edição conjunta de livros distintos (cf. Botta, p. 6). Os
livros não estão relacionados em ordem cronológica nem de acordo com temas
comuns; também não estão unidos por um gênero literário nem se conseguiu iden
tificar sinais consistentes no texto, deixadas pelo editor, que impliquem algum
tipo de vínculo entre eles.
b - A mais antiga tradição textual que conhecemos (a Septuaginta) distin
gue-os uns de outros e denomina cada um com o nome de um profeta individual.
Isso não é um dado de menor importância, porque uma das características da
literatura profética é que é “de autor”, mesmo que esse seja, em geral, um nome
fictício ou o texto que lhe é atribuído seja, em boa medida, uma construção lite
rária muito posterior. Nos livros sapienciais ou históricos, o autor é apenas uma
referência, enquanto nos proféticos a pessoa do profeta tem um papel central na
quilo que está narrando.
c —Os estilos e gêneros literários também não apontam em direção à uni
dade dos Doze, mas ao contrário; Jonas é uma novela didática, Amós recorre a
visões e profecias e interessa-se pela justiça, Ageu pelo templo, Oseias intercala
sua vida privada e tem uma alta qualidade poética, Obadias é uma profecia contra
Edom e Naum contra Nínive.
d —Destacou-se que o único elemento que esses livros têm em comum e
que os distingue dos outros quatro é sua menção do “dia do Senhor”. Essa ex
pressão ocorre em todos os livros, menos em Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque
e Ageu - mesmo que Na 1.7 possa ser considerado uma alusão àquele dia. Já
que o dia do Senhor não é central em nenhum dos outros profetas, bem poderia
ser considerado o elemento aglutinador dos Doze, porém, além de constatar esse
fato, não se conseguiu descrever uma estrutura baseada na menção desse evento
escatológico.
Pelo que foi dito até aqui, entendemos que os livros devem ser lidos e
compreendidos de forma independente, sem que isso signifique que não reconhe
cemos que o lugar de cada um dos livros no cânone pode indicar algum tipo de
relação com os demais livros. Geralmente voltou-se a considerar os Doze uma
coletânea de livros individuais agrupados conforme sua extensão e com uma or-
286
o LIVRO DOS D oze P rofetas; U m livro ou doze livros?
dem estabelecida por algum tipo de critério que ainda não pôde ser revelado com
clareza. Pelo que foi exposto nesta introdução, entendemos cada livro como uma
obra em si mesma.
Em terceiro lugar, é preciso reconhecer que a constituição da coletânea
de Doze deve ter sido um processo longo. É natural pensar que começaram a
ser agrupados os livros mais antigos (Amós, Oseias, Miqueias) e que mais tarde
foram sendo acrescentados os demais livros. Cabe a pergunta por que doze e não
outro número. Poderiam ter sido onze ou treze? Não sabemos, porém o mais pro
vável é que a coletânea chegou a dez livros e que, em algum momento, tentou-se
chegar ao número simbólico de doze livros. Aparentemente, isso foi conseguido
acrescentando o livro de Jonas, que no começo bem poderia ter estado fora desse
grupo e participar, ao lado de Rute e Ester, do grupo de novelas curtas. O segundo
livro de produção estranha é Malaquias. Tudo indica que se criou um livro ao se
parar Malaquias do final de Zacarias. Dessa maneira se teria chegado ao número
desejado de Doze Profetas. Essa especulação é, a nosso juízo, bastante factível de
refletir razoavelmente o processo de consolidação “dos Doze”, porém não deixa
de ser uma hipótese, pois não há nenhum testemunho antigo que insinue a exis
tência original de um eventual “livro dos Dez Profetas”.
BIBLIOGRAFIA
1. O seias
287
I ntrodução hermenênutica ao A ntígo T estamento
cado antes de Amós, apesar de esse ser anterior no tempo. Assim como aquele,
Oseias desenvolve seu ministério no Reino do Norte e nos tempos do rei Jeroboão
II (786-746 a.C.) e de Uzias, Jotão, Acaz e Ezequias em Judá, que reinaram desde
783 até 687 a.C. Seu nome significa “[Deus] salvou”, e há quem o considere um
profeta enlevado pela menção, em 9.7, do profeta como “homem de espírito”;
porém isso não condiz com o restante do livro. O conteúdo da obra destaca que
sua missão desenvolveu-se aproximadamente desde o ano 750 a.C. até antes da
queda de Samaria em 722 a.C. Foi um período de instabilidade política e social,
com um alto nível de cormpção econômica e moral, agravado pela guerra siro-
-efraimita (veja-se 2Rs 16.5-9). Essa, além de ser uma luta fratricida, significou
um desastre para Samaria. Chama a atenção que, em 1.1, o texto menciona os reis
de Judá antes dos de Samaria, mas isso pode ser explicado pela história de sua
redação: é uma obra que começa em Samaria, mas é reelaborada em Judá após a
queda do Reino do Norte.
Oseias é um livro cheio de imagens poéticas, metáforas e atos simbólicos
não isentos de complexidade e, por momentos, de ambiguidade. O texto hebraico
é de difícil leitura, e em numerosas passagens a tradução deve ser feita de forma
hipotética, pois o sentido não está claro. Essa situação levou a pensar tanto que
estamos diante de um texto corrompido pelos erros de sucessivos copistas como
também que pode ter sido escrito em um dialeto do hebraico desconhecido para
nós (cf. Soggin, p. 251). Entretanto a existência de um dialeto - mesmo que não
haja dúvidas de que tenha existido —estaria refletida na totalidade da obra e não
apenas em algumas passagens. Há quem se pergunte se não deve ser entendido
como uma ironia do redator que o último versículo (14.9) apele por sabedoria e
prudência para entender o texto (cf Alonso Schõkel, p. 864).
288
0 LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
Percebeu-se que Ml 1.2 diz: “Eu vos tenho amado, diz o Senhor; mas vós dizeis:
Em que nos tens amado?”, o que parece uma sequência temática e de vocabulá
rio do relato de Os 3. Além disso, o recurso à infidelidade conjugal está também
presente em Ml 2.14-16, mesmo que em sentido inverso ao de Oseias, pois nesse
caso é 0 homem que representa Israel e que repudia a sua primeira esposa, imagem
de Deus. Para concluir, afirmamos que a somatória desses dados, embora não seja
uma prova contundente de que estamos diante de um marco literário, leva-nos a
considerar que não seria alheio ao pensamento do compilador do livro dos Doze o
fato de que essas passagens compartilhassem vínculos semânticos. Como acontece
com outros textos bíblicos (por exemplo Gn 1 em relação a todo o Pentateuco), Os
1-3 pode ser lido como primeira parte de Oseias, mas também como introdução a
todo o livro dos Doze.
Oseias é uma das obras que mais desorienta no momento de descrever sua
estrutura, em especial a partir do capítulo 4. Há quem defina três partes (1 -3; 4-11;
12-14) e quem pense apenas em duas: 1-3 e 4-14. Nós nos inclinamos por essa
última opção, pois a divisão a partir de 12.1 é problemática e difícil de fundamen
tar. Propomos:
1 -3 O casamento de Oseias
4-14 Coletânea de profecias de ameaça
289
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
290
0 LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
2 —Em 5.8-6.6, encontramos uma unidade que começa com o que pare
ce uma alusão à guerra siro-efraimita (2Rs 16.5-9), na qual a Samaria arremete
eontra Judá com a ajuda de Damasco (Is 7.2). A questão central, porém, não é a
guerra, mas a fraqueza de Israel, que busca em alianças com outros povos a pro
teção que deve buscar em Deus. A seção inclui uma descrição do arrependimento
superficial de Israel e palavras muito duras sobre o papel dos profetas (6.5), que
devem ser entendidas como uma alusão ao próprio ministério de Oseias, e o cla
mor de que haja mais amor e misericórdia e menos sacrifícios inúteis (6.6) em um
texto muito próximo a Am 5.21-26.
3 - Adenúncia das injustiças sociais é encontrada em 10.11-15. Em eom-
paração com a abundância desse tema em Amós parece pouco, mas devemos
lembrar que Oseias é nascido no Norte e sua visão como pessoa do país percebe
outras coisas junto à desigualdade social, como as alianças políticas (7.8; 8.9)
e a veneração a Baal (10.5; 11.2; 13.1). Assim, longe de ser menos sensível à
opressão, acrescenta outros temas que passaram despercebidos por um estrangei
ro como Amós.
4 - No contexto das profecias de ameaça distinguem-se os textos que ex
pressam o amor de Deus por seu povo. Em 11.8-11; 12.9-lOe 14.4-8, manifesta
-se a vontade de Deus de resgatar o povo perdido e dar-lhe outra oportunidade. A
expressão “Como te deixaria, ó Efraim?” (11.8) soa como a voz de um pai diante
de seu filho desordeiro, mas o qual ele ama acima de qualquer circunstância.
O relato de 1-3 deu muito o que falar. A preocupação de boa parte dos
comentaristas é se faz referência a fatos reais da vida do profeta ou se é uma me
táfora ou um ato simbólico. Sob o ponto de vista hermenêutico, isso é irrelevante.
Confirmar que mais um homem foi ludibriado por sua esposa - ou vice-versa
- não acrescenta nada a nosso conhecimento sobre a conduta humana nem a nos
sa leitura da Bíblia. Argumentou-se que um fato tão humilhante não poderia ser
inventado pelo próprio magoado enquanto vivesse com sua própria família. Ou
que, se não fossem fatos reais, também outros atos simbólicos consumados por
profetas deveriam ser considerados fictícios. Sem dúvida, não se pode generali
zar, mas, enquanto há certos atos simbólicos de tanta simplicidade como quebrar
uma vasilha de cerâmica (Jr 19) ou aceitar não fazer luto pela esposa falecida (Ez
24.15-24), é duvidoso que Isaías caminhasse de verdade três anos despido entre o
povo (Is 20). Que o próprio profeta criou uma história fictícia e humilhante sobre
sua própria pessoa não é algo que devemos descartar com facilidade, especial
mente se seus ouvintes sabem que é fictícia e que busca fazer uma comparação
com a conduta religiosa de Israel. A metáfora é tão evidente, que somente um
estrangeiro poderia acreditar que fala de sua verdadeira família. Se considerar
mos o ato simbólico como um gênero literário, vemos que o casamento de Oseias
não é a mensagem que se deseja transmitir. Os nomes dos filhos, a condição de
291
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
292
o Ln'RO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
BIBLIOGRAFIA
ALONSO SCHÔKEL, Luís e SICRE, José L. Profetas 11. Madri, 1980. p. 859
921.
AMSLER, Samuel. “Osée”, in: JACOB, Edmond; KELLER, Carl-A. e AMS-
LER, Samuel. Joel, Abdias, Jonas, Amos: Commentaire de L'Ancien Testa
ment. Neuchâtel, 1965.
ANDERSEN, F. e FREEDMAN, David N. Hosea. AB. Nova York, 1980.
ASURMENDI, Jesûs. Am ósy Oseas. Estella, 1989.
AUSÍN, Santiago. “Oseas”, in: LEVORATTl, A. (ed.). CBL IL Estella, 2005. p.
471-492.
BEEBY, H. D. Hosea. Grace Abounding. Edimburgo, 1989.
COLLINS, John. Introduction to the Hebrew Bible. Minneapolis, 2004. p. 296
306.
EIDEVALL, Goran. Grapes in the Desert. Methaphors, Models, and Themes in
Hosea 4-14. Estocolmo, 1997.
EMMERSON, Grace. Hosea. An Israelite Prophet in Judean Perspective. She
ffield, 1984.
JONES, Barry Alan. The Formation o f the Book o f the Twelve. A Study in Text
and Canon. SBL. Atlanta, 1995.
LIMBURG, James. Hosea-Micah. Atlanta, 1988.
MAYS, James. Hosea. Filadélfia, 1969.
PETERSEN, David. The Prophetic Literature. An Introduction. Louisville, 2002.
_______ . “A Book of the Twelve?”, in: NOGALSKI, James D. e SWEENEY,
Marvin A. Reading and Hearing the Book o f the Twelve. SBL. Atlanta, 2000.
p. 3-10.
SICRE, José Luis. Profetismo en Israel. Estella, 1992. p. 174-176 e 271-278.
SOGGIN, Alberto. Introduction to the Old Testament. Louisville, 1987.
SWEENEY, Marvin. The Twelve Prophets 1. Collegeville, 2000. p. 1-144.
TROTTER, James M. Reading Hosea in Achaemenid Yehud. Sheffield, 2001.
TUCKER, Gene. “Hosea”, in: MAYS, J. (ed.). HBC. São Francisco, 1988. p. 707
715.
VIEIRA SAMPAIO, Tania. “Hosea”, in: PATTE, Daniel (ed.). GBC. Nashville,
2004. p .262-271.
WATTS, John D. W. “A Frame for the Book of the Twelve: Hosea 1-3 and Ma-
lachi”, in: NOGALSKI, James D. e SWEENEY, Marvin A. Reading and
Hearing the Book o f the Twelve. SBL. Atlanta, 2000. p. 209-117.
WOLFF, Hans Walter. Hosea. Filadélfia, 1974.
YEE, Gale A. “Hosea”, in: NEWSOME, Carol e RINGE, Sharon. The Woman s
Bible Commentary. Londres, 1995. p. 195-202.
_______. Composition and Tradition in the Book o f Hosea. A Redaction Critical
Investigation. SBLDS. Atlanta, 1987.
293
Introdução hermenênutica ao A ntiüo T estamento
2. J o el
294
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
momento se cumpre a profecia de Joel, o qual põe em evidência que não era um
texto marginal à sensibilidade dos judeus de sua época, mas, pelo contrário, eles
estavam à espera de sua realização.
O V. 1 do cap. 1 aponta como autor Joel, filho de Petuel, porém nada mais
sabemos sobre sua vida e época. Ao contrário de outros profetas, cujo texto é
acompanhado por anúncios de visões, profecias e informações sobre a época,
nesse caso nada se diz sobre o tempo em que exerceu seu ministério nem sobre o
motivo de sua pregação.
Para localizá-lo na história, devemos inferir dados do próprio texto (cf.
Alonso Schõkel; Prinsloo, 1985; Wolff). Isso não deixa de ser um recurso fraco,
porém ao menos nos permite organizar nossa compreensão do livro no conjunto
de outras obras do Antigo Testamento e assim acrescentar algum sentido na com
paração com elas. Observamos os seguintes fatos:
295
Introdução HERMENÊNurrcA ao A ntigo T estamento
Em seu texto foram distinguidas duas partes, as quais, para alguns, pressu
põem a existência de dois profetas diferentes e portanto uma ruptura na unidade
da obra. O autor de 1.1-2.17 seria o primeiro Joel, ao passo que um segundo
autor seria responsável por 2.18-4.21. O primeiro teria sido um profeta antigo,
e o segundo, uma pessoa da época helenística, impregnada do sentimento e da
linguagem apocalíptica. Separar o texto em duas obras rende-se à dificuldade de
alguns comentaristas para distinguir entre, por um lado, a estrutura literária e sua
dinâmica de criação do sentido e, por outro, a história da redação de uma obra em
particular. A estrutura literária não depende da quantidade de autores envolvidos
em sua redação nem da extensão curta ou comprida de seu caminho em direção
à redação final. Um único autor pode produzir uma obra desarticulada, e vários
podem criar um texto harmônico e coerente em que a mensagem flui com natu
ralidade.
Distinguimos a seguinte estrutura geral (cf Andinach, 2007):
1. O clamor do povo
1.1- 4 Prólogo: a tragédia
1.5-14 Convocação do povo
I . 15-20 Devastação da terra
2 .1 - 11 A invasão
2.12-17 Chamado à penitência
296
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
gafanhotos, para agora colocá-las como referência a uma tragédia muito maior e
mais significativa do que uma praga de insetos. É óbvio que os insetos não ven
dem meninas (3.3) nem derramam sangue inocente (3.19), como faz a agressão
de uma força imperial.
De acordo com essa estrutura, podemos resumir o conteúdo do livro da
seguinte forma. O prólogo (1.2-4) prepara para ouvir a descrição de uma tragé
dia de tamanha magnitude, que deverá ser lembrada pelas gerações seguintes, e
não há memória de algo semelhante. Em uma primeira leitura, a tragédia parece
ser atribuída a uma praga de gafanhotos. O povo é convocado (1.5-14), e nele
são distinguidos quatro setores, que seguem uma ordem hierárquica. Primeiro, os
ébrios de vinho (1.5); depois, a comunidade de Jerusalém (1.8). Em terceiro lugar,
são chamados os lavradores e vinhateiros (1.11), os quais moravam ao redor da
cidade. Em último lugar, são convocados os sacerdotes do templo (1.13). Depois
a unidade encerra com um estribilho, que resume a convocação e insiste na ne
cessidade de clamar ao Senhor (1.14). Já nesses textos pode-se começar a suspei
tar de que os gafanhotos são utilizados como imagem para lembrar uma invasão
militar (v. 6). A unidade seguinte descreve o estado de devastação em que ficou a
terra (1.15-20), fazendo-o em três dimensões: as pessoas (16a); o templo (16b); a
natureza (17-20). Nessa unidade aparece, pela primeira vez, a menção do dia do
Senhor, que crescerá ao longo do texto. Após a descrição da devastação, vem a
descrição da invasão militar, construída sobre a descrição de gafanhotos vorazes
(2.1-11), que avança sobre Jerusalém e reflete um exército bem treinado e dirigido
com profissionalismo. Os soldados são qualificados de ladrões (v. 9). O bloco en
cerra com uma nova unidade (2.17-22), na qual se convoca o povo para clamar ao
Senhor, para pedir compaixão e voltar-se a ele com sinceridade, ao mesmo tempo
em que se pode vislumbrar a questão das demais nações que zombam de Israel e
oprimem o povo de Deus.
O clamor do povo expresso na primeira parte é respondido no bloco se
guinte. A unidade 2.18-27 apresenta a promessa do Senhor de restituir tudo o que
foi tirado do povo: alimentos, paz - ao expulsar o inimigo ~, a restituição do culto
e a confiança nele (v. 27). Podemos ver aqui as três dimensões de 1.15-20: a resti
tuição do alimento (pessoas); o culto (v. 26); a natureza (21-22). A desolação será
trocada por fertilidade e bonança (cf. Petersen, p. 183). A unidade seguinte (3.1 -5)
apresenta-se como uma suprema exaltação das bênçãos prometidas pelo Senhor.
A invasão militar provocou feridas que vão muito além da perda dos alimentos;
tocou profundamente os sentimentos do povo, que se sentiu desamparado e à
mercê do opressor. Nesse contexto, o Senhor promete que seu Espírito será dado
a cada um dos que o invocarem e surpreende-nos ao mencionar as pessoas despro
tegidas e esquecidas da sociedade, como os jovens, os servos e servas, os anciãos
- nesse caso, não faz referência aos líderes da sociedade, mas aos mais idosos - , e
silenciar sobre os sacerdotes que parecem excluídos de receber essa bênção. Essa
unidade é um aprofundamento das compensações prometidas na unidade anterior,
ao mesmo tempo em que é peça-chave no que concerne ao Dia do Senhor. A uni-
297
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
dade 3.1-17 desenvolve a última parte do bloco, em que se anuncia o juízo sobre
as nações que oprimem “Judá e Jerusalém”. São descritas as ações cometidas
contra o povo - desterrar, apropriar-se da terra, comércio de crianças, impostos,
roubo (saque do templo?), venda de escravos - e convocam-se as nações para o
“Vale de Josafá” (literalmente significa ‘vale onde o Senhor julga’), onde haverá
refúgio para Israel e juízo aos que o oprimiram. São convidados a transformar
seus instrumentos de lavoura em armas de guerra, e invertem-se as palavras de
Is 2.4 e Mq 4.3. Termina com a promessa de libertação eterna do domínio estran
geiro (v. 17). Assim, ao finalizar o segundo bloco (2.18-3.17), experimentamos a
resposta ao clamor da primeira parte; ao mesmo tempo foi ampliado o campo de
interesse do texto a partir de uma referência inicial a uma praga de gafanhotos
(1.4) até o juízo sobre as nações opressoras.
O epílogo descreve uma situação diferente do começo. Se o prólogo intro
duzia a realidade que seria descrita na primeira parte do livro (1.5-2.17), o epílogo
apresenta a conclusão da ação de Deus. Ocorreu uma transferência semântica.
Anuncia-se um dia de justiça e esperança para Israel, no qual o vinho e o leite
fluirão nos montes; os rios secos voltarão a levar águas e do templo de Jerusalém -
nesse momento em ruínas - brotará uma fonte. Ao contrário, Egito e Edom serão
julgados por seus males contra Judá, e anuncia-se que, no final, Judá será a terra
onde habitarão para sempre.
298
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
mágoa de seu povo pelo silêncio de Deus diante das tragédias que vivia. Tomou
textos antigos de um profeta chamado Joel e refez uma nova obra relevante para
os desafios de sua época. Sofreu a tragédia de ver seu povo morrer e descreveu os
responsáveis como gafanhotos vorazes. E disse isso com habilidade ímpar, a fim
de que as gerações que o sucedessem soubessem da dor de seus pais, mas também
de sua confiança em Deus.
BIBLIOGRAFIA
ALONSO SCHÕKEL, Luís. “Joel”, in: Profetas II. Madri, 1980. p. 923-949.
ALMSTRÕN, G. Joel and the Temple Cult o f Jerusalem. VT Supp 21. Leiden,
1971.
ANDINACH, Pablo. “The Locust in the Message of Joel”. VT XLII. 1992. p.
433-441.
_______ . “El dia de Yavé en la profecia de Joel”. RevBibl, 57. 1995. p. 1-28.
_______. “Joel: la justicia definitiva”. RJBLA 35-36. 2000. p. 148-152.
_______. “Un lenguaje de la resistencia ante el poder imperial: el dia de Yavé em
Joel”. RIBLA 48. 2004. p. 62-75.
_______. “Joel”, in: LEVORATTI, A. et al. (eds.). CBL II. Estella, 2007. p. 493-
499.
_______. “Joel”, in: PATTE, Daniel et al. Global Bible Commentary. Nashville,
2004. p . 272-276.
CROATTO, Severino. “Las langostas del libro de Joel a la luz de los textos de
Mari”. RevBíbl 61. 1999. p. 249-260.
KAPELRUD, A. Joel Studies. Uppsala, 1948.
McQUEEN, L. Joel and the Spirit: the cry of a prophetic hermeneutic. Sheffield,
1995.
OGDEN, G. “Joel 4 and prophetic responses to national laments”. JSOT16. 1983.
p. 97-106.
_______ . Joel-Malachi. Grand Rapids, 1987.
PETERSEN, David. The Prophetic Literature. An Introduction. Louisville, 2002.
p. 181-184.
PRINSLOO, Willem. The Theology o f Joel. Berlim, 1985.
_______. “The unity of the book of Joel”. Z A W 104. 1992. p. 66-81.
SWEENEY, Marvin. The Twelve Prophets I. Collegeville, 2000. p. 145-187.
SICRE, José Luis. Profetismo en Israel. Estella, 1992.
TREIER, D. “The Fulfillment of Joel 2:28-32: A Multiple-Lens Approach”. JETS
40. 1997. p. 13-26.
WHEDBEE, J. William. “Joel” in: MAYS, J. (ed.). HBC. São Francisco, 1988. p.
716-719.
WOLFF, Hans. Joel and Amos. Filadélfia, 1976.
299
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
3. A m ó s
Dos profetas que nos legaram um livro, Amós é o mais antigo da Bíblia.
Mesmo que a redação final se completasse séculos mais tarde, seus primeiros
escritos são de meados do século VIII a.C. e antecedem por pouco tempo Isaías,
Miqueias e Oseias. O texto atual formou-se ao longo de vários anos e inclui um
epílogo cuja data de composição parece ser o final do exílio na Babilônia (pouco
antes de 539 a.C.) ou os primeiros anos da restauração. Amós anuncia a destrui
ção de Samaria —que ocorrerá no ano 722 a.C. —, e embora não mencione os
assírios, faz alusão ao exílio (5.5,27), que era o método utilizado por aquela nação
para enfraquecer os povos subjugados. A forma do texto que hoje possuímos foi
preservada em Judá depois da queda de Samaria e mostra as características de
ter sido uma obra antiga, relida no contexto da realidade e dos desafios da nova
comunidade pós-exílica em Jerusalém (cf Collins, p. 287).
300
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
O texto dá-nos algumas pistas sobre a vida de Amós. Seu nome significa ‘o
que leva uma carga’; em 2Cr 17.16, encontra-se uma forma teofórica desse nome,
que traduzimos como “o Senhor leva uma carga” (cf. Martin-Achard, p. 15). Sa
bemos que nasceu em Tecoa, uma aldeia de Judá, e que era boiadeiro (1.1; 7.15).
Não sabemos se essa condição o coloca entre os pobres ou entre os pequenos ou
grandes proprietários de gado, porém está claro que em sua mensagem opta por
defender a dignidade dos oprimidos e denuncia a hipocrisia dos ricos. Por alguma
razão que desconhecemos, é oriundo do sul, mas desenvolve seu ministério no
Reino do Norte (Samaria), em especial nas proximidades do templo Betei, duran
te um breve período, talvez não mais do que um ano. E uma espécie de imigran
te, pois ambas as nações (Judá e Israel), embora compartilhassem a mesma fé,
estavam divididas e respondiam a coroas diferentes. Ali enfrenta as autoridades
religiosas e políticas e deixa em evidência o estreito vínculo entre os líderes de
ambos os Estados. Sua preocupação central surge da constatação das injustiças às
quais os pobres e camponeses são submetidos e da hipocrisia dos governantes que
exploram o povo, porém, ao mesmo tempo, mostram-se generosos em suas festas
religiosas e em seu louvor nos templos. Por isso enfrenta o sacerdote Amazias - e
por seu intermédio o rei Jeroboão -, o que parece ter custado sua deportação. O
que se quis foi simplesmente passar a mensagem de sua vida, coisa que não nos
deve assustar, mas sim conduzir a uma reflexão hermenêutica: a intenção da obra
não é biográfica, mas teológica e, portanto, não se detém em detalhes sobre a vida
do profeta (cf Martin-Achard, p. 45).
De sua mensagem extraímos três elementos que marcarão um rumo na lite
ratura profética posterior. O primeiro é que suas palavras são interpretadas como
palavra do Senhor. Não é o talento do profeta nem sua condição de bom orador
que estão em jogo, mas sim a veracidade da palavra do Deus de Israel. Deus
envia uma mensagem a seu povo para corrigi-lo e resgatá-lo (“buscai ao Senhor
e vivei” 5.6,14,16), porém Israel não escuta essas palavras. Em segundo lugar,
determina-se que Deus fala por intermédio de seu profeta. Chama a atenção que
não o faz por meio de um sacerdote nem do rei. Pelo contrário, convoca um pastor
desconhecido e envia-o para falar de sua parte (Wolff, 1984, p. 18). A identidade
entre o profeta e a palavra de Deus é tão íntima, que não se pode separá-los sem
distorcer a mensagem. Rejeitar o profeta é ofender a Deus (2.11-12). Em último
lugar, deixa-se claro que o Senhor vem para julgar os opressores. A visita de Deus
não é para parabenizar Israel por suas festas religiosas, mas para mostrar-lhe seu
juízo pelos maus-tratos a seus irmãos. A banalidade de suas festas e sacrifícios
rituais é desmascarada pela palavra do profeta e será submetida ajuizo.
301
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Prólogo 1.1-2
Profecia contra as nações 1.3-2.16
Profecias de ameaças 3.1-6.14
Visões 7.1-9.10
Epílogo: Profecias de bênção 9.11-15
302
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : Um l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
que não estão ditos ou escritos para que sejam lidos pelos inimigos, que pouco se
importariam com a opinião do Deus de seu adversário sobre eles. Os textos estão
escritos para produzir um efeito no ouvinte de Israel, e nesse sentido pode-se
entender que serviram tanto para dar valor perante a guerra como para funcionar
de surpresa literária; o leitor é distraído com a condenação dos inimigos, e depois
é revelado o verdadeiro interesse do profeta: anunciar a própria condenação de
Israel.
b - As profecias de ameaças
Uma vez que foi estabelecida a questão do juízo de Deus sobre Israel, a
segunda seção (3.1-6.14) é uma coletânea de profecias em que prevalece a crítica
sobre a opressão que os ricos exercem em relação aos pobres de Israel. A escolha
de Israel (3.1-2) toma-o mais responsável e, portanto, passível de ser castigado
(cf. Roston Madema, p. 502). Os palácios estão cheios de roubo e violência, e os
templos foram transformados em locais de desonra. O profeta coloca as casas dos
ricos e o templo em Betei no mesmo nível (3.13-15) e estabelece um vínculo que
marcará sua compreensão do problema que afeta Israel: a religião transformou-se
na sustentação ideológica da opressão aos pobres. Comerciantes inescmpulosos e
religiosos hipócritas recorrem aos templos e clamam por paz, quando são a causa
dos infortúnios dos pobres. Os templos de Betei, Gilgal e Berseba (4.4; 5.5) são
mencionados como lugares onde a fé de Israel é distorcida pela situação de injus
tiça a que o povo é submetido.
A menção das mulheres ricas em 4.1-3 não deve ser entendida como uma
ofensa ou como uma alusão ao volume de seu corpo. Sua vida indolente e pala
ciana irrita o profeta, que vê nelas um símbolo da insensibilidade social. Talvez
o exibicionismo provocou essas palavras, pois também em Is 3.16-24 e 32.9-14
encontramos conceitos similares. Para entender a figura literária, é preciso levar
em consideração que chamá-las de vacas de Basã é compará-las aos mais aprecia
dos animais da época e a seres aos quais se dedicavam mais cuidado e proteção
do que à própria vida das pessoas pobres. Por outro lado, a comparação da mulher
com animais não era estranha à literatura bíblica, como vemos em Êx 1.19, onde
são chamadas literalmente, em hebraico, de “animais selvagens”, que traduzimos
por “vigorosas”, ou em Cântico dos Cânticos 1.9, onde se compara a jovem com
uma égua, em ambos os textos de forma elogiosa. No caso de Amós, a intenção
também não é denegrir as mulheres, mas, ao chamá-las desse modo, mostrar que
puderam chegar a esse luxo e estilo de vida graças à opressão dos pobres. En
quanto elas celebram suas festas com seus maridos, o restante da população sofre
injustiças e maus-tratos (cf. Sanderson, p. 208; Limburg, p. 98-100).
Nesta seção, encontramos a referência ao Dia do Senhor (5.18-20), aquele
tempo no qual Deus julgará as nações e as pessoas. E um tema próprio dos doze
profetas, pois também o encontramos em J1 1.15; 2.1-2; Sf 1.14-18 e em Ob 15,
porém também é mencionado por Isaías (2.12; 13.6) e Ezequiel (13.5 e 30.3), em
303
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
d - O epílogo
304
o i.ivRo DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
BIBLIOGRAFIA
ALONSO SCHÕKEL, Luís e SICRE, José L. Profetas II. Madri, 1980. p. 951
993.
305
Introdução uermenênutica ao A ntigo T estamento
306
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
4. O b a d ia s
I. Introdução
307
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
O ‘título’ apresenta a obra como uma visão, mesmo que depois o texto não
se apresente desse modo, pois consiste numa sucessão de profecias. Essa menção
é seguida pelo tema central, para o qual o livro nos convoca: Deus chama as na
ções para castigar Edom. O motivo desse castigo fica reservado para mais adiante
(cf. Torreblanca).
Os V. 2-4 descrevem Edom em sua situação de fraqueza, pois se diz que
Deus o rebaixou a uma pequena nação. Essa afirmação é estranha, pois Edom foi
um povo que, ao longo de sua história, cresceu em território e influência até que,
nos tempos do Novo Testamento, chegou a abranger todo o sul de Canaã, a região
conhecida como Idumeia. Ao mesmo tempo, é descrito como um povo arrogante,
que confiava em suas forças para evitar a justiça divina. A expressão que começa
com “tu que habitas nas fendas das rochas...” é de uma beleza literária superior
e mais uma vez mostra como a qualidade na fala não prejudica a objetividade
da mensagem; ao contrário, contribui para uma melhor aceitação daquilo que se
quer comunicar, por mais tristes e angustiantes que sejam as palavras. A imagem
da águia inatingível, que alça voo para pôr seu ninho nas estrelas, descreve sua
pretensão de ser capaz de escapar do juízo de Deus. Essa possibilidade de fugir
será refutada na unidade seguinte.
Depois a obra apresenta seu corpo principal, em que desenvolve o juízo
contra Edom. Esse está organizado em duas partes, unidas pelo v. 15, que fun
ciona como vínculo entre elas. Os v. 5-14 falam do juízo contra Edom, enquanto
a segunda parte (v. 16-21 a) fala do juízo contra outras nações e como algumas
delas possuirão sua terra enquanto Edom ficará sem nada. Essa unidade, apesar de
envolver diversos povos vizinhos, não deixa de mencionar Edom, coisa que nos
previne sobre considerá-la uma profecia separada de juízo contra outras nações.
Deve ser lida mais exatamente como uma forma de mostrar que o juízo contra
Edom é parte programática de um juízo muito mais amplo, que inclui outros po
vos e que transcende o castigo por um único fato particular.
Em 5-14, os V. 5-7 parecem comentar o que foi dito em 2-3, ao passo que
8-14 voltarão para o v. 4. É uma forma de retomar os temas ali apresentados e
responder aos argumentos expostos: se havia soberba, diz-se que a pilhagem será
pior do que teria sido feito por alguns simples ladrões; se houve sentimento de
segurança, menciona-se que até os amigos irão abandoná-lo. A traição dos que
estavam em paz contigo e “comiam o teu pão” (v. 7) é uma ironia que antecipa
a denúncia da traição de Edom a Israel - seu irmão e vizinho - e intensificará a
dimensão de seu erro.
Os V. 8-14 fazem referência à suposta capacidade de fugir de Edom e es
pecificam as ações cometidas contra Israel. Os v. 8-9 dizem que não escaparão
do juízo e apontam que, mesmo que Edom seja considerado um povo de sábios
(Jr 49.7), sua sabedoria não será suficiente para protegê-lo e será eliminado; os
chamados valentes de Temã (nome de uma das tribos edomitas, Gn 36.11,15; Am
308
0 LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
1.12) fugirão nesse dia como covardes. A partir do v. 10, são apresentados os erros
de Edom contra Israel de maneira nítida e concreta. Recorda-se que Edom (que
é 0 povo oriundo de Esaú) cometeu essa humilhação contra seu irmão Jacó (v.
10). Do V. 11 até o 14 são enumeradas as ações cometidas por Edom: é acusado
de ter colaborado com o inimigo quando estrangeiros escravizaram os israelitas,
de alegrar-se com o infortúnio dos habitantes de Jerusalém e de ter se apropriado
de parte da pilhagem, como fazem os vencedores com suas vítimas. A acusação
mais grave é deixada para o final (v. 14) e consiste no assassinato de israelitas que
conseguiam escapar das mãos de seus captores e, em outros casos, em sua captura
para entregá-los a uma morte certa em poder de seus inimigos.
A unidade seguinte (v. 16-2la) abre um novo cenário literário, mesmo que
com fortes conexões temáticas. Agora são incluídas outras nações, e o texto co
loca-se no contexto do “Dia do Senhor” (veja-se o v. 15, ao qual voltaremos). O
que Edom fez com Israel será feito agora contra ele (v. 16). Os papéis trocam, e
Jacó “será fogo” e a casa de José “será chama”, onde o combustível a consumir
será o próprio Edom e do qual não restará nada. O envolvimento de outras nações
no relato contribui para superar o nível inicial da mensagem. O “monte de Esaú”
refere-se ao território do sul, que Edom ocupava e que estava sempre em conflito
“com os povos do Neguebe”, os habitantes naturais que se localizavam um pouco
mais ao sul dentro dessa mesma região e com quem competiam pelo domínio
das rotas das caravanas comerciais a caminho do Egito e do sul arábico. Porém a
menção dos habitantes de Sefelá (a região de colinas baixas, paralela à costa do
Mediterrâneo) não parece ter a ver com Edom, assim como introduz outras reali
dades a menção de Efraim, Samaria e Gileade, lugares que se localizam no norte
e estão desvinculados do território de Edom. Essa novidade no texto não deve
ser entendida eomo uma intromissão de uma unidade alheia na estrutura temática
de Obadias, mas, vista em suas relações com as demais partes, revela-se como
coerente com sua mensagem geral. O que se busca é estender o paradigma do
castigo a Edom por uma posse indevida de território e bens para outras situações
do mesmo teor que Israel padeceu no pós-exílio. Não é casualidade que a unidade
lembre, no final, aqueles que foram levados cativos enquanto Edom “se alegrava”
com sua desgraça (v. 12). E se diga que esses voltarão e tomarão o território dos
cananeus até Sarepta, localizado no norte, e os cativos que estão em Sefarade (tal
vez a península ibérica) voltarão para possuir o que resta de Edom.
Uma joia literária é o v. 15. A primeira parte (“Porque o Dia do Senhor
está prestes a vir sobre todas as nações”) faz referência a 16-2la, enquanto a se
gunda (“como tu fizeste, assim se fará contigo; o teu malfeito tomará sobre a tua
cabeça”) refere-se ao texto que a precede (5-14). Significa que os textos foram in
vertidos para criar um clima de integração temática e de continuidade de sentido.
Talvez essa virada tenha relação com a efetiva união de dois textos que original
mente eram de composição diversa, porém o resultado foi magistral ao vincular o
acontecido com Edom com o “Dia do Senhor” e o castigo a esse povo com o fato
309
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i o o T e s t a m e n t o
de que será pago na mesma moeda. A inversão liga os textos de tal forma que não
é possível lê-los separados sem destruir sua estrutura literária.
O livro encerra (21b) com a afirmação de que o poder de reinar e gover
nar estará nas mãos do Deus de Israel. E uma forma de dizer que todo domínio
construído sobre a traição e a crueldade não tem futuro no plano de Deus (cf.
Schwantes).
Além do que foi dito no texto, pouco sabemos em detalhes sobre os fatos
que o motivam (cf. McCarter). “Obadias” significa ‘servo de Deus’, mas esse
dado não parece ter um papel significativo na mensagem geral da obra. A relação
entre Israel e os edomitas remonta aos antepassados comuns, como revela a his
tória de Jacó e Esaú, em que esse último é chamado de Edom em referência à cor
vermelha da comida que pede em troca de sua primogenitura (Gn 25.30; 36.1).
Dt 2.4 menciona-os como “irmãos”, e em 23.7 ordena-se para não aborrecê-los.
Entretanto, tudo indica que, após a tomada e a destruição de Jerusalém no ano
586 a.C., os vínculos deterioraram e textos como SI 137.7 e Lm 4.21 testemu
nham a inimizade que marcará o resto da história de ambos os povos. É muito
provável que as primeiras intuições que formam esse livro surgiram no contexto
dos eventos daquelas trágicas jornadas e que o texto foi enriquecido com outras
experiências posteriores de perda de território e humilhação. O Israel que regressa
do exílio encontra um território limitado a Jerusalém e seus arredores e não deixa
de perceber essa perda como resultado da servidão de seus adversários. É preciso
destacar que não temos notícias de que aquilo que foi anunciado em Obadias se
cumpriu. Ao contrário, sabemos que era idumeu o bem-sucedido e cruel militar
Herodes que, durante a segunda metade do século I a.C., usurpará o poder e se
instalará em Jerusalém com apoio do Império Romano. Por seu conteúdo sabemos
que, nos tempos de Herodes e seus sucessores, o livro de Obadias recuperou uma
nova força ao ser utilizado por setores do judaísmo nacionalista como um teste
munho contra os herodianos, que eram identificados como os sucessores daqueles
edomitas mencionados no livro.
A hermenêutica não buscará nessa obra o que ela não nos pode dar. Esse
pequeno livro não prima por sua originalidade teológica, mas por sua qualidade
literária (cf. Soggin). Entretanto, sob o ponto de vista teológico, reforça o conceito
de que a justiça humana e histórica tem sua origem - mas também sua projeção
ao infinito - na justiça que Deus promove. Em suas palavras nos é ensinado que
aqueles que foram oprimidos possuirão a terra e que chegará o dia em que a jus
tiça de Deus se manifestará em toda a sua dimensão. Nesse dia serão julgados os
310
o LIVRO DOS D o z e P rofetas: U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
que humilharam os fracos e descobrirão que seu poder - já feito cinzas - não lhes
servirá para evitar seu próprio desastre.
BIBLIOGRAFIA
5. Jo n a s
Uma narrativa adequada e uma visão teológica ampla fazem dessa pequena
novela um dos textos mais divulgados da Bíblia Hebraica. Sua presença entre os
livros proféticos revela que sua composição passou por vários estágios, pois, en
quanto o primeiro versículo o coloca nesse grupo ao utilizar a fórmula “veio a pa
lavra do Senhor a Jonas”, típica desse gênero, o restante da obra está, sob o ponto
de vista literário, relacionado a obras como Rute, a história de José (Gn 37-50) e
Ester; teria sido mais natural colocá-la entre os chamados Escritos ao lado desses
livros. Conforme seu conteúdo, pode ser considerado uma parábola ou mashal,
palavra hebraica que significa ‘comparação’ (cf Allen, p. 14; Landes, 1978, p.
146-149). Ao mesmo tempo, Jonas é o único profeta dessa coletânea que ocupa
três lugares diferentes no cânone. E quinto na Bíblia Hebraica, sexto na LXX e
último no rolo dos Doze Profetas achado em Qumrã, o que pode sugerir que Jonas
foi 0 último livro a ser incorporado à coletânea dos doze (cf Jones, p. 54; 130-
311
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
134). É provável que o interesse em aumentar, por razões simbólicas, de dez para
doze o conjunto de livros chamados profetas menores levou a separar Malaquias
do final de Zacarias e introduzir Jonas entre eles. A respeito do nome do livro é
difícil avaliar se a menção de um profeta chamado Jonas, filho de Amitai, em 2Rs
14.25, fez com que se utilizasse aquele nome para vincular esse relato a um pro
feta já reconhecido na história ou se havia uma tradição anterior que relacionava
0 profeta mencionado em Reis ao personagem desse livro (cf. González, p. 12).
Fica a dúvida sobre isso, mas também a certeza de que, a partir de sua forma final,
o relato foi compreendido como texto profético e assim recebeu o lugar que ocupa
no cânone.
5.1. Época
312
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
Esses mesmos traços teológicos podem explicar seu lugar no cânone. Co
locado depois de Obadias - cuja teologia desenvolve-se a partir da condenação
de Edom, um povo vizinho e parente, porém considerado inimigo e estrangeiro
serve como contrapeso à imagem negativa que aquele livro apresenta dos que
o rodeiam.
I. Primeiro envio
313
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
A primeira parte eomeça com o chamado ao profeta. O texto logo nos diz
que ele partiu na direção oposta. Essa desobediência será motivo para que uma
grande tempestade no mar coloque em perigo a embarcação e a vida dos tripulan
tes. Após clamar a seus deuses, esses lançam sortes e, como não podia ser dife
rente, a sorte caiu sobre Jonas. O relato utiliza o verbo descer de forma reiterada.
Jonas desceu desde que saiu: primeiro a Jope, depois ao barco, depois ao porão e
por fim descerá ao fundo do mar em consequência de ter optado por fugir em vez
de aceitar o chamado de Deus. Não há dúvidas de que esse homem é responsável
pelo afundamento do barco. Entretanto, mesmo quando Jonas pede que o joguem
ao mar para acalmar as águas, o texto mostra-nos os marinheiros estrangeiros
esforçando-se para chegar à costa e evitar a morte de Jonas. O esforço é inútil, e
as águas voltam a aquietar-se só depois de atirarem Jonas ao mar.
Esse primeiro capítulo tem como meta estabelecer a rebeldia de Jonas
como origem do que virá. Nele é apresentada uma série de equívocos que pren
dem a atenção do leitor e dão um alto grau de surpresa à trama. O mar é a morte,
e atiram-no para morrer; entretanto, Jonas não morrerá. Os estrangeiros não co
nhecem o Deus de Israel, mas o invocam e temem (“não faças cair sobre nós este
sangue, quanto a nós, inocente” - 1.14) e no fim fazem votos como fiéis crentes.
Antes clamaram a seus deuses em vão até que acusam Jonas e exigem dele que
declare sua identidade e sua missão. Ao ouvi-lo, apiedam-se de Jonas enquanto
ele mesmo os aconselha que o atirem ao mar para morrer.
Acalmado o mar e eliminado o responsável pelo desastre, a história parece
chegar a seu fim. Porém o relato continua com o envio de um peixe grande no qual
Jonas morará por três dias e noites. É uma referência aos monstros marinhos que
supostamente habitavam as profundezas dos mares e que, portanto, conduziam à
morada dos mortos. Na antiguidade, o mar aberto e especialmente suas profun
dezas eram considerados o lugar da morte. Sem dúvida alguma, é uma aparição
fantástica, que não quer ser compreendida de maneira literal. Isso é assim, como
é óbvio, porque não é possível viver dentro de um peixe, mas também porque o
aparecimento de elementos surpreendentes é comum nessa literatura que não bus
ca literalidade, mas transmitir a vontade de Deus nesse exato momento. Essa nova
cena foi lida no Novo Testamento como prenúncio dos dias posteriores à cruz de
Cristo e sua volta à vida no terceiro dia. Em Mt 12.38-41 (veja-se também 16.4),
faz-se uma extensa descrição dessa história e coloca-se a mesma como paradigma
para o que acontecerá com Jesus. A imagem tomou-se tão forte para os cristãos,
que nos primeiros séculos da igreja era lembrada como um dos principais símbo
los da ressurreição. No caso de Jonas, a cena não é nada fascinante, pois, longe de
ressuscitar triunfante, o peixe vomita-o grosseiramente na areia.
A primeira parte do livro conclui com esse salmo (2.2-10), que, embora
deva ser lido no contexto da narrativa do capítulo 1, é muito provável que tenha
sido uma peça independente, acrescentada ao conjunto. Isso não tira seu valor.
314
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
mas nos leva à pergunta pela intenção semântica de colocá-lo ali. É apresentado
como uma oração feita no interior do peixe, porém nela se fala no passado, como
se o profeta já tivesse sido resgatado. Em duas ocasiões é mencionada a nostal
gia em relação ao templo, apesar de que, dito pela boca de quem fugiu de Deus,
não soa muito convincente. O tema central é a gratidão por ter sido resgatado da
morte. O v. 3 faz alusão ao Hades, lugar dos mortos, que nesse caso se localiza
nas profundezas do mar. Quando no v. 7 se volta ao lugar dos mortos, será desta
vez encontrado na base dos montes e na terra que cobre o corpo. O próprio peixe
revela-se como um monstro marinho que conduz à morte. Assim Jonas volta à
vida a partir do lugar do qual ninguém regressa, e esse é o símbolo mais forte
desse salmo. Que no século I, como já mencionamos antes, Jesus lançará mão
dessa narrativa para aplicá-la a si mesmo indica que essa condição extrema era
compreendida pelas pessoas de sua época. Devido à profundidade da mensagem,
entende-se que a função que cumpre nos alicerces de sentido é dupla. Por um lado,
estabelece que a misericórdia de Deus supera a rebeldia de Jonas e que, inclusive
ao enviar a tormenta sobre o navio que o fez chegar ao lugar dos mortos, não era
sua intenção deixar que Jonas nem ninguém dos demais ocupantes morresse. Em
segundo lugar, busca mostrar que Jonas, mesmo sendo rebelde, é uma pessoa pie
dosa e crente, que almeja estar no templo e que é grato a Deus por ter sido salvo.
A partir desse momento, abre-se um novo período na narrativa. Há um
segundo chamado à ação profética, que pressupõe o primeiro; dessa vez, Jonas
teve provas do que acontece quando não se ouve a voz de Deus. Ele vai e prega
o que lhe havia sido indicado, e ocorre uma nova surpresa no relato. Os ninivitas,
gentios tidos por idólatras, creem em suas palavras e dispõem-se a fazer jejum,
a clamar ao Senhor e a vestir roupas humildes. Até mesmo o rei da cidade se
arrepende e está convencido de que devem responder com todas as suas forças
ao Deus de Jonas. Essa atitude do rei só pode ser compreendida como um efeito
literário, produto do distanciamento hermenêutico que, ao situar o relato em um
passado já longínquo, permite brincar com os personagens e fazê-los agir de uma
maneira que não teria sido possível na vida real. Para os contemporâneos dos
reis ninivitas, sua característica era a cmeldade e não o arrependimento. Diante
dessa inesperada resposta - para Jonas e para o leitor - , a reação do Senhor é
outra vez de misericórdia e não executa a destruição anunciada. Outra vez Jonas
fica desacomodado perante os estrangeiros. Primeiramente, por ser o causador de
sua iminente perda da vida; agora por anunciar uma destmição iminente e certa,
que não se concretizará. A ironia do relato é que essa falta de coerência entre o
anunciado e o ocorrido não enfraquece a fé dos ninivitas, mas põe o profeta em
conflito com seu Deus. A fórmula retórica é que Jonas sabia da misericórdia de
Deus e que ele não destruiría a cidade se lhes pregasse e eles se convertessem.
Jonas queria a morte dos pecadores, e para isso não deveria pregar a eles. Agora
busca sua própria morte, situação provocada pela desilusão ao ver que os peca
dores são perdoados. Pede a Deus que lhe tire a vida, mas esse lhe responde que
315
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
sua atitude é exagerada; basta isso para que o relato evolua e mostre a Jonas que
acampa diante de Nínive.
Até aqui a trama do relato que revela o amor de Deus pelos estrangeiros,
assim que os apresenta aceitando a fé no Senhor no mesmo instante em que são
confrontados com o anúncio de sua soberania. Talvez a obra podería terminar
nesse lugar. Porém o narrador nos prepara mais uma surpresa. Essa consiste na
discussão aberta entre o profeta e Deus, apresentada em forma de relato fantásti
co, assim como corresponde a esse gênero.
Jonas construiu uma cabana e senta-se para ver a cidade de longe. O relato
leva o leitor a pensar que Jonas está convencido da destruição de Nínive. Porém
as coisas são diferentes, pois Deus fez crescer uma trepadeira que fizesse sombra a
Jonas e, após um dia, enviou um inseto que matou a trepadeira e um vento quente
que sufocou Jonas e levou-o a pedir a morte. Agora pede para morrer, mas não
por razões morais ou ideológicas - como na primeira vez (4.3) - , mas físicas, pois
o calor se tomava mais forte e fazia sua cabeça doer. No final, revela-se que foi
uma armadilha de Deus para destacar a atitude equivocada de Jonas, e é dito que,
enquanto ele pragueja pela morte de uma planta que lhe é estranha e pela qual não
teve que fazer esforço, não pode esperar nada menos de Deus do que sua miseri
córdia para com pessoas inocentes.
Durante o século XIX e começo do XX, este livro foi utilizado para provar
os crentes sobre sua possível ligação com uma teologia liberal ou, ao contrário,
uma teologia que respeitasse a literalidade na leitura do texto bíblico. Conserva
dores e progressistas perguntavam a opinião sobre a história do peixe que engoliu
Jonas para ver se a pessoa posta à prova acreditava nela de maneira literal ou a
assumia como uma lenda sem valor histórico. Sob uma perspectiva hermenêutica,
ambas as posturas falham por buscar o que não existe, e, além disso, fazê-lo no
lugar errado. No primeiro caso, a leitura literal desconhece o gênero literário e
perde a possibilidade de indagar o sentido profundo da teologia de Jonas, que não
consiste em acreditar que se pode viver dentro de um peixe, mas em ressaltar o
domínio de Deus sobre tudo o que foi criado. O segundo evita a superficialidade
da leitura literal, porém desmerece o valor simbólico da narrativa ao submetê-la
a um filtro racional. Que não seja uma história real não lhe tira realismo e menos
ainda o caráter de perguntar pelo mais concreto do espírito humano e sua relação
com Deus.
Uma vez superada aquela alternativa, ao concluir o relato, pode-se voltar a
seus detalhes para especificar o fluxo de sentido. Destacamos os seguintes:
a - O texto estabelece que os pecadores (1.2), mesmo que sejam estrangei
ros, podem converter-se ao Deus de Israel (3.10). Afirma-se desse modo a linha
que, dentro de Israel, propiciava o universalismo do Deus de seus antepassados.
316
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
BIBLIOGRAFIA
ALLEN, L. C. The Books o f Joel, Obadiah, Jonah and Micah. NICOT. Grand
Rapids, 1976.
ALONSO SCHÔKEL, L. e SICRE, José L. Profetas II. Madri, 1980. p. 1.007
1.032.
ASURMENDI, Jesus Maria. “Jonás” in: LEVORATTI, A. (ed.). CBL II. Estella,
2005. p . 520-522.
BRUEGGEMANN, Walter. An Introduction to the Old Testament. The Canon and
Christian Imagination. Louisville, 2003. p. 191-207.
GONZALEZ, Justo Luís. Jonás: introducción y comentário. Buenos Aires, 2000.
317
I n t r o d u ç ã o h e r m e n é n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
JONES, Barry Alan. The Formation o f the Book o f the Twelve. A Study in Text
and Canon. SBL. Atlanta, 1995.
KILPP, Nelson. Petrópolis, 1994.
LANDES, George. “Kerygma of the Book of Jonah: The Contextual Interpreta
tion of the Jonah Psalm”. Inter 21. 1967. p. 3-31.
_______. “Jonah: AMashal?”, in: GRAMMIE, John; BRUEGGEMANN, Walter
et al. (eds.). Israelite Wisdom: Theological and Literary Essays in Honor of
Samuel Terrien. Nova York, 1978. p. 137-158.
LIMBURG, James. Interpretation. Hosea-Micah. Atlanta, 1988.
_______. Jonah. A Commentary. OTL. Louisville, 1993.
PETERSEN, David. The Prophetic Literature. An Introduction. Louisville, 2002.
p. 191-193.
SICRE, José Luis. Profetismo en Israel. Estella, 1992.
SOGGIN, Alberto. Introduction to the Old Testament. Londres, 1980. p. 355-362.
SWEENEY, Marvin. The Twelve Prophets I. Collegeville, 2000. p. 301-334.
TRIBLE, Phyllis. Rhetorical Criticism: Context, Method, and the Book of Jonah.
Minneapolis, 1994.
6. M iq u eia s
Em 1.1, é dito que Miqueias é de Moresete. Nada sabemos sobre essa lo
calidade, mas é provável que seja a mesma mencionada em 1.14 como Moresete-
-Gate, uma cidade localizada ao sul de Jerusalém, na beira da área de colinas
baixas conhecida como Sefelá. Que o profeta seja identificado acrescentando ao
318
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
nome seu lugar de origem (como também são os casos de Naum de Elcos e de
Amós de Tecod), em oposição ao recurso mais comum de exibir o nome de seu
pai, indica que ficou famoso fora de sua própria localidade, provavelmente em Je
rusalém (cf. Mays, p. 15; Wolff, p. 6). Entende-se assim que sua experiência como
pessoa nascida em uma cidade pequena lhe daria uma perspectiva particular para
analisar os fatos de seu tempo e as relações sociais. Uma assombrosa expressão na
primeira pessoa é a única coisa que possuímos de forma adicional sobre Miqueias;
em 3.8, ele mesmo descreve sua condição e seu projeto ao dizer: “Eu, porém, es
tou cheio do poder do Espírito do Senhor, cheio de juízo e de força, para declarar
a Jacó a sua transgressão e a Israel, o seu pecado”.
A respeito da época de seu ministério, diz-se que viveu nos tempos de
Jotão (742-735 a.C.), Acaz (735-715 a.C.) e Ezequias (715-687 a.C.), todos reis
de Judá. Os três abrangem um período de quarenta e seis anos de reinado, o que
serviu para apontar a eventual incongruência entre período tão longo de tempo
e as poucas páginas que nos foram legadas. Entretanto, o valor de uma obra não
deve ser medido pela extensão de suas linhas, mas sim pela qualidade e profun
didade de suas palavras. A história da literatura também é composta por autores
brilhantes que deixaram obras breves. E ainda mais: devemos lembrar que o livro
de Miqueias, assim como os demais livros da Bíblia, é o resultado de um longo
processo de redação e depuração em que não faltam acréscimos e cortes. O pro
duto final raras vezes pode ser considerado da pessoa que deu seu nome à coleção,
e o que lhe pode ser atribuído está localizado em um contexto literário tão dife
rente, que não é prudente fazer afirmações sobre a intenção do autor ou sobre sua
própria teologia. Que ao cabo dos séculos tenham sido preservados esses breves
textos como representativos do ministério do profeta do século VIII a.C. não deve
provocar nenhuma surpresa nem desilusão em nós, pois nossa hermenêutica será
construída sobre o texto que possuímos, o qual modelou uma mensagem que pode
estar mais ou menos distante do sentido das primeiras palavras.
319
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
outro (cf. Petersen, p. 173). Em nossa opinião, não estamos em condições de de
cifrar o critério dado para a ordem dos Doze.
Em Miqueias, são numerosos os textos que se aproximam do profeta Isaías.
Ao menos três merecem nossa atenção. Mq 2.1-5 tem seu paralelo em Is 5.8-13.
Não se trata de uma cópia textual, porém o tema e o vocabulário aproximam-nos
de maneira evidente. Ambos são palavras de juízo, que fazem alusão à casa dos
opressores, onde planejam como despojar os pobres. Nos dois textos, recorre-se
à imagem de quem pensa durante a noite em seu leito e depois, ao levantar-se
pela manhã, coloca seu plano em ação. Por não serem imagens habituais, sua
coincidência leva a pensar em uma fonte comum ou em um contexto poético onde
essas figuras eram levadas em consideração. O mesmo pode ser dito de Mq 5.9-14
em relação a Is 2.6-9. A menção dos eavalos e carros é repetida no mesmo sen
tido em Isaías, assim como a alusão às feitiçarias e idolatrias. A crítica à riqueza
também está presente em ambos os textos, apesar de que - como veremos mais
adiante - em Miqueias esse texto obteve um significado distinto daquele que tem
em Isaías. Outra é a situação de 4.1-4, que é quase uma cópia textual de Is 2.2-5,
textos nos quais se anuncia um tempo de paz e de transformação das armas de
guerra em instmmentos de lavoura (veja-se o contrário em J1 4.10). Esses para
lelos mostram-nos que estamos diante de um discurso profético, compartilhado
por outros profetas, que talvez formem uma escola ou corrente de pensamento. A
pergunta pela dependência de um em relação ao outro pouco pode acrescentar à
interpretação dos textos. O que sim revela a recorrência de temas é que as men
sagens de Miqueias ou Isaías não foram resultado da inspiração - ou loucura - de
uma pessoa isolada, mas resposta a uma situação de injustiça e deterioração da fé
prática, que era evidente para muitos. Ao contrário do que foi dito, é necessário
apontar que existem notórias diferenças entre ambos os profetas, muito além da
extensão de suas obras. A principal é que Miqueias fala a partir do âmbito rural,
enquanto Isaías sustenta um discurso enraizado na visão dos problemas urbanos
de Jerusalém e com um forte interesse pela linha sucessória de Davi.
Foram descritas várias estruturas para este livro. Distinguiram-se duas par
tes (1.2-5.12 e 6.1-7.20), que buscam descrever um certo paralelismo entre ambas
as seções (cf Mays, p. 2-11). Outros autores - em geral a maioria - dividem o
livro em quatro partes e consideram que estão em ordem cronológica. Assim,
os capítulos 1-3 e 6-7.6 são profecias de juízo, em que as primeiras são consi
deradas originárias do profeta e o segundo grupo uma reelaboração posterior de
seus temas, em que não faltam intercalações e retoques (cf. Sicre, que expõe B.
Renaud, p. 207). Depois, os capítulos 4-5 e o final 7.7-20 consistem em palavras
de bênção de concepção pós-exílica (cf Soggin). Marvin Sweeney (p. 345-346)
organiza de modo diferente do restante dos comentaristas ao dividir o texto em
duas partes (1.1 e 1.2-7.20) e depois admitir quatro partes dentro da segunda (1.2-
320
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o ü u d o z e l iv r o s ?
16; 2.1-5.14; 6.1-16 e 7.1-20). Cada proposta de estrutura tem sua parcela de
importância, ao mesmo tempo em que ofusca algum outro aspecto do relato. Nós
entendemos que o texto de Miqueias busca privilegiar a alternância entre juízo e
bênção e apresentamos esta estrutura que distingue duas partes e divide a segunda
em três pares:
I. Título 1.1
a) Juízo 1. 2 - 2.11
b) Bênção 2.12-13
a) Juízo 3.1- 12
b) Bênção 4.1- 5.15
a) Juízo 6.1-7.7
b) Bênção 7.8-20
321
I n t r o d u ç ã o h e r m e n é n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
ação contra os pobres volta a ser um tema central (3.1-3). Também a discussão
com os profetas adquire uma grande dimensão e revela talvez uma disputa en
tre setores ou escolas. Miqueias não pode aceitar que se anuncie paz ou guerra
de acordo com o pagamento que recebem (3.5) e lhes diz que o resultado dessa
atitude será que já não poderão falar em nome de Deus, pois esse fechará seus
lábios e não comunicará mais sua vontade por intermédio deles (cf Asurmendi,
p. 529-530). Essas palavras são compensadas na obra com 4.1-5.15, uma belís
sima coletânea de textos de bênção que vão sendo alinhavados até terminar em
uma denúncia de idolatria e sua vontade de erradicá-la, porém em um contexto
de salvação. Inicia-se com o anúncio de que, nos últimos dias, o monte do templo
será lugar de reunião das nações dispersas, da restauração da paz entre os povos.
Em 4.6-12, menciona-se o iminente exílio para a Babilônia, mas também sua su
peração por meio da ação de Deus. Assim, o texto que poderia ter sido pré-exílico
transformou-se em exilico, ampliando seu horizonte hermenêutico. Depois (5.1
6) falará de um rei que virá de Belém-Efrata e deixará em dúvida se se trata de
lembrar a figura de Davi ou de um novo Davi.
O cristianismo lê esse texto como um anúncio do messias que se toma
realidade em Jesus de Nazaré, porém, na redação de Miqueias, é provável que
faça alusão à esperança de restabelecer a casa de Davi com um rei que os livre da
opressão do exílio. Nos v. 9-15, percebem-se ecos de Is 2.6-9, mas, enquanto ali é
uma profecia de juizo e castigo para Jacó, em Miqueias quer ser compreendido de
maneira positiva. O que antes foi apresentado como juízo é retomado nesse novo
contexto literário como palavra de esperança. Quando a idolatria se transformou
em algo endêmico, contra o qual já parece não haver remédio, o profeta diz que
Deus destmirá qualquer sinal de poder violento e os vestígios de idolatria nas
cidades. O que em determinado momento foi palavra de juízo transformou-se em
anúncio de esperança para o povo fiel.
O terceiro jogo de profecias (6.1-7.7 e 7.8-20) introduz, na seção do juízo,
elementos novos em relação aos já apresentados. Lembram-se os fatos da liberta
ção no Egito na figura de seus líderes Moisés, Arão e, de forma chamativa, Miriã.
A menção da irmã e líder das mulheres no deserto surpreende-nos e nos faz pen
sar que talvez houvesse um movimento de mulheres que a tivesse como modelo.
Depois é feita a crítica mais dura que já se escutou ao culto, quando se pergunta
se Deus se agradará de “milhares de carneiros, de dez mil ribeiros de azeite” no
sacrifício, para responder com um versículo que não requer explicação (6.8):
Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o Senhor pede de ti:
que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o
teu Deus.
322
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
323
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
respeitar seus direitos. A devoção espiritual deve ser coerente com a prática social
de justiça ou será uma espiritualidade vazia e ardilosa.
3 - Os falsos profetas. A teologia de Miqueias não tem dúvida em distin
guir entre o profeta verdadeiro e o falso. O critério não é a retidão de suas palavras
e declarações, mas a prática da fé. Em 3.5, ele denuncia o comércio de suas profe
cias e o fim de seu ofício. Ao contrário deles, Miqueias sabe-se cheio do Espírito
de Deus, que o leva a denunciar a deterioração da fé em que Israel caiu.
4 - 0 Deus que abençoa. Apesar de tudo o que foi dito, a mensagem de
Miqueias é que Deus quer abençoar seu povo. Isso não deve ser entendido como
fraqueza da mensagem de juízo. Essa obra não pode ser lida no sentido de que
qualquer que seja nossa atitude perante a vida e perante o próximo no final sere
mos perdoados. A misericórdia de Deus que Miqueias mostra é construída sobre
o chamamento à conversão do opressor e a busca da justiça. E crucial para essa
compreensão que toda bênção nessa obra permaneça como promessa ainda não
cumprida, como convicção de que a vontade de Deus vai nessa direção, mas que
o povo também tem que fazer a sua parte. Mesmo que não o diga explicitamente,
pode-se deduzir que, para a teologia de Miqueias, a bênção de Deus exige de nos
sa parte agir com justiça e, sem isso, se frustra.
BIBLIOGRAFIA
324
o LiVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
7. N a u m
325
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
I. I.I Título
326
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
327
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i o o T e s t a m e n t o
opressor como base do poder real que os marginaliza e atormenta. Assim como no
entrelaçamento anterior - e assim também será na unidade seguinte —,o parágrafo
dirige-se a Nínive, porém não se espera que essa o leia ou perceba o horror de
sua destruição, que ocorrerá dentro de pouco tempo. Nínive nunca saberá dessas
palavras. A finalidade do texto é comunicar a Israel o destino de seu opressor e as
ações de vingança que seu Deus executa em seu favor.
2.13-3.7 —A destruição da cidade é descrita com toda a crueldade. E pro
vável que o pano de fundo seja a memória das destruições levadas a cabo pelos
assírios, os quais agora bebem das águas que eles próprios deram de beber. O
texto tem duas partes; a primeira é a descrição da ação de Deus no plano terreno:
os cavalos, as lanças e as espadas irão demolir a cidade (2.13-3.3). A segunda
começa em 3.4, onde se descreve a destruição, porém se faz isso de maneira con
ceituai ao comparar a cidade com uma prostituta. Aponta-se que será exposta à
vergonha e que será sepultada no esterco. Nesse tempo, todos aqueles que hoje a
exaltam e sentem-se orgulhosos de sua amizade vão afastar-se dela, e ninguém se
compadecerá dela.
3.8-11 - Para reforçar a ideia expressa no parágrafo anterior, o texto men
ciona o destino de Nô-Amom (Tebas) nas mãos dos assírios. Essa cidade foi con
quistada no ano 663 a.C., e sem dúvida a descrição da destruição de Nínive permi
te lembrar os fatos ocorridos naquela ocasião. O autor tem informação exata, pois
não apenas a localiza de maneira correta junto ao rio Nilo, mas menciona a pro
teção do Egito e da Etiópia, que estão ao sul e perto da posição efetiva de Tebas.
Assim, a cidade estava protegida por ambas as nações. Se Tebas foi conquistada
apesar da proteção do Egito e da Etiópia, nada faz imaginar que a influente Nínive
poderá resistir quando ela mesma for sitiada e atacada.
3.12-15 - Nínive é descrita como uma potência em decadência, que, quan
do chegar o momento de defender-se, não terá forças para fazê-lo. Seus solda
dos são inaptos para a guerra, os portões da cidade não resistirão ao confronto e
abrir-se-ão aos inimigos. As imagens reproduzem sobre Nínive o que os sitiados
por ela tiveram que sofrer. Anuncia-se a ela que verá sua queda, mesmo que se
prepare para o cerco, acumule água e reforce seus portões. A imagem de força e
soberba que Nínive irradiava ao mundo será desmoralizada, e toda a sua fraqueza
e impotência ficarão expostas.
3.16-19 - O gênero é de lamentação, mas nesse caso não é no sentido
franco, porém como desprezo e zombaria. Aqui “os teus nobres dormitam” tem
um sentido irônico. Não significa que descansam, mas que são incapazes de lu
tar; “não há remédio para a tua ferida” quer celebrar o destino que sofreu e não
lamentar sua dor. Assim, o livro conclui com palavras de ironia sobre o destino da
cidade que foi dona do mundo e que exerceu seu poder para oprimir os povos sob
seu domínio. A linha final não é ingênua; toda nação alegra-se com seu destino
infame, pois sua crueldade recaiu sobre todos os povos.
328
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
329
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamento
BIBLIOGRAFIA
8. H a b a c u q u e
Nada sabemos da vida desse profeta. Seu nome Habacuque tem significado
desconhecido, e talvez seja essa a razão por que sua forma grega na Septuaginta
seja Amhakoum, uma palavra aparentemente desvinculada da língua hebraica e
que parece análoga ao nome de uma planta da região da Assíria. A menção do
surgimento dos caldeus em 1.6 permite localizar a redação nos tempos do rei
330
o LIVRO DOS D o z e P r o f e t a s : U m l iv r o o u d o z e l iv r o s ?
Jeoaquim de Judá, que reinou de 609 a.C., após a morte de Josias, até 598 a.C.
Nessa época, Judá ficou sob o domínio egípcio até a batalha de Carquemis (605
a.C.), depois da qual os babilônios adquiriram o controle de Canaã. Em um ou ou
tro caso, Israel sofreu a opressão das potências e padeceu as violências e injustiças
que moldaram a mensagem do profeta. Ao lado de Naum e Sofonias, ele forma o
grupo dos três profetas pré-exílieos do século VII a.C.
Título 1.1
331
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t ig o T e s t a m e n t o
Lamento 1.2-4
Resposta 1.5-11
Lamento 1.12-2.1
Resposta 2.2-5
332
o LIVRO DOS D oze P rofetas; U m livro ou doze livros?
Nesses ais desenvolve-se o que ali foi anunciado a respeito dos caldeus. São cinco
estrofes (começam nos v. 6,9,12,15,19), que possuem uma estrutura semântica
similar e, ao mesmo tempo, sugerem uma certa ordem concêntrica:
MOTIVO AÇÃO
2.6 saque serão saqueados
2.9 bens adquiridos injustamente terão que prestar contas
2.12 violência, assassinatos conhecimento de Deus
2.15 corrupção destmiçâo
2.19 idolatria exaltação de Deus
Anúncio: “A i daquele que ajunta em sua casa bens mal adquiridos...” (v. 9)
Ação: “Porque a pedra clamará da parede...” (v. 11)
333
I ntrodução hermenénutica ao A ntigo T estamento
334
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
Ter estudado cada parte da obra coloca-nos na condição correta para que
a abordemos em seu conjunto e possamos ter acesso a uma hermenêutica que
abranja a totalidade da obra. Os lamentos iniciais recebem resposta, em princí
pio, na mesma unidade, porém também no encerramento do hino. O profeta que
clama porque não entende a atitude de Deus (1.2) e pede respostas é escutado no
final, declarando que “ainda que a figueira não floresça... exulto no Deus da mi
nha salvação” (3.17-18). Note-se que a primeira resposta a seus lamentos vem de
Deus (1.5ss), enquanto que, ao encerrar o livro, é o profeta quem expressa a fé e a
confiança na salvação que Deus inaugura e promove. Existem duas diferenças im
portantes entre a resposta em 1.5ss e a do encerramento do livro. Uma consiste em
que naquela se oferece a solução bélica para as injustiças convocando um povo
estrangeiro para eliminar o opressor. Porém isso se revelou inútil, e na resposta
final se privilegiam a fé e a certeza na justiça divina. A segunda diferença está no
estado de ânimo do profeta. Expressões como “me alegro”, “exulto” e “Deus é a
minha fortaleza” são impensáveis no primeiro capítulo. Quem no começo descon
fiava de Deus passa, na conclusão da obra, a proclamar a boa notícia.
335
Introdução hermenênutica ao A ntiüü T estamento
BIBLIOGRAFIA
9. S ofon ias
0 livro de Sofonias foi escrito sob o efeito de um dos momentos mais tris
tes na relação do povo de Judá com Deus. A idolatria propagava-se em Jerusalém,
e as pessoas iam atrás dos deuses cananeus para assimilar suas práticas e esquecer
0 pacto com Deus. O profeta denuncia essa situação com todas as suas forças e
prevê a destruição e o extermínio não apenas de Judá, mas de toda a criação. Na
concepção daquela época, o destino do cosmos estava ligado ao destino de Israel,
de modo que o cosmos entra em crise quando Israel está. Como é habitual na
maioria dos livros bíblicos, em um segundo momento as Escrituras são revisadas,
e os textos são ampliados em resposta a uma nova situação. Nesse caso, há duas
revisões: uma próxima dos fatos do primeiro texto - talvez pelo próprio profeta
- e a segunda já em pleno exílio. A primeira mostra frustração, a segunda oferece
esperança.
Sofonias - nome que significa ‘o Senhor esconde’, com o sentido de ‘pro
teger’, e que se refere à proteção de Deus a quem possui o nome (cf. Sweeney,
2003, p. 47) - forma, ao lado dos profetas Naum e Habacuque, o grupo de três
livros pré-exílicos do século VII a.C. que participam do chamado “livro dos Doze
Profetas”. Se os ordenássemos cronologicamente, deveríamos colocar Sofonias
em primeiro lugar entre os três, entretanto os cânones, tanto da Bíblia Hebrai
ca como da Septuaginta, persistem em colocá-lo no final. Provavelmente isso se
deve a que, enquanto em Naum e Habacuque as palavras de salvação são escassas
e devem ser procuradas misturadas com outros textos, Sofonias encerra com uma
extensa seção que celebra a restauração anunciada pelo Senhor e a promessa de
336
o LIVRO DOS D oze P rofetas; U m livro ou doze livros?
redenção para Israel (3.9-20). No exílio e pós-exílio, essas palavras foram diretri
zes para qualquer decisão a respeito do mérito dos textos.
Nada sabemos sobre a identidade desse profeta, além daquilo que se diz
em 1.1. Dos quatro nomes mencionados nesse versículo conhecemos apenas dois,
porém não podem ser vinculados ao profeta. Gedalias não é o mencionado em
IRs 25.22 nem Ezequias pode ser o rei de 2Rs 18, mesmo que, talvez por razões
hermenêuticas, se tentasse relacioná-lo a ele pelo fato de ter sido um dos reis
que agiram com retidão perante os olhos de Deus. Uma explicação interessante
e complementar à anterior é aquela que assume que o nome do pai pode ser ou
parecer estrangeiro; chama-se Cusi, e os cuxitas eram de uma região da África tal
vez ocupada pelos etíopes. A menção em 2.12 dos etíopes entre os povos a serem
destruídos soa estranha, pois não se conhece uma inimizade particular com eles, a
menos que se explique por esse vínculo familiar real ou hipotético. Se for assim,
pode-se explicar que se apontem três nomes de antepassados com elementos ja-
vistas a íím de garantir sua identidade israelita.
A respeito da data, podemos determinar que Sofonias anunciou sua mensa
gem durante o reinado de Josias (que reinou entre 640 e 609 a.C.). Josias herdara
uma situação muito grave em relação à fé de Israel. Em 2Rs 21.3-9, descreve-se que
seu antecessor Manassés instalara a idolatria em Jerusalém em níveis nunca antes
vistos. Assim, essa data é coerente com o conteúdo do livro, se pensarmos nos pri
meiros anos de seu reinado, quando ainda era muito jovem e a deterioração religiosa
atingia um nível intolerável. Alguns anos mais tarde, essa situação levou à expulsão
dos ídolos na chamada “reforma de Josias” (2Rs 23.4-20). Assim, o primeiro texto
- mais adiante veremos sua evolução - deve ser situado entre 640 e 630 a.C., antes
da adultícia do rei e da concretização de sua reforma (cf. Schmidt, p. 283).
1. Anúncios de destmição
337
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
A estrutura descrita mostra a redação final de uma obra que foi elaborada
a partir de textos anteriores. Por exemplo, é muito provável que 3.1-17 foi eom-
posto perto do final da vida do rei Josias, quando sua reforma mostrou-se ffaea e
os profetas sentiram frustração pelas expectativas não cumpridas. Entretanto, na
redação final, 3.1-8 fica ao lado dos textos de denúncia da infidelidade, enquanto
o resto constitui - junto com 3.18-20, linhas também elaboradas ainda mais tarde
e acrescentadas a título de conclusão - a mensagem de redenção que possibilita a
continuidade da vida e do projeto de Deus para seu povo. Como já apontamos em
outros casos, não é possível ler os textos de uma das partes sem considerar a outra,
sob o risco de perder o sentido final da obra.
338
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
339
I ntrodução hërmenênutica aü A nïiüo T estamento
Chegando a esse ponto, o texto abre uma nova seção (3.9-20). Não podia
ser de outro modo, pois já não havia margem para continuar o que até ali fora
dito. Quando se chegar ao fogo, não restarão mais do que cinzas, e essas serão
espalhadas com rapidez, deixando no esquecimento a longa travessia do povo
com seu Deus. Essa parte possui sua própria articulação e estrutura internas. São
três unidades utilizadas para colocar a mensagem em uma nova perspectiva. O v.
9 começa com a expressão “então”, que estabelece distância com o bloco do texto
anterior. Até agora, falava-se no tempo atual e em referência a fatos que ocorriam
nesses momentos ou fatos muito recentes. Assim, vemos que essa segunda par
te do livro situa-se como anúncio do futuro, como promessa ainda por cumprir.
Comparar esse jogo com o tempo do relato é central para a compreensão de mui
tos textos proféticos e permite perceber a articulação entre as partes. O anterior é
o real; o que agora se proclama é a promessa. A realidade de pecado descrita na
primeira parte se contrapõe, na segunda parte, a promessa da redenção mostrada
na boa vontade de Deus para com seu povo rebelde.
Em 3.9-13, encontramos a primeira unidade da segunda parte. Nela se
anunciam a redenção e a vontade de Deus de resgatar o que foi perdido. A ver
gonha do passado será superada, e os inimigos já não zombarão deles. Em certa
medida se pode dizer que, na compreensão de Sofonias, a destruição foi um passo
necessário para encarar o caminho da salvação (cf. Sicre, p. 308). Já menciona
mos que o V. 12 é fundamental para entender a dinâmica entre as duas partes nas
quais o livro está dividido. A humildade, a pobreza e o fazer justiça (v. 13) são
os sinais do povo que será resgatado, valores que haviam sido anunciados em 2.3
a título de antecipação. Naquela ocasião eram lidos como surpresa em meio ao
anúncio da ira e da destruição que Deus se propunha a realizar. Nesse caso atua
como confirmação de que a bondade de Deus acontece apesar do que foi dito na
parte anterior.
Após o anúncio da redenção vem o convite ao canto para expressar a ale
gria de saber que Deus age a favor de Israel para libertá-lo dos opressores (v.
14-17). Passou-se da promessa à ação, o que leva a pensar que esse texto provém
do último tempo no exílio sob o efeito de uma libertação que se sentia iminente
(aprox. 540-537 a.C.) ou dos primeiros anos da restauração, antes de 515 a.C., ano
da reinauguração do templo. O que interessa agora é que seu lugar tenha uma in
tenção hermenêutica determinada. Encontra-se entre dois textos (v. 9-13 e 18-20),
que expressam promessas a serem cumpridas e que, em consequência, celebram a
certeza de que essas promessas serão cumpridas em um prazo curto. Não se cele
bra de antemão o que parece impossível, mas aquilo do qual temos plena certeza
de que se concretizará.
A obra termina com o anúncio da reunião dos dispersos em um único lu
gar (v. 18-20). Essa unidade cumpre a função de encerrar a segunda parte e, ao
mesmo tempo, de encerrar todo o livro. Em relação a 3.9-20, acrescenta o tema
do reencontro em Israel daqueles que estão na diáspora. Isso leva a pressupor que
esse texto é pós-exílico, porém em uma época já distante dos primeiros anos da
340
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
restauração (cf. Childs, p. 459). Estão em sua terra, mas ainda não conseguiram
reunir os irmãos. A imagem das ovelhas doentes e perdidas, que serão curadas e
devolvidas ao aprisco, para referir-se ao Israel da diáspora, é comum nos profetas
e aponta para o ardor da relação de Deus com seu povo. Dita no final do texto,
serve de equilíbrio definitivo em relação à primeira parte (1.2-3.8) e não deixa
dúvidas sobre a vontade do Criador de redimir Israel.
BIBLIOGRAFIA
341
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
10. A geu
Ageu zela pelas datas exatas, o que, sob o ponto de vista hermenêutico,
significa que o texto busca uma transparência histórica (cf. Petersen, 1984, p. 33).
Em suas poucas linhas há cinco datas (1.1; 1.15; 2.1; 2.10; 2.20), cada uma das
quais, com exceção de 1.15- que parece estar fora de lugar - , abre uma nova uni
dade. Descrevemos, pois, quatro unidades (cf Schmidt, p. 334; Soggin, p. 325):
342
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro o u doze l iv r o s ?
343
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Israel, a deportação ou o fim dos tempos. Não há repetição literária de temas nem
se retomam passagens que teriam fieado em aberto. Nesse easo são assinalados os
erros, visando consolidar a liderança de Zorobabel e avançar até concluir as obras
do templo.
344
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
345
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
das narrativas de forma misteriosa não quer dizer que no plano textual seu papel
não tenha sido cumprido plenamente.
Finalmente, é preciso dizer que não nos devemos confundir e deixar levar
por uma suposta teologia retributiva nesse livro. Não nos é dito que, se as prescri
ções cultuais forem cumpridas. Deus abençoará seu povo, ao passo que, se não for
assim, deixará cair sua ira e será mesquinho em seu amor. Ao contrário, em Ageu
os papéis invertem-se e se afirma que Deus abençoará Israel (2.4,19) e estará com
ele assim como esteve com seus antepassados no Egito. A voz do profeta busca
despertar o povo para essa realidade do amor de Deus a fim de que, em resposta,
aja com desejo de fazer o que Deus espera de seus fiéis.
BIBLIOGRAFIA
ALONSO SCHÕKEL, Luís. “Ageo”, in.- Profetas II. Madri, 1980. p. 1.129-1.140.
AMSLER, Samuel. Los últimos profetas. Ageo, Zacarias, Malaquías y algunos
outros. Estella, 1996.
AZURMENDl RUIZ, Jesús. “Ageo”, in; LEVORATTI, A. (ed.). CBL II. Estella,
2005. p. 557-562.
KESSLER, John. The Book o f Haggai. Prophecy and Society in Early Persian
Yehud. Leiden, 2002.
NORTH, S. “Critical Analysis of the Book of Haggai”. ZAW 68. 1956. p. 25-46.
PETERSEN, David. The Prophetic Literature. An Introduction. Louisville, 2002.
p. 205-207.
_______ . Haggai and Zachariah. OTL. Louisville, 1984.
SCHMIDT, Werner. Introducción al Antiguo Testamento. Salamanca, 1983.
SCHWANTES, Milton. Hageo. Buenos Aires, 1987.
SICRE, José Luis. Profetismo en Israel. Estella, 1992.
SOGGIN, Alberto. Introduction to the Old Testament. Londres, 1980.
SWEENEY, Marvin. The Twelve Prophets II. Collegeville, 2000. p. 327-358.
WINTERS, Alicia. “El templo de Ageo”. RIBLA 35/36. 2000. p. 206-214.
11. Z a ca ria s
346
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
Quando no ano 539 a.C. os persas liderados por Ciro conquistam o império
neobabilônico, instalam uma nova política em relação aos povos vassalos. Ciro
concederá a eles a possibilidade de retomo à sua terra, o restabelecimento das au
toridades religiosas e seus cultos locais e permitirá uma certa autonomia política
ao governo local. Em termos gerais, sua atitude foi tolerante para com os povos
conquistados e conseguiu criar, desse modo, um setor comparável à sua política
e governo entre as sociedades dos povos subjugados. Isso fica claro em textos
como Ed 1.2, 5.13 e 6.14, nos quais se menciona sua boa vontade para com Israel,
ainda que esses textos possam ser tendenciosos e não de todo exatos. Devido
ao caráter pesado da tarefa para a comunidade dos regressados, é contado a nós
que Ciro concederá uma provisão de fundos para a reconstrução e a restituição
dos utensílios do templo, capturados por Nabucodonosor (2Rs 25.13-17). Porém
passa o tempo e, junto a uma série de problemas - principalmente a oposição dos
samaritanos (Ed 4.1 ss) - , acrescenta-se que a primeira euforia pela chegada e ex
pectativa de uma imediata restituição política esfria. Isso se reflete na demora na
reconstrução do templo e na suspeita de que essa construção nunca será termina
da. Por outro lado, a alegria pelo retomo em breve é ofuscada pela dura realidade
que lhes toca viver. Habitam a terra, porém não desfmtam de seus benefícios;
colhem, mas devem enviar boa quantidade do produto como imposto aos reis
persas; é permitido que rendam culto a seu Deus, mas seus corpos e pertences são
escravizados. Textos como Ne 9.36 dão um testemunho completo dessa situação.
A desesperança e a falta de um futuro claro começam a dominar a vida do povo.
A situação política tende a perpetuar-se, e não há no horizonte sinais que inspirem
esperança de uma mudança que restitua o bem-estar e a justiça. Nesse contexto
social e teológico situa-se a pregação de Zc 1-8, que, com uma linguagem sim
bólica e às vezes enigmática, sonda seus temas preferidos, que serão a consolida
ção da liderança de Zorobabel e Josué, a fim de que executem a reconstrução do
templo, e o anúncio da esperança em uma ação final de Deus, que fará justiça e
resgatará seu povo.
347
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Os capítxilos 9-11 não oferecem maiores referências históricas que nos aju
dem a situá-los no tempo. A menção dos gregos (9.13) parece indicar uma época
posterior às campanhas de Alexandra Magno (332 a.C.), mesmo que não possamos
afirmá-lo com absoluta certeza. Por outro lado, em 10.10-11, o Egito e a Assíria
são citados como lugares para os quais o povo foi levado cativo, o que deslocaria
a data para os séculos Vlll-Vll a.C., quando a Assíria ainda existia como entidade
política, mesmo que devamos levar em consideração que era uma prática comum
utilizar esses nomes de maneira simbólica para referir-se aos governantes helê-
nicos do século III, cujas sedes se estabeleceram tanto na Mesopotâmia como no
delta do Nilo. E mais interessante observar que a ênfase teológica está colocada
na visão escatológica e no Dia do Senhor, no qual Deus defenderá Israel ante seus
opressores históricos. Esses temas situam os capítulos 9-14 como uma literatura
de transição rumo à literatura apocalíptica, que se desenvolverá a partir do século
III em diante. Com base nisso podemos postular para os capítulos 9-14 uma época
tardia, que inicia no final do século IV e estende-se ao longo do século III a.C.
Essa época caracteriza-se em Judá por uma prolongada estabilidade política sob o
domínio dos Lágidas, residentes no Egito, e por uma certa tranquilidade teológica
que se romperá quando as vozes dos profetas se aproximarem dos novos ventos
das expectativas messiânicas e da linguagem apocalíptica, com a qual começará a
expressar-se a nova realidade social e da fé de Israel.
348
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
até o presente momento não temos nenhum testemunho textual que confirme essa
possibilidade.
Zacarias é um livro bastante vinculado ao restante da literatura bíblica.
No começo do livro introduz-se a memória dos antigos profetas (1.4-6; também
7.7). Zacarias interessa-se por explicar que sua mensagem está de acordo com a
dos textos clássicos da fé de Israel, e portanto se estabelecem relações bastante
evidentes, como 2.6, onde Zacarias convida para fugir da Babilônia (Is 48.20;
Jr 50.8; 51.6), ou em 2.2, que utiliza a imagem do anjo que mede a cidade para
reconstmí-la e que lembra os textos de Ez 40-42 e Jr 31.38-39 (cf. Sicre, p. 530).
Como era de esperar, no Novo Testamento foi o autor do Apocalipse quem mais
utilizou o material de Zacarias. Encontramos o uso recorrente da imagem de ca
valos (1.8; 6.2-3; Ap 6.2-4; 19.11). A medida da cidade está presente em ambos
os textos (2.5; Ap 11.1). O adversário que põe Josué à prova (3.1) é também
um personagem retomado pelo Apocalipse (12.10). Zc 4.11 apresenta oliveiras e
candelabros, que voltaremos a encontrar em Ap 11.4. A luz e a água (Zc 14.7-8)
são elementos que também aparecem em Ap 21.25 e 22.1,5, embora talvez mais
por pertencer a um universo literário comum do que por ser uma citação inten
cional. Nos evangelhos, Zacarias é citado em partes centrais da vida de Jesus. Na
descrição de sua entrada em Jerusalém, é citado 9.9 para situar seu ministério no
contexto de um messias pacífico e não violento (Mt 21.5 e Jo 12.5). Por ocasião da
compra de um campo por trinta moedas (Mt 27.9 cita Zc 11.12-13), mesmo que,
nesse caso, o evangelista se engane - talvez por citar de memória - e aponte para
Jr 32.6-15 como autor da citação. Depois da morte na cruz e quando um soldado
crava uma lança no costado do corpo de Jesus, Jo 19.37 cita Zc 12.10 para lembrar
a imagem profética do transpassado.
I. Introdução
I.2-6 Exortação
II. Visões
349
Introdução hermenénutica ao A ntioo T estamento
a - Incita-se a não repetir a rejeição à palavra de Deus, como fizeram seus pais;
b - O profeta coloca-se na tradição dos grandes porta-vozes de Deus;
c - Atribui-se o cativeiro à atitude do povo, que não ouviu a mensagem de
Deus.
350
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
351
Introdução hermenênutica ao A ntigo T f.stamento
e sem proteção. É uma palavra fragmentada, em que se unem diversos textos. São
os capítulos 9-14, sobre os quais devemos observar:
a - O material de 9-14 adquire um novo sentido se for lido como continua
ção de 1-8. Isolado, é um discurso em tom apocalíptico; unido a 1-8, é a denúncia
dos atuais sacerdotes e líderes que lucram com o prestígio daqueles que os ante
cederam.
b - Possuem um estilo diferente ao da primeira seção. Em 9-14, não se
menciona Zacarias, não há visões nem encontramos a figura do anjo, não nos é
fornecida a data na qual a mensagem foi proferida e - talvez o mais significativo
- não se mencionam a reconstrução do templo nem as figuras de Josué e Zoroba-
bel. Entretanto, há certa linguagem em comum com os capítulos anteriores.
c - Sob o ponto de vista literário, é uma coletânea de ditos e profecias de
diversos autores. A associação com Malaquias teria sido possível, porém se exa
gerou no fato de que, unidos, presumiríam uma obra independente. Se Malaquias
estivesse unido, teria sido com todo o Zc 1-14, e não apenas com 9-14.
d - A forte ênfase teológica na escatologia e no Dia do Senhor uniformiza
-o com a maioria dos livros proféticos pós-exílicos.
Quanto ao demais, há certos temas que estão presentes em ambas as partes
do livro e que manifestam continuidade semântica (cf. Childs, p. 482-484; Sog
gin, p. 437). Descobrimos que, em ambas as partes, é proclamado que Jerusalém
será um lugar de adoração ao Senhor para todas as nações (1.12-16 e 9.8-12);
fica estabelecida a convocação para um reino universal aberto a todos os povos
(8.20-23 e 14.16-19) e se reconhece a ação purificadora de Deus na comunidade
(5.1-11 e 13.1-2).
Quais são as consequências dessas afirmações para a leitura do texto? Os
capítulos 9-14 (às vezes chamados de “Segundo Zacarias”) não constituem uma
obra autônoma, e portanto não é a melhor opção estudá-los separadamente de
1-8, como se faz em muitos casos. Ao mesmo tempo, essa seção subdivide-se
em duas partes (capítulos 9-11 e 12-14), assim como assinala o texto em 9.1 e
em 12.1 com seus respectivos títulos introdutórios. Porém o mais importante é
compreender que cada uma dessas partes (capítulos 9-11 e 12-14) insere-se no
corpo preliminar e modifica a mensagem do texto anterior ao proporcionar novos
elementos de reflexão, que oferecem matizes teológicos próprios. Provavelmente
por ser assim é que a redação final do livro atribuiu 9-14 ao primeiro Zacarias e
organizou o material nas duas partes já mencionadas. Uma leitura atenta da obra
final permite-nos ver que a segunda parte (9-14) é uma releitura dos textos mais
antigos de 1-8. Essa releitura é feita para modificar o sentido da primeira coletâ
nea e para recolocá-la de modo que seja relevante para o novo contexto social e
religioso, no qual o prestígio original dos sacerdotes e líderes representados por
Zorobabel e Josué foi perdido e esses necessitam ouvir uma clara voz que os traga
de volta aos caminhos de Deus.
A novidade desses capítulos consiste nas figuras dos pastores. Já se utiliza
essa imagem em 10.2-3, mas a profecia básica é 11.4-17, que tem a função de
352
o LIVRO DOS D oze P rofetas; U m livro ou doze livros?
353
I ntrodução mermen ênutica ao A ntigo T estamento
estarão aí para criar novas expectativas e visões do futuro, para tomar possíveis a
justiça e a paz pelas quais tanto se anseia.
A euforia otimista dos capítulos 1-8, baseada na reconstrução do templo e
na instalação de uma nova liderança na comunidade, são acrescentados, em pri
meiro lugar, 9-11. Esses capítulos criticam duramente as lideranças de Jemsalém
e estabelecem que já não se pode confiar nelas, e portanto são substituídas (11.8).
A experiência histórica não permite sustentar o prestígio da liderança iniciada por
Josué e Zorobabel, que governa a partir do templo. Agora são chamados pastores
inúteis (10.3; 11.3,17). Porém a mensagem não é apenas de desastre e crítica: virá
um messias (9.9-10); humilde e pobre governará, não como os maus pastores, mas
sim com justiça e como rei que procurará a paz. Os capítulos 9-11 atualizaram o
texto e tomaram-no relevante para a sua situação.
Os capítulos 12-14 fazem com que a mensagem de Zacarias avance ainda
mais e alongam o processo hermenêutico, talvez como reflexo da experiência das
gerações posteriores a 9-11. O povo voltou a ser infiel. Há idolatria e falta de es
perança no seio da comunidade (13.2), onde se multiplicam os profetas que men
tem para as pessoas (13.3-6). A mensagem agora tem a ver com a purificação e a
renovação da consagração do povo e conduz rumo ao final, em que se anuncia o
Dia do Senhor (capímlo 14). Nesse dia, todos serão convocados, e o próprio Deus
salvará e resgatará o povo fiel. A injustiça e a opressão à qual foram submetidos
não são a última palavra de Deus para seu povo nem para a humanidade. Em uma
linguagem que em certos momentos é travada, porém compreensível, Zacarias
convida-nos a confiar na vitória final da justiça. Já passou o tempo da restaura
ção e a alegria de habitar outra vez na terra. Ficaram longe os dias de festa pelo
restabelecimento do culto e os sacrifícios no monte Sião. A geração daqueles que
retomaram do exílio ficou para trás; agora são outros os desafios e problemas que
a comunidade enfrenta e que exigem uma palavra profética. Nessa busca, a fé de
Israel procura novos horizontes teológicos, que lhe permitam entender a realidade
e a ação de seu Deus. O livro de Zacarias com sua linguagem densa e suas ima
gens às vezes enigmáticas é uma resposta a essa busca.
BIBLIOGRAFIA
354
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
12. M a la q u ia s
Vários elementos fazem com que esse tema abra portas para a compreensão
da obra e sua interpretação. Queremos destacar três deles. O primeiro é que 1.1
repete a fórmula de Zc 9.1 e 12.1 (“Sentença pronunciada pelo Senhor...”) e deixa
a sensação de que alguma vez o texto atual de Malaquias fez parte de Zacarias
ou foi um livro independente juntamente com Zc 9-14. Por razões que veremos
mais adiante, a primeira opção parece a mais plausível. Reforça essa sensação o
fato de que a extensão de Malaquias é similar à de cada uma daquelas duas se
ções de Zacarias e que se descobrem temas comuns, tratados dentro de uma linha
teológica, que podem ser considerados compativeis. A evocação do messias em
Zc 9.9-10 concorda com o anúncio de um futuro de justiça em Ml 4.2 (outra nu
meração 3.20); a crítica dos pastores (Zc 11.4-17) associa-se à dos sacerdotes em
355
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
356
o LIVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
Assim, mal acabamos de ler essa menção do iminente sol da justiça e que um
Elias ressuscitado inaugurará a incursão do próprio Deus na história, viramos a
página e encontramos o “Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho
de Abraão” (Mt 1.1). Na tradição cristã, Malaquias não só encerra o tempo dos
profetas, mas também atua como abertura e prenuncio da plenitude dos tempos,
expressa na chegada do messias.
I. Título 1.1
II. Profecias
a) Sobre Edom 1.2-5
b) Sobre os sacrifícios 1.6-2.9
c) Sobre casamentos mistos 2.10-16
d) 0 juízo do Senhor 2.17-3.5
e) Sobre os dízimos 3.6-12
f) A justiça escatológica 3.13-21
357
I ntrodução hermenènutica ao Antigo T estamento
pergunta do livro vai estender-se como uma sombra sobre todo o seu conteúdo;
“Em que nos tens amado?”.
Em seguida, a segunda profecia (1.6-2.9) dirige-se aos sacerdotes e per
gunta “onde está a minha honra?” e “onde está o respeito para comigo?”. O que
essa profecia denuncia é o uso de animais impuros para as oferendas. O texto
menciona a aliança com Levi (Dt 18.1-8; 33.8-11; Nm 25.12-13), em que se es
tabelece que, ao ser dedicada aos afazeres rituais, a tribo não possuirá território,
mas viverá das oferendas dos fiéis. Entretanto, o sacerdócio caiu em corrupção
e, talvez por conivência com aqueles que traziam as oferendas, aceitava animais
doentes ou roubados. O profeta interessa-se em resgatar a dignidade do culto e
exige do sacerdócio que “os lábios do sacerdote devem guardar o conhecimento,
e da sua boca devem os homens procurar a instrução, porque ele é mensageiro do
Senhor...” (2.7). O v. 11 é de um valor especial, pois não tem paralelo no resto
do Antigo Testamento e surpreende pela afirmação de que “em todo lugar lhe é
queimado incenso e trazidas ofertas puras”. Isso parece contradizer a teologia da
centralidade do templo em Jerusalém, e alguns pensaram que é uma intercalação
que deve ser omitida. Entretanto, lida no contexto da profecia, tem eomo função
apontar que os sacerdotes menosprezam o Deus que é exaltado nos lugares mais
remotos e que as nações reconhecem como Senhor digno de louvor. O texto con
fronta a majestade do nome de Deus entre as nações (que se refere à diáspora, não
aos gentios) com a pouca seriedade dos sacerdotes do templo.
A profecia seguinte (2.10-16) trata do tema dos casamentos mistos. Esse
problema vai ser encarado por Esdras e Neemias e sugere que nosso livro é ante
rior àqueles, quando a situação ainda não estava resolvida. A profecia coloca esse
problema no padrão da pertença a um mesmo pai e Deus. Assim, a pergunta inicial
é; “Não temos nós todos um mesmo pai?”. Por isso o fato de adotar esposas es
trangeiras significa afastar-se do Deus de seus antepassados e desconhecer o pacto
que fora estabelecido outrora com seu povo.
As perguntas “Em que o enfadamos?” e “Onde está o Deus do juízo?”
introduzem a quarta profecia (2.17-3.5). Perante tal ignorância se menciona o
mensageiro (3.1) que preparará o caminho para a plena manifestação de Deus.
Nesse dia haverá justiça, e Israel será limpado de pecadores. Chama a atenção que
os pecados são formados tanto pelos de ordem cultual (feitiçaria, adultério, falta
de temor a Deus) como de caráter social (espoliar os pobres, maltratar as viúvas
e os estrangeiros). A descrição do juízo se parece àquela que já foi descrita em
outros textos proféticos no contexto do ehamado “Dia do Senhor” (J1 2.11; Na
1.6; Sf 1.18).
A quinta profecia (3.6-12) trata dos dízimos e parte das perguntas “Em que
havemos de tomar?” e “Roubará o homem a Deus?”. Ao respondê-las, 0 profeta
denuncia a simação em que se roubam os dízimos e, em consequência, se sofre a
maldição de Deus. A terra é devastada pelos gafanhotos, a chuva não cai e as vi
deiras dão poucos frutos. Responsabiliza-se a penúria em que se vive pela falta de
358
o LíVRO DOS D oze P rofetas: U m livro ou doze livros?
Esse livro não nos informa a época de sua redação (cf Glazier-McDonald;
Soggin; Alonso Schõkel; Asurmendi). Entretanto, há vários indícios que nos aju
dam a situá-lo dentro de um determinado tempo. São eles:
1 - Em 1.8, o governador é denominado com a palavra persa pehaj (tra
duzido como “sátrapa”, “governador” etc.). Essa menção coloca-nos no período
persa (539-333 a.C.).
2 - 0 templo já foi reconstruído (1.10), e assim estamos depois de 515
a.C., ano da rededicação do templo. Porém se deve levar em consideração que as
359
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
BIBLIOGRAFIA
360
S eção VI
LIVROS SAPIENCIAIS
22
A sabedoria em Israel
363
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1. Os livros de sabedoria
A literatura sapiencial bíblica é a que mais revela seus vínculos com tex
tos extrabíblicos do contexto cultural e religioso das nações com as quais Israel
compartilhou a história. O escrito sumério chamado “Instruções a Shuruppak”
(2600-2400 a.C.) narra a história de um rei antediluviano, cuja sabedoria excedia
qualquer outra e que aqui se propaga em conselhos para viver bem. Na mesma
região, porém em tomo do ano 1100, encontramos a obra que passou a ser cha
mada de Jó babilónico devido à sua estreita relação temática com o livro bíblico.
E conhecida como Liidlul bei nemeqi e consiste em uma teodiceia - reflexões que
buscam expor a justiça de Deus e sua bondade apesar da dor humana - que mostra
que o gênero de Jó já estava presente nas culturas circundantes muito antes de
que os escritos bíblicos fossem elaborados. Embora hoje saibamos que esse do
cumento não tem afinidade com a estmtura dialógica de Jó, não deixa de revelar
que nosso livro participa de uma tradição cultural e religiosa muito antiga e rica
em pensamento e qualidade literária.
No Egito, a sabedoria foi cultivada desde os mais antigos tempos de sua
existência. Ali se caracterizou por dois subgêneros, as instruções e as lamenta
ções, ambas bem representadas na Bíblia. Por exemplo, as “Instruções do prínci
pe Hardjedef’ (2450-2300 a.C.) assemelham-se aos conselhos de Eclesiastes, e
as instruções conhecidas como “Sabedoria de Amenemope” (aproximadamente
1100 a.C.) tem muito em comum com Provérbios 22.17-24.22.
364
A SABEDORIA EM ISRAEL
BIBLIOGRAFIA
365
23
Ester
Com Jonas, Rute e a história de José (Gn 37-50) o livro de Ester compar
tilha sua condição de novela. Isso orienta-nos sobre os caminhos hermenêuticos
a percorrer a partir do momento em que esse não busca ser um registro histórico
de fatos acontecidos na história, mas transmitir um ensinamento sobre a natureza
do judaísmo e seus desafios. Mais para o final da narrativa, vinculam-se os fatos
narrados com a origem da festa de Purim, porém essa relação parece ter sido esta
belecida posteriormente e não é correto dizer —como fazem alguns comentários
- que a finalidade dessa obra é dar fundamento à festa de Purim. A independên
cia de ambos os fatos é sugerida no mesmo relato, e, por outro lado, é habitual
que em épocas bíblicas se buscassem histórias lendárias para adequá-las a festas
populares, atribuir-lhes uma origem comum e derivar uma da outra. Considerar
Ester um escrito para fundamentar uma festa diminui o valor da sua mensagem e
a qualidade da narrativa, que visa ser muito mais do que amparo histórico de uma
festa anual. Sua interpretação exige outros horizontes.
367
Introdução hermenênutioa ao A ntigo T esi amento
é possível que foi escrita durante os primeiros anos do período helenístico, que
sucedeu o persa (333-64 a.C.), e que foi recolhida a tradição oral dessa história ou
foram ampliados fragmentos preliminares. Esses proeessos editoriais são comuns
na literatura bíblica e não nos devem surpreender. O fato de estarmos diante de
uma obra de alta qualidade literária e que conduz a linha narrativa com perfeição
e habilidade abona a ideia de uma composição sucessiva e prolongada no tempo.
Ao 1er suas páginas, tem-se a sensação de ser um texto rebuscado até nos mínimos
detalhes (cf Gallazi; Soggin; Collins; Vílchez).
O período persa é considerado de relativa calma; por isso o que é narrado
em Ester pode obedecer a um fato específico ou ao conhecido exagero das narra
tivas semitas, que fazem de um fato pequeno um grande acontecimento. Entretan
to, há uma situação parecida e confirmada pelos historiadores durante o período
persa na destruição do templo judaico de Elefantina no sul do Egito, às margens
do rio Nilo. Sabemos poucos detalhes, porém o suficiente para afirmar que grupos
locais queimaram e assassinaram a colônia judaica daquele lugar em um fato que
pode ter induzido a escrever a novela que nos ocupa.
Ester é um dos cinco Meguilot e é lida na sinagoga por ocasião da festa
de Purim. Já mencionamos que esse fato não é o que dá sentido à novela, porém
isso não é obstáculo para que não nos perguntemos pelo vínculo entre ambos. A
origem da palavra purim é entendida como derivada de pur (“sorte”), termo men
cionado na obra em 3.7, quando se lançam sortes a Hamã, e assim se estabelece o
dia do extermínio dos judeus, data que na evolução da narrativa será trocada pela
execução de seus inimigos (9.1). Estudos posteriores eonfirmaram que a palavra
não é hebraica, mas sim acadiana, e que, de fato, tem como principal significado o
termo ‘sorte’. Ainda assim, a relação com a festa de Purim é duvidosa, pois, mes
mo que a etimologia se incline por interpretá-la de modo que a festa comemora
a sorte dos judeus ao ficar livres da perseguição, não está elaro o motivo por que
uma deve derivar da outra (cf Vílchez, 1998, p. 190-192). É mais razoável pensar
que a festa é a adaptação de uma festa popular de origem estrangeira —alguns su
gerem o antigo Festival do Ano Novo, celebrado na Mesopotâmia -, que foi ade
quada a uma lenda judaica para dar-lhe um lugar na própria história. Observou-se
que os nomes dos dois personagens principais têm origem estrangeira: Ester é
persa e significa ‘estrela’ (do sânscrito stara, depois o inglês star etc.); e é uma
forma hebraizada de Ishtar, a deusa superior do panteão babilônico. Mordecai é a
forma hebraica de Marduque, assim que ambos os nomes teriam vestígios míticos
e refletiríam a origem externa dessa tradição. A nosso ver, não é possível dizer
mais sem cair em afirmações de difícil respaldo.
Essa relação com uma festa popular alimentou a opinião de que Ester é
uma história secular, sem vínculo com o pensamento religioso (Miles, p. 358-
362). A não menção de Deus e dos habituais símbolos e práticas da fé judaica,
como o templo, as orações ou os sacrifícios, levou a consolidar opiniões que a
colocam entre as obras cuja justificativa no cânone é duvidosa. Seu caráter de
evento e festa que celebra um fato particularmente análogo à identidade judaica-
368
E ster
369
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
2. Texto e cânone
370
E ster
4. A construção do sentido
371
I ntrodução hermenènutica ao A ntioo T estamento
que o rei escolhe Ester, pois a “amou mais do que a todas as mulheres” (v. 17). A
quarta (2.19-23) abre uma nova linha argumentativa ao contar que Mordecai fica
sabendo de uma conspiração para assassinar o rei, menciona-o a Ester, e essa con
ta ao rei, que ordena o enforcamento dos rebeldes. Essa ação é registrada, porém
não recompensada, fato que ficará em aberto até que se volte a ele no capítulo 6.
Até aqui, o relato apresentou todos os personagens, menos Hamã. Porém já
avançou ao fazer com que Ester passasse de uma simples órfa a rainha e Mordecai
de uma pessoa anônima para salvador do rei. E o momento de Hamã aparecer em
cena.
3.1- 15 - Hamã entra em cena a partir de um conflito com Mordecai. Esse
não se inclina em reverência perante Hamã, e isso o irrita. Nessa ação está pre
sente o primeiro mandamento (“não as adorarás...” - Ex 20.5), fato religioso que
escapa a muitos comentaristas que insistem no caráter secular da história. Hamã
- a quem infonnam que o insolente é judeu - decide retaliar não contra Mordecai,
mas contra todo o seu povo. A cena seguinte narra como se lançam sortes sobre
o futuro de Hamã, dia após dia, e chega a data na qual devem ser eliminados os
judeus de todo o reino. O rei age como um ignorante que sem mais aceita a pro
posta de Hamã. Promulga-se o decreto, e a tristeza e o temor espalham-se por toda
a comunidade judaica.
4.1- 5.14 - Nesta longa cena, Mordecai convence Ester de que deve inter
ceder junto ao rei antes que os judeus sejam exterminados. Embora a identidade
judaica de Ester não seja conhecida pelo rei, cedo ou tarde - argumenta ele - as
sassinarão toda a sua família, e também ela terminará por cair. O pano de saco,
a cinza e os jejuns testificam a sensibilidade religiosa dos personagens e que sua
fé sempre fez parte da trama. No final, Ester decide pôr em risco a própria vida e
entrar na sala do rei sem ter sido chamada: “Irei ter com o rei, ainda que é contra
a lei; se perecer, pereci” (4.16). Depois a narrativa abre uma nova situação: o rei
aceita Ester, e essa organiza um banquete para o qual também Hamã é convida
do. Depois desse organiza um segundo banquete. Não se entende a necessidade
dessa segunda acolhida. Talvez tenha a finalidade de retardar a decisão do destino
de Hamã. De qualquer modo, mesmo que Hamã se sinta tratado como o melhor
pelo rei e pela rainha, tanta honra não é suficiente enquanto o judeu Mordecai
continuar insultando sua classe ao não reverenciá-lo em sua passagem. Por conse
lho de sua mulher e de seus amigos, ele ordena construir uma forca para pendurar
Mordecai no dia seguinte.
6.1- 1 4 - 0 estilo das narrativas orientais surge aqui de maneira indiscutí
vel. Os papéis começam a inverter-se, e Hamã, que esperava coroar seu prestigio
enforcando Mordecai, viu como a história tomava outro rumo. O rei teve insônia
e revisou os registros tão somente para perceber que o judeu Mordecai não fora
recompensado por salvá-lo de uma conspiração e da morte (2.19-23). Imagina
um jogo de perguntas para o primeiro que vier à sua presença, e esse será Hamã.
Diante de cada pergunta Hamã acredita que se refere a ele mesmo e cobre de
honras o secreto beneficiário da vontade do rei. Quando terminou de perguntar.
372
E ster
O rei lhe revela o inesperado: não é Hamã o beneficiário de tanta honra, mas sim
Mordecai. E Hamã deverá honrar o judeu que não o reverencia e apresentá-lo a
todo o povo como um modelo de pessoa. Essa primeira derrota de Hamã não será
definitiva. O relato reserva outra surpresa para ele.
7.1- 9.19 - A partir desse momento, os fatos precipitam-se e avançam em
direção à troca de papéis e destinos. A primeira cena ocorre durante o segundo
banquete que Ester preparou para o rei e para Hamã. Hamã termina enforcado
após Ester revelar seus planos ao rei. Seu argumento é muito inteligente: se os
judeus fossem vendidos como escravos, o rei obteria ao menos uma receita com
eles, mas se fossem exterminados, haveria uma grande perda econômica. Quando
o rei pergunta quem organizara tal plano, a resposta é Hamã. A ironia é que será
pendurado na mesma forca que mandara construir para Mordecai, fato destacado
pela narrativa (7.10). Em seguida, o decreto é alterado, e agora o rei elabora outro
no qual permite que os judeus se defendam e ataquem seus inimigos em todas as
províncias. Em 8.15, diz-se que Mordecai é vestido com roupas finas e ocupa o
lugar que Hamã ostentara, enquanto “para os judeus houve felicidade, alegria,
regozijo e honra” (8.16). Essa alegria é completada com o assassinato daqueles
que os ameaçaram primeiro, incluindo os dez filhos de Hamã. A vingança foi total
e sangrenta.
A narrativa chegou a seu final. Menciona-se o detalhe que, enquanto na
capital a vingança estendeu-se por dois dias (13 e 14 de Adar), nas aldeias sem
muro ocorreu apenas no dia 13, informação que pressupõe o conhecimento de
certa prática antiga que foi perdida por nós no curso do tempo.
9.20-32 - Não se deve falar que esta unidade é um texto adicionado a
uma narração anterior. A continuidade literária é evidente e mostra que a unidade
pode ter sido escrita junto com o restante da narrativa. Entretanto, nota-se que
conceitualmente há uma mudança no estilo: até aqui tivemos um relato, ao passo
que agora encontramos uma reflexão e uma instrução sobre o relato. A ordem de
Mordecai —e depois em uma segunda carta em que Ester será incluída —propõe
celebrar a festa de Purim em memória ao dia em que os judeus foram salvos do
extermínio organizado por Hamã. O texto resume os fatos e explica a origem do
nome “Purim” duas vezes (v. 24-26), fato que pode indicar que o vínculo entre
festa e evento histórico não era evidente para os primeiros celebrantes. Mesmo
assim, o que se quis ver nesta unidade é uma confirmação de que o relato de Ester
foi escrito para justificar a festa. Entretanto, o que surge da simples leitura é que,
sem esse parágrafo, a narrativa não perde sentido nem estrutura literária e, por
tanto, é mais provável que a lendária história dessa salvação da morte tenha sido
vinculada à celebração popular de uma festa de alegria e lazer.
10.1- 3 - O pequeno epílogo exalta a figura de Mordecai e esquece Este
Em certo sentido, coloca em evidência que foi ele quem guiou os passos de Ester,
e talvez o livro devesse chamar-se “Ester e Mordecai” para ser justo com seu
papel na história. Em 2 Macabeus 15.36, chama-se de “Dia de Mordecai” uma
festa que muito provavelmente seja Purim, porém o texto não permite certeza.
373
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
pois também podería referir-se à lembrança dos feitos de Ester, quando ainda não
estavam adaptados à Festa de Purim. Ao menos por enquanto, não estamos em
condições de resolver esse ponto.
374
E ster
BIBLIOGRAFIA
375
24
Jó
377
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
Por sua vez, a extensa seção do diálogo com os amigos (capítulos 3-27) é
composta por três ciclos, nos quais se alterna a palavra de Jó com a de cada um
deles. O esquema do primeiro ciclo é o seguinte:
Jó 3
Elifaz 4-5
Jó 6-7
Bildade 8
Jó 9-10
Zofar 11
Essa estrutura repete-se três vezes, mesmo que o terceiro ciclo fique in
completo ao ser reduzida a intervenção de Bildade a alguns poucos versículos e
ser omitida a de Zofar. Não podemos discernir o motivo desse recorte e omissão,
porém surge da leitura que não afeta a estrutura da obra nem provoca rupturas
semânticas na dedução do sentido.
Uma primeira leitura coloca em evidência alguns problemas do texto (cf
Childs, p. 529-532). Em primeiro lugar, é problemática a relação entre as seções
em prosa e o corpo central em poesia. Apontou-se que os capítulos 1-2, mais o
epílogo (42.7-17), formam uma unidade, sem levar em consideração algum deta
lhe de costura em 42.7. Há dificuldades formais que analisaremos mais adiante,
mas o que acontece é que o personagem Jó é mostrado de maneira radicalmente
diferente em ambas as partes: no prólogo, é um crente que na adversidade aceita a
378
Jó
vontade de Deus (“o Senhor o deu e o Senhor o tomou” - 1.21), inclusive a ponto
de receber as queixas de sua mulher que o instiga a maldizer Deus e a morrer
(2.9). Essa atitude contrasta com a de Jó em 3-27, onde ele eleva sua queixa a
Deus e questiona seu agir e sua justiça. Longe de aceitar seu destino, revolta-se
contra ele e pede a Deus que lhe dê um tratamento mais justo, pois considera que
Ele o “entrega ao ímpio e nas mãos dos perversos” (16.11). Como entender o vín
culo entre as seções em prosa e a poética quando o mesmo personagem assume
características tão diferentes?
O segundo problema é a distância entre o discurso de Deus em 38-42 e suas
palavras na seção em prosa. Sob o ponto de vista literário, pode-se afirmar que 38
42 está intimamente ligado à seção poética que a antecede e da qual é conclusão.
Apresenta-se como uma teofania a partir de um lugar inacessível, como é o vento,
e fala com um tom de soberania que não deixa espaço para a réplica. Porém é uma
tarefa delicada compatibilizar esse discurso com o Deus do prólogo-epílogo, que
dialoga com satã - o adversário - e combina estratégias para pôr Jó à prova. Nesse
ponto, não nos ajuda a estrutura literária nem a análise histórica, porém mais do
que discernir níveis de leitura e redação exige-se uma abordagem hermenêutica
que se ocupe com suas relações internas na dinâmica do texto.
Foi um enigma para os comentaristas a figura de Eliú, nosso terceiro pro
blema. Acontece que não se entende qual é sua função no relato. Sob o ponto de
vista formal, sua intervenção (32-37) interrompe a ansiedade de Jó e introduz um
discurso que não parece acrescentar argumentações ao que já foi dito. É curioso
que não há nenhuma menção de Eliú no restante dos textos de Jó, porém, em seu
discurso, Eliú menciona Jó e coloca em evidência que conhece seus argumentos e
palavras. Se considerarmos a evolução da formação do texto, isso se explica como
um acréscimo produzido por alguém que tinha em suas mãos o texto dos diálogos
e o teria feito com a intenção de reforçar os argumentos contra Jó por considerar
que os dos amigos não foram suficientemente contundentes. De qualquer modo,
embora essa seja a explicação mais razoável e provável, resta explicar sua função
semântica no texto final, o que é um exercício hermenêutico.
379
I ntrodução hermenénutica ao A ntigo T estamento
380
Jó
zar o texto com esse nome. Aqui se apresenta em forma de voz, fazendo-o a partir
de um lugar que dá invisibilidade, e é acompanhado por um fenômeno como um
vento poderoso que deixa clara a distância entre a divindade e a pequenez hu
mana. Deus fala, e nada pode deter sua vontade de comunicar algo a seu servo.
Nessa ocasião, fá-lo com uma enorme quantidade de perguntas, que deixam Jó
atordoado e mostram sua ignorância. Concentram-se nos elementos da criação,
que colocam em evidência tanto o poder do Criador como a falta de sabedoria de
Jó e seus amigos para entender os desígnios de Deus.
2.3. O texto
381
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
382
Jó
383
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
384
Jó
4. Teologia do livro de Jó
BIBLIOGRAFIA
385
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
386
25
Salmos
Crentes judeus e cristãos fizeram dos salmos os textos mais lidos da Bíblia
Hebraica. Estão presentes nas liturgias, na devoção pessoal, em bodas e sepul-
tamentos, nas festas. Receberam música e são cantados tanto com ritmos con
temporâneos como com aquelas melodias com as quais foram cantados ao longo
dos séculos. Essa condição não é fortuita a partir do momento em que neles se
expressam os sentimentos mais profundos que uma pessoa crente experimenta.
Estão ali a angústia, a fome, a dor, o medo, o louvor, a esperança, a alegria, a gra
tidão, a velhice e a juventude. Todo caminho percorrido na vida tem sua palavra
nos salmos, e a esses se recorre desde as profundezas da doença até o momento da
contemplação serena da manhã. Os salmos estão aí para nos acompanhar.
Seu nome ocidental vem de psalterium, um instrumento de cordas com o
qual se acompanhava o canto dos psalmos. No Novo Testamento são menciona
dos com esse nome (Lc 20.42; At 1.20) e assim passaram à tradição cristã. Na
Bíblia Hebraica são denominados de tehilim, palavra que significa “hinos” e que
não faz jus à totalidade da coletânea de salmos, pois muitos não são hinos, mas
orações ou breves reflexões. Também são denominados com a palavra hebraica
mizmor, registrada em 57 salmos. De qualquer maneira e seja qual for o nome que
lhes dermos, os salmos como obras literárias resistem às classificações rígidas e
estão muito além de qualquer modelo no qual queiramos encerrá-los (cf Gunkel).
Por causa do título tehilim vemos que foi considerado o hinário da Bíblia.
Percebe-se que entre os salmos 10 e 148 há duas tradições em relação à
numeração. A LXX e a Vulgata diferem da Bíblia Hebraica porque têm um salmo
a menos. Entretanto isso se deve à junção de 9 e 10 em um único salmo e depois à
separação do 147 em dois, ao passo que também há uma alteração de característica
igual entre os salmos 114 e 117. Além disso, os textos envolvidos em ambas as
387
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
formas de numeração são similares. A tendência nos últimos anos tem sido assumir
a numeração da Bíblia Hebraica. Também é preciso apontar que a LXX possui o
salmo 151, que neste texto analisamos na seção “Apócrifos e Deuterocanônicos”.
E claro que não devem ser atribuídas às fontes javista e eloista, assim como
as encontramos no Pentateuco. É provável que correspondam a duas formas na
turais de mencionar Deus e que o compilador considerou que eram importantes o
suficiente para agrupar os salmos com base nesse critério acima de outros, como a
antiguidade, o gênero etc. Porém o fato de que certos salmos repetidos, como o 14
e o 53 ou 40.13-18 e o 70, diferem apenas no uso do nome de Deus pode sugerir
que, por trás disso, havia duas escolas que utilizavam os mesmos salmos e cada
uma recorria apenas a um dos nomes.
388
S almos
a - Títulos que definem o tipo literário; hino (84; 93; 108 etc.); hino de louvor
(100; 118 etc.); de súplica (44; 102; 123 etc.); cântico de romaria (133-134
etc.).
b - Títulos que oferecem informação musical: melodias (45); instrumentos
(46).
c - Títulos que oferecem informação litúrgica: de ação de graças (21; 40; 116
etc.); para o sábado (92).
d - Títulos que mencionam o autor: Davi (3-41; 51-72; 101-144, com inter
rupções); Salomão (72; 127); Moisés (90), Filhos de Coré (42-49; 84-85;
87-88); Asafe (50; 73-83); Fíemã (88), Etã (89). Restam alguns salmos sem
menção de autor.
e - Títulos que oferecem dados históricos: “ ... de Davi quando fugia de Absa-
lâo” (3); “... quando o profeta Natã veio ter com ele, depois de haver ele
possuído Bate-Seba” (51) etc.
389
Introdução hærmenènutica ao A ntigo T estamento
390
S almos
391
I ntrodução hermenénutica ao A ntigo T estamento
392
S almos
a - Salmos de louvor
É provável que seja o tema mais comum nos salmos. Nos ritos, sacrifícios e
procissões, eram cantados como forma de expressar o reconheeimento da sobera
nia de Deus. A oração pessoal reconhece-os como peças privilegiadas na devoção
e como expressão de gratidão.
c - Salmos reais
393
I ntrodução hermenënutica ao A ntigo T estamento
Esses salmos - que não são orações - lembram, a título de narração ou re
flexão, os fatos e as bênçãos de Deus sobre seu povo. Buscam exortar ou chamar
a pessoa para reconhecer a ação de Deus. Em alguns casos, têm a finalidade de
mudar a atitude do ouvinte e procuram que se volte a Deus após anunciar os pe
cados cometidos e suas consequências. Em outros, faz lembrar o passado glorioso
em que Deus e seu povo caminhavam juntos - sem dúvida um passado idealizado
- para contrastar com a situação presente.
2. Divisão e articulação
O livro está dividido em cinco partes. Essa divisão é clara, pois há uma
doxologia no final de cada uma delas. Podemos descrever as partes da seguinte
forma;
394
S almos
um com sua própria lógica interna e seus próprios códigos, e não é correto for
çar uma estrutura ali onde ela não se revela com clareza. Assim como Provér
bios, os Salmos são uma coletânea que se oferece ao leitor como um conjunto de
experiências colocadas em poesia para que se encontrem entre elas aquelas que,
em sua situação particular, ajudem a compreender seu momento. Por isso vale
a pena mencionar o trabalho de Patrick Miller (2000, p. 279-297), que encontra
uma estrutura quiásmica (inclusio) no conjunto dos salmos 15-24. Esses tipos de
trabalho, ainda embrionários, talvez algum dia nos façam ver uma ordem que hoje
ainda não vislumbramos. Apresenta-os do seguinte modo:
Liturgia de entrada 15 a
Hino de confiança 16 b
Oração por ajuda 17 c
Salmo real 18 d
Salmo sobre a Lei (Torá) 19 e
Salmos reais 20-21 d'
Oração por ajuda 22 c'
Hino de confiança 23 b'
Liturgia de entrada 24 a'
Assim, observa-se que o centro é o salmo relativo à Lei (“A Lei do Senhor
é perfeita” - 19.7), enquanto os demais salmos teriam sido colocados para orientar
o leitor-ouvinte desde o começo (“Quem, Senhor, habitará no teu tabernáculo?” -
15.1) até a culminância em uma nova liturgia de louvor no templo (“Levantai, ó
portas, as vossas cabeças” - 24.7).
3. Lugar no cânone
395
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
396
S almos
dessa maneira, pois teria vivido em tomo de meados do século III (cf. Prólogo do
tradutor ao Eclesiástico na seção “Apócrifos e Deuterocanônicos”)- Quase não há
razão para pensar que essa terceira parte não começava com uma versão bastante
similar ao nosso atual Livro dos Salmos.
Uma nota final para esta seção: duas mulheres cantam salmos no Antigo
Testamento, porém nenhum deles foi incorporado no saltério (cf Farmer, p. 139).
Trata-se de Miriã (Êx 15.20-21) e Débora (Jz 5), a quem devemos acrescentar
Judite no livro deuterocanônico que leva seu nome (Judite 16.1-17). Nos dois
primeiros casos, chama a atenção que elas cantam junto com homens: Miriã com
Moisés, que respondia com o coro de mulheres, e Débora junto com Baraque.
Não seria estranho se os salmos canônicos também fossem cantados apenas por
mulheres ou junto com homens, ao menos na medida em que elas pudessem ser
vinculadas a alguma forma de ato litúrgico. Sua falta de menção no texto talvez
se deva a que suas atividades seculares e cultuais eram habitualmente silenciadas.
Isso induz a pensar que o texto, nesse aspecto, é reflexo de uma sociedade patriar
cal, na qual a presença das mulheres era reservada a alguns setores específicos da
vida social.
397
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
modelos para a ação nem critério para abençoar tamanha barbárie. Nesse sentido
devem ser lidos e interpretados no contexto da totalidade das Escrituras.
Os salmos não apresentam sua teologia de maneira direta, mas essa deve
superar seus poemas. Esse livro é talvez o mais complexo do Antigo Testamento
em relação à sua teologia, pois quase tudo está presente nele. Por essa razão se
pode dizer que a teologia dos salmos, mais do que um corpo único, são várias
perspectivas que atuam de forma simultânea. Assim que, para encarar uma her
menêutica dos salmos, é preciso entrar nesse mundo a partir de diversos lugares,
tarefa que excede o limite desta introdução. Dois aspectos são orientação sufi
ciente para depois continuar essa fascinante exploração: a imagem de Deus e a
representação do ser humano submetida a seus versos (cf. Kraus, 1985, p. 11-18).
a - Nos salmos, podemos ver um Deus com o qual se pode falar e que escu
ta. O salmista não tem dúvida em falar com Deus como se fosse com qualquer ou
tra pessoa de quem se espera que responda às perguntas (cf. Collins, p. 478). Deus
é uma realidade ao mesmo tempo próxima e distante. A palavra lhe é dirigida na
intimidade, mas se reconhece uma distância expressa no respeito (temor) ante sua
presença: “Dá ouvidos. Senhor, às minhas palavras e acode ao meu gemido” (5.1),
porém também: “A intimidade do Senhor é para os que o temem, aos quais ele
dará a conhecer a sua aliança” (25.14).
b —E um Deus sensível à dor humana. Quem se dirige a ele sabe que não é
um Deus que evita a angústia da pessoa. Diz com total convicção: “Tem compai
xão de mim. Senhor, porque eu me sinto debilitado” (6.2).
c - E um Deus que cuida da pessoa. O salmista concebe Deus como aquele
que está atento à vida das pessoas e do povo. O salmo 23.1 diz com extrema be
leza: “O Senhor é meu pastor; nada me faltará”. Também é um Deus que defende
diante dos inimigos: “Faze-me justiça, ó Deus, e pleiteia a minha causa contra a
nação contenciosa; livra-me do homem fraudulento e injusto” (43.1). A teologia
dos salmos insistirá sempre que Deus está ao lado daquele que sofre ou é tratado
com injustiça.
d - Deus é tratado como rei com poder sobre a vida e a morte, que aben
çoa ou amaldiçoa (cf Collins, p. 475). Quem ora um salmo sabe que seu destino
está nas mãos de Deus: “Da cova fizeste subir a minha alma; preservaste-me a
vida para que não descesse à sepultura” (30.3). Afirma-se que Deus reina a partir
de Jerusalém (48.1; 93.1; 99.2). Os fenômenos naturais servem para expressar o
poder de Deus, mas não se confundem com ele. Por exemplo, o salmo 29.3 diz:
398
S almos
BIBLIOGRAFIA
399
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
400
26
Provérbios
401
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
vam pelo que acontecia a seu redor, porém temos que levar em consideração que
utilizavam um caminho diferente dos profetas ou sacerdotes para aproximar-se da
realidade. Em Jr 18.18, distinguem-se estes três ofícios: “... porquanto não há de
faltar a lei ao sacerdote, nem o conselho ao sábio, nem a palavra ao profeta.. lei
e palavra são as ferramentas que sacerdotes e profetas utilizam para modificar a
realidade, ao passo que ao sábio é dada, com a mesma finalidade, a tranquilidade
do conselho. Outra consequência dessa carência de menção da própria história
é que dá um caráter mais internacional a seu discurso ao colocar a sabedoria
israelita junto ao pensamento dos demais povos da região. Com eles navegam
em busca de respostas para os mais intrincados problemas da humanidade (cf.
Brueggemann, p. 306).
402
_________________________________________________________________________________________________________________ P r o v é r b io s
2. Estrutura literária
I. Introdução; conselhos de um pai ao filho 1.1-9.18
403
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
404
P rovérbios
405
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
406
_________________________________________________________________________________________P rovérbios
407
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
cena em que o jovem anda pelas ruas e é abordado por uma mulher que o seduz,
beija e leva a seu quarto, onde preparou a cama para recebê-lo “porque o marido
não está em casa” (7.19). O jovem é descrito como uma vítima dos movimentos
da mulher, e inclui-se um texto enigmático e de difícil interpretação (7.14-15), em
que ela lhe diz que fez votos e que por essa razão buscara a ele em especial. Nessa
referência se quis ver o cumprimento de algum rito religioso de origem cananeia
que envolvia a união sexual (ela seria uma das mal chamadas prostitutas sagra
das), porém o que foi dito no texto não permite maior exatidão. Que a palavra
hebraica para “estranha” também possa ser entendida como “estrangeira” legitima
essa interpretação. Outras interpretações sugerem que a mulher estranha é uma
figura mítica ao estilo da deusa Ishtar na Epopéia de Gilgamesh ou da deusa uga-
rítica Anate no relato épico de Aqhat, nos quais essas deusas buscam seduzir um
homem. Ainda outra interpretação faz referência à mulher estrangeira que mora
em Israel com o objetivo de desprestigiá-la em uma época que foi semelhante à
ruptura dos casamentos mistos e à expulsão das estrangeiras e seus filhos (vejam
-se “Esdras e Neemias”). Entretanto, a figura que parece unificar todas essas é a
da mulher adúltera, a esposa infiel. E preciso apontar que, além da condenação
moral, o que implica a infidelidade da mulher é que coloca em risco a estrutura
social e a economia sexual ao quebrar as leis que preservavam a esposa como
propriedade do marido e proibiam-na de ter relações sexuais com outros homens.
Embora Dt 22.22 prescreva a morte para ambos os envolvidos no adultério, esse
não parece ser o espírito de Provérbios, que demonstra menos preocupação em
indicar a pena capital do que destacar a desonra e a degradação da vida do homem
e da mulher, até o ponto em que o fim de tal caminho é descrito como o lugar dos
mortos (cf Collins, p. 497-498). Apenas no livro deuterocanônico Eclesiástico
encontraremos, na literatura bíblica, textos tão negativos em relação à mulher.
A partir de nossa compreensão das relações entre os sexos, é ultrajante que
se fale apenas da infidelidade feminina. Sem dúvida isso significa, em primeiro
lugar, que a obra foi escrita por homens e expressa as suas preocupações. Em se
gundo lugar, porque o matrimônio polígamo habilitava o varão a unir-se a várias
mulheres. E finalmente porque, para a sociedade israelita dos tempos bíblicos,
o homem só cometia adultério quando se unia a uma mulher casada, pois isso
afetava a propriedade e a honra do marido, ao passo que uma mulher era adúltera
quando se unia a qualquer homem que não fosse seu esposo.
Vários textos apontam que a mulher pode ser boa ou má, insensata ou sábia
(12.4; 14.1). Entende-se que não há um mal essencial na mulher, mas essa é passí
vel de inelinar-se para um ou outro lado, como também pode fazer o homem. Não
é pouco dizer isso para a sociedade de sua época, e é muito mais realista do que
a compreensão que os filósofos gregos tinham de suas mulheres. Porém a contri
buição mais positiva de Provérbios sobre a mulher é quando dá forma feminina à
408
Provérbios
409
I ntrodução heeimenênutica ao A ntigo T estamento
BIBLIOGRAFIA
410
27
Eclesiastes
411
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
tema novo e sólido, ao menos de acordo com sua experiência. Ele compartilha
com o livro de Jó um espaço para a reação crítica ao pensamento dos sábios que
acreditavam ter todos os problemas resolvidos por meio da reflexão e da razão.
Ambos os textos colocam em evidência, por caminhos diferentes, as dificuldades
de uma compreensão mecâniea da realidade e da relação com Deus. A pergunta
por sua presença no cânone é crucial para sua compreensão.
1. O nome do autor
Entre as coisas que essa obra oculta atrás de enigmas está o nome do au
tor. Em 1.1, é denominado de “Coélet, filho de Davi, rei de Jerusalém” e, mais
adiante, em 1.12, insiste-se no exercíeio desse ofício. Faz-se alusão a Salomão,
que reúne em si mesmo ambos os elementos: o de ser filho de Davi e o de ter
sido rei em Jerusalém. Entretanto, não é mencionado de forma direta, e é difícil
vincular as idéias centrais da obra com o eventual pensamento real ou imaginário
de Salomão, ao qual são atribuídos, com mais coerência. Salmos, Provérbios e o
Cântico dos Cânticos. O nome Coélet também tem sua própria dificuldade. De
riva da raiz hebraica qahal, que remete à ideia de comunidade, assembléia; sob
o ponto de vista de sua forma, é um particípio feminino, que, em alguns easos, é
utilizado para designar o exercício de um ofício, como são os casos dos filhos de
Soferete (Ed 2.55), que designa os escribas, e dos filhos de Poquerete-Hazebaim
(Ed 2.57), que pastoreavam gazelas. Em nosso caso, Coélet deveria ser traduzido
como “a que convoca a comunidade”. Assim, o nome foi interpretado como a
pessoa relacionada com a comunidade, e por isso a LXX o traduz eomo Eelesias-
tes, nome com o qual passou para as Bíblias cristãs. Martim Lutero entendeu-o
e traduziu como O Pregador, numa tentativa de enfatizar o eventual caráter de
convocar e dirigir-se à comunidade de fiéis. Tudo indica que Coélet nunca foi um
nome próprio, mas seu uso se limita a descrever o ofício da pessoa eitada. Isso
leva à conclusão de que Salomão é apenas indicado ~ e não nomeado - devido
às dificuldades com o conteúdo do texto, o qual, de qualquer maneira, se busca
preservar e apresentar como pertencente ao rei israelita considerado o mais sábio.
Cabe uma reflexão teológica sobre esse ponto em particular. Se a autoria de
Salomão é tarefa do editor, qual é a intenção teológica por trás disso? A nosso juí
zo, a atribuição ao famoso rei em 1.1 confere à obra o respaldo que necessita para
dizer o que diz. Veremos que sua mensagem não é fácil nem voluntarista. Muito
pelo contrário, põe em dúvida princípios longamente aceitos no pensamento do
antigo Israel. Assim se evita que idéias inovadoras e desafiantes - e, em alguns
momentos, questionáveis - sejam atribuídas à maior ou menor inspiração de um
autor desconhecido ou isolado. Ao contrário do que acontece com a atribuição do
Cântico dos Cânticos a Salomão, onde é mencionado para criticar seu estilo de
vida e sua sexualidade, nesse caso a autoria é conferida para respaldar com seu
prestígio de sábio o conteúdo do texto.
412
E clesiastes
2. Estrutura literária
Também esse tema desafia o leitor (cf. Levoratti, p. 842; Vílchez, passim).
Os diversos autores que encararam esse ponto dividem-se entre aqueles que con
cluem que não há uma estrutura e consideram a obra uma coleção de parágrafos
desordenados, colocados em sequência, e aqueles que descrevem uma estrutura
muito compacta e precisa. Em nossa opinião, buscar em Eclesiastes uma estru
tura rígida obriga a violar o texto, enquanto, ao contrário, pressupor que é uma
coletânea casual de textos sapienciais diminui seu valor e não faz jus à relação
temática de suas unidades. Já encontramos um exemplo desse tipo de problema
ao estudar a possível estrutura do Cântieo dos Cânticos. Acreditamos que aqui
estamos diante de uma situação similar, em que se pode identificar certos traços
de sentido que dão coerência ao texto, sem que por isso se deva descrever uma
estrutura literária de peso.
De forma geral, e tão somente como auxílio para organizar a leitura, ofere
cemos esta divisão do texto:
Título 1.1
Parte I (1.2-6.12)
Parte II (7.1-12.8)
A sabedoria 7.1-8.9
Desigualdades na vida 8.10-9.18
0 sábio e 0 estulto 10.1-11.8
Poema: Palavras à mocidade 11.9-12.8
Epílogo 12.9-14
413
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
414
E clesiastes
companhia. Não é a visão dos sábios, pois Pv 31.10-31 exalta sua figura, motivo
pelo qual não deve ser lida como uma passagem misógina, e sim como uma esfera
a mais na qual o narrador denuncia o vazio da vida. Nas entrelinhas ressoa uma
crítica ao texto de Gn 2.18, em que se descreve a mulher como uma “ajuda idô
nea” que irá acompanhá-lo na aventura da vida (cf. Fontaine).
Uma das expressões mais características de Eclesiastes é “vaidade de vai
dades, tudo é vaidade”, que nessa forma completa aparece apenas duas vezes (1.2
e 12.8), exatamente no começo e no encerramento do corpo da obra, se separar
mos os dois textos que falam em terceira pessoa (título 1.1 e epílogo 12.9-14). Co
locar a obra nesse modelo orienta sobre sua mensagem, pois indica que tudo o que
foi dito se resume e se refere a tal sentença. Chama a atenção que a palavra vaida
de (heb. hebel, que significa ‘vapor’, ‘vento’, ‘algo insubstancial’) é encontrada,
além desses dois textos, em outros 26 versículos e dá à obra uma característica
que atravessa toda a sua mensagem, ao valorizar com ela todo ato humano e toda
expectativa presente ou futura. Voltaremos a essa palavra no parágrafo seguinte.
3. Teologia de Eelesiastes
415
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
esquecerá o que for feito hoje ou amanhã (1.11). “Nada há de novo” significa o
esquecimento de todo projeto humano.
3 - 0 sentimento de que todo esforço não traz benefício (“Que proveito
tem o homem de todo o seu trabalho?” - 1.3) não deve ser entendido como lucro
econômico, mas como insatisfação existencial. O sentimento a que faz alusão é
que toda obra humana deixa o sabor de uma promessa não cumprida ou de uma
expectativa frustrada. Podem-se projetar muitas coisas, porém o fruto será impro
dutivo e sem valor permanente.
4 - Diante da angústia, o autor afirma que a ação de Deus e sua vontade são
inexplicáveis (3.11,14; 5.2; 7.13). Essa afirmação no contexto do pessimismo da
obra deve ser lida como algo positivo. E como se dissesse que, mesmo que não se
possa entender o sentido da vida e que tudo pareça conduzir a nada, deve-se reser
var um espaço para a ação de Deus, que, embora não cheguemos a compreender,
está ali e tem um propósito para cada coisa.
5 - 0 tema das injustiças não está ausente na sensibilidade do narrador
(3.16; 5.8; 7.15; 8.14; 9.1). Deduz-se do livro que sua época não foi uma exceção
e que se sofria da mesma maneira como em outras. Entretanto, sua visão de sá
bio não o leva a rebelar-se contra elas nem a pedir mudanças, mas as integra em
sua reflexão sobre o vazio da realidade. Preocupa-o que justos e perversos têm o
mesmo destino e que geralmente o injusto tem uma vida mais longa e prazerosa
(7.15; 8.14). Em 5.8 e 9.1, é revelada sua teologia ao apontar que Deus está atento
às condutas humanas, especialmente de quem comete injustiças, e que as mãos
de Deus são a realidade última por trás de tudo o que acontece. Como mencio
namos ao comentar sua atitude em relação à mulher (7.26-28), esses textos não
devem ser lidos como respaldo às injustiças ou como um convite ao imobilismo,
mas como as palavras resignadas de quem não acredita que seja possível mudar a
realidade e a assume com impotência.
6 - Finalmente, é preciso destacar que a teologia de Eclesiastes é, em seu
conjunto, uma forte crítica à teologia retributiva, que se encontra na teologia deu-
teronomista geral do Antigo Testamento. E feita a partir de outro contexto, com
parando com 0 livro de Jó, porém ressalta as mesmas contradições. O narrador
não pode aceitar a visão simples segundo a qual quem cumprir os preceitos da Lei
vai se dar bem em tudo; também não aceita que o pacto de Deus com seu povo
garantirá bem-estar e prosperidade. Isso não foi assim apenas historicamente, mas
também não é sob o ponto de vista existencial. O crente sofre porque a vida passa
e porque deve morrer e não há consolo para essa situação nos antigos ensinamen
tos. E sofre também porque não encontra um caminho para a libertação de suas
dúvidas e anseios. Em consequência, o epílogo exige força, pois, longe de contra
dizer a teologia da obra, coloca-a em seu lugar correto no contexto da fé de Israel,
ao concluir que o temor a Deus e guardar seus mandamentos são aquilo que dá
sentido e completa a vida das pessoas (12.13).
416
__________________________________________________________________________ E clesiastes
4. Presença no cânone
Dito isso, compreende-se que tanto em Israel como na igreja cristã se dis
cutia a relevância dessa obra para ser incluída no cânone. Desconhecemos os
argumentos precisos, porém não acreditamos que se deva procurar a razão de sua
presença no cânone no fato de que foi atribuída a Salomão. Se a atribuição foi
tardia, poder-se-ia ter duvidado dela e ser eliminada por aqueles que discutiam
seu valor como texto sagrado. Se, ao contrário, foi vinculada a Salomão precoce
mente, isso indicaria que superou vários séculos de leitura quando os textos ainda
não estavam fechados e eram passíveis - como muitos foram - de ser modificados
ou excluídos da coletânea de obras consideradas úteis para a edificação da fé e
portadoras do testemunho dos antigos pais. E isso não foi feito.
O motivo de sua presença no cânone deve ser buscado na capacidade do
texto de expressar sentimentos humanos reais e oferecer uma visão a partir da
fé de Israel, que responde a essas necessidades. Somente uma leitura superficial
pode concluir que Eclesiastes abandona o crente em sua angústia para que se dei
xe morrer ou se dedique a beber e comer para esquecer quão sofrida e penosa é a
vida. Após descrever a condição humana com uma crueza maiúscula, equiparável
à dos autores mais radicais e existencialistas de nosso tempo, o livro afirma que
“de todas essas cousas Deus te pedirá contas” (11.9), o que é uma maneira de
transmitir a íntima convicção de que, em última instância, nada se perderá, pois
o olhar de Deus está sobre a vida de todos para julgá-la com a neutralidade que
somente ele garante.
BIBLIOGRAFIA
417
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
418
28
Cântico dos Cânticos
419
I n t r o d u ç ã o h e r m e n è n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
420
C ântico dos C ânticos
421
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
obra. Porém essa mensagem não deve ser buseada em uma estrutura rígida, pois
isso seria uma contradição dentro da própria obra.
O leitor deve levar em consideração que estamos diante de poemas de
amor. Geralmente a poesia - e a de amor em grau extremo - não sente a ne
cessidade de justificar seu discurso. A passagem de um cenário a outro, de um
sentimento a seu oposto, o anúncio do impossível ou impensável não incomodam
a sensibilidade da poetisa nem devem fazê-lo com a do leitor. Estamos longe da
narrativa histórica ou da reflexão do sábio, que exigem por si mesmos criticidade
e expressão. A linguagem poética comunica por insinuação, lembra sentimentos e
pensamentos, cria climas geralmente ambíguos e polissêmicos, evita as definições
e os conceitos, porém aproxima-se daquilo que permite expressar a experiência
humana em toda a sua profundidade e riqueza.
3. Chaves hermenêuticas
Não desperta interesse discutir a época do Cântico dos Cânticos. Não tem
diferença se o que foi dito se aplica a um casal de um século ou de outro. Geral
mente se considera uma obra pós-exílica que recolhe textos muito mais antigos
que foram colecionados ao longo do tempo. A atribuição a Salomão (1.1) admite
que é posterior a esse rei, e a aparição de algumas palavras persas e gregas nos in
duzem a pensar que em tomo do século IV se teria acabado de organizar a coleção
pelo punho de quem unisse tudo e lhe desse a forma definitiva. Se os poemas car
regam a marca de vários séculos, parece mais proveitoso buscar em suas palavras
as chaves de leitura que nos ajudarão em sua compreensão. As seguintes surgem
de uma leitura cuidadosa (cf Andinach, 1997, p. 51-53);
a —O Cântico dos Cânticos estabelece uma oposição entre poligamia e
monogamia. Essa oposição será vista, entre outras imagens, na valorização da
unidade e do número dois - que lembra o casal em contraposição ao múltiplo
como eco da poligamia e da despersonalização.
b —Tudo o que se opõe ao amor do casal encontrará seu núcleo de sentido
na figura de Salomão e, por extensão, em suas mulheres e no mundo da riqueza.
O Cântico dos Cânticos exerce uma crítica a Salomão e seu modelo despersona
lizado de sexualidade.
c —Os poemas apresentam uma crítica permanente ao amor frívolo. Esse
está presente no luxo e na impessoalidade da classe alta de Jerusalém. Nesse sen
tido, estabelecer-se-á uma oposição com a simplicidade do casal e o reconheci
mento do outro como ser amado em si mesmo, e não como prestígio social que
possa oferecer.
d —Finalmente, e como uma explicação que se mistura com as anterio
res, propomos que o Cântico dos Cânticos seja lido em código feminino. Em
determinados momentos, a voz da mulher imprime sua marca de tal modo que
perderemos grande parte do sentido se não levarmos em consideração esse fato.
422
C ântico dos C ânticos
4. A autora
A atribuição a Salomão (1.1) não tem outra função senão acentuar a crí
tica a seu modelo de vida e sexualidade. O versículo poderia, com justiça, ser
traduzido como “Cântico dos Cânticos para Salomão”, com o sentido de enviar
ao rei uma lição de vida. Entretanto, há muitas razões textuais para suspeitar que
quem redigiu o Cântico dos Cânticos foi uma mulher (cf. Weems; Andinach 1991;
1997). Isso não exigiría nenhuma justificação se nossa própria mesquinhez não
fizesse parecer estranho uma mulher ser autora de páginas da Bíblia. De fato, seria
necessária uma longa fundamentação para explicar como um homem pôde escre
ver uma coletânea de poemas nos quais a sensibilidade dominante é feminina e o
corpo mais exaltado é o masculino. Onde os anseios, desejos, expectativas e me
dos são os femininos. Onde a iniciativa é um papel exercido por ela. E, ao mesmo
tempo, descobrir que a voz condutora dos poemas é da mulher, que, além de tudo,
abre e encerra o livro com poemas de sua boca. Tudo isso é argumento suficiente
para postular uma autora. Porém ainda resta um elemento muito significativo; no
Cântico dos Cânticos, encontramos o único exemplo dentro da literatura bíblica
em que uma mulher é porta-voz de si mesma, cuja voz não é mediada pela de
algum outro autor. A mulher do Cântico dos Cânticos fala na primeira pessoa
(“Beija-me...” - 1.2; “Eu estou morena e formosa...” - 1.5 etc.). Seus sentimentos,
pensamentos e ações não são contados por outra pessoa, como é o caso dos livros
de Rute ou Ester, mas é sua própria voz que fala ao leitor. A esses argumentos
deve-se acrescentar que, em duas ocasiões, a voz do homem é mediada pela da
mulher. Quer dizer, por intermédio da voz dela se conta o que ele diz (2.10-14):
O caso inverso - que a voz dela seja apresentada por ele - não acontece
em todo o livro. E para encerrar, queremos apresentar outro elemento que, por ser
mais sutil e teológico, não deve ser deixado de lado no momento de considerar a
423
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
O Cântico dos Cânticos é o único livro da Bíblia com uma ética e uma
estética próprias. Isso é consequência do fato de que seus temas são o amor e a
ternura entre duas pessoas, o que nos conduz inteiramente ao mundo da valoriza
ção do outro em si mesmo e da beleza (cf. Trível, p. 145-165).
Destacamos três elementos éticos. O primeiro é a legitimidade do amor.
O amor de um casal precisa de uma sanção social que lhe conceda legitimidade?
No Cântico dos Cânticos, o casal expressa seu amor sem vinculá-lo à união matri
monial, e a relação deles está marcada por escapadas a lugares privados, fugas ao
campo, encontros em tendas afastadas. Tudo leva a pensar que eles precisam es
conder-se da vista dos demais, porque sua relação não é socialmente aceita. Nesse
sentido, a mensagem do Cântico dos Cânticos é que o amor legitima a si mesmo.
O Cântico dos Cânticos coloca em cena um segundo tema ético; a fideli
dade. O casal do Cântico dos Cânticos será fiel em todo momento. O amor que
ambos compartilham não está aberto a outros. Ela é um “jardim fechado” (4.12)
para os demais homens; ele será reconhecido como exclusivo dela. A fidelidade
é um valor central na mensagem do Cântico dos Cânticos, em especial porque é
afirmada em contraposição à sua carência no modelo salomônico de sexualidade.
O terceiro tema é a relação entre sexualidade e ternura. E impossível não
ver o punho de uma mulher nesse ponto. O Cântico dos Cânticos coloca cada
gesto erótico no marco de uma relação de ternura e aconchego. A sexualidade e o
erotismo no Cântico dos Cânticos encontram-se situados no espaço mais amplo
da vida, em que a ternura tem um papel essencial. Tanto o homem como a mu
lher sabem-se participantes de um desafio no qual vão juntos e em que ambos se
devem entre si. A autora parece dizer-nos que, se a voz da mulher não vale tanto
quanto a de seu companheiro, o amor e o erotismo serão empobrecidos pela desi
gualdade e ficarão na metade do caminho em suas potencialidades.
Também há uma estética que lhe é própria. Outros textos bíblicos podem
falar e reconhecer a beleza, porém apenas no Cântico isso constitui um dos eixos
424
C ântico dos C ânticos
BIBLIOGRAFIA
425
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
426
29
Lamentações
427
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
um dos cinco Meguilot ou rolos (junto a Eclesiastes, Rute, Ester e Cântico dos
Cânticos), nesse caso o que se lê na festa do dia nove do mês Av, dia de luto pela
destruição do templo.
1. Organização do texto
428
L am entações
2. A articulação da obra
429
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
são criticados por não ter sabido mostrar o pecado e haver pregado em vão (2.14).
A interpretação dos fatos é semelhante à de outros textos e consiste em dois ele
mentos: os pecados e as faltas de Israel provocaram sua queda, e, em segundo
lugar, aconteceu o que desde antigamente os profetas vinham anunciando, mas
ninguém acreditava (2.17). As ameaças de Isaías, Amós e outros cumpriram-se.
As palavras dos v. 20-21, que acrescentam clamor por misericórdia para aqueles
que passam fome e estão angustiados, são parecidas em estilo e atitude às de 1.9c
e 1.1 Ic, já mencionadas. E um indício de que o redator final deu forma definitiva
a esses poemas.
3.1- 66 - O poema central tem o triplo da extensão pela repetição de cada
verso alfabético por três vezes. Determinar quem fala é difícil, porém a indicação
de 3.52-55 —quem o faz está preso - nos faz pensar que se admite como a voz de
um guerreiro derrotado e que está preso. O texto hebraico diz “da cisterna profun
da”, já que esse era um dos usos que se dava a cisternas cavadas na rocha, quando
não eram utilizadas para armazenar água. Em 3.1, identifica-se como um homem
que presenciou a tragédia e o castigo de maneira direta. A leitura tradicional iden-
tificou-o como Jeremias com base na menção de seus lamentos pela morte de
Josias (2Cr 35.25), mas esse vínculo não é sustentável. O certo é que também não
podemos estar seguros de que a figura do guerreiro preso seja um dado histórico
ou que estejamos diante de um recurso literário para dar ainda mais dramatismo
ao poema. Sua estrutura é a seguinte:
Sucedem-se duas seções nas quais, após a descrição do que foi feito por
Deus, seguem palqyras de louvor e confiança em que Deus protegerá quem clama
a ele. Note-se que, mais uma vez, o responsável pela destruição é o próprio Deus,
e nada é assumido como fruto da ação de forças estrangeiras, lutas políticas entre
nações nem tensões internas que podem ter ajudado a criar as condições para a in
vasão. A interpretação teológica destaca-se sobre outras possíveis, porque o autor
não se interessa em sobrecarregar os estrangeiros, mas por deixar em evidência a
ruptura da aliança e a solidificação da ação de Deus longamente anunciada. Aqui
há duas teologias: uma postula que a aliança foi quebrada para sempre, e outra
sustenta que Deus ainda ama seu povo. O fiel da balança se inclinará para a se
gunda opção e ficará cristalizado nas duas estrofes de 3.31-36, que são o centro do
poema e apresentam o tema do amor do Senhor, que “não rejeita para sempre” o
seu povo, e a segunda estrofe expressa o repúdio de Deus à violência e à injustiça.
4.1- 22 - A voz de um israelita descreve a situação angustiante daqueles que
ficaram nas ruínas da cidade, onde morrem de fome, e as mães veem-se obrigadas
a assassinar seus filhos (4.10). Um elemento interessante é o v. 12, no qual é dito
430
L amentações
que “não creram que entrasse o adversário e o inimigo pelas portas de Jerusalém”.
Esse versículo expressa a teologia tradicional denunciada pelos profetas de que
era impensável que o Senhor entregasse seus filhos, cidade e templo em mãos
inimigas. Pensavam que a proteção de Deus era incondicional e que os isentava de
qualquer perigo. Essa ideia tão arraigada no pensamento geral pré-exílico e com
batida pelos profetas explica o trauma social e religioso produzido pela queda de
Jerusalém, fato que se tomará um divisor de águas no panorama de sua história.
O poema faz com que o peso da responsabilidade caia sobre os ricos (4.5), sobre
profetas e sacerdotes (4.13) e sobre o rei, o ungido (4.20). Ao finalizar o poema,
surpreende a menção de Edom (veja-se “Obadias”), que não se deve alegrar com
a desgraça de Israel, pois se profetiza que também ele será, quando chegar sua
hora, submetido e humilhado (4.21 e 22b). Pela primeira vez no livro, é anunciado
a Israel que já pagou por suas faltas e que Deus não voltará a castigá-lo. Essas
palavras finais correspondem ao tempo final do cativeiro ou aos primeiros anos
da restauração, porém, nesse lugar, funcionam como uma saída para a angústia da
leitura de tudo o que foi lido até aqui.
5.1-22 - O poema que encerra a obra volta aos temas já mencionados, mas
com uma ênfase no clamor perante Deus. Começa com “Lembra-te...” e vai fina
lizar com “Converte-nos a ti. Senhor, e seremos convertidos”. No v. 19, afirma-se
a confiança no Senhor e em sua soberania eterna. No v. 7, deixa-se entrever um
argumento a favor do perdão, como se fossem proporcionados a Deus os dados
que ele precisa para compadecer-se de seus filhos; “Nossos pais pecaram e já não
existem; nós é que levamos o castigo das suas iniquidades”. Nessa expressão
existe uma mudança na perspectiva do sofrimento, que agora se entende - mesmo
que fracamente - como não merecido.
Esse último poema deve ser lido no contexto de todo o anterior, como des
fecho de uma obra na qual o gênero dos cantos fúnebres foi utilizado para fazer
alusão à morte simbólica de Israel e de sua cidade. Ao longo dos poemas foram
esmiuçadas pequenas frases que iluminavam a esperança em meio a um discurso
trágico e fatal. Ao chegar no final, com extrema sutileza, deixa-se entrever que
a iniciativa está nas mãos de Deus. Se ele promover, a fidelidade e o reencontro
serão possíveis outra vez (5.21).
O livro das Lamentações não se cansa em cantar as tristezas, mas diz muito
sobre a fé e a esperança (cf. Krajovec) e mostra que é possível elaborar um discur
so reparador a partir da angústia. Esse livro é um exemplo de como a experiência
de profunda mágoa pode não levar ao vazio, porém, ao contrário, impulsionar a
pronunciar a palavra que permita dar sentido à vida. Ao lê-lo em perspectiva her
menêutica vem à tona, em primeiro lugar, que a teologia dessa obra não provém
do sofrimento buscado pelo crente. Pelo contrário, o sofrimento é rejeitado, e
431
Introdução hermenènutica ao A ntiqo T estamento
clama-se para que cesse, ainda que sem sucesso (3.8); é entendido como “esqueci
mento de Deus”, e deseja-se voltar a restabelecer os laços de amor “como dantes”
(5.20-21). A dor que nos é dada - como acontecerá também com Jó - é matéria
-prima para o pensamento teológico e a busca de sentido para a vida.
Em segundo lugar, Lamentações fala-nos da construção da esperança. Essa
não é montada sobre meras vagas ilusões, mas sobre a íntima convicção de que
Deus não quer nosso sofrimento. Nesse sentido, o livro reproduz a teologia habi
tual do Antigo Testamento de que a dor é o resultado do pecado e um sinal para
corrigir as condutas (4.7-8,11 etc.). A queda de Jerusalém é entendida dessa ma
neira, porém também é necessário dizer que, assumida de forma superficial, é uma
teologia cruel, que não leva em consideração o sofrimento do inocente nem a dor
por eventuais situações. Lamentações contempla essa alternativa à compreensão
da dor também ao colocá-la fora da vontade de Deus dizendo: “Lembra-te, Se
nhor, do que nos tem sucedido” (5.1) e pede - pois sabe que ele ouvirá - para ser
libertado desse flagelo.
Das Lamentações brota um profundo apreço pela verdade, aquela que é
preciso viver e narrar, mesmo que doa (cf. O'Connor). Surge sede de justiça, por
que tudo nessa obra é terrível e injusto. Cresce a consciência de agir para mudar
a realidade e que nunca mais se precise lamentar o que aqui se lamenta. Nasce a
paixão por construir um mundo melhor, sem violência nem rancores. E se revela,
diante dos olhos do leitor, a beleza da vida, que é mais bela quanto mais nos custa
cuidá-la.
BIBLIOGRAFIA
432
L amentações
433
30
Rute
Pode-se descrever o livro de Rute como uma novela que entrelaça várias
cenas e as encaminha a um único destino. Na origem, podem ter sido narrativas
isoladas, porém, se foi esse o caso, o redator de Rute exerceu com tanta maestria
seu ofício, que o produto de que hoje dispomos possui unidade, estrutura e beleza
como poucos entre seus pares. Com exceção da genealogia final - que revela um
último punho de redação e produz uma ruptura literária, embora não teológica
- , a narrativa flui do começo até sua conclusão, em 4.17, com a facilidade das
melhores prosas bíblicas (cf. Levoratti, p. 823). Como outras narrativas similares,
não quer ser uma história verídica, mas mais exatamente desenvolver uma trama
com a finalidade de transmitir uma mensagem que deve ser deduzida a partir da
narrativa. A hermenêutica dessa obra deve levar em consideração que busca ser
didática e deixar um ensinamento e que, na conquista desse objetivo, expõe um
argumento que revela a sensibilidade feminina e suas lutas em uma sociedade
patriarcal.
O nome Rute, dado à obra, não faz jus ao relato. Talvez devesse chamar-se
Rute e Noemi, ou simplesmente Noemi, pois seu papel é tão importante para a
história quanto o de Rute, e talvez até em maior grau. Sua presença está por trás
de cada cena, e é Noemi quem dá unidade a toda a obra desde o começo até o fim.
Ao concluir a novela e após todas as peripécias, em 4.17, ao ver o filho de Rute, as
mulheres exclamam: “a Noemi nasceu um filho”. Alguns autores pensam que essa
última frase é um indício de que Rute é desvalorizada na história e que Noemi é a
verdadeira heroína (cf. Levine, p. 78-79, 84). Entretanto, as ênfases do texto estão
colocadas na relação que se gera entre elas, mais do que em sua concorrência.
435
I ntrodução hermenênutica ao Antigo T estamento
Conforme acontece com muitos livros bíblicos, o livro de Rute foi datado
em todas as épocas, desde o tempo dos juizes ou da monarquia até o período persa
(cf. Vílchez, p. 35-37). Para a datação precoce, prioriza-se o fato de que no cânone
grego está localizado junto a Juizes. Entretanto, essa localização foi provocada
por 1.1, onde diz: “Nos dias em que julgavam os juizes...”. No cânone hebraico, é
encontrado entre os Escritos e corresponde a um dos cinco Meguilot, que são lidos
durante a Festa das Semanas (Shavuot), em grego chamada de Pentecostes. Em
nossa opinião, a localização entre os Escritos deve ser considerada mais antiga,
pois é difícil que uma obra que estivesse desde outrora entre os livros dos profetas
anteriores (Josué-Reis na Bíblia Hebraica) tenha sido afastada para ser colocada
na coletânea dos Escritos, obras essas agrupadas por seu hipotético caráter tardio
e consideradas de valor secundário em relação àqueles. Consequentemente, se
nos orientarmos por seu lugar no cânone hebraico, deveriamos assumi-la como
obra pós-exílica do século V ou IV. Isso é reforçado pelo caráter de sua teologia,
que inclui a valorização da conversão de uma estrangeira, tema que foi muito de
batido nesse período e pelo qual estaria tomando partido. Não obstante, existem
na obra elementos que podem remontar a um tempo mais antigo, como o estilo
literário próprio das narrativas patriarcais, a legislação do levirato e o resgate,
o papel das mulheres de dar nome ao recém-nascido etc. O fato de que nenhum
desses argumentos seja incontestável leva-nos a pensar que a data de redação é
uma questão ainda em aberto. Entretanto, essa situação não afeta a compreensão
da mensagem de Rute, pois seus temas centrais transcendem o contexto inicial em
que foram moldados. Essa capacidade de superar o primeiro contexto é que lhe
deu valor para ser considerado um texto de qualidade teológica suficiente para ser
legado e um testemunho de aspectos centrais para a fé de Israel. Por essas razões
é incorporado no cânone.
A obra possui um fio condutor que avança com o relato e que abre cenas de
forma sucessiva. Propomos a seguinte organização do texto:
I. Introdução 1.1-5
II. Partida e regresso 1.6-22
III. Rute rebusca espigas no campo 2.1-23
IV. Encontro entre Rute e Boaz 3.1-18
V. Rute e Boaz casam 4.1-17
VI. Genealogia 4.18-22
436
R ute
A forma de construir o sentido nessa obra é linear, mas mostra uma grande
habilidade (cf. Trível, p. 166-199; Nielsen, p. 2-8). Passa-se de uma cena a outra,
faz-se evoluir a trama e desvela-se pouco a pouco o percurso semântico que está
sendo traçado. Somente no final da narrativa, o leitor terá uma imagem completa
do ocorrido e poderá tirar suas conclusões.
1.1- 5 - A introdução estabelece o ponto de partida do relato. Uma famíli
liderada pelo marido Elimeleque e composta pela mulher Noemi e dois filhos
varões migra para Moabe por razões econômicas. Pouco tempo depois de sua
chegada, o marido morre, e Noemi fica viúva, enquanto seus dois filhos tomam
por esposas mulheres moabitas. Ao cabo de algum tempo, falecem os dois filhos,
e a mulher fica sozinha. Note-se que 1.5 indica apenas o estado de desamparo de
Noemi. Isso é coerente com os costumes da época, pois as noras eram mulheres
jovens e, ao enviuvar, deviam voltar a suas famílias e ser protegidas por seus
parentes, inclusive tomando-as como esposas. A situação delas não é tão delicada
quanto a de sua sogra. Até aqui, o personagem principal é Noemi.
1.6-22 - Abre uma nova cena. Noemi decide retomar à sua terra e reco
menda a suas duas noras que voltem para a casa de suas famílias. Há um diálogo
intenso entre as três, no qual Noemi insiste que devem voltar para suas famílias,
pois ela não tem nada a lhes oferecer. É pobre e velha para gerar novos filhos
para elas. No momento em que Orfa decide retomar à sua casa, escutamos, pela
primeira vez, a voz de Rute (1.16), nome que significa ‘a amiga’, que entra desse
modo na narrativa para não voltar a um segundo plano. Os v. 16-17 entregam-
-nos uma declaração de princípios plena e consciente dessa mulher estrangeira
que mostra a força do personagem e introduz o tema que marcará a obra e seu
correlato teológico: a unidade de espírito e destino de Rute e Noemi e a pertença
ao povo de Deus de todo aquele que aceita a fé no Senhor. As palavras de Rute
e Noemi, dirigidas às mulheres de Belém, são as únicas duas peças poéticas que
o livro possui (1.16-17 e 1.20-21), o que é uma forma literária de destacá-las do
restante do texto em prosa (cf Linafelt). No final da unidade, as duas mulheres
chegam a Belém e são recebidas com surpresa. Brinca-se com o significado do
nome Noemi (“agraciada”), que agora ela solicita que mude para Mara (“amar
ga”). O responsável por essa mudança é o Senhor: ela diz ter partido abençoada
- ao possuir marido e filhos - e regressado pobre, pois “o Senhor me fez voltar
pobre” (também v. 13). No v. 8, havia desejado às noras que Deus lhes concedesse
benevolência “como elas haviam feito com os filhos mortos e com ela”. A angús
tia e o desamparo de Noemi aproximam sua experiência daquela de Jó.
2.1- 22 - Desde o começo, o relato revela a identidade de Boaz, o novo
personagem da história: é parente e é rico. Depois parece que esquece esse dado,
e a narrativa evolui contando que Rute vai apanhar espigas e fá-lo casualmente no
campo desse parente, sem saber quem ele é. E tratada muito bem e recebida com
generosidade, mesmo quando sabem que é estrangeira. Os v. 11-12 expressam o
apreço de um israelita por essa mulher até pouco tempo atrás desconhecida e da
qual sabe apenas duas coisas, que reforçam o tema do livro: ela uniu seu destino
437
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamento
ao de sua sogra e optou pelo Deus de Israel. Ao contar o ocorrido a Noemi, ela
descobre aquilo que o leitor já sabe desde 2.1 e louva a Deus pela misericórdia
mostrada nesse episódio. Ao finalizar a cena, Noemi volta a ter a voz principal
no relato.
3.1- 1 8 - Noemi abre e fecha esta unidade. Dá instruções a Rute sobre como
deve fazer para seduzir Boaz e, de certa maneira, levar a situação ao ponto de
obrigá-lo a tomá-la por esposa. Ela deveria deitar-se aos pés de Boaz, colocando-
-se sob seu abrigo e sem que ele o soubesse, de modo que, se a jovem fosse vista
por outros enquanto dormia com ele no campo, ele sentisse o dever moral de
desposá-la. Rute faz tudo de acordo com o que lhe havia sido indicado, porém o
narrador não segue essa linha e mostra Boaz como uma pessoa bondosa, que não
quer manchar a reputação de Rute. Aceita-a, valoriza seu gesto, faz com que saia
antes do amanhecer e envia-a com um presente de grãos de cevada para Noemi.
Ao recebê-la, a voz de Noemi assume outra vez a condução da narrativa. O v. 18
mostra-a instruindo Rute sobre o imediato transcurso dos fatos. Em uma amostra
exemplar do estilo literário, a narrativa faz perceber que ela sabe como terminará
a história, porém não o quer revelar a Rute.
4.1- 17 - Os V. 1-12 narram a negociação de Boaz com um parente que
por ser mais próximo de Noemi, tinha prioridade para resgatar o campo de seu
defunto marido. A malícia do narrador coloca o parente primeiramente no ato de
aceitar a compra do campo, porém esse se nega ao ficar sabendo que, se o fizer,
também deverá casar com Rute. O campo não aumentaria seu patrimônio, mas
seria herdado pelo futuro filho de Rute. A generosidade de Boaz contrasta com a
mesquinhez desse parente que, diante dos anciãos, declara que não exercerá seu
direito de comprar o campo e deixa o caminho livre para Boaz. A explicação do
ato de tirar a sandália e oferecê-la a outro mostra que era um costume antigo que
caíra em desuso no tempo dos leitores. Porém não se pode deduzir desse dado
que toda a narrativa seja tardia, pois pode ter sido acrescentado em tempos pos
teriores, a fim de facilitar a compreensão do leitor novo. A cena encerra com as
palavras dos anciãos, que colocam Rute, a moabita, no mesmo nível de Raquel,
Lia e Tamar, mães de Israel. Essas referências devem ser eonsideradas em sua
acepção teológica.
A narrativa encerra nos v. 13-18. Rute casa e dá à luz um menino, sinal de
máxima bênção naqueles tempos. Porém as mulheres da cidade cumprimentam
Noemi pelo menino e pela nora, “que é melhor do que sete filhos”. O peso da bên
ção recai sobre Noemi. O gesto de tomá-lo em seus braços e dar-lhe nome - entre
todas as mulheres - aponta o fim do relato. Deus restituiu a vida - através de um
filho - à mulher da qual havia tirado tudo o que essa tinha de valor.
4.18-22 - A genealogia busca vincular Obede com Davi. A conclusão é que
Davi teve uma avó moabita. Há quem interprete o livro de Rute como uma histó
ria cuja finalidade se expressa nessa genealogia. A narrativa teria sido preservada
para compreender uma determinada origem na linha ascendente de Davi. Não
hesitamos em aceitar que a genealogia tem um valor em si mesma e que, como
438
R ute
parte do relato canônico, é preciso interpretar seu papel na mensagem. Porém não
faz jus ao relato que se utilize esse final como chave de leitura para a sua com
preensão. Há muitos valores teológicos nele para reduzi-lo à simples justificação
de uma descendência.
Cabe, em consequência, a pergunta; Qual é o valor da genealogia no texto
final de Rute? As opiniões são contraditórias: enquanto para uns exalta o pluralis
mo e a riqueza da tradição de Davi (cf. Vílchez, p. 144-146), para outros ela foi
posta ali para manchar sua memória ao vinculá-lo a uma estrangeira moabita. Nós
nos inclinamos pela primeira interpretação.
3. O g o e l e a lei do levirato
Em Rute, essas duas instituições sociais estão presentes, porém são expos
tas com modificações (cf Levoratti, p. 822; Berlin, p. 262). O goel (“resgatador”,
Lv 25.25) tinha a obrigação de preservar o patrimônio da família no caso de al
guém ter que vender seu campo, sua vida —dar-se como escravo —ou, em caso de
assassinato, deveria exercer a vingança do sangue e acabar com a vida do agressor
(Nm 35.19-27). Em Rute, a função do goel aparece vinculada à lei do levirato.
Essa lei (Dt 25.5-10) obriga o cunhado a desposar a mulher de seu irmão, caso
esse não tenha deixado descendência masculina; o primeiro filho homem que ela
desse à luz deverá ser considerado do irmão falecido, e assim o nome do fale
cido se prolongará em seu filho. Chama a atenção na aplicação dessas duas leis
em Rute sua combinação para deixar em evidência a mesquinhez do parente de
Noemi, que se nega a assumir sua responsabilidade, e —em contraste —a bondade
de Boaz, que busca recuperar o terreno e casar com Rute. De acordo com a lei,
Boaz deveria casar-se com Noemi, porém a narrativa aponta que ela era já uma
mulher de idade e sem capacidade de conceber (1.12), algo que não é considerado
na legislação. Isso explica o motivo por que é substituída por Rute, mas também
o motivo por que o filho de Rute é celebrado como se fosse de Noemi. Não há
antecedentes de uma situação similar nas narrativas bíblicas.
439
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
BIBLIOGRAFIA
BERLIN, Adele. Ruth, in: MAYS, J. (ed.). HBC. São Francisco, 1988. p. 262-267.
BERTMAN, S. “Symmetrical Design in the Book of Ruth”. JBL 84. 1965. p.
165-168.
BRENNER, Athalyah. “From Ruth to the Global Woman: Social and Legal As
pects”. Interp 64. 2010. p. 162-168.
BRUEGGEMANN, Walter. An Introduction to the Old Testament. Louisville,
2003. p . 320-323.
CHILDS, Brevard. Introduction to the Old Testament as Scriptures. Filadélfia,
1979. p. 560-568.
LANEFELT, Tod. “Narrative and Poetic Art in the Book of Ruth”. Interp 64.
2010. p . 117-129.
LEVINE, Amy-Jill. Ruth, in: NEWSOME, Carol e RINGE, Sharon. The Woman ’s
Bible Commentary. Londres, 1995.
LEVORATTI, Armando. “Ruth”, in: LEVORATTI, A. (ed.) et al. CBL I. Estella,
2005. p. 821-833.
MESTERS, Carlos. Rut. Buenos Aires, 1988.
NIELSEN, Kirsten. Ruth. OTL. Louisville, 1997.
440
R ute
ROBERTSON FARMER, Kathleen. The Book of Ruth, in; The New Interpreter's
Bible, V. II. Nashville, 1998. p. 889-946.
SOGGIN, J. Alberto. Introduction to the Old Testament. Londres, 1980. p. 395
396.
TRIBLE, Phyllis. God and the rhetoric o f sexuality. Filadélfia, 1978.
VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Ruty Ester. Estella, 1998.
WENIN, A. El libro de Rut. Estella, 2000.
441
S eção VII
LIVROS APOCRIFOS
E DEUTEROCANÔNICOS
31
Os livros da diáspora
445
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
Esses livros são aceitos como canônicos dentro do Antigo Testamento pe
las Igrejas Ortodoxas Grega e Russa, enquanto 1 Enoque é canônico para a Igreja
Ortodoxa da Etiópia. No cristianismo ocidental, são denominados de “pseudoe-
pígrafes” e estão vinculados a obras como os Salmos de Salomão e o Livro dos
Jubileus. Com exceção de 2 Esdras, todas essas dezoito obras fazem parte da
Septuaginta, que a igreja nascente herdou do judaísmo da diáspora e, portanto,
possuímo-las em língua grega, ainda que algumas delas possam ter sido escritas
em hebraico ou aramaico (cf Metzger). Mesmo assim, no começo houve dúvida a
respeito de sua pertença à Septuaginta, o que está refletido nas diferentes versões
que possuímos delas. O manuscrito do século IV chamado Codex Sinaiticus não
inclui 2 Macabeus, mas sim 4 Macabeus. O Codex Vaticanus, também do quarto
século, não contém 1 e 2 Macabeus, ao passo que o Codex Alexandrinus, do sécu
lo V, inclui todos os deuterocanônicos, porém acrescenta os Salmos de Salomão
(cf. Harrison, p. 4).
Com respeito a seu valor e sua autoridade, desde o começo houve dúvidas
e disputas, as quais levaram Jerônimo a não traduzi-los nem incluí-los ao editar
sua Bíblia Vulgata. Entretanto, alguns anos depois de sua morte, esses livros fo
ram incorporados à Vulgata na versão do antigo texto latino (Vetus Latina), que a
Vulgata veio a substituir. Também foram acrescentados prólogos a várias seções
e livros, que foram extraídos de textos de Jerônimo, os quais não foram concebi
dos por ele para fazer parte da edição de sua Vulgata. No correspondente a Reis,
adverte o leitor sobre o que ele considera ser o caráter secundário desses livros.
446
Os LIVROS DA DIASPORA
BIBLIOGRAFIA
447
32
Tobias
O livro de Tobias (cujo nome significa ‘meu bem é o Senhor’) é uma no
vela didática que enfatiza o valor da fé e das ações de solidariedade para com os
pobres, a observância das leis religiosas e a compreensão de que a ação de Deus
transcende nosso entendimento e nossos planos. Seu principal personagem é To-
bit, secundado por seu filho Tobias e pelo anjo Rafael. O ambiente em que se situa
a narrativa é a diáspora em Nínive, na qual se descreve uma situação de extrema
dificuldade para o judeu que quisesse cumprir seus deveres religiosos. Observam
-se a marginalidade e a debilidade social própria de um povo que habita pela força
uma terra estranha. O ensinamento que transpassa esse relato é que Deus libertará
os cativos de seus males e uma profiinda convicção de que o Criador conduz a
história para o bem dos que confiam nele (cf. Andinach).
1. Tobias no cânone
Um dos problemas mais sérios deste livro é a falta de um texto seguro, pois
de forma completa ele chegou a nós apenas em sua tradução grega (cf Soggin, p.
429). Por outro lado, do texto grego se conhecem duas versões, uma mais extensa
do que a outra, e é a extensa que se costuma reproduzir nas traduções modernas.
Suspeita-se de que houve um texto original em lingua semítica, porém não se pode
determinar se foi em hebraico ou em aramaico. Entre os manuscritos de Qumrã
foram encontrados fragmentos gregos, aramaicos e hebraicos, mas ainda não se
conseguiu solucionar se o texto hebraico é tradução do aramaico ou vice-versa.
A tradução de Jerônimo (Vulgata) foi feita sobre uma versão aramaica
e sobre o texto da Vetus Latina. Sua versão dá uma ideia bastante diferente do
449
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
conteúdo que o texto grego oferece, pois inelui tanto omissões como acrésci
mos, 0 que coloca em evidência que o texto utilizado por Jerônimo estava longe
dos textos gregos que hoje possuímos. Ao mesmo tempo, é provável que foram
tomadas tais liberdades porque - como ele mesmo aponta - não incluía Tobias
dentro dos livros sagrados. As diferenças, às vezes extensas, que normalmente são
observadas nas edições em espanhol, significam que o tradutor utilizou uma ou
outra versão e refletem, em consequência, essa indefinição textual. A isso deve
mos acrescentar que pai e filho (Tobit e Tobias) têm o mesmo nome na Vulgata, e
assim foi reproduzido em várias traduções atuais, o que contribui para acrescentar
certa confusão à leitura. Nesta introdução, utilizamos a tradução oferecida pela
Bíblia de Jerusalém.
Tobias foi um dos livros confirmados no Concilio de Trento (1546) e assim
incorporado ao cânone da Igreja Católica. Muito além do uso que pode ter tido nas
comunidades judaicas de língua grega, nunca fez parte da Bíblia Hebraiea; quan
do, posteriormente ao ano 70 d.C., formou-se o cânone do judaísmo, Tobias ficou
definitivamente fora das Escrituras hebraicas. Isso pode ter ocorrido por várias
razões; a) porque não pôde ser atribuído a um autor bíblico tradicional; b) porque
sua origem na diáspora era conhecida; c) porque a comunidade crente não tolera
va certo excesso no uso de elementos fantásticos no relato. As igrejas protestantes
seguem a tradição judaica e não reconhecem sua canonicidade.
450
T obias
Esta obra está organizada em três partes, que, por sua vez, incluem vários
episódios e cenas, introduzidas por um título. Propomos o seguinte esquema:
I.I-2 Título
I. 1.3-3.17 Dramas de Tobit e Sara
II. 4.1-11.19 Viagem, casamento de Sara e cura de Tobit
III. 12.1-14.15 Revelação de Rafael e epílogo
451
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
gem acadiana, mas foi traduzida para muitos idiomas da época. Sua presença em
Tobias não é primordial, porém coloca em evidência o contexto literário do qual
se nutria o autor e sua abertura à cultura da época. O que essa obra compartilha
com a história de Aicar é que em ambas triunfam valores similares, tais como a
honestidade e a verdade acima da ingratidão e da cobiça.
A teologia dessa obra expressa-se por meio de uma espécie de parábola so
bre o destino de Israel na situação de diáspora. Tobit e Sara sofrem, mesmo sendo
inocentes: o primeiro em consequência da idolatria de seus irmãos, enquanto Sara
é injuriada por suas criadas e condenada a morrer virgem, infértil, assediada sem
razão por um demônio. Ambos os personagens simbolizam a situação de Israel na
diáspora, que sofre o castigo por sua desobediência, mas que, após muitos anos
de desterro, sente que o sofrimento é, de certo modo, injustificado. O anjo Rafael
- que representa Deus - é o único que pode resgatar Israel, mas, ao fazê-lo sem
revelar seu nome e em segredo, dá ao leitor uma pista a respeito de como Deus
age na história.
O caráter simbólico continua na segunda parte do livro, em que se desenro
la a viagem do filho de Tobit (cf. Nickelsburg, p. 792). Israel deixou a escravidão
no Egito a partir de uma viagem pelo deserto. Agora o filho - que representa o
futuro - parte em busca do dinheiro para resgatar sua família da miséria na qual
ela caiu. Porém Deus tem outros planos. A salvação virá não do dinheiro buscado,
mas sim da intervenção divina que vincula ambos os personagens sofredores para
libertá-los de seu mal. Assim, a esterilidade será substituída pela união matrimo
nial e a cegueira pela recuperação da visão. Israel está cego e é estéril, e Deus
abrirá novamente seus olhos para a verdade e lhe proporcionará um futuro. Porém
tudo isso é feito por Deus sem que os personagens suspeitem. A teologia subja
cente é que o Senhor age além da percepção que os próprios israelitas possam ter
dessa ação.
Quando, no final do relato, a identidade do anjo é revelada, ficará claro
que é Deus quem liberta os oprimidos. Entretanto a experiência de marginalida
de e escravidão (3.15) persiste no plano da realidade social, motivo por que fica
anunciada a libertação nas palavras finais de Tobit não como fato realizado, mas
sim como promessa de Deus (14.4-7). A sede de justiça, manifestada em habitar
a terra dada por Deus, será saciada naquele último dia. Se ambos os personagens
morrem tranquilos, mesmo em cativeiro, é porque confiam que a mão de Deus
conduz a história em direção à justiça final.
A teologia de Tobias exige que o leitor supere a história e busque uma
compreensão mais universal da mensagem. Assume-se o cativeiro como situação
real e a promessa de Deus de libertação como uma ação concreta que já começou
a se manifestar. Entretanto subjaz uma teologia retributiva própria da época, que
452
T obias
percorre toda a obra e exige uma leitura crítica e profunda, a fim de não limitar
sua mensagem a esse pensamento. Dentro desse esquema, as desgraças da vida
são assumidas como castigo de Deus, as quais são classificadas de imerecidas se o
sofredor é uma pessoa reta (3.6) e de merecidas - e saudadas - quando acontecem
com o malvado (14.15), enquanto as bênçãos são sempre um prêmio pela boa con
duta religiosa e social. Veja-se nesse relato que a atuação de Deus em favor dos
que sofrem opressão nos permite resgatar seu sentido acima da simples estória.
BIBLIOGRAFIA
453
33
Judite
455
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
1. O texto e o cânone
Durante séculos, Judite foi considerada uma obra de caráter histórico. Em
bora se levasse em consideração que a concepção da história na antiguidade é
diferente da nossa, a tendência era assinalar que havia tanta história em Judite
quanta havia nos livros de Samuel e Reis. Uma história enfeitada com elementos
populares e lendários, porém com um núcleo que, em suas linhas básicas, é verídi
co. A partir da Reforma começam a surgir dúvidas sobre sua historicidade, e hoje
quase ninguém mais sustenta que essa obra se refira a fatos reais. E considerada
uma novela didática ou um conto popular (cf Vílchez, p. 238), e nela se buscam
explorar a mensagem e seu legado para nossa teologia.
Chama a atenção que os mesmos elementos que estabeleciam seu caráter
histórico são os que hoje revelam que é uma ficção. Quem se aproxima do texto
de maneira superficial observa que há datas precisas, nomes de personagens fa
mosos, lugares bem demarcados. Isso dá a sensação de que se está diante de uma
crônica de fatos reais. Mas a crítica mostrou que a maioria desses dados é incoe
rente e até contraditória; vistos em perspectiva hermenêutica, postulamos que isso
foi feito assim com a intenção de indicar ao leitor que o que se narra não é história.
456
J udite
mas ficção. Por exemplo, em 1.1, fala-se de “Nabucodonosor, rei dos assírios em
Nínive”, mas qualquer judeu culto daquela época sabia que Nabucodonosor - o
famoso rei que no ano 586 a.C. havia conquistado Jerusalém, destruído o templo
e condenado o povo judeu ao desterro na Babilônia (2Rs 25) - não fora rei da As
síria e sim da Babilônia e que nunca teve nem pôde ter Nínive como sua capital,
pois essa cidade fora destruída cem anos antes, em 612 a.C. Acrescentamos que
não faz sentido falar de uma invasão quando o retomo a Jerusalém estava apenas
começando (4.3 e 5.19), ocorrido no ano 539 a.C. (Ed 1.1-4) por um monarca
que havia falecido vinte anos antes dessa data (562 a.C.). A mesma coisa pode
ser dita de Betúlia, a cidade judaica mencionada no livro e onde morou Judite,
da qual não há nenhuma notícia fora dessa obra e que hoje consideramos produto
da criatividade do autor, especialmente ao constatar que seu nome lembra Betei
(que significa ‘casa de Deus’) e que o substantivo betiilah, que significa ‘mu
lher jovem’ ou ‘virgem’, é uma imagem recorrente para fazer alusão ao povo de
Israel. O caráter simbólico do nome leva a pensar que os primeiros leitores dessa
narrativa não duvidavam de que estavam diante de uma peça cuja finalidade era
exaltar valores religiosos e morais de Israel e não transmitir uma crônica de fatos
acontecidos de verdade.
457
Introdução hermenênijtica ao A ntigo T estamento
secreto e retira-se para a sua casa. Abandona seus vestidos de luto e veste-se de
maneira sedutora, perfuma-se e coloca uma fita em seu cabelo “como quando
era feliz” (10.3). Vai ao acampamento inimigo, acompanhada de sua criada, e ali
passa alguns dias. Depois de uma festa, ela seduz o general Holofemes e, quando
de noite está a sós com ele na tenda, aproveita sua embriaguez para cortar sua ca
beça e fugir para a sua cidade, levando-a como troféu, juntamente com sua criada.
Quando os assírios ficaram sabendo do ocorrido, entraram em pânico e fugiram,
ao mesmo tempo em que os israelitas os atacavam e perseguiam até matá-los.
Depois invadiram seu acampamento e apoderaram-se das riquezas e pertences.
Também aproveitaram para saquear aldeias vizinhas que se haviam unido aos
assírios (15.7). No final do relato, Judite volta para sua casa, liberta a sua serva e
vive respeitada por todos enquanto desfruta de seus bens.
A articulação das duas partes é fraca. O capítulo 1 é, de certo modo, des
necessário em relação ao restante da narrativa, e a relação entre as duas partes da
obra é construída sobre o general Holofemes, que aparece em ambas as cenas, e
a menção do amonita Aquior, que aparece nos capítulos 5-6 e depois em 14.5-10,
onde reconhece o Deus de Israel e circuncida-se para integrar-se ao povo israelita.
Porém, apesar dessas limitações, a obra tem coerência, e o relato flui sem inter-
mpção do começo ao fim.
458
J udite
como a bondade natural do teu coração”, avaliza essa proposta (cf. Brenner, esp.
van Henten e Levine).
459
Introdução h e r m e n f .n u t ic a ao A ntkío T estamento
Deus é o motivo de sua desgraça. Porém, além disso, Deus é descrito como oni
presente e aquele que conhece os fatos antes que sucedam (9.5), como Deus justo
(5.15), porém também compassivo (7.20; 9.14). E se estabelece - também em
consonância com a teologia deuteronomista - que o amor de Deus por Israel não
é incondicional, mas exige a fidelidade de seu povo (8.25-27).
BIBLIOGRAFIA
ALONSO SCHÔKEL, Luis. “Judith”, in: MAYS, James et al. HBC. São Fran
cisco, 1988. p. 732-741.
BRENNER, Athalya (ed.). A Feminist Companion to Esther, Judith and Susanna.
Sheffield, 1995 [inclui artigos de Amy-Jill Levine, Jan van Henten e Mieke
Bal].
DE SILVA, D. Introducing the Apocrypha. Grand Rapids, 2002.
DI LELLA, A. “Women in the Wisdom of Ben Sirac and the book of Judith: a
study in contrasts and reversals”, in: EMERTON, J. A. Congress Volume.
Paris, 1992. VT Sup, Leiden, 1995. p. 39-52.
DUBARLE, A. M. Judith. Roma, 1966.
MOORE, Carey. Judith. AB 40. Nova York, 1985.
RAJA, Rafael. “Judif’, in: FARMER, W. et al. (eds.). Comentário Bíblico Inter
nacional. Estella, 1999. p. 696-706.
SCHULLER, Eileen. “The Apocrypha. Judith”, in: NEWSOME, Carol e RINGE,
Sharon. The Woman s Bible Commentary. Londres, 1995. p. 240-243.
SIEBENCK, Robert. J mc/z7y Ester: Santander, 1972.
SOGGIN, Alberto. Introduction to the Old Testament. Londres, 1980.
TAPA BAHENA, Toribio. “Judit”, in: LEVORATTI, A. (ed.). CBL 1. Estella,
2005. p. 905-916.
VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Tobias y Judit. Estella, 2000.
_______. “Sobre el gênero literário del libro de Judit”. EB 57. 1999. p. 769-775.
WHITE, S. A. “In the Steps of Jael and Deborah: Judith as Heroine”, in; LULL,
D. (ed.). SBL Seminar Papers. Atlanta, 1989. p. 570-578.
460
34
1 M acabeus
Este livro deve seu nome a um dos filhos de Matatias - Judas Macabeu
cujas ações militares e coragem causaram tanto impacto, que legou seu cognome
a toda uma geração de judeus rebeldes e a uma série de obras literárias que serão
tratadas logo depois dessa. “Macabeu” deriva do nome que significa ‘martelo’ (o
que bate, destrói), porém não é certo que esse seja o sentido que lhe atribuíram
em seu tempo; outros acreditam que se interpretava como “o exterminador” (cf.
Harrison, p. 1.260). Com eles inicia, em Israel, o período dos asmoneus, nome
dado por Flávio Josefo a essa nova dinastia {Antiguidades Judaicas XII, 6.1) e
derivado de um suposto bisavô de Matatias chamado Asmon ou de seu avô (2.1)
ou filho (2.3), ambos chamados de Simão. O livro narra os fatos desde o ano 175
a.C., quando ascende ao poder Antíoco IV, cujas decisões deflagram a rebelião ju
daica, até a morte de Simão, um dos macabeus, no ano 134 a.C. Não indica a data
de sua redação, mas, conforme dados internos, pode-se afirmar que foi redigido
antes da irrupção de Pompeu em Jerusalém (63 a.C.) e posteriormente à morte de
João Hircano I, que sucedeu Simão e cujo falecimento se pressupõe, em 16.23-24,
que tenha ocorrido no ano 104 a.C. Deve ter sido escrito, portanto, nas primeiras
décadas desse século e seria posterior a 2 Macabeus (cf Gallazi, p. 11-15). O
livro tem grande importância como registro histórico, pois é, ao lado dessa obra
e de Daniel (especialmente Dn 7 e 11 e os textos sobre a profanação do templo
por Antíoco IV - Dn 9.27; 11.31; 12.11), uma das poucas testemunhas dos fatos
ocorridos nesse período em Israel.
É considerado apócrifo pelas igrejas protestantes e deuterocanônico pela
Igreja Católica, que o confirmou nessa condição no Concilio de Trento (1546). O
judaísmo tem em alta estima sua narrativa, porém não o incluiu em seu cânone de
vido ao caráter suspeito de falta de autenticidade do sacerdócio presente no livro
461
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
e devido à sua redação tardia, quando quase todo o eânone já estava estabelecido.
Entretanto, a festa de Chanucá, uma das mais apreciadas de seu calendário, tem
sua origem e fundamento na rededicação do templo, narrada nas páginas desse
livro (4.58-59; 2Mac 10.1-8).
Seu texto foi conservado na versão grega da Septuaginta, e tudo indica que
é tradução de um original semítico hebraico ou aramaico já perdido. Ao lado de
1 Macabeus, também se conta com 2 Macabeus, uma obra que não a sucede, mas
se sobrepõe em boa parte de sua narrativa e que tem uma origem diferente, que
abordamos após este capítulo. As obras chamadas 3 e 4 Macabeus afastam-se das
anteriores e possuem um vínculo muito estreito com elas, que serão expostas em
seus capítulos correspondentes.
462
1 M acabeus
para as montanhas com seus cinco filhos e quem quisesse segui-lo. A rebelião
fundamenta-se no zelo por preservar a fé e as práticas inerentes à aliança. Matatias
morre e deixa a seus filhos, em testamento, a liderança do movimento.
Depois seguem as façanhas de Judas Macabeu, Jônatas e Simão. Cada um
lidera o povo até sua morte e, embora retomem o poder religioso e político de Je
rusalém, nenhum deles reclamou para si o título de rei, como fizeram aqueles que
continuaram a dinastia asmoneia a partir de Aristóbulo (104-103 a.C.).
Junto ao fio vermelho da narrativa histórica são intercalados diversos tex
tos que enfeitam o relato. Esses têm diferentes finalidades, porém, sob o ponto
de vista hermenêutico, visam dar credibilidade à narrativa e dar, em alguns casos
—assim como fazem Esdras e Neemias —, uma sustentação historiográfica ao que
foi dito. No caso das orações e poemas, busca-se conceder um suporte religioso
às lutas militares e políticas. A quantidade espanta e orienta sobre a preocupação
do autor em ser lido como testemunha fiel dos fatos. Os documentos mencionados
são os seguintes:
/./. Orações
1.2. Poemas
463
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
1.3. Discursos
1.5. Cartas
464
1 M acabeus
2. Teologia de 1 Macabeus
BIBLIOGRAFIA
465
I ntrodução h e r m e n ê n u t ic a ao A ntioo T estamento
466
35
2 Macabeus
Pouca relação tem esta obra com 1 Macabeus. Não é sua continuação nem
tem os mesmos objetivos literários e teológicos. Embora ambas compartilhem
a intenção de fazer teologia a partir das narrativas históricas, aqui os aspectos
teológicos sobressaem aos históricos, e é evidente que a obra prefere a interpreta
ção da história à sua exposição. Não tem cuidado para mostrar que suas narrativas
são confiáveis; busca e consegue expor o heroísmo e a fé dos judeus dos tempos
dos macabeus.
E difícil estabelecer a data de redação. Os dados internos levam-nos ao ano
161 a.C. - a morte de Nicanor (15.30) - para o relato histórico e ao ano 124 a.C.
se considerarmos a data da primeira carta (1.9). Assim podería ser anterior a 1
Macabeus, coisa que não nos deve surpreender, pois tudo indica que o autor dessa
obra não conheceu o texto daquele livro e, portanto, é independente dele. Em
conclusão, deve ter sido escrita em grego por um judeu de Alexandria em algum
momento do final do século II a.C. Apresenta a si mesma como o resumo de outra
obra, mais extensa e complexa, que, ajuizo do autor, seria difícil de compreender
e entediante de ler (2.24-25; 15.38). Um certo Jasão de Cirene (natural de Cirenai-
ca, cidade grega do norte da África) teria redigido aquela história em cinco volu
mes ou rolos, e essa vem abreviá-la para dar um testemunho acessível aos judeus
do Egito. Não temos nenhuma outra notícia dessa obra, e inclusive alguns auto
res duvidam de sua efetiva existência e pensam que é um recurso literário para
dar solidez ao conteúdo de seu relato. Por essa razão, costuma-se chamar essa
seção (3.1-15.36) de “o epítome”. Entretanto, duas cartas colocadas a título de
introdução situam o texto em Jerusalém e dirigindo-se aos judeus do Egito. Essa
virada - assim como o fato de apresentar-se como resumo de outra obra - tem
consequências hermenêuticas: a obra não se localiza como escrita longe da terra
467
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamkntü
pela qual Judas luta para libertar da apostasia - Alexandria ou Cirenaica mas
no próprio centro dela. Além disso, o autor responsabiliza pelos dados reduzidos
ou faltantes o fato de ser um resumo de uma obra maior, redigida por outro autor.
Dos livros chamados Macabeus, essa obra compartilha com 1 Macabeus
seu caráter de deuterocanônico para a Igreja Católica e de apócrifo para as igrejas
protestantes. Com 4 Macabeus partilha a história de Eleazar e dos sete filhos e
da mãe martirizados por sua fé, que ali são ampliados. E, ao lado deles, parte do
cânone da Septuaginta e foi incluído na Vulgata apesar da oposição de Jerônimo.
O judaísmo não o incorporou em seu cânone devido ao caráter polêmico de seus
motivos teológicos, que, em alguns casos, esbarram na compreensão clássica das
Escrituras hebraicas e também devido ao fato de que é uma obra tardia - o cânone
já estaria encerrado em boa parte na época de sua redação —e escrita em grego. Os
aspectos teológicos serão expostos mais abaixo no final dessa nota.
O livro começa com duas cartas e finaliza com um epílogo, que parecem
ter sido incorporados ao texto central num segundo momento, porque a relação
entre as cartas e o corpo da obra não está clara. As cartas são dirigidas pelos ju
deus de Jerusalém aos do Egito, e nelas esses são instigados a permanecer fiéis à
fé nas dificuldades e contam como Deus protegeu o povo apesar das perseguições.
Convidam-nos a celebrar a festa a qual chamam de “das Tendas” (1.18), mas que
se refere a Chanucá, a festa de Rededicação do Templo, que se confunde pela
proximidade da data com aquela outra (veja-se 10.5-6). A segunda carta lembra
documentos de Neemias e narra como o fogo do templo, por obra de um milagre,
permaneceu vivo durante anos até que fosse resgatado, e voltou-se a acender com
ele a chama para os sacrifícios.
A partir de 2.19, há um novo começo, no qual se fala dos cinco livros escri
tos por Jasão de Cirene, que serão resumidos num único para facilitar sua leitura.
Seguem a história de Heliodoro (capítulo 3), o começo das perseguições por An-
tíoco IV Epífanes (capítulos 4-7), as lutas de Judas Macabeu (capítulos 8-15.36)
e o epílogo (15.37-39). Várias são as diferenças de conteúdo com 1 Macabeus, a
saber;
468
2 M acabeus
469
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
470
2 M acabeus
meza a suas ações (3.24-28; 5.2-4; 10.29; 11.8; etc.). Embora não sejam textos
apocalípticos, as imagens desses anjos não estão longe daquelas que alimentam
esse gênero literário.
BIBLIOGRAFIA
471
36
3 e 4 M acabeus
473
I ntrodução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1. 3 Macabeus
2. A trama
474
3 E 4 M acabeus
aos judeus que haviam concordado em abandonar sua fé para salvar suas vidas
(7.10-16). O rei concede uma autorização aos líderes para persegui-los, e assim
cerca de trezentos judeus que haviam abjurado sua fé são assassinados por seus
próprios irmãos. Ao encerrar a obra, Ptolomeu instaura uma festa para celebrar a
salvação do povo israelita (7.17-23).
4. 4 Macabeus
Essa obra busca demonstrar que as paixões estão sujeitas à razão quando
essa é guiada pela fé. E um livro impregnado da cultura helênica e recorre, para
embasar seu pensamento, a duas histórias que se encontram em 2 Macabeus: o
martírio de Eleazar e o martírio dos sete irmãos e sua mãe. O lugar que essas nar
rativas ocupam no livro toma-o um monumento em sua memória e uma exaltação
475
I ntrodução h e r m e n ê n u t ic a ao A ntioo T estamento
de suas vidas. As narrativas dos martírios estão enquadradas por reflexões de ca
ráter filosófico que sustentam a tese do autor e, no final, provam-na com base no
testemunho dos mártires. E um exemplo da busca por interpretar a fé e a cultura
judaicas em função dos valores e ferramentas intelectuais da cultura grega. Dessa
maneira, esperava-se mostrar que a fé de Israel não era inferior nem estranha
ao pensamento intelectual, mas podia defender-se com as ferramentas do mundo
intelectual pagão (cf Soggin, p. 473).
5. Autor e data
6. O conteúdo
1) Introdução 1.1-12
2) Exposição do tema 1.13-3.18
3) Manifestação histórica 3.19-17.6
4) Conclusão 17.7-18.24
476
3 E 4 M acabeus
tiva em que ele se baseia. Quis especificar elementos que exaltam a valentia e a
fé dos personagens, bem como sua capacidade argumentativa frente ao discurso
helênico. A expansão é relevante no caso do martírio da mãe, a quem se dedica um
único versículo em um caso (2Mac 7.41) e quase quatro capítulos em 4 Macabeus
(14.11-17.16).
A obra está permeada - e em certa medida estruturada ~ por uma frase que
se repete mais ou menos da mesma forma: “a razão piedosa é dona absoluta das
paixões”; às vezes é; “a razão domina as paixões”; outras: “a razão pode vencer
os desejos” (cf. 1.7,9,13,19,30; 2.6,24; 6.31; 7.16; 13.1; 16.1; 18.2). Porém, em
todos os casos, expressa a tese central da obra, que consiste em mostrar que tanto
Eleazar como os sete jovens e sua mãe puderam, com a razão orientada pela fé em
seu Deus, vencer a tentação de abjurar e preservar suas vidas. A razão convenceu
-os a morrer para sustentar sua fé, enquanto os sentimentos e as paixões os incli
navam a deixar de lado suas crenças para, dessa maneira, seguir com vida.
Foi dito dessa obra que ela possui “forma grega, mas conteúdo judaico”
(cf. Eissfeldt, p.614). E provável que essa seja a razão para que não suscitasse
interesse entre aqueles que definiram o cânone da Bíblia Hebraica. Se buscarmos
seu lado teológico, o que se destaca é o caráter eclético de seu discurso a partir
do momento em que mostra elementos da filosofia estoica - a tese central já men
cionada sobre a razão e as paixões - , também expressões próprias do platonismo,
como a rigorosa divisão entre corpo e alma, e isso, ao mesmo tempo, com elemen
tos aristotélicos e pitagóricos (cf. Stowers, p. 924). Por isso não é possível situá-lo
em uma escola, a menos que aceitemos que, nesse tempo de rápidas mudanças
culturais e transição, o eclético tenha constituído uma corrente própria.
De toda maneira, a obra mostra os seguintes elementos, que nesse texto
caracterizam-na e lhe dão personalidade:
477
Introdução hermenënutica ao A ntigo T estamento
BIBLIOGRAFIA
COLLINS, John J. 3 Maccabees, in; MAYS, James (ed.). HBC. San Francisco,
1988. p . 916-921.
DÍEZ MACHO, Alejandro. Apócrifos dei Antiguo Testamento I. Madri, 1984. p.
202-203 e 211-213.
EISSFELDT, Otto. The Old Testament: An Introduction. Nova York, 1965.
HARRINGTON, Daniel J. Invitation to the Apocrypha. Grand Rapids, 1999.
HULTIN, Jeremy F. “3 Maccabees”, in: GAVENTA, Beverly Roberts e PETER
SEN, David. NIBOC. Nashville, 2010. p. 617-621.
_______. “4 Maccabees”, in: GAVENTA, Beverly Roberts e PETERSEN, David.
The New Interpreter's Bible One Volume Commentary. Nashville, 2010. p.
622-627.
LÓPEZ SALVÁ, L. “Libro Cuarto de los Macabeos”, in: DÍEZ MACHO, Ale
jandro (ed.). Apócrifos del Antiguo Testamento III. Madri, 1982. p. 119-166.
[Inclui estudo, texto e bibliografia]
RODRÍGUEZ ALFAGEME, I. “3 Macabeos”, in; DÍEZ MACHO, Alejandro
(ed.). Apócrifos dei Antiguo Testamento II. Madri, 1983. p. 479-503. [Inclui
estudo, texto e bibliografia]
SAULNIER, Christiane. La crisis macabea. Estella, 1983.
SOGGIN, J. Alberto. Introduction to the Old Testament. Londres, 1980. p. 471
473.
STOWERS, Stanley K. “4 Maccabees”, in: MAYS, James (ed.). HBC. San Fran
cisco, 1988. p. 922-934.
TCHERIKOVER, V. The Third Book o f the Maccabees as Historical Source.
ScHier7. 1961, p. 5-6.
478
37
Sabedoria
479
Introdução h e r m e n ê n u t ic a ao A ntic,o T estamento
Tudo indica que a obra foi escrita por um judeu de Alexandria, porém a
data é assunto para debate. Postulou-se para sua redação desde o terceiro século
a.C. até o segundo século de nossa era. Excetuando vozes isoladas, há consenso,
sem dúvida, de que é posterior à tradução da Septuaginta (150 a.C.) e que deve
ser situado entre os séculos 1 a.C. e I d.C. Porém, no momento de definir, há quem
pense no começo do séeulo I a.C. (cf. Soggin, p. 445), quem imagine os tempos
de Augusto (30 a.C.-14 d.C.; cf. Pereira, p. 15-19; Vílehez, 1990, p. 63) e quem
afirme que foi escrita no primeiro século da era cristã, particularmente próximo
ao tempo de Calígula (37-41 d.C.; c f Winston, p. 20-25). Os argumentos em cada
caso são plausíveis, mas condicionam a hermenêutica ao determinar, de acordo
com a opção adotada, a quem se refere quando menciona os “ímpios”, os “injus
tos”, os “justos” e o “justo”. Poucos observaram o fato de que a obra rejeita os
nomes próprios, inelusive dos próceres da antiguidade israelita, como são os do
capítulo 10, onde Adão é mencionado como “pai do mundo” e Moisés como “o
servidor”. Isso nos deve levar a não pressionar para a identificação das referên
cias, mas compreender que a obra é oferecida para o universal, para as justiças e
injustiças de todos os tempos. Talvez devêssemos atribuir à ironia do autor que o
único nome próprio presente na obra seja o mar Vermelho (10.18; 19.7).
Esse livro faz parte do cânone grego da Septuaginta e é reconhecido como
deuterocanônico pela tradição católica romana e simplesmente como canônico
pelas igrejas ortodoxas. O judaísmo nunca o considerou parte de suas Escrituras,
apesar de tê-lo atribuído a Salomão, talvez pela abundância de helenismos e por
sua origem fora de Israel. As igrejas protestantes não lhe atribuem qualidade ca-
nôniea e incluem-no entre os apócrifos (cf Grabbe, p. 28-29). Jerônimo - que não
soube de uma versão semítica - não lhe reconheceu qualidade canônica e limitou
-se a copiar em sua Vulgata o texto da Vetus Latina.
480
_________________________________________________________________________________ ________S abedoria
481
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
4. Teologia e interpretação
482
______________________________________________________________ ___________________________ S abedoria
tória dos israelitas da diáspora. Filão é o maior expoente dessa corrente no campo
filosófico e não por acaso é contemporâneo da redação dessa obra. Mesmo que
não encontremos relações diretas entre Sabedoria e a obra de Filão, é evidente que
compartilham o mesmo clima cultural e são questionados pelos mesmos desafios.
Porém, ao mesmo tempo, é necessário destacar a pouca influência intelectual que
tanto Filão como o judaísmo da diáspora exerceram sobre o Israel que permanecia
em Jerusalém e seus arredores, o que então definiría a continuidade religiosa da fé
bíblica. Isso se constata quando apenas textos isolados, breves alusões e nenhuma
citação direta serão encontrados nos textos que um setor do judaísmo produziu e
que coletamos no Novo Testamento. Caso fosse provada a dependência de algu
mas passagens, essas teriam certa importância, como 7.22, que fala de espírito
“unigênito”, expressão que o Evangelho de João aplicará a Jesus (1.14,18), ou a
relação entre vida eterna e imortalidade em 15.3 e Jo 17.3. Porém é mais provável
que sejam idéias tomadas do meio cultural comum do que resultado do conhe
cimento da obra. Nesse sentido. Sabedoria serve mais para entender a evolução
posterior do pensamento cristão - século II em diante - do que o contexto e o
próprio tempo do surgimento do movimento de Jesus.
Anotamos três elementos teológicos que devem ser levados em conside
ração para abordar a hermenêutica dessa obra. O primeiro é que, para o autor,
não há sabedoria sem justiça, e essa vem apenas de Deus (cf. Soggin, p. 444). O
livro abre dirigindo-se aos governantes (1.1), os quais identifica como aqueles que
provocam as injustiças, mas também como os que têm o poder para modificar a
situação. O presente é caracterizado pelo triunfo dos ímpios, porém se proclama
que esse triunfo é apenas aparente. E dirigido a uma geração que viveu perse
guições e humilhações físicas, mas também religiosas e morais; nesse ambiente
foram testemunhas da prosperidade de seus opressores. Por conseguinte, a per
gunta pelas justiças humana e divina aparece em cada página, e o autor encontra
a resposta na abordagem da sabedoria. Essa não somente proporciona o perfeito
conhecimento de Deus, mas também a imortalidade (15.13). No juízo final, os
piedosos receberão a recompensa da vida etema, enquanto os malvados morrerão
definitivamente (5.15-23). Essa convieção íntima percorre todo o livro e confere
sua característica à teologia do autor.
O segundo elemento é que o objetivo do livro é convidar os pagãos à con
versão. O autor vive imerso no mundo pagão e dirige-se a seus contemporâneos
para resgatá-los. Isso permite entender que o recurso à linguagem e ao pensa
mento helênico busca colocar a mensagem do Antigo Testamento em palavras e
categorias que os habitantes não judeus de Alexandria pudessem perceber como
familiares. Como é habitual na escola sapiencial, não sobra nos fatos do futuro
nem do passado, mas se pergunta pela realidade no mesmo momento em que
escreve. Porém recorre, nesse caso, à história (10-19) para mostrar que o conheci
mento da correta sabedoria acarretou bênçãos para Israel e que, por desconhecê
-la, carreou tragédias para os ímpios. No afã de convertê-los, o autor dedica os
capítulos 13-15 à destruição da idolatria, expressão com a qual denomina a reli-
483
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
gião dos demais povos. Faz isso com argumentos racionais próprios da filosofia:
os ídolos não estavam no começo da criação, portanto tiveram que ser criados por
humanos (14.13); o nome “incomunicável” de Deus foi dado a madeiras e pedras
(14.21); um ser humano vale mais do que um ídolo, pois o ser humano tem vida
ao menos durante um tempo, enquanto um ídolo não é mais do que um objeto
morto (15.16-17).
Em terceiro lugar, deve-se levar em consideração que a obra, mesmo quan
do em boa medida se percebe como helenizada, permanece sendo um texto judai
co. O autor expõe como a sabedoria guiou Israel desde o começo e ao longo de
toda a sua história. Desde Adão até o tempo do êxodo, o povo de Deus foi acom
panhado pela sabedoria, inclusive adequada à coluna de fogo e à nuvem (10.17),
que em Êxodo representam a presença de Deus. Os capítulos 15.18-19.22 expõem
o tratamento diferenciado de Deus para com Israel e os egípcios; porém o leitor
é levado a ver nesse relato da antiguidade a diferenciação presente em seu tempo
entre justos e ímpios (cf. Crenshaw, p. 178).
BIBLIOGRAFIA
484
38
Eclesiástico ou Sabedoria
de Jesus Ben Siraque
Este livro é um dos poucos sobre os quais podemos afirmar com confiança
que conhecemos o nome do autor. Trata-se de um escriba judeu, cujo nome é men
cionado em 50.27, em grego chamado de “Jesus, filho de Eleazar, filho de Siraque
de Jerusalém” ou no texto hebraico de “Simeão, filho de Jesus, filho de Eleazar,
filho de Siraque”. No Talmude, é nomeado por sua parte final: “Ben Siraque”.
Esse homem dirige ou trabalha em uma academia (51.23) e é um especialista nas
Escrituras, das quais faz um uso intensivo em seu texto. Quase todos os livros do
Antigo Testamento são mencionados nessa obra. O nome “Eclesiástico” foi dado
a ele pelos primeiros cristãos - talvez para distinguir-se da sinagoga - e significa
‘que pertence à igreja’, porque era um material utilizado para a catequese com os
novos crentes. Mas é conhecido também pelas denominações de “Sirácida”, “Ben
Siraque” - isto é, ‘filho de Siraque’- e nas igrejas orientais como “A sabedoria de
todas as virtudes”. Em 50.31, é chamado de “Sabedoria de Jesus, filho de Siraque
de Jerusalém”. Essa última denominação faz jus, em parte, a seu conteúdo, pois o
livro está enraizado na tradição literária da sabedoria de Israel, ao mesmo tempo
em que expressa uma transição em direção ao que mais tarde se chamará literatura
rabínica, que levará à criação da Mishná e do Talmude. Para uma hermenêutica
apropriada, é necessário levar em consideração esse contexto literário e a condi
ção de ser uma porta que introduz novos elementos na literatura sapiencial e sua
maneira de entender a fé e a relação com Deus.
485
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1. Época e autor
Ben Siraque escreveu essa obra aproximadamente no ano 180 a.C. Isso
procede da menção de Simeão II em 50.1-21, cujo filho Onias III será expulso
por Antíoco IV Epífanes, que morre em 163 a.C., e provocará a reação que ter
minou no levante dos macabeus. A obra ignora esses fatos, o que leva a pensar
que é anterior a eles. Ben Siraque escreveu em Jerusalém e em hebraico o texto
que mais tarde seu neto traduziu para o grego, de acordo com o exposto em seu
prólogo. É professor e possui uma escola de alto custo (51.23); em 51.28, diz-se
que a instrução é cara, porém o produto final é ainda muito mais valioso do que
seu custo, 0 que pressupõe que seus estudantes pertencem às classes altas. Isso é
coerente com a literatura sapiencial, que, em geral, nasceu e desenvolveu-se nos
ambientes do palácio.
2. O texto canônico
486
E clesiástico ou S abedoria de J esus ben S iraque
dizer que é difïcil discernir quai é o texto canônico, e as diversas edições variam
tanto no conteúdo como na numeração de capítulos e versículos. Aqui seguimos a
numeração da Bíblia de Jerusalém, que é uma tradução do texto grego da Septua
ginta; essa inclui o prólogo - que não é canônico - , porém não considera o hino
hebraico do capítulo 5 1 .0 Eclesiástico não faz parte do cânone hebraico nem do
cânone utilizado pelas igrejas protestantes.
Na obra distinguem-se três seções, cada uma encabeçada por um hino, das
quais as duas primeiras são dedicadas à exaltação da sabedoria e a última à cria
ção e ao Criador (cf. Olvera Pérez, p. 917). O livro finaliza com uma seção hínica
(capítulo 51), cujo último hino é alfabético —composto por vinte e duas estrofes,
que começam, cada uma, com uma letra do alfabeto em sua devida ordem. Dessa
maneira, apresentamos o conjunto:
Epílogo 51.1-30
(Hino 51.1-12; Hino hebraico;
Hino alfabético 51.13-30)
487
Introdução hermenènutica ao A ntioo T f.stamf.nto
488
E clesiástico ou S abedoria de J esus ben S iraque
489
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
E triste constatar que um livro sutil e rico em conteúdo nos tenha legado
uma imagem tão distorcida da mulher. Em suas páginas, a mulher não é vista por
si própria, mas em sua relação com o homem, de modo que é sempre apresentada
como esposa, mãe, filha, adúltera ou prostituta (cf. Schuller, p. 237). Ela é uma
ameaça de perdição para o homem (9.1-9) e alguém que multiplica os pecados.
Por isso não há piedade para a adúltera, cujos erros são transmitidos a seus filhos
(23.22-27). O longo poema de 25.13-26.18 inclui elogios à beleza do corpo femi
nino com advertências sobre sua maldade e tendência à luxúria. Menciona-se a
origem do pecado, o qual é atribuído à ação da primeira mulher: “foi pela mulher
que começou o pecado, por sua culpa todos morreremos” (25.24). Em 42.12-14
é sentenciado: “é melhor a malícia de um homem do que a bondade de uma mu
lher”. Em dois casos (23.22-27 e 42.12-14), as reflexões sobre a mulher têm a
função de encerramento das seções 1 e III; indica que não são um tema qualquer
dentro de outros, mas se considera a mulher uma ameaça que coloca em risco o
equilíbrio e a paz social. Essa maneira de pensar e sua expressão literária são,
sem dúvida, reflexo da compreensão da época sobre a mulher e da influência do
helenismo, que acentuou os elementos negativos já presentes na tradição israelita.
490
E clesiástico ou Sabedoria de J esus ben S iraque
escutada (34.26), e a vida reta vale perante Deus tanto quanto os sacrifícios e as
oferendas (3.1-3).
3 - A visão do ser humano caminha entre o otimismo e o pessimismo (cf
Soggin, p. 455). Por um lado, a vida reduz-se a nada, a pó (33.10); essa se perde
como uma gota de água no mar (18.8-14), e a morte é seu ato final (10.9-17). Por
outro lado, recorda-se que o ser humano leva impressa a imagem de Deus e possui
0 mandato e a autoridade para reinar sobre a terra (17.1-14); a criação é percebida
como boa e valiosa (39.16-27); e talvez a nota mais otimista de todas reconheça
no ser humano a capacidade de decidir e forjar seu próprio destino. A pessoa não
está destinada a sofrer um destino implacável, mas é dona de seus atos (15.11-20).
Essa tensão entre o efêmero e frágil da vida humana e sua condição de ser dotada
de entendimento e capacidade de domínio não fica resolvida no livro. Visto que
a humanidade até hoje não resolveu essa incerteza, essa condição do Eclesiástico
deve ser considerada uma virtude e não uma carência.
BIBLIOGRAFIA
491
39
Baruque e Carta de Jeremias
1. Baruque
493
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
porém dificilmente após a segunda. De todo modo, o texto não tem caráter histó
rico, e tanto a autoria de Baruque como a data indicada devem ser consideradas
uma elaboração literária. Isso resulta de observar que, de acordo com o texto de
Jr 43.5-6, Baruque foi levado ao Egito juntamente com o profeta, o que toma
difícil encontrá-lo alguns poucos anos mais tarde entre os cativos na Babilônia.
Também é problemática a menção feita em 1.6-12 de uma coleta entre os cativos
para enviar os utensílios do templo de volta a Jemsalém. De acordo com Ed 1.7
11, os apetrechos do templo voltaram por ordem de Ciro em mãos de Sesbazar
no ano 539 a.C., fato que tem mais possibilidade de corresponder à realidade his
tórica. Por outro lado, não seria confiável pensar que, no quinto ano de cativeiro,
os israelitas já estivessem em condições de arrecadar fundos e dispor dos objetos
litúrgicos, constituídos de metais preciosos, para devolvê-los ao templo que per
manecia em minas em Jemsalém.
E considerável a quantidade de citações e alusões a textos bíblicos. Exis
tem muitos textos relacionados a Daniel, Jeremias, Isaías, mas também a obras
como Gênesis, Deuteronômio, Salmos e outras que colocam em evidência que o
autor (ou os autores, já que provavelmente que se trata da união de vários escritos
independentes) era um conhecedor das tradições e utiliza-as plenamente para fun
damentar seu pensamento. Não se descarta que, embora o texto final seja tardio
em algumas partes, seja uma reelaboração de unidades muito mais antigas, fato
habitual nas narrativas bíblicas (cf. Soggin, p. 459). Em conclusão, a data que o
próprio livro oferece - o começo do cativeiro babilônico - deve ser considerada
uma ficção literária, enquanto é incerta a data de redação efetiva do relato. Apenas
em razão de seus vínculos literários com o livro de Daniel se considera que deve
ser posterior a ele, e portanto Baruque teria sido escrito ou compilado entre os
anos 150 e 60 a.C.
494
B aruque e C arta de J eremias
495
Introdução hermenènutica ao A ntiüo T estamento
Sob 0 ponto de vista hermenêutico, essa obra deve ser lida em sua totali
dade. O fato de que consta de duas partes diferentes, inclusive de estilo diferente,
não impede que, no momento da concretização de sua redação final, ela não tenha
sido feita com a intenção de apontar uma linha particular da mensagem. Como
eixos que percorrem a obra e atravessam suas diversas unidades, apontamos três
temas:
1 —A saudade de retomar a adoração no templo de Jerusalém. Embora sua
localização no tempo não seja real, podemos imaginar um momento no qual a
adoração no templo, mesmo não cessando, foi distorcida até o ponto em que já
não podia mais ser considerada legítima. Foi no tempo de Antíoco IV Epífanes,
que instalou uma imagem pagã no templo e provocou a revolta dos macabeus.
Baruque pode ser um livro compilado sob o efeito da angústia por ver o culto do
templo manchado nesses dias ou em algum momento em que ocorreu uma situa
ção similar de deterioração religiosa. Se foi assim, constituiu-se em um chamado
para restabelecer a antiga dignidade do templo.
2 - A situação da diáspora e seu desejo pelo reencontro de todo o Israel
em Jerusalém está presente ao longo de todo o livro e expressa o sentimento de
que são os pecados cometidos - a infidelidade e o abandono da Lei - que levaram
Israel a essa situação. Lamenta-se não apenas pelos que estão em Judá, mas prin
cipalmente por aqueles que estão longe e são animados a retomar à cidade santa.
496
B aruque e C arta de J eremias
A diáspora e a distância do templo são vividas como cativeiro, mesmo que essa
não seja a verdadeira figura social em todos os casos.
3 - A sabedoria como uma fonte subordinada à Torá. No caso de Baruque
a sabedoria não adquire identidade própria, como ocorre em outros textos (veja-
-se Provérbios 1-9, onde tem um matiz pessoal, em particular 8.22-31; Jó 28),
nem oferece um caminho alternativo à salvação. O conhecimento da verdade está
vedado aos olhos humanos, porém o crente possui a Lei para orientar-se na vida.
Não se espera que conheça os mistérios do universo, mas que aja de acordo com
o indicado por Deus em sua palavra.
A articulação de duas partes desiguais (é o caso também do livro de Da
niel) permitiu reunir materiais de valor diferente. Cada parte possui valor próprio,
porém a construção literária nos leva a lê-las de maneira articulada, para então
perceber o movimento do texto que leva o leitor do cativeiro à esperança.
4. Carta de Jeremias
497
I ntrodução hermenénutica ao A ntioo T estamento
5. Conteúdo e mensagem
BIBLIOGRAFIA
498
Baruque e C arta de J eremias
499
40
1 e 2 Esdras
1. 1 Esdras
501
Introdução h e r m e n ë n u t ic a a o A nticio T estamento
(cf. Eskenazi, p. 57-58). A única seção que é sua própria e que não encontramos
em nenhum outro livro é a passagem 3.1-5.6, em que se narra a história dos três
jovens na corte do rei persa Dario. Há autores que consideram que essa história
dos três jovens seria um capítulo perdido de 2 Crônicas, porém não há nenhum
indício textual que sustente essa proposta. Por outro lado, a teologia marcadamen-
te sapiencial do relato não concorda com a mais histórica de Crônicas. Um fato
interessante é que Flávio Josefo utiliza 1 Esdras como fonte histórica para seus
escritos em vez do texto da LXX ou das versões em hebraico, o que permite supor
que o considerava mais antigo do que os outros textos ou mais fiel aos fatos (cf.
Harrison, p. 1.195-1.196).
Não é possível estabelecer uma data precisa para essa redação nem identi
ficar seu autor. E anterior às Antiguidades Judaicas de Flávio Josefo (93-94 d.C.)
e provavelmente posterior a Daniel (165 a.C.). Mesmo que o texto que possuímos
seja grego, certos hebraísmos fazem pensar que é uma tradução do hebraico ou
do aramaico. Entretanto, devido às diferenças textuais já mencionadas, é evidente
que não é tradução dos textos canônicos, mas de alguma outra versão existente
em seu tempo. Em todo caso, no momento de comparar o texto de 1 Esdras com
seus paralelos de 2 Crônicas, Esdras e Neemias, revela-se mais próximo do texto
hebraico do que do grego da Septuaginta. Assim que, como tradução, pode ser
anterior à tradução de Crônicas, Esdras e Neemias para o grego a fim de integrar
a LXX e, portanto, representar um texto de alto valor para a crítica textual. E
razoável datar sua redação entre os anos 165 e 100 a.C., sem que essa afirmação
tenha que ser considerada significativa demais no momento de avaliar o conteúdo
do livro.
E difícil definir se 1 Esdras é uma obra original ou simples cópia de frag
mentos de uma obra mais extensa. Para a primeira opção, argumenta-se que seu
sentido consistiria em narrar a história do culto no templo desde a reforma de
Josias até sua restauração por Esdras. A segunda opção - ser cópia e união de frag
mentos - é menos atraente, mas pode ser a verdadeira razão da obra. Sugere-se
que teriam sido unidos os textos não com um objetivo literário ou teológico, mas
com uma finalidade prática, como por exemplo seu uso na liturgia, na escola etc.
(cf Díez Macho, p. 200). Com a informação que possuímos não podemos afirmar
nem uma tampouco outra coisa.
A estrutura literária é linear e pode ser vista neste esquema;
Páscoa de Josias 1
De Ciro até Artaxerxes 2
História dos três jovens 3.1-5.6
História de Esdras até a leitura da Lei 5.7-9.55
502
1 E 2 E sdras
Há três elementos dessa estrutura que é preciso destacar, assim como suas
consequências hermenêuticas. O primeiro elemento é que, embora a obra se in
teresse por narrar os fatos do pós-exílio, a narrativa volta para trás e começa com
a Páscoa de Josias. Isso indica que, para a obra, o começo da restauração deve
ser buscado na reforma religiosa daquele rei. Se, mais tarde, voltaram a cair em
pecado, e isso os levou à ruína, ao desterro e à destruição do templo, o verdadeiro
caminho a seguir já estava marcado pelas ações de Josias. Esse rei apresenta-se
como modelo de fidelidade e aquele que busca reorientar a fé de Israel sobre bases
renovadas e sólidas. Note-se que a obra começa e termina com cenas em que a
Lei é o elemento central (em 1.11, refere-se à Lei; em 9.40-41, ela é lida diante
do povo).
O segundo elemento é que, na história de 1 Esdras, a figura de Neemias
está ausente. Seja porque corresponde a uma tradição diferente de Esdras-Nee-
mias ou porque foi omitida de maneira deliberada devido a diferenças teológicas
ou históricas, a ausência de Neemias é sugestiva. Em todo caso, pela via positiva,
pode-se dizer que o texto faz uma opção pelo personagem que melhor representa
a linha religiosa, pois Esdras era de ascendência sacerdotal, escriba e versado na
Lei como poucos em seu tempo. Isso também indica uma opção teológica por
onde buscar as respostas para as perguntas do pós-exílio sobre como reconstruir
a comunidade restaurada.
O terceiro elemento é mais formal, porém nem por isso menos interessante.
A ordem Crônicas-Esdras-Neemias, apresentada em 1 Esdras, é a natural, pois
continua a sequência histórica dos fatos narrados, porém não é a ordem em que
os livros estão no cânone da Bíblia Hebraica. Como vimos em outro momento, o
livro de Esdras-Neemias precede Crônicas - que é o último no cânone da Bíblia
Hebraica - e, para indicar a continuidade da leitura, é incluído como marca o texto
do Decreto de Ciro, que é transcrito no final de Crônicas (2Cr 36.22-23) e é re
petido em Ed 1.1 -4, de modo que o leitor, ao finalizar Crônicas, vá em direção ao
começo de Esdras e prossiga com a narrativa. Essa situação um pouco estranha,
pois altera a ordem cronológica, não é necessária em 1 Esdras.
503
Introdução hermenênutica ao A ntigo T est.muento
com a teologia sapiencial. Sob o ponto de vista teológico, essa obra também se
inscreve entre aquelas do período intertestamentário que procuram mostrar que
o pensamento judaico é compativel com as correntes de pensamento da época,
especialmente com a especulação de estilos grego e romano, e destacar sua supe
rioridade conceituai (cf. Díez Macho, p. 202).
A história dos três jovens —a única plenamente própria —mostra claramen
te a inserção no pensamento helénico e a busca implícita por mostrar a superio
ridade da cultura e da fé israelitas (cf. Femández Marcos, p. 448). Propõe-se um
concurso sobre a busca daquilo que é o mais forte. Essa busca já revela o âmbito
sapiencial helenizado em que se desenvolve. Depois Zorobabel ganha o concurso
ao colocar as mulheres em primeiro lugar e depois indicar que a verdade está in
clusive acima delas. As mulheres foram um enigma para os sábios na medida em
que a sexualidade também é. Esses não conseguiam compreender a pulsão sexual
que fazia o homem perder o juízo e levava a condutas inexplicáveis sob o ponto
de vista da razão. Porém, chegando a esse ponto, coloca-se a verdade acima das
mulheres e de toda a realidade. A exaltação da verdade, expressa no hino (4.34
40), exibe todas as caracteristicas do pensamento e da teologia dos sábios imersos
na cultura da época, que se saciava com duas fontes: seu helenismo revela-se na
condição abstrata da verdade que se expõe; seu judaísmo - entre outras coisas -
em sua rejeição à assimilação através de matrimônios mistos.
4. 2 Esdras
504
1 E 2 Esdras
505
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
506
1 E 2 E sdras
de, pois lhe diz que ela não vê que há outros meninos israelitas que também estão
sofrendo. Nesse caso, o anjo Uriel não dialoga, mas interpreta a cena de maneira
alegórica. A segunda visão traz uma águia e um leão, os quais representam Roma
e Judá. Nela, um resto de Judá será resgatado, e a interpretação está a cargo não do
anjo Uriel, mas do próprio Deus. A terceira visão mostra o messias que vem e que,
ao cabo de quatrocentos anos, morrerá; após sete dias, a criação toda será julgada
por ele, que estará sentado sobre um monte. Sua missão é convocar os redimidos
de Israel e as dez tribos do Reino do Norte, dispersas por Salmanasar, que agora
voltam a estar juntas e formam uma multidão de salvos por Deus. Novamente é
Deus quem explica a cena. A última e quarta visão compete com a cena da sarça
ardente no deserto e apresenta Esdras como um novo Moisés, cuja missão é re
escrever a Torá, que foi queimada durante a destruição do templo. Tem também
como tarefa entregar as Escrituras tradicionais ao povo, mas deixar aos sábios os
outros setenta escritos que contêm os segredos dos livros de Deus.
A obra tem uma conclusão de punho cristão e de estilo similar ao que se
encontra nos capítulos 1-2. Nela se insiste na justiça de Deus e no fato de que não
há nada que o Senhor não saiba nem nada que se possa ocultar dele. E as palavras
finais são de alento e um convite à confiança em Deus que guiará seu povo à sal
vação e os Ímpios ao castigo.
507
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i q o T e s t a m e n t o
porém, nesse caso, é descrito como o portador exclusivo da salvação (cf. Harri
son, p. 1.203).
B IB L IO G R A F IA
508
41
Salmo 151
1. Título e texto
509
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
OS salmos de Davi, que teriam sido redigidos em uma ocasião determinada de sua
vida, como vimos nos salmos 3, 7, 18, 51 etc. No caso do 151, o título reza: “Este
salmo é atribuído a Davi, redigido por ele mesmo (ainda que fora do número)
após ter brigado com Golias”. Como obra literária, é considerado um exemplo dos
salmos que foram redigidos em um segundo momento e que formaram coletâneas
que chegaram até nossos dias, tais como os “Salmos de Salomão” e as “Odes de
Salomão” (Kraus, 1993, p. 15).
Entre os manuscritos descobertos nas imediações das ruínas de Qumrã foi
encontrada, na caverna 11, uma coletânea de salmos bíblicos e extrabíblicos, entre
esses uma versão ampliada do Salmo 151. Nesse caso, está escrita em hebraico.
E uma versão completa e difere do texto grego no fato de que se concentra na
escolha de Davi e não menciona a história de Golias (cf o texto em tradução es
panhola em Garcia Martínez, p. 348). Porém chama a atenção que, no manuscrito
de Qumrã, o salmo que vem após o 151 é também atribuido a Davi e começa com
o tema da luta contra os filisteus. Pode-se presumir que contenha a narrativa da
luta com Golias, assim que se pode postular que o 151 grego da LXX é a união e
a condensação dos dois salmos hebraicos presentes nesse rolo.
2. Conteúdo e teologia
Para interpretar o sentido desse salmo, é preciso observar sua relação com
a história de Davi e a vontade do salmista de ressaltar aspectos próprios de sua
vida. Em princípio, notamos que seu conteúdo se alimenta da informação dada
em ISm 16.1-14 (a escolha de Davi) e ISm 17 (sua bem-sucedida luta contra
Golias). Resume-a e destaca alguns elementos em um discurso no qual Davi fala
de si próprio e lembra sua escolha entre seus irmãos mais velhos. Mostra essa
escolha como um ato de justiça de Deus, que o escolheu e descartou seus irmãos,
que eram vigorosos e altos. Aponta que preferiu a humildade do pequeno que cui
dava das ovelhas do pai. Toda a descrição de Davi concentra-se em seus aspectos
mais apreciados pelas tradições que foram construídas posteriormente em tomo
de sua figura: Davi é descrito como pequeno, pastor de ovelhas, construtor e que
toca instrumentos musicais e, íinalmente, como aquele que enfrenta os filisteus e
vence Golias. Detém-se em sublinhar que foi Deus quem enviou o “mensageiro”
^ não menciona Samuel por seu nome —, que o identificou e ungiu com seu azeite.
A teologia desse salmo respalda a linhagem davídica e monárquica, fortalece a
linha messiânica vinculada a Davi e alimenta-se do conceito de que Deus escolhe
com critérios diferentes dos nossos, pois vê nas pessoas e nas situações aquilo que
nossos olhos não costumam perceber.
510
Salmo 151
B IB L IO G R A F IA
511
42
Oração de Manassés
513
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
B IB L IO G R A F IA
514
43
Acréscimos aos livros
protocanônicos: Daniel e Ester
1. Acréscimos a Daniel
Estas três histórias - a oração de Azarias e o cântico dos três jovens, Su-
sana e Bel e o dragão - são acréscimos ao livro hebraico e aramaico de Daniel,
assim como está na Bíblia Hebraica. São acréscimos que nos chegaram apenas
no texto grego da Septuaginta, mesmo sendo possível que todos foram redigidos
originalmente em hebraico ou aramaico, o que é questionado em cada caso. Ainda
assim, o texto da Septuaginta é breve e confuso, por isso geralmente se opta por
seguir o texto de Teodócio, que é traduzido nas versões modernas em uso. Sua
datação é uma tentativa, mas parecem ter sido escritas entre os séculos 11 e I a.C.
Assim como não dispomos de uma versão hebraica que as preserve, também não
encontramos versões gregas que as omitam. Isso sugere que foram concebidas na
diáspora, quer como ampliações (para o caso da oração de Azarias e do cântico
dos três jovens), quer como obras autônomas acrescentadas depois a Daniel (no
caso das histórias de Susana e de Bel e o dragão). A partir do Concilio de Trento
(1546) foram confirmadas pela Igreja Católica como parte do texto canônico de
Daniel, ao passo que as igrejas de tradição protestante não as consideram parte do
texto e não as incluem em suas edições.
515
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
1.2. Susana
516
A créscimos aos livros protocanônicos: D aniel e E ster
O texto do Daniel hebraico e aramaico. Seja qual for sua localização, sua mensa
gem é independente do lugar que ocupa no livro de Daniel. Uma tradução para o
espanhol do texto de Susana, assim como está na LXX, é apresentada no trabalho
de Pierre Grelot, p. 49-51.
Essa pequena obra da narrativa judaica antiga compartilha com Tobias, Ju
dite e Daniel 1-6 a beleza dos relatos curtos e de prosa contundente. O equilíbrio
das cenas, a simplicidade de sua linha narrativa e a condução linear da atenção
do leitor fazem desse relato um exemplo do melhor da literatura de sua época
no Israel intertestamentário. Nele nada sobra, e cada palavra ocupa um lugar in
substituível no relato. Foi comparada às modernas histórias de detetives, pois a
resolução da trama é definida pela sagacidade do personagem para descobrir os
verdadeiros delinquentes. Sob o ponto de vista teológico, é um testemunho de
que Deus defende os honestos e condena a maldade. Nesse caso, os ímpios estão
representados por dois juizes anciãos e respeitados pelo povo - o que aumenta o
símbolo - , que não hesitam em mentir para forçar Susana a ter relações sexuais
com eles. Susana não aceita a proposta e prefere morrer apedrejada a cometer o
pecado do adultério contra seu marido e contra Deus. A condenação está decidida,
porém Deus convoea Daniel, que vai desmascarar o falso testemunho e fará com
que os juizes sejam castigados com a morte. A história termina quando todo o
povo louva a Deus, dá graças pela integridade de Susana e alegra-se por ter evita
do derramar sangue inocente.
Em tempos de angústia e perseguição - como foram os anos que viram
essa obra nascer -, afirma-se que Deus defende a verdade dos sinceros e honestos
e castiga a maldade dos que se opõem à sua lei. Ensina que as palavras de uma
mulher e de um jovem podem valer mais do que o prestígio de dois juizes anciãos
que convencem o povo, mas não conseguem prevalecer perante a ação de Deus.
O que foi dito do relato de Susana também cabe para esta obra: as versões
da LXX e de Teodócio diferem na trama, e ambas podem ser lidas e interpreta
das como peças literárias independentes de Daniel. O que as une com Susana é
também o caráter detetivesco de sua narrativa, onde o herói mostra esperteza para
provar - nesse caso para o rei - que nada é evidente e que os sacerdotes zombam
dele e roubam suas riquezas. Perto do final (14.31-38), encontramos Daniel num
fosso com leões, algo similar ao ocorrido no capítulo 6, porém sem que se faça
alusão àquela narrativa. Provavelmente o autor utiliza uma mesma tradição popu
lar sobre Daniel e que não conhecia o outro relato no momento de escrever este.
Bel é outro nome dado a Marduque, o ídolo principal do panteão babilô-
nico, e a história tem como objetivo colocar em evidência sua falsidade como
Deus. Daniel insiste que é um objeto de cerâmica que não tem poder e demonstra,
através de sua astúcia, que são os sacerdotes que se aproveitam das oferendas
que aparentemente o ídolo come. Ao desmascará-los, ganha o apreço do rei e a
517
Introdução hermenènutica ao A ntigo T estamento
2. Acréscimos a Ester
518
A créscimos aos livros protocanõnicos: D aniel e E ster
(essas últimas em 2.20; 4.8; 6.1,13). Porém uma dificuldade até hoje insuperável
é que não há acordo em relação a uma redação particular desses seis textos, pois
contamos com várias e diferentes recensões gregas. Ao lado da LXX, contamos
com o texto denominado Luciânico - que é mais breve; além disso, existem frag
mentos na Hexapla de Orígenes, e acrescentam-se cópias medievais que desfm-
tam de alta estima entre os pesquisadores, como é o texto chamado Alfa. São
quatro textos nos quais as mudanças entre si não são apenas de conteúdo, mas, em
alguns casos, do lugar ocupado no texto hebraico. Essa situação ofusca a defini
ção da canonicidade, pois é preciso determinar qual texto é primordial. Quando
Jerônimo expôs esse problema, relegou os acréscimos a um apêndice e incluiu-os
logo depois do texto hebraico, que é a sequência que se costuma utilizar até hoje,
inclusive quando é editada em sua posição na LXX (veja-se, como exemplo, a
numeração na Bíblia de Jerusalém). O Concilio de Trente da Igreja Católica não
resolveu o problema, pois estabeleceu como canônico o texto de Ester com seus
acréscimos, porém sem indicar qual das versões era a normativa. Se a Vulgata foi
o modelo - que era o texto em uso e oficial naquele momento -, os acréscimos
perdem sentido, pois estão desfigurados ao ser colocados no final da lista. Para
colocá-los em seu lugar natural na LXX, é necessário indicar qual recensão é a
aceita. Isso levou alguns autores a propor que os textos hebraico e grego (LXX)
fossem considerados canônicos, e a essa lista também deve ser acrescentado o
texto Luciânico (cf. Vílchez, 1998, p. 200).
A Bíblia de Jerusalém edita Ester sob a forma e a ordem da LXX, porém
traduz do hebraico as partes nessa língua e do grego os acréscimos. Distingue
esses últimos imprimindo-os em itálico. Embora pareça uma solução salomônica,
sob o ponto de vista textual, isso acrescenta confusão, pois como tradução espa
nhola faz referência a um texto inexistente. As igrejas protestantes consideram
esses acréscimos parte dos livros apócrifos e não os incluem na Bíblia.
Os acréscimos ao Ester hebraico são seis (indicamos com a sequência da
LXX e oferecemos o lugar que ocupa nesse texto hebraico):
519
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
B IB L IO G R A F IA
520
A c r é s c im o s a o s l iv r o s p r o t o c a n õ n i c o s : D a n i e l e E s t e r
521
44
1 Enoque
523
Introdução hermenênutica ao A ntioo T estamento
Introdução 1-5
524
E noque
Epílogo 106-108
525
Introdução hermenênutica ao A ntigo T estamento
B IB L IO G R A F IA
526
1 E noque
RICCIARDI, Alberto. “ 1 Henoc 70-71: ^Es Henoc el Hijo dei hombre?”. Cuad
Teol 17. 1998. p. 129-146.
_______. “Tradueción e interpretación en el Libro de Ias Parábolas de Henoc”.
RevBíbl 50. 1988. p. 219-231.
_______. “Algunos pasajes de Ias parábolas en recientes versiones dei libro
etiópico de Henoc”. RevBíbl 50. 1988. p. 33-60.
___ . “La carta de Henoc: 1 Hen 91-105 y la vindicación de los justos sufri-
entes”. RevBíbl 42. 1980. p. 65-83.
___ . “La oración en Ias parábolas de Henoc”. RevBíbl Al. 1985. p. 43-73.
527
APENDICES
Tabela cronológica do antigo Israel
DATA IS R A E L F O R A D E IS R A E L
século XVIII Abraão no Egito Código de Hamurabi, c. 1750
século XIII Êxodo do Egito Ramsés II c. 1290-1224
M em eptahc. 1224-1204
século XII Período dos juízes Decadência da Assíria e
proliferação de pequenos reinos
aramaicos
século XI Saul, Davi, Salomão: Dinastia XXI no Egito
Monarquia unida (1020-922)
922 Monarquia dividida (Reinos de Dinastia XXII no Egito
Judá e Samaria)
722 Queda de Samaria Conquista de Samaria por
Salmanasar V ou Sargão II, reis
assírios
609 Morte de Josias
605 Batalha de Carquemis, fim do
império assírio e começo do
babilônico
597 Tomada de Jerusalém, primeira Nabucodonosor, rei da Babilônia,
deportação à Babilônia toma Jerusalém
586 Queda de Judá, segunda Destraição de Jemsalém e do
deportação e começo do exílio templo
babilónico
539 Fim do exílio babilónico. Retomo Ciro conquista a Babilônia. Início
a Jemsalém e restauração. Israel do império persa (Aquemênida).
sob 0 domínio do império persa Decreto de Ciro
515 Reinauguração do templo
333 Israel sob o domínio do império Alexandre conquista Canaã. Fim
helenístico do império persa
323 Judá sob 0 domínio dos Lágidas Morte de Alexandre. Divisão do
(capital Alexandria) império
200 Judá sob dominio dos Selêucidas Antíoco III reina sobre a Siria e
(capital Antioquia) Canaã
63 Judá sob 0 domínio do império Pompeu conquista Jemsalém
romano
531
Vocabulário básico
Apócrifos, livros - Livros que fazem parte da Septuaginta e não foram acei
tos pelo judaísmo como canônicos. Alguns deles foram incorporados pela igreja
cristã em seu cânone, porém, desde o começo, houve discussão sobre seu valor
canônico. No século XVI, a maioria deles foi confirmada como livros canônicos
pela Igreja Católica e rejeitada pelas igrejas protestantes.
533
I n t r o d u ç ã o h e r m e n ê n u t ic a a o A n t i g o T e s t a m e n t o
Eloísta - Faz referência aos textos em que Deus é nomeado com a palavra hebrai
ca Elohim. Nessa língua, é um termo genérico que significa “Deus”.
Javista, javismo - Refere-se aos textos em que Deus é citado com a palavra
hebraica Yahwe. Esse termo é um nome próprio, não possui tradução e aplica-se
apenas ao Deus de Israel. O judaísmo deixou de pronunciá-lo em tempos antigos
e em seu lugar diz adonai, que significa “Senhor”. A Septuaginta seguiu essa
norma, a qual, mais tarde, foi adotada pela igreja cristã, em cujas traduções se
costuma colocar, em substituição, a palavra Senhor.
534
V o c a b u l á r io b á s ic o
Massorético, texto - Denomina-se assim o texto da Bíblia Hebraica que foi vo
calizado pelos massoretas. Os massoretas formavam escolas cuja finalidade eram
0 estudo e a preservação dos textos bíblicos. Nos primórdios dos séculos VIII e
IX, colocaram vogais no texto consonântico com o objetivo de garantir sua pro
núncia correta. Além disso, acrescentaram informação estatística ou correções nas
margens e no final de cada livro. O texto massorético é o que hoje se utiliza para
0 estudo e para as traduções modernas.
Mito —É uma narrativa de caráter simbólico que conta as origens dos diversos
aspectos da vida e da cultura. No mito sempre existe uma divindade ou divinda
des que agem e nele foram modificadas as coordenadas de tempo e espaço. Esse
gênero literário busca transmitir o sentido da experiência humana e utiliza, em
especial, a linguagem simbólica.
Poema alfabético - É um poema ou salmo que inicia cada verso ou estrofe se
guindo as letras do alfabeto hebraico em sua respectiva ordem.
Releitura, reler - Denomina-se releitura toda leitura que busca renovar a com
preensão do sentido de um texto a partir de uma nova interpretação.
535
Introdução hermenénutica ao A ntigo T estamento
Restauração - Período que começa no ano 586 a.C. com o retomo dos judeus do
exílio babilónico.
Semiótico, valor - E o valor que uma palavra, frase ou cena tem como tal em uma
narrativa em particular. Esse valor será diferente em outro contexto narrativo.
Septuaginta (LXX) - Tradução das Escrituras hebraicas para o grego. Foi produ
zida, em sua maioria, em Alexandria entre os séculos III e I a.C. para uso da di-
áspora judaica, que já não falava nem entendia o hebraico. E a Escritura utilizada
pela igreja nascente fora de Israel.
Taimude - E uma imensa obra produzida pelos rabinos entre os anos 200 e 500. É
dividida em Mishná e Guemará e contém as discussões entre rabinos sobre temas
religiosos, seculares, da vida cotidiana etc. Mais do que de um Taimude, pode-se
falar de dois; o de Jerusalém, escrito próximo do século V, e o da Babilônia, que
tem mais prestígio, eserito no século VI. Depois da Bíblia Hebraica, é o documen
to judaico de maior importância.
536
V ocabulário básico
e se continuou produzindo outras durante vários séculos de nossa era. Não é uma
tradução literal, mas tem um forte sentido interpretativo, o qual, em muitos casos,
se toma paráfrase.
537