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Uma palavra acerca de criação

Assim que baixou a quarentena e home office virou a palavra de ordem para uma parte da
população (na qual me incluo), passou um carro de som aqui na rua falando que uma loja de
utilidades na principal estava com vários materiais de escritório. A chamada era algo como:
“Venha comprar seus materiais de escritório para trabalhar e estudar em casa. Fique em casa!
Juntos vamos vencer essa doença”.

Duvido que esse comerciante tenha visto uma palestra ou live de empreendedorismo pra
passar a vender materiais de escritório. O mais provável é que ele tenha se visto sem vendas e
perigado não conseguir “satisfazer as necessidades do estômago ou do espírito” ao final do
mês, antes de investir em materiais que percebeu que seriam mais demandados do que suas
vasilhas de plástico ou lanternas.

As pessoas se viram – e talvez os poderes contem com isso, quando falam por exemplo de
“resiliência”.1 Mas as pessoas já se viravam antes da onda do empreendedorismo, que não
necessariamente adiciona racionalidade nesse processo de se virar. Mas fazer bico, rolo,
dívida, troca, serviço, montar uma banca, revender produtos, drogas, trabalhos de faculdade,
dar aulas particulares, quitanda… e mesmo dar golpe, furtar, cafetinar. Fabulações, caôs,
fofocas. Tudo isso é mais velho que o empreendedorismo, e em parte é por necessidade
concreta, imanente. Mas há este processo de criação silencioso, cotidiano, que é esse do “se
virar”. É anterior ao dinheiro, embora em muito capturado e modulado por ele. “Pequenas
fissuras”?

Na mesma quarentena, vi que muitas colegas psis criaram estratégias pra continuar o trabalho
com novas mediações tecnológicas. Rapidamente criou-se grupos de compartilhamento de
materiais, experiências, breves relatos de usos de técnicas, de como se procedeu em tal ou
qual situação. Essa pandemia certamente será mote de infinitas reflexões e recuperações por
muito mais tempo daqui em diante, mas uma certeza que tive é de que minhas colegas não
careciam disso que chamo esquizoanálise para essa criação – apesar de que podemos discutir
se não se trata, nesta “pequena criação cotidiana”, de fluxos esquizos…

A noção de criação é certamente polissêmica. Talvez seja já um “significante vazio” que cada
qual preenche como lhe apetece. A psicologia, o dicionário, a arquitetura, a propaganda, o
povo da arte… e cada um(a) de nós tem um dizer sobre o que seja o sentido de “criação”. Mas
um traço comum pra maior parte das definições, teorizações e sentidos talvez seja que ela
parte de coisas que já existem. Nem a antimatéria das histórias de Dan Brown se criam do
vácuo ou do nada.

Certamente as artes e artistas têm muito mais a dizer sobre a criação do que eu teria. Nessa
matéria me considero analfabeto e sem muita experiência direta, mas uma dessas
perspectivas acerca da criação que me encanta e quero trazer vem da filosofia da Diferença.
Não só porque nossa questão é o desenvolvimento de uma Psicologia da Diferença, mas
porque trata de qualquer criação.

Em Nietzsche e a Filosofia, Deleuze traz uma passagem que aproximo desta concepção de
criação como algo que concerne também a coisas que já existem, quando escreve que

uma nova força só pode aparecer e se apropriar de um objeto


[conferindo-lhe, assim, sentido] usando, de início, a máscara das
forças precedentes que já o ocupavam. […] uma força não
sobreviveria se, inicialmente, não tomasse emprestada a aparência
das forças precedentes contra as quais luta 2

À parte a peleja com a dialética hegeliana, o que essa passagem traz de diferente acerca da
criação é que ela condiz muito bem com o “farfalhar da história” das abordagens clínicas
psicológicas. Não consigo pensar em uma abordagem consagrada que não tenha
nascido entre outras abordagens, seja se valendo de elementos de uma ou de outra, seja uma
versão diferente de uma mesma abordagem. Qualquer distância começa de perto.

Se pudermos dizer que a Psicologia da Diferença, ou qualquer outra abordagem que se


pretenda nova, é uma força que disputa o sentido dos fenômenos com outras forças; ou ao
menos que ela busca coexistir com outras forças, então, segundo esse preceito, ela começa
como qualquer Psicologia que já está estabelecida sobre os fenômenos. E poderíamos ir mais
longe, sem nos limitarmos à Psicologia…

Neste ponto, não estamos mais falando de uma criação invisível, do “se virar”, “pequena
criação cotidiana”. Mas alguma espécie de criação como “pedaço de nova terra”. É ainda
Deleuze, em outra ocasião3, que nos fala da criação em ciências, nas artes e filosofia como
criação de espaço-tempo. Esses domínios têm algo em comum acerca do que criam, que é o
espaço-tempo. E algo em comum com o campo social e sua “pequena criação cotidiana”, que é
a necessidade. À diferença de que, ao menos em arte e filosofia, a necessidade que a criação
requer é absoluta.

1. Cf. O trabalho de Eloã de Sousa Moreira

2. Essa citação tem contexto, que é a filosofia de Nit e a peleja com Hegel e sua dialética. É
uma concepção segundo a qual a história de algo é a sucessão de forças que dela se apoderam
e lhe conferem sentido… (“Nietzsche e a Filosofia”, de Deleuze, no capítulo 2 – “Sentido”).

3. Na palestra intitulada “O que é o ato de criação?”, disponível aqui.

Texto escrito em 29out2020 para o blog Psidadiferença

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