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‘Você vale mais do que mil
notas perfeitas.’
O que ele mais deseja no mundo é cortar suas próprias mãos.
O pulso seria melhor. O cansaço oco que se estende das pontas dos dedos
aos cotovelos desapareceria para sempre. O quão perturbado é isso? Deve
haver algo seriamente, perigosamente, errado com ele. Ficar deitado em seu
colchão à noite, pensando em cortar membros e usar os tocos ensanguentados
para escrever HÁ! nas paredes. Seria uma verdadeira cena de filme de terror.
E ele estaria livre. Porque, sem as mãos, ele é inútil para ela.
Para a Maestra.
A mãe dele.
Mas todo o devaneio de ficar sem as mãos exigiria agir em vez de
fantasiar, e ele não é tão bom nisso. Até pequenas estúpidas coisas – como
desviar espontaneamente para uma sorveteria a caminho da escola e comprar
à sua irmãzinha um doce de chocolate em vez de manter o estrito cronograma
exigido pela Maestra – é impossível. Ele nem tentaria algo assim. Por quê?
Não vale a pena sentir o gosto doce da liberdade?
Não.
Ele simplesmente não foi feito para se rebelar e assumir riscos.
Fantasiar é tudo o que ele sabe fazer. Sonhos doentios de mutilação,
aparentemente. E que mão ele cortaria? A direita? A esquerda?
Isso assusta Beck Keverich – a maneira como ele pensa às vezes.
O relógio digital mostra 5h12. Ainda escuro. Ainda frio. É sempre mais
fácil sair da cama no verão, mas agora que o outono envolveu seus dedos nus
e tortos ao redor do universo, seu despertador parece que está gritando no
meio da noite. E ele deveria ter acordado doze minutos atrás.
É surpreendente que a Maestra ainda não tenha sacudido a porta e rugido
diante de sua preguiça.
Beck levanta a cabeça dos travesseiros. Ele deseja poder se dissolver neles.
Ele dormiu noite passada? Seus pulsos doem como se tivesse feito
malabarismos com blocos de cimento. Ele desmaiou às onze? Meia-noite?
Seus dedos gemem, era meia-noite, seu idiota. Eles também dizem nos
aqueça e deixe-nos descansar hoje de manhã e até nós vamos nos enrolar em
um punho e bater na parede até quebrar. Seus dedos são estúpidos.
Beck esfrega as mãos, assopra os dedos dormentes e amaldiçoa
amplamente o universo – porque neste momento, é mais rápido do que pensar
sobre as profundezas de seu ódio à Maestra.
Então ele se volta ao objeto de sua destruição, sua vida, seu valor.
Ele bate a tampa do piano.
O Steinway é o único luxo no seu quarto. Não que tenha muito mais
coisas. Ele tem uma cama que parece um amontoado de pedras, persianas
quebradas nas janelas, um guarda-roupa com roupas, e sapatos de segunda
mão que sobrevivem apenas com fita adesiva e esperança – e um piano de
vinte mil dólares.
Como diz a Maestra, — Um bom piano é a única esperança que eu tenho
de que mein Sohn irá melhorar a sua schreckliche música.
Beck só passou a infância na Alemanha, mas permaneceu bilíngue por
necessidade – ele precisa saber quando está sendo insultado pela sua mãe.
Embora seus lábios e olhares furiosos também o ajudem a entender.
Schreckliche significa terrível. Horrível.
É um resumo sobre Beck.
Você é um pianista horrível. Sua música não tem futuro. Você não tem
talento. Por que você não toca mais rápido, mais claramente e melhor? Por
que você toca as notas erradas o tempo todo? Você está fazendo isso de
propósito estátocandomaldepropósitoseudesperdício...
— Você é péssimo, garoto — Beck diz calmamente para si mesmo. —
Então melhore.
É a sua conversa rotineira, para se motivar na escuridão fria do amanhecer.
Agora, de volta para as notas staccato. Quinta escala dupla. Sétimo acorde
diminuído. Notas desastradas. Treinar até seus dedos gelados caírem.
Ele acordará a Maestra – embora ela provavelmente já esteja acordada e
fervilhando que ele tenha acordado tarde – e a sua irmãzinha. Ele vai acordar
os vizinhos, que o odeiam, e ele fará os cães ao redor uivarem. Ele fará
tremer as ervas daninhas que estrangulam a calçada, o vidro quebrado de
alguma briga de bêbados e os sem-teto que se escondem no playground do
bairro (que não é seguro para crianças).
Às 8 horas da manhã, os dedos de Beck parecerão macarrão achatado e
suas pálpebras estarão revestidas de cimento.
E o tempo todo, ele vai sonhar com serrar suas mãos ou até mesmo seus
ouvidos.
De ir embora e nunca mais voltar.
Ele sonha com o silêncio absoluto – para que o minúsculo núcleo de
música dentro dele possa ser trazido de volta à vida. É incrivelmente
barulhento dentro de sua cabeça, cheia de canções de sua própria criação.
Mas como a Maestra não receberá nenhuma delas, tudo permanece trancado.
Toque a música que está no papel. Ninguém se importa com as músicas na
sua cabeça.
A porta do quarto se abre e sua irmãzinha aparece.
Joey é ajustada na velocidade máxima e no volume mais alto.
Ela é cansativa só de olhar.
— Falta quinze minutos para a gente sair! — Joey grita. Ela acredita
solenemente que Beck não pode ouvir mais nada quando está tocando piano.
Ele pode ouvir, ele simplesmente não pode ser multitarefa e responder.
Seu tornado de música desaparece e o silêncio derrama sobre os dedos de
Beck. Alívio. A essa altura, se Chopin entrasse no quarto, Beck o
estrangularia com um cadarço. Ele odeia essas peças que a Maestra exige que
ele aprenda.
São oito horas. Ele nem se trocou ou tomou café da manhã.
— Eu odeio segundas-feiras, — ele murmura e pega sua camisa da escola.
Pelo menos, quando se mora em um espaço do tamanho de um armário de
vassouras, tudo está ao seu alcance.
O rosto de Joey fica enrugado. — Não é segunda.
— Todo dia é segunda-feira. — Uma sequência perpétua de segundas-
feiras – ele vive em um filme de terror.
Seus dedos doloridos levam duas tentativas para conseguir fechar os
botões.
— Eu fiz o seu almoço. — diz Joey, escalando o batente da porta. — Um
almoço surpresa. Um delicioso almoço surpresa.
— Isso parece... terrível. — Beck amassa sua camisa de pijama e a joga no
rosto dela. Ela dá um chiado indignado e cai das paredes.
Para provar seu ponto – OK, tudo bem, só porque Joey adora um bom
espetáculo teatral – Beck cai de joelhos, aperta as mãos e geme como uma
andorinha empalhada. Ela está rindo antes mesmo que ele comece a implorar.
— Não me castigue. Por favor. O que eu fiz para merecer esse tormento?
— Não é um tormento! — Joey diz, indignada. — Sou uma cozinheira
talentosa. Mesmo quando você é um péssimo irmão por ter chegado atrasado
ontem.
Isso tinha sido culpa do seu professor de inglês, o Sr. Boyne, que teve um
surto de eu-me-importo-com-suas-notas-horríveis-por-isso-eu-vou-gritar-
com-você, que incluiu uma exposição exigindo de Beck a compreensão do
texto. A compreensão era, obviamente, inexistente. Daí o motivo de Beck
estar atrasado para pegar Joey.
O professor, cujo rosto o lembrava o de um caranguejo-rei, também lhe
deu um sermão sobre responsabilidades.
— Se eu fosse uma bruxa, eu o transformaria em sapo, — diz Joey,
confidencialmente, — porque todo mundo fica bravo quando precisamos ir à
cidade por você, e a mamãe disse que vamos ter que voltar lá em breve.
Beck se encolhe. Há um campeonato estadual chegando para estressar
todos. Oh que divertido. E fracassar? Para a Maestra ficar ainda mais em
cima dele? Não vai rolar.
— Mas eu te transformaria de volta um dia, — diz Joey. — Porque eu
gosto de você, mesmo que você sempre toque as mesmas notas repetidas
vezes, porque mamãe diz que você é um Schwarzkopf...
Beck cobre a boca dela. — Ok, acalme-se. Minha delicada auto-estima so
pode sofrer um pouco. A Maestra já está espumando pela boca?
Joey olha por trás da mão dele.
Ele remove. — Sinto muito por tocar tanto a mesma música. Eu estou
praticando. Para aquele grande concerto.
Pratique, ou a fúria da Maestra não terá limites.
— Se aproxime — diz Joey — e eu vou sussurrar eu te perdoo no seu
ouvido.
Beck faz sem pensar. Mas ela pula nele, uivando como um gatinho feito de
cactos, e Beck se afunda em um emaranhado de mangas de camisa e botões.
Ela é apenas sua meia-irmã, a Maestra tem uma afinidade por breves
relacionamentos que terminam em gritos e ataques, e nem ele nem Joey
conhecem seus pais, mas Joey é o punhado de luz em sua existência sombria.
Ele tem que amá-la duas vezes mais, para compensar o pecado de odiar sua
mãe.
Previsivelmente, o café da manhã é flocos de milho em um prato de
desaprovação.
Já houve um tempo em que a Maestra o cumprimentava com alegria?
Ela está sentada em um canto da pequena cozinha com uma decoração que,
provavelmente deveria estar na moda há trinta anos.
Quem Beck está enganando? Aquele tom de amarelo nunca poderia ter
parecido bom. Um único pedaço de torrada com manteiga queimada fica ao
lado de sua caneca de café. A mesa pode acomodar três pessoas, se ninguém
se importar com os cotovelos, mas, como de costume, ela é inundada com as
partituras da Maestra.
Ela ensina musicalidade e teoria na universidade. Beck se pergunta quantas
vezes seus alunos choram por dia.
Beck anda calmamente, dizendo a si mesmo que fez tudo certo.
Ele não fez nada para ela entrar em erupção. Vai dar tudo certo – claro que
vai.
Ele pega duas tigelas enquanto Joey bate em suas pernas, tagarelando
sobre como ela será uma chef quando crescer.
— E eu vou chamar meu restaurante de — ela respira fundo para gritar —
MELHORES COMIDAS DA JOEY. — Ela coloca a colher nas costelas de
Beck para chamar sua atenção. — Esse é um ótimo nome, certo?
— Ai! Sim. — Ele arranca a colher dela.
Ele enche primeiro a tigela de Joey com flocos de milho, o que o deixa
com o pó de flocos esmagado. Com o leite, se tornará lodo.
Ótimo. Ele coloca a tigela de Joey em sua mesa de plástico infantil rosa no
canto e come a dele enquanto está apoiado na geladeira.
Joey lança uma descrição detalhada de como será o avental do seu chef –
algo sobre ele ter a forma de um unicórnio – que ninguém presta muita
escuta.
Beck assiste a caneta vermelha da Maestra rabiscar em cima da música. O
trabalho dos alunos parece algo sendo assassinado.
Beck verifica a sacola plástica com seu sanduíche esmagado.
Joey tem uma coisa com fazer o almoço. Ele cheira e detecta manteiga de
amendoim, molho de tomate e – são cascas de macarrão cru? Talvez ele
prefira não saber.
— Você vai se atrasar. — A voz da Maestra é profunda e rouca.
Mesmo se ela não tivesse o temperamento de um touro, ela ainda é uma
mulher de aparência intimidadora. De ombros largos, um metro e oitenta,
com cabelos pretos e grossos como uma escova de cerdas – e ela tem dedos
longos, parecidos com aranhas, nascidos para o piano.
Beck engole os últimos pedaços de flocos de milho que caem em sua boca
e depois corre para pegar as mochilas escolares. Ele enfia sua lição de casa e
sanduíche intocados, mas leva mais tempo com Joey – verificando se ela tem
uma muda de roupa lá dentro, se suas botas de chuva estão secas e se sua
jaqueta arco-íris não está muito suja. Uma penteada no cabelo encaracolado,
sapatos nos pés e ele está pronto.
Joey saltita saindo do quarto, vestindo um macacão com um gorro rosa
sobre os rebeldes cachos pretos. Ela tira a jaqueta de Beck e dança em
direção à porta. A pré-escola é alegremente livre de regulamentos de
vestuário.
Beck usa a mesma camisa do uniforme há tanto tempo que parece mais
rosa do que vermelha.
Eles estão prestes a correr para a porta da frente quando a Maestra
embaralha os papéis e diz: — Preciso falar com você, mein Sohn.
Sério? Eles têm que fazer isso agora? Ela não podia simplesmente deixá-
los sair? Sem jogar insultos, pela primeira vez?
Joey chuta a porta da frente com suas botas brilhantes. — Vou te esperar lá
fora! — ela grita.
Beck volta devagar para a cozinha, os olhos no feio chão de azulejos. Se
ele não fizer contato visual com o tigre, ele não o comerá, certo? Um dia ele
vai simplesmente sair correndo, desafiá-la, pela primeira vez. Em vez de agir
como o filhote obediente, se preparando para o próximo chute.
— Ja, Mutter? — Ele usa o alemão como um apaziguador provisório.
A Maestra pousa a caneta vermelha e junta os dedos. Os tremores já
começaram - os tremores que destruíram sua carreira e a transformaram em
um tornado sobre a de Beck.
Dolorosamente e lentos os segundos passam como golpes no rosto de
Beck.
Ele tem que sair.
Ele precisa sair.
— Você acordou tarde, — diz a Maestra. — Não permito Faulheit em
minha casa.
— Eu não quis ser preguiçoso. — Sim, ele dormiu todos os doze minutos.
— Eu sinto muito. — Engula. É a única maneira de sair vivo.
A Maestra bufa. — Por que você é tão inepto em se dedicar e honrar seus
compromisso? Você quer que seu progresso fique estagnado? — Ela pega sua
caneca. Ela treme violentamente e o café derrama para o lado. — Ou essa é
sua tendência adolescente de rebelião ? — Ela zomba da palavra adolescente,
como se ela nunca tivesse sido uma. O que é altamente provável. Beck
sempre imagina que ela entrou no mundo como uma gigante amarga, pronta
para derrotar todo mundo com um piano.
— Eu sinto muito. — Beck resiste a olhar para a porta da frente para ver
até onde Joey foi. Ele não gosta de deixá-la atravessar a rua sozinha.
— Ja, claro que você sente muito. Um pequeno papagaio que sabe apenas
uma frase. Um papagaio preguiçoso que... olhe para mim quando falo com
você. — Sua voz cortante se eleva e ela se ergue, mais café escapando de sua
caneca e pingando no pulso.
Ele não quer fazer isso de novo. Ele vai se atrasar.
— Mutter, por favor, eu tenho que ir para a escola. — Beck lança um olhar
para o relógio.
A mão dela voa do nada e dá um tapa no rosto dele. O choque disso o leva
um passo para trás. Ele sempre esquece o quão rápido ela pode se mover.
— Não me desrespeite! — ela se grita. — A escola não é importante.
Estou falando com você. Isso é importante.
Beck não faz nada.
— A única coisa importante na sua vida é o piano. — Sua voz sacode o
gesso do teto. — O piano é vida. E toda vez que você descansa em vez de
praticar, você me envergonha. Você envergonha meu nome. Você não será
nada, Sohn, nada! Você está ouvindo?
— Sim, Mutter. — Beck fala com os sapatos.
— O meu conselho é uma piada para você? OLHE PARA MIM QUANDO
EU ESTOU FALANDO.
O pescoço de Beck se eleva, direto para encarar seus olhos zangados - e ela
joga o café direto no rosto dele.
Há um momento petrificante quando ele pensa que vai ser quente, que isso
vai queimar a pele dos seus ossos. Mas é morno. O café desliza pelo rosto e
ensopa o cabelo, a gola da camisa.
Beck engasga com algo – definitivamente não é um gemido, possivelmente
raiva – e aperta as mãos atrás das costas.
— Parece uma piada agora?
Beck se recusa a limpar o rosto. Ele fica parado e encontra os olhos dela
novamente.
— Não.
A Maestra abaixa a caneca vazia, ou seja, um movimento positivo, já que
ela não esmagou-a no seu crânio para finalizar a lição.
— É assim que eu me sinto, — diz a Maestra — quando você joga os
sacrifícios que eu fiz por você de volta na minha cara. Agora vá para a escola,
du Teufel.
Seu diabo.
Ele não pede para trocar de camisa - não vai ficar por perto, caso ela mude
de idéia e atire a caneca nos dentes dele - então ele apenas assente e corre
para a porta. Adeus, mãe, obrigada mãe, o que eu faria sem o seu útil
conselho de vida, mãe. Ele quer machucar alguma coisa. Mas tudo o que ele
pode fazer é fechar a porta da frente, silenciosamente, respeitosamente, virar-
se e dar um soco na parede de tijolos.
Mas não muito forte.
Ele não pode estourar a mão – ou ela realmente o mataria.
O sangue borbulha nos nós dos dedos enquanto ele caminha pela entrada e
pega Joey, que está colhendo ervas daninhas e dentes de leão ao longo da
trilha quebrada.
— É para minha professora. — diz Joey, orgulhosa.
— Tenho certeza de que ela amará aquelas ervas daninhas afetuosamente
colhidas. — Beck flexiona a mão: idiota, idiota, idiota. Mas ele está satisfeito
por sua voz permanecer nivelada, gentil.
Ele nunca deixará nada afetar o jeito como ele fala e trata Joey.
Joey torce o nariz. — Por que você está molhado?
Beck move a mão para esconder o sangramento. — Foi apenas uma piada
— diz ele.
Talvez realmente seja uma piada, tudo isso.
A vida dele.
Essa escola.
Esse lugar.
Talvez se ele apenas risse, nada disso importaria tanto.
Idiota. Quem ele está enganando? Nada será diferente, então porque pensar
demais?
Beck adoraria deixar Joey no portão da escola – deixa-la e ir embora – mas
ele se recusa a ser esse tipo de irmão mais velho.
Alguém precisa levá-la para dentro, admirar seus trabalhos da escola, todos
decorado com brilhos e adesivos de frutas, e as nove criações de arte que ela
esqueceu de levar para casa. Ele sempre sai com glitter nas mãos. Ele tem
certeza de que o glitter é uma substância maligna que é atraída
magneticamente pelas pessoas que mais o odeiam.
O truque é sair antes que a professora da pré-escola chegue.
Ela sempre sufoca Beck com perguntas que ele não pode responder – o
lanche de Joey não está saudável, onde está a fruta dela; ela precisa de
sapatos apropriados, botas de chuva são inaceitáveis; clipes de papel não são
bons substitutos para presilhas de cabelo; quando a mãe dela vai aparecer
para conversar; Joey tem sido muito agressiva com as outras crianças; está
tudo bem em casa?
Beck sai antes que a professora ataque. Ele não quer que ninguém note sua
camisa úmida de café.
Está tudo bem em casa? Claro que está. O piano extremamente caro é a
razão pela qual sua irmã não come tangerinas ou tem presunto fresco no seu
sanduíche. A mãe dele não quer conhecer os professores de seus filhos
insuportáveis. Ele está fazendo o melhor que pode, está bem?
Ele está atrasado para as aulas. Atrasado, atrasado, atrasado. O que não
surpreende absolutamente ninguém. A escola dele é onde as células cerebrais
murcham, onde ninguém dá lição de casa e metade da turma dos adolescentes
de quinze anos nem consegue ler direito.
Sério. Ele nem é o pior. Ele consegue entender o básico, depois de
trabalhar muito, e enquanto todo mundo grita com os professores, Beck
escreve música.
Principalmente em sua cabeça. Ele é péssimo com anotação.
Mas fechar os olhos, descansar o queixo nos braços e criar, é a única
maneira de passar o dia.
Ele não pode se importar com mais nada. Não pode.
A música em sua cabeça é o seu único alívio, a única coisa com que ele se
importa apaixonadamente. Bem, isso e Joey. Se ele se esforçar para se
preocupar com outras coisas – como a maneira como a Maestra pensa a
respeito dele, como ele falha na escola ou o que ele realmente quer fazer com
sua vida –, ele ficará doente. Sua pele se rasgará como papel velho e o mundo
verá, como seu esqueleto é feito de desejos sombrios e sonhos macabros. Eles
saberão que o coração dele bate forte ao ritmo que a Maestra manda, porque
ele está com muito medo de fazer o contrário.
Mas a pior parte?
Eles verão o vazio dentro dele.
Ser pianista está costurado a força em sua pele, mas seus ossos são
tatuados com os sussurros de você é falso, você é falso.
Inglês é a pior aula, porque o Sr. Boyne se recusa a desistir de qualquer
aluno. Ele ainda faz com que Mike Olhos Espremidos – o cara poderia no
mínimo consertar seus óculos – leia em voz alta quando ele não consegue
nem soletrar o próprio nome.
Beck rabisca notas musicais sobre sua carteira e sente seu lápis afundar nas
rachaduras da mesa. Alguém esculpiu sua opinião sobre a escola por toda a
tampa. A opinião deles não é tão perturbadora quanto o fato de terem levado
uma faca para a escola. Beck espera que o garoto tenha se formado e ido
embora. Já deve estar na prisão.
— ...O que será bastante trabalhoso para a maioria de vocês, — diz Sr.
Boyne. — Mas é por isso que o emparelhamento não é aleatório – não,
Avery, não haverá troca. E Chris, se você pudesse fingir que essa aula é
interessante o suficiente para ficar acordada, eu ficaria muito grato.
Emparelhamento? Projetos em grupo? O mundo decidiu ser cruel hoje?
Beck estava tão ocupado sendo mentalmente ausente que ele não tem nem
idéia do que é o projeto.
Boyne anda pelas fileiras, recitando nomes. — Mova as mesas, se
precisarem. Silenciosamente. SILENCIOSAMENTE.
As crianças jogam mochilas e livros, barulhentamente, ao encontrar seus
parceiros. A maioria está gritando perguntas ou reclamando sobre a escolha
de parceiros.
— Não são permitidas trocas, Ellen. Não haverá tro – não, SEM TROCAS.
Todo mundo fique em silêncio por um minuto para poder ouvir: NÃO
HAVERÁ NENHUM TIPO DE TROCA. Sim, isso se aplica a você, Avery.
— Sr. Boyne continua a falar os nomes. — Emeka e Abby. Stephanie e
Noah. Ajeet e – não consigo entender minha própria letra. Oh Mike. Troque
de assento. Faça silenciosamente.
Faça agora.
Beck está suando.
Boyne faz uma pausa na frente da sua carteira e levanta uma sobrancelha
para os rabiscos. — Como sempre muito interessado na minha aula, Sr.
Keverich.
Beck deseja que tivesse prestado atenção suficiente para saber por que ele
está sendo acorrentado à alguém e condenado à morte.
— Beck e August. — Sr. Boyne passa a passos largos.
Beck propositadamente não presta muita atenção nas outras pessoas da sua
sala, então seus nomes e rostos são uma confusão para ele. Ele não é nada
como eles. Não tem telefone, internet e não pratica esportes; para evitar
machucar suas mãos de pianista. E considerando que ele está sempre perdido
em sua cabeça e na sua música, todos desistiram de falar com ele, de qualquer
maneira.
E também há a regra da Maestra: sem amigos, sem distrações.
— O piano vai te fazer feliz, — ela sempre diz — enquanto um amigo
pega e pega e pega e deixa você sem nada.
Mas quando uma garota alta e bronzeada vestindo uma camiseta que diz:
Salvem As Baleias, aparece na frente da mesa dele, Beck sabe exatamente
quem ela é.
August Frey.
Ela é o tipo de garota que veste camisas feitas à mão por cima do seu
uniforme escolar e dá palestra sobre rãs – não que Beck tenha parado para
ouvi-las, ele só ouviu falar sobre elas – tem o cabelo loiro acinzentado e
nunca usa sapatos.
Ela pega a mesa desocupada ao lado dele e despeja seus livros, com
anotações reais sobre a tarefa. Beck se inclina para espiar, mas a letra dela é
pequena e apertada, e ele não gosta tanto de ler de lado. Ou de frente.
Ela dá um pequeno sorriso e Beck olha para baixo. Ele nunca sabe ao certo
como reagir às pessoas da sua classe. Se ele sorrir, eles podem achar que ele é
amigável. E aí ele terá que usar uma cartolina dizendo: Se eu fizer um amigo,
minha mãe vai me matar.
Sr. Boyne termina de sortear os pares e volta para frente da classe. Ele
sempre usa uma gravata borboleta com pequenos padrões de frutas. Hoje são
bananas. Que apropriado.
— Tudo bem, olhem para mim. Todo mundo ouvindo – isso vale para
você, Keverich.
Beck pisca. Por favor, não esperem que ele use seu cérebro. Ele está de pé
desde às cinco da manhã, tocando escalas e arpejos, e mataria por uma soneca
de nove horas.
— Agora, — diz Sr. Boyne — vocês foram emparelhados de acordo com
as suas habilidades ou a falta delas. Um aluno que está bombando com um
aluno que se importa em passar de ano. — Ele olha para todos com atenção.
— Mas isso não é justo! — alguém lamenta.
— É uma grande motivação para trabalhar duro, — diz Sr. Boyne. — Ou
ainda mais. Ou, pela primeira vez neste ano. Vocês estão tendo a chance de
melhorar suas notas, enquanto estão sendo tutelados. Ninguém pode
desperdiçar essa oportunidade.
A boca de Beck fala por acidente. Definitivamente um acidente.
Desde quando ele fala em classe?
— Mas para estar falhando, — diz ele — significa que estamos tentando
em primeiro lugar.
Risadinhas. Um olhar sombrio do Sr. Boyne. Um curioso da sua nova
parceira de inglês.
— Qualquer pessoa com algo inteligente a dizer recebe uma visita ao
escritório do diretor. — Sr. Boyne ajeita a gravata borboleta.
— E então o diretor conversará com seus pais.
Oh, que assustador. Como se algum dos pais se importasse. A maioria
desses adolescentes não são nem alfabetizados. Daqui à um ano, estarão indo
trabalhar no McDonald’s mais próximo.
Exceto Beck, é claro. Enquanto eles estão lutando por um emprego de
baixa renda, ele será um pianista famoso.
Ótimo.
Sr. Boyne limpa a garganta como se esperasse que a turma se acalmasse.
Não acontece. Ele levanta a voz e balança nos calcanhares, como se,
tornando-se mais alto, eles prestariam atenção. Não acontece.
— O objetivo, naturalmente, é a redação. Serão necessárias duas mil
palavras, ou seja mil para cada um, com detalhes, citações e exemplos.
Exemplos de quê?
— O prazo é de duas semanas, o que é bastante tempo para conhecer seu
parceiro. Vocês podem se encontrar depois da escola ou, oh, organizar isso
entre si.
Espera, encontrar depois da escola? Isso não pode acontecer.
Beck sente como se estivesse sendo asfixiado.
— Lembrem-se do tema. A redação deve ser uma comparação detalhada de
duas opiniões opostas...
— E se concordarmos com tudo? — alguém grita.
— Então, casem-se. — Diz Sr. Boyne sem pestanejar.
A classe ri.
— Vocês encontrarão algo, — diz Sr. Boyne — e lembre-se de que
hobbies e interesses não são permitidos. Você estará contrastando visões
políticas, morais ou religiosas. Apresente-me um ponto de vista convincente.
Seja respeitoso com seus parceiros. Seja inteligente. — Ele faz uma pausa e
esfrega a gravata borboleta novamente. — Seja inteligente, se puder.
O Sr. Boyne parece pensar que falou tudo. — Agora, temos dez minutos
antes do final deste período, então conheça seu parceiro e comece a discutir
os tópicos mais importantes para sua redação. — Ele se senta atrás de sua
mesa, aparentemente terminando com tudo e todos. Para sempre.
Beck tem perguntas. Em primeiro lugar, como ele vai encontrar tempo para
fazer isso? Depois da escola? Vamos lá! E segundo, contrastar opiniões
políticas? Ele não tem opiniões. Ele não tem nada além de um piano e dedos
doloridos.
August passa o cabelo por cima do ombro e empurra a mesa para mais
perto da dele. Ela então se senta e descansa o queixo no punho. O resto da
classe começou a conversar alto – provavelmente sobre algo improdutivo –
mas August parece estar bastante focada.
Focada diretamente em Beck.
Isso é tão ruim.
— Oi — diz August.
— Beck — diz ele, então se sente estúpido porque o Sr. Boyne berrou os
nomes de todos da classe. Ela já sabe.
— É diminutivo de que? Beckett?
— Algo parecido. — Seu nome completo é um tópico que ele nunca tocará
com ninguém. Nunca.
Ele mencionou nunca?
Sorriso de August é como uma ninfa manhosa. Beck não para de olhar para
a camiseta impressa à mão. Como ela pode se safar enquanto ele é detido por
atraso?
— Uau, acalme-se, — diz August. — Estou impressionada com todas as
informações que você está jogando para mim.
Beck se sente preso. O que ele diz? — Essa tarefa toda é estúpida. —
Espera. Ele disse isso em voz alta?
— Eu não vou discordar. — August se inclina para a frente na mesa. Suas
mãos estão cobertas de rabiscos de canetinha azul e seus olhos são tão
intensos quanto o oceano. Beck decide evitar olhar para eles. Ela pega uma
canetinha laranja e bate na mesa dele.
— Como você se sente sobre tatuagens?
— Como isso é algo político? — Beck diz.
— Moral. — August abre a tampa e acrescenta um redemoinho.
A laranja está quase misturado contra sua pele profundamente bronzeada.
— Alguns lugares não o contratará se você estiver tatuado.
— Isso parece... errado.
August suspira. — Concordo. E não devemos concordar. Então, sua vez,
sugira algo, garoto da música.
Beck congela. Como ela – ela não poderia saber. Ele nunca soprou uma
palavra sobre piano para ninguém e ninguém o pegava usando fones de
ouvido. Ela não podia saber sobre o piano. A menos que... ele olha para sua
carteira, rabiscada com notas musicais. Ele coloca a mão machucada por
cima.
— Você deu um soco em alguém no caminho? — August diz.
Se pelo menos fosse isso.
— Eu não sou um garoto da música. — ele diz rigidamente.
Pelos sons que a parte traseira da classe está emitindo, todo mundo
considera que esta é como uma festa para conhecer novas pessoas. Metade
das pessoas, já têm seus telefones em mãos.
— Podemos contrastar nossos gostos musicais – isso também pode ser
moral. — August retira uma canetinha verde. — Você sabe, como as pessoas
pensam que heavy metal é do demônio? Bem, meu pai pensa. — Ela bufa um
pouco. — Ele estava em uma banda de rock quando tinha a minha idade e
agora faz yoga. O que você ouve?
— Nada. — Ele prefere se estrangular com uma corda de piano à dizer a
ela que gosta de música clássica. Que tipo de garoto de quinze anos admite
ser obcecado – à força ou por escolha, não importa, quando é durante a vida
toda – com música clássica?
O sinal toca e a turma corre em movimento, todo mundo pegando malas e
gritando para se reunir no fim de semana.
— Ótimo, — diz August. — Eu já sei praticamente tudo sobre você.
Olhando para o rosto redondo e os olhos brilhantes, Beck não a teria
escolhido para o tipo sarcástica. Mas ele dificilmente é um juiz de caráter.
— Eu sinto muito. — Sua voz sai muito alta, estrangulada. — Não posso
me encontrar, quero dizer. Não vai dar certo...
— Não é opcional. — August se inclina para a frente, mostrando a
canetinha ameaçadoramente. — Temos duas semanas e não vou falhar em
uma tarefa só porque você é preguiçoso.
Preguiçoso.
Deve ser verdade, se o mundo inteiro concorda com isso.
Beck tenta manter o rosto neutro. — Eu tenho que levar minha irmã para
casa. E depois eu tenho…
Que tocar piano até que meus dedos sangrarem.
Os olhos de August se iluminam. — Eu vou com você. Estou na Avenida
Gully. Número onze.
E ela mora tão perto. Sério? O universo não poderia lhe dar uma pausa?
Ele não está pedindo muito.
— Trinta e dois, Dormer. — ele murmura.
— Impressionante, somos praticamente vizinhos. Bem, mais ou menos três
quarteirões.
— Eu não posso.
August olha para ele duramente. É como ser desaprovado por um oceano
inteiro. Mas que escolha ele tem? A Maestra iria...
Ele escolhe não imaginar a reação dela à uma colega de classe entrando na
casa dela com um sorriso travesso e olhos brilhantes. Os olhos de August
dizem que ela nunca foi abandonada em toda a sua vida. Sortuda.
— Posso fazer uma pergunta? — A canetinha de August bate em sua mesa.
A classe esvazia-se ao redor.
Ele se contorce, mas deve parecer um aceno de cabeça, porque ela diz: —
Por que você cheira a café?
— Eu amo tanto que uso.
August cutuca sua bochecha pegajosa. Ele quase se encolhe, quase. Ótimo,
ela não tem limites pessoais.
— Fascinante. E você sabe o que eu amo? Boas notas. Eu amo tanto que às
uso – não, sério. Vou fazer um vestido para o baile com todos os meus
trabalhos A+. — Ela fecha a tampa da canetinha – Alívio, a arma está
protegida. — E estou disposta a permitir o seu fetiche. Vou lhe dar um café
com canela depois que isso estiver pronto.
— Suborno? — Ele não tem certeza de como se sentirá sobre cafés depois
desta manhã. Não há nada como esse medo doentio de se perguntar se você
vai queimar.
— Você pode até derramar na cabeça e eu não vou falar nada.
— August sorri e Beck não pode decidir se é sinistro ou amigável.
Provavelmente ambos. Simultaneamente?
— Talvez durante o almoço, — diz Beck. — Ou indo e voltando da escola.
Mas não depois da escola porque – eu tenho uma irmãzinha. Elá está na pré-
escola.
— Você continua dizendo isso, — pensa August. — Deve ser uma criança
que precisa de muita proteção. Ela não pode assistir televisão enquanto
escrevemos uma redação?
— Eu sinto cheiro de filha única.
August levanta suas mãos simulando rendição. — Me pegou. Eu era uma
criança tão perfeita que meus pais decidiram não arriscar um desastre
secundário.
Beck tem um comentário malicioso sobre ela ser tão horrível que seus pais
pararam de tentar reproduzir, mas o Sr. Boyne paira sobre sua mesa, com sua
gravata borboleta de banana a centímetros do nariz de Beck. — Você não tem
detenção na hora do almoço, senhor Keverich?
Beck reúne seus papéis e August pega sua mochila do chão.
— Encontro você na pré-escola. — August diz, e sai correndo pela porta.
Beck fica com a boca ligeiramente aberta, a cabeça girando e a percepção
de que ela não aceitará sua grosseria como um não. É melhor ele se esforçar
mais. Certamente ele pode canalizar sua Maestra interior e...
Não.
Ele prometeu a si mesmo que seria sempre educado com qualquer um,
todos, para evitar ser como a Maestra.
Sr. Boyne bate a mão no ombro de Beck. — Eu acho que vocês dois vão
passar um tempo interessante juntos. — Ele sorri e depois empurra Beck em
direção à porta.
Interessante? Mais para desastroso.
Se Beck chegar mais cedo na pré-escola...
Se August esquecer...
Se o mundo acabar...
Mas Beck nunca teve sorte e, mesmo depois de ir para a pré-escola em alta
velocidade e encontrar Joey em tempo recorde, August Frey os espera no
portão. — Ei, Beck! — Ela acena amplamente, caso Beck tenha esquecido ou
algo assim.
Ele deseja poder ignorar.
Joey espia os braços magros de August acenando por cima do muro e dá
um puxão forte na mão de Beck. — Como você arranjou uma namorada,
Beck?
Beck é microscopicamente ofendido. — Como assim como? — Bem, você
é um menino e os meninos são nojentos. — diz Joey.
Beck luta com o portão da pré-escola, a trava para crianças também
funciona com adultos, devido à ferrugem e falta de conserto.
— Ela não é minha namorada. Ela é, nós somos, é para a escola.
Então não fique tagarelando o caminho todo para casa, ok?
Mas no segundo em que estão fora do limites da pré-escola, Joey tira a
mão da de Beck e vai direto para August. — Por que você é namorada de
Beck?
Ele gostaria de desaparecer agora.
Para uma filha única, August surpreendentemente, não é condescendente
com crianças pequenas. Ela não agacha ou acaricia a cabeça de Joey. Em vez
disso, ela aponta para o colar azul de macarrão de Joey e diz: — Eu amei. —
Ela sorri para Beck. — Eu também gosto de café, e Beck cheira à café, por
isso vou segui-lo até em casa.
Joey faz uma careta. — Ah, então é por isso que ele jogou café na própria
cabeça.
Beck pensa em tapar a boca dela, exceto que isso lhe renderia um chute.
Ele ajeita as alças da mochila e começa a andar, sabendo que Joey o seguirá e
esperando que August não.
— Beck e eu estamos trabalhando em um projeto da escola. — August diz
atrás dele.
As botas de Joey batem no chão irregular. — Que projeto?
— Projeto Faça O Beck Sorrir.
Beck gira, caminhando de costas e sorri. — Feito. Podemos nos separar
agora.
— Isso foi doloroso só de assistir, — diz August. — Você realmente
deveria praticar isso em casa. Sozinho. Onde você não possa assustar
crianças.
— Ha ha. — Beck se vira. — Sério, podemos trabalhar na sala de aula ou
outro dia. Mas agora não. Tchau.
Joey começa a correr e pega a mão de Beck. Ela raramente faz isso hoje
em dia, já que é tão velha e capaz, como ela o informa regularmente. Seu
sussurro é um grito cheio de saliva. — Ela está sendo malvada com você?
Você deve dizer para as pessoas malvadas irem embora.
Beck encolhe os ombros. Eles chegaram a um cruzamento, então ele
verifica o tráfego e depois olha para ver se August ainda está lá.
Ele poderia jurar que a contração muscular em seus lábios era divertida.
— Eu vou ajudar você. — Joey limpa a garganta. — Vá embora,
Schwachkopf!
— Uau. — August levanta uma sobrancelha. — A pré-escolar acabou de
me xingar em alemão?
— Não, ela só te chamou de idiota. — Beck pega a mão de Joey e sai
correndo pela rua. — Isso foi cruel, Joey. Sinta-se livre para fazer novamente.
Mas August corre atrás deles e chega na calçada com um salto, como se
nenhum insulto em alemão pudesse arrancar o sorriso de seus lábios. Se ao
menos Beck fosse tão resistente.
— Tão amigável, — diz August — tão gentil. É adorável sair com os
Keverich.
Imagine deixá-la conhecer sua mãe.
A discussão desaparece enquanto caminham. August não apresenta
possíveis tópicos para o trabalho, mas caminha alegremente, como se
estivesse saindo com um amigo de verdade.
Beck não sabe como lidar com isso. Ele fez o possível para assustá-la, sem
ser muito rude. Não deveria ser o suficiente agir como um idiota?
Enquanto atravessam o playground, cheio de garrafas de cerveja quebradas
e mendigos, August informa que ela não sabia sobre esse bom atalho para
casa. Se por bom ela quer dizer totalmente aterrorizante, já que ninguém sabe
quando alguém vai aparecer com uma faca e exigir o seu dinheiro.
Ele começa a se sentir constrangido de sua rua, onde nenhum gramado é
cortado e o vizinho está cultivando maconha entre as berinjelas, mas depois
fica furioso consigo mesmo. August mora por aqui também. Ela não é uma
esnobe privilegiada. E quem sabe?
Talvez seus pais sejam hippies fumantes de ervas que mal estão presentes
em sua vida. Ele não sabe nada sobre August.
E continuará assim.
Para continuar seguro.
Com um gritinho, Joey corre em direção à casa. Uma das janelas está
quebrada e a caixa de correio é um balde de plástico com uma pedra dentro,
desde que alguém roubou a deles. Quem rouba caixas de correio?
August espia curiosamente a casa enquanto Joey abre a porta e desaparece
dentro, gritando: — CHEGUEI!
Como ele diz tchau-você-nunca-vai-ser-convidada-para-entrar?
— Bem, vejo você amanhã. — diz Beck.
— Não esqueça que estou na Gully, número 11! — August diz.
— Se você quiser dar uma passada e começar a trabalhar. Porque é melhor
você começar a acreditar que vamos fazer esse trabalho direito.
— Aham. — Beck chuta a areia, onde falta uma laje de concreto.
— Sinto muito, eu acredito em você, mas... isso não vai funcionar.
Sinto muito pela sua nota, mas o Sr. Boyne não vai bombar você só porque
eu sou um inútil.
— Cara, você poderia ser expulso. Vale, tipo, metade da nota.
O que ela não diz é e todo mundo sabe que você não tem a outra metade
— Não importa. — A Maestra provavelmente nem o mandaria para uma
nova escola. Ele teria mais dezoito horas por dia para praticar! Beck
estremece. — Minha família, minha mãe, é complicada.
— Oh. — Finalmente, seus olhos nublam e seu sorriso some.
Seu sorriso é tão confortável, tão fácil, que quando as rugas cruzam sua
sobrancelha, Beck se sente como um monstro. Alegria é irritante, mas
combina com algumas pessoas. Algumas pessoas nascem para a luz do sol,
correndo pela praia com flores no cabelo e com um grande sorriso no rosto.
— Você não tem permissão para convidar amigos para sua casa? —
August diz.
Beck está atrasado para seu treino à tarde. E depois do que aconteceu de
manhã? Pode ser catastrófico. A Maestra não tem problema em descontar sua
frustração em Joey, apenas para punir Beck.
— Algo assim. — Ele deseja ser invisível. Um garoto invisível com uma
música invisível na cabeça.
Ele se vira, puxando a mochila como um cobertor de segurança e se dirige
para casa. Ele não olha para trás. Mas ele espera que o sorriso dela retorne
quando ele se for, porque ele é como um monstro que rouba sorrisos.
Ele está fazendo o que sua mãe quer. As pessoas abandonam você, o piano
não.

Dez minutos antes do ônibus da Maestra chegar e ela descer com mais papéis
para corrigir e começar a xingar os idiotas não-musicais, Beck chama Joey
para uma sessão de união fraternal.
— Você não pode fala nada sobre a August. — diz ele.
Joey está sentada no chão, operando seus bichos de pelúcia.
Eles ocupam, pelo menos oitenta por cento do chão. O resto está cheio de
macarrão colorido ou com colagens de palitos de picolé.
— August, sua namorada? — Joey puxa o recheio de um urso de aparência
cansada com sua tesoura médica azul de plástico.
— Ela não é minha namorada. — Se ela não parar de ficar obcecada com
isso, Beck está condenado. — Ela é apenas… uma amiga. — Se caminhar ao
lado de alguém no caminho de casa e insultá-la, conta como amizade. —
Como quando você sai com a Bailey.
— Não gosto mais de Bailey — diz Joey, rígida. O pobre urso recebe um
duro golpe extra com a agulha de mentirinha. — Nunca mais vou falar com
aquela Schwachkopf.
Ele levanta as mãos em sinal de rendição. — OK. Desculpa. Eu não sabia.
Mas, por favor Jo, estou implorando. Eu farei qualquer coisa.
— Posso comer chocolate?
Claro que ela tinha que pedir por isso. Onde ele vai conseguir chocolate?
Ele nem tem dinheiro. — Tudo bem, tudo bem, — diz Beck. — Eu vou te
trazer chocolate. Portanto, nunca mencione o nome de August... — Ele
começa a sair e volta. — … ou que você tem um segredo... — Ele hesita. —
… ou que eu vou te trazer chocolate.
Joey sorri.
August não é amiga dele, por mais que ele queira um. Eles nem se
conhecem.
Ninguém pode conhecer Beck.
Ele desaparece de volta ao seu quarto, se dissolve no piano. Ele tem uma
pasta inteira de études de aprender, e não apenas quaisquer études, mas as
que a Maestra cresceu performando com aclamação. É uma tortura, porque
ele não consegue tocá-los como ela. No entanto, ela tem certeza que ele
deve? E ele tem que fazer melhor que ela? Ele suspeita que, como ela não
pode mais tocar, seu sonho de vida é fazer com que ele seja ela, para que o
mundo não se esqueça da incrivelmente talentosa Magdalena Keverich.
Seu sonho está fadado ao fracasso.
Ele toca como louco a tarde toda, apesar da dor nas juntas. Ele nem mesmo
toma banho, já está acostumado a cheirar à café, mesmo que, o cabelo
pegajoso seja desagradável. Ele prefere acertar os études e não precisar ouvir
a Maestra queixando-se da sua falta de talento enquanto esquenta peixe
empanado e cozinha as ervilhas congeladas.
Notas.
Acordes.
Escalas.
Ele inunda a casa com músicas que surpreenderam o mundo há cem anos
atrás. Seus dedos se contorcem em padrões complicados e seus polegares
falham quando ele mais precisa deles. Mas, tirando a fúria da Maestra, ele
deve isso à música: tocá-la com perfeição.
Ele pensa em August.
Como seria ter uma amiga.
Como seria encorajar seus iluminados sorrisos em vez de destruí los.
E se ela nunca tivesse sido rejeitada com tanta franqueza antes? E se ela
tivesse vivido sua vida de alguma forma alheia à crueldade do mundo, e
então ele aparecesse?
Pare de pensar assim. Ela não é Joey. Ela tem a idade dele e estuda na pior
escola do estado, não pode estar tão inocente.
Seu dedo escorrega durante o étude e ele amaldiçoa o piano.
Amaldiçoa a si mesmo.
Ele bate nas teclas e elas uivam com o caos de Chopin em vez do seu.
Acordado às cinco.
Tocando piano até as oito.
Cozinha cheira a café e ameaças.
Ele segura a tigela de cereal com os dedos doloridos.
Fique quieto e o dragão não acordará.
Odeie tudo silenciosamente.
Beck acha que August abriu uma ferida antiga. É fácil se arrastar pela vida
com os olhos fechados e aceitar o ódio, até que alguém o force a olhar para
cima e perceber que, enquanto todo mundo está dançando, a vida o está
cortando com cacos de vidro. É sufocante. É injusto.
Joey empoleira-se na bancada, fazendo sanduíches, usando um chapéu de
chef e um avental todo desenhado. Ela usa creme de milho, bolachas velhas e
muita maionese.
— Obrigado, Joey. — Ele envolve ambos os sanduíches em papel alumínio
e tenta não pensar muito sobre isso.
— De nada, Schwachkopf — ela diz alegremente.
Ele sente certa amargura, sabendo que a única razão pela qual ela usa esses
insultos e maldições é porque a Maestra os grita com Beck. Se ele tocasse
melhor, Joey não seria um papagaio, gritando xingamentos que nem mesmo
entende.
— Quando eu for chef, — Joey anuncia, — eu vou ter uma gigante faca
rosa. — Ela faz um movimento de cortar. — Então eu vou cortar as coisas.
BAM.
— Que tal uma colher rosa? — Beck diz. — Ou um batedor?
Joey dá a ele um olhar de você é um idiota, por que eu tenho que aturar
você? — Você pode cortar as coisas com um batedor, Schwachkopf? Eu
quero uma faca.
Claro que ela pensa assim. Pequena, assustadora e violenta criança.
Beck se pergunta se ele alguma vez pensou o que ele queria ser quando
crescesse na idade dela. Todas as memórias dele são sobre o piano. Sentado
no colo da Maestra, quando suas mãos ainda não tremiam, enquanto ela
guiava seus dedinhos pelo piano. Quando ele tinha a idade de Joey, ele já
estava passando horas do dia no piano.
Mas Joey tem uma infância decente. E atualmente é mais lucrativo para a
Maestra usar a Joey como forma de ameaça, para fazer Beck praticar mais.
Ou talvez a Maestra também infligirá o piano a ela um dia.
Beck deseja poder fazer alguma coisa. Proteger Joey? Salvá-la?
Mas ele é tão patético, nem sequer consegue comprar chocolate para ela,
ou um presente de aniversário adequado, ou até mesmo dizer que odeia
quando ela o chama de Schwachkopf.
Ele é um covarde.
Eles estão prestes a sair para a escola quando a Maestra chama. Beck range
os dentes. Ele praticou desde às 5:03. Ela não tem nada para reclamar esta
manhã.
E se Joey deixou escapar algo sobre August...
Ela prometeu.
Mas tem cinco anos.
Beck se arrasta de volta para a cozinha. Ele se pergunta o quão quente está
o café dela hoje.
— Ja, Mutter? — ele diz cansado.
A Maestra está em seu lugar de rotina à mesa, com os papéis manchados
de vermelho espalhados diante dela. Manchas roxas sob seus olhos dizem que
ela não está dormindo bem - mas quem consegue nesta casa, com o piano
tocando a toda hora do dia?
— Eu tenho que dar aulas particulares mais tarde, — diz ela em alemão. —
Não demore a caminho de casa. Volte e pratique imediatamente.
Beck solta a respiração e mil pedaços de pavor saem de seus ombros. —
Sim, Mutter, é claro.
Ele está do lado de fora antes que ela perceba que não criticou a sua prática
desta manhã. A porta bate atrás dele e ele grita com Joey para esperar - ela já
saiu andando, mas também está usando um colar de sinos de Natal, então
localizá-la não é difícil. Quando ele sente no ar.
Algo parece errado.
Algo parece terrivelmente errado August Frey está sentada na sarjeta do
lado oposto da rua. Ela fica de pé como se tivesse formigas em sua calça e
acena com animação. O que ela está fazendo aqui? Ela está zoando com ele?
Ela não está usando sapatos, apenas tornozeleiras azuis e canetinhas, ou seja,
rabiscos nos pés.
Ela não pertence a esta rua. Ela não pertence à vida dele.
Os olhos de Beck desviam-se e ele sobe a rua, em apenas um fôlego. Ele
pega a mão de Joey e praticamente a derruba em um esforço para andar mais
rápido.
August os alcança saltitando. — Bom dia família antissocial!
Ela não vai desistir, não é?
Beck murmura um olá e olha para o chão.
August anda ao lado dele, uma primavera desconcertante a cada passo.
Pelo menos ela está vestindo o uniforme como uma aluna (quase) normal, sua
camisa pólo vermelha está fazendo a de Beck parecer mais rosada do que o
habitual.
Beck só diminui o ritmo quando eles dobram a esquina e não há mais
como a Maestra vê-los. Não que ela tenha o hábito de espiar pela janela para
ter certeza de que estão em segurança. Entre as 9:00 e as 15:00, eles não são
da sua conta.
— E eu pensava que eu era apressada, — diz August levemente. — Você é
tão estranho que me faz parecer normal.
Ele aposta que nenhum deles sequer experimentou o normal na sua vida
inteira. Beck está tão além do normal, que nem consegue se concentrar no
fato de que ele tem uma garota bonita determinada a sair com ele.
Bonita? Bem, ela meio que é. Ela tem sardas, aqueles olhos oceânicos e
parece que poderia vencer um atleta olímpico em sua corrida. Não tem o
típico cabelo perfeitamente arrumado, ela é apenas...
Oh, ótimo. Agora ele está analisando o que a faz ser bonita. Isso precisa
parar.
— Não podemos falar com você. — diz Joey.
August não parece surpresa ou mesmo ofendida, mais como se ela tivesse
segurando um sorriso. — Por quê?
Joey sussurra. — Porque você é uma estranha?
Beck poderia abraçá-la. — Mais alto.
— VOCÊ É UMA ESTRANHA. — Joey grita e parece satisfeita.
— Eu dificilmente sou mais estranha que vocês dois, — diz August. —
Além disso, você sabe meu nome, você sabe onde eu moro, você sabe minha
cor favorita, e nós saímos ontem tarde.
— Não sei sua cor favorita, — diz Joey, indignada.
— É azul. — Beck diz sem pensar e depois fica vermelho o suficiente para
deixar uma beterraba orgulhosa.
August encontra os olhos dele com um sorriso no canto dos lábios. —
Troféu para Keverich. O que me denunciou?
As tornozeleiras azuis, os rabiscos azuis nos pés e a lã azul que entrelaça
algumas mechas de cabelo.
— Palpite de sorte. — diz Beck.
Joey solta sua mão para correr alguns metros à frente e pula sobre uma
enorme fenda no cimento. Ela aterrissa com um baque e seu colar de sino
toca.
August se move um pouco mais para perto de Beck. — Você não cheira a
café hoje.
— Percebi que odeio café.
— Então meu suborno não vai funcionar, não é? — August sacode sua
mochila. — Eu tenho uma manga. Totalmente fora de estação e
provavelmente importada, mas estou disposta a compartilhar.
Só mais um quarteirão e eles estarão na pré-escola. Ela o deixa tão
desconfortável.
— Não quero sua manga, — diz ele. — Nós não somos amigos.
— Não somos, — concorda August — somos parceiros de trabalho. Quero
boas notas e você não quer ser expulso.
— Por que você não pede ao Sr. Boyne que troque você? Com alguém que
se importa com essa redação?
Uma repugnância pressiona seus lábios. — Você diz você não se importa,
mas seus olhos dizem outra coisa.
Os olhos dele?
— Cara, — diz August — seus olhos têm esse olhar permanente e
devastado, como se alguém roubasse seu sorvete, esfaqueasse seu
cachorrinho e depois dissesse que granulados são ilegais. Seus olhos dizem
claramente que querem passar nesse trabalho.
Eles estão no portão da escola e Beck nunca ficou tão feliz em vê-lo. Ele
poderia abraçar a cerca quebrada de arame agora. Estar com August é como
estar em um furacão de emoções confusas.
— Talvez os granulados sejam ilegais — diz Beck — e ninguém te contou
ainda. — Ele pega a mão de Joey e a arrasta para a pré-escola.
Entre o clamor de centenas de crianças se acotovelando, August grita: —
Vejo você depois da escola!
Beck caminha mais rápido.
O ensino médio, ensino fundamental e a pré-escola são todos juntos em
apenas dois prédios. Eles são velhos. Os aparelhos de ar condicionado nunca
funcionam, então esqueça o aquecimento. A maioria das portas do banheiro
não trava, se tiverem a sorte de ter uma porta. Não há sequer uma área de
alimentação coberta; portanto, faça chuva ou faça sol, as crianças andam pelo
pátio e deixam as embalagens de seus lanches em todos os lugares que vão.
É um lixão. Beck sente pavor de pensar em Joey se formando na pré-escola
e precisando enfrentar esses horrores.
Ele a deixa no seguro prédio coberto de arco-íris da pré-escola, e vai em
direção às aulas.
Enquanto os professores falam sobre matemática ou biologia, Beck escreve
música. Seu lápis chia em uma tempestade feroz, mas isso não impede
August de se aproximar.
Ela vai ser persistente com isso, não é? E não é apenas a redação; ela
parece empenhada em bisbilhotar toda sua a vida.
Talvez pense que ele é interessante? Ele está tentando parecer normal. Mas
se ela descobrisse sobre o piano, as razões por trás dos machucados nas mãos
ou sobre a Maestra, e contasse às pessoas, ele nem sequer pode pensar nisso.
Ficaria tão envergonhado. Que tipo de garoto de quinze anos tem medo da
mãe?
Embora tenha uma política rígida de não contato com os professores, Beck
tenta falar com Boyne, para tentar mudar de parceiro, mudar para alguém que
não se importa com a escola, mas Boyne apenas nega.
— August é ótima. Você vai ficar bem.
— Não é esse o problema...
Mas Boyne vira para abordar um aluno que está roubando os marcadores
do quadro branco.
Nada na sua gottverdammten Leben, maldita vida, pode dar certo pela
primeira vez?
Até mesmo ir rapidamente para casa com Joey falha, porque sua professora
encurrala-o para fazer uma análise desaprovadora da atitude de Joey. Sobre
seu inaceitável comportamento violento. Beck se livra da conversa quando
percebe que Joey fez uma fantasia de robô com caixas, e eles logo têm uma
longa e acalorada discussão sobre o fato de que ela não pode levá-la para
casa. Ela grunhe para ele por alguns minutos e depois começa a fazer birra, o
que faz com que ele tenha que carregá-la para fora, eliminando qualquer
chance de fugir antes que August possa alcançá-los.
August balança atrás do muro, um pouco menos saltitante do que o
habitual.
— Por que seu pé está sangrando? — Joey pergunta.
— Eu chutei alguém. — August dá um sorriso fraco.
Beck leva Joey para um passeio nos ombros e tenta equilibrar sua mochila
em um ombro e a dela no outro. Ele realmente não tem tempo para se
concentrar nos pés de August.
August pega sua bolsa. — Eu posso carregar...
— Estou bem. — ele diz bruscamente.
Ela se afasta e ele se pergunta, pela milionésima vez, por que ele é um
monstro. Mas tem que ser assim. Se ela for ao Sr. Boyne em busca de um
novo parceiro, ela conseguirá o que quer. Ele só tem que ser insuportável o
suficiente até que ela desista.
August manca – extraordinariamente quieta – alguns passos atrás deles.
Bom, talvez ele possa perdê-la de vista.
Mas Beck se vê andando cada vez mais devagar e, finalmente, volta para
ver o quão ruim está.
Ela está deixando pegadas ensanguentadas.
— Meine Güte — Beck diz bruscamente. — Você poderia ter dito que
estava realmente doendo.
August para e olha para baixo. Seu rosto está mais pálido do que o habitual
e ela estremece toda vez que pisa.
Beck coloca Joey no chão e joga suas mochilas na calçada. Ele é um idiota,
sim, mas ele não é o tipo de idiota que vai deixar alguém sangrar até a morte.
— Você tem um telefone? — August diz fracamente. — Eu poderia ligar
para o meu pai vir me buscar.
Beck hesita. — Hum, não. Você não tem um? — Porque ele com certeza
não.
August encolhe os ombros. — Minha família não acredita neles.
Quero dizer, não estamos vivendo em uma caverna. — Ela solta uma
risada sem entusiasmo. — Eu tenho um iPod e temos telefone fixo e…
desculpe, estou totalmente divagando.
Beck tenta pensar se tem algo em sua bolsa que serviria para enfaixar.
Talvez seu dever de matemática?
Joey se aproxima e se agacha diante do pé machucado. — O que você
chutou?
— Quem, não o quê, — diz August. — Um idiota estava matando sapos
nos banheiros dos meninos.
— Você foi ao banheiro dos meninos? — Joey recua, como se esse tipo de
idiotice fosse contagiosa.
August encolhe os ombros e se senta no meio da calçada. Ela embala o pé
ensanguentado e parece que falta uma unha. — Você não deveria matar
coisas. Sonhos, felicidade ou animais. Eu sou realmente anti-matança. Então
a discordância ficou um pouco física e o cara tinha uma bota estúpida de
biqueira de aço e... — Ela morde o lábio. — Talvez eu o tenha feito tropeçar
de cara na parede — Você poderia usar sapatos, sabe. — Beck está
desesperadamente tentando pensar em uma maneira de não precisar tirar a
camisa e oferecer como curativo. Por favor, não.
August range os dentes. — Eu sabia que você diria isso. Mas você sabe o
que? Eu não deveria ter que usar sapatos só para chutar alguém, porque eles
estão matando sapos selvagens. — Seu rosto fica vermelho com a injustiça.
— OK, tanto faz. — Beck se vira e se agacha. Ele encolhe os ombros. —
Suba nas minhas costas.
— O que?
Joey solta um gritinho de alegria. — Oh, Beck vai te dar uma carona!
Os olhos de August se arregalam. — Beck, eu sou muito pesada…
— Não. — Beck encolhe os ombros novamente. — Suba. Eu levanto
pesos, você sabe. — Ele não levanta realmente. — Não vou deixar você
sangrar até a morte na calçada.
— E aqui estava eu pensando que isso te faria realmente feliz.
— Ela sai da calçada e vai pulando em direção a Beck. — Eu posso ligar
para o meu pai da sua casa.
E a Maestra só chegará mais tarde, que alívio.
August toca seus ombros timidamente e então depois de soltar um
provavelmente vou te matar, ela finalmente sobe. Beck tropeça na posição
vertical, estica-se e, em seguida, coloca os braços sob as coxas dela para se
equilibrar. Ele está segurando uma garota. Os braços dela estão frouxamente
em volta do pescoço dele. O cheiro dela está sobre ele – suor, sangue e coco.
Ela não é um peso leve como Joey, obviamente, mas ele não vai derrubá-la.
Ele consegue.
Ele dá um passo e depois outro.
Joey pega sua mochila e tem uma expressão de severa concentração em
seu rosto enquanto caminha obstinadamente atrás deles.
— Eu não sou ótima? — August diz estupidamente. — Como uma donzela
em perigo.
— Bem, — Beck diz, sem vontade de admitir para ela – ou a si mesmo –
que ele não se importa nenhum um pouco em carregá-la. — Quando eu
chutar uma parede, você pode me levar para casa.
— Combinado.
Joey começa a correr para alcançá-lo, ofegante. — Eu também vou chutar
uma parede!
Beck geme. — Oh, Joey, sua Schwachkopf. Eu te carrego amanhã, eu juro.
Embora August não pareça um elefante nas costas, os joelhos de Beck
ainda ficam levemente fracos quando ele chega à entrada da garagem. Ela
desliza e, segurando o seu cotovelo, vai pulando para porta da frente. Beck
abre com a chave e segura sua respiração por um segundo, rezando
desesperadamente para que a casa esteja vazia.
E se não estiver?
Ei, Mutter, aqui está uma garota que encontrei sangrando e que é
possivelmente uma amiga? Não me mate quando ela for embora.
— Hum, entre? — Beck mantém a porta aberta. Ele nunca fez isso, nem
uma vez na vida.
— Vou tentar não sangrar por toda a sua casa. — August entra mancando
depois de Joey.
Beck está tendo um pequeno ataque cardíaco. Então, o que ele faz
primeiro? Ele lhe dá o telefone? Se oferece para cuidar do pé dela? Oferece
um pouco de água? Não há comida, a menos que ela queira cereal, e...
Ela vai ver como a casa está vazia. Como é fria. Sombria. Eles não
possuem muito, apenas móveis úteis e arquivos de música. Sem decoração.
Sua família coleta contusões e insultos em alemão em vez de louças e
quadros.
— Essa é a cozinha. — Joey guia August pelo corredor até a pequena
cozinha amarela. Ela puxa uma cadeira, pelo menos a pré-escolar tem boas
maneiras – quando não está xingando alguém – e então ela se afasta e olha
sério para August. — Você precisa de um curativo?
August levanta o pé e o examina. — Provavelmente um band-aid bem
grande. — Suas solas estão pretas de sujeira e o sangue se mistura com a
sujeira, por isso é impossível ver a extensão da lesão.
Beck dá a ela o telefone da casa. Suas mãos estão tremendo – idiota,
idiota. Mas ele não pode reprimir o desejo de dar uma volta rápida pela casa
e verificar cada cômodo, cada canto, para garantir que a Maestra não esteja
aqui.
Ele abandona August para fazer a ligação e prepara para Joey um lanche –
um copo de leite e dois biscoitos – e a coloca na frente da TV. Quando ele
volta para a cozinha, August se levanta da cadeira.
— Ele estará aqui em um minuto, vou esperar lá fora.
— Ah, sim, é claro.
Ele a segue, sentindo-se um idiota, mas sente que precisa ser no mínimo
educado. Ele não pode deixar a garota sangrando sozinha na calçada. Mas
também não quer conhecer o pai dela. Ele só quer se esconder.
Ele deveria estar tocando piano.
E se a Maestra chegar em casa mais cedo?
Pare.
Eles se sentam na sarjeta, August embalando seu pé machucado
novamente, cutucando-o e emitindo pequenos assobios, e Beck segurando sua
mochila.
— Ao contrário de suas carrancas e dos insultos em alemão, — diz August
— você é meio que um anjo.
É a primeira vez que ele é chamado assim.
Beck encolhe os ombros.
Uma caminhonete azul estaciona no lado oposto da rua. A janela do
motorista está abaixada e um homem com cabelos compridos se inclina e
acena.
August se aproxima e dá um soquinho no braço dele. — Obrigado, Beck.
A propósito, qual é o seu nome completo?
Ele estreita os olhos. — Acho que sua carona está esperando.
— OK, eu estou totalmente chegando ao fundo dessa história um dia. —
Ela tira sua mochila dele e manca para outro lado da estrada. Ela acena por
cima do ombro, mas Beck já está escapando para dentro.
Feche a porta.
Uma sólida barreira entre ele e o mundo.
Lembre-se de como era segurar a August.
Nunca esqueça isso.
Ugh, o que há de errado com ele?
Beck se senta ao piano. Ele nem muda de roupa ou faz um lanche – ele
apenas toca duro e rápido. Mas ele não pode se concentrar nos études. Ele só
consegue pensar em como carregou August. E possivelmente arruinou todas
as tentativas passivo-agressivas de fazê-la odiá-lo.

A Maestra entra tempestuosamente em casa ao entardecer.


Do jeito que ela bate nos armários da cozinha e bate a chaleira, Beck
decide não se aventurar lá fora. Sem chance.
Mas ela entra.
Suas mãos estão tremendo muito esta noite e até cerrando-as em punhos
não cobre o quão cruelmente eles agitam. — Espero que você tenha treinado
à tarde inteira? — Ela retruca, como se ele já estivesse a contradizendo.
Beck interrompe no meio de uma escala. — Ja.
— Bom. — Ela agarra o batente da porta, para se firmar, ou parar a
tremedeira. Ela o está assustando.
— Você está bem?
— Schwachkopf. — Os lábios da Maestra se afastam – em um sorriso?
Beck se sente como um pequeno rato que o gato decidiu almoçar. — Você
disse aos seus professores que estará ausente amanhã?
O quê?
Em pânico, Beck se levanta, sem saber se deve fugir, porque ela está
prestes a dar um tapa nele, ou arriscar perguntar...
A confusão deve ter ficado clara demais em seu rosto, porque a Maestra
solta um suspiro sofrido. — O campeonato? Aquele para o qual treinamos o
ano todo. — Os lábios dela se enrolam em escárnio.
— Esqueceu-se, Schwachkopf?
— Nein — diz Beck. — Eu tenho praticado para isso.
Ele não esqueceu. August apenas – se distraiu por um momento. E isso é
prova do porque ele não pode ter amigos.
Se ele fosse um piano, todas as suas cordas teriam rompido-se.
O medo não é pela performance – é sobre a reação da Maestra após ele tocar.
Ela é implacável quando ocorre um erro. Mas uma apresentação inteira?
Uma peça impecável não ganha parabéns. Em vez disso, há instruções
deprimentes e precisas sobre como ele ainda precisa melhorar.
Se a Maestra dissesse você foi bem, o mundo inteiro provavelmente
explodiria.
Mas mesmo que Beck odeie se apresentar, há pelo menos, pequenos
benefícios. A probabilidade de que outro participante lhe deseje sorte, um
juiz que apertará sua mão, um sussurro de impressionante e esse menino é
talentoso. Beck sabe que isso é mentira, a Maestra o mantém no chão sobre o
quanto ele é um fracasso, mas é bom ouvir as pessoas dizendo. É bom
porque, por mais que ele pretenda odiar música, ela faz parte dele. É ele.
Ele já participou de mil concursos, concertos, exames e lições.
Sabe como tudo acontece.
Mas ele sempre fica nervoso.
É tudo por causa das pessoas. As fileiras com um milhão de olhos.
E como a Maestra reagirá depois.
A sala de concertos está cheia de smokings, roupas formais e a névoa de
mil perfumes. As vozes ficam tremidas, centenas de cada vez, e Beck sente o
som delas. Esta noite foi patrocinada e está acontecendo no City Concert
Hall. Como os Keverichs moram nos subúrbios, levou quase quatro horas
para chegar ao coração da cidade. Quatro horas em ônibus e trens, tentando
desesperadamente não suar muito com roupa formal. Quatro horas com a
Maestra.
Quatro horas da Joey cantando Dona Aranha.
Tudo para que Beck possa competir no campeonato de Melhor Jovem
Pianista do Estado.
Ele não é o melhor. Ele leva um tapinha no ombro, um sorriso de um juiz,
a admiração do público – mas ele não ganha. Ele nunca consegue. Então qual
o sentido de estar aqui?
Beck fica na área de espera atrás do palco. Quando os ajudantes de palco
movem as enormes cortinas roxas, ele vislumbra a luz forte, o mar de
pessoas, o brilho do piano. Este piano de cauda provavelmente custa mais do
que sua casa inteira.
Espere até os aplausos começarem, das gottverdammte Klatschen – os
malditos aplausos.
Ele odeia bater palmas. Odeia mãos. A alma de Beck cai de volta para
aquelas pequenas fantasias sombrias, sobre não ter mãos, de não ser
fisicamente capaz de fazer isso. Desejos, apenas desejos.
Ele permanece trancado neles enquanto a Maestra leva Joey mais uma vez
ao banheiro e mais jovens pianistas enchem a sala.
Pelo menos eles não gritam como o público. A maioria está cantarolando
baixinho e os pais pairam sobre eles – com maior probabilidade de vomitar
de nervosismo do que as crianças. Todo mundo tem menos de dezesseis anos.
Em alguns meses, Beck nem se qualificará como jovem pianista. Se a Maestra
o fizer entrar em competições adultas, ele vai morrer. Ser talentoso quando
criança é ser mediano quando adulto.
Beck fecha os olhos. Esqueça isso. Ele entra tão profundamente na própria
mente que alcança suas músicas. Pequenas composições clamando para
serem livres. Suas próprias composições. Suas próprias criações. No ritmo
dessas músicas, seus dedos batem sobre a palma suada.
Se as pessoas o abrissem, nunca o acusariam de estar vazio.
Ele não é um pianista, é um compositor. Corte seu peito e veja seu coração
bater no ritmo das suas composições. Oh, olhe, o mundo diria, esse garoto
está escondendo nele um universo de maravilhas.
— Eu disse olá. Você é surdo ou algo assim?
A cabeça de Beck se levanta tão rápido que seu pescoço vibra.
Quando ele se perde assim, é difícil voltar.
— Oi. — Sua voz é grave e ele se sente levemente tonto. Seus dedos batem
na coxa, não no ritmo de Chopin, mas da música dentro dele.
— Quando é sua vez?
Beck se concentra em sua interrogadora. Ele provavelmente deveria ter se
levantado, apertado as mãos ou – ou feito basicamente qualquer coisa, ao
invés de ficar sentado como um bacalhau surpreso. Ela tem nove ou dez anos,
com cabelos como obsidiana polida. Tem a idade em que as pessoas ainda
dizem — Ah! Fofa! — e depois maravilham-se com sua brincadeira feroz ao
piano. Beck perdeu o fator fofo anos atrás. Essa noite há prêmios em dinheiro
e bolsas de estudo, e são essas pequenas crianças talentosas que iram
conseguir. Existem dez concorrentes. Eles passarão por dezenas de
eliminações. São os dez melhores que o estado tem a oferecer.
— Sou o último, — diz Beck. O pior lugar possível. Ele vai perder toda a
coragem até lá.
O vestido da garota parece um cupcake vermelho com granulado. Ela cruza
os braços. — Quantos anos você tem?
E ele pensou que Joey não tinha boas maneiras. — Quantos anos você
tem? — ele atira de volta, no controle agora.
— Dez. Erin Yukimura.
— Quinze — diz Beck. — Kever...
— Eu sei quem você é. Todo mundo conhece os Keverich.
Beck se levanta e alisa as palmas das mãos suadas nas calças do terno. O
traje é um pouco pequeno, principalmente nos pulsos. Ele puxa as mangas.
Como ele deve responder à essa garota?
Como ele deve reagir quando todo mundo conhece a Maestra, e seu
passado talentoso se estende como uma sombra por todo o planeta?
Beck é salvo por um garoto de camisa da cor de um mirtilo. Seu sorriso é
tão largo quanto uma fatia de melancia e apenas contribui para a aura frutada.
— Eu sou Schneider, — diz ele. — Vejo que você conheceu a raivosa
Erin. Ela te mordeu?
— Keverich, — Beck diz e aperta a mão do mirtilo.
— Eu sei.
É enervante. Beck gostaria de rasgar seu sobrenome em pedaços e jogá-los
no esquecimento.
— Ela está aqui? — diz o mirtilo. — Sua mãe – quero dizer, Ida
Magdalena Keverich.
Você não se dirige a uma famosa pianista aposentada pela metade do nome
dela, é claro.
— É verdade que ela só fala em alemão? — diz a irritada Erin.
— Ela só amaldiçoa em alemão. — Beck balança nos calcanhares. Na
verdade, ela só amaldiçoa em geral.
— Ela ainda toca? — Os olhos do mirtilo são tão brilhantes de saudade
que Beck desvia o olhar, enojado.
— Não. — ele diz.
Por favor, alguém derrube o piano na cabeça de Beck. Seria um presente.
— Se você tocasse como ela, — diz Erin — eu ficaria aterrorizada. Mas eu
ouvi falar de você. E você... não é tão bom. — O sorriso dela é uma navalha.
— Tentarei pensar em você quando vencer, mas provavelmente esquecerei.
— Ela sorri e saltita para os pais dela.
— Existem algumas pessoas, — diz o mirtilo — que você espera que
realmente quebrem as pernas.
— Eu sinto você em um nível espiritual, — diz Beck.
Os sussurros de mais de dez minutos emaranham a sala, os pianistas
começam a flexionar os dedos e tomar um último gole de água. A
coordenadora se comunica com todos, garante que eles saibam quando
estarão no palco para uma transição perfeita. Quando ela chega a Beck, o
mirtilo se despede com um aperto de mão.
A Maestra volta para a sala. É o tamanho dela, Beck diz a si mesmo, que
chama atenção. Mas seu legado como a pianista mais aclamada da Europa e
irmã do melhor compositor da Alemanha, provavelmente também tem algo a
ver com isso. Também o cabelo dela. Não há como domar os cachos dos
Keverich, e a Maestra parece que passou por um campo elétrico. Em um
vestido amarelo e presilhas de borboleta, Joey está passando pela mesma
coisa. E Beck? Mesmo uma lata inteira de gel, infelizmente caro, só dá a vaga
impressão de que seu cabelo está liso.
— Bist du bereit? — diz a Maestra. Você está pronto?
Ela é imune aos aspectos dos outros pais e aos pequenos prodígios deles.
Este é o momento em que Beck deveria ter orgulho de sua mãe ser famosa.
Em vez disso, ele quer subir em cima do piano e gritar: SE VOCÊS AO
MENOS SOUBESSEM A VERDADE. Ela é um monstro. Talvez no passado
ela fosse um sonho de glória e excelência, mas todo esse talento levou
embora sua alma.
Beck enxuga as mãos nas calças novamente. — Ja.
Não não não.
Foco, Beck. Supere isso. A música em sua cabeça para.
— Você entende a importância deste concurso, mein Sohn? — A Maestra
agarra seu cotovelo e o puxa para um canto quieto da sala.
O sotaque dela é pesado. Ela está estressada. — Você não vai me
decepcionar.
— Não vou — Beck murmura. Ele se sente sufocado: pelo ar abafado dos
bastidores, o dilúvio de spray de cabelo para manter os cachos dos Keverich
controlados, o passado talentoso da Maestra.
— Acabou o tempo de treinar para se tornar o melhor, — a Maestra
assobia. — Quando você pisar nesse palco, você me representa. Toquei essas
peças quando tinha a sua idade. Seu tio e eu, — ela faz um pequeno barulho
de repulsa, já que geralmente evita falar sobre seu irmão, que ainda é famoso
e, portanto, irritante — tocamos essas peças até se tornaram legados. Se seus
schreckliches Spielen me envergonharem, eu não me responsabilizo por
minhas ações. — Sua voz abaixa para um rosnado profundo. — E haverá
consequências. Você está me entendendo?
Ela não podia apenas dizer Boa sorte e lembre-se de se divertir! e depois
prometer sorvete, não importa o quê aconteça?
Em vez disso, Beck imagina os tapas, ou pior – algo acontecendo com
Joey.
Por que ela tem que exigir que ele se torne ela?
— Sim, — diz Beck. Obrigado pela conversa incentivadora.
O primeiro pianista chega no palco com uma onda de aplausos
estrondosos. Então música – música perfeita. Impecável, com sentimento,
graça e os detalhes intrincados de uma vida inteira de prática. Beck fica com
a Maestra e a inquieta Joey e tenta encontrar sua música novamente. Seu
lugar seguro.
Os dedos da Maestra cavam no ombro dele, a voz dela, uma faca nas
costelas dele. — Prove para mim que você vale alguma coisa.
Um senão... dança ao redor de Beck. Ele se encolhe e não diz nada, porque
nada vai convencê-la ou agradá-la ou salvá-lo.
As notas dentro dele se agitam, quebram e pressionam com tanta força
contra sua pele que rasgam as costuras e ele explode, talvez o chamem de
vazio apesar de tudo. Talvez ninguém conhecerá sua música, sua própria
música, além dele mesmo.
— Sinto falta disso. — diz a Maestra. — Eu possuía o palco e a música era
minha. Mas olhe para mim agora. — Suas mãos trêmulas se apertam. —
Você é um pobre substituto dos Keverich.
Beck fecha os olhos e espera até que seja a sua vez de ser executado.
Último? Por que eles fizeram Beck ir por último?
Ouvir os outros pianistas é torturante. O mirtilo toca incrivelmente, cada
nota com um toque claro de Mozart. Não há hesitação, não há erro. Quando
as últimas notas desaparecem do corredor, o mirtilo se levanta e se curva, os
aplausos são estrondosos.
E se Beck atrapalhar os études, os preciosos études da Maestra? Um
choque frio de pavor entorpece sua coluna.
Todo pianista, toda apresentação, faz Beck se sentir andando em direção a
um penhasco com os olhos vendados. Um deslize e acabou para ele.
As apresentações têm menos de dez minutos, embora uma garota empurre
até o último segundo com seu concerto de Rachmaninoff. Beck estará
tocando dois études de Chopin, consecutivos, números onze e doze, e deve
levar seis minutos e meio.
A menos que ele desmaie no meio, o que, digamos, é altamente provável.
A pequena e raivosa Erin se apresenta logo antes dele – o que é assustador,
porque ela é perversamente boa e derrete o coração da platéia com seus
pequenos traços e seu sorriso vencedor. Suas mãos dançam em uma peça
incrivelmente rápida de Liszt, com um acabamento impecável. A platéia está
de pé aplaudindo.
Quando Erin sai do palco como um pequeno cupcake de destruição, ela
sorri na direção de Beck. — Diga adeus ao troféu, Keverich.
Keverich.
É o nome mais pesado do mundo.
A cabeça de Beck fica vazia.
É tudo fragmentos.
Não, não, ele não pode ser assim.
Se recomponha, Schwachkopf.
Eles estão prontos para ele ir. Os dedos da Maestra envolvem seu braço, a
única pressão que o impede de flutuar. O mundo é um espelho quebrado,
cada fragmento refletindo seu rosto aterrorizado.
— Não falhe —, ela assobia.
As pernas de Beck o levam ao palco. O silêncio bate como uma sinfonia
em suas têmporas. O palco cheira a cera, a luzes quentes e couro brilhante.
Ele puxa os punhos da camisa, desejando demorar mais, pare, está sendo
notável. As luzes são tão brilhantes que o público é reduzido a um borrão
preto.
Isso deveria torná-los menos assustadores? Em vez de olhos, ele é
observado por um mar de fantasmas sem rosto.
Ele está no piano. Meine Güte, é enorme.
O público se mexe, tentando permanecer paciente na demora, querendo
sair e ouvir os juízes confirmarem seus favoritos como vencedores. Beck será
imemorável – muito atrevido para ser fofo, velho demais para ter
credibilidade, muito idiota, idiota, idiota. O piano é um animal e é o dono
dele.
Pare de se encolher. Ele já participou de campeonatos antes.
Ele já tocou em auditórios maiores.
Não deve ser diferente.
Ele desliza para o banquinho do piano, ainda quente.
E se eles o escolheram para ser o último porque ele é um Keverich? Esse
garoto vai derrubar a casa, eles provavelmente presumiram, se ele é
parecido com a mãe dele.
Mas ele não é. Eles arrancaram seu coração colocando-o por último.
As mãos de Beck pairam sobre as teclas – fileiras de dentes em preto e
branco.
Toque Chopin. Toque rápido e selvagem e prove a si mesmo.
Apenas toque as notas.
Notas.
Toque.
Notas.
O que – o que – o que ele deveria tocar?
O tempo dá um nó na garganta. Apresse-se. Pense. Ele procura
desesperadamente as notas que praticou o ano todo, mas o Chopin se foi.
Não há notas.
Não. Isso não pode acontecer com ele.
Beck levanta a cabeça e vê a Maestra e a coordenadora pairando na beira
das cortinas, petrificadas ou furiosas, ou ambos simultaneamente. O medo de
palco não acontece em competições desse nível. Não deveria acontecer. Eles
são melhores que isso. Ele é melhor que isso.
MAS ELE NÃO LEMBRA DAS NOTAS.
A Maestra não aceitará isso – pensará que ele está fazendo isso de
propósito.
Toque alguma coisa.
A Maestra o matará.
Toque alguma coisa.
Uma onda varre a platéia, um murmúrio de confusão, um sussurro de
empatia por essa pobre alma presa no palco sem suas notas. Que maneira
triste de terminar uma noite. Eles com certeza se lembrarão dele.
Toque. Toque. Oh – por favor – apenas – TOQUE ALGUMA COISA.
E ele toca.
A princípio, Beck não sabe o que é. São notas, então é isso um bom
começo – mas não são as notas rápidas da abertura de Chopin.
Isso é sombrio e pesado, com acordes de baixo que deixariam
Rachmaninoff orgulhoso e uma melodia que acompanha leve como o ar. A
música é açúcar e carvão. O baixo bate violentamente na alma de Beck.
Então ele repete essa parte, porque é tão boa.
Este piano não o fará de bobo. Então, enquanto bate os dedos nas teclas,
ele é o dono.
Isso não é Chopin.
Não pense nisso agora.
Os dedos de Beck se acalmam e andam lentamente pelas teclas,
acrescentando algo doce à escuridão. Dó em menor, como borboletas de asas
quebradas. Se o público não derrama algumas lágrimas com isso, eles não
têm alma.
Ele deixa as borboletas sangrando sobre suas asas e desce de volta aos
poços de tempestade e terror.
Ele toca como se fosse seu último dia na terra. Ele toca e sente vontade de
chorar.
E então acaba.
Silêncio.
O suor escorre por sua cabeça – suor, lágrimas e horror. Eles não sabem se
podem bater palmas, porque esta não é a peça clássica cuidadosamente
preparada que eles esperavam. Não está no programa. Os juízes – oh, os
juízes. Ele esqueceu, esqueceu, esqueceu...
Ele se levanta, pronto para sair do palco, mas suas pernas estão fracas e
tudo o que ele consegue fazer é virar e se curvar. É quando ele percebe que
eles estão batendo palmas. Não são hesitantes ou educadas – são ousadas,
animadas e espantadas. Há lampejos de cores, jóias e reflexos de dentes das
bocas sorridentes. Cada pessoa está de pé. Cada aplauso diz o que acabamos
de ouvir?
O que ele acabou de tocar?
As notas que ele rabiscou na lição de casa e bateu na coxa até a sala de
concertos?
Beck termina seu arco rígido e sai do palco. Ele deixou os pulmões no
assento do piano. Ele não consegue respirar.
Os aplausos desaparecem quando um microfone ganha vida – mas Beck
não consegue se concentrar no que dizem. Alguém lhe entrega uma garrafa
de água gelada e ele desliza para uma cadeira.
Senta. Rola a garrafa de gelo sobre a testa. Sua camisa gruda nas costas e
ele se sente mais quente que o sol.
Onde está a Maestra?
Ele pisca através de uma cortina de suor e lágrimas, e a vê.
Sem contato visual. Mas Joey olha para ele com os olhos arregalados.
Ele se sente doente. Não doente de nervoso, doente de febre, como se ele
precisasse esfriar imediatamente ou vai explodir.
Nos bastidores há um burburinho ao seu redor, pois as notas estão sendo
apuradas e os troféus são levados por ajudantes de palco. A coordenadora
gira ao redor, tentando organizar as crianças para que estejam prontas para
entrar no palco quando chamadas. Os pais de alguém estão chorando.
Então o microfone apita e as palavras batem nos ouvidos de Beck.
— ... um erro infeliz que nos leva a desclassificar lamentosamente o
competidor número dez, Keverich, Be...
Não.
Ele arrisca um olhar para a Maestra. Sua expressão é esculpida em
mármore, cada músculo esticado e congelado.
O juiz continua: — Embora a performance de Keverich tenha sido a coisa
mais extraordinária que encontrei em trinta anos de julgamento, não era a
peça necessária para este campeonato. Agora, passamos à premiação de...
Há pessoas conversando com a Maestra. Suas respostas são ensopadas com
um forte sotaque.
Beck desliga do que acontece ao seu redor. Ele toca sua própria testa e,
apesar da galáxia explodir dentro dele, ele está frio. Ele se sente morto.
Enterre-o, por favor. O que foi que ele fez? O que ele fez? Ele fecha os olhos
contra as lágrimas.
Brindes, aplausos. Nomes. Troféus.
O mirtilo venceu? Será que – ah, por favor, não – a irritada Erin levou o
troféu, o dinheiro da bolsa de estudos e as aulas prometidas de um pianista
famoso?
Beck olha para suas mãos, suas mãos inúteis. Ele deveria tê-las cortado
anos atrás, em vez de fantasiar sobre isso. Teria salvado o mundo de ouvir
sua agonia transformada em música. Salvado a si mesmo da Maestra.
Algo está em seus olhos.
A Maestra está na sua frente, levantando-o. Ela o puxa pelo paletó,
murmurando um alemão indecifrável. Eles estão indo embora?
Joey anda ansiosamente atrás. Eles se movem pelo labirinto de salas e
túneis e descem as escadas, passando por uma saída, e a noite fria finalmente
aperta Beck em seus braços reconfortantes.
Ele não vai à escola amanhã. Ele não vai nem se mexer. Ele irá
simplesmente desaparecer em sua cama e aí não vai mais existir.
Está tarde. A noite tem uma mordida invernal. O ponto de ônibus fica a
quase um quilômetro a pé e as passagens são para meia noite.
Joey vai querer ser carregada. Beck só precisa encontrar seus pés, seu
juízo, sua força e superar isso.
A caminhada é silenciosa, rápida, com a Maestra segurando a mão de Joey
de modo que suas pernas pequenas correm bastante para acompanhar.
Ninguém pode dizer que um garoto morto anda com elas.
O que ela vai fazer?
Eles ficam a uma rua da rodoviária e passam pelo portão de um parque da
cidade com enormes árvores ramificadas. Sombras abraçam seus ombros. A
Maestra para. Ela se solta de Joey – que tropeça para trás, cansada, surpresa –
e a Maestra se vira contra Beck.
Ele abre a boca, mas o que há para dizer?
Ela é mais alta, mais forte e mais pesada. Em algum lugar, há um homem
que é o pai de Beck e ele deve ter sido um magrelo, porque Beck com certeza
não herdou o físico de sua mãe.
Ela o joga contra o portão do parque em um estrondo. O ar sai dele.
Joey choraminga.
A Maestra não tem palavras – nem mesmo um dilúvio de maldições. Ela o
agarra pelos cabelos e lhe dá um tapa. O som da carne sendo golpeada é
nítido, alto demais no vazio. Alguém vai ver.
Alguém a impedirá. Chame a polícia, uma mãe odeia seu filho.
A dor em seus olhos deve ser encorajadora, porque ela lhe dá um tapa
novamente.
De novo – de novo – de novo.
Os lábios de Beck se abrem, sua boca se enche de sangue, ele
provavelmente está com a língua cortada. — Mutter, por favor, — ele
sussurra. — Aqui não — Uma gota de sangue escapa de seus lábios.
A Maestra deve ver o sentido. Ela abaixa a mão e solta o cabelo de Beck
com tanta força que ele cai para trás e bate no portão novamente – desta vez
com a sua cabeça. Ele agarra a cabeça, cospe sangue, cai de joelhos.
Provavelmente há sangue em sua única camisa branca, então o que ele fará da
próxima vez? Ela ficará furiosa por causa da camisa e não é culpa dele. Não é
culpa dele.
As lágrimas vêm em um borrão, quente e com ódio.
Joey está chorando e sussurrando: — Não machuque o Beck. — Isso o
conforta, só um pouco.
— Steh auf, — a Maestra rebate. Levante-se. — Não há uma palavra para o
que penso de você. Você me destruiu.
Beck limpa o nariz e as manchas de umidade em suas bochechas. Sangue,
ranho? Isso importa? Ele mantém a boca fechada, para que nada embaraçoso
possa escapar.
A Maestra fecha as mãos em punhos, mas o tremor é ferozmente visível.
— Você é minha doença, — diz ela, com a voz estranhamente calma. —
Você vai me matar com a sua desgraça. O que aconteceu hoje nunca mais se
repetirá, correto?
Se abrir a boca, um oceano vai escapar e ele vai se afogar. Ele vai se
afogar. Por favor, não o faça responder.
Ela dá um passo em sua direção, a voz como uma víbora. — Correto?
Os lábios de Beck se separam e o último resquício de sua música escapa e
se dissolve em sangue e lágrimas.
— Nunca mais — ele diz.
Beck decide se rebelar.
E por rebelar, ele quer dizer ficar deitado na cama por dois dias seguidos,
sem fazer barulho, cuidando da suas necessidades e limpando a casa inteira
para a Maestra, mas ainda – desafiadoramente – não tocando piano.
No terceiro dia, ele ainda está enterrado sob as mantas quando, Joey se
convida para tomar café da manhã na cama com ele. Ela tem uma de suas
bandejas de brinquedo e potinhos rosa com suas infames misturas. Ele espia
crostas de pão na bandeja e sente uma pontada de culpa. Enquanto ele fica de
mau humor, quem cuida de Joey?
Ele se levanta, concentrando-se em não derramar nada. — Estou dividindo
com você, já que está doente.
Beck se senta, enquanto ela coloca a bandeja no colo dele.
Então ela pula na cama e quase vira a coisa toda na cara dele.
— Podemos voltar para a escola — Ela olha para ele de soslaio.
— Ou temos que esperar até que seu rosto fique melhor?
Beck pega uma colher de chá e cutuca um dos potinhos – isso é arroz cru e
manteiga de amendoim? — Eu não sei — diz ele.
Qualquer outra mãe teria puxado o filho adolescente para fora e ordenado
que fosse para a escola. Mas Beck pode faltar três dias e a Maestra não diz
uma palavra. De fato, a Maestra o está ignorando e, consequentemente,
ignorando Joey. A mensagem é alta e clara – seus filhos são pirralhos sem
valor.
E a Maestra não leva Joey para a escola e – tanto quanto Beck sabe –
também não saiu muito de seu quarto, mas quanto tempo até que alguém
comece a fazer perguntas sobre a ausência das crianças Keverich?
Beck come cautelosamente o iogurte azedo polvilhado com farinha.
Joey cutuca sua bochecha. — Dói muito?
— Dói quando você toca! — Os hematomas roxos cobrem sua bochecha
direita e seu lábio rachado tem uma crosta. Ele simplesmente não pode sorrir,
não que faça muita diferença.
Joey observa ansiosamente enquanto ele termina as crostas de pão. —
Ficou bom? Eu sou uma boa chef, Beck?
— A melhor — diz ele.
— Oh, bom. — Joey sorri. — Eu quero que você se sinta melhor.
E eu preparei mais algumas coisas — Beck empalidece — Mas se você
não os quiser, tudo bem! Vou dar para a August!
Espera. O que? — August?
— Sim — diz Joey. — Ela está lá fora. Eu disse a ela que...
Beck se levanta dos lençóis e dispara para fora do quarto. Ele se lança para
a janela da frente e abre as cortinas. Sim, ela está lá, girando em torno de um
poste, seus lábios enrugados em um assovio.
Ela tem feito isso todas as manhãs? Beck passa os dedos pelos cabelos e
puxa com força.
Joey bate atrás dele.
— Você falou com ela? — Beck diz, tenso. — O que você disse a ela
sobre mim? — E se Joey contar seus segredos embaraçosos?
Ele nunca mais vai à escola.
— Acabei de dizer que seu rosto estava doente. — Joey mostra o lábio. —
E que você é malvado porque nunca mais brincou comigo.
— Só fazem três dias. — Beck voa pela casa e coloca um jeans
questionável – foda-se o código de vestimenta – e uma camisa da escola com
buracos na gola. Ele enfia um pé no sapato tão rápido que o cadarço estoura,
e ele precisa gastar preciosos minutos com barbante e tesoura. — Arrume-se,
Jo! — Ele grita. — Estamos indo.
Joey entra no quarto dela gritando – provavelmente de alegria?
Talvez? Quem poderia saber? Ela reaparece com calças roxas brilhantes,
um suéter que diz Eu amo o braquiossauro, suas botas de chuva e óculos de
natação.
Não há tempo para discutir. Ele encontra alguns pedaços velhos de pizza
na geladeira – se não tiver mofo, eles estão bom, certo? – e coloca-os na
lancheira dela.
Quando está saindo pela porta, ele vê seu rosto no espelho do corredor. O
inchaço diminuiu, mas a marca da mão é bastante inconfundível. Ninguém na
escola se importa, é claro – as crianças aparecem com os braços quebrados o
tempo todo. Lutas. Pais zangados. Acidentes de bicicleta. Eles moram nessa
parte da cidade.
A escola não se importa se dezenas de alunos têm hematomas, pontos ou
olhos roxos. É demais e os professores não são pagos o suficiente para isso.
Mas August se importará.
Por que isso importa?
Por que ele está correndo para ir à escola com ela?
Porque a última vez que eles estiveram juntos, ele a levou para casa e se
sentiu útil e gentil. E ela agradeceu. E foi bom.
Beck destrava a porta da frente – ele não sabe, nem se importa onde está a
Maestra – e Joey corre pela grama orvalhada até August.
— ESTAMOS INDO PARA A ESCOLA! — diz a Capitã Óbvia.
Beck de repente se lembra de um milhão de motivos pelos quais não é bom
estar por perto de August. O que ele está fazendo? Ele se sente com um
estômago cheio de borboletas. E tem o rosto dele.
Mas ele mereceu. Ele falhou. Era uma tarefa simples, toque uma peça de
Chopin, toque-a bem, e ele falhou de propósito. Certo? Ele pelo menos
tentou? Tentou?
Ele não pode se livrar da lembrança de ter sua própria música inundando
aquele auditório. Ou do quão estrondosos foram os aplausos. Ou de como foi
lindo, milhares de estrelas explodindo em suas mãos. Foi ainda melhor do
que o lixo que ele escreve entre as aulas.
Mas foi errado – errado – errado.
August tira os fones de ouvido e enfia o iPod no bolso. Ela dá a Joey um
high five e depois se vira para encará-lo.
— Oi, Beck — ela diz suavemente.
Beck deseja desaparecer ou se tornar alguém completamente diferente.
Ele pega a mão de Joey e começa a andar sem dizer uma palavra,
principalmente porque seu cérebro está em branco. Ele não tem explicação do
porque queria vê-la. Mas agora ele a viu e foi um erro.
Se August percebe a saudação ignorada, ela não demonstra.
Ela dá um passo ao lado dele, vestindo pela primeira vez um tênis
esfarrapado nos pés, e pulando um pouco a cada passo como se houvesse
música em suas solas.
Será que o pé dela está melhor agora? Seus pais brigaram com ela por ser
violenta na escola? Ela realmente ficou andando ao redor da casa dele,
esperando todas as manhãs? O que ela quer dele? O que? O que?
— Então —, diz August, arrastando a palavra para cobrir a galáxia de
silêncio entre eles. — Você não vai para aula a algum tempo.
— Eu estive doente. — De tudo e de todos.
— O que aconteceu com o seu rosto? — Somente um mosquito pode ouvir
o que ela acabou de sussurrar.
— Eu pratiquei o sorriso — diz Beck. — O espelho me deu um soco pelos
meus esforços então, boas notícias, você estava certa. Eu sou uma merda
nisso.
Ele olha para o chão enquanto diz isso, contando as rachaduras, as vezes
que pisa sobre uma garrafa quebrada e com que frequência Joey tropeça no
cimento irregular.
— Ah, isso é verdade — diz August, calma. — Eu estou sempre certa.
Você vai se acostumar, especialmente se você praticar dizendo Você estava
certa, August! Eu estava errado cerca de cinquenta vezes antes de dormir.
— Lembrarei disso.
— Eu também — diz Joey, tentando caminhar entre eles.
Eles andam em silêncio, o peso da piada e da mentira é tão grande quanto
o de segurar o mundo. Joey pula as rachaduras, arrancando o braço de Beck a
cada salto, o que apenas o lembra o quanto ele está machucado.
É só quando Joey faz uma pausa, para roubar um punhado de margaridas
de um jardim desavisado, que August diz: — Então, o que realmente
aconteceu?
Joey espirra nas flores.
— Eu te disse. — Beck sabia a diferença entre carinho e curiosidade.
Conhecer alguém por menos de uma semana é igual a curiosidade, não
carinho. — E você sabe o que eles dizem em alemão.
— Na verdade não — diz August.
— Halt die Klappe, du Schwein! — Joey grita.
August pisca. — Ainda não está fazendo sentido para mim.
— Joey disse cala a boca, seu porco —, diz Beck. Ele empurra Joey em
uma poça e ela grita. — Mas eu ia dizer: das geht dich nichts an. — Ele olha
para ela. — Não é da sua conta.
— Eu realmente não sei qual de vocês é o mais rude neste momento — diz
August.
Joey aponta para Beck. — Ele é mais grosso. Porque ele é um menino e os
meninos são fedorentos.
Beck tenta dar um tapa nela, mas ela corre à frente com uma risada
maníaca.
August sorri.
O que há com ela? Como é que ela nunca se ofende?
Como se para provar que seus insultos não vão impedi-la, August espera,
enquanto ele deixa Joey na pré-escola e é atropelado por uma professora
querendo saber se ela estava doente, onde está a nota de ausência, porque ela
não consegue ligar para sua mãe.
Beck encolhe os ombros, murmura e sai cambaleando para dar uma corrida
louca pela estrada enquanto o último sinal toca.
Eles caem na multidão atrasada enquanto avançam pela escada de concreto
para o primeiro período. Dois caras estão rindo alto demais, e alguém esbarra
em August e a faz tropeçar nos últimos degraus.
Beck poderia agarrar o braço dela, apenas para firmá-la.
Ele não faz.
August agarra o corrimão e faz uma careta. — Ei!
Um garoto alto, com cabelos loiros esverdeados como se ele tivesse
nadado em uma piscina de algas, zomba dela. — Ah, desculpe por ter
esbarrado em você. Eu machuquei seus sentimentos, abraçadora de árvores?
O rosto de August está comprimido. Beck considera apertar-se no espaço
entre ela e o cabelo de algas e apenas ir para a aula, mas – mas...
— Eu posso te dar um abraço para fazer as pazes. — Cabelo de alga agarra
o braço de August e ela se afasta dele.
Beck se move através do espaço entre eles, empurrando o cabelo de alga
com força em seu caminho. Dá um segundo a August para chegar ao topo da
escada. Mas o cabelo de alga e seu grupo de caranguejos estão logo atrás
deles.
— O que foi isso? — Cabelo de alga exige, zombando. Porque quando um
garoto empurra outro garoto, isso significa sangue e guerra, aparentemente.
Beck não tem tempo para isso. Ele revira os olhos e empurra August em
direção ao corredor.
Cabelo de alga fica na frente dele. — Mamãe te deu um tapinha na
bochecha? — Ele canta em uma voz de bebê. — Ou papai é muito frouxo
para usar o punho?
A raiva percorre a espinha de Beck. Ele nunca foi incomodado por idiotas,
nem sequer era o foco deles. E agora? Ele quer esmagar a luz do dia de
alguém.
O que ele está se tornando?
— Beck.
Ele se vira para August.
— Esse é, hum, — ela limpa a garganta — Esse é o idiota com quem eu
tive um desacordo na semana passada. Sobre o sapo. Eu posso ter chutado
ele.
— Você não o chutou forte o suficiente. — Beck passa com força, com o
ombro batendo no cabeça de alga com força suficiente para ele emitir um
grunhido de surpresa. Então, August está ao lado dele, eles caminham pelo
corredor.
O cabelo de algas grita, mas todos estão atrasados. Há detenções pelas
quais esperar. Um professor está no corredor. Não é um dia bom para ser
expulso.
Eles estão prestes a se separar, August para as aulas em que as pessoas
realmente estudam, Beck para onde dormem – mas ela balança na frente dele.
— Entendo que você não fará o trabalho. — diz ela às pressas.
— Então, eu vou fazer a sua parte.
— Ou você poderia apenas me dedurar?
— Eu poderia — diz ela — ou você pode me falar sobre o seu rosto e nós
acabamos com isso.
Acabar? Ele irá ganhar pontos por um trabalho que não ajudou?
— Ou — ela diz — Eu posso ficar com você de qualquer maneira, até que
você me diga.
— Eu não sou seu amigo. — Sai irregular. — Minha porcaria não
importa...
— Eu vou ficar com você. — ela diz ferozmente.
Beck hesita.
Mas ele não pode.
— Eu dei um soco em alguém — diz ele. — Eles deram um soco de volta.
Na verdade, sou um covarde violento e você deve voltar para seus amigos de
verdade.
August não pisca. — Você é um mentiroso idiota. Acho que vou ficar
perto de você. — Ela se vira com uma mecha de cabelo e corre pelo corredor,
girando apenas o tempo suficiente para dar um soco no ar e apontar para os
nós dos dedos. — Suas mãos. Você não bateu em ninguém. — Então ela se
vai.
Beck olha para os nós dos dedos – não está machucado ou rachado. Não.
Ele nunca revida, não importa o quanto sonhe com isso.
Ele entra na aula e afunda em uma mesa como se ele estivesse lá o tempo
todo. Ninguém nota. Ninguém pergunta onde ele esteve nos últimos dias ou
da onde vieram os machucados. Ninguém se importa.
Porque August parece se importar? Há algo incrivelmente errado na
maneira como ela pula e como ela insiste em usar cores – mesmo que seja
apenas uma fita azul enrolada em uma mecha de cabelo ou rabiscos de
canetinha nos braços. Ela é muito feliz para ser real.
A vida é uma merda. É cruel e injusta e sempre te passa a perna. Ela
destrói sonhos e cospe na sua cara. Quando uma criança faz quinze anos, ela
entende que a amargura não vai desaparecer e a vida está destinada a ser
dolorosa. Quinze anos é a idade na qual as crianças ficam com raiva.
Mas August não.
Não é justo. Sua garganta está quente e seus olhos picam com a
esmagadora injustiça. Não é justo que ela consiga ser feliz.
Beck senta-se na arquibancada – longe dos grupos de adolescentes sociáveis
– e lamenta ter esquecido de pegar um pedaço de pizza para si mesmo.
August. Ela é a culpada. Ela é um problema, de todos os ângulos possíveis.
Ela é particularmente um problema quando se joga na grama ao lado dele,
com uma barrinha de cereal, sua mochila e um sorriso insuportável.
— Eu tentei ser legal sobre isso — diz Beck — mas eu realmente não
suporto seu rosto.
August abre sua barrinha de cereal. — Você quebra o meu coração. É uma
pena que eu ache seu rosto tão adorável. Bem, a metade que não está roxa. —
Ela deita de costas e dá uma mordida da barrinha com um profundo suspiro.
Ela está... flertando?
— Você não tem amigos? — Beck diz. — Ou paredes para chutar?
— Eu tenho amigos. — August fecha os olhos, como se a barrinha fosse
algo sagrado. — Mas, e você? Como é que eu nunca vi você, perseguindo
uma bola de futebol com outros garotos agressivos e hormonais, que acham
divertido grunhir e chutar uma bola?
— Prefiro me esfaquear na cara.
August abre um olho. — Ah. Alguém teve uma experiência ruim com
amizades. Ninguém dividiu seus carrinhos de brinquedo com o bebezinho
Beck? Quer falar sobre isso?
— Hmm, deixe-me ver. Não.
August apoia a cabeça no braço e dá outra mordida na sua comida. —
Você é tão confuso, Keverich. Um dia você me carrega, no outro você faz de
tudo para me ignorar. Eu costumava ter um cachorra como você.
Completamente psicopata, sempre me mordia e atacava qualquer um que
olhasse para ela.
— Deixe-me adivinhar. Você a abraçou?
— Na verdade, papai atirou nela.
Beck engasga, como se alguém tivesse dado um soco na garganta. Ele se
inclina para frente e tosse tão violentamente que August bate nas costas.
— Estou brincando! — Ela ri.
— Ha, ha.
August o empurra levemente. — Meus pais tem uma clínica veterinária e
um centro de resgate de animais. Eles basicamente abraçam os cachorros
cruéis e os alimentam com guloseimas.
Ela termina a barrinha e deixa as migalhas caírem na grama.
Beck odeia como isso o incomoda. Que desperdício. Ele daria tudo por
algumas migalha a essa altura, já que não teve janta na noite passada e o café
da manhã foi um terror.
— Você vai me dar guloseimas também?— Beck pergunta.
— Se eu achasse que iria funcionar, absolutamente. — August levanta uma
sobrancelha. Ela tem sobrancelhas ridiculamente grossas e selvagens, que se
curvam a cada expressão.
Beck dá um suspiro sofrido. — Existe alguma razão para você ainda estar
aqui? — Pelo menos ele pode beber água para encher o buraco negro no
estômago. Água ou água. A vida é tão cheia de opções divertidas.
— Na verdade sim. — August enfia a embalagem de volta na bolsa e
vasculha o caos de pastas e papéis.— Decidi contrastar nossos gostos
musicais, para o trabalho.
Música.
Por quê
ela
escolheria
música?
A boca de Beck está seca. — Como isso é político ou moral?
August tem um olhar astuto. — E aqui eu pensando que você não estava
prestando atenção. Mas já que você perguntou, é religioso na verdade. Vou
do ponto de vista que, algumas pessoas admiram tanto uma banda ou artistas
que acabam sendo influenciadas, e vou descrever a diferença entre gostar de
música e ser obcecado por ela.
Parece complicado. — Bem, ótimo. Tenho uma irmã de cinco anos que é
viciada em berrar A Dona Aranha, o dia inteiro. Você pode comparar isso
com – o que você ouve? Músicas românticas, do tipo garota termina com
garoto e aí eles se beijam e final feliz?
August pega um caderno da bolsa, vira para uma página limpa – a maioria
delas está coberta de rabiscos — Na verdade, ouço indie rock. Já ouviu falar
de Lemon Craze ou Twice Burgundy?
— Que tipo de nome é duas vezes Borgonha?
— Eu não sei. Uma vez Borgonha talvez já estivesse sendo usada? Tem
um toque legal. Você já ouviu, pelo menos uma vez, a música Falling Into
Technicolor?
Eles parecem como idiotas que compõem letras depois de usar muita
maconha e tomar vodka. — Não.
August bate o caderno na testa. — Você é uma decepção, Keverich.
Ele ignora o nó na garganta.
— Eles são gloriosos. — August levanta os braços como se fosse abraçar o
céu. — Eles são estranhos e a maioria das letras parece que eles estavam
drogados quando escreveram — Há! Ele sabia! — mas eles têm alma, e eu
estou apaixonada por um, ou pelos dois.
Beck administra um sorriso tenso. Quando o sinal tocará e o salvará?
— Então — ela volta a bater a caneta no caderno — quais são as suas
bandas de rock ruim?
Espere um pouco enquanto ele faz uma lista com: Liszt, Grieg, Chopin e
Bach. Enquanto ele explica o quão melhor são os pianos Steinway do que os
Yamahas. Enquanto ele explica que interpretar Rachmaninoff o faz se sentir
poderoso.
— Hm, sim. — Beck analisa seu cérebro por um nome, qualquer nome. —
Todos eles. Desde que sejam – hm, bem barulhentos. — Se ela insistir em
detalhes, ele apenas sairá correndo.
August olha seriamente para ele, depois dá de ombros como se ele fosse
um perdedor e rabisca anotações. Ela fica em silêncio por um minuto, e Beck
encontra-se distraidamente com os dedos tocando uma série de notas de
Chopin. Ele para e fecha a mão em punho. Ele pode explodir por ser tão
idiota?
— A propósito, você me deve. — August faz uma pausa e aponta a
canetinha roxa perigosamente perto do nariz de Beck. Ele se afasta. — Ainda
não decidi o que, mas provavelmente será você me trazendo chocolate todo
dia, por um mês.
— Tenho certeza de que não é a única resposta para isso.
Talvez ele compre um chocolate como agradecimento – se ele tiver
dinheiro. Mas se ele tivesse dinheiro, compraria um sorvete para Joey ou,
compraria para si mesmo um jeans que fosse do tamanho certo.
— Ou — diz August — você poderia concordar com uma trégua de
amizade.
— Mas amizade implica que somos amigos e não somos, e trégua implica
que estamos brigando.
— Não estamos brigando?
— Eu chamaria isso de desconhecidos que se odeiam.
— Eu não sou uma desconhecida. — Ela passa um braço em volta do
pescoço dele. — E eu não te odeio.
Beck se afasta. — Você irá. Só espere um pouco.
— Então mate aula comigo.
Beck olha.
— Oh, não seja certinho. — Ela puxa uma faixa de cabelo do pulso e
amarra em um coque. — Você veio para a escola, então isso já é algo, e acho
que você e seu rosto roxo precisam de uma folga. E eu poderia usar um dia de
saúde mental. — Ela coloca seu caderno de volta na mochila. — Vamos sair
em uma busca de bolo.
Ela põe-se de pé e estende a mão para ele.
Beck Keverich não age. Ele fantasia. Ele anseia. Mas no final, ele faz
exatamente o que deveria fazer.
Até que ele pega a mão dela, é puxado para cima, e de alguma forma diz:
— É melhor que seja um bolo grande. E eles abandonam a escola – passando
pelas zombarias e presunções de que ele é um saco de pancadas e ela é uma
abraçadora de árvores – finalmente escapando para serem pessoas diferentes.

Parece ser uma tarefa impossível. Encontrar um bolo? Fugir da escola?


Vestindo uniforme? Beck tem certeza absoluta de que alguém apontará e
gritará: ELES ESCAPARAM DE SUA PRISÃO! e irá levá-los de volta.
August não compartilha de seu medo.
August provavelmente existe em uma realidade alternativa, onde nada é
impossível, ninguém é muito mau e o sol não para de brilhar.
Atravessam a área de futebol e abrem caminho por um pequeno pedaço de
matagal até a estrada. De lá, é uma caminhada até o pequeno shopping. Não é
nada chique. A maioria das lojas estão fechadas e as que têm mais sucesso
são as lojas de um dólar e o McDonald's. É torturante passar pelo cheiro das
batatas fritas e dos hambúrgueres de queijo. Ele comeria praticamente
qualquer coisa a essa altura.
Mas August os leva para uma cafeteria em um canto esquisito, que tem
exatamente zero clientes, exceto eles.
Nenhuma das mesas e cadeiras combinam, e as flores ficam em garrafas de
cerveja como peças centrais. A parede é um quadro-negro com um milhão de
rabiscos em todas as cores e a outra está repleta de molduras incompatíveis.
Os apanhadores de sonhos penduram tão densamente na entrada que dão um
tapa na cara de Beck – e depois na parte de trás da sua cabeça.
— O que exatamente eles vendem aqui? — Beck esfrega a nuca e olha
para uma pilha de tambores de bongô, que pode ser para decoração ou para
clientes aleatórios tocarem. August balança o dedo para ele. — Quando uma
pessoa vai comprar bolo para você, você não questiona nada.
— Posso questionar os ingredientes do bolo?
— Não, seu filhote ingrato. Você come, mesmo que seja feito de sementes
de chia.
O que – o que são sementes de chia? Ela está falando sério?
Será esta sua última refeição na terra...
— Beck — August diz pacientemente — este é um café alternativo.
Apenas sente-se e mantenha sua mente aberta. — Ela aponta para uma mesa
que provavelmente é uma antiguidade com uma cadeira que provavelmente é
do lixão. — E por favor, não faça barulhos horrorizados.
— Como assim alternativo? — A voz de Beck é um pouco alta.
— Eles, tipo, adoçam o bolo com corações humanos?
— Hum, provavelmente adoçam com estévia mesmo...
Beck se senta. — Será a minha morte, rápida e indolor?
August bate nele.
Ela desliza ao redor do caixa – Beck tem certeza de que não é assim que
você pede – e desaparece através de uma cortina de contas, indo para a
cozinha. Há batuques e flautas tocando em um alto-falante em ruínas. August
entrou a apenas um segundo e já se ouve os gritos e saudações da cozinha.
Alguém grita que faz nove anos que não a vê.
Beck se arrepende de ter vindo – é tudo muito estranho – mas ele está com
muita fome.
August reaparece, claramente satisfeita consigo mesma. — O primo da
melhor amiga da minha mãe trabalha aqui. É tudo pela metade do preço para
mim. Além disso, ele não vai ligar nem para escola nem para os meu pais.
— Como somos sortudos — A voz de Beck é fraca. — Eu tenho que pegar
minha irmã às três.
— Nós temos tempo. — Os olhos de oceano de August se fixam no rosto
de Beck com uma expressão séria e olhar penetrante que o deixa
desconfortável. — Estou quase totalmente certa de que você levará menos de
dez segundos para comer um bolo. Você ao menos comeu alguma coisa esses
dias?
— Eu comi — Beck diz, defensivo.
— Meu pai só precisa de uma olhada em você para tentar imediatamente te
engordar. — August balança a cabeça, sorrindo.
É estranho para Beck como ela menciona seus pais de forma
despreocupada, amorosa, como se eles não reepreendessem severamente tudo
que ela faz ou gritassem todos os dias o quanto ela é inútil.
— Você os conhecerá quando for na minha casa — diz ela.
— O que?
— Oh, você vai lá eventualmente. Eu sei que sim.
Beck resiste ao desejo de sair correndo pela porta. Por que August o faz
querer correr e ficar ao mesmo tempo? Como é que ele não consegue reunir
energia suficiente para realmente se livrar dela?
Porque ela presta atenção nele? Porque ela ri, em vez de se ofender das
suas piadas sarcásticas? Porque ela está comprando bolo para ele?
Precisa parar. Isso precisa parar.
Um garçom desliza para fora da cortina de contas, carregando uma bandeja
que parece ter sido feita a partir de uma caixa velha. Ele tem longos cabelos
escuros que caem até os ombros e calças de pescador que balançam tanto que
parecem uma saia. Mas a camisa dele diz Seja rude e eu vou te dar um soco,
que meio que acaba com a vibe calma.
Beck sabiamente decide não ser rude. Nunca.
— Yum, obrigado Morris — diz August. — Parece delicioso.
Um hippie violento que se chama Morris?
— Qualquer coisa para o nossa August favorita. — Morris pousa os pratos
e canecas e sorri torto. — Não vou denunciar, mas matar aula...
— Eu sei eu sei. — August se transforma em um cachorrinho
pateticamente adorável. — Mas olhe meu amigo – ele está praticamente
morrendo de fome.
Morris aperta os olhos para Beck. — Bem, ele parece o seu tipo, eu acho.
— Hum — diz Beck.
— Você sabe — diz Morris — lamentável e faminto — Obrigado, Morris
— diz August — Tchau, Morris.
— Tudo bem, tudo bem — Ele encolhe os ombros, enfia a bandeja debaixo
do braço e volta para a cozinha.
— Quantos meninos lamentáveis e famintos você traz aqui? — Beck diz,
ligeiramente decepcionado.
August gira seu prato, como se o bolo tivesse um sabor melhor, um ângulo
específico. — Cale a boca e coma, Keverich.
Beck cutuca o bolo com o garfo. Não parece indigesto – mas ele está
acostumado com a comida de Joey – e parece estar recheado de nozes e frutas
secas. A bebida tem uma espuma espessa e cremosa com canela em pó por
cima. Não cheira a... chocolate ou café. O que poderia ser isso?
No que ele se meteu?
August come seu bolo com alguns gemidos de delícia.
— Então — ele diz, pegando o bolo e olhando para ele — eu estou
comendo o Steve?
— É estévia. — August lambe o garfo. — Uma forma alternativa para o
açúcar. Mas não diga essa palavra aqui.
Beck está com muita fome. Ele corta o bolo e murmura: — Existe um pote
de palavrões para o caso de eu precisar dizer – santa merda, o que é essa
maravilha em forma de bolo?
August inclina a cabeça e ri.
Beck abandona o garfo, e apenas pega o bolo e morde um bocado. É como
bolo de frutas, mas também amêndoas e também pequenas explosões de
chocolate e um pouco de brownies. Ele nunca provou algo tão bom.
— Eu poderia comer, tipo, nove pedaços — diz ele com a boca cheia.
— Eu sabia que você ia gostar.
— Na realidade — Beck lambe o polegar — você totalmente duvidou.
— Bem. É verdade. Mas eu ia dar um soco na sua cara se não gostasse.
— Então você, secretamente, queria que eu o odiasse para poder ter essa
oportunidade.
August coloca os cotovelos na mesa e aponta a colher para ele.
— Você tem uma autoestima tão baixa, é meio triste, mas ainda assim
adorável. A verdade é que tentei trazer meus amigos aqui e eles… — ela
encosta na cadeira, com o rosto entristecido. — Eles foram muito rudes com
tudo.
— Isso é péssimo. — Beck só pensa no fato de que August, talvez não se
encaixe com as amigas dela como ele pensava, e no fato de que seu bolo
acabou. — Eu nunca seria rude, é claro.
August bufa, mas ela levanta da cadeira e desaparece de volta na cozinha.
Ela volta com outra fatia de bolo, maior que a de antes.
Beck precisa agradecê-la, mas ele precisa se esforçar para lembrar disso,
porque um pedaço de chocolate derreteu no centro e ele precisa comer.
Imediatamente. Este bolo é a oitava maravilha do mundo.
A bebida – um latte com dente de leão, explica August – não é tão
deliciosa, mas ele ainda bebe a coisa toda e provavelmente teria tomado um
refil. Ou dez. Talvez ele tenha gostado? Talvez ele goste de tudo. Talvez é
por isso que August é tão feliz. Bolo! E café – bem, hum, seja lá o que isso
for! Todos os dias!
— Poderia ser um pouco mais doce, você não acha? — Beck diz – na hora
errada, já que Morris saiu da cozinha para limpar outra mesa.
Um olhar duro diz que ele ofendeu Morris.
— Sinto muito — Beck sussurra para August. — É só que o chá tem
aquela vibe de algo está morto aqui, sabe?
August dá um soco nele. — Você vai ter que se acostumar. Mas vamos
devagar. Hoje bolo de amêndoa, amanhã caldo de açafrão e rissóis de alfafa.
— Gostaria muito de ir embora agora.
August desaparece para pagar e apaziguar o ferido Morris, e volta com um
saco de papel com biscoitos. Ela sacode na cara de Beck. — Para Joey, e para
nossa caminhada de volta.
Beck está horrorizado. Ele se esqueceu totalmente de Joey. Que tipo de
irmão horrível ele é? Isso amortece sua alegria com o estômago cheio e ele se
prepara para uma caminhada ao lado de August. Ele não tem certeza do que
pensar sobre o passeio de hoje.
Não sabe o que pensar dela.
E talvez ele devesse apenas ficar calado, aceitar o bolo e o ramo de
oliveira, aceitar a sua gentileza. Mas, após saírem do shopping, contornarem
pilhas de carrinhos roubados em uma vala e tropeçarem na calçada rachada,
ele tem que perguntar.
— Por que você está realmente fazendo isso? — Beck diz calmamente.
Por favor, universo, não deixe que ela diga, porque você é patético e
precisa de um amigo ou está claramente faminto e sendo abusado, por isso
estou cumprindo meu dever de cidadão decente. Embora o que mais poderia
ser?
August não responde rápido, o que é bom – ela está pensando seriamente
pela primeira vez.
— Você é interessante, Beck Keverich, mesmo que não me diga seu nome
completo ou quem bateu em você. — Ela caminha na beira da sarjeta, braços
abertos em busca de equilíbrio, o saco de biscoitos enrolando ao vento. —
Você é gentil, mas também é malvado – e isso é confuso. Você fica super
mal-humorado quando está com fome.
— Ela lança um sorriso atrevido. — Mas eu já resolvi isso.
Ele considera empurrá-la em uma poça.
August diz calmamente. — Você é como essa sombra esquecida, sempre
ao fundo, e me deixa tão curiosa. E sua vida obviamente não é só torta de
pêssegos e narcisos, e acho que isso significa que você está precisando de
uma amiga. Você é estranho.
Sou estranha. Por que não? Oh. — Ela faz uma pausa. — Quase esqueci.
Você tem olhos lindos.
Sua garganta dá um nó.
August pula da sarjeta e se vira para encará-lo. — Não preciso saber. Não
vou continuar perguntando. Mas você sabe onde eu moro, então, se você
quiser uma pausa de — ela acena vagamente para seu rosto — tudo isso, você
pode vir. A qualquer hora.
Autoconsciente, Beck toca o lábio raspado, a bochecha inchada e se afoga
no conhecimento sufocante que alguém percebe.
E se importa.
A Maestra não diz para ele voltar a tocar.
Mas Beck volta.
Por hábito? Para agradá-la? Por que mesmo que doa, ele é viciado?
Beck toca escalas para tirar a rigidez dos seus dedos, para sacudir a semana
que passou em silêncio. Depois, ele começa exercícios cada vez mais rápidos,
como mil bolas de gude caindo da escada. Mas as peças? Bach, Schumann,
Chopin – toda vez que ele tenta tocá-las, as notas ficam borradas e ele tem
que esfregar os dedos sobre o couro cabeludo em agonia nervosa. Porque ele
vê... a platéia impaciente, a fúria derretida no rosto da Maestra, o silêncio
estagnado enquanto ele tenta tocar, a falha, estrangulando-o.
Mesmo depois de uma hora de escalas irritantemente repetitivas, seus
dedos doem querendo tocar sua própria música, em vez das da Maestra. Mas
ele não ousa deixar as notas respirarem.
Ele toca por horas. Ele esquece bolo, a liberdade e August. É melhor
assim.
Ele toca até às oito e só para porque ouve Joey se preparando para dormir.
Ela não deveria ter que ouvi-lo tocar loucamente enquanto dorme. Em vez
disso, ele procura por comida – o que é mais difícil do que encontrar uma
agulha no palheiro. Parece que a Maestra fez espaguete enlatado, então Beck
aquece para si uma tigela de plástico, e rabisca música nas costas de uma
embalagem antiga enquanto come.
Apenas o som da colher contra a tigela diz à casa que ele está vivo. Ele
está lá.
Então ele sonha acordado com a música – sua música – e como seria
escrevê-la. Ele adiciona mentalmente alguns instrumentos de corda e de
sopro, e se pergunta se ele poderia criar uma orquestra inteira em sua cabeça.
Ele se pergunta se deixaria o nome Keverich orgulhoso, compondo em vez
de tocando.
Como se a Maestra fosse deixar. Ha.
Tem o tio dele, o famoso pianista e compositor, mas o fato da Maestra o
xingar e elogiar de uma só vez – porque ele ainda pode tocar música e ela não
pode? Cimenta o fato de que a Maestra ficaria furiosa se Beck começasse a
compor. Além disso, ela nunca compôs, então por que ele precisa, quando ela
exige que ele siga seus passos? Beck nem consegue tocar os études que a
Maestra e o irmão haviam aperfeiçoado, com os olhos fechados, na idade
dele.
Como ele ousa escrever sua própria música? Se ele sussurrasse sobre seus
sonhos de compor, ela veria isso como rebelião e ficaria furiosa.
Ela entra na cozinha, a sala encolhendo ao seu redor enquanto ela a enche,
com a sua carranca, sua altura e suas expectativas. Eles não se falam desde o
teste, nem se entreolharam. Beck brincou com a idéia de que ela poderia
desistir dele completamente e simplesmente ignorá- lo – o que seria,
basicamente, a melhor coisa do mundo.
Sem dizer uma palavra, ela pega a chaleira, procura uma caneca e um
saquinho de chá.
E ele a odeia por isso.
A Maestra não age como alguém que foi quebrada pela metade.
Ela não se esconde em uma pilha ou se encolhe em lágrimas pensando nos
e se.
Mas Beck faz .
Isso o faz querer arremessar seu espaguete, ficar de pé, gritar, enfurecer-se
com a forma como ele é tratado, quando não merece nada disso, quando não
foi sua culpa o fim de sua gloriosa carreira.
Foi o derrame.
Beck toca seu lábio machucado. Lembrando.
A colher da Maestra bate contra a caneca enquanto ela derrama água
quente. — Você já terminou de praticar?
É uma pegadinha? Beck gira sua tigela vazia. — Bem, Joey está na cama,
então... não quero incomodá-la. — Não é um sim ou não.
Ótimo trabalho.
— Ainda não ouvi os études. — Ela pega a caneca, mas para, sua mão
tremendo com força. Ela descansa no banco e ainda não olha para o filho.
Como se ele tivesse esquecido os condenados études. Mas o que ele pode
dizer? Hm, não, porque pretendo nunca mais tocá-los?
Ele preferia fingir que esses études nunca existiram, que nunca esteve
naquele palco e os esqueceu.
Ela pega sua caneca e toma um gole. — Geh — ela diz. — Vai.
— Mas é tão tarde... — Beck interrompe.
Os olhos dela são pedras de aço.
Ele abandona sua tigela manchada de vermelho na pia e marcha para o
piano, porque, aparentemente, ela não deixará mais ele tirar férias.
A Maestra o segue. Ela coloca sua caneca em cima de alguma partitura
antiga no piano – Beck percebe as marcas vermelhas na mão, queimaduras
frescas de onde ela derramou chá quente e está orgulhosa demais para fazer
curativos. Ela assente para ele começar.
Beck pega a partitura, levemente amassada, do assento do piano. Mas
assim que ele desamassa-a um pouco, a Maestra pega e a joga na cama dele.
— De cabeça. — Ela aperta um dedo no crânio dele. — Você os conhece.
Você sabe.
— Eu esqueci.
Seus dedos se fecham em um punho, mas o golpe não vêm.
Beck se encolhe. — Eu esqueci — ele sussurra. — Eu juro, eu…
não sei o que aconteceu, eu...
— Toque! — ela late.
Beck repousa as mãos nas teclas, tocando um pouco, e freneticamente tenta
lembrar-se das notas. Mas elas se foram. Elas se foram – se foram – se foram.
Ela bate o dedo na primeira nota, a nota certa. E isso o atinge rapidamente.
Sim. Esse é o acorde. Seus dedos a encontram e pressionam.
Os olhos da Maestra estão quentes em seu pescoço. – Você não esquece a
música, Junge. Ela está sempre na sua cabeça. — Ela aproveita a
oportunidade para esfaqueá-lo com o dedo novamente. — Mas o que você
está fazendo? Stopp! Você é um rato tímido? — Sua voz se eleva.
Beck retrai as mãos das teclas.
Ela puxa seus cabelos e ele coloca as mãos sobre as dela.
— Você toca as notas como se elas mordessem você, Junge? Ou você as
toca com fogo, com paixão, como se fossem as mais importantes notas do
mundo? Esses études são meu legado – você vai cuspir nisso?
Seu olhar diz que ela não gostaria de nada mais do que sentar no piano e
tocar, tocar e nunca parar. Mas desde que as suas mãos começaram a tremer,
ela não toca mais o piano. Beck se pergunta o quanto ela sente falta – das
luzes, do palco, dos aplausos, das pessoas reconhecendo o verdadeiro talento
de um músico, cuja alma foi tecida junto com o piano. Ela estava feliz
naquela época? Quando sua vida era feita de apresentações, com milhares de
sorrisos e congratulações. As rosas em suas mãos perfeitamente equilibradas?
Ela escolheu todo o repertório baseado nas peças em que mais se destacou.
Peças que a tornaram famosa, que ela jura que farão dele famoso. Ela as
conhece melhor do que seus próprios batimentos cardíacos. É por isso que ela
odeia quando ele erra. Ele deseja conseguir. Ele deseja, apenas uma vez,
poder tocá-los perfeitamente para ela, já que ela teve todas as notas que
amava arrancadas.
— Juro que esqueci — diz Beck. — Por favor, eu reaprendo. Eu só preciso
da partitura...
Desta vez, o golpe é mais forte e seu pescoço vai para frente, quase
batendo contra o piano.
Sua voz está calma agora, calma, mas amarga. — Por que eu desejo que
você toque piano?
Outra pergunta enganosa. Beck abre a boca, mas as palavras foram
embora. Porque você quer me controlar? Porque você falhou, então eu tenho
que ter sucesso?
Beck olha atentamente para as teclas.
A Maestra dá um empurrão nele e, de alguma forma, desafiando as leis da
física e as pequenas restrições de seu quarto, ela desliza para o banco ao lado
dele. Ela não bate nele. Ela se senta rígida e austera, e Beck perde todo o
senso do que é normal, do que é certo, do que é esperado. Ele mal consegue
respirar.
— Há música dentro de você — diz a Maestra. — Assim como, uma vez
existiu em mim.
Não é o que ele esperava.
— Mas minha música foi roubada — diz a Maestra, estóica, embora Beck
possa ver, pelo canto do olho, como as mãos dela estão tremendo. — Você
ainda tem a sua. E você desperdiça esse presente? Você ignora?
— Não — ele diz, sem saber se está se defendendo ou fazendo uma
promessa.
Ela fecha os dedos em um punho para parar os tremores. — Isso não
significa nada para você, quando deveria significar tudo.
Não deveria doer, não depois de tudo, mas seus olhos estão quentes e ele
deseja que ela apenas cale a boca e vá embora. Ela já contou tudo isso a ele,
milhares de vezes.
Quão difícil seria dizer bom trabalho, você pode fazer melhor porque eu
acredito em você?
— Quero o melhor para você, Sohn — diz a Maestra.
Por favor. Ela quer o melhor para si mesma.
A Maestra continua: — Eu quero que sua música, quero que você,
signifique algo neste mundo. Seu tio vem em turnê ao nosso país em breve, e
você tocará para ele. Magnificamente. Você vai.
É quase uma conversa amigável. Mas o tio dele? Mais expectativas
estrondosas para ele falhar? Ótimo.
— Toque — ela ordena. — Toque Chopin. Toque direito.
Então ele faz.
Ele começa, com erros hesitantes no começo, e então ele se lembra. Os
acordes envolvem seus dedos enquanto ele os toca no piano. Ele tenta tocar
suavemente, por causa de Joey, mas a Maestra bate na sua cabeça dos dedos
dela, então ele se joga na música.
A música não é nada, a menos que encha sua alma de cor, paixão e sonhos.
Mas Beck não consegue encontrar nada disso, não pode ligar essa paixão a
uma música que não é dele. Ele pode acertar todas as notas, mas qual é o
objetivo? Ela nunca dirá bem feito. Ela nunca sorrirá depois que ele dominar
um acorde difícil. Ele toca como um garoto que está apenas tentando demais,
com os dedos cansados até os ossos.
De alguma forma, ele ainda quer ver um sorriso no rosto dela, como
quando ele era pequeno, e o queixo dela se inclinava para trás em uma onda
de risos, enquanto ela proclamava que o filho dela era um prodígio da
música.
Em vez disso, ele toca os études.
De novo e de novo
E de novo
e mais uma vez.
A Maestra se levanta, assente, seu pé bate no ritmo. — Toque todos os
dias, todos os dias, até que você não possa esquecer.
— Sim, Mutter — diz Beck, derrotado.
Essa é a punição por ter uma amiga? Por finalmente fazer alguma coisa em
vez de desejar?
Essas oitenta e oito teclas do piano fazem parte dele, mas elas precisam se
tornar toda a vida dele?
Sua mandíbula aperta até ele pensar que vai quebrar – e seus dedos
destroem o étude final. Ele olha para ela, ardente e desafiador por meio
segundo, desafiando-a a apontar as notas erradas.
Desafiando-a a dizer que ele é inútil.
Os olhos da Maestra estão tristes ou melancólicos – ou apenas mortos. Ele
não sabe dizer.
— Você poderia ser alguma coisa, Schwachkopf. Você poderia ser.
Mas ele não é, é?
Ele
é?
Ela sai sem dizer que ele tocou mal.
Não há tortura pior do que tocar uma música repetidas vezes.
Beck não consegue acertar o étude, não consegue tirar o cansaço depois de
tocar por metade da noite, não consegue se livrar da sensação de que a
Maestra está agindo diferente – estranha – desde que ela disse que ele
poderia ser alguma coisa. Ele não sabe o que isso significa.
Isso significa alguma coisa?
Ugh, ele está cansado.
Mas, parabéns ao universo, o Chopin foi tão ferozmente gravado em seu
cérebro que ele deseja poder bater a cabeça contra uma parede para silenciá-
lo.
Em vez disso, ele vai para a escola.
Já fazem semanas desde a escapada para bolo, mas Beck ainda sente uma
pontada ao ver August – o que é? Nervos?
Ansiosidade? Ele congela, encolhe os ombros e não consegue pensar em
nada para dizer. Até que ela comece a falar. Até que ele descongele. Até que
encontrem o conforto na presença um do outro.
Está molhado e frio quando Beck e Joey saem de casa para a escola. Joey
veste uma capa de chuva vermelha brilhante e basicamente parece um sinal
de perigo. Beck usa um capuz grande demais, mas dificilmente é à prova
d'água. E August, como sempre, está completamente mal vestida. Ela usa
sapatos, pelo menos, com meias listradas em néon até o joelho, mas não está
usando um casaco. Seu corpo é uma onda de arrepios enquanto eles andam na
chuva.
— Eu vou pular nas poças! — Joey avisa e depois avança alguns passos.
— Você vai se molhar... — Beck diz, mas Joey apenas o xinga em alemão
e apenas sai correndo. Oh, esqueça. A professora da pré-escola vai descobrir
sozinha o que fazer com uma criança de cinco anos encharcada.
— Eu terminei a redação. — August dá um tapinha em sua bolsa. — É
absolutamente inspiradora.
— E se eles souberem que eu não fiz nada?
— Você vai receber detenção. Ou uma expulsão. E você meio que merece
os dois, mas — ela mexe as sobrancelhas — eu sou, felizmente, super legal.
Escrevi sua parte com a mão esquerda, para que pareça ruim o suficiente para
passar por você.
— Você é legal.
— Você — August coloca entre aspas no ar — é um escritor horrível
comparado ao meu eloquente vocabulário. Sem ofensas.
Beck encolheu os ombros.
— Você diz algumas coisas idiotas — August acrescenta. — Mas não
estou aqui para fazer você parecer inteligente. Eu não sou uma milagreira.
— Eu posso viver com isso.
— Você tem um momento de fanboy. — O sorriso dela é mau.
— É hilário. Você usa a palavra incrédulo de forma errada, mas o que
importa é que você adora essa banda de rock hardcore. Quem pensaria que o
quieto Beck poderia ser tão apaixonado por música?
Ha. A ironia.
August faz uma pausa para lutar com sua mochila e pegar seu iPod. Ela tira
o cabelo molhado do rosto e coloca um fone de ouvido, cobrindo a tela do
iPod para protegê-lo da névoa. Acabou a conversa? Beck não tem certeza se
isso é um alívio ou uma decepção.
Mas August arranca o fone da orelha e o joga em Beck. — Escute isso.
Você precisa. Sua existência depende disso.
— O que isso quer dizer? Você vai me matar e me jogar em alguma vala,
se eu não ouvir?
— Sim, — diz August sinceramente. — Não me transforme em uma
assassina. Apenas ouça.
Beck pega cuidadosamente o Ipod estendido, como se estivesse
queimando. A última coisa que ele quer é ouvir música. Ele anseia pelo
silêncio.
— Hum, você sabe como um Ipod funciona, certo? — August diz.
Beck percebe que precisa fazer mais do que colocar os fones de ouvido.
Ele aperta o botão de play e dá a ela um olhar sombrio – mesmo que ele, na
verdade, não tenha idéia de como usar um iPod.
Ela levanta as mãos em sinal de protesto. — Nunca te vi a menos de três
metros de um computador! Ou com um telefone. Ou até usando uma
calculadora.
— Então você supõe que sou péssimo com tecnologia?
August revira os olhos. — Concentre-se na música, Keverich.
Abrace o grande conhecimento que receberá do Twice Burgundy.
Mas eles estão em um farol, o que significa pausar e cada um pegar a mão
de Joey e ficar balançando-a enquanto cruzam. Então Beck anda, com a
banda favorita de August em seus ouvidos.
Compartilhar músicas é pessoal, porque a música fala, sente e respira. E
sempre diz algo sobre você.
Beck ouve com atenção.
O que ele esperava? Letras bêbadas e flautas? Em vez disso, há um violão
e vozes misturadas em dolorosa perfeição. Em um minuto, eles são rápidos e
violentos como uma tempestade de verão – e depois, compartilham uma
canção de ninar sobre mudanças e perdas.
Ele nunca ouviu uma música assim antes.
Não é como se ele fosse um virgem de música contemporânea.
Ele já ouviu – coisas. Anúncios na TV. Alto-falantes do shopping center
lançando o mais recente single no topo das paradas. Os vizinhos tocando uma
música estridente por vinte e quatro horas direto para calar às aulas de piano à
meia-noite de Beck. Costumava haver gritos por cima do muro, mas você não
ganha discussões com a Maestra. Até que eles finalmente desistiram e
começaram a ignorar os incessantes vizinhos que tocavam piano.
Mas a música de August tem um gosto diferente. Ele quer mais.
Já tocou três músicas e ele não disse uma palavra, e de repente, eles já
estão no portão da pré-escola. Desorientado, ele tira os fones dos ouvidos e
leva Joey para a escola. Então ele sai, segurando o iPod, sentindo-se sem
fôlego, como se tivesse acabado de acordar e percebesse que sua existência
desapaixonadamente cinzenta está finalmente cheia de cores.
Os lábios de August torcem em um sorriso. É irritante, mas ele está sem
palavras. Seu cérebro palpita inteiramente com música.
— Você gosta deles — diz August. — Você os adora. Você percebeu que
sua existência era infeliz até conhecer o Twice Burgundy.
— Você está de brincadeira? Eu odiei. — Beck se pergunta como ele pode
conseguir mais dessa música. Ele precisa de mais.
August bufa. — Claro que você odiou. Se você quiser, pode pegar
emprestado meu iPod por um dia e continuar odiando. — Com uma jogada
de cabelo e seus colares balançando, August se afasta.
— Não deixem confiscarem meu Ipod! — Ela é engolida por um
amontoado de amigos – amigos estranhos, sem sapatos ou com muletas, que
se abraçam e inclinam-se para compartilhar uma história com ela. August é
apenas magnetizada para os desajustados e machucados?
Beck segura o iPod como se fosse a sua vida, e se pergunta por que seus
estúpidos pés não correram atrás dela para dizer alguma coisa, algo legal,
como: Obrigado, August, essas músicas salvaram minha vida.

Beck decide se esconder e evitar August – o dia inteiro. Para alguém que
fugiu com o iPod dela, é rude, mas ele quer ouvir mais.
Precisa ouvir. Ele ama o jeito que a música dela afoga os études em sua
cabeça. Mas odeia o jeito que anseia por isso.
É realmente culpa de August, porque ela tem trinta e seis músicas do Twice
Burgundy, e ele tem que ouvir todas elas.
Beck se esconde na biblioteca durante o almoço – o último lugar que
alguém poderia adivinhar. Entre as estantes de não-ficção, come um feijão
enlatado e um sanduíche de geleia preso com palitos de dente, que quase
entalam na sua garganta. Obrigado, Joey.
Ele até consegue usar os fones de ouvido na sala de aula, já que a chuva
deixou todo mundo maluco. Metade das crianças vem do almoço cobertas de
lama de um jogo de futebol. Tudo cheira a velho e molhado. Os professores
alternam entre dar suspensões, limpar a lama e instruir o garoto que caiu em
uma poça, a ficar embaixo do aquecedor – que acaba por ser ligado no gelado
e provavelmente dá hipotermia ao garoto.
Beck observa desapaixonadamente e inala música.
August o alcança na pré-escola; quando ele aparece com Joey, uma nota
para a Maestra sobre o comportamento preocupante e violento de Joey nas
aulas, e uma nave espacial feita de recipientes de iogurte e pintada de rosa.
— Se você a carregar para mim, eu vou te amar quase para sempre — Joey
diz apaixonadamente.
— Uh-huh — Beck pega a nave, ainda com um fone de ouvido.
Ela beija o cotovelo dele e tagarela sobre sua criação.
Algumas crianças no ônibus zombam quando eles saem da pré-escola
carregando a catástrofe rosa. Ele não se importa, mas deseja poder cobrir os
ouvidos de Joey.
August parece um pássaro bagunçado. Ela tirou as meias de neon e as
colocou sobre as mãos e os braços, o que provavelmente é mais quente, mas
terrível de se olhar.
— Você vai andar a cidade inteira com o meu iPod? — Os olhos dela
brilham como se ele evitá-la fosse a coisa mais divertida do dia.
Beck devolve, lutando com a nave espacial. Joey trota atrás dele, apertando
as mãos em uma preocupação ansiosa de que ele derrube.
— Até esqueci que estava comigo — diz Beck. — Ficou guardado na
minha mochila o dia todo.
— Você estava ouvindo agora.
— Hum? O que? Não, não estava.
Ela lhe dá um empurrão brincalhão e ele tem que saltar sobre uma poça,
segurando a nave espacial como se sua vida dependesse disso. Depende. Um
beijo no cotovelo pode rapidamente se transformar em um chute na canela
quando se trata de Joey.
— Tome cuidado! — Joey grita e pula sobre a poça atrás dele.
Exceto que ela erra e acaba no fim. Ela sai zangada. — Não empurre ele
August, ou eu vou...
August levanta as mãos. — Desculpa! Desculpa! Eu não pensei direito.
Mas Beck tem um equilíbrio incrível, não é, Beck?
— Absolutamente. — Ele tenta girar a espaçonave para que Joey não veja
que está totalmente amassada de um lado.
Eles retomam a caminhada, mais dóceis agora. Mas August está
praticamente brilhando com um eu te disse.
— Qual música é a sua favorita? — ela diz. — The Agony of Two Freed
Souls in a Green Land ou Morning in the Lonely Spac e?
— Aquela chamada – Grill?
August bate a mão na coxa. — Oh, sim. Grill. Eu realmente amo Grill. Eu
amo como ela nem combina com o nome das outras músicas, mas ainda sim é
incrível.
Beck quer zombar, mas ele não pode. Se ele se deixasse, se ele
escorregasse por apenas dois segundos, ele poderia se apaixonar por essas
músicas e falar sobre isso por anos.
— É inspirador — diz August. — Twice Burgundy nos arremessa para o
espaço, estrelas e galáxias, e nos mostra como respirar.
Ele encolhe os ombros. — Eles são OK.
Seu olhar é quase formidável. — Pare com isso, Keverich. Pare de fingir.
Você fugiu com o meu iPod, o que significa que você está prestes a se casar
com todos os Burgundies como eu.
Joey, com os cotovelos para fora, empurra entre eles. — Quem vai se casar
com um hambúrguer? Quero me casar com um hambúrguer.
— Também quero me casar com um hambúrguer, Jo — diz Beck. — Mas,
August e eu estamos falando sobre – um harém?
— Poligamia. Custódia compartilhada de nossos verdadeiros amores —
diz August. — Porque Beck finalmente entendeu o que é música de verdade.
Não o seu rock pesado.
Não seria bom contar a ela? Agora mesmo? Apenas abrir a boca e deixá-la
saber – sobre a música em sua cabeça que queima ansiosa para ser tocada, ou
como os études de Chopin estão arruinando sua vida, como a Maestra o odeia
porque ele não é bom o suficiente.
Como ele está sufocando entre as teclas do piano.
Mas ele diz: — Minha música é incrível, muito obrigado — e um pouco
dele morre.
— O que? — August inclina a cabeça. — Eu não consigo te ouvir sobre o
som da minha música sendo incrivelmente melhor do que a sua.
Eles estão perto de casa e Joey corre à frente para abrir a porta, para Beck
levar sua preciosa criação para dentro.
Beck faz uma pausa para verificar o correio – ou ele está apenas adiando o
adeus?
— Você não ouve muita música, não é? — ela diz.
— Não desse tipo — diz Beck.
— Bem, estou feliz por poder apresentar o paraíso a você. — August faz
uma saudação com os braços cobertos de meias. — Mas cuidado, Beck. Você
está começando a agir como uma pessoa legal.
— Ela se vira e corre pela estrada molhada, sua risada de hiena voando
atrás dela.
Beck sabe disso. Ele deveria fazer algo sobre. Deveria...mas...
Ele segue Joey para dentro, tira os sapatos e meias molhados e coloca
gentilmente a criação de Joey na cozinha. Então ele desaparece, enquanto ela
grita com ele em alemão por causa da tinta.
Ele está quase sorrindo, quase feliz – ou algo assim, até a Maestra aparecer
à sua porta.
Ele tem uma camisa limpa e seca pela metade na cabeça e um repentino
mal-estar aparece no estômago dele.
A Maestra possui uma pilha de folhas de teoria. É apenas Beck ou a caneta
vermelha ficou mais selvagem, a letra mais ilegível?
Talvez seus tremores nas mãos estejam ficando pior.
— Lembra-se de como eu disse que mein Bruder está saindo da
Alemanha? Está acontecendo agora. Os arranjos estão sendo finalizados para
sua turnê no próximo mês.
Ah, o tio que ela amaldiçoa porque ele ainda é um pianista de sucesso – e
ela não é.
Beck puxa a gola da camisa polo. Ele deveria dizer algo?
— Ele concordou em ouvi-lo tocar.
Oh — Mas – mas isso não significa, quero dizer – o que isso significa? —
Beck diz.
— Significa tudo, — ela retruca, como se ele estivesse sendo ingrato.
Ele não pode ficar confuso? Ela está jogando essas bombas do nada.
— Se você impressioná-lo, ele lhe dará lições para corrigir sua técnica
desleixada.
— Tipo, apenas uma lição, certo? — Beck diz e hesita. — Porque ele
ainda vai voltar para a Alemanha?
Os lábios da Maestra se estreitam. — A menos que um milagre aconteça e
ele fique impressionado com o seu talento. — Os olhos dela dizem que é
improvável. — Se isso acontecer, você pode voltar para a Alemanha com ele,
trabalhar duro e deixar o nome Keverich orgulhoso.
Espera um pouco.
Ela – ela não pode.
— Mãe — diz ele, esquecendo o alemão, esquecendo de pintar a voz com
respeito. — Mãe, eu tenho apenas quinze anos. Eu nem terminei a escola.
Você não pode simplesmente me jogar em outro país. Eu...
— Se o seu tio te levar — diz a Maestra — E você vai. — Ela diz como se
fosse tudo, e nada mais importa — E se eu estragar de novo? — Ele fala
antes de pensar. Por que ele é sempre tão idiota? Ele diz isso como um
desafio, como uma ameaça, e seu rosto está quente com a preparação para
levar um tapa.
E se eu propositalmente estragar?
E se eu recusar?
— É por isso que, — diz a Maestra, — você praticará os études, sem
falhas. É por isso que você trabalhará duro. Jan Keverich é o pianista líder
nesta terra, nesta terra. Tê-lo aceitantando você como aluno significaria... —
Ela para, corada, excitada, fora de controle. — Um futuro. A fama dos
Keverich não vai morrer.
Ele segura as lágrimas.
A Maestra limpa a garganta, os braços apertados em torno das páginas de
teoria cheias de tinta vermelha. — Significaria que você é alguma coisa.
Você não quer isso?
Sim – mas. Na verdade, não?
Poderia ser uma fuga, para sempre. Ele poderia deixar para trás este quarto
infernal, os chicotes de língua, os olhares odiosos, os lembretes de quanto ele
falhou com ela. Ele podia parar de olhar para ela arruinada, tremendo as mãos
com aquela mistura de alívio e culpa.
Ele poderia ser livre.
— Pratique. — a Maestra sai do quarto.
Do outro lado da casa, Joey grita para Beck vir e consertar sua nave
espacial.
Se ele se for, a Maestra começaria com a Joey.
O piano brilha em um sorriso cheio de dentes.
Então Beck senta e toca, toca e toca – sua própria música – com uma
paixão sem fôlego.
Ele não irá.
August (e Beck?) recebem um A no trabalho.
Beck nunca recebeu uma nota tão alta. Na verdade, é tão diferente dele que
o Sr. Boyne pede que August e Beck fiquem para trás para serem
examinados. August, com um sorriso inocentemente angelical, jura que eles
fizeram isso juntos.
Beck não tem certeza se deveria admirar a capacidade dela de convencer as
pessoas tão facilmente ou ficar aterrorizado.
No caminho para casa, August exige uma celebração.
— Não é como se você tivesse feito alguma coisa, — ela diz — mas
preciso celebrar. Amanhã é sábado. E o parque que sempre passamos?
Poderíamos nos encontrar lá às quatro e Joey pode brincar. Vou levar
cupcakes.
Beck tem um pequeno ataque de pânico.
— Não posso...
— Recusar não é uma opção. — August sai andando em direção a sua
própria casa, gritando por cima do ombro: — Você me deve!
Ele deve.
Mas o que eles vão fazer nesse playground? Sair para curtir?
Ele tem certeza de que é lá que os traficantes vendem drogas.
Como ele pede permissão para ir?
Se a Maestra estiver em casa no final da tarde…
Mas ela não está. Ao meio-dia, ela sai de ônibus para fazer alguns
trabalhos na cidade – provavelmente comer também, já que não há comida
em casa e ela nunca parece passar fome como ele e Joey. Ela ordena que
Beck pratique, com o ou então permanecendo no ar.
Isso deixa Beck com raiva.
Com raiva o suficiente para desafiá-la?
Ele poderia pegar Joey, sair por aquela porta – andar para sempre, se
quisesse. Basta andar e andar, e esquecer a Alemanha, os estudos, o tio que
ele nunca conheceu e que provavelmente será ainda pior que a mãe.
Ele bate a tampa do piano. — Joey! — Nós estamos indo para o parquinho.
Joey aparece, ainda de pijama, com duas barbies carecas. — De verdade?
— Mas você precisa jurar não contar à Maestra — diz ele.
— É um segredo?
— Exatamente.
Os olhos de Joey brilham. — Eu te amo, Beck! — Ela sai correndo e volta
com um tutu brilhante sobre jeans e uma coroa de papel, os cabelos espetados
como uma cientista louca.
Beck fecha a jaqueta laranja listrada, que é muito apertada, é exagerada,
mas pelo menos está limpa e aquece, eles saem de casa para a tarde de
outono.
Quando ele ficou tão corajoso?
Não é por causa de August. É por causa – por causa – da – August. Tanto
faz.
No parque, cuja grama não é cortada há uns trinta anos, Beck faz uma
rápida circunavegação para garantir que os ocupantes mais sombrios estejam
longe e não pareçam prontos para esfaquear alguém, e então ele solta Joey na
natureza. Ela grita e vai direto para os trepa-trepa.
Beck senta em um balanço e espera.
E espera.
Se ela não aparecer, é uma coisa boa, certo? Eles vão esquecer essa dívida.
Ela enche o saco, mas ainda está fazendo favores a ele.
Dando-lhe bolo, convidando-o para lugares, emprestando-lhe seu iPod,
saindo com ele quando ela não precisa.
Joey está de cabeça para baixo no trepa-trepa, segurando sua coroa de
papel. — EU SOU A PRINCESA DO MUNDO.
Beck está feliz por ela não conseguir ler as pichações.
Pelo menos ele veio, certo? Ele saiu de casa. Ele fez algo contra a Maestra.
Ele merece um troféu por isso, ou bolo de felicitações.
Ainda mais a segunda opção. Ele está morrendo de fome.
— Veja! — Joey grita, agora no topo da torre do playground, acima do
sinal de não subir. — Sua namorada está vindo!
O coração de Beck dá um salto gaguejante antes que ele se lembre de
encarar Joey como se estivesse furioso com a palavra namorada. Ele está?
Ele realmente está?
August voa para o playground com um sorriso deslumbrante, como se a
grama na altura dos joelhos e as ervas daninhas não fossem inconvenientes,
como se ela estivesse entrando no lugar mais bonito do mundo. Ela segura
uma caixa plástica acima da cabeça, que promete ser algo com chocolate. No
fim de semana, livre dos uniformes, ela parece uma pessoa diferente. Ela usa
shorts cor de ferrugem e um pulôver de malha folgado da cor de uma salada
de frutas. Seu cabelo está preso com uma bandana e seus pés descalços – que
não surpreendem – são adornados com dezenas de tornozeleiras metálicas
tilintantes.
— Você veio! — ela diz. Como se ela não estivesse atrasada.
Ela diminui a velocidade, ofegante, e cai no outro balanço livre, a caixa no
colo. O sorriso dela é intoxicante.
— Você vai adorar, todos são fofinhos e deliciosos, e… — August abre a
tampa e faz uma careta. — OK, eu juro que eles estavam bonitos antes de eu
começar a correr.
Os cupcakes são um bagunça de pacotes de embalagens de papel roxo e
chocolate. August corta um pedaço e coloca na boca.
— Eles ainda têm um gosto bom. — Ela encolhe os ombros e segura a
caixa para ele.
É educado comer a comida que oferecem, certo? Não é porque ele está
morrendo de fome. Eles têm um gosto estranho. Como chocolate e... lama?
Mas cada mordida é uma explosão de chocolate derretido. E oh, é tão bom.
Joey aparece no cotovelo de August. — São para mim?
— Absolutamente.
Joey pega dois e foge novamente. Ela está no meio do parque antes de
morder uma e gritar YUCK e então continua comendo.
Beck estremece. — Desculpe, ela é...
— Honesta. — Os olhos de August têm um brilho perverso. — Há
beterraba neles.
O que...
— Mas o sabor começa a viciar, certo? — August dá outra mordida e
segura a caixa de volta para ele. Um desafio.
Mas é comida. Ele pega outro bolinho deformado e morde metade de uma
só vez.
Joey está de volta ao topo do playground e exigindo ser admirada, então
August pula e borbulha com elogios dramáticos. O sorriso de Joey é tão
amplo que seu rosto corre o risco de se abrir.
Como August faz isso? Como ela faz as pessoas se sentirem especiais?
É agridoce, na verdade. Isso lembra a Beck que ele não é especial. Ele se
odeia por ser assim, e parte do brilho vai embora.
Quando August retorna, ele torce o balanço em círculos e evita o contato
visual.
— Então — diz August — eu tinha uma ideia de como você poderia me
pagar.
— Você sabia que não se deveria colocar vegetais em bolos?
— Cala boca. Venha para janta.
Ela não tem mais motivos para ser legal assim. O trabalho deles está
concluído.
— Você gosta tanto de mim que gostaria de me comer? — Beck diz.
August revira os olhos. — Venha comer o jantar, comigo e com os meus
pais. Satisfeito com as minhas palavras, senhor gramática?
— Eu não posso.
— Você diz isso para tudo, e ainda assim — August abre bem os braços e
quase cai do balanço — aqui está você. Acho que você pode se convencer.
Por que ele não pode simplesmente contar a ela? Ela não falaria com a
escola. Mas ela pode olhar para ele com pena e – não. Ele é...
Envergonhado. Da sua vida, da Maestra, da sua fraqueza. Ele não sabe
qual é mais constrangedor.
— Não desta vez — diz Beck. — Minha mãe é... realmente rigorosa.
— Não tem que ser um dia de escola. — August gira no balanço, que faz
um grito agudo. — Vamos garantir que você coma seus vegetais. Vou até
levá-lo para casa em segurança, para que os bandidos não o sequestrem.
— Emocionante — diz ele. — Mas eu não posso.
Talvez isso seja suficiente para fazê-la perder o interesse.
Provavelmente há outro garoto patético que precisa ser animado e guiado
em direção ao sucesso. Embora uma nota A, dificilmente é igual a sucesso. O
pensamento está lá, de qualquer maneira.
— ESTOU PRESA! — Joey grita.
Beck sai do balanço e vai em direção a ela, mas ela balança a cabeça com
tanta intensidade que a coroa de papel desliza sobre os olhos.
— Não, eu quero a August!
Oh.
Beck é deixado de lado enquanto August leva Joey para baixo e depois
demonstra como brincar no trepa-trepa – para qual ela é alta demais e Joey
muito baixa. Beck parece um pouco substituído. Mas pelo menos ele tem
uma desculpa para observá-las – bem, observar a August – e não parecer
estranho.
OK, ainda é estranho.
A luz do sol se pondo é como uma auréola de ouro ao seu redor.
Ela merece a auréola. Ela é tão gentil, muito gentil. Mesmo quando Joey
pisa em uma poça e espirra lama nas pernas de August, ela apenas ri.
Coisas boas não duram.
Eles voltam para casa, os dois segurando as mãos de Joey e balançando-a
sobre as rachaduras da trilha. Fica escuro tão rápido nesta época do ano, mas
não o suficiente para que eles deixem de ver que metade da estrada está
coberta de peras.
Há um caminhão quebrado no acostamento e dois caras discutindo.
Joey se solta e corre para a sarjeta. Ela pega uma pêra gorda e gira para
Beck. — Posso comer? Posso?
É como um mar de peras – destruídas e esmagadas, verde e marrom.
Beck hesita, então ela apenas morde, sorrindo através do suco.
— Ei, crianças — um dos caras do caminhão chama — se vocês quiserem
essas peras, podem levar.
— Hum, obrigado — diz Beck.
Joey empilha peras em seu tutu. — Quero comer todas elas, Beck.
August agacha e pega algumas esmagadas. São praticamente geléia de
pêra, onde um carro passou por cima.
— Você quer elas? — August olha para ele. — Temos uma pereira, então
não é como se eu precisasse. Mas eu posso ajudá-lo a carregar algumas.
Pegar comida do chão? Ela saberá como ele está desesperado.
Embora convencer Joey de que eles não precisam delas seria impossível, e
a maneira como ela dança em torno de uma pilha de peras prova que, frutas
frescas são mais emocionantes do que o habitual para eles.
— Hum — Beck diz de forma inteligente.
August dá um tapinha no ombro dele. — Pare de pensar tanto.
Parece muito doloroso para você. — Ela segura seu enorme suéter como
uma cesta e empilha as peras.
Beck tira seu próprio suéter e, depois de empurrar Joey para sair da
estrada, ele pega uma dúzia de peras menos mutiladas. Ele se sente
constrangido, mas os dois entregadores de pêra não parecem se importar,
porque estão ocupados demais tentando convencer o caminhão quebrado a
voltar à vida.
August cheira uma pêra. — Oh, deus. Elas farão uma torta deliciosa.
Beck pode pensar em uma dúzia de maneiras de consumir todas essas
peras. Primeiro vai apenas devorá-las, com casca e tudo. Ele nem consegue se
lembrar da última vez que comeu frutas frescas.
Transportando-as, eles caminham o último quarteirão até a casa dos
Keverich. Joey continua gargalhando como uma galinha enlouquecida e
gritando Peras! Peras! em intervalos aleatórios.
É só quando eles alcançam a entrada de carros de Beck, que ele percebe
que não tem idéia se a Maestra já está em casa.
— Vamos colocá-las na sua cozinha? — August pergunta.
— Hum, que tal deixá-las aqui fora e...
— Beck Keverich — diz August. — Já estive na sua casa antes e não é um
lixão.
— Não é isso, é só que... eu… — Ele tenta desesperadamente se lembrar
quando a Maestra disse que ela estaria em casa. Mais tarde? Mais cedo? E se
ela estiver em casa, ele já está morto.
Ele não poderia ficar mais morto.
— Tudo bem — ele murmura e lentamente abre a porta da frente.
Joey desliza sob o cotovelo e corre para dentro gritando sobre peras. Beck
não vê sinais de vida, então mantém a porta aberta para August. Se ela deixar
as peras e correr, isso pode...
— Oh, oi mamãe! — Joey diz da sala. — Encontramos peras!
Podemos fazer uma torta? August disse que devemos fazer uma torta.
Não.
Seu interior é rasgado. August está em sua casa, limpando os pés no tapete,
alheia ao fato dele estar congelado. Ela entra como se fizesse isso sempre,
não apenas uma vez, quando estava sangrando até a morte. Ele não pode
deixá-la entrar sozinha na cozinha. Ele pula para frente, querendo avisá-la,
querendo arrastá-la para fora – esperando que nada disso esteja realmente
acontecendo.
A Maestra e August entram na cozinha ao mesmo tempo.
Beck observa uma fúria gelada atravessar o rosto da Maestra.
Joey conversa sobre torta e August, alheia, deposita sua pilha de peras no
banco da cozinha. Então ela passa as mãos no short e, com um sorriso
brilhante como o verão, estende a mão para cumprimentar a Maestra.
— Oi — ela diz. — Sou August. Amiga do Beck.
Beck quer se enterrar. Acabou. A Maestra vai jogar a culpa de tudo em
August – seus erros, o motivo pelo qual ele começou a se manifestar, até o
jeito relaxado que anda tocando. E ela estará certa, é claro. Mas isso era dele.
Ele tinha algo – ele tinha algo feliz pela primeira vez em sua vida miserável.
A Maestra aperta a mão de August e dá um sorriso tenso. — Que surpresa
— diz ela. — Eu não sabia que o Beck tinha uma nova amiga.
Ele quer bater com a cabeça na parede.
— Suponho que somos amigos — diz August. — Caçar peras parece o tipo
de coisa que amigos fazem.
— Caçar?
Beck limpa a garganta, embora ele gostaria de se virar e sair pela porta, e
se afogar, basicamente. — Hm sim. Um caminhão deixou cair um monte
delas, então nós... — ele se afasta. — De qualquer forma, isso é, yeah, hm,
August. Ela já está embora agora.
August torce o nariz para ele.
— Então, podemos fazer uma torta? — Joey diz, com uma pêra em cada
mão. — Podemos fazer nove tortas?
— Quieta, Schätzchen — diz a Maestra, porque Joey é um bebê, enquanto
Beck é um idiota. Ela se volta para August, ainda fria – aos olhos de Beck –
mas agindo de maneira perturbadora. — É muita gentileza sua, August. Há
quanto tempo vocês têm sido... amigos?
— Mais ou menos um mês. — August alisando o suéter esticado de volta
contra a barriga. — Fizemos uma parceria para um trabalho em inglês. A
princípio, nosso relacionamento era Guerra e Paz. Agora é Razão e
Sensibilidade.
Beck olha para ela como se tivessem crescido chifres.
— Estou me referindo aos títulos — explica August. — É sensível, porque
quando ele fica comigo, eu o alimento com bolo e melhoro suas notas.
A Maestra dá uma pequena risada – como ela ousa – e assente.
— Beck não é dedicado. — Como ela ousa.
— Na verdade, não — confidência August. — Mas uma vez que você
supera sua vibração de serial killer, ele é apenas um filhote adorável.
Beck tosse. — Hum, eu estou de pé bem aqui.
Joey desistiu de ser alimentada com torta, então ela arrasta uma cadeira
para o banco da cozinha e tenta alcançar as grandes facas. A Maestra a puxa
da cadeira com uma mão forte e a coloca no chão.
— Vocês fizeram um piquenique esta tarde? — A Maestra diz.
Beck diz: — Não — ao mesmo tempo que August diz: — Oh, nós fizemos.
Eles olham um para o outro. Os olhos de Beck tentam desesperadamente
transmitir o sinal de pare com isso. August claramente não está acostumada a
esses sinais.
— Chegou ao meu conhecimento, senhorita Keverich — começa August.
— Senhora — interrompe a Maestra.
— Oh, desculpe. Senhora Keverich, que Beck está seriamente sombrio e
precisa expulsar sua miséria.
Joey começa a beijar as peras.
— Então — diz August — eu estava pensando, senhora Keverich, se Beck
poderia vir jantar na minha casa um dia?
Ela cavou o túmulo dele, alegremente inconsciente disso.
A Maestra olha para Beck, longa e calculista. Ele sente o gelo, não de fúria
– mas de perplexidade, ou é choque? Que ele poderia fazer algo tão
desafiador como ter uma amiga.
— Be – Beck — diz a Maestra, não acostumada a usar o apelido dele —
Está muito ocupado estudando.
— Oh? — Felizmente, August não faz nenhuma piada.
— Ele é um pianista — diz a Maestra, é a primeira vez em que ela admite
isso. Geralmente é ele é um idiota inútil batendo no meu piano. — Ele tem
um recital importante para se preparar.
Os olhos de August se arregalam de prazer. — Beck! Você deveria ter me
dito. Isso é incrivelmente emocionante. Eu quero ouvir você tocar.
— Não, — diz Beck.
— Vou aceitar essa entusiasmada resposta como um sim! — August sorri.
— Eu o roubaria apenas por algumas horas, senhora Keverich. Eu moro
virando a esquina, e meu pai pode deixá-lo em casa para que ele não ande no
escuro. — Ela faz uma pausa.
— Você é alérgico a cães, Beck?
— Não mas...
— Ótimo. Porque existem dois ou doze dentro de casa, a todo momento.
Então, o que você diz, senhora Keverich?
Ela vai dizer não? Ela vai gritar? Ela mostraria a August quem realmente
é?
O problema da Maestra é sua capacidade de ser puramente profissional em
relação às outras pessoas. Em um vestido de baile com jóias no pescoço, você
nunca saberia que há algo... quebrado sobre essa mulher. Ela é alta, poderosa
e gloriosa.
A Maestra graciosamente diz: — Ele está se preparando para uma
performance muito exigente, como eu disse, por isso vou ter que pensar sobre
isso.
Beck agarra o cotovelo de August e a arrasta para a porta da frente.
August acena por cima do ombro. — Prazer em conhecê-la, senhora
Keverich.
Beck a leva para fora antes que ele se lembre de como respirar novamente.
Ele quer gritar com ela – ele realmente, realmente quer.
Mas não é como se ele a tivesse avisado. Claro, houve as contusões – mas
ele sempre diz que entrou em brigas, acidentes. Talvez ela pense que isso é
verdade? Talvez August Frey esteja tão cheia de um brilho doentio, que não
consiga imaginar uma mãe jogando seu próprio filho na parede.
Beck fecha a porta atrás dele e enfia as mãos nos cabelos. Ele está tentando
não hiperventilar.
— Uau, Beck — diz August. — Conhecer sua mãe não foi assim tão
traumático para mim. Você quer se sentar?
Ele quer se sentar. Ou deitar. E nunca mais se levantar.
— Sinto muito — ele murmura.
— Por quê? — August diz. — Sua mãe parece feroz, mas não tão ruim. Eu
entendo que ela é rigorosa. Uau.
— Não — Beck sussurrou, — desculpe por isso. — Ele suga o ar com
força, e depois a olha nos olhos. — Nós terminamos, ok? Já fizemos o
trabalho, então você não precisa continuar perto de mim.
August olha para ele, constantemente.
— Não preciso de uma amiga — diz Beck. — Na verdade, eu não quero
uma. — A vida era menos dolorosa quando ele não sabia o que estava
perdendo. — Então – então me deixe em paz, ok? — Por favor.
Ela exigirá uma resposta? Tropeçar como se ele a tivesse chutado? Gritar
como ele é injusto?
Há apenas o silêncio, e então...
Ela ri e dá um soco no ombro dele. — Você é bem perturbado garoto. Mas
você também está preso comigo, e uma mãe super assustadora não vai me
assustar.
Ele geme. — August, eu não estou brincando...
— Nem eu, mas tenho que ir. — Ela se afasta, os polegares enfiados nos
bolsos. — Eu falei sério sobre querer ouvir você tocar!
— Não vai acontecer, — Beck grita.
Ela se vira, pronta para correr com seu excesso de energia. — É assim que
você pode me pagar! Escreva-me uma música. Então estaremos quites.
Escrever uma música para ela? O que – não – Ela vai sumindo pela
estrada, o crepúsculo a engolindo antes que ele possa responder e fica parado
no frio, com uma boca cheia de palavras que ele não pode dizer.
Ele não quer entrar, mas – A Maestra está esperando, com os olhos frios,
calmos. Beck fecha a porta e se apoia nela, pronto, mas não pronto, com
raiva, mas cansado.
A Maestra olha para ele, realmente olha, como se ela não tivesse muito
tempo. Então ela balança a cabeça e ri.
É um som terrível.
— Isso não vai durar muito — diz ela. — Especialmente depois que você
partir para a Alemanha.
A coisa mais infeliz de ter quinze anos é ficar cada vez mais alto.
Beck tenta parar, por uma questão de não aguentar mais suas roupas
ficando curtas, mas seu corpo não escuta.
Ele tenta desaparecer atrás das araras, enquanto a Maestra folheia e
examina as cores. Joey está fingindo ser um tornado, e já derrubou os cabides
das araras, desmontou o corredor de sapatos e atualmente está andando por aí
em botas de chuva masculinas que chegam às coxas e usando um chapéu de
palha.
— Devemos ir. — Beck sussurra para ninguém.
A Maestra puxa uma camisa polo listrada preta e amarela da prateleira.
Tudo o que ela faz é rápido, zangado e cruel, como se as roupas a
insultassem. — E essa?
Ele quer parecer uma abelha? — Na verdade não é meu, hum, estilo.
A Maestra concede e coloca de volta. — O que você precisa, Sohn, é um
corte de cabelo.
Ele gosta do seu cabelo, mesmo parecendo um ninho de pássaros
eletrificado. E não consegue imaginar a Maestra pagando por um barbeiro e
roupas novas, e ainda escolhendo como o cabelo deve ser cortado – sem
chance.
Já é bastante estranho fazer compras com ela. Sua raiva ardeu em brasas e,
sim, as pedras estão prontas para explodir, mas eles conseguem andar pelas
lojas sem o medo iminente da destruição. É o tio dele que faz isso. Jan
Keverich. O que não faz sentido, já que a Maestra parecia odiar ele e o seu
sucesso, o suficiente para ir embora da Alemanha em primeiro lugar – mas
talvez seja a saudade de casa, de poder levar Beck ao estrelato, de finalmente
ter sucesso, que a faça feliz.
Feliz? Ele não deveria usar essa palavra tão facilmente. August é feliz. A
Maestra não.
— Não preciso cortar o cabelo. — diz Beck. — É a marca registrada dos
Keverich.
A Maestra resmunga. — Bem, pare de ficar de mau humor e vá encontrar
uma camisa.
Uma camisa para substituir a que foi manchada de sangue.
Beck meio que deseja que pudesse usá-la, provar alguma coisa, e usar esse
dinheiro para comprar um bife gordo e um sorvete pela primeira vez. Em vez
disso, a Maestra decide notar que ele cresceu e fazer algo a respeito.
A Maestra tira uma camisa preta de botão.
— Ótima. — diz Beck. — Compre e vamos embora.
A Maestra olha de soslaio e puxa um pedaço de fio. — A qualidade é
péssima. E não é... não é… — Ela olha para as roupas, procurando a palavra.
— Não é suficiente .
Suficiente para o que? Provar que eles não são pobres?
Pela primeira vez, Beck realmente se pergunta se ela quer que ele fique
bonito na frente de seu tio, mas só porque ela tem vergonha.
De todos eles.
Beck finge observar as meias. Ele tem um nó estranho no peito –
provavelmente porque ele saiu com a Maestra, certo?
Definitivamente. Não porque ela parece, apesar da sua altura ocupar
metade da loja, de alguma forma... frágil.
Ele olha para ela, entre as meias, enquanto ela deixa cair a camisa preta,
pega do chão, deixa cair novamente e, em seguida, apunhala o cabide no
buraco do pescoço com as mãos trêmulas.
Não. Ele se recusa a sentir pena dela.
Beck encontra pacotes de camisas brancas baratas e escolhe seu tamanho.
Quando ele volta, a Maestra segura um jeans mostarda e uma blusa de malha
preta e cinza. Beck resiste ao desejo de fugir.
— Provadores. — ela late. — Agora.
Experimentar roupas é complicado porque Beck é engolido pelo lado
masculino, enquanto a Maestra espera do lado de fora, e ele odeia pensar em
desfilar ao ar livre com as roupas estranhas. O que há de errado com os jeans
de cor normal? Mas esse serve, mais apertado que as calças largas que ele
costuma usar, e o suéter é macio, embora um pouco grande, e o envolve no
abraço mais quente que ele teve nos últimos anos.
Ele sai do provador, torcendo o corpo para ver as etiquetas de preço.
— Quanto custa isso...
A Maestra o interrompe com a voz tão ousada quanto uma orquestra. —
Gut. — ela diz.
Bom? Ela disse bom para algo relacionado a ele?
Beck esquece que está tentando pegar o preço atrás do pescoço.
Joey, saltando ao lado da Maestra, faz uma pausa para examiná-lo. — Uau.
Beck suspira.
A Maestra faz um gesto para o jeans. — Muito apertado? Muito largo?
Apesar do aperto que ele não está acostumado, ele parece – bom. — Eles
servem.
— Confortável?
— Acho que sim. — Beck está tão confuso. Por que ela está se
importando? Por que ela está fazendo tudo isso?
Joey cutuca ele. — A etiqueta diz nove e três?
— O que? — Beck gira e pega o preço. $93. Por que ela está insistindo em
gastar tanto em roupas? — Nós não podemos – eu não posso...
A Maestra manda Joey ficar quieta.
O pânico cresce em sua garganta. — O que está acontecendo?
Por que preciso de roupas caras?
A Maestra cruza os braços para parar as mãos trêmulas. — Não é crime ter
algo de bom em seu guarda-roupa.
— Eu estou com fome. — Joey começa a murchar. — Estou com tanta
fome.
— Não vamos almoçar até terminarmos aqui. — diz a Maestra.
Joey cruza os braços, mordendo o lábio inferior.
— Mas para que servem essas roupas? — Beck range os dentes, ciente de
que ele falou muito alto.
O gelo nos olhos da Maestra dá o aviso.
— Desculpe. — ele murmura. — Mas por favor…
A Maestra agarra a mão de Joey. — Nós vamos levá-los. — diz ela
rapidamente.
No provador, Beck tira as roupas, amaldiçoando elas e sua mãe, e até Joey
por desgastar os nervos da Maestra quando ela estava de bom humor. Ele
veste seu moletom com capuz e o jeans folgado, arrasando no visual de sem-
teto e depois olha para os três espelhos.
Apenas um idiota magro e zangado olhando de volta.
Se ela está comprando roupas bonitas para ele, talvez ela planeje levá-lo
para a Alemanha com ou sem as bênçãos de Jan.
Talvez ela esteja feliz porque pode se ver finalmente livre da sua irritante
presença.
Ele sai e joga o jeans, o suéter e a nova camisa branca na cesta dela. É o
dinheiro dela. Quem se importa? Ela pode desperdiçá-lo com algumas roupas
de merda.
Eles se movem em direção aos caixas, tanto a Maestra quanto Beck
revezando para garantir que Joey não esteja colocando itens brilhantes nos
bolsos.
— Haverá uma aula. — diz a Maestra, finalmente.
— Eu pensei que era uma apresentação.
— Ja und nein. Primeiro uma apresentação em uma mansão antiquada de
Jan. Um pequeno desvio de sua turnê principal.
Mansão? Pessoas ricas.
— Depois, — a Maestra diz. — uma aula. Para Jan inspecionar sua
técnica. Nós já conversamos e combinamos isso.
— Mas… — Beck para. Ele não deveria continuar – mas eles estão em um
local aberto. Não é como se ela pudesse dar um tapa nele. — Mas eu não
quero ir para a Alemanha.
A Maestra parece não ter ouvido. Ela faz uma pausa em uma prateleira de
roupas de menina com babados. Meias brilhantes e camisetas cor-de-rosa que
dizem Princesa do papai. Atualmente, Joey está vestindo roupas de um
brechó – um blusa de manga comprida vermelha, leggings de bolinhas e
botas de chuva rosa brilhante.
— Você não entende a oportunidade. — Os lábios da Maestra se curvam.
— Aprender com os melhores? Fazer algo para o seu futuro? Você pode ser
tão bom quanto eu – possivelmente. Eu pensei que você poderia tentar,
Schwachkopf.
Beck cora. — Eu sou seu filho. Você não pode simplesmente me vender...
A Maestra acena com força, terminando com ele. — Pegue sua irmã e
espere do lado de fora.
Tudo o que ele pode fazer é arrastar Joey em direção à saída, enquanto ela
diz: — Não é justo, eu não ganhei um presente! — com a justa indignação de
uma criança de cinco anos.
— Eu sei, Joey. — Beck diz, calmante. — Não é justo.
Ele não quer se sair bem na performance. Ele não quer impressionar Jan.
Ele não quer ir embora.
O ar está congelante – um bem-vindo oficial à temporada de congelar as
mãos no piano. Que alegria.
Beck enfia os dedos embaixo das axilas enquanto ele e August vão para a
pré-escola. Ela está sem jaqueta e sem sapatos, como sempre, e sua pele
levemente azul. Ela esfrega os braços e salta parada, enquanto Beck
desaparece no caos barulhento de tinta e crianças para buscar a irmãzinha
dele, enquanto ela grita com a professora e bate os pés pequenos em fúria. O
rosto da professora é ameixa, e ela está pronta para jogar Joey nele. Há
também uma carta.
Joey foi suspensa.
A pré–escolar foi suspensa.
Até Beck não chegou tão baixo ainda, embora ele nunca tenha feito um
dever de casa em toda sua vida. Ninguém realmente espera muito dele. Mas
expulsar o anjinho de olhinhos brilhantes, de cinco anos? Ele está furioso.
— Ela é malvada. — grita Joey, enquanto Beck a arrasta pelo capuz do
casaco vermelho. — Ela não me escuta. Eu não sou uma mentirosa. Não sou!
Eu sou uma boa garota.
Beck enfia a carta na mochila, meio desejando poder rasgá-la e atirar os
pedaços no rosto da professora.
— O que você fez? — August parece curiosa em vez de chocada.
— Quem se importa? Ninguém deve suspender uma criança dessa idade.
— Beck diz, mais rude do que pretendia.
August começa uma rodada de polichinelos enquanto Beck abotoa o
casaco de Joey.
— Fui expulsa da pré-escola uma vez. — diz ela. — Esse garoto encontrou
um passarinho quase afogado no tanque de água, então ele usou uma pazinha
de brinquedo para acabar com o seu sofrimento. Sério, o passarinho não
estava morto. Ele o matou .
Os olhos de Joey se arregalaram. — O que você fez?
August faz uma pausa e Beck não tem certeza se suas bochechas estão
vermelhas de frio ou vergonha.
Quando ela não responde, ele a cutuca. — O que você fez?
— Eu posso ter batido nele com a mesma pazinha. — confessa August. —
E ele pode ter levado nove pontos. Olha, eu não tenho orgulho disso. Eu me
vingo pacificamente hoje em dia...
— Como a história com o sapo, — lembra Beck. — e aquele cara que você
chutou.
August encolhe os ombros. — Talvez eu tenha um leve toque violento.
Pelo menos o último cara não precisou levar pontos.
Enquanto eu, por outro lado, perdi uma unha e quase sangrei
dramaticamente até a morte.
Beck está realmente impressionado. August nunca será destruída em suas
lutas. Ela provavelmente seria a única acorrentada à uma árvore por três
meses para impedir que ela seja cortada ou mandada para a prisão por mutilar
caçadores de animais.
Eles começam a descer a rua, Beck em silêncio, August envergonhada e
Joey com o corpo pendurado em desânimo.
— Tudo o que eu fiz foi chamar a Bailey de Scheisskerl, — murmura Joey.
— e depois mordi o nariz dela.
— Você a mordeu? — O queixo de Beck cai. — Você não é um bebê,
Joey. Por que você fez isso?
— Ela disse que a mamãe não me ama porque nunca me leva para a
escola! — Diz Joey. — Então ela quebrou meus giz de cera.
Todos eles. Até os de glitter . E eu nunca, nunca, nunca mais vou
conseguir novos, porque... porque… — Ela para, soluçando em meio às
lágrimas.
Porque a Maestra não se importa o suficiente para comprar mais. Ele
sabe. Por mais que a Maestra ocasionalmente se importe com Joey, ela não dá
presentes afetuosos. E Beck entende a especialidade daqueles que tem glitter,
desde que foi chutado por tentar usar enquanto coloria amigavelmente
desenhos com ela.
Beck está desamparado diante da sua raiva justificada. — Mesmo assim
você não deveria ter mordido ela. — ele administra.
August salta sobre uma rachadura na calçada de cimento. — O que você
teria feito, Beck?
Ela está zoando com ele? Ele olha para ela, mas ela parece séria, como se
estivesse realmente insegura sobre o que é a coisa certa a fazer nessa situação
devastadora. Talvez August concorde com a atitude da Joey.
— Provavelmente nada. — Beck não se orgulha da resposta.
Mas o que mais ele pode dizer? Ele não pode incentivar Joey, mas sabe
muito bem o quão incriminadora ela pode parecer. Barulhenta, impetuosa e
agressiva? A professora informou a Beck que se sua mãe não quisesse falar
sobre a longa lista de maus comportamentos de Joey, ela não tinha escolha a
não ser suspendê-la.
— TODO MUNDO É MALVADO COMIGO! — Joey lamenta. — A
mamãe não me ama, e Bailey é uma...
Beck cobre a sua boca. — Joey, por favor. August era inocente antes de
conhecer a gente.
August assente. — Não sou mais. Joey tem uma língua e tanto.
Joey tenta morder a mão de Beck, então ele retira-a.
Beck procura profundamente dentro de si por algo encorajador para dizer,
mesmo que sua mente esteja girando para o que a Maestra vai fazer com a
Joey, quando ela precisar trabalhar e Beck for para a escola. — Bem, a
mamãe ama você. — Definitivamente.
Muito mais do que ama o filho, no mínimo.
Afinal, Joey ainda não foi forçada a usar o piano.
Ela se encolhe no casaco. — Então eu quero novos lápis de cera.
August ri. — Você é extraordinária, Joey. Você realmente deveria ser uma
super-heroína ou uma rainha.
Joey considera isso. — Super-heroína. — diz ela. — Eu quero esmagar as
coisas.
Ela parte em uma corrida, em direção ao final da rua e para dentro do
casebre Keverich, batendo a porta depois de entrar. Isso dá a Beck um
momento de paz com August. Não que ele precise, é claro. É apenas August.
Ela é apenas... uma conhecida aleatória da escola.
August ainda está sorrindo para si mesma, como se Joey fosse a criação
mais gloriosa do mundo. Ela esfrega as mãos e sopra sobre elas. Beck se
pergunta como seria segurar a mão dela. Seriam suadas? Congeladas? Seus
dedos se encaixariam perfeitamente ou seria apenas estranho?
— Você começou a escrever minha música? — ela diz.
Sim. Ele também jogou todas as tentativas no lixo. Tem que trabalhar nela
em pequenos intervalos, para que a Maestra não perceba que ele não está
tocando Chopin.
Nada do que ele compõe será bom o suficiente para mostrar à August.
— Claro que não. — diz ele. — Eu te disse, você não vai me ouvir tocar,
nunca.
August mostra o lábio inferior – está um pouco azul. — Você está partindo
o meu coração, Keverich. E o jantar? Sua mãe já decidiu?
Eles nem sequer levantaram o assunto desde então.
Ele encolhe os ombros.
— Você é participativo hoje. — diz August. — Tem algo te incomodando?
Apenas algumas coisas. Pequenas coisas. Ele apenas poderia ser mandando
para a Alemanha em poucas semanas para viver com um tio que é,
possivelmente, pior que sua mãe. Ou ele pode ser estrangulado pela Maestra
se ele falhar. Ele poderia perder Joey. Ele poderia perder...
Ele encolhe os ombros novamente.
Eles param na calçada. A cortina balança – se é a Joey ou a Maestra, ele
não sabe – e ele não pode demorar. Mas ele quer. Permanecer não é tão
estranho e vazio como dizer adeus.
— Por que você sempre corre? — ele deixa escapar de repente.
— Depois de sair daqui?
August parece assustada. — O que? Oh Eu não sei. — Ela morde o lábio.
— Para me sentir viva, eu acho? Você não tem vontade de correr depois de
ficar sentado em salas de aula abafadas por seis horas? Você não gostaria de
fazer qualquer coisa apenas para lembrar que você é uma pessoa, não um
resultado do teste?
Não.
Nunca.
Ele nem ousaria.
— Acho que sim. — Não parece convincente nem para ele.
Ele odeia o quão inocente o rosto dela é, como os lábios dela estão torcidos
em um sorriso calmo, como a respiração dela sopra em pequenos flocos de
neve. Ele odeia porque, ela é esperança e um novo amanhã e ele é um adeus
e o fim.
Ela se inclina para perto, o calor da respiração na bochecha dele – cheira a
levedura, ela comeu um pão azedo no almoço, depois de oferecer um pedaço
para ele. Ele recusou. Seu sanduíche de flocos de milho estava muito melhor,
obviamente.
— Escreva minha música sobre estar viva. — ela diz.
— Não vai ter uma letra. — Ótimo. Ele acabou de admitir que está
trabalhando nisso.
— Que tipo de música é essa? Espera – oh espera! — Seus olhos brilham
maliciosamente, como se ela tivesse acabado de ouvir a melhor piada. —
Você não toca música clássica, toca, Keverich?
— Não. — ele rosna.
Ela inclina a cabeça para trás e pula para o céu gelado. — Música clássica!
Minha mãe estaria apaixonada por você.
Clássica. — Ela dá um passo atrás, mãos nos quadris e o olha de cima a
baixo. — Você é um magricela, amargo e sarcástico pianista de música
clássica, e eu não sei se é a melhor coisa que já ouvi ou a mais engraçada.
— Ha, ha. Estou morrendo de rir aqui.
Os olhos dela brilham. — Um dia farei algo extraordinariamente
espontâneo e você aprenderá a sorrir.
— Sim? Como o quê?
Ela começa a rodopiar e Beck meio que espera que asas feitas de gelo
brotem da suas costas e levem-na para casa. Ele quer segurá-la, apenas por
um segundo, e pedir para voar junto. Pedir para ser salvo.
— Oh, quem poderia saber? — ela grita por cima do ombro, correndo pela
rua. — Talvez eu te beije.
Ela se foi. A tarde dourada a engole e deixa Beck no final de sua garagem,
mais confuso do que se ela tivesse lhe dado um tapa.
Ela realmente quis dizer isto?
Ela...
não.
Eles não têm esse tipo de relacionamento. Eles são apenas amigos e ela
está apenas brincando com ele, estilo amigo para amigo.
Ou ela gosta dele.
Ele não pode pensar sobre isso.
Percebendo que ele também não pode passar o resto do dia olhando para a
rua, ele entra. Provavelmente foi um comentário aleatório. Ela provavelmente
beija todos os garotos que conhece, só para ver o quão beijáveis eles são. Ele
não seria beijável. Tudo que ele é, são teclas de piano, hesitações e músicas
presas em sua alma.
Não beijável.
A Maestra está em casa. Pior, ela está realmente preparando o jantar. Dos
montes de cascas de batata, deve ser Kartoffelpuffer – panquecas de batata.
Seria, pela primeira vez, uma refeição quente e caseira em vez de bolinhos de
peixe congelados?
Ele olha por um minuto enquanto ela luta com uma batata e uma faca.
Desliza-as nas mãos trêmulas e corta o dedo. Amaldiçoando, ela enfia-o na
boca e se vira para vê-lo.
— Eu posso, hum, descascá-las para você. — diz Beck.
Surpreendentemente, a Maestra recua e aponta um dedo para a pilha de
batatas. — Ja, seja útil.
Ele poderia ser muito mais útil em casa, se não estivesse praticando o
maldito piano o dia todo.
Beck larga sua mochila e lembra da carta. Ele a está traindo, mas o que ele
pode fazer? Ela tem cinco anos. Joey já se esqueceu da sua desgraça e está
sentada na frente da TV.
— Hum, isso é da professora de Joey.
A Maestra levanta as sobrancelhas e pega. Beck se ocupa com as batatas e
a faca, e finge não perceber quanto tempo leva para ela abrir. Suas mãos
definitivamente pioraram.
Ela respira fundo. — Verdammt nochmal. Johanna!
Joey entra na cozinha desanimadoramente.
— Ela disse que mordeu uma criança. — diz Beck.
— Ja, e a professora também. — a Maestra parece chocada – uma
mudança incomum na sua carranca usual. — Ela xingou violentamente uma
aluna e ameaçou-a com uma tesoura. Então mordeu a professora quando ela
interviu e bateu repetidamente... — A Maestra se interrompe, as narinas
dilatadas.
Joey finge estar fraca, e se joga no chão, a rosto primeiro.
O medo rasteja na garganta de Beck. E se – não. A Maestra não pode punir
a Joey quando ela é a razão da Joey ser tão violenta. A Maestra entende isso,
certo? Ele abaixa a cabeça e descasca a batata rapidamente.
— Não é assim que você se comporta, Johanna. — A Maestra bate a carta
contra o banco. — Isso é beschämend. — vergonhoso.
Joey levanta a cabeça do azulejo e dá um grito de pterodátilo.
A Maestra nem pisca. — Vá para o seu quarto, vá, garota malcriada! Sem
televisão. Você vai ficar no seu quarto até o jantar.
Agora.
Beck joga as cascas de batata na pia e tenta não demonstrar o alívio.
Joey sai chutando o chão, mas algumas palavras afiadas da Maestra a
fazem se levantar e correr em um turbilhão de fúria infantil para seu quarto.
Ela bate a porta.
Beck corta a batata em pedaços. Se a Maestra não o xingasse tanto, a Joey
não...
— É minha culpa. — diz a Maestra.
Beck deixa cair a faca e ela cai na pia. Ele a encara.
A Maestra se inclina pesadamente contra a bancada, seu corpo enorme
parecendo cansado e completamente acabado. Até o cabelo normalmente
selvagem apenas cai sobre as orelhas.
— Se você não acabasse tanto com a minha paciência… — A Maestra para
e suspira profundamente. Então ela se inclina sobre o molho e mexe.
Sim, culpe-o. Totalmente justo.
Beck joga as cascas na lixeira e começa a se afastar, mas a Maestra levanta
a mão.
— Espera.
Lá vem. Provavelmente uma explosão, porque, de alguma forma, tudo
sempre é culpa do Beck.
— Você e eu precisamos falar sobre essa garota.
— Garota? — O calor sobe pelo pescoço de Beck.
A porta do quarto de Joey abre. — Você tá falando da August?
August é a minha melhor amiga no mundo todo. E ela é namorada de
Beck.
— Para o seu quarto! — A Maestra late.
Rosnando, Joey bate a porta novamente.
— Ela não é minha namorada. — diz Beck, desesperado. Ele não está
discutindo isso. Nunca. Com ninguém. — Não há nada...
— Bah. — A Maestra tira uma faca enorme da gaveta e começa a cortar as
cebolas. — A janela estava aberta. Eu ouvi.
Ela estava espionando ele? Ela já controla toda a sua vida, também precisa
fazer isso agora?
— Ela vai com você para a escola todos os dias. — continua a Maestra. —
Essa garota é como um quinto membro.
— Ela é apenas uma amiga. — diz Beck, lutando para manter a voz calma.
— Eu quero uma amiga. Estou praticando...
— Você chama aquele schreckliche Lärm – barulho horrível – de estar
praticando? — A Maestra bufa, mas pelo menos esses insultos são o usual e
Beck nem pisca. — Mas não se trata de praticar. — Sua faca bate contra o
tabuleiro. — Embora amigos sejam distrações, o que não é bom. Nada bom.
Quando um garoto me distraiu, minha carreira quase entrou em colapso – e
eu fiquei grávida de você. — Com um golpe, sua faca decapita outra cebola.
— Sinto muito. — Beck diz amargamente.
— Não importa. — diz a Maestra, alheia ao sarcasmo. — O problema foi a
distração. Minha música não era nada para mim enquanto ele estava em
minha mente. As notas desapareceram e tudo o que vi foram os olhos dele, o
sorriso.
Isso é o máximo que ela já falou sobre o pai de Beck.
Ela abaixa ferozmente a faca. — Ele tinha muita inveja do piano, sempre
com inveja. E mesmo depois que as minhas mãos... — a voz dela fica rouca.
— Ele não voltou, o Schwein. Aqueles sem música em seus ossos não são
confiáveis.
Sem música? Parece o paraíso.
— Aquela garota, — diz a Maestra. — August. Ela não ama você. Ela ama
pessoas quebradas.
Os olhos de Beck se voltam para os dela.
— É óbvio, Schwachkopf. — A Maestra coloca as cebolas picadas em uma
tigela. — A maneira como ela se veste, o cabelo hippie… — ela diz com
zombaria — a maneira como ela bajula você.
— Ela não...
— Não seja cego. — ela corta.
A emoção distorce a voz da Maestra, e Beck não consegue entender. Ele
não consegue entender o ponto de toda essa conversa.
— Ela é o tipo de garota… — diz a Maestra. — que se apaixona por um
brinquedo quebrado, mas uma vez consertado, ela segue em frente. Ela quer
salvar você. — Ela pinga de amargura. — Sem dúvida, você me pintou como
um monstro. Bem, tudo bem. Eu serei seu monstro. Mas eu também vou
colocar você nas maiores salas de concerto do mundo, conseguir o melhor
tutor, fazer com que seu nome seja conhecido, fazer de você um pianista
famoso. Sua pequena namorada vai apenas tirar tudo isso de você.
Pare com isso. Pare com isso.
— Essa August é... doce. — A Maestra provavelmente engasga com a
palavra. — Mas você é o projeto dela, não é algo real. Você é um filhotinho
de cachorro para abraçar. Então, termine com isso.
Você é como eu, e os relacionamentos não são para nós.
Ele não é como a Maestra. Ele não é. Ele...
não é?
Exceto…
As vezes em que ele socou a parede, para que seus dedos sangrassem, as
fantasias macabras de cortar suas mãos, a maneira como ele perde horas
imerso na música que ele afirma odiar, a maneira como ele queria matar
aquele valentão...
— E você está indo para a Alemanha. — A Maestra pega ovo, farinha e
manteiga para as panquecas. — Aqui está um conselho que você precisa
aprender, Junge. Se você não diz olá, não precisa se despedir.
Ele a odeia naquele momento, odeia muito. Quando ela não diz mais nada,
ele se afasta, lutando contra o medo de que ela esteja certa. Ela não pode estar
certa. August não é – mas ela é. Uma consertadora de almas. Uma salvadora.
E é por isso que ele gosta dela, não é?
— O Kartoffelpuffer estará pronto para aqueles que praticarem muito. — A
Maestra fala.
Como se ele estivesse com fome.
Beck quer fazer um buraco no peito e arrancar seu próprio coração
estúpido. Por que ele pensou que poderia se safar por estar perto de August?
De qualquer maneira, ele não a merece – nem a felicidade, nem a gentileza,
nem a maneira como o sorriso dela o atrai, nem a promessa irreverente de um
beijo.
Ele é como a Maestra. Por que ele iria querer se aproximar de August?
Beck fecha a porta – silenciosamente – e desliza para o banquinho do
piano. As teclas o encaram, brancas, frias, implacáveis.
Ele só queria um amigo. Um amigo de verdade.
Apenas
um
amigo.
Seus dedos batem contra as teclas com tanta força que o quarto treme ao
seu redor. Ele martela o Chopin com ódio, ódio, ódio. Cada nota cheia de
agonia e fúria e desespero sufocante.
E quando a porta dele se abre, e ele está pronto para gritar com o intruso, a
Maestra aparece. Ela assente para ele, apenas uma vez.
— Gut gemacht. — diz ela. Bom trabalho. — Agora venha jantar.
Ele poderia chorar.
Ele esperou as palavras bom trabalho por tanto tempo. Mas agora que elas
finalmente foram dadas, ele só pode segurá-las com mãos cansadas e vazias,
e se odiar por desejá-las tão desesperadamente.
Mas ele não chora. Ele se separa das oitenta e oito teclas e vai jantar, lavar
a louça, falar educadamente, e entende que a Maestra faz um jogo psicológico
com ele. Mas talvez ela não ganhe desta vez?
Porque quando ele fecha os olhos naquela noite, ele compõe a música de
August.
Há uma parede de gelo entre Beck e August. Toda vez que Beck a olha, ele
não tem mais certeza do que vê. A August feita de alegria, árvores, coco e pés
descalços fica embaçada com a August que só está interessada em consertar
coisas quebradas. De qualquer maneira, ele terá que se despedir dela um dia.
Talvez seja melhor fazer isso agora.
É mais fácil do que ele pensava. De repente, ele não tem nada a dizer.
No começo, August não percebe o gelo, o silêncio. Embora, no segundo
dia, ela pare de dar socos e zombar dele, e apenas caminha em silêncio. É um
silêncio pesado. Sua caminhada carece do seu saltitar habitual, ela continua
olhando furtivamente para ele, mas não murmura nenhuma melodia do Twice
Burgundy.
Beck deveria estar aliviado.
Logo ela voltará para seus verdadeiros amigos. Ou ela adotará outro garoto
espancado e o alimentará com biscoitos de gergelim e fará a sua lição de
casa. Ela seguirá em frente.
No terceiro dia, com Joey ainda suspensa, Beck quase volta sozinho para
casa.
Bem, ele tenta.
Mas August também corre rápido.
Ela o alcança, sacudindo sacolas com a sua, sempre presente, coleção de
canetinhas. Ela dá um passo ao lado dele. — Olá, Beck.
Eles não conversaram hoje. Porque começar agora? Beck encolhe os
ombros e continua andando. Tem uma faca na garganta dele.
— Você está com raiva. — diz ela.
— Não.
— Ah, claro. É assim que você trata todos os seus amigos.
Beck gesticula para o caminho vazio ao redor deles. — Ja. É por isso que
eu tenho tantos amigos.
É amargo e afiado o suficiente para que eles caiam em silêncio novamente.
Os sapatos de August parecem dar tapas no chão, como se suas solas
precisassem ser coladas. Já que ele mantém seus olhos colados no chão, ele
se concentra nos sapatos defeituosos, não no seu rosto, e percebe que suas
pernas estão rabiscadas. Bússolas e listas de cidades. Paris. Rio. Kuala
Lumpur.
Talvez ela o visitasse na Alemanha...
Pare.
Não pense nisso. Não vale a pena.
— Foi sobre o que eu disse outro dia. — A voz de August é
extraordinariamente calma, mas não tímida.
— O que? — Beck sabe exatamente o que.
— Sobre beijar você. — Ela olha para cima, descarada, sem vergonha. —
Eu quis dizer isso, mas também posso superar se você não gosta de meninas.
O rosto dele queima.
— Não. — Sua língua está cheia de nós. — Não é – não é isso. É – quero
dizer. Eu gosto de garotas, mas não...
— Não diga mas não de você. — diz August. — Você vai partir meu
coração.
— Eu não ia dizer isso. — Sim ele ia! Por que ele continua falando? Cale a
boca seu idiota! — Não importa. Esqueça. — Ele anda mais rápido.
— Eu não vou. — Diz August alcançando-o facilmente. — Temos que
resolver isso antes do meu aniversário.
— Seu aniversário? Mas é ainda é julho.
— Sim, seu gênio. Meu aniversário é em julho.
— Mas seu aniversário não é em, hum, agosto?
August geme para o céu. — Não! Meus pais não são tão óbvios assim.
— Então, seu nome é uma homenagem ao que? Salada Augustus Caesar?
— Em primeiro lugar. — diz August, erguendo um dedo para assinalar
seus argumentos, — Augustus Caesar não é uma salada e, em segundo lugar,
meu nome não é uma homenagem a alguém, minha mãe apenas gostou do
nome, em terceiro lugar...
— Por favor, que seja o último.
— Vai até o nono, mas você é tão deplorável que paro depois do terceiro.
— Ela funga, e recomeça. — Em terceiro lugar – August significa majestosa,
e meus pais querem que eu me sente no trono eventualmente. — Ela lhe dá
uma cotovelada nas costelas. — Por que você se chama Beck? Sua mãe
queria uma Rebecca?
Beck não fala sobre o seu nome completo. Ninguém fala. É a conversa
mais proibida em todo o universo. Mas conhecendo August?
Ela não vai deixar isso em paz. De fato, enquanto o silêncio dele se
prolonga, ela arranca um pedaço de grama e faz cócegas nele, atrás da orelha.
Ele joga o pedaço de grama fora.
— Beck é meu apelido. — É tudo o que ele está dando.
— Diminutivo para Beckett? Ou Beckham? Becker?
— Não.
— Não me faça ameaçar você. — adverte August. — Porque eu tenho
muito material de chantagem e também posso chutar muito forte e – oh!
Lembra quando eu te dei bolo? Você me deve.
A voz de Beck é apenas um sussurro. — Beethoven.
— Desculpe? O que é que foi isso? — August coloca a mão no ouvido. —
Eu poderia jurar que você disse...
— BEETHOVEN DE MERDA KEVERICH. — Ele grita direto no ouvido
dela, ela se assusta e quase cai da calçada. Ele fica levemente satisfeito com
isso.
August para, sua boca escancara e ela apenas o encara. Ele hesita,
mexendo nas alças da mochila. Ela não – não, porque August é legal, ela não
vai...
Ela dobra para cima e começa a rir.
Beck retira tudo o que pensou. Ela não é legal.
— Você está falando sério? — ela grita. — Beethoven? Seu nome é
literalmente Beethoven? E você é pianista? Seus pais odeiam você ou
planejaram isso ou...
— Cale-se. — Ele sai, andando rápido.
Ela está rindo demais para andar direito, então tropeça atrás dele,
enxugando os olhos. Finalmente, o riso diminui e ela dança ao seu lado.
— Bem, Beethoven — ela faz uma pausa para rir novamente, então ele a
empurra mais forte desta vez e ela se afasta — você me deixou tão distraída.
Eu estava falando do meu aniversário antes dessa linda revelação.
— Se você me chamar de Beethoven novamente, — ele rosna. — Eu vou
estrangular você.
— Você tem mãos grandes. — ela concorda. — Mas não tem amigos para
ajudá-lo a enterrar um corpo. — Ela finge um beicinho.
— Tão triste, pequeno Beethoven. Você está destinado a me aturar.
Isso a leva a outro uivo de risada, e leva quase um minuto antes que ela
esteja recomposta o suficiente para tirar um envelope da mochila e bater na
cara dele.
— Isto é para você. — diz ela. — A propósito, você tem que vir, porque eu
estou fazendo dezesseis anos e isso é um grande acontecimento.
Ter dezesseis anos significa beijar meninos, aprender a dirigir e decidir
sobre as possibilidades para o seu futuro? Para August provavelmente sim.
Para ele? A única possibilidade, é uma vida cheia de sétimos acorde
diminuídos. Seu aniversário é apenas em outubro, que é longe o suficiente
para fazê-lo sentir-se miseravelmente jovem perto de August.
— Isso é um convite para uma festa? — Beck diz cautelosamente.
— Sim. — August sorri sonhadoramente. — Apenas uma pequena reunião,
muito pequena, já que todo mundo tem pavor dos meus cães. Ou dos meus
pais. Vai saber. — Ela faz uma pausa para revirar os olhos. — E minha mãe
vai fazer um bolo vegano...
— Ugh.
— Você vai amar. — Ela dá um soco no braço dele. — E você vai amar
meus pais e também meus nove cães.
— Espera. Nove?
— Eu te disse que nós temos um pequeno abrigo. — August encolhe os
ombros. — Nós não matamos os animais doentes na clínica, nós os
resgatamos. E se eles não encontrarem casas, eu cuido deles. Tenho que
trabalhar nos fins de semana para pagar pela comida, mas salvar animais é o
presente mais incrível, eu posso dar a eles o universo.
Beck deseja poder trabalhar para comprar a Joey os chocolates e os
grampos de cabelo brilhantes que ela deseja. Ele bate o envelope na coxa e
imagina a Maestra rindo enquanto rasga-o.
— Haverá música medieval, — diz August. — e observação de estrelas.
Você nem precisa ficar muito tempo. Talvez, apenas uma hora. Ou só uns
trinta minutos. Eu vou te dar um pedaço de bolo para você levar para casa.
Ficar uma hora sem a Maestra saber onde ele está? Isso nunca vai
acontecer.
Eles chegaram na casa dele e ele não tem certeza se quer correr e trancar a
porta, ou procrastinar o maior tempo possível. Tudo que envolve a August é
complicado.
— Vou tentar. — diz Beck. Ele não vai.
— Ótimo! — August saltita em torno dele. — E nós estamos bem agora,
certo? Não vai ter mais desse silêncio constrangedor? Eles estão OK? Será
que importa o que ela acha dele? Importa que ela não seja tímida ao
mencionar um beijo? Importa se August faz exatamente o oposto de tudo o
que ele pensa que ela fará?
Seus olhos impassíveis estão nele, esperando, querendo entender algo que
ela nunca poderia.
Ela dança em um mundo de possibilidades, e ele se afoga na música.
— Eu g-gosto de, hum, garotas. Eu gosto de você. — Isso está saindo tão
bagunçado, tão completamente confuso; ele está mortificado. Por que ele está
falando? Cale a boca e vá para dentro. — Hum, mas – não – eu apenas quero
dizer. Eu gosto de você, mas normalmente. Amigos. Sim, como amigos. Não
mais... que isso. — Verdammt, ele está tão envergonhado.
August coloca a mão na cintura. — Hmm. Eu entendo. Vou precisar
trabalhar mais nisso. — Ela se vira para sair e então, com seus olhos
brilhando de inspiração, ela corre de volta para ele, sobe na ponta dos pés e
sussurra em seu ouvido: — Eu também gosto de você, Beethoven. — Então
ela corre pela estrada e ele jura que a ouve rir novamente.
Ela realmente gosta dessa situação, não é?
Ele diz a si mesmo que não gosta. E a propósito, Beck, não há como você
ir a uma festa após a recente análise da Maestra sobre August.
Ainda assim, ele abre o envelope quando entra em sua casa e examina os
detalhes. Celebração do aniversário de 16 anos da August Frey. Começa às
18h. Não traga nada, exceto sua felicidade.
Ele claramente não deveria ser convidado.
Ainda lendo, ele fecha a porta da frente, anda, e esbarra na Maestra.
Ela pega o convite da mão dele. Beck estremece. Ficar presa em casa o dia
todo com Joey não está melhorando seu temperamento. — O que é isso?
— É apenas uma festa. — diz Beck, debilmente. — E-eu não tenho que ir.
— Mas eu quero.
— August. — A Maestra revira os olhos e bate o convite de volta na mão.
— Não conversamos sobre isso, Schwachkopf? Jogue fora e vá praticar.
Nenhum jantar até que o Chopin esteja aceitável.
Beck não responde. Ele amassa o convite com o punho e se lembra que ela
não disse não. E isso é bom, certo?
O piano olha para ele. Ele joga sua mochila, troca de roupa e começa as
escalas.
Ele está pronto para tocar para o seu tio. Ele está pronto. Mas ainda assim
ele repete várias vezes os études, tentando se concentrar e ignorar sua própria
música em sua mente, implorando para ser tocada. Ele pensa em parar para
esticar os dedos por um breve segundo quando...
Ele ouve Joey gritar.
Beck interrompe a peça abruptamente, franzindo a testa. É apenas uma
birra sobre a TV ou Joey está liberando sua energia depois de ficar em casa
com a mãe por três dias? Está escuro lá fora, já passando do horário de jantar
– obviamente ele ainda não está tocando de maneira aceitável – então, talvez
Joey esteja com fome?
Porém.
Ele odeia ouvir sua irmã chorar.
Beck abre a porta do quarto e vai para o corredor. Ele sente o cheiro de
salsicha, alho e cominho. Então claramente o jantar está acontecendo, apenas
não para ele.
— NÃO QUERO. — Joey grita.
Beck entra na cozinha, tentando parecer indiferente. Ele pega um copo do
armário e coloca água.
— Cuidado com o seu tom, Göre. — A Maestra retruca.
Pirralha? O que aconteceu com querida, e seus termos habituais de carinho
para sua filha favorita? Isso assusta Beck.
Joey está sentada à mesa diante de um prato de linguiça, purê de batata e
chucrute, com os braços cruzados. A princípio, Beck acha que ela deve estar
reclamando da comida. Mas então a Maestra aponta para a porta aberta do
quarto de Beck e para o canto aonde fica o piano Steinway.
— É um privilégio tocar piano. — diz a Maestra.
Beck agarra o copo e esquece de beber.
— E ser um Keverich significa tocar.— diz ela. — Tocar música é
aprender a ter disciplina e um propósito. Você não é mais uma criancinha.
O rosto de Joey é tão vermelho quanto o da Maestra. — Não! — Ela grita.
— Eu odeio isso. Não quero ficar tocando o dia inteiro, quero ser chef e uma
sereia e...
— Nein. Você vai aprender. — a Maestra apunhala sua linguiça.
Ela vê Beck e seus olhos furiosos pousam nele. — Você terminou já seu
treino? — Seu tom é agudo.
— Não. — Beck diz. — Eu só... estou com fome… — Eu quero resgatar a
Joey de você.
— Comida é para quem toca bem. — A Maestra joga seus talheres para
baixo e se levanta. — Isso também vale para você, Johanna. Se você recusar
o piano, você recusará o jantar.
Joey deixa cair seu próprio garfo de plástico rosa. — Eu odeio o piano. É
barulhento e cruel. E odeio como Beck está sempre tocando quando quero
dormir. — Ela soluça. — Eu não toco o piano malvado.
Não, não, NÃO.
Ela desliza da cadeira, pronta para correr, mas a Maestra agarra seu
cotovelo.
A Maestra faz uma careta venenosa para Beck. — A culpa é toda sua,
Schwachkopf. Você a envenenou contra mim.
Beck não pensa. Ele apenas fala. — Joey é muito jovem, Mutter. Ela não
deveria ter que...
— Ela deveria fazer o que eu digo! — ruge a Maestra. — Assim como
você!
Joey se contorce em suas garras. — Não, não, não. Ich hasse dich. Eu te
odeio!
A Maestra dá um tapa.
Ela nunca bateu em Joey – geralmente são dicas não tão sutis do que pode
acontecer se Beck não se entregar à vontade da Maestra. Mas ela nunca
realmente bateu nela. Joey é o que mais importa nesse mundo. Mas ficar
quieto enquanto a Maestra está atacando uma criança? Ele não pode fugir e
deixá-la fazer o que quiser.
Então Beck, que nunca faz nada, faz alguma coisa.
Ele se move como um espectro, agarrando Joey enquanto ela fica fraca
contra a Maestra e a empurra para trás dele. Ele vibra com raiva, nojo, por ela
atacar uma criança de cinco anos.
— Ela é apenas uma criança. — Os dentes de Beck estão cerrados.
Veias incham no pescoço da Maestra. — Você começou quando era mais
jovem que...
E você quer que ela acabe como eu? Beck tenta manter a voz nivelada. —
De qualquer maneira, só temos um piano, e Joey nem consegue ficar parada e
provavelmente não pode...
A Maestra bate nele.
O golpe o envia tropeçando para longe de Joey e ele apenas reza para que a
Maestra não use esse tipo de força nela. Joey está no chão agora, quieta, de
olhos arregalados. Tremendo.
Joey foi feita para coroas brilhantes, robôs construídos com caixas de
iogurte, poças de lama e cabelos indomáveis. Ela não foi feita para o piano.
— Você é uma decepção. — Os dentes da Maestra estão cerrados. — Você
falhou comigo de propósito, eu sei isso, du nutzloser Junge. Talvez minha
filha se esforce mais para carregar meu legado.
— Eu me esforço. — diz Beck. Ele deveria calar a boca, mas – desta vez?
Desta vez é tão, tão diferente. — Eu juro que sim. Só não sou bom o
suficiente.
— Não. — ela diz friamente. — Você não é. Você é uma vergonha para o
meu nome. Você toca por horas, todos os dias, e o que eu ouço? Lixo! Estou
enojada com o som dos seus erros. E, no entanto, você não pode fazer melhor
– nein. Você não tenta fazer melhor.
Beck diz a si mesmo que não se importa. Ele não – não – não...
— Eu queria um prodígio. E o que eu recebi? Você. Você é uma grande
decepção. — A Maestra pega seu prato de linguiça e batatas meio comidas e
joga contra a parede. A comida faz um respingo molhado. Louças quebram.
Joey corre para frente e abraça a perna de Beck. — Não o machuque. —
ela choraminga.
A Maestra pega o vaso de pedras e flores falsas. Ela bate contra a parede,
mas não solta, então o vidro rasga sua carne. O sangue flui. Beck se afasta
enquanto os estilhaços chovem em seus braços.
Ela está louca. Ela é – isso não pode – não.
— Vá para o quarto, Jo. — ele sussurra, arrancando-a da perna.
— Eu disse que você poderia sair? — A Maestra grita.
— Eu sinto muito. — Ele não tem mais nada a dizer.
— DESCULPAS NÃO SÃO MAIS SUFICIENTES. — A Maestra se foi,
se perdeu, dentro da agonia das suas mãos arruinadas, do abandono e do
ódio. Mas ela ainda pode bater.
Ela agarra Beck pela gola de sua camisa e o força contra a parede. Ele não
é um prato. Ele não quebra. Mas o ar em seus pulmões saem em um whoosh.
O punho dela se conecta à mandíbula dele.
Tudo bem, Beck, vá embora, vá para outro lugar na sua cabeça.
Onde está sua música? Encontre sua música. Melhor você do que Joey,
certo? Certo.
Ou levante-se...
e lute?
Beck empurra a Maestra para longe. Fortemente.
A surpresa no rosto dela é acompanhada pela batida catastrófica do
coração dele. Ele vai se arrepender disso. Os olhos dela estão muito brancos,
seu rosto está descolorido, seus cabelos tremem violentamente.
— Ela não vai tocar piano. — diz Beck, áspero. — Se você tentar, eu vou
destruir o piano. Juro que vou destruir aquele gottverdammte piano.
Mas sua voz treme, e como alguém pode levar a sério uma ameaça
vacilante?
— Eu sacrifiquei tudo pelo piano. — grita a Maestra. — Tudo, seu pirralho
ingrato. Os milhares de dólares que eu precisava para o tratamento nas
minhas mãos, eu gastei em você. Milhares!
— Ela lhe dá um tapa para enfatizar. — Para que você tivesse um futuro.
Você vai tocar, você vai...
— Talvez eu não queira. — O que ele está fazendo? Ele morde a língua e
sua boca enche de sangue. Pare. Pare de falar. Mas há uma rachadura em sua
alma e algo vermelho, cruel e desesperado se arrasta. — Talvez eu também
odeie o piano. Mas você nunca pergunta. Você nunca se importa. Você me
odeia porque eu não sou como você. Bem, adivinhe? Eu nunca serei como
você.
As mãos da Maestra envolvem sua camisa, tremendo com tanta força, com
tanta força, com tanta força. — Você irá. — A voz dela é um assobio.
— Eu odeio música. — diz ele, suave como se estivesse a quilômetros de
distância, entrando na terra, profundamente, suave como uma batida de
coração e um adeus.
E ele odeia como isso é mentira. Ele odeia a música dela – e está
apaixonado pela sua.
Ele está pronto para o próximo tapa, mas não para ela caindo de joelhos em
um soluço, em um grito, e sua mão envolve um pedaço de prato quebrado. A
batata escorre em uma nuvem rosa.
A louça corta suas mãos, profundamente, profundamente, enquanto ela
aperta o prato. Seus lábios se movem e ele leva um tempo para perceber que
o zumbido em sua cabeça abafa suas palavras.
Os sussurros dela estão em alemão. Se ao menos eu não tivesse um filho.
Um soluço engasga na garganta de Beck. Ela tentaria matá-lo?
— Não. Não. Não.
Seus olhos se fixam no caco, no sangue escorrendo enquanto corta sua
carne e chega nos ossos. Ela está destruindo a própria mão. Ela está perdida.
Ela não vai voltar.
Cuidadosamente, com a boca ensanguentada, a bochecha machucada pelos
tapas, Beck cai no chão e se arrasta na direção dela. Ele hesita. Ela está de
joelhos, ombros arfando, sangue pingando firmemente no chão. Ele toca o
braço dela. Ela não se mexe. Então, suas mãos se fecham ao redor do pulso
enorme dela e abre os dedos um a um até que o pedaço de prato esteja livre e
caia no azulejo.
— J-J-Joey. — diz Beck. — Você tem que chamar uma ambulância.
Ele não tem certeza se ele mesmo conseguiria, sem se perder.
Ele pega uma toalha e a envolve nas mãos da Maestra. Ela deixa. Ela está
tão pálida, tão terrivelmente branca. Cadê a mãe dele? Os olhos de Beck
ficam borrados.
Seus lábios se separam, aterrorizados. — Nein. Ninguém pode ver isso.
Todo mundo deveria ver isso.
— Você precisa de pontos. — diz ele.
Por quê? Por que não deixá-la simplesmente sangrando no chão?
Lentamente, ela está retornando – segurando a toalha com as mãos,
endireitando-se, examinando, o cérebro tiquetaqueando.
— Eu posso explicar isso para eles. — Ela lambe os lábios. — Mas não
você. Você não.
Porque o rosto dele tem a marca da agressividade dela. Eles ligariam logo
para a polícia.
Ele quer isso?
— Vai. — A voz da Maestra é áspera. — Vá agora. Vou dizer que tive um
ataque, não tomei minha medicação. Eu vou explicar dessa maneira.
Atrás dele, ele ouve Joey no telefone, a voz dela um chiado trêmulo. —
Minha mamãe está machucada e triste. Oh. OK.
Danke. — Ela fica na ponta dos pés e segura-o cuidadosamente em direção
a Maestra.
A Maestra pega e desliga. — Eles ainda virão. — ela rosna. — Mas se
você não estiver aqui, eu posso fazer isso. Eu posso fazer isso.
Ele quer ser encontrado? Ele quer? Ele quer?
— Saia daqui. — Sua voz se eleva a um trovão. — Vá para fora,
Schwachkopf, ou direi a eles que você fez isso comigo. — Ela aponta um
dedo ensanguentado em direção a Joey. — E eu farei pior a ela.
Por que ele é tão patético?
Por quê?
O ar frio bate no rosto sangrando, suave como um bloco de gelo.
Sua bochecha está inchada, o lábio rachado, e ele cortou a língua.
Poderia ter sido pior. Um roxo e uma boca ensanguentada são apenas um
aviso da Maestra. No entanto, seria uma felicidade engolir o vento do inverno
e ficar entorpecido. Ele quer tanto ficar entorpecido.
Para esquecer.
Para não pensar.
Ele poderia ter ficado, lutado por si mesmo, por Joey, dito a verdade
quando a ambulância chegasse. Mas a Maestra sempre foi convincente, ele
nunca teve muita coragem e estava com muito medo de que ela machucasse
Joey. Talvez se ele tivesse ficado, a verdade tivesse sido revelada. Talvez o
mundo arrancasse ele e Joey da vida de teclas de piano, gritos ácidos e tapas
fortes. Talvez ele perdesse Joey. Talvez ele fosse levado embora, para longe
daqui, e perdesse August também.
August.
Ele foge de casa quando as luzes vermelhas e azuis da ambulância
aparecem no topo da rua. Ele não está acostumado a correr, então é difícil,
mas bom. O chão corre abaixo dele, escuro e irregular, e ele tropeça várias
vezes, mas continua. Ele não está usando uma jaqueta. Ele não tem ideia do
que deveria fazer.
A música em sua cabeça parou completamente. Não pense nisso agora.
Não pense.
Ele deve longe de casa até que a ambulância vá embora e depois entrar
furtivamente? Limpar o sangue da Maestra, varrer a louça destruída e colocar
um curativo sobre o corte gangrenoso da família?
Ele está chorando. Estúpido. Ele precisa se recompor, não cair em uma
pilha trêmula.
Aonde ela está indo?
Ele vira à esquerda em uma avenida, uma que ele já se pegou pensando
inúmeras vezes. Rua da August. Qual é o número dela?
Nove? Onze. E há uma clínica veterinária ao lado, ou algo assim, ou –
tanto faz. Ele não vai para lá.
Ele diminui a velocidade, as pernas doendo com o alongamento dos
músculos não acostumados. As casas parecem sonolentas, pacíficas, com
apenas um ocasional quintal na frente com um monte de ervas daninhas. Uma
casa tem a garagem aberta, uma garota balançando uma chave e mergulhando
o rosto sob o capô do carro.
Ela olha para cima quando ele passa, mas ele caminha mais rápido.
Cabeça baixa. Ele deve parecer selvagem.
Seu corpo palpita com a batida dos tapas da Maestra. Suas pernas doem de
correr. A noite gelada congelou seu lábio partido. Ele não pode aparecer na
porta de August assim. Ele não pode aparecer.
Foi sua decisão enfiar o rabo entre as pernas e correr, em vez de lutar por
ajuda. A decisão dele. Dele.
August não existe para salvá-lo.
Ele apenas verá onde ela mora. Então ele vai para casa.
A número onze da Avenida Gully é uma pequena casa com uma clínica
veterinária anexada. O quintal da frente tem uma enorme árvore, um jardim e
um caminho pavimentado com orquídeas, em vasos que crescem em torno de
uma grande placa que diz – FREY VET E ABRIGO ANIMAL. NÓS
AJUDAMOS. NÓS SALVAMOS.
Beck se sente tão idiota olhando para isso.
Uma luz brilha na porta da frente, um convite, uma tentação.
Beck é como uma mariposa voando para a luz. Seus pés trituram o mar de
grama e trevos, enquanto ele se aproxima da velha casa vitoriana com uma
porta de vidro salpicada pelo calor de mil cores.
Latidos fracos soam atrás do vidro, depois risadas.
August mora aqui? Quente, feliz e segura?
Se ele bater, ele vai desencadear um enorme e patético constrangimento.
Ele nunca pediu ajuda. Ele não quer isso. O que ele quer?
Uma família.
Um ocasional abraço.
Saber que a sua irmã está segura.
Uma amiga.
Talvez algo mais do que só uma amiga?
Um lugar seguro para escrever sua música. Que se foi, se foi...
Não pense nisso agora.
Ele só quer conversar. Isso não é tão lamentável, certo? Amigo para amiga,
pedindo um segundo para falar sobre – qualquer coisa.
Como o nome dele é idiota, ou como ele realmente adora o Twice
Burgundy, ou como a comida saudável e louca de August tem um gosto
absolutamente delicioso, não importa o quanto ele zombe dela.
Ela riria dele. Seria normal. Ele poderia ir para casa depois, para limpar a
bagunça e respirar.
Seus pés o traem e cruzam a grama molhada e fria. Sua mão sobe para a
porta, hesita. O quão ruim está o rosto dele? Ele vai assustá-la?
Sim.
Isso é tão errado, tão estúpido, tão carente, tão...
Ele bate.
Os cães explodem em uivos e patas atrás do vidro. Se August não abrir a
porta, ele vai embora, porque não há como enfrentar os pais dela, com um
rosto desse jeito, e pedir para ver a filha deles.
Mas, com o passar dos segundos, a determinação em seu peito cede até que
ele seja sufocado pela necessidade de ficar.
August atende a porta.
Ela está com uma legging de estampa asteca e um enorme suéter creme
que chega às coxas. Seus dedos mal chegam ao final da manga. Seus pés
estão descalços, apesar de sua respiração congelar enquanto sua boca se abre.
— Beck? — Os olhos dela não podiam ficar mais arregalados.
Ele sente o cheiro de molho de tomate e alecrim, vinho e calor.
— Quem é, querida? — alguém diz.
— Meu amigo da escola! — August grita por cima do ombro.
Ela bloqueia um cachorro que late tentando se atirar porta a fora, o que a
deixa presa sem jeito diante de Beck. — Cale a boca, Bo! Você também,
Gunther.
Com um gemido, ela desiste e desliza completamente para fora, fechando a
porta da frente na cara dos cachorros latindo. Ela envolve seus braços em
torno de si mesma e sente calafrios e Beck se sente culpado. Sim. Ele se sente
culpado pelo ar estar frio.
— Você não está bem. — Esta não é uma pergunta. — O que aconteceu?
Quem fez isto? Posso fazer alguma coisa?
— Uma petição pela paz mundial? — Seu nariz escorre e ele não tem nada
para limpá-lo, o que é uma vergonha.
August não sorri. Beck se sente pior.
— Me d-d-desculpa. — Seus dentes não param de bater. — Eu não deveria
ter...
— Sim, você deveria. — Ela toca o braço dele, não segurando-o, mas de
alguma forma impedindo-o de sair correndo — É para isso que servem os
amigos. Ajudar em tempos difíceis e encher o estômago de chocolate quando
estiverem infeliz. Esse tipo de coisa divertida. — Os dedos dela apertam um
pouco o braço dele. — Você tem que entrar.
— Não. — Ele sente um nó de pânico e horror. — Seus pais – eles não
podem...
— Não vou deixar você congelar no meu gramado. — diz August. — Você
pode mentir, se quiser... e eles não farão muito alarde. São pessoas totalmente
razoáveis, confie em mim. — Os olhos dela brilham. — Eu vou inventar um
motivo gloriosamente perturbador para o seu rosto. Você luta com ursos
polares depois da escola.
— Hum.
— Você está certo. Muito irrealista. Você é um lutador de rua.
— Porque isso é muito melhor.
É por isso que ele veio. É disso que ele precisa – um momento sob o
sorriso dela.
— Mas sério, — ela diz, a piada desaparecendo: — você está machucado?
Você quer ligar para emergência?
— Não. — Ele não sabe o que quer. Seu cérebro se afogou e ele não
consegue tomar uma decisão. Ele mal consegue respirar.
August concorda e abre a porta. — Não ligue para os cachorros.
A maioria deles não vai te matar.
O calor, os cheiros, os barulhos alegres de uma conversa feliz – ele vai
estragar tudo. Ele vai destruir a noite de August, e se seus pais ligarem para
polícia de qualquer maneira? Sua família não é perfeita, mas são tudo o que
ele tem e ele não pode perder isso agora.
— Eu não posso, August, não posso...
Mas ele se deixa ser puxado para dentro.
Os cães o atacam primeiro, quentes e fortes, batendo nas pernas e pulando
por toda parte com suas línguas molhadas e ásperas. Então ele é envolto pelo
calor e pelo cheiro de algo no forno de dar água na boca. August pega alguns
cães e pede inutilmente para ficarem quietos. Ela tem que arrancar um dos
cães, espumando de raiva, e empurrá-lo em um quarto e fechar a porta.
Existem animais em absolutamente todo lugar.
Ele está em uma sala, com uma rede cheia de gatos em um canto ao lado
de uma parede de janelas, e as paredes restantes são cobertas por prateleiras
artesanais. Um tapete de tecido está no chão e uma mesa de café desgastada
ostenta um bonsai, uma bagunça de revistas e uma tartaruga imóvel. O
cachorro mais feio que Beck já viu se aninha em um sofá. Parece que algo
arrancou o seu nariz e o colou novamente.
— Esse, — diz August, notando seu olhar. — é Stuart. Desculpe o rosto
dele. Ele foi espancado até a morte por um humano nojento.
Nós o resgatamos e, o quanto ele me ama, ele odeia homens na mesma
proporção. Não faça carinho nele.
Beck dá um passo para trás enquanto Stuart rosna.
— E este é o Tortle*. — August pega a tartaruga e acaricia sua concha. —
Não sabíamos se ele era uma tartaruga ou um cágado quando o encontramos,
então juntamos os dois.
— Inteligente. — diz Beck.
— Exatamente. — August coloca-o de volta na mesa. — Além disso, com
um nome de espírito livre como Tortle, ele não se conforma com
estereótipos. Olhe para ele agora! Ele está aproveitando sua vida sem estar
em uma caixa estereotipada!
— Ele é dono da sua própria caixa?
— Na verdade não. — August confessa. — Mas ele está sempre livre.
Estou tão orgulhosa.
— Tenho uma pergunta — Beck aperta os olhos para a concha imóvel. —
Ele está vivo?
— Oh, pare com isso. — Ela dá um cutucão gentil e brincalhão no ombro
dele. — Você está com ciúmes do meu diferente animal de estimação. — Ela
gira, seu enorme suéter ondulando e dança pelo corredor. — Com fome?
— Eu já comi. — Ele sente como se nunca tivesse comido nada em sua
vida.
— Isso impede você comer de novo? — August diz.
A menos que ele queira ficar e ser lambido por dois ou nove cães, Beck
tem que segui-la. Cada centímetro da parede do corredor está coberto de
fotos, a maioria estrelada por August fazendo caretas, abraçando um sapo,
com uma gosma verde cobrindo o seu rosto de bebê ou com os braços
estendidos sobre os ombros do pai enquanto beija a bochecha dele.
— Mas primeiro – banheiro. — August pega a mão de Beck e o puxa
gentilmente. — Nem sequer proteste. Sou excelente em primeiros socorros.
Ele quer fazer mais do que protestar. Ele quer fugir. Mas ele se vê
empoleirado na beira de uma banheira, enquanto August abre uma porta do
armário e pega um kit de primeiros socorros. Isto é ridículo.
Ele está sendo carente, ele...
Ela coloca uma mão embaixo do seu queixo e inclina sua cabeça para trás.
Um cenho franzido. Ele deseja não estar causando isso.
— Sua bochecha não está tão ruim. — diz ela, com voz séria, suave. —
Apenas um hematoma e um pequeno corte. — Ela pega um pano pequeno,
molha com anti-séptico e esfrega na bochecha dele.
Dói como o inferno, mas ele não se encolhe. Ele se recusa a vacilar.
— Eu posso fazer isso sozinho. — diz ele.
Sua concentração permanece carrancuda. — Eu sei. Mas estou cuidando de
você por apenas um segundo, Beck. Deixe-me.
Ele faz.
Não importa que ele não consiga nem respirar, porque o pescoço dela está
embaixo do queixo dele. Não importa que a pele dela acenda a dele de uma
maneira que não tem nada a ver com cortes ardentes.
Por favor, não pare.
Por favor, não solte.
Por favor, me segure.
Ela dá um passo para trás, a testa suavizada. — Menos sangue.
Ainda maltratado.
Ela ainda está segurando a mão dele. Ele ainda está deixando ela.
Sua voz cai para um sussurro. — Beck, você tem certeza de que não
posso...
— Eu consigo lidar. Não é tão ruim.
O sorriso dela é muito pequeno e muito triste. — Bem, é melhor eu
apresentar você aos meus pais antes que eles se perguntem se caímos no ralo
da banheira.
Ela solta a mão dele e é um alívio – não, não, não é. É a pior coisa.
August o leva para uma pequena cozinha, decorada com vasos de plantas e
com o suculento cheiro de lasanha. Uma música toca baixinho ao fundo.
Seu pai, um homem mais velho do que Beck pensou ao vê-lo no carro no
dia em que August machucou seu pé, está de pé na bancada cortando alfaces
em um avental que diz — RAINHA DA CHURRASQUEIRA. — Seu
cabelo, mais longo que o de August, está amarrado com uma fita de couro e
as bordas de algumas tatuagens saem da gola da camisa. Com um sorriso, ele
pousa a faca.
— Olá, olá. — diz ele, com o tipo de voz que acalmaria um pitbull ansioso.
— A quem devo esse prazer? — Há um lampejo de preocupação quando ele
olha para Beck de alto a baixo, e Beck deseja poder se dissolver.
— Este é o Beck. — diz August grandiosamente. — O Beck da escola.
Você sabe, aquele sobre quem eu falo o tempo todo. — Ela pisca para Beck.
— É brincadeira. Eu não falo sobre você tanto assim. Ele está aqui para jantar
e vocês estão absolutamente proibidos de fazer perguntas. Ele luta com
crocodilos.
As sobrancelhas de seu pai se curvam, um gesto que Beck conhece bem de
August. E então ele apenas dá de ombros e continua cortando alface.
— Crocodilos, não é? — o pai dela diz.
— Às vezes eu entro nessas brigas. — diz Beck, às pressas. — É estúpido.
Eu sou estúpido.
O pai dela interrompe o corte. — Realmente? Não parece que você
revidou, filho. Isso aconteceu na sua casa? — Sua voz suaviza um pouco. —
Porque estou mais do que disposto a...
— Isso são perguntas. — diz August. — Por favor, não o assuste, pai. Por
favor? Ele é como uma flor delicada e rara.
Uma mulher entra valsando na cozinha, literalmente, com até um parceiro
imaginário. A música suave de fundo é Dvorak – Beck reconhece. Sua mãe é
mais velha, igual ao pai, com mechas grisalhas nos cabelos cor de mel, e ela
usa calças de pescador e uma camisa que parece ser de crochê. Quando ela
avista Beck, ela pausa a valsa e pisca.
— Você parece estar com frio, querido. — diz ela.
Beck não sabe o que dizer. August diz: — Este é o Beck e sim, ele está
com frio.
— Estou bem. — Beck resiste a vontade de tremer.
— Shane, não podemos emprestar uma jaqueta para ele?
— Vou pegar uma neste instante. — Shane pousa a faca e tira o avental.
Ele joga para ela. — Termina a salada, amor?
Sua mãe pega o avental com desdém. — Combina muito mais com você.
Shane parece despreocupado. — É apenas uma salada. O que pode dar
errado? Ah, e fomos expressamente proibidos de questionar o hóspede da
August.
— Nem uma pergunta?
— Nenhuma.
— Nem para saber se ele gosta de lasanha?
As sobrancelhas de Shane fazem a pergunta – para August, não para Beck,
como se ela fosse um túnel que alguém deveria encontrar antes de chegar até
ele.
August considera. Beck está tão envergonhado e o nó na garganta se
transformou em uma pequena montanha. Que tipo de família é essa?
— Vou reformular. — ela decide. — Não fazer perguntas pessoais. Vocês
são livres para perguntar sobre comida. E também sobre a sua cor favorita.
— Eu gosto de lasanha. — diz Beck, embora ele só tenha experimentado a
versão congelada. — Mas – mas eu não posso ficar.
Eu sinto muito. Eu não quis...
A mãe de August pega a faca e a aponta para Beck. — Sempre fazemos
lasanha demais, jovem, então eu ficaria honrada se você ficasse e – oh,
August, querida, o que você disse a ele sobre mim?
Ele parece petrificado.
— Provavelmente é por causa da faca que você está apontando para ele. —
diz August.
Surpresa, sua mãe olha para a faca e a coloca na bancada. — Oh.
Shane volta com uma camisa xadrez forrada. Ele é imensamente alto,
provavelmente mais alto que os 1,83 metros da Maestra, então Beck quase
desaparece na jaqueta. Mas é quente. É glorioso estar quente. Sua língua faz
uma menção ao simples obrigado, mas tudo que o pai de August diz é: — Me
chame de Shane, e essa é Tammy.
— Cuidado com minha mãe, — sussurra August. — ou ela vai sequestrá-lo
e adotá- lo.
— Ela tem essas tendências. — diz Shane. — Lembra daqueles gatinhos
selvagens?
— Claro que sim.
Tammy termina a salada colocando meio jarro de azeitonas. — Você tem
que ficar, Beck. Eu insisto.
August cutuca o braço de Beck e ele a segue enquanto ela volta para o
corredor. — Nos chame quando ficar pronto. — diz ela. — Vou apresentar
Beck à casa. — Ela abre uma porta, também coberta de fotos, e caminha com
os braços abertos. — Meu humilde santuário.
— Um gato desliza entre os tornozelos. — Cuidado. O cachorro morde.
— Mais cachorros? — Beck diz fracamente.
Um dogue alemão se espalha sobre um saco de feijão amassado no canto.
Ele rosna suavemente, mas a julgar pelas escamas brancas em seus olhos, não
será um golpe fácil para ele. Há um periquito azul gorjeando em sua cabeça,
mas o alemão não parece se importar.
— Acho que você tem mais de nove cães. — diz Beck.
— Oh, eu tenho nove cachorros. — diz August. — Meus pais também têm
cachorros. Também há a tartaruga e um aviário lá fora para os pássaros. —
Ela olha para o periquito. — Para a maioria dos pássaros. — ela altera. —
Existem alguns gatos e uma cabra, mas estamos apenas cuidando da lhama.
— Naturalmente.
August cai na cama dela. Está coberta de colchas, cadernos feitos à mão e
canetinhas. Há pôsteres nas paredes e o abajur de cabeceira é um globo
reaproveitado. No entanto, ela não é maníaca da organização. Há roupas no
chão e uma caixa transborda com rabiscos meio inacabados. E o cachorro
ocupa o resto do espaço.
Apesar de todo o calor e aconchego desordenado dos Frey, é óbvio que
eles não tem tanto dinheiro.
Mas comparado ao estéril quarto de Beck, o de August é como um ninho
de sonhos.
August abraça seus joelhos. — Sinceramente, pensei que nunca
conseguiria fazer você me visitar. Estou feliz que você veio. Só para você
saber.
Ela olha para ele longa e duramente, tão forte que Beck se afasta e,
conscientemente, toca sua bochecha machucada.
— Podemos conversar. — diz August.
Ele não pode. Por favor, não o obrigue.
Mas como ele pode aparecer como um saco de pancadas e não dar
nenhuma explicação?
— Não é nada sério. — ele diz calmamente.
Seus olhos dizem que ela não acredita nele. — Quer que eu pegue gelo?
— O vento meio que congelou na corrida.
— Você correu? Uau, não achei que essas pernas finas se movessem tão
rápido.
Ele quer sorrir, mas sua bochecha dói.
A piada sai de sua voz. — Foi a sua mãe? Você poderia ficar aqui esta
noite, se quisesse...
— Ela está no hospital.
O corpo sempre agitado de August congela e Beck percebe como isso soa.
— Espere, eu não fiz. .. eu não fiz nada com ela. — Ele diz isso muito
rápido, muito culposamente. — E Joey está com ela, mas ela está... ela está
bem.
August relaxa de volta em suas almofadas. — OK. Isso é bom, eu acho. A
polícia está envolvida?
— Não.
— Eles deveriam estar?
— Não. — ele diz estupidamente. — Está tudo bem. Todas as famílias
têm... problemas. — Ou momentos em que você teme seriamente por sua
vida. — Não é tão ruim assim. Eu sou um idiota por ter vindo.
— Pare de dizer que você é idiota.
Um gato se enrola nas pernas de Beck, ronronando. Ele não tem certeza se
deve se aproximar ou se afastar, mas o calor suave e fofo faz com que ele
entenda por que as pessoas gostam de animais.
— Não está nada bem, você sabe. — Sua voz está subitamente feroz. — E
isso me deixa, argh, com tanta raiva de pensar em você...
— Estou bem. — Realmente não está. — De verdade, August.
Eu faria algo se... ficasse muito ruim. — Ele não faria.
— Jantar! — Tammy grita da cozinha.
August suspira. — Não surte. — Ela está de pé, aproximando-se enquanto
passa. — Eu não vou deixar eles te comerem. Vamos devorar a lasanha e
então eu tenho que mostrar uma coisa espetacular do lado de fora, antes de
você sair correndo.
Pela primeira vez não há pressa. A Maestra não está em casa.
Ninguém se importa onde ele está. Ninguém virá procurá-lo. Mas não
parece que ele é livre. Parece que ele é apenas esquecido.

*N.T.: turtle (tartaruga) + tortoise (cágado)


Beck não tem certeza de como o jantar na casa dos Frey será.
Eles rezam para uma árvore? Eles se sentam à mesa? A lasanha é
realmente real? Ele nunca viu August comer carne, então a lasanha está
ligada aos sonhos de liberdade dos animais?
Tem um cheiro divino, apesar de tudo, e seu estômago dá um nó de
antecipação. Quando foi a última vez que ele comeu alguma coisa que não
era cereal?
Os Frey tem uma mesa, e eles se agrupam em volta dela, como qualquer
família comum. Ele está esmagado em um canto, pois colocar uma cadeira
para Beck na pequena mesa requer criatividade.
Quando sentados, os cotovelos de todos quase se tocam e os pratos de
comida ocupam tanto espaço que o de Beck está quase no colo dele.
Pequenas margaridas pintadas à mão decoram os pratos e os talheres são
incompatíveis. É apertado, mas de alguma forma, aconchegante.
— Nós temos uma mesa maior. — diz Shane. — Aqui em algum lugar. —
Ele se vira para Tammy, que está cortando uma laranja para a salada. —
Perdemos a mesa grande?
— Como se perde uma mesa, pai? — diz August.
— Bem, — Shane diz defensivamente. — sua mãe já perdeu um cavalo.
— Tinha pernas. — Tammy amontoa um prato enorme de lasanha, a cesta
de pão de alho, os saleiros e os pimenteiros, para tentar arrumar espaço para a
salada.
— As mesas têm pernas. — diz Shane.
August se serve de pão e molho pesto. — Mas elas não fogem.
Aquele cavalo correu.
— Ela deve saber. — Tammy concorda. — Estava montada nele.
— O que me incomoda... — August pega a salada e procura as laranjas e
azeitonas. — … é porque você ainda se refere a esse episódio como o dia que
eu perdi um cavalo. E não o dia que eu perdi minha filha de nove anos.
— Mas você é como um pombo, querida. Você eventualmente encontraria
o caminho de volta. — Tammy pega uma faca enorme do nada e começa a
cortar a lasanha. O cheiro explode; legumes e molho de tomate com alecrim.
Beck mantém a boca fechada para o caso dele começar a babar no prato.
— Ou poderíamos simplesmente adotar outra criança e comprar outro
cavalo. — Shane passa o prato para Tammy. — Talvez teríamos conseguido
um desconto?
Tammy faz uma pausa, a faca manchada de vermelho levantada
perturbadoramente alta. — Oh, Shane. Isso é verdade. Por que não pensamos
nisso, em vez de persegui-los por todo o estado?
— Acho que você gostava do meu rosto. — diz August.
Ela percebe que Beck não está se mexendo, então ela pega o prato dele e o
passa para a mãe. Ele não consegue funcionar adequadamente, não com o
cheiro de comida drogando seu cérebro, e os Frey o aterrorizando com as
suas brincadeiras. Eles não parecem reais.
Tammy corta uma fatia enorme e joga no prato com um plop . —
Apresentação não é o meu forte, — diz ela. — mas como não fui eu que fiz,
definitivamente deve estar deliciosa.
— Isso é um fato reconfortante. — Shane se inclina para beijar sua
bochecha.
— Papai, — August diz, avisando. — ela ainda tem a faca.
— Isso é verdade. — Ele se retrai. — Cuidado com isso, querida. Lembre-
se da equidna.
— Oh, eu lembro do Golias.
— Eu tento não lembrar. — murmura August.
Beck decide deixar a confusão tomar conta dele e dar total atenção ao
banquete em seu prato. Uma cutucada rápida com o garfo revela que a
lasanha é sem carne. Mas os lençóis de massa estão encharcados com molho
e os vegetais banham-se em um paraíso de azeite e ervas. Ele não consegue
comer rápido o suficiente.
É mais fácil pensar em comida do que no fato dos Frey se amarem.
— Então. — diz Shane, agradavelmente. — Não tenho dúvidas pessoais.
Mas sua cor favorita é um assunto permitido, certo, Beck?
— Também não fale sobre o nome completo dele. — August sorri
maliciosamente por trás do molho para salada.
Beck gostaria de esfaqueá-la agora.
— Hum, azul, eu acho? — Ele se sente como um idiota. Cor favorita? Eles
estão zombando dele ou realmente tentando agradar August? Ela é muito
parecida com seus pais. Todas as piadas, as grandes palavras irracionais, as
respostas rápidas – ela é uma cópia em carbono de seus pais.
Isso assusta Beck... o quanto ele pode se parecer acidentalmente com a
Maestra.
— Seu nome completo é Beckham? — Tammy diz. — Como o jogador de
futebol?
Beck é salvo de responder quando abocanha um punhado de abóbora e
lasanha.
— Talvez seja Becktrove. — diz ela distraidamente, girando a alface no
garfo.
August geme. — Mãe. Em primeiro lugar, ninguém se chamaria
Becktrove. De onde diabos isso veio? Em segundo lugar, eu disse que não é
um bom tópico.
— Bem, o que é um bom tópico? — Tammy diz.
Que tal nenhum? E que tal silêncio, para que eles possam prestar uma
homenagem adequada à deliciosa lasanha? Ele quase termina seu pedaço
antes de perceber que todo mundo mal chegou a um quarto.
— Beck é músico. — diz August.
Beck engasga. Isso é um tapa na cara por ele nunca ser honesto o
suficiente. Se ela soubesse do piano, soubesse de tudo, não tocaria no
assunto. Mas ele não pode ser honesto.
— Ele também é apaixonado por Twice Burgundy, — diz August. —
embora ele seja um homem de música clássica.
— Eu sou uma mulher de música clássica. — Tammy diz, segurando o
garfo sobre o coração. — Você gosta de Bach? Chopin?
Beethoven?
August dá um chute conspiratório embaixo da mesa e ele bate nas costas
dela. Ela grita e, em seguida, sufoca o riso com uma enorme garfada de
lasanha. Essa garota é enlouquecedora.
A boca de Beck está seca. — Gosto de Grieg.
— Grieg! — Tammy cutuca o marido – apenas com o garfo – e sorri para
ele. — A maioria dos adolescentes não sabe nem quem é Bach, quanto mais
Grieg! Ele sabe das coisas, Shane, este sabe das coisas.
— Foi apontado. — diz Shane.
— Sim, querido, é um garfo.
— Não, eu quero dizer o comentário. — Ele franze a testa para ela sobre
seu copo meio cheio de vinho. — OK, eu tinha dezenove anos quando nos
conhecemos e, definitivamente, não sabia quem era Bach. Eu pensei que
você gostava de cães. É por isso que eu continuava saindo com você. Eu
gostava de cachorros. Você gostava de Bach. Nós nos casamos e eu percebi
meu erro.
— Vocês estavam estudando para serem veterinários, pai. — diz August.
— O erro foi bastante aceitável.
— Obrigado. — Shane corta sua lasanha majestosamente. — Vê? É por
isso que viajamos pelo estado para encontrá-la, em vez de adotar outra filha.
Gostamos de como você é positiva e encorajadora.
Tammy levanta da cadeira. — Deixe-me pegar mais para você, Beck.
Ele tenta dizer não, obrigado, apenas para ser educado, pois ele tem
certeza de que poderia lamber o prato, mas este já está cheio de lasanha
novamente.
— Sim, alimente-o. — diz August. — Ele fica muito irritado quando está
com fome – eu sobrevivi a um ataque uma vez.
— Você é seriamente malvada comigo. — diz Beck.
— É por isso que você gosta de mim.
Não, ele gosta dela porque há luz do sol em seus olhos e ela conhece os
segredos para faze-lo sorrir.
Beck começa a trabalhar no seu segundo pedaço e não responde.
— Agora, Beck. — diz Shane, sério. — Gostaria apenas de estender o
convite para jantar aqui, sempre que você precisar. Eu também gostaria que,
pudéssemos conversar um pouco sobre o seu, ah, rosto e...
— Eu estou bem. — diz Beck. — Foi apenas um estúpido mal-entendido
com alguns... caras. — Ele poderia ser um mentiroso no mínimo mais
convincente? — Sinto muito por atrapalhar...
Algo nos olhos de Shane dizem que ele não acredita, mas ele simplesmente
levanta a mão e diz: — Não sinta. Recuso-me a aceitar seu pedido de
desculpa por enfeitar nossa bela casa com a sua presença parecida com a de
um órfão.
— Papai, — diz August. — isso não é muito legal.
— Bem, ele me lembra um pouco do Oliver Twist*. — Shane protesta. —
Além disso, é bom ver alguns amigos da August de vez em quando. Ela
nunca os traz aqui.
August começa a retirar os pratos. — Porque todos têm medo de você. E
da sua comida. E dos nossos cachorros.
Beck tropeça para ajudá-la, embora empilhar os pratos de outras pessoas
venha com uma montanha de pressão. Ele não quer ser aquele obrigado pela
refeição e aqui deixe-me acidentalmente quebrar todas as suas louças. Então
ele vai para a saladeira de plástico e leva cuidadosamente para a cozinha.
August ri silenciosamente.
— Por que eles têm medo de mim? — Shane parece alarmado.
— Se você está se referindo ao episódio da Andrea com a píton...
August estremece. — Nem me lembre dessa história. A propósito, Andrea
nem fala mais comigo. Você a assustou por toda uma vida.
— E Sumi e Ajeet?
O nariz dela enruga. — Eles estão ocupados, ok? Pelo menos eu tenho
amigos. O Beck aqui é um eremita temperamental.
— Por favor, não. — Beck sussurra.
— Ele tem exatamente um amigo. — continua August.
— Quem? — o pai dela diz.
Ela olha.
— Ah. Ah sim. Você.
— Estou feliz que você chegou a essa conclusão tão rápido. — Ela limpa o
prato enquanto ele ainda dá uma última mordida no pão de alho.
Ele bufa e alimenta um dos muitos cães farejando embaixo da mesa. Um
gato subiu na cadeira desocupada de Beck e miou piedosamente.
— Tem sorvete de caju para a sobremesa. — diz Tammy. — E cerejas
frescas.
— Ainda não é a época das cerejas, querida. — diz Shane.
— Então, cerejas não frescas. — Tammy parece estar pensando em ficar
em pé, mas não tem certeza se o esforço vale a pena.
Beck entende. Ele está absolutamente cheio. E ele já se sentiu assim –
alguma vez? O sorvete de caju parece duvidoso de qualquer forma, então ele
dá a August um olhar suplicante e ela entende.
— Na verdade, acho que sou capaz de explodir, — diz August.
— Podemos pular a sobremesa? Preciso mostrar lá fora ao Beck, antes que
ele vá.
— Mas está escuro. — diz a mãe.
— Está perfeito para o que eu quero mostrar.
Shane compartilha um olhar horrorizado com sua esposa e depois bate a
mão na mesa. Três cães saem correndo de debaixo dela. — Calma aí, jovem
lady, não haverá nenhum tipo...
August esconde o rosto. — Por favor, não diga nada embaraçoso, pai. Eu
te imploro. Eu vou mostrar as estrelas. As estrelas que Deus criou, no céu. Se
você envergonhar meu amigo, juro que fugirei de casa e morarei no Paraguai.
Tammy suspira. — O Paraguai está muito longe, Shane, querido. Deixe as
crianças em paz. Beck já parece totalmente chocado. — Ela acena para eles.
— Podem ir. Vão observar as estrelas. Boa sorte congelando lá fora.
August sorri como uma criança que acabou de ganhar um chocolate e
depois puxa Beck pela porta dos fundos.
— Nada de afogar o ganso! — o pai dela grita.
— Querido, — diz Tammy. — ninguém mais diz isso.
A porta dos fundos se fecha e os pais de August são silenciados. A noite
envolve a cabeça pulsante de Beck com seus braços frescos e doces.
Ele segue August por um caminho de pedras. — Sua família é…
— Intensa. Eu sei. Mas eles só querem esmagar você com amor,
estranheza e filhotes. Algumas pessoas têm direito a uma companhia animal,
que não os julgue, não acha?
— Na verdade, eu ia dizer que são legais.
Ela se cala. Beck se sente culpado, como se estivesse jogando a carta de ai
de mim, pois o motivo dele estar aqui é porque sua mãe não é como a dela.
Cautelosamente, ela escorrega sua mão na dele.
Seu coração dá um pulo.
— Venha comigo. — ela sussurra.
Beck está infinitamente feliz pela jaqueta emprestada, embora o rubor
subindo pelo pescoço o aqueça também. Ela está segurando a mão dele
novamente. O que ele deveria fazer com esse sentimento?
As luzes noturnas guiam o caminho, circulando várias árvores velhas e
inclinadas. Eles passam por dois canis e um cachorro começa a uivar.
— Esse é o Caligula. — August passa rapidamente pelo animal histérico.
— Ele provavelmente mataria você. Ele provavelmente me mataria. Boas
maneiras não são seu ponto forte.
— Então você salva todos esses animais apenas... apenas por quê? — Tudo
o que Beck consegue pensar é na Maestra dizendo a ele como ele é apenas
um projeto para August. Ele é um número dentre cem na lista de coisas que
ela salvou. Como ele deveria ignorar isso, e pensar que ele é mais do que uma
pessoa lamentável aos olhos dela?
August encolhe os ombros. — Sim? Tipo isso? Também tentamos colocá-
los para a adoção. Apresentamos anúncios em jornais, distribuímos folhetos e
convencemos a todos que conhecemos do quanto eles precisam de um
labradoodle psicótico, não treinado, abusado e parcialmente cego em suas
vidas.
— Com que frequência isso funciona?
— Relativamente bem. Eu sou muito convincente.
Isso é verdade.
O quintal está úmido com as lágrimas da noite. O jardins é praticamente
contornado com troncos cobertos de musgo e pedras, e galhos que caíram das
árvores enormes. Beck respira o cheiro de grama cortada, orquídeas e luz das
estrelas.
August o leva a uma rede. É do tipo plana e larga, como uma cama de
malha na qual pelo menos cinco pessoas podem deitar enquanto contemplam
o céu. Ela se vira e, apesar de Beck protestar, ela agarra o canto da jaqueta e o
puxa para baixo.
Eles estão muito perto. Braço encostando braço. A mão dele roçando na
dela e o cabelo dela fazendo cócegas nos ouvidos dele.
Ele tem pavor do quão confortável é isso, de quão perto, quente e seguro
ele se sente.
Ele não é bobo. Em uma piscada tudo isso acabou. Ele estará de volta ao
piano, a Maestra, à agonia, porque, por mais que ele odeie, é toda a família
que ele tem.
Mas agora? Ele tem um segundo com August e esta mágica.
— Contemple. — August diz. — A visão mais bonita que existe.
Seus pés seguem a grama enquanto ambos balançam a rede suavemente e
observam o mapa de estrelas acima. Ele nunca prestou atenção em nada além
de música; Semicolcheias e escalas; Liszt, Rachmaninoff e Chopin. As
músicas que ele é forçado a tocar e as músicas que ele pode compor. Elas são
sua linguagem, seu foco, sua vida. Ele nunca olhou para as estrelas antes,
nunca percebeu que eram assustadoramente fascinantes.
E lentamente, uma nota de cada vez, a música em sua cabeça começa de
novo – suave e assustada – mas está lá. Isso o assusta, a idéia de que um dia a
Maestra o machuque tanto, que sua música desapareça para sempre.
Ele bate um ritmo na coxa para ver se as notas desapareceram novamente.
Elas ficam. Dançando sob sua pele.
— Eu escrevi algo para você. — Apenas sai, e uma parte de Beck se sente
estúpida, a outra corajosa.
— Sério? — August aninha a cabeça ao lado da dele. — Posso ouvir?
— É péssima.
— Eu sei que não é.
— Você nunca me ouviu tocar.
Ela bufa, o que meio que quebra o brilho do céu, as estrelas e a quietude.
Beck relaxa na rede com um meio sorriso.
— Você pensa que é um mistério, — ela diz. — mas eu já descobri muito.
Eu sou como uma detetive.
— Oh, realmente?
— Sim. Eu sei que você respira música, mas isso o deixa constrangido e
talvez você até odeie um pouco. O que é confuso. — acrescenta ela. — Eu sei
que sua casa é uma merda… — Ela interrompe seu protesto murmurado. —
Mas, apesar disso, você é um marshmallow e um ótimo irmão, Joey é a prova
disso.
— Você tá falando da criança que foi suspensa da pré-escola?
— Joey é incrível. — August dá à rede um empurrão energizado.
— Eu também sei qual é o seu sonho.
O quanto ela pensa nele?
Tanto quanto ele pensa nela?
— Liberdade. — diz ela, como se tivesse arrancado a palavra das cordas
enferrujadas do piano, que unem seu coração.
Ele se sente vazio sem o seu segredo.
— Mas, — ela diz devagar. — você está preso.
Ele quer contar a ela sobre a Alemanha – sobre ficar ou ir. Não que a
escolha seja dele, nunca será, mas não importa em que direção a Maestra o
jogue, será a errada. Deixar Joey? Deixar August?
Impensável; Ficar? Ele vai acabar explodindo um dia.
— Você gosta de mim porque sou patético. — diz ele de repente. — Como
seus cachorros.
Ele deseja retirar o que disse. Ele acabou de destruir a noite com sua auto-
aversão envenenada?
— Você não é tão fofo quanto meus cães. — diz ela.
Ele deveria saber que ela não iria levá-lo a sério. Isso o machuca, um
pouco, porque ele não consegue fazer piada o tempo todo. Ele deveria ir, e
desmoronar em particular.
— Embora, só para constar, — ela diz, agora severa, talvez a piada tenha
desaparecido. — você não é patético. Por que você até mesmo pensa isso?
Você é engraçado e protetor e gentil. Você poderia ter me deixado ir
mancando para casa, quando eu fui uma idiota e estourei meu pé. Você
deixou? Não. E mesmo que Joey esteja lá xingando como um soldado, nunca
ouvi você se irritar. Como eu disse, você é um marshmallow que finge ser um
monstro, mas eu vejo você de verdade, Beck.
Ela passa os dedos pelos dele, rapidamente, como se ela achasse que ele
recuaria. Seus dedos se fecham ao redor dos dela – não é estranho, nunca
poderia ser.
— Você não é um filhote de cachorro que precisa ser resgatado.
— ela diz suavemente. — Você é um garoto, e me faz sentir intensa.
— Intensa?
— Estou sempre distraída. — acrescenta August. Ela solta uma pequena
risadinha.
— Por que? — Beck diz.
— Fico pensando na sua reação.
— Sobre o que?
Ela se apoia no cotovelo. — Sobre isso. — E ela o beija, muito
gentilmente, muito calmamente, em seus lábios machucados.

*N.T.: Oliver Twist é um romance de Charles Dickens que relata as


aventuras e desventuras de um rapaz órfão.
A Maestra cheira a hospital e a chá de canela. Ela se encolhe na cama, seu
laptop antigo gemendo enquanto envia as correções de teoria musical a seus
alunos da universidade. Beck tem uma espátula na mão, ainda coberta com a
massa das panquecas que está fazendo para Joey jantar.
Ela ligou para ele e ele veio. Ele é obediente assim.
Fazem três dias desde o surto dela, desde a surra dele, desde o beijo de
August. A Maestra não saiu da cama e não falou com ele, nenhum pedido de
desculpas, é claro, e sem explicações sobre o que aconteceu no hospital.
Claramente eles engoliram qualquer mentira que ela inventou. Beck decidiu
não se importar. Ele não se importa.
— Feche a porta. — diz a Maestra.
Beck olha para as mãos fortemente enfaixadas que lutam para manter uma
caneca de chá na posição vertical.
— Quero ela aberta. — Beck encosta-se no batente da porta e cruza os
braços, com a espátula na dobra do cotovelo. — Eu estou com a panela no
fogo. Para o jantar da Joey, considerando que você não cozinha para ela.
Os lábios da Maestra se estreitam. — Sua atitude é inaceitável.
Beck encolhe. As contusões ainda permanecem em seu rosto.
Trabalho dela.
— Mas, — diz a Maestra. — você está sob pressão, Junge. Eu entendo.
— Eu não quero tocar para o meu tio.
A Maestra recosta-se nos travesseiros. — Não perguntei se você quer.
Você vai. — Sua voz ficando mais forte. — Mas seria um milagre se seu tio
visse potencial em você, então não se preocupe em se mudar para a
Alemanha tão cedo.
É um alívio ou um não? Beck não consegue nem pensar direito por causa
da dor.
— Mas você ainda vai se apresentar. — diz ela. — E por mais rude que
você seja, Sohn, eu o recompensarei pelo seu bom comportamento.
Isso é surpreendente. Embora sua ideia de uma recompensa seja
provavelmente mais escalas para ele tocar.
— Aquela garota. — começa a Maestra, e o coração de Beck salta. —
Aquela festa. Você pode ir.
— Sério? — Ele aparece desesperado e incrédulo, antes que possa parecer
cauteloso. — Ja. — Os lábios da Maestra se retorcem, azedados com sua
excitação. — Talvez isso o encoraje a trabalhar mais antes da apresentação. O
trabalho duro pode até encobrir sua falta de talento.

Beck deve manter a Maestra feliz – ou pelo menos sem sentir ódio dele – se
ele quiser receber o privilégio de ir a festa.
Ele se cola ao piano, praticando tanto e com tanta força que fica com dor
de cabeça devido à sua própria cacofonia. A Maestra gradualmente retoma
seus insultos motivacionais, mas mantém as mãos afastadas. Pode ser porque
elas ainda estão enfaixadas. Ou será que ela sente muito por ter perdido o
controle naquela noite?
A quem Beck está tentando enganar? Ela nunca se arrependeria.
E enquanto toca o Chopin, Beck compõe para August.
Está indo bem.
Enquanto o Chopin é composto por notas precisas, rápidas, leves e
poderosas, sua música para August é o oposto. É lenta e cheia de pausas
sobre arrependimento, e partes mais ousadas que falam sobre saudade e
felicidade. Tem gosto de tempestade quando ele sonha com ela à noite.
Mas ele realmente se concentra no Chopin, porque ele quer que esteja
bom. Para o seu tio, para a Maestra. Para ele mesmo. Ele não quer se
envergonhar. E uma estúpida e iludida parte da sua alma ainda se ilude com a
ideia de que talvez ela finalmente aprove seu desempenho no piano,
reivindique-o como o talentoso filho que sempre esperou, e espontaneamente
comece a amá-lo.
Sim, e o mundo provavelmente acabaria Ele não precisa da aprovação da
Maestra. O que ele precisa, é de uma maneira de entregar a música de August
no seu aniversário – que é o mesmo dia da sua aula particular com o Jan
Keverich.
Ele está tão ocupado compondo e praticando e ativamente não pensando
no beijo de August, que o dia do recital de seu tio se arrasta e dá um tapa na
cara dele.
Eles estão quase indo. A Maestra tirou os curativos. Joey está usando um
vestido rosa muito pequeno, que, juntamente com um laço no cabelo
selvagem, a faz parecer ridícula.
Ela entra furtivamente no quarto dele, com as botas de chuva aparecendo
por debaixo do vestido e o laço já caindo. Ela ainda não recuperou sua
animação usual, desde que a Maestra bateu nela, e isso está atormentando
Beck.
— Eu pareço a Bela e a Vera? — Joey diz.
— Na verdade, é fera. — Beck está quase vestido e tentando ignorar o
nervoso. Na última vez que ele se preparou para uma apresentação, acabou
sendo espancado perto de uma parada de ônibus.
Joey olha para o piano e, cautelosamente, toca algumas teclas.
Como ela pode olhar para o piano? Ou ela não se lembra das ameaças da
Maestra? Nada foi mencionado desde então, e seu cérebro de cinco anos
provavelmente já deixou para lá. Se ao menos Beck tivesse a mesma
capacidade.
Ele abotoa a camisa – e percebe que algo está errado. O paletó estica um
pouco sobre o peito, mas o problema são as mangas. Ele checa as calças. Há
uma boa quantidade de tornozelo aparecendo.
Não, não, não.
Ele cresceu?
Ele não pode ter crescido tanto.
Não.
Ele não pode aparecer em um show para pessoas ricas, para impressionar
seu tio, para provar seu valor a Maestra, usando isso. E eles vão sair em
menos de uma hora. Suas mãos tremem quando ele puxa as pernas da calça,
imaginando a raiva da Maestra chegando. Ela não pode culpá-lo por crescer...
OK, ela provavelmente vai. Por favor, por favor, estique. Ele tem a pior sorte
do universo?
Joey ri. — Beck, você cresceu! Mama! — ela grita. — Beck não cabe nas
roupas dele!
A Maestra aparece com os cabelos preocupantemente lisos – que tipo de
violência ela usou para conseguir deixá-los assim? – e usando um vestido do
seus dias de glória. Tudo feito sob medida, já que era rica, famosa e de
tamanho incomum. Ela parece feroz, orgulhosa, até bonita, uma pianista para
se admirar.
Beck parece um idiota.
Joey aponta, como se a Maestra não conseguisse ver o problema. — Ele
vai rasgar as calças.
Beck dá a ela um olhar de ódio, mas a verdade é – ele vai.
— É minha culpa. — diz a Maestra.
Beck fica boquiaberto. Não é culpa dele por não pedir permissão para
crescer?
— Eu nunca parei para pensar sobre seu o terno. — diz ela. — Verdammt.
— Você é uma girafa. — acrescenta Joey, prestativa.
— Eu sei. — Beck range os dentes. A menos que, ele queira aparecer em
um dos vestidos da Maestra, é isso. Olá papel de palhaço.
A Maestra fica em silêncio por um longo tempo, o suficiente para o pânico
de Beck aumentar um pouco. Então, com os lábios contraídos, ela diz: —
Coloque meias altas e pretas.
Beck procura no seu guarda-roupa e pega as meias. Ele não pode usar as
calças baixas e ainda enfiar a camisa por dentro, então as meias são a única
solução. Pelo menos o paletó não o decepciona muito e, se ele não se mexer,
deve ficar bem.
— Você vai tocar. — diz a Maestra. — E beeile dich! Chegar atrsado é
inaceitável.
Eles pegam o ônibus, vestidos com suas melhores roupas, e ignoram os
olhares.
Beck não traz partituras.
O último trecho da jornada deve ser feito de táxi, onde a Maestra range os
dentes e Beck estremece pelo preço exorbitante.
Aparentemente, os ônibus não entram na parte rica da cidade. Aqui, você
deve ter um carro. E provavelmente uma empregada e um jardineiro e uma
cozinheira. Meine Güte, as casas são enormes! Beck coloca o rosto contra a
janela, enquanto o táxi ronrona passando por gramados bem cuidados,
calçadas circulares, fontes e enormes portões com símbolos no ferro forjado.
É como em um livro infantil onde a princesa vai a um baile.
Exceto que Beck não é uma princesa, é uma girafa caindo em direção a um
certo destino. Sim, ele tem exatamente zero confiança em si mesmo. Ele só
espera que a Maestra o deixe vivo depois.
O táxi os deixa no final de uma entrada de pedra branca, e eles andam
admirados. Há carros por toda parte, carros caros, e suas laterais polidas
refletem o rosto de Beck quando ele passa. O gramado é um mar de verde e
existem mordomos na porta. Eles são recebidos com um bem-vindos e acenos
educados. A Maestra segura Joey, no caso dela decidir fazer uma pausa para
remar no lago de peixes dourados perto da porta da frente.
Um dos atendentes pede seus nomes e, ao ouvir o nome Keverich, fica um
pouco tenso. Beck acha que vê uma sobrancelha levantada, mas ele pode
culpar o cara? Joey ainda está usando suas botas de chuva. O terno de Beck
não serve direito. A Maestra é alta demais e ampla demais para ser uma
mortal comum. Eles são ridículos.
— O recital será no salão de baile. — diz o atendente.
No salão de baile. Óbvio. A comida também está sendo servida em pratos
de ouro?
Eles passam por escadas com carpete branco e tapetes com detalhes em
dourados, e depois entram no salão de baile. Deve haver umas cem pessoas,
vestidas para uma ópera, a conversa é apenas um murmúrio. As janelas do
chão ao teto se abrem para um convés e Beck sente cheiro de comida. Ah,
comida. Então ele procura o piano.
Ele fica no outro extremo da sala, cercado por cadeiras almofadadas
brancas e polido até um brilho ofuscante. Ele está com medo de tocar? Ou
ansioso?
O salão, a casa, o ar, tudo fede a dinheiro.
Joey espia a comida – carnes, chocolates e sanduíches de pepino em
miniatura.
— Estou faminta. — declara Joey.
— Eu também. — ele sussurra. — Mas você tem que ficar quieta.
— Então, eu tenho que comer tudo em silêncio?
— Hum. Tente pelo menos evitar sujar todo o rosto?
Joey tira a mão da Maestra – o que é fácil, já que a Maestra foi totalmente
envolvida por um enxame de socialites. É como se uma cortina caísse em seu
rosto, e a Maestra se fosse, substituída por alguém cuja linguagem corporal é
suave e acolhedora, cujos lábios se abrem para o melhor vocabulário e soltam
o volume correto de risadas.
Ela se encaixa aqui. Foi daqui que ela veio.
Beck começa a pensar em quanto dinheiro ela costumava ter na Alemanha
– e se ela sente falta.
Ele é deixado para cuidar de Joey.
Ainda não é hora de surtar, ou é? Pelo que sabe, Jan Keverich o está
observando – mas ele nunca conheceu o tio, nunca viu uma foto.
E certificar-se que sua irmãzinha não engasgue com um palito é o mais
importante no momento. Seu surto nervoso pode ficar para mais tarde.
O ar é mais frio lá fora e cheira a óleo cítrico e folhas de eucalipto. Tem
poucas pessoas aqui – esquisito, porque é aqui que está a comida. Alguns
garçons carregam bandejas prateadas de bolachas com patê de salmão, lascas
de queijo e aspargos envoltos em prata.
Joey espreita ao longo do comprimento da mesa, o nariz enrugado. Ela
encontra um prato com palitos de salsichas, queijo e cebola em conserva, e
pega dois.
— O que são essas bolas brancas?
— Cebolas em conserva. — diz Beck. — Você vai amar.
Joey chupa a cebola do final. Os lábios se franzem. Então seus olhos se
arregalam quando o suco ácido ataca sua garganta e Beck quase morre
segurando a risada. Ele é tão mau. Mas não pôde resistir. Ele se vira, fingindo
um espirro, quando um garçom aparece com uma bandeja de brownies de
chocolate em meticulosos triângulos.
O garçom apresenta a bandeja. — Guten Tag, — diz ele. — Boa tarde. —
Seu sotaque alemão é perfeito.
Beck sorri educadamente. Joey engasga.
O garçom parece levemente preocupado. — Ela está bem?
Quer um pouco de água?
— Ela está experimentando uma cebola em conserva pela primeira vez. —
Beck olha os brownies com um cobertura de creme do tamanho de um dólar
por cima.
Joey dá uma tosse seca e depois tira um brownie da bandeja.
Ela ainda não consegue falar, mas Beck acha que ela sobreviverá, pois já
está atacando os brownies.
O garçom ri.
— Ela realmente gosta de chocolate. — explica Beck. E ela nunca come
em casa.
— O chocolate é algo dos deuses. — diz o garçom.
Joey, finalmente recuperando o fôlego, se vira e chuta Beck nas canelas.
Ele grita. — Joey. — ele assobia. — Aqui não. — Ele olha envergonhado
para o garçom como se dissesse crianças, o que vocês podem fazer? Mas o
garçom já está rindo.
— Você poderia ter me dito que era picante! — Joey grita.
Cabeças viram.
Beck merece, mas ainda é embaraçoso. — Desculpe? Não é realmente
picante...
— Eu poderia ter morrido. — Joey dá uma mordida cruel no brownie. — E
então, eu não conseguiria ouvir o tio Jan tocando piano muito melhor do que
você.
O garçom coloca sua bandeja de brownies de volta na mesa. — Como você
sabe que seu irmão não é melhor que seu tio?
Joey está com uma mancha de creme no nariz. — Porque mamãe diz que
Beck é ruim.
Beck para de se arrepender pela cebola. O colarinho começa a parecer
muito apertado, e ele se lembra de que a Joey é apenas um papagaio e
realmente não entende o que está falando. Exceto... e se a Maestro também
não esconder seus verdadeiros sentimentos para outras pessoas? E se quando
ele se sentar para tocar todos começarem a rir?
O garçom tem que limpar os olhos de tanto rir. — Por que Ida não me
disse como vocês dois são hilários?
Oh Não?
— Hum, tio... Jan? — Beck diz, como o completo idiota é.
— Ja. — diz o tio. — Eu pretendia me apresentar enquanto lhes oferecia
comida, porque ouvi dizer que é assim que alguém ganha pontos com
crianças pequenas, mas me distrai ao ver Johanna conhecer as cebolas em
conserva.
Joey coloca uma mão – infelizmente contaminada com chocolate e creme –
no quadril. — Você estava nos enganando?
— Joey. — Beck assobia.
Jan balança a cabeça, triste. — Eu te enganei, pequena Johanna. Permita-
me compensar você com um pequeno presente de chocolate. — Ele tira três
pequenas barras de chocolate, embrulhadas em papel alumínio, do bolso.
Seus olhos se estreitaram, ela pega um. Então ela pega um segundo. —
Esse é para a mamãe. — diz ela, e Beck sabe que não há nenhuma chance da
Maestra receber um desses chocolates.
— Você é tão legal. — diz Jan, sorrindo.
Joey pega o terceiro e foge.
Jan se endireita, ainda rindo baixinho. — Ah, crianças. Elas são uma
felicidade.
São quando você lhes dá chocolate.
— Vocês dois me fazem me arrepender de ter casado com a minha música
e nunca ter tido filhos. — Jan diz.
Beck não diz nada. Ele não tem certeza do que fazer agora. Jan Keverich, o
famoso pianista, o tio distante e sem filhos, o rico benfeitor. Tudo que a
Maestra disse, fez Beck pensar que Jan seria tão aterrorizante quanto ela. Ele
é igual na aparência – alto, largo, com dedos longos e magros e a marca
Keverich: os cachos indomáveis. Mas ele é um marshmallow nas mãos de
Joey.
Como ele pode ser irmão da Maestra?
Jan alisa o paletó e abre um único botão. Seu terno se encaixa como se ele
tivesse nascido para ele, e encará-lo apenas faz Beck puxar com mais força as
mangas.
— Fazem anos que quero conhecer você, Beethoven.
— Eu atendo por Beck. — diz ele. — Se você não se importar.
Jan sorri. — Não te culpo. Os nomes de músicos são a maldição dos
Keverich. Ainda assim, — seus longos dedos se entrelaçam, — grandes
nomes geram grandes pianistas — Eu não saberia dizer. — diz Beck.
— Eu não acredito no que sua irmã diz. — Jan diz com uma piscadela. —
Tenho muita fé em você, Beck. Também estou ansioso pelo nosso horário
privado amanhã, para podermos discutir música sem audiência. A música é
mais relaxante sem todas essas expectativas. — Ele indica o salão com um
movimento educado da mão. — Vamos voltar?
Hora de começar a tortura? Mas Beck está estranhamente animado, porque
Jan prefere tocar sozinho também.
— Você se sente... hum, julgado – quando toca? — Beck o segue entre
fileiras de pinturas.
— Totalmente. — diz Jan. — Eu frequentemente me perco na peça que
estou tocando, mas às vezes? Keine Beziehung. Sem conexão. — Seu tom é
imperativo. — Muitas vezes, um público inexperiente não sabe dizer. Mas
esperamos que você e eu sintamos a música esta noite. A paixão é mais
importante que a perfeição.
A Maestra ouviu isso? Ela precisa.
Metade dos convidados estão sentados quando eles chegam diante do
monstruoso piano. As pessoas ainda conversam, até que um homem, com o
físico de uma bola de boliche, instrua todos a encontrarem seus assentos.
— Esse é o nosso anfitrião. — Jan diz calmamente. — Audwin Denzel.
Ele é um bom amigo meu e admirador do nosso trabalho.
Nosso trabalho. Jan ficará envergonhado quando Beck começar a tocar. A
plateia fica borrada, perdida no suor e nos nervos de Beck.
Se ele olhar muito profundamente para o piano, pode ver o seu próprio
rosto petrificado.
A Maestra senta na primeira fila. Joey, manchada de chocolate e brincando
com suas três embalagens vazias, está espalhada no chão ao lado dela.
Jan se aproxima dela e ela se levanta, seu rosto impassível.
— Ida. — diz Jan. — Eu conheci seu filho.
Como ele pode ser tão calmo? Como ele não recua diante do gelo nos
olhos dela?
— Preciso conversar com ele antes de começar. — diz a Maestra.
Jan concorda, — Ja. Claro. Começaremos quando você estiver pronto,
Beck.
Ele se agacha para conversar com Joey enquanto a Maestra se afasta deles.
Beck não tem como fazer nada, a não ser segui-lá. Atrás dele, Joey diz: — Eu
queru choclate. — com a boca pegajosa.
À sua frente, a Maestra sussurra no gelo.
— Você deve tocar primeiro, — diz ela. — e depois o seu tio, a verdadeira
apresentação desta noite. Eu me recuso a ser envergonhada por você, Junge,
você me ouviu? Sei que esta peça está dentro de você. — Ela espeta um dedo
no crânio dele. — Haverá consequências se você falhar e você pagará caro. O
que for preciso.
Não vou ser feita de boba.
Pagar. Consequências.
Dor.
Beck diz: — Farei o meu melhor.
— Não. — a Maestra envolve os dedos inúteis em volta do braço dele,
puxando-o para perto, para que o gelo caia em seu pescoço e os pulmões se
enchem de geleiras. — Você fará melhor que isso, ou… — A voz dela
endurece. — Ou vou quebrar suas mãos.
Beck se afasta, a geleira lascando, esfaqueando seu coração.
Ela faria isso? É uma ameaça baseada apenas no desespero e na fúria?
Ou ela faria?
Beck coloca as mãos atrás das costas.
— Vá tocar. — a Maestra dá um aceno de desprezo.
Ele vai em direção ao piano. Ela faria isso. Ela faria.
Como ele poderia deixá-la?
Como ele poderia detê-la?
Beck fica ao lado de Jan, sem nem perceber que havia chegado.
A multidão se prepara e várias luzes apagam.
Jan levanta a mão pedindo silêncio e então, no silêncio, ele diz: —
Willkommen! Senhoras e senhores, amigos e colegas de trabalho e, é claro,
willkommen aos convidados de honra – minha querida irmã, minha sobrinha
e, finalmente, meu sobrinho, que tocará para nós esta noite.
Há uma onda suave de aplausos. Eles nadam diante dele, como se seu
interior gelado estivesse derretendo e ele estivesse sendo forçado a nadar. Sua
cabeça se foi, se foi, se foi.
O aplauso cede e Jan continua. — Meu sobrinho, nomeado após o famoso
Beethoven… — seu sotaque alemão acaricia o nome bem conhecido — ...
tocará dois études para nós esta noite. Eu tenho algo para compartilhar com
vocês, meus amigos. Meu sobrinho é um prodígio do piano e está
considerando voltar à Alemanha para estudar com os grandes nomes.
Aplausos novamente.
Beck não sabia que ele estava considerando. Ele pensou que estava sendo
escolhido ou não. Ele se pergunta se, talvez a Maestra não tenha transmitido
direito o que Jan disse.
— Eu agradeço, — Jan diz. — por me homenagear com sua presença, na
minha breve turnê australiana. Muito obrigado ao nosso anfitrião, Audwin
Denzel, por fornecer sua casa para esta apresentação musical. — Ele se
inclina para Beck e sussurra: — Você gostaria de anunciar sua peça?
Beck parece ter perdido o bom senso. Ele provavelmente o encontrará em
algum momento. Mas agora, ele está piscando furiosamente enquanto a
multidão se transforma em um mar de tubarões com olhos famintos. Ele força
seu cérebro de volta para o Chopin. Lembre-se, lembre-se. A Maestra não vai
deixá-lo viver se tiver outro surto no palco. Ele conhece esses études, as notas
estão queimadas até os ossos.
Ele fará isso, ele pode fazer isso. Ele não vai falhar. Ele respira fundo.
E então ele a vê.
Porque – o que...
Como ela está aqui?
O vestido é de um verde musgo, os pés com sapatos de salto alto prateado
e o cabelo está trançado com fitas de prata. Ela parece confortável, animada,
sentada ao lado de seus pais, e seus olhos estão totalmente focados nele.
August queima com admiração.
Ela não pode estar aqui. Ela não pertence a este lugar. Ela pertence as
estrelas, com uma tartaruga no colo e com o Twice Burgundy tocando nos
ouvidos. Aqui não. Se ela o vir, ela saberá.
Ela saberá o quanto ele odeia música. Como ele está com medo. Como isso
controla sua vida.
Vagamente, ele fica ciente de Jan anunciando os études de Chopin após o
seu silêncio constrangedor, e então, com um empurrão suave, mas firme, ele
envia Beck em direção ao piano. August se foi de sua visão. Ele só vê os
dentes do piano e se pergunta se eles o devoraram.
A voz de Jan está em seu ouvido. — Você está bem?
Ele tem que estar. Ele não tem escolha.
Ele tem que tocar perfeitamente.
Como resposta, ele desliza para o banco almofadado e seus dedos deslizam
pelas teclas. Como algo tão aterrorizante pode ser tão bonito?
Como o futuro dele depende de apenas sete minutos ao piano?
Por que ele não podia ser mais do que isso?
Ele tem que parar de pensar nas ameaças da Maestra. Pense em outra coisa.
Pense em August. Ele imagina a rede, as galáxias pintadas como glitter no
céu negro, o beijo dela que roubou seu coração.
Os dedos de Beck tremem nas teclas – e então ele toca a paixão, o fogo e a
dança selvagem de Chopin.
Ele toca perfeitamente.
Exceto por uma nota.
Por sete sufocantes minutos, Beck toca esses études. As notas emaranham-se
a mil quilômetros por hora, complicadas, exatas, poderosas. Esses minutos
quebram suas costelas e arrancam a música de sua alma, como se sua vida
dependesse disso.
E depois...
ele se atrapalha.
Ele lança para o final, para o acorde que permanece no outro lado da sala –
mas quando seus dedos pousam, estão errado.
Dissonante. Uma nota incorreta e seu mundo cai em cinzas.
Beck tira as mãos, em pânico, quente de terror. Como ele pôde fazer isso?
Ele nunca cometeu esse erro antes. Ele repete o final? Ele tenta novamente o
último acorde? Mas ele não pode – um músico profissional ignora seus erros.
Mas...
não.
Os ombros dele se curvam.
Ele quase não percebe a cascata de aplausos atrás dele, e leva um segundo
para lembrar de ficar de pé, se curvar. O rosto dele está totalmente vermelho.
Como eles podem aplaudir isso? Ele tenta olhar para August, mas a massa de
rostos o atrapalha e ele se sente tonto com o esforço de permanecer na terra.
Mas ele pode ver a Maestra muito bem.
Joey sobe em uma cadeira e bate palmas furiosamente, parando para gritar,
o que é tão lisonjeiro quanto embaraçoso.
E a Maestra? Ela não bate palmas. Pela primeira vez suas mãos nem sequer
tremem quando ela as enrola em punhos. Os olhos dela brilham com lágrimas
furiosas.
Como ela ousa chorar.
Beck se afasta do piano. Ele sente como se estivesse nadando através de
um rio congelado e cada passo é um esforço lento. Ele quer vomitar. Ou
entrar em combustão. Ele se senta ao lado de Joey e espera que seu batimento
cardíaco se acalme, que seus sentidos retornem. Ele está ciente da música
quando Jan começa a tocar – leve e atrevido a princípio, e depois como uma
cachoeira de notas rápidas e apaixonadas. Beck não consegue se concentrar.
Ele nem reage quando Joey sussurra alto demais em seu ouvido: — Você é o
meu melhor irmão mais incrível — e lhe dá um abraço manchado de
chocolate.
Ele apenas olha para as mãos.
Mesmo quando acaba, quando Jan termina seu concerto de trinta minutos e
a multidão está agitada mais uma vez, Beck ainda está enraizado no seu
estupor. Ele sorri para os rostos desfocados e repete o nome da peça meio
milhão de vezes. Ele sabe que suas mãos estão suadas e suas calças
ridiculamente curtas, mas sua atenção se foi – o que eles pensam não parece
mais importante. Não com a realidade das ameaças da Maestra esmagando
seus pulmões.
Ele sabe o que está por vir.
Então Jan o resgata, assumindo as conversas enquanto jorra frases ridículas
em alemão de quão talentoso é meu sobrinho! e um gênio inacreditável,
enquanto Beck fica apenas lá existindo.
Mas nota errada, nota errada, nota errada.
— Você parece pálido. Deixe-me pegar um pouco de água para você —
Jan diz e desaparece.
Beck deseja poder derreter na parede. Mas e a Maestra? Quem sabe para
onde ela foi? Ele deveria encontrá-la, ou fugir, ou explicar para Jan ou...
August está na sua frente.
Ela parece incrivelmente sofisticada, mas ainda despreocupada e
levemente travessa. De perto, ele pode ver que o corpete do vestido dela é
cheia de miçangas. Ela veste apenas um cardigã, porque, como sempre, ela
rejeita a noção de que é outono. E sapatos? Ele nunca a viu nem usando tênis,
quanto mais em saltos.
— Seu mentiroso. — Ela dá um empurrão suave no ombro dele.
— Você disse que não era tão bom.
— Eu não sou.
— Ugh, Beck. — Ela geme e inclina a cabeça para trás, como se
implorasse ao universo para lhe dar forças para suportar esse idiota.
— Você é um bruxo no piano. Eu nunca vi alguém tocar assim – tão
rápido, bom e incrível. Quantas vezes posso dizer incrível? Porque você é
incrível.
— Você definitivamente atingiu seu limite.
— Você estava dentro do piano. — A respiração de August fica presa. —
Eu nunca vi alguém tão imerso na música assim. Foi — ela se inclina para a
frente e sussurra — incrível.
Isso é tudo que ele sempre quis ouvir. Então, por que ele quer chorar?
Ele pisca furiosamente e olha para ela, concentrando-se em qualquer coisa,
tudo, menos em August. — Por que você está aqui?
August acena atrás dela. — Meus pais. Mamãe é louca por música clássica,
mas ela tem pronunciado mal seu sobrenome a semana toda e eu não fazia
ideia. — Ela se inclina para perto, seus olhos se arregalando. — E o seu tio é
incrível. Quero dizer, você é bom e decididamente muito mais bonito, mas os
dedos dele estavam loucos... — ela interrompe em uma risada. — Bem, duh.
Você já sabe disso. Você é basicamente um piano.
Ela não deveria estar aqui.
Não seria tão ruim se ela não estivesse aqui.
— Beck? — August toca seu braço tão levemente. — O que há de errado?
Ei, ei, está tudo bem.
Ótimo. Então agora parece que ele vai chorar? De toda a injustiça.
— Aconteceu alguma coisa? — A voz de August diminui. — Você está
machucado?
— Não. — É um soluço staccato.
Se recomponha, seu Schwachkopf.
— Você precisa tomar um ar.
Ela o sequestra do salão de baile, do piano, da conversa e do caos. O ar na
varanda é frio e tingido de anoitecer. Joey está, previsivelmente, rondando a
mesa novamente, desta vez mastigando rolinhos primavera e bolachas de
hortelã e evitando as cebolas em conserva.
Ele se encosta na parede, olhando para um jardim de grama perfeita,
piscina cristalina e fileiras de arbustos em forma de cubos.
August fica ao lado dele, tremendo de leve na frescura da noite. O ar frio é
bom. Ele está mais calmo. Ele não vai chorar.
— Como você não vê que é incrível? — August diz.
Ele não responde.
August se aproxima para que seus ombros se toquem. — Você é muito
talentoso, Keverich. Eu vou arriscar dizer que gosto mais da sua música do
que do Twice Burgundy e você sabe o quanto eu estou me sacrificando para
dizer isso. Vou ter que cancelar meu casamento com os dois...
Ele agarra o braço dela, vira-a para encará-lo, muito forte, muito rápido,
mas ele parece ter perdido todo o controle. Ela inclina a cabeça, surpresa.
— August — ele diz. — E-e-eu odeio isso. Eu odeio música. Eu não quero
fazer isso.
Seus lábios se separam, mas ela não consegue formular uma pergunta.
Ele a solta e dá um passo para trás. Como ele ousa ser assim.
— Eu sinto muito. Eu sinto – Eu sinto muito.
— Tudo bem — diz ela, mas ele não tem certeza se isso atinge seus olhos.
Há um barulho atrás deles e os dois pulam. Joey arrastou uma cadeira para
a mesa para que possa sentar-se corretamente e devorar o prato de queijo.
Beck se concentra no chão da varanda. — Eu vou na sua festa amanhã.
— Sério? — ela diz. — Isso é incrível, é... inesperado, na verdade.
Ele começa a dizer: — Se eu ainda estiver convidado...
Mas ela geme. — Sim, você está, seu idiota. Você é a pessoa mais mal-
humorada que eu conheço, é claro, e totalmente entediante, mas acho que vou
conseguir ficar animada com a presença de um gênio pianista na minha festa.
Mas você tem que trazer um presente. — Ela faz uma pausa, considerando.
— Um enorme. É o valor do ingresso.
Se ele escrevesse a música dela, seria suficiente?
— Enorme em peso ou altura?
— Altura. — Ela fica na ponta dos pés e beija sua bochecha. — Pare de
crescer. Nós costumávamos ser compatíveis e agora tenho que usar saltos.
Você provavelmente poderia comprar algumas calças novas.
— O quão ruim está? Honestamente?
— Faz fronteira com o hilário, mas não ousamos rir, porque de alguma
forma você faz com que seja fofo.
— Sorte minha.
O sorriso de August é triste. — Sorte sua.

Os Keverich são os últimos a sair.


Joey entrou em coma no chão, e Beck não tem certeza se está morrendo de
fome ou se quer vomitar. É quase meia-noite e ele não quer ficar sozinho com
a Maestra.
Jan oferece carregar Joey para o táxi que está esperando. Ela tem as
bochechas manchadas de chocolate e marcas de mãos oleosas sobre o vestido
e ela se encaixa perfeitamente nos braços de Jan.
A caminhada até o carro é tranquila. A Maestra parece não ter nada a dizer
a seu irmão, e Beck está apenas aproveitando seus últimos minutos em
segurança. Quando Jan sair...
Pare com isso. Não pense assim. A Maestra não vai...
— Vejo você amanhã, Beck — Jan diz. — Bem cedo, ja?
— Ja — diz Beck, no automático.
— Não estou no país há muito tempo — diz Jan. — Talvez eu possa levar
você e as crianças para sair, Ida? Talvez um jantar?
A Maestra não diminui a velocidade. — Tenho certeza que você tem coisas
muito mais importantes a fazer.
Isso confunde Beck. Claro, a Maestra está furiosa, mas com Beck, não com
o irmão. Ela não quer convencê-lo a levar Beck para a Alemanha?
Pelo visto Jan é imune à sua frieza. — Nada mais importante do que passar
um tempo com a família que negligenciei me conectar por mais de uma
década.
Eles alcançam o táxi e a Maestra e Jan trocam um adeus educado, e então
ela pega Joey e a coloca no banco de trás. Beck está prestes a subir atrás
deles, quando Jan descansa a mão no ombro dele.
— Você é um pianista brilhante — diz ele. — O nervosismo pode ser
controlado.
Se ao menos fosse apenas o nervosismo.
— Você faz o nome Keverich orgulhoso.
Talvez esteja escuro, talvez Beck esteja se iludindo, mas o sorriso de Jan
parece real.
Beck engole. Ele não pode ignorar o veneno, mesmo que todo mundo
possa. — O fim. Eu estraguei completamente.
Jan encolhe os ombros. — Erros não cancelam o valor de uma
performance. Eles nos incentivam a trabalhar mais, a ter objetivos mais altos.
Sua mãe e eu tivemos nossa parte de catástrofes quando começamos a nos
apresentar, especialmente naqueles études em particular. Pergunte a ela
algum dia.
Hum, não, obrigado.
Beck entra no táxi e Jan agarra a porta para fechá-la. — Boa noite. Estou
ansioso por amanhã, Beck. — Ele fecha a porta do táxi.
E Beck fica esperando sua tragédia começar.
A vida de Beck está por um fio, uma corda de piano quebrada no meio de
uma peça feroz. Ela não pode tocá-lo antes que ele veja seu tio novamente,
então, a Maestra não fez nada, fica imóvel, como se tivesse sido esculpida em
marfim. Ela o observa entrar no táxi. Seus punhos cerrados sussurram
promessas de mais tarde, mais tarde.
Tecnicamente, Beck poderia dizer ao táxi para levá-lo a qualquer lugar.
Mas ele não diz.
Ele é um covarde. Ou, ele quer ver Jan novamente?
Ou talvez ele ainda esteja preso àquela nota errada, segurando-a
desesperadamente, porque, quando o acorde desaparecer, a Maestra atacará.
O silêncio dela não vai durar para sempre.
Ele caminha sozinho pela longa entrada, até a porta, sentindo as restrições
do seu novo jeans. Sua mochila, cheia de partituras e com um dos terríveis
sanduíches da Joey, está pendurada no ombro. Se o cabelo não fosse tão
desarrumado, se ele não usasse uma mochila tão destruída, se soubesse sorrir
– talvez parecesse que pertence a este lugar?
Demora muito tempo para alguém atender a campainha. É Audwin Denzel,
o amigo do seu tio. Ele comprimenta Beck. — Jan está lá em cima. Venha,
Sohn.
Eles passam pelo salão e sobem as escadas de carpete branco para o
segundo andar. Então há uma porção de corredores, e Denzel o deixa na
entrada de uma sala de música – uma verdadeira sala de música. É inundada
pela luz das janelas que vão do chão ao teto, e as paredes são azul-celeste. E o
piano? Um Steinway branco.
Apenas o pensamento de que esse cara tem dois pianos de cauda – deixa
Beck tenso.
Jan não está e a sala está silenciosa. Várias estantes de livros, uma mesa de
café e um sofá branco que Beck está com muito medo de sentar. Mas, não é
como se ele fosse sentar no banquinho do piano e tocar enquanto espera. Não,
obrigado.
Ele descansa a mochila no colo – como um escudo? – e senta
cautelosamente na beira do sofá. E espera.
Dez minutos?
Ou um milhão de anos?
Finalmente Jan aparece, com uma caneca de café fumegante na mão. Ele
parece descontraído, casual, usando jeans e uma camisa preta, os cachos
indomáveis dos Keverich tocando a gola, e um relógio caro no pulso, solto e
tilintando contra a caneca.
Ele se inclina contra o batente da porta, bebe o café e olha para Beck.
Seus olhos estão decepcionados? Beck falhou em algum tipo de teste?
Ótimo. Ele está confuso e está aqui há apenas dez minutos.
— Eu tive um pressentimento — diz Jan. — Agora eu tenho certeza.
De que? De que Beck não foi criado na riqueza? Talvez ele devesse ter
levantado quando seu tio entrou? Talvez ele não devesse ter se sentado no
sofá?
Talvez ele devesse ter dito ao táxi para levá-lo aos confins do mundo e
deixá-lo cair.
Jan entra na sala. — Você odeia isso.
— O que? — Beck está falhando neste teste, falhando rápido.
— Alguém que ama música, respira música, não seria capaz de resistir a
esse piano. Eu estava esperando lá fora. Você não tocou ou sequer olhou para
ele. — Jan passa a mão no piano. — Você estava com muito medo de colocar
uma impressão digital aqui.
Beck provavelmente deveria dizer alguma coisa. Se defender?
Ele fica atordoado, mudo.
— Você sentou o mais longe possível.
Beck nem sequer pensou em onde ele estava sentando. Ele apenas sentou-
se. Então o tio dele está analisando tudo? Isso é estúpido.
— Ontem à noite, — continua Jan, com a voz tão nítida quanto as novas
partituras — você ficou na varanda, novamente o mais longe possível do
piano.
— Mas Joey...
Jan não o ouve. — Eu me perguntava se era medo de palco. Eu disse isso
ontem à noite, você nem corou ou pareceu envergonhado.
Você parecia aliviado. Porque eu não tinha adivinhado, não é?
Pare.
Isso é mentira, não é? Onde está o tio com um sorriso tão quente quanto
chocolate e uma risada tão brilhante quanto o sol?
Este homem é como a Maestra. Ontem foi tudo um fingimento?
Beck deveria saber.
Jan bate sua caneca na mesa de café com um estalo ameaçador. Líquido
preto desliza pelas laterais.
Exatamente como a Maestra.
O quão idiota Beck é? A muito tempo atrás, quando suas mãos estavam
saudáveis e no auge de sua carreira, a Maestra também devia ser feita de
sorrisos e melodias. Beck é um idiota. Por que ele caiu nisso?
E a pior parte? Ele não pode fugir. Ele nem tem certeza de que pode
encontrar a porta da frente desta casa monstruosa, e o que ele faria se
conseguisse? Andaria pela metade da cidade para chegar em casa? Ele está
preso aqui, ele, Jan e o piano.
— Você cometeu um erro ou você é o erro? — Jan diz.
Beck abre a boca...
fecha.
Os olhos de Jan endurecem e as próximas palavras são um rugido. — ME
RESPONDA.
Ele não é como a Maestra, ele é a Maestra. Beck encolhe no sofá, seu
mundo derretendo. Não entre em pânico, não encolha, não deixe suas
palavras te atingirem. Por que ele não nasceu com a pedra e o aço dos
Keverich?
— Ambos — ele diz, porque é isso que a Maestra gostaria de ouvir.
Seus olhos se fecham por um segundo, prontos para os insultos
começaram. Como ele é incompetente. Como ele não é um verdadeiro
Keverich. Como ele não é pianista. Como ele não é nada.
Mas ele não ouve nada.
Jan afunda ao lado dele no sofá, coloca a cabeça nas mãos e passa os dedos
violentamente pelos cabelos. Confusão não chega perto do que Beck está
sentindo. Ele resiste ao desejo de fugir.
Jan pega um lenço bem passado – quem tem isso? – de seu bolso e limpa o
café derramado, xingando baixinho por desperdiçar um bom café e arruinar a
caneca. O cérebro de Beck gira, porque não é algo com que a Maestra se
preocuparia. Ela deixa para Beck limpar a bagunça.
— Eu deveria ter usado um descanso de copo. — Jan dá um sorriso triste
para Beck.
Ele está brincando com ele? Um tipo frio de fúria inunda a mandíbula de
Beck. As mãos agarram a mochila. O que está acontecendo?
Jan empurra o café para longe. — Você não está sendo honesto comigo,
Beethoven.
— Beck. — Ele diz rigidamente. Ele está sentindo raiva e vergonha e
terror, mas se recusa a ser ridicularizado. E o nome dele é apenas uma piada.
Beck — altera Jan. — Me desculpe.
Essa é a verdadeira maldição dos Keverich? Trocas psicóticas de humor?
— Seja sincero comigo — diz Jan. — O quanto você ama o piano? — Mas
quando Beck abre a boca, Jan levanta um dedo. — Oh. Nein. Você vai
mentir.
— Eu não vou. — Os dentes de Beck rangem.
A sobrancelha de Jan se levanta. — Realmente? Eu vejo as palavras da sua
mãe escritas no seu rosto. Eu a vejo por trás da suas escolhas musicais. Esses
études? Nós só os tocamos quando crianças porque éramos forçados a torná-
los perfeitos. Nos deixou loucos. — Ele balança a cabeça. — Eu a vejo no
seu medo de errar.
Eu a vejo em toda parte sobre você. Mas, quando você toca o piano, eu te
vejo. — Ele suspira e une os dedos. — Peço desculpas pelo teatro, meu
sobrinho. Eu precisava te conhecer honestamente.
O que?
— Ela bate em você?
Beck perdeu toda a capacidade de uso da linguagem humana.
— Nós somos uma família — diz Jan. — E eu esperei por anos que sua
mãe me contatasse aonde estava se escondendo. Ela nunca deveria ter
deixado a Alemanha. Mas, a vergonha... — ele interrompe, mas Beck
entende.
Como, após o derrame, sua mãe ignorou a reabilitação nas mãos. Como ela
o levou embora quando era pequeno e deixou a Alemanha sem um adeus.
Como ela gastou todas as suas economias na casa. No piano. Como ela não
suportava se lembrar do passado.
Como queria que Beck continuasse de onde ela parou, para que o mundo
ficasse impressionado com o legado do filho prodígio de Ida Magdalena
Keverich.
Como ele, infelizmente, não é um prodígio.
— Eu teria gostado de ser um pai para você e a Joey — diz Jan.
— Mas você conhece sua mãe. Ela queria ficar sozinha até estar pronta. —
Ele se vira e encara Beck. — Então me conte. Há maldade na história dos
Keverich, maldade, medo e tristeza. Ela bate em você?
Lábios machucados.
Azulejos manchados de
sangue.
Contusões em forma de mão.
— Não preciso ser resgatado — diz Beck, a voz afiada. — Eu vou me
salvar.
Ele não sabia, até aquele momento, que isso era verdade.
Mas é.
Jan parece ler nas entrelinhas, porque ele assente e seus olhos brilham com
um fino fragmento de satisfação. — Gut. Fico feliz, Beck, fico feliz. Mas
espero que você não recuse um pouco de ajuda de alguém que quer fazer
parte da sua vida. E peço desculpas, mais uma vez, por ter vindo até você
com tanta violência. Conheço os ânimos de Ida. Parece que eles não
mudaram muito, ja?
Beck apenas encolhe os ombros.
Ele está sendo dissecado e é difícil respirar.
— Gostaria de poder devolver a música a Ida. Ela está perdida sem ela. —
Os olhos de Jan ficam nublados. — Mas não é desculpa.
Eu quero melhorar sua vida, sobrinho. Quero tornar sua existência
emocionante e espetacular.
Beck preferiria uma vida OK. Na qual ele vai para a escola e não se
preocupa se haverá jantar na mesa, e nunca mais toca piano, e talvez em
algumas noites, ele possa correr para a casa de August para olhar as estrelas.
— O que você quer Beck? O que você quer deste mundo?
Ele verifica se Jan está falando sério e o olhar do tio é expectante.
Ótimo.
Beck fecha os olhos e enfia o polegar e o indicador na testa, massageando
a dor. O que ele quer? Ele nunca havia pensado nisso – até August entrar em
sua vida. Agora ele quer tantas coisas, que a dor aguda e cruel de nunca poder
tê-las é insuportável.
Ele quer que Joey esteja segura. Ele quer comer até ficar estufado. Ele quer
ir muito longe, muito longe, sem se importar com o mundo. Ele quer que
todas as cordas que o amarram ao piano se soltem. Ele quer que a Maestra
diga parabéns. Ele quer escrever as músicas que estão na sua cabeça, páginas
e páginas, e nunca mostrá-las a ninguém, se ele não quiser. Ele quer ser o
dono da própria vida.
Ele quer August. Ele quer que sua mão se encaixe na dela o tempo todo,
sempre que ele quiser. Ele quer comer bolo com ela, ouvir suas provocações,
rir um pouco, levá-la da escola para casa quando ela esquecer de usar sapatos.
Ele quer beijá-la um milhão de vezes. E então mais uma vez. Porque ele não
pode contar o número de vezes que ele quer abraçá-la, sentir-se seguro ao
lado dela, sentir que existem possibilidades.
Ele não a quer como amiga.
Ele quer mais.
Ela é a garota que inspira suas músicas.
Mas nenhuma dessas são respostas que ele pode dar a Jan, ou mesmo dizer
em voz alta.
— Quero ser um bom pianista — diz Beck. — Quero ser um verdadeiro
Keverich.
Decepção atinge o rosto de Jan e Beck sente vergonha.
— Pensei que você fosse ser sincero comigo, Beck.
— Eu estava — diz Beck, sem pensar. — Quero dizer...
— Não se preocupe. — O sorriso de Jan é triste. — Não posso exigir sua
total confiança quando você mal me conhece. A menos que... — Ele hesita.
— Você tem certeza de que não quer mais nada?
O que Beck Keverich mais deseja no mundo é cortar suas próprias mãos...
e deixar uma garota chamada August ensiná-lo a sorrir.
— Sim — diz Beck — eu quero uma coisa. Eu escrevi uma peça, uma
música... — uma confissão de tudo que sinto — e quero tocá-la e gravá-la. —
Ele hesita, com o rosto ardendo. — Por favor.
Ele sabe que não é o que Jan queria, mas é uma chance, um pedido, e se
Jan está reivindicando ser a sua fada madrinha, ele pode fazer isso por Beck.
— Para quem você escreveu? — Jan pergunta, mas seu tom é curioso,
talvez até manchado de emoção.
— Uma amiga — diz Beck.
— A garota de ontem?
Aqui vamos nós.
— August — diz Beck. O nome dela tem gosto de terra e sol. — Sei que as
pessoas têm iPods e tudo mais, mas quero gravar em um CD.
O aceno de Jan é lento a princípio, depois vigoroso. Ele pula da cadeira, o
entusiasmo brotando como asas. — Tenho uma câmera de vídeo. A qualidade
não será excelente, mas a acústica nesta sala não é ruim. Vamos. Nós
podemos fazer isso. Agora mesmo.
O verme da dúvida chegou – ele nunca tocou a música inteira. E Jan vai
ouvir.
— É uma bagunça — diz Beck — apenas – hum, apenas saiba que o meio
é um lixo e não tenho um final preparado, de modo que...
— Nein! Nein! — Jan bate palmas bruscamente. — Não é assim que um
criador fala sobre sua música. Eu me recuso a acreditar que a sua música está
errada ou que é um lixo. Alguém lhe disse isso e você acreditou. Mas acredite
em si mesmo. — Ele se inclina para frente e bate no peito de Beck. — Você
disse que se salvaria – faça isso.
Jan pega a câmera.
Beck é atingido pelo nervoso e por mil arrependimentos.
Enquanto Jan prepara as coisas, Beck desliza para o assento do piano e
tenta ficar confiante. As teclas são sempre mais profundas em diferentes
timbres, e ele pratica com elas e com o pedal, e sente o tom rico e
temperamental do piano. Seus rascunhos estão em casa, no lixo, amassados
embaixo do travesseiro, espalhados pelo chão.
Beck fecha os olhos e se lembra.
— Está gravando — diz Jan. — Toque quando estiver pronto.
Viel Erfolg. — Boa sorte.
Beck toca.
Ele erra. Sério? Seus dedos decidiram ser inúteis hoje, de todos os dias?
Toda a primeira parte sai espessa e confusa. Ele para, coloca as mãos no colo
e se odeia.
— Talvez — Jan diz, com a voz suave, — você deva tocar isso para
August. Para ela, não com ela, não por ela. Para ela. Toque tudo o que
August significa para você. Toque como se você a amasse.
Como se você...
Tudo o que Beck consegue ouvir é...
toque
como se
você a
amasse.
Então ele toca.
Jan, a câmera, a sala, até a estranheza do piano branco, tudo se reduz a
nada. Beck se torna uma enxurrada de música, um caleidoscópio de azul e
amarelo e rosa e laranja, o cheiro do verão e da chuva. Seus dedos correm
pelo piano e ele não erra. Nenhuma vez.
Ele toca para August.
E sobre ela.
Seus dedos deslizam pelo piano e ele toca como se tivesse coragem de
beijá-la, quando absolutamente não tem.
Ele toca como se a amasse.
E enquanto seu coração se parte e desliza pelo universo como raios de
diamante à luz das estrelas, seu polegar torce e prende rapidamente entre duas
teclas, e se machuca. O inverno fez com que a pele ficasse rachada. Enquanto
continua tocando, seus dedos deixam impressões digitais sangrentas sobre as
teclas brancas, como se o piano e Beck finalmente se tornassem irmãos de
sangue, e então a música termina.
Beck coloca as mãos no colo.
Ele deixa uma mancha de sangue em seu novo jeans e acabou de arruinar
totalmente o piano de um milionário.
— Sinto muito — diz ele.
Ele está chorando?
Ele não quer chorar.
Pare. Pare.
O gravador apita quando Jan o desliga. Então ele desliza para o banquinho
ao lado de Beck e eles ficam sentados, tocando os ombros, admirando as
teclas avermelhadas do piano.
— Eu nunca, — ele diz baixinho, — vi um aluno sangrar no piano. Oh, eu
os vi sangrar, mas eles sempre param e sofrem porque a música os machucou.
— Ela sempre me machuca.
— Ah. — Jan sorri. — Estamos sendo honestos agora. Mas Beck, você –
você escreveu isso. Eu – eu estou admirado.
Beck coloca pressão no polegar, antes que ele morra ou algo assim.
Jan olha para ele. — Se você consegue compor músicas assim, é um
pecado apenas tocar outros compositores. Você é brilhante, Beethoven
Keverich.
E pela primeira vez, Beck não corrige seu nome. Ele apenas absorve as
palavras, deixando-as encher seu coração, seus pulmões, sua alma. Não é o
nome dele que ele odeia. É o que as pessoas pensam que isso significa.
Jan diz como se Beethoven e Beck fossem iguais – não o sonho versus o
fracasso.
— Deixe-me levá-lo para a Alemanha. — A voz de Jan fica baixa, urgente.
— Eu não sou sua mãe, juro para você. Você terá a melhor escola, a melhor
universidade. Você é meu sobrinho e é brilhante, e não merece ser escondido.
— Eu – eu não posso.
É como se Jan não ouvisse. — Eu frequentemente viajo em turnês, mas
tenho amigos confiáveis que te ajudarão enquanto você se orienta na cidade
e, eventualmente, você terá seu próprio apartamento. Sua própria vida. Vou te
dar o mundo e você será meu protegido.
Você pode ficar longe da Maestra.
Você pode ser livre.
— Eu sei que existe essa garota — Jan diz suavemente. — August. E ela
faz você tocar como se não houvesse mais nada no mundo.
Mas você merece mais. Você merece uma vida de felicidade, não de medo.
E se você decidisse vir comigo, porém nunca mais quisesse tocar piano?
Tudo bem. Eu não te forçaria.
É como ser nocauteado – mas com esperança, em vez de violência. Beck
fecha os olhos, mas uma lágrima ainda se liberta e escorre pelo rosto. Ele
nunca mais veria August. E a Joey? Ele não poderia deixá-la com a Maestra,
para que sua vida feita de glitters e botas de chuva seja arrancada de sua alma
enquanto o piano toma o seu lugar. A Maestra nunca a deixaria ir. Nunca
deixaria Beck ir, se soubesse que Jan planeja ser amoroso em vez de apenas
acorrentá-lo ao piano. Beck poderia contar o que ela faz com eles. Mas ela é
mãe dele e ela ainda pode amá-los... ela ainda pode – ela ainda pode – ela
ainda pode – ela...
Jan limpa a garganta. — Não espero sua resposta imediatamente...
— Eu já tenho uma — diz Beck.
Ele já pode sentir o sangue em sua boca, de quando ela bater nele. Ele pode
sentir o tremor em seus ossos enquanto fica entre ela e sua irmãzinha.
Quando ele abre os olhos, o rosto de Jan fica iluminado com expectativa,
emoção.
— Não — diz Beck. — Eu não posso ser o seu Beethoven.
Na mente dele, é como cortar as próprias mãos.
Ele fez a escolha certa. Ele fez, ele fez.
Pare de duvidar de si mesmo.
Beck desce do carro – Jan insistiu em levá-lo para casa – e se obriga a agir
de maneira casual e calma. Mas seu interior é um oceano de arrependimento,
perda e confusão. Ele deveria se sentir forte. Ele não é a Cinderela esperando
ser resgatada por magia.
Ele é um garoto que escreve música, que nunca iria embora e deixaria sua
irmãzinha para trás.
Ele é um garoto que vai beijar uma garota hoje à noite. Não há mais
desejos, imaginações e sonhos. Ele vai agir.
Jan abaixa a janela. — Espera.
Beck hesita.
— Você pode mudar de idéia. — Jan se inclina e passa um cartão para ele.
— Não tenho certeza de que a decisão é sua.
Beck agarra o cartão como se pudesse salvá-lo de se afogar. — É sim. Eu
sinto muito.
Os olhos de Jan são duvidosos, mas ele apenas acena e se despede em
alemão. Então o carro sai da garagem e sai das ruas de vidros quebrados e
casas pequenas. Jan retorna à sua vida musical, boa comida e relógios caros.
Beck caminha em direção à porta da frente. Ele gostaria de ter dito mais do
que obrigado, porque essa palavra patética dificilmente transmite o quanto
Jan fez. Beck é um bom pianista. Mas é um compositor muito melhor. Ele
tem um futuro.
Ele tem uma promessa.
A casa está estranhamente silenciosa quando Beck abre a porta. Ele tira a
mochila do ombro e verifica se o CD está dentro. Ele rabiscou um título em
canetinha preta e o colocou em um envelope. É tudo o que ele tem para
August. Ele deixa sua bolsa na porta, porque espera ter que sair furtivamente.
Pois, não é como se a Maestra fosse simplesmente sorrir e se despedir,
enquanto ele vai para o aniversário de August hoje à noite.
A Maestra prometeu quebrar as suas mãos.
Mas ela não vai.
Beck não vai deixar.
Ele sente uma forte confiança enquanto caminha pelo corredor.
A TV zumbe suavemente na sala e ele se dirige para lá, meio pensando na
possibilidade de levar Joey com ele para a casa de August. Ela adoraria os
cachorros. Ela adoraria a comida.
A sala está vazia.
Brilhante e alegre desenhos animados dançam na tela e há tigelas pela
metade e migalhas de biscoito, onde Joey normalmente faz seu lanche.
Ela nunca deixa comida por aí.
Beck vai para a cozinha. Seus sapatos trituram pedaços de louça. Ele olha
para baixo.
O chão está coberto de cacos de pratos, moídos em pó branco em alguns
lugares. Devem ser todos os pratos da casa.
Como ele não pensou que isso iria acontecer?
O estômago de Beck revira. Ele pisa com cuidado, os pratos estilhaçando
sobre os sapatos, e vai para o quarto de Joey. Vazio. Os brinquedos estão
espalhados pelo chão, mas ela sempre vive numa bagunça. Ela vive? Ou não?
Quando foi a última vez que Beck se sentou e prestou atenção em Joey? Ele
foi tão engolido por sua própria angústia.
Não vá para o seu quarto. Vá para fora. Vá para casa de August.
Vá agora.
Ele enfia as mãos nos bolsos e caminha em direção ao quarto.
De alguma forma ele sabe.
A porta dele está aberta.
— Joey? — Beck diz, sua voz vazia.
A Maestra está sentada em sua cama, pela primeira vez sem tremer. Ela é
rígida, está vestindo suas roupas bem passadas de trabalho, como se
planejasse sair hoje. Ou como se planejasse ir a algum lugar, a qualquer lugar
– como se planejasse sair.
Joey está sentada no banquinho do piano, curvada, fungando.
Impressões digitais vermelhas marcam sua bochecha.
Como ela ousa...
Beck dá dois passos e ele está ao lado de Joey, pegando-a.
Seus braços magros e curtos vão ao redor do pescoço dele. Mas ele não
sabe o que dizer. Ele pergunta? Ele sai?
O cartão de Jan queima no bolso.
— Você não vai para a Alemanha? — A Maestra pergunta. Sua voz tão
calma, tão perfeitamente plana, que um arrepio percorre a espinha de Beck.
Ele segura Joey mais apertado. — Não.
— Então você nunca será ensinado adequadamente — diz a Maestra. — A
fila de pianistas Keverich termina comigo.
Exceto que Beck é um pianista. Exceto que Beck não é inútil.
— Sim — diz Beck, com a voz cem anos mais velha. — Acho que sim.
Ela se levanta, desdobrando-se como uma marionete de fios de ferro
enferrujados. Suas mãos estão tremendo, Beck vê agora. Ela apenas as juntou
com tanta força em punhos, que as unhas deixaram marcas nas mãos.
— Você faz isso para me irritar? — ela diz.
Beck respira fundo. Ele solta as mãos de Joey do pescoço e, mesmo
quando ela choraminga, ele a coloca no chão e diz baixinho: — Vá assistir
TV, Jo.
Ela arrasta os pés para a porta e depois abraça o batente, sem se mexer.
Beck enfrenta a Maestra. Ele é quase tão alto quanto ela.
Quando isso aconteceu?
— Nein — ele diz, acidentalmente usando o alemão para acalmá-la,
quando ele pretende se defender pela primeira vez.
Hábitos são difíceis de quebrar. — Não vou mais fazer isso. — O sangue
bate em seus ouvidos. — E você nunca mais vai tocar em Joey. Ou em mim.
— Ele se sente tonto com o esforço de continuar falando, de não recuar
quando ela se aproxima, de não se encolher no caso de um golpe. — Eu não
pertenço mais a você.
Você não merece nada que venha de mim.
Eu mereço uma vida longe de você.
— É mesmo? — a Maestra diz friamente. — Mas você está aqui, sob o
meu teto, vestindo roupas que eu comprei para você. Dummes Kind. —
Criança estúpida. — Este é o seu piano, no qual eu gastei todos os centavos
que possuía.
Mas Beck não pediu por ele. Ele era jovem demais para entender o dano
nos nervos dela, depois do derrame, ou como poderiam ser ajudados com
terapia, medicamentos – mas ela comprou um piano. A escolha não foi dele.
Foi dela.
Ela continua vindo em sua direção e, finalmente, ele dá um passo atrás,
pressionado entre o piano e a parede. O piano que o construiu, que o destruiu.
— Não vou mais tocar — Beck diz enquanto o piano cava nas costas dele.
Ele deve pegar Joey e sair, ir para August, buscar ajuda – ligar para a
polícia. Ele quer fazer isso. Ele quer? Esta é a mãe dele. Ela só – ela só queria
que ele fosse bom. Ela é bagunçada, machucada e cruel como uma faca
afiada, mas ela apenas quer que ele seja bom.
Não. Ela quer que ele seja ela.
— Você vai tocar o piano — diz a Maestra, sua voz como uma sinfonia de
escuridão. — Você vai tocar.
— Não.
Beck para de se encolher. Ele se ergue, então fica cara a cara com ela. Ele
se parece com ela, ele percebe, quando ele não recua ou estremece, com os
seus cabelos selvagens, sua altura, ossos e olhos de aço que anseiam por algo
fora de alcance.
A voz de Joey é um soluço. — Não o machuque, mamãe.
Mas a Maestra não escuta.
Ela alguma vez escutou?
— Você vai tocar — diz ela, sua voz espiralando por um buraco frio e
insensível.
Ele mal consegue expressar as palavras. — Eu não – eu não quero viver
desse jeito.
Porque ele quer viver.
Acontece rápido, uma tempestade que vem se aproximando por dias, uma
corda de piano velha demais, desgastada demais.
O soco pega Beck no lado da cabeça e o manda tropeçando para trás,
caindo no piano. As teclas uivam. Ele não.
Joey solta um soluço borbulhante.
Ele deseja que ela não tenha que ver isso. Ele deseja que Joey não tenha
que pensar que isso é normal.
Ele se endireita, a dor palpitando em seu crânio e há marcas em suas mãos
onde as teclas do piano bateram. Ele mal está de pé quando ela o ataca
novamente, suas maldições em um grosso alemão.
— Pare. — É um apelo? É uma ordem?
Quando é que ele vai ser mais do que um garoto sem coragem e trêmulo?
— Pare, Mutter. Você não pode... eu não sou...
— HÖR AUF ZU REDEN. — PARE DE FALAR.
Ela bate nele novamente e ele não está pronto para isso, ele ainda acredita
que ela vai parar e pedir desculpas e prometer que não fará isso de novo.
Toda vez que ela o bate, sua cabeça estúpida pensa que será a última vez. Ela
não pode ser tão horrível assim.
Quando ele vai perceber que ela se baseia no arrependimento e no ódio
ardente?
— O piano é o seu legado — ela grita.
— Não, não é. — Beck protege o rosto com o braço. — É seu. É o seu
sonho, não o meu. — Ele tenta se afastar, mas ele está entre uma parede e o
piano.
Ele sempre esteve preso.
Ela dá um tapa forte, rápido e sanguíneo em sua bochecha machucada, e é
estúpido, ele sabe que é estúpido, mas tudo que consegue pensar é em como
não pode aparecer, novamente, assim na casa de August. Ela nunca vai
receber a sua música.
Ela pensará que ele não teve coragem de ir.
O que é verdade, não é? Ele é patético.
Estúpido.
Inútil.
Schwachkopf. Idiota.
— Você quebra o meu coração — diz a Maestra, com a voz embargada,
chorando. — Você é nada, quando deveria ter sido tudo.
Sem o piano, não me resta nada. Nada. Você me desapontou. Você falhou
com todo mundo. — Sua voz se torce em um lamento.
É verdade. Ela está certa. Beck falhou na escola, na vida; com a Joey, a
August, o Jan, o piano.
Falhou – falhou – falhou.
— Beck! Beck! — Joey grita. Ela é uma sombra atrás da Maestra, tentando
agarrar o braço da mãe.
Os dedos da Maestra se torcem nos cabelos de Beck. — Você é o meu
maior erro, Beethoven. — Ela bate sua cabeça no piano.
Sua cabeça se conecta com madeira, tinta e polimento e por um segundo
ele não vê nada. É como flutuar no mar em uma caixa de papelão. Ele está
apenas vagamente ciente de Joey gritando. Da Maestra esmagando sua
cabeça novamente. De sangue enchendo suas orelhas. Seus olhos. Sangue por
toda parte.
Seus olhos ficam claros e ele vê o piano, flutuando em zigue-zague,
manchado de sangue.
Sua voz está distorcida, como se ele estivesse gritando através de um túnel.
— Joey, ligue para a polícia.
— NEIN — a Maestra grita. — Você está sendo punido! Ou você é um
bebê que não aguenta?
Ele está sendo assassinado.
Ele só tem que revidar. Revidar. Revide.
E ser igual a Maestra?
Ele não vai.
Ele se recusa.
Mas ele está lutando para saber para onde está caindo, o que está
acontecendo...
Um pequeno corpo pressiona contra suas pernas enquanto ele se afunda no
piano. Ela está entre ele e a Maestra.
— Não, mamãe — diz ela.
A Maestra a segura.
Atira o corpinho de Joey e ela se quebra na parede com um baque
repugnante. Ela permanece quieta. Ela fica quieta. Ela não pode estar quieta.
Beck está gritando? Ele tem que chegar até ela, mas o mundo está de cabeça
para baixo e pingando sangue.
Ele tenta se levantar, mas a Maestra o acerta novamente e, desta vez,
quando sua cabeça bate no piano, um zumbido agudo atinge seus ouvidos.
Ele não se levanta.
Mas seus lábios inchados se movem em um sussurro? Ou um grito?
— Você não pode machucar seu bebê, Mutter. Essa é a Joey.
Você não pode machucar seu bebê Joey. — E ele diz isso de novo e de
novo, de novo, de novo, de novo e ela não bate nele novamente.
Quando ele abre as pálpebras inchadas, a Maestra está de joelhos, puxando
o corpo desmaiado de Joey em seus braços e chorando. Soluços enormes.
Eles a sacodem até o âmago.
Beck se levanta e cambaleia para fora da sala. Ele é feito de cimento e cada
passo pesa cem quilos. Ele encontra o telefone na cozinha e quase o deixa
cair antes que possa digitar o número. São necessárias cinco tentativas para
ler a linha de dígitos oscilantes do cartão.
O telefone está morto? Ele não consegue ouvir o tom de discagem.
Até fracamente, como um minúsculo ponto de luz, ele ouve alguém
atender.
— Mudei de ideia — diz ele, com a voz grossa. — Mas Joey tem que ir
junto.
O tio dele respondeu? Ele discou o número certo?
O telefone sai de suas mãos e Beck afunda no chão e bate com cabeça
latejante. Bate como uma música. A música diz adeus.
Eles pedem o seu nome. De novo e de novo. Ele não consegue fazer sua
língua responder.
Eles acendem uma luz em seus olhos e dizem algo sobre uma ambulância.
Uma maca? A mãe dele? A sua cabeça? Ficar acordado? Ou ir dormir?
Sua boca ainda está cheia de sangue, mas ele consegue dizer: — Não estou
ouvindo você.
Ele gesticula para seus ouvidos ensanguentados.
— Eu não consigo te ouvir. Eu não consigo te ouvir. — Ele grita ou
sussurra?
Ele diz o nome dele, através dos lábios inchados.
— Beethoven Keverich.
Tecnicamente, Beck não pode ir a lugar nenhum sozinho – razões de
segurança. Só até ele se acostumar com suas limitações.
Mas eles estão na casa dele, Jan e ele, pegando qualquer coisa que ele
queira levar. O que é exatamente nada. Suas roupas são um pouco mais que
trapos, então Jan disse que comprariam outras antes do voo, neste fim de
semana. E ele precisará de conselhos para as roupas de Joey, porque ele
nunca comprou algo para uma garotinha.
Ele perguntará a cor favorita dela quando a buscarem no hospital esta
tarde.
Quanto a esta casa? Alguma lembrança? Algo de especial que ele queira
salvar?
Beck não quer nada.
Então ele simplesmente sai.
Para a casa de August, obviamente. Para onde mais ele iria?
Mas, quanto tempo faz desde que ele falou com ela pela última vez?
Mais de uma semana com a internação? Há muito a dizer e ele não sabe
por onde começar. Ele começa com olá?
Ou com um adeus?
Ele diz a ela que está indo embora? Para sempre. Que assim que buscarem
a Joey, com o pequeno braço engessado, eles vão pegar um vôo só de ida;
ela, Jan e ele. Ele diz que nunca mais verá a Maestra, se não quiser? Como
ela entregou a guarda dos filhos para o irmão? Como Jan ainda está
pressionando queixas contra ela?
Como Beck vai ter que testemunhar e ele não quer pensar nisso agora? Ele
não pode lidar com isso. Talvez ele nem consiga fazer isso.
Jan diz que eles decidirão mais tarde.
O importante é ir embora.
Ele poderia dizer a August como a Maestra beijou sua testa, mesmo que
ele tenha se afastado dela, e fria e precisa, disse: — Ich liebe dich. — Eu te
amo. E então ela saiu do hospital e nunca mais olhou para trás, para todas as
coisas que havia quebrado.
Ele espera até August perguntar sobre os machucados no rosto, o curativo
na orelha esquerda ou os pontos na bochecha? Ele deveria responder. Sem
mentiras, desta vez.
Enquanto Jan passeava cautelosamente pela casa destruída, Beck evitou o
seu quarto, com o piano ensanguentado e as teclas quebradas. Ele não tem
que tocar novamente, se não quiser.
Mas a música dele não parou. Ele rabiscou músicas novas no verso de um
cardápio de hospital, seus dedos dançaram nas paredes do corredor enquanto
ele caminhava, porque aparentemente, compor faz parte dele e provavelmente
não vai embora.
Ele caminha lentamente pela rua – pela última vez? – e tenta não se mexer
demais, seus membros ainda doem muito. Seu rosto está tenso sob os pontos.
Isso a deixará triste. Depois de todo esse tempo, ele ainda não aprendeu a
sorrir. Entre o rosto todo machucado e as roupas novas, ela nem mesmo o
reconhecerá. Jeans do seu tamanho? Uma jaqueta forrada? Sapatos tão novos
que rangem no chão brilhante? Ele nunca se sentiu tão rico.
A casa de August parece a mesma – um alívio. Ele quase espera que o
mundo esteja diferente, já que sua vida mudou tanto. A única nova adição são
as várias galinhas no quintal da frente que dispersam enquanto ele caminha
para a porta da frente. Desta vez, ele não se esconde no quintal. Ele vai bater.
E se ela não estiver em casa, ele vai embora e nunca mais voltará.
Ele bate.
Os cães estão provavelmente ficando loucos.
A porta se abre e dois pés, descalços e enegrecidos, com tornozeleiras de
arco-íris, aparecem junto com uma rajada de canela e farinha. Seu rosto está
coberto de pó branco e manchas de chocolate decoram seus braços. Seus
lábios estão presos entre um sorriso e uma carranca, mas ela não hesita.
August joga os braços no pescoço dele e pressiona o rosto no colarinho dele.
O corpo dela estremece embaixo dele. O que ele deve fazer? Talvez –
apenas...
Ele devolve o abraço, a abraça forte, a chuva abraçando o sol, e ele lembra
que ela se importa com ele. Ela disse isso naquela noite, quando eles
comeram as estrelas e ela o beijou.
Ela abre a boca, mas ele coloca um dedo nos lábios dela. Ele gostaria de
poder transferir mentalmente tudo o que quer dizer.
Mas isso seria trapaça.
Em vez disso, ele diz: — Oi — e finge que não está chorando.
Ela finge que não está chorando também.
Ele tira o CD do bolso de trás e hesita antes de entregá-lo a ela.
Não pode voltar atrás agora. Ele acidentalmente escreveu algo precioso
nessa música e compartilhá-la é como entregar um pedaço da sua alma. Mas
ele está bem com isso.
Essa é August.
Com a canetinha, ele escreveu: PARA AUGUST: TODAS AS COISAS
QUE EU NÃO CONSEGUI DIZER.
Ela o puxa para dentro.
Os cães estão em cima dele – os pais dela não estão em casa – e a casa lhe
dá um abraço bem-vindo – o cheiro de biscoitos de canela assando. August
corre para seu quarto, o CD agarrado desesperadamente no peito. Beck faz
uma pausa para dar tapinhas em um cachorro, ou em nove.
Ele segue August devagar, metade porque ele está aproveitando a casa dela
pela última vez e metade porque ele não quer ver o rosto dela enquanto ela
ouve.
Ela senta-se de pernas cruzadas em sua cama, o laptop surrado à sua frente
enquanto a música carrega. Ela aumenta o volume o mais alto possível e três
gatos saem do quarto. Beck está levemente ofendido.
Beck pode sentir a música através do assoalho. Ele realmente tocou tão
alto? Ele se lembra do piano branco e da sala azul e a empolgação de Jan por
descobrir que é nisso que Beck é bom. É para isso que ele foi feito.
Não importa se está quase congelando lá fora, o sorriso de August é quente
como o verão.
Ela está chorando.
— Ruim assim, hein? — ele diz.
Ela soca o braço dele, sempre tão violenta como um gatinho.
Os lábios dela se abrem e não param, e ele não consegue entender uma
palavra, até que se inclina sobre a cama e cobre a boca dela com a dele por
um breve batimento cardíaco. Então ele corre para se sentar ao lado dela, suas
coxas se tocando, e ele inclina a orelha direita para ela.
Ele tem que parar de fingir. Ele tem que falar normalmente. Ele não pode
deixar sua voz tremer. Esta é a August e ele não precisa fingir, mas gostaria
que sua última lembrança dele fosse a de um criador de músicas e não de um
menino chorando.
— Se você falar muito alto do meu lado direito — ele diz, rouco — eu
poderei ouvir.
Pelo menos a Maestra não quebrou as suas mãos.
A Maestra tirou sua audição. Não toda. E um especialista diz que há
opções para analisar e Jan prometeu que fará isso na Alemanha.
Por agora? Beck nem se importa com isso. Ele não está perdendo nada. Ele
tem uma quantidade imensa de músicas em sua cabeça, já que é tudo o que
pode ouvir.
— Não... como... Beck... — é tudo o que ele recebe de August.
Ele diz a ela para ir mais devagar, inclinar-se, falar claramente.
Ela precisa parar de chorar, então ela leva um segundo para engolir,
endireitar os ombros e enfiar uma mecha de cabelo atrás da orelha.
— A música diz tudo — Beck diz, com uma voz trêmula para ele, mas
esperançosamente clara para ela. — Tudo o que eu já pensei sobre você. E
mais ainda, o que você significa para mim. E um pedido de desculpas. Eu
perdi o seu aniversário.
Ela revira os olhos. — Como.... se... isso... importasse.
— Tentei capturar como eu te vejo, nessa música — diz ele, sentindo-se
um idiota. Ele não é um artista. Isto não é uma pintura.
— Você conseguiu — ela diz. — E você com o… eu amei.
Ele espera não ter inventado essa parte. Ele espera que ela realmente tenha
amado.
— Eu estou indo para a Alemanha. — Beck sente o quarto encolher e
murchar. O corpo de August endurece ao lado dele. — Joey e eu. Vou
escrever um milhão de músicas.
— Para sempre? — Ela seca as lágrimas e mantém as costas retas, a
postura invicta. Ela franze a testa um pouco, mas assente. — Eu sempre quis
conhecer a Alemanha.
Seu sorriso é uma bagunça. — Eu não – August. Eu…
— Quando eu terminar a escola, eu... mochilão pelo mundo — diz August.
— A primeira parada vai ser, obviamente a Alemanha. — Ela sorri, mas não
atinge seus olhos.
Vou sentir sua falta, Beck quer dizer.
Ele olha para os pés dela.
Ele não quer que isso seja o fim de August Frey, a garota que o levou a ter
vontade de salvar sua vida. Ele não quer que essa seja a última música que
ele escreve para ela ou a última vez que limpa a farinha da bochecha dela ou
a última vez que cheira o xampu de kiwi ou se perde nos olhos cor de oceano.
— Eu acho — Beck diz — que gosto muito de você, August Frey.
— Igualmente, Beethoven Keverich — ela diz ferozmente.
Ela enfia a mão, pequena e quente, na trêmula dele e seus dedos se atam.
Como é que eles se encaixam tão perfeitamente, tão brevemente?
Por favor, não deixe que ela o esqueça.
Ele disse isso em voz alta?
— Você acha que eu vou te esquecer? — ela diz, seus lábios perto da
orelha dele. — Vou ouvir... música repetidas vezes até... exigir que você me
escreva uma nova.
— Vou escrever uma sinfonia inteira, se você pedir.
Ele escreverá músicas suficientes para cobrir o mundo inteiro.
— Uma sinfonia muito alta — diz August. — E quando um alemão
enorme a tocar... um assento na primeira fila.
— Sinto muito, que não seja perfeita — Beck diz. — Eu cometi erros...
— Oh pare com isso. — Ela o enfrenta, falando claramente, e ele a ouve
dessa vez. — Você vale mais do que mil notas perfeitas.
E finalmente, suas mãos param
de tremer.

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