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tradução
tradução,, memória e cultura popular
RESUMO
Este artigo examina as semelhanças entre memória e tradução,
ao mesmo tempo em que tece uma reflexão sobre o problema
da identidade cultural. O conto de Jorge Luis Borges, “La
memoria de Shakespeare”, é explorado como um pretexto para
a discussão do convívio entre duas tradições, a erudita e a
popular. Valendo-se do conceito de transculturação, este artigo
demonstra como o folheto de literatura de cordel Romance de Romeu
e Julieta adapta um enredo que Shakespeare tornou conhecido,
transportando-o para o contexto do nordeste brasileiro.
PALAVRAS-CHAVE
Cultura Popular, Shakespeare, Tradução.
A continuidade que tais práticas instituem com o passado são geralmente “reações a situações
novas que ou assumem a forma de referência a situações anteriores ou estabelecem seu próprio
passado através da repetição quase que obrigatória” (HOBSBAWM, 1997, p.10). Hobsbawm
oferece o exemplo da reconstrução, após a II Grande Guerra, de prédios históricos que haviam
sido destruídos, seguindo exatamente o projeto da construção original de tais edifícios. Esse
tipo de reconstrução, ao apagar a lembrança de uma vivência traumatizante, estabelece uma
continuidade bastante artificial com o passado, já que a guerra e a destruição que ela causou
representam uma ruptura. Dentro dessa perspectiva, a reconstrução de edifícios e monumentos
é uma tentativa de reforçar a continuidade com um passado que não existe mais.
ZONAS DE C ONTATO
1
HOBSBAWM. Introdução: a invenção das tradições.
2
BORGES. “La memoria de Shakespeare”, p. 393-99.
Al principio las dos memorias no mezclaban sus aguas. Con el tiempo, el gran río de
Shakespeare amenazó, y casi anegó, mi modesto caudal. Advertí con temor que
estaba olvidando la lengua de mis padres. Ya que la identidad personal se basa en la
memoria, temi por mi razón. (p. 398)
Desesperado, Sörgel encontrou finalmente uma nova vítima para quem passar a memória de
Shakespeare, mas jamais conseguiu estar completamente seguro em relação à autenticidade
de suas próprias lembranças.
A narrativa sobre a convivência dessas duas memórias, a pessoal e a shakespeariana, é
um pretexto para tecer uma reflexão em torno do convívio e entrecruzamento de tradições
diversas. É no espaço da sociedade pós-colonial que ocorre a interação e a negociação entre
cânone importado e identidade local. Pensar a relação entre essas duas tradições significa
também refletir sobre a tradução, já que o processo tradutório é um modo de apropriação de
um artefato cultural, de situá-lo em outro contexto, de reconstruí-lo através de outras
palavras. Se a identidade pessoal está fundamentada na memória, como afirma o narrador de
Borges, é possível evitar o desaparecimento da identidade, cultura e das tradições de um
grupo frente à ameaça das imposições do neo-colonialismo? A imagem, no conto borgiano,
de uma zona onde as duas memórias se fundem é de uma riqueza sugestiva singular, pois
torna problemática a questão da autenticidade e da origem dos fatos lembrados. É possível
vislumbrar uma analogia entre o espaço onde as duas memórias se misturam e o que Mary
3
PRATT. Imperial Eyes: Studies in Travel Writing and Transculturation.
4
RAMA. Os processos de transculturação na narrativa latino-americana, p. 209-38.
5
ATHAYDE. Romance de Romeu e Julieta.
São de uma diversidade incrível os assuntos tratados nas histórias dos folhetos.
Narradas através do filtro da imaginação local, estão lá aventuras de cangaceiros e outros
heróis. Há também relatos baseados em fatos das notícias nacionais ou internacionais,
entrelaçados com lendas, comentários e folclore. A adaptação de obras literárias é comum
na poesia do cordel, sendo que em várias ocasiões o autor dos versos não tem acesso às fontes
originais, valendo-se de versões simplificadas, resumos escolares, filmes ou até mesmo
adaptações para televisão. Configura-se, portanto, bastante problemática a questão da autoria
no cordel, mesmo porque, durante o grande “boom” do cordel no nordeste nas décadas de 40
e 50 do século passado, era o nome do dono da gráfica que aparecia nos folhetos, embora
nem sempre fosse ele quem compunha os poemas.
Por esses motivos, é difícil conjeturar sobre a autoria do folheto de cordel Romance de
Romeu e Julieta. Embora seja atribuída a João Martins de Athayde, poeta e dono de uma
gráfica, não se sabe com certeza se ele realmente escreveu os versos. É igualmente incerta a
6
VASSALLO. O sertão medieval: Origens européias do teatro de Ariano Suassuna.
Por estar intrinsecamente ligado à oralidade, o cordel é um gênero literário em que questões
de autoria e origem são problemáticas. Se não há certeza em relação ao texto-fonte que
inspirou o folheto Romance de Romeu e Julieta, será possível assim mesmo conceber que essa
versão seja uma tradução da história que a obra dramática de Shakespeare popularizou? A
resposta a esta pergunta depende muito do conceito que se tem de tradução. Acredita-se que
Shakespeare tenha escrito Romeu e Julieta no final do século dezesseis, mas existem versões
da história que são anteriores ao poeta inglês: é provável que Shakespeare tenha se inspirado
na obra do escritor italiano Matteo Bandello, traduzida para o inglês (a partir de uma versão
francesa) em 1563 por Arthur Broke, com o título The Tragicall Historye of Romeu and Juliet,
written first in Italian by Bandell, and now in Englishe by Ar. Br. A data do texto de Bandello é
de 1554; antes de Bandello, alguns aspectos do enredo já aparecem em obras como a de Luigi
do Porto (1525) e de Masuccio Salernitano (1476). Enquanto atualização, presentificação e
transferência de um discurso distante no tempo e no espaço para uma expressão poética
característica do contexto sócio-cultural do grupo a quem o texto é dirigido, o folheto
Romance de Romeu e Julieta é uma tradução que conjuga tradições longínquas e distintas.
Dentro dessa perspectiva, pode-se afirmar que o texto do folheto é um amálgama de várias
versões da história, inclusive essas mencionadas aqui.
É interessante observar como essa tradução de Romeu e Julieta no sertão brasileiro
impõe modificações no enredo da história, introduzindo elementos da cultura local.
Principalmente significativos são os valores do código de honra local. Há um deslocamento
do tema principal, o amor frustrado dos jovens, que passa a ocupar o segundo plano. Por
outro lado, a rivalidade entre as duas famílias, os Montéquio e os Capuleto ganha destaque;
esta questão passa a ter um papel central na trama. Assim, pode-se afirmar que Romance de
Romeu e Julieta narra uma história de vendeta entre duas famílias inimigas, referindo-se,
portanto, no contexto do nordeste brasileiro, a um tema de significância para a cultura receptora.
7
SLATER. Romeo and Juliet in the Brazilian Backlands.
8
SUASSUNA. A história do amor de Romeu e Julieta: imitação brasileira de Matteo Bandello.
ABSTRACT
This article explores the similarities between memory and
tradition at the same time as it reflects about the issue of
cultural identity. “La memoria de Shakespeare”, a short story
by Jorge Luis Borges, is explored here as a pretext for the
discussion of the inter-relationship between erudite and folk
traditions. Making use of the concept of transculturation, this
article demonstrates how the chapbook Romance de Romeu e
Julieta adapts a plot which Shakespeare has made popular and
transports it to the context of the Brazilian northeast.
KEYWORDS
Folk Culture, Shakespeare, Translation.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATHAYDE, João Martins de. Romance de Romeu e Julieta. Juazeiro do Norte: João Martins
de Athayde, s.d.
BANDELLO, Matteo. The goodly history of the true & constant love between Rhomeo & Julietta.
Trad. William Painter. Nelson, New Hampshire: Monadnock Press, 1903.
BORGES, Jorge Luis. La memoria de Shakespeare. In: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas.
Buenos Aires: Emecé, 1984. p. 393-99.
HOBSBAWM, Eric. Introdução: a invenção das tradições. In: HOBBSBAWM, E. e
RANGER, T. (orgs.). A invenção das tradições. Trad. Celina Cardim Cavalcante. São Paulo:
Paz e Terra, 1997. p. 9-24.
PRATT, Mary Louise. Imperial Eyes: Studies in Travel Writing and Transculturation. Londres:
Routledge, 1992.