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O negócio da cultura

A globalização traz efeitos nem sempre favoráveis para as culturas locais e, por outro
lado, oferece enorme potencial para alavancar essas culturas, trazendo chances reais
de transformação social
08/03/2012

Por Leonardo Brant

É válido pensar que a atividade cultural é essencialmente econômica. Ou até imaginar


que o pensamento econômico, em si, parte de processos culturais. Discordo da
dicotomia entre cultura e economia. Contesto, porém, qualquer argumento que insira
a cultura numa dinâmica meramente mercadológica e economicista, avaliando-a pelo
número, pelo indicador, pelos empregos e pela pujança da sua cadeia produtiva. 

A globalização tem nos mostrado que o crescimento desenfreado da atividade cultural


traz efeitos nem sempre favoráveis para as culturas locais. O Relatório do PNUD
(Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) de 2004, intitulado "A
Liberdade Cultural no Mundo Diversificado" traz o seguinte: "O comércio mundial de
bens culturais - cinema, fotografia, rádio e televisão, material impresso, literatura,
música e artes visuais - quadruplicou, passando de 95 bilhões de dólares em 1980 para
mais de 380 bilhões em 1998". Mas faz a ressalva: "na indústria cinematográfica, as
produções dos Estados Unidos representam, normalmente, cerca de 85% das
audiências de cinema em todo o mundo". 

O documento da ONU também nos alerta para a excessiva concentração do dinheiro


provindo das indústrias culturais. Se, por um lado, tememos seu efeito nas culturas
locais, por outro, observamos um enorme potencial alavancador dessas culturas. Daí a
minha empolgação com o desafio, também de origem, de acreditar que os elementos
da economia de mercado são passíveis de incorporação por toda uma gama de
produtores culturais e artistas, trazendo possibilidades reais de auto-sustentabilidade.
E, por que não dizer, de transformação social. 

Estava prevista para o mês de outubro a 33ª Conferência Geral da Unesco, ocasião em
que seria promulgada uma Convenção Internacional sobre diversidade cultural.
Costumo apelidá-la de "Protocolo de Kyoto da Cultura", dada a sua importância nesse
cenário de riqueza e desigualdade. O documento traz uma série de recomendações
aos países-membros, no sentido da adoção de políticas próprias para a cultura, bem
como a outros organismos internacionais, como Organização Mundial do Comércio e
demais órgãos das Nações Unidas.

A mercantilização da cultura

Não podemos nos esquivar diante da mais evidente - e trágica - conexão entre cultura
e economia, senão a da intencional transformação de hábitos e costumes culturais em
dinâmicas meramente mercadológicas. "Pesquisas de mercado identificaram uma
'elite mundial', uma classe média mundial que segue o mesmo estilo de consumo e
prefere 'marcas mundiais'. O mais impressionante são os 'adolescentes mundiais', que
habitam um 'espaço mundial', com uma única cultura pop mundial, absorvendo os
mesmos vídeos e a mesma música e proporcionando um mercado enorme para tênis,
t-shirts e jeans de marca", reflete ainda o relatório do PNUD. 

E esse não é um único viés da "mercantilização" da cultura. Naomi Klein, autora do


excelente "No Logo", traz algumas indagações a respeito de processo de apropriação
da cultura pelo mundo corporativo. O foco é o patrocínio. "Embora nem sempre seja a
intenção original, o efeito do "branding" avançado é empurrar a cultura que a hospeda
para o fundo do palco e fazer da marca a estrela. Isso não é patrocinar cultura, é ser
cultura. E por que não deveria ser assim? Se as marcas não são produtos, mas
conceitos, atitudes, valores e experiências, por que também não podem ser cultura?
Esse projeto tem sido tão bem-sucedido que os limites entre patrocinadores
corporativos e a cultura patrocinada desaparecem completamente." Esse processo
consolida a "coisificação do ser e a humanização das coisas", segundo o antropólogo
italiano Massimo Canevacci, autor do livro "Culturas Extremas". 

A International Network for Cultural Diversity (www.incd.net) promove essa pauta


junto aos associados em mais de 50 países. 

Trabalha pelo desenvolvimento cultural local em face do processo de homogeneização


da cultura, impetrado sobretudo pela voracidade dos conglomerados globais da
indústria cultural. Fruto desse trabalho de pesquisa e discussão e pressão junto a
organismos internacionais como Unesco, OMC e demais células do sistema ONU, está
a criação no Brasil do Instituto Diversidade Cultural (www. diversidadecultural.org.br)
e a publicação do livro "Diversidade Cultural", lançado recentemente pela editora
Escrituras, em parceria com o Instituto Pensarte. A tônica geral da publicação, que traz
17 textos de especialistas internacionais, volta-se para a análise e a proposição de
mecanismos internacionais que auxiliem a salvaguarda dessas culturas, tanto quanto
sua promoção nos ambientes internos.

O desafio dos investimentos

Pesquisa da Fundação João Pinheiro, publicada em 1998 pelo Ministério da Cultura,


aponta que 1% do PIB brasileiro seria gerado pela cultura. A cada 1 milhão de reais
investido, teríamos 160 postos de trabalho. A relação emprego/investimento seria a
melhor do Brasil, mesmo em comparação com a indústria automotiva e de tecnologia.
Num país em que o desafio de geração de trabalho e renda para os jovens em idade de
ingressar no mercado de trabalho é enorme, isso poderia significar um grande
potencial.

Dados de uma pesquisa realizada pelo IBGE em 1999 demonstram, por outro lado, a
ausência da oferta cultural no Brasil: 82% dos municípios brasileiros não possuíam
museus, 84,5% não tinham teatro, 92% não tinham sequer uma sala de cinema e cerca
de 20% não tinham bibliotecas públicas. Mesmo aqueles municípios que contavam
com bibliotecas, 69% deles possuíam apenas uma e, nos municípios com até 20 mil
habitantes, 935 não tinham nenhuma. 
Nos municípios com até 5 mil habitantes, a presença de livrarias e lojas que vendem
discos, fitas e CDs era muito rara, com percentuais de 13,6% e 5,6%, respectivamente.
E em termos de território brasileiro, dos 5.506 municípios pesquisados, 65% não
possuíam esse comércio. Nos municípios com mais de 50 mil habitantes, 90% tinham
esse tipo de loja e, como já era de se esperar, todos os grandes centros urbanos
possuíam esse gênero de comércio, com destaque para a Região Sul, onde em 60% dos
municípios se identificaram livrarias e em 40% lojas de discos, fitas e CDs. 

Esses dados apontam para um estrangulamento da capacidade econômica, com uma


grande concentração nos grandes centros, que obviamente não é capaz de absorver a
grande miríade criativa da cultura brasileira. Por outro lado, mostra a oportunidade de
se investir num mercado promissor e necessário para a própria valorização das
manifestações culturais locais e para o desenvolvimento de nossas crianças e jovens.
Nesse caso, bom negócio para o Brasil.

Sobre o autor

Leonardo Brant é o presidente de Brandt Associados e Instituto Diversidade Cultural,


autor dos livros "Mercado Cultural. Políticas Culturais", vol 1 (org.) e "Diversidade
Cultural" (org.)

Fonte: http://www.ondajovem.com.br/acervo/3/o-negocio-da-cultura

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