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R esenha

A P e d a g o g i a d o E s p e c t a d o r,
de Flávio Desgranges
São Paulo, HUCITEC, 2003.

C elso Favaretto

A cena e a sala dobramentos sempre renovados das suas ações


e pulsões. Focando a questão aqui abordada na

N
ão deixa de espantar o fato de o teatro per- pedagogia do espectador, reativando e recodifi-
manecer tão vivo como nos seus inícios, cando as estratégias, já clássicas, do teatro épico
afirmando sua vocação de atuar no espaço em seus usos educativos, o que é proposto é o
público, mobilizando afetos e pensamen- redimensionamento dessa vertente crítico-cria-
tos, deslocando-se da ética à política, in- tiva segundo uma certa teoria do contemporâ-
vestindo desejos e utopias. Parece que a sua ver- neo, tendo em vista certas experiências inova-
satilidade para configurar os estados e modos de doras, como a do Théâtre des Jeunes Années, em
vida não cessa de produzir efeitos, mesmo quan- Lyon, o Théâtre des Jeunes Spectateurs, em Mon-
do, como hoje, outros dispositivos parecem lan- treuil e o Théâtre la Montagne Magique, em Bru-
çar este modo de representação, ou de apresen- xelas, por exemplo, e as que o próprio autor do
tação, dos movimentos humanos ao ostracismo, livro vem desenvolvendo há anos em locais e
quando não na obsolescência. Falamos das, as- circunstâncias culturais diversas.
sim chamadas, novas tecnologias de produção e Uma proposta como esta é uma tentativa
difusão de imagens, idéias e comportamentos, de articular exigências artísticas, do texto e da
que, ao acenarem para uma mutação do huma- encenação, e pressupostos pedagógicos, centra-
no, parecem indiciar que alguma coisa como o dos em atividades educativas em torno dos es-
teatro e também a literatura estariam superados, petáculos. O foco é a formação de espectado-
por serem inatuais. E, no entanto, muito vivos, res, visando, no limite, como resultado, uma
literatura e teatro continuam agindo cultural- intervenção reflexiva nos modos de estar e atu-
mente, motivando reiteradas experiências, artís- ar culturais dos participantes dessas experiên-
ticas e educativas. cias. Na linha brechtiana, pressupõe-se, portan-
Este livro é exemplo dessas tentativas que to, um efeito crítico com acentuado teor moral
partem da recusa em aceitar que se estaria sim- e político.
plesmente adiando a agonia do teatro; é, ao con- Há uma questão, entretanto, enfrentada
trário, uma afirmação da crença na eficácia das neste livro, que é primordial para se pensar qual-
virtudes e virtualidades que ele efetiva e nos des- quer ação educativa e que pode ser estratégica

Celso Favaretto é professor da Faculdade de Educação da USP.

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para a determinação da escolha teórica e dire- sam sobre as experiências de arte na educação,
ção a ser efetivada praticamente, quando se tra- por um lado muito marcadas ainda pelas esté-
ta de visar a um público determinado, ou seja, ticas do belo e do sublime, por outro, explo-
quando se pensa numa figuração de espectador rando as aberturas modernas e contemporâneas
de um determinado teatro. Trata-se de se per- da cena.
guntar sobre a relação entre uma dada modali- O autor enfrenta este questionamento
dade de ação educativa e o espaço cultural em sem, evidentemente, enunciá-lo nestes termos.
que pode se exercitar, considerando-se que este A sua visada é, contudo, precisa. Está metafori-
espaço é, hoje, quase sempre, um espaço ins- zada numa “experiência da janela”, acontecida
titucional. E mais: que o espaço assim conside- numa visita do autor ao Musée d’Orsay, em que
rado já implica uma demanda determinada, que é tematizada a atitude dos espectadores de arte,
pode ser genérica, digamos, simplesmente hu- indicando que a experiência estética das obras
mana, ou condicionada por fatores sociais, esco- de arte é marcada também pelas circunstâncias
lares, públicos ou privados. A questão é relevan- em que aparecem as obras. Ainda mais quando
te porque está no horizonte de um pensamento se trata de teatro, que requer uma presença efe-
sobre o desejável e o possível e não, idealmente, tiva do espectador e uma mútua exposição de
no horizonte de genéricos valores humanos. A atores e espectadores. Tal como aparece na ci-
pergunta é: seria possível determinar antes o que tação em epígrafe de Bernard Dort, o autor
é requerido por um determinado público, por centra sua pesquisa naquele ponto de intersec-
espectadores com perfil mais ou menos confi- ção, caro ao teatro moderno, “da cena com a
gurado, para que o que lhe é oferecido seja cul- sala, ou melhor ainda, no encontro do teatro
turalmente relevante? Não é esta a exigência de com o mundo”.
uma arte, de um teatro, materialista, como o de Mas este encontro se dá em situações e
Brecht e similares? contextos que devem ser caracterizados, exata-
Assim, esta é a questão de fundo que, diz mente porque são históricos e socialmente de-
o autor, não pode ser contornada sob pena de terminados, não tanto por condições de classe ,
se fazer da arte, do teatro, simplesmente um antes por fatores institucionais que constrangem
portador de mensagens, um instrumento da o lugar das atividades. A sempre propalada crise
educação, não da sensibilidade e do pensamen- da arte, crise do teatro, e outras crises, freqüen-
to, mas do costume. Trata-se da exigência, quan- temente devem-se, além dos impasses estéticos
do se lida com a relação da arte e da educação, dos artistas, às dificuldades de evidenciação das
de se compatibilizar a especificidade da expe- experiências, ou seja, a questões institucionais e
riência estética propiciada pelas obras e eventos de política cultural. Atualmente, como salienta
artísticos com a utilidade das ações educativas. Flávio Desgranges, em virtude da predominân-
Tal problema implica a consideração das media- cia da imagerie contemporânea e da imposição
ções articuladas nas ações e nas instituições para das atividades espetaculares, que estetizam o co-
que os receptores, ou espectadores, entrem efeti- tidiano, o narcisismo dos artistas e o mercanti-
vamente no gozo da experiência estética, sem a lismo dos empreendimentos teatrais fazem, pa-
qual o interesse educativo não se materializa, radoxalmente, do espectador, um elemento
caindo, por vezes, no mero divertimento, quan- acessório, pois a ênfase está colocada nos efeitos
do não nas práticas exortativas, em que o po- colaterais, publicitários e comerciais, de modo
lítico decai no moralismo e na ideologia. A que as instâncias artístico-culturais aparecem
problematização da experiência artística é fun- mais pela “maneira” como se apresentam do que
damental, pois incide na contundência e na efi- pelo valor do objeto, da cena. Então, pergunta-
cácia estética das experiências, (des)idealizando se, por que ir ao teatro se os seus efeitos apare-
assim expectativas por vezes excessivas que pe- cem disseminados na televisão, no cinema, na

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publicidade? Se a teatralização foi generalizada? pensando na preparação de “espectadores para


Se o antigo espectador, se o protagonista da cena o futuro” como uma faceta privilegiada das pro-
moderna, se as intervenções contemporâneas, postas de democratização cultural, então um
perdem o élan quando integradas pelos disposi- pilar das ilusões revolucionárias que “tensio-
tivos das comunicações de massa? Se, portanto, navam” o país, o autor examina as nuances des-
a criticidade é abolida em favor da fantasia e do se interesse no Brasil e em outros países, como
lazer? Impõe-se, assim, a necessidade de se pen- Bélgica, França, Canadá, Estados Unidos, Aus-
sar em uma pedagogia do espectador, escavar trália. A idéia de “animação teatral” que surge
nos tempos atuais as possibilidades da presen- no período vai inovar as práticas, muito em evi-
ça, que se dá na intersecção de cena e sala, acre- dência no Brasil, de “teatro infantil”, pois redi-
ditando-se, ainda, que o diálogo representado é mensionam o imaginário encenado nos espetá-
terapêutico, pois re-potencializa a linguagem da culos e as relações entre palco e platéia. A
comunicação, o diálogo de todo dia. diversidade de práticas que surgiram daí em
A pedagogia do espectador pensada neste diante, até hoje, revelam a preocupação cultu-
livro, em consonância com sua referência em- ral que passou a ser dominante: não admitir que
blemática, o teatro épico de Brecht, não pode- a atividade propriamente teatral, o teatro como
ria deixar de acentuar o papel central da crítica, arte, fosse “fagocitada” pelo didatismo e pelo
do jogo de sensibilidade e entendimento, cen- dirigismo do sistema de ensino, que tende a re-
trado na atividade de decifração de signos que duzir o teatro a mero instrumento de facilita-
interceptam o individual e o social, articulando ção da aprendizagem. A análise das diversas for-
a cena como discurso, cujo resultado é o redi- mas de animação teatral, cada uma acentuando
mensionamento da subjetividade. Esta posição um aspecto, ou vários, da ação teatral como ação
estética leva ao destaque do diálogo na cons- educativa que decorre diretamente da forma, da
trução da cena, e ao dialógico na relação de linguagem, dos processos artísticos, é um dos
participação do espectador. Tirar partido desta pontos altos deste livro.
posição é o que intenta o autor-encenador, re- A pesquisa do autor é extremamente re-
fletindo sobre as possibilidades abertas do tea- levante para o que se passa na escola brasileira,
tro e experimentando em ato a eficácia dessa seja devido aos problemas de formação especí-
proposta. Empresa árdua esta: retirar o especta- fica dos professores que nelas trabalham com
dor de seu mutismo, de sua inapetência ao dis- teatro, seja porque, antes de tudo, as condições
curso, do seu sono rancoroso que evita o pensa- institucionais não permitem experiências desdo-
mento, para despertá-lo para o diálogo com a bradas no tempo escolar e expandidas na vida
diversidade, é tarefa quase heróica. Metamorfo- social dos jovens. Dada a situação, este livro
se interessante esta: o deslocamento do épico, apresenta uma contribuição inédita para se pen-
que antes de manifestar-se na cena, investe a sar e instituir o trabalho de formação de jovens
figura do encenador. Daí a posição afirmada espectadores, que não se reduz, por exemplo, à
pelo autor, para quem a pedagogia do especta- montagem de espetáculos. As informações tra-
dor se justifica “pela urgência de uma tomada zidas pela pesquisa das várias experiências es-
de posição crítica frente às representações do- trangeiras abrem um espaço de manobra inesti-
minantes, pela necessária capacitação do indi- mável para se articularem estratégias brasileiras
víduo-espectador para questionar os procedi- de mediação cultural, particularmente escolar.
mentos e desmistificar os códigos espetaculares Pensando a atualidade do teatro épico moder-
hegemônicos”. no, projetando-o na paisagem contemporânea
Referindo-se aos projetos e práticas tea- nem sempre receptiva à poética do distan-
trais que dos anos de 1960 aos 70 puseram em ciamento, dada a formidável re-assunção da
evidência as relações do teatro com a escola, intimidade burguesa, agora feita à moda do

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consumo, a proposta de “espectador épico” é vivência; interessado no sentido pedagógico das


uma alternativa que merece destaque no Brasil, práticas, o livro de Desgranges é uma notável
pelo seu alcance crítico e, o que é notável, pelo contribuição ao trabalho de resistência à bana-
caráter visionário de suas ambições culturais. lização da arte que resulta do uso abusivo de sua
Sedimentado teoricamente, em teorias e potência de mediação cultural para fins imedia-
reflexões estéticas e culturais; referenciado a ex- tistas, que freqüentemente produzem indistin-
periências exemplares, frutos de pesquisa e ção entre efeitos educativos e de consumo.

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