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MARIA APARECIDA VIGGIANI BICUDO

EDUCAÇÃO

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e MTE
Conteúdo

Introdução ........ccccccccc
cc
Maria Aparecida Viggiani Bicudo

1. Por uma educação Matemática como inter-


subjetividade .................. deco 13
Cleide Farias de Medeiros

2. O professor de Matemática nas escolas de


1º ede 2º graus ...........cccc cc. 45
Maria Aparecida Viggiani Bicudo
3. Apenas tabuadas .................... 59
Maria Cecília de Oliveira Micotti

4. Ação pedagógica e Etnomatemática como


marcos conceituais para o ensino de Ma-
temática .......ccccccec ee 73
Ubiratan D' Ambrosio

5. Educação matemática crítica: uma aplica-


ção da Epistemologia de Paulo Freire .... 101
Marilyn Frankenstein
Em seu artigo Ação pedagógica e Etnomatemática como
marcos conceituais para o ensino da Matemática, o professor
Ubiratan D'Ambrosio trata a Matemática enquanto pensada por
uma pessoa que vive em uma cultura específica. Para tanto,
esclarece o sentido da Etnomatemática e expõe maneiras de
entender e de pensar a Matemática que não as estritamente aca-
dêmicas, formais, tais como aquelas presentes em programas de
ensino elaborados por instituições educacionais e em livros di-
dáticos ou científicos.
O trabalho da professora Marilyn Frankenstein, sobre Edu-
cação Matemática crítica: uma aplicação da Epistemologia de
Paulo Freire, aborda tal epistemologia no contexto do currículo Por uma Educação Matemática
matemático para adultos trabalhadores que vivem no ambiente
urbano. É importante que conste deste pequeno volume, pois como intersubjetividade*
faz uma ligação entre o pensamento de Paulo Freire sobre Edu-
cação e Educação Matemática.
Cleide Farias de Medeiros**
A intenção de unir esses artigos em um livro pequeno, sem
pretensões, é levar essas reflexões a pessoas também ocupadas
e preocupadas com a Matemática e seu ensino e conhecimento.
Espera-se que eles elucidem algum ponto dessa problemática N a situação tradicional do ensino
que já foi objeto da atenção, estudo e reflexão dos autores que da Matemática, a ação prática tem ocupado um lugar de pri-
aqui expõem um pouco do seu pensamento, e que sirvam de mazia onde a filosofia, um pensar no que é essencial, não tem
início a um diálogo profícuo e esclarecedor da Educação Ma- tido uma maior atenção.
temática.
Ao escrever este texto, estive imbuída da necessidade de
re-visitar a Educação Matemática, refletindo sobre um passado
vivido na Matemática, situando como vejo o seu ensino e ini-
ciando, na elaboração da pesquisa realizada, a construção de
um campo reflexivo acerca de uma Educação Matemática ne-
cessária, crítica e libertadora e, por isso mesmo, fundada na

,
* Este texto é uma adaptação do 5.º capítulo da dissertação de
Mestrado Educação Matemática: Discurso Ideológico que a Sustenta,
apresentada à PUC/SP, em 1985.
** Cleide Farias de Medeiros (U.F.R./PE) — Licenciada em Mate-
mática (UNICAMP), Mestre em Psicologia da Educação (PUC/SP).

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intersubjetividade. É a construção desse campo reflexivo, foca- e alunos agiam sem uma clara percepção do significado de suas
lizando o ato educativo, que abre o espaço para a inserção do ações. Os alunos eram convidados a pensar de um certo modo,
“discurso matemático num contexto amplo que abranja tanto o mas não a refletir sobre as origens desse pensar. O professor
ato cognitivo quanto a relevância social do ensino da Matemá- falava de números, enfatizava a necessidade de demonstrações,
tica como ato político. alertava para a existência do rigor e, por vezes, se referia a
Na minha experiência com a Matemática, percebi que ela, certas idéias como intuitivas. Mas, afinal, o que era aquele rigor
da Escola Primária à Universidade, sempre foi ensinada sem da Matemática, o que era uma demonstração e de que se trata-
levar em consideração quem pretendia aprender: o aluno. Nun- va a sua intuição?(!)
ca houve um contato entre Escola e estudantes visando obter Quantas e quantas vezes, ao final de uma demonstração,
uma aproximação, um conhecimento de como eram os alunos, a pergunta mais comum entre os colegas era: “terminou a de-
como viam ou estavam. entendendo o conhecimento matemático monstração””?
que lhes era ensinado & quais as suas necessidades. Os alunos
O que estava demonstrado? Por que estava demonstrado?
sempre foram tidos como iguais no momento em que a Escola
O caráter psicológico da: demonstração não era levado em con-
“transmitia o conhecimento”, mas essa mesma Escola não se
sideração. Quando algo está demonstrado? Demonstrável é o
detinha pata apontar as diferenças entre os mesmos, quando
que pode ser visto, captado. E isso não era enfatizado como
os avaliáva.
importante. O aluno não era convidado a vivenciar o “ver cla-
A apresentação da Matemática foi tradicionalmente reali- ro” daquilo que estava sendo demonstrado.
zada sem nenhuma referência à história de sua construção, e
numa total ausência de discurso sobre aquilo que ela é ou sobre Encontrei uma postura de indiferença quanto ao significa-
o seu fazer. do e à origem das idéias, tanto na escola pública como na Uni-
versidade, já como aluna do curso de graduação em Matemá-
Assim os conteúdos matemáticos eram expostos e, se não
tica. Na escola pública, logo nas primeiras séries do 1.º grau,
ficavam logo claros para os alunos, era-lhes sugerido, e por ve-
havia um. desnorteamento dos alunos ao decorarem a tabuada,
zes atribuído, o estigma de incapazes para a Matemática, sem
ao invés de abstraí-la naturalmente dos resultados dos cálculos
que fosse tentado situar as origens dessas dificuldades.
com números e de suas propriedades algébricas, como a comu-
Nenhuma palavra era dita, nenhum questionamento levan- tatividade do produto ou a associatividade da soma ou ainda a
tado sobre esses modos de fazer e de pensar. Nada se pergun- distributividade do produto em relação à soma. O mesmo ocor-
tava sobre o objetivo e o significado desta atividade que se tia em séries posteriores, quando os alunos buscavam respostas
chama Matemática. Havia subjacente a idéia de fazer Matemá- para situações chamadas. problemas, antes mesmo do entendi-
tica, sem refletir-se sobre essa ação. Havia uma preocupação mento do que lhes era proposto. Assim era comum que se so-
com as respostas a serem obtidas, com os modos de procedi- licitasse, por exemplo, que o aluno resolvesse uma inequação
mento já estabelecidos, de uma forma tal que não se permitia do 2.º grau sem que, pata ele, estivesse claro o estudo da varia-
um distanciamento das palavras usadas para que se pudesse ção do sinal do trinômio. Era ainda comum. que se pedisse
captar as idéias a elas subjacentes.
Imersos num discurso matemático simbólico, sem jamais 1. Ver DAVIS, P. J. e HERSH, R. A Experiência Matemática, RJ,
se afastar dele para contemplá-lo em sua totalidade, professores Editora Francisco Alves, 1985, p. 28.

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para achar dois números cuja soma e o produto eram conheci- essa perplexidade conduzia apenas a frustrações e reprovações;
dos; neste caso, havia sempre a possibilidade do uso da ex- para outros, que se acostumavam com o esoterismo daquele
s
pressão X— SX + P = 0, onde S e P eram respectivamente símbolos e daquelas idéias e que aprendiam a caminhar
mesmo
a soma e o produto das raízes da equação do 2.º grau. Deste sem saber a origem do que estavam a fazer, restava uma
total
modo, embora a compreensão do problema pudesse. não estar falta de sentido do que era feito. A aprovação obtida nada tinha
existindo para este ou aquele aluno, o recurso a um certo algo- a ver com a apreensão e compreensão do objeto estudado. Se
ritmo podia levar, de modo imediato, à solução do problema. era preciso encontrar o ponto de intersecção de duas retas,
igua-
Para contornar a falta de um necessário tempo vivido na Ma- lavam-se as equações a fim de obter o x desejado, não impor-
tando se não estava claro, ao menos,
temática, não concedido pela Escola, para que as idéias se a plausibilidade da repre-
sentação de uma reta por uma função algébrica,
estruturassem, antes das avaliações, havia sempre o recurso a
algoritmos variados que, se por um lado levavam rapidamente Derivar e integrar funções variadas eram rotina e os mé-
à solução desejada, por outro retiravam o sentido da ação rea- todos que simplificavam a obtenção das respostas eram exaus-
lizada. Vi colegas tornarem-se hábeis solucionandores de egua- tivamente estudados para as provas tal qual um simples proces-
ções algébricas com o uso do algoritmo de Briot-Ruffini. Mas so, uma segiiência de ações rígidas, como se tais métodos não
o que estava por trás daquele algoritmo? Pouco se falava sobre encerrassem, eles mesmos, idéias outras em suas concepções,
as propriedades dos polinômios. O que estava realmente sendo feito, por exemplo, ao se integrar
por partes? Sobravam apenas os algoritmos, que com o passar
Eram comuns os exercícios que solicitavam o. cálculo do
do tempo iam se confundindo com a própria atividade de fazer
limite de uma dada função Y(x), quando x tendia para um
Matemática.
valor xo. Sabiam os colegas que tais exercícios conduziam qua-
se sempre ao recurso de simplificações algébricas que levanta- Algoritmos mais antigos, como os da conta de somar, da
riam as indeterminações e levariam à resposta esperada. Mas o conta de multiplicar, da extração da raiz quadrada, que em seu
que era mesmo o limite calculado? Qual o significado, naque- tempo haviam sido dados, eram tidos neste nível como coisas
les exercícios, dos épsilons e deltas antes mencionados? Sabía- já compreendidas. E assim, de dúvida em dúvida, sempre vendo
mos, quase todos, como levantar indeterminações, mas era algo o professor dar a matéria e reclamar da nossa falta de base,
como um truque; o que estava realmente sendo feito? Qual o íamos construindo um edifício rigoroso, de conhecimentos exa-
significado daquelas simplificações? Aliás, quem disse que eram tos, onde as demonstrações do ainda não visto apoiavam-se no
mesmo simplificações? A palavra simplificação tinha um sem já visto e não aprendido. Aprendíamos a conviver com o nosso
tido bem diferente do atribuído por todos nós na vida cotidiana. não entendimento das coisas e, assumindo aqueles procedimen-
Mas os nossos significados não contavam e, por vezes, O sim- tos como verdades inquestionáveis, cujas origens desconhecía-
plificar era algo extremamente complicado. Eram muitos os mos quase todos, famos seguindo o curso do nosso aprendizado
casos em que a falta de tempo para uma reflexão mais demora- da Matemática, construindo certezas sobre antigas dúvidas, ago-
da somava-se com a estranheza dos significados atribuídos e ra também assumidas como certezas. Era a reprodução de uma
conduziam a uma total perplexidade que, no entanto, não era situação, onde os alunos mesmo quando bem sucedidos estavam
jamais explorada, mas sempre tida como um sinônimo de con- sendo mal preparados. Nessa minha trajetória da aprendizagem
fusão mental e incapacidade para a Matemática. Para muitos, Matemática, presenciei uma maneira rotineira do seu ensino

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reduzido então à exposição dos conteúdos e à resolução dos

questões não é vivida com o aluno, encobrindo sob o peso de
problemas-modelo, feitas pelo professor para os alunos. Alunos uma aparente clareza da exposição lógica e organizada dos seus
acostumados de forma contínua à passividade, que por não te- termos, o fazer Matemática; encobrindo, em uma didática da
- rem uma visão esclarecedora do que ocorria, imersos no coti- facilitância, a verdadeira complexidade da formação históri-
diano da Escola, iam, pouco a pouco, introjetando uma sensa- ca desse conhecimento. A tão citada clareza da Matemática é
ção de impotência, de separação do professor €, ao mesmo aparente porque, do ponto de vista psicológico, ela pode ser
tempo, de dependência quando solicitados a resolver situações evidente para quem a constrói, mas não para quem apenas
fora dos padrões a que estavam acostumados. Havia um auto- acompanha a exposição do raciocínio alheio, A clareza não é
policiamento, fazendo-os nunca questionarem a forma de ensino imediata sem um trabalho pessoal do aluno, sem o exercício
que conduzia à não compreensão, O professor era aquele que sistemático do pensar.
viria a encher suas cabeças vazias, restando-lhes acatar métodos

o Sem atentar para o fato de que o aluno pode estar usando


e conteúdos. Sempre esteve implícita uma dicotomia entre uma lógica ainda não simbólica, deixa-se de construir um pen-
ensinar e o aprender. Havia subjacente a essa forma de ensino
samento, ao menos sincopado, de cuja superação pudesse sur-
uma concepção de homem como um ser naturalmente passivo, gir uma formalização consciente. A imposição precoce e a apre-
concepção que moldava as atitudes de professores e alunos dên- sentação exclusiva do formalismo, queimam etapas necessárias
tro de uma ideologia dominante que contribuía para reproduzir na estruturação do pensamento do aluno e tentam veicular uma.
essa Escola e manter a sociedade que a sustentava. Foram mui- Matemática destituída de sua história.
tos os ex-companheiros que ficaram pelo caminho, foram muitos
aqueles para os quais as Universidades fecharam as portas. Isso Para a não comunicação das idéias matemáticas, contribui
so-
leva a pensar nesse ensino da Matemática como um filtro ainda o fato de que alguns professores falam muito pouco, limi-
cial, o que também precisa ser analisado. tando-se a escrever no quadro-negro o simbolismo da Matemá-
tica. Em suas aulas os alunos aprendem, em geral, apenas as
Na Universidade, a única diferença que percebi, no que
representações das idéias e dos raciocínios matemáticos. Estes
diz respeito ao ensino da Matemática, foi quanto ao nível de
alunos vêem apenas os símbolos gráficos representando idéias
exigência. Eram sempre resolvidos problemas-modelo pata os
não expressas, não compreendidas, pois os significados matemá-
alunos, embora fosse exigida também a solução de problemas
ticos são mediados por símbólos e precisam ser explicitados no
fora dos padrões, nas avaliações. A forma de ensinar se repetia,
porém cobrava-se o tradicional e também a criatividade, como ato educativo. É muito grande a quantidade de crianças que
se esta pudesse surgir repentinamente para os alunos acostuma confundem, por exemplo, o numeral com o número em si, OU
dos à passividade, em uma Escola em que a transmissão uni a- seja, a representação com a idéia.
teral dos conteúdos sempre preponderou sobre a construção do Nessas circunstâncias, o aluno torna-se um exímio manipu-
conhecimento, lador de símbolos, em situações de ensino padronizadas. Mas,
Pensando a respeito dessa problemática, vejo que a Mate: por não compreender o que está fazendo, é incapaz de resolver
mática, da forma que comumente vem sendo apresentada, quer problemas que se afastem dessas mesmas situações-modelo, Ad-
em aulas, quer em livros-texto, traz subjacente a idéia do edi- quire o formalismo, mas faltalhe o discurso, o conjunto de
fício pronto, da obra acabada, onde a busca das soluções das idéias que assumem tais formas. Aliás, a falta de linguagem

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matemática não simbólica é uma característica muito encontra- quando, em verdade, esse modo de proceder só é possível por-
da também entre professores de Matemática, os quais, geral- que o professor já conhece antecipadamente aquele conteúdo.
mente, se expressam com dificuldade nessa linguagem, como Entre os professores e boa parte dos alunos com os quais
também na própria língua materna. convivi, havia uma ideologia da competência a qual reduzia
O recurso quase exclusivo às técnicas algébricas, cujo ob- uma situação complexa, que é a compreensão ou não compreen-
jetivo em Matemática é o de reduzir a linguagem, economizá-la, são da Matemática, a uma só variável, isto é, a uma pequena
da generalização e das abstrações máte- causa que pouco explica: a incompetência inata de uma maioria
impede a construção
abstração é algo a ser atingido no ensino pata esse trabalho intelectual. Os alunos, por sua parte, que-
máticas pelo aluno. A
riam uma forma rápida para chegar às respostas de questões
da Matemática. O uso precoce e exclusivo de tais técnicas, po-
matemáticas padronizadas, porque tinham como objetivo a
rém, induz comumente o aluno ao automatismo segundo as re-
aprovação nos testes, que lhes conferiria um certificado.
gras de um jogo, com a não compreensão das operações efe-
tuadas sobre os números e a não apreensão dos significados E claro que há toda uma problemática social que induz
matemáticos presentes nos problemas que se pretende resolver. a essa atitude frente ao aprender. O que é estranho e não cabí-
vel é que alunos e professores se surpreendam que, em situações
Não se trata de negar o valor do simbolismo presente na
desse tipo, não haja compreensão da Matemática.
Matemática, nem de negar o valor da Álgebra, que é uma grande
conquista do pensamento matemático. Trata-se, sim, de negar O interesse dos alunos, em geral, e o da Escola era o mes-
a apresentação do simbolismo, sem a explicitação das idéias, mo, ou seja, a informação rápida. Havia presente em seus com1
visto como mágica pelo aluno. É preciso resgatar, na prática portamentos em sala de aula um consumismo da aprendizagem.
de sala de aula, a dialética que existe entre forma e conteúdo, Quando diziam querer aprender, estavam, em verdade, queren-
pois estes perdem o sentido quando separados. do uma forma que lhes possibilitasse a posse rápida de um
saber, tal qual uma mercadoria que se consome sem que se a
No ensino tradicional da Matemática não tem havido, em produza e se a compreenda.
geral, um respeito pela criatividade do aluno. Na prática de
ensino de um grande número de professores, alheios à preocu- Percebi que havia uma adesão de quem aprendia a quem
há um desencontro entre determinava o quê e o como aprender, onde o interesse residia
pação com a criatividade matemática,
no produto do trabalho, na técnica e não no aprender propria-
esta e a forma metódica como as idéias parecem surgir àqueles
em suas exposições de sala de aula. As soluções das questões mente dito, na compreensão.
e as demonstrações são apresentadas de tal modo que não A postura educacional presente nesse tipo de ensino da
passam por ensaios e tentativas de resolução e busca de novos Matemática é carregada pela crença de que a ordenação das
caminhos. Desta forma de apresentação dos conteúdos, depreen- idéias matemáticas e os significados, os sentidos atribuídos a
de-se uma concepção de Matemática em que a criatividade é tais idéias são partilhados, desde os contatos iniciais com a Ma-
totalmente desfigurada, induzindo os alunos à impotência frente temática, de uma forma única e universal. Assim, nesse modelo
à sabedoria do mestre, que aparentemente encontra de imediato de Educação, o fato de o professor explicar determinados assun-
os melhores caminhos para a solução de questões matemáticas, tos e os alunos pouco aprenderem ou não aprenderem de ime-

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diato, implica uma visão de deficiência da parte destes. Em De onde surgem tantas--dificuldades?
outras palavras: aos alunos não é colocada outra opção. Eles O que ocorre em sala de aula não é de responsabilidade
têm que adentrar o mundo da Matemática em um espaço de exclusiva do professor, porque os alunos, em geral, compac-
tempo pré-determinado, e apesar de suas condições e pontos tuam com a forma de ser da Escola.
de partida diferentes. Isso não significa negar a própria natu-
reza do aprender? Percebi, ainda, que havia entre professores e alunos, o
culto da precisão e da exatidão, de tal forma que cada um,
É comum, mesmo em fase adulta, encontrarmos pessoas em nome da eficiência e da pressuposta exatidão, exigia do
com diferentes formas de ver ou diferentes abstrações das idéias outro a repetição de exaustivos problemas ou demonstrações
em geral, seja acerca da sociedade ou com respeito à Matemá- que já estão historicamente solucionados e que, por serem ape-
tica. Não vejo isso como uma exclusividade da criança. Tais nas repetidos, não permitiam, quer ao professor, quer ao aluno,
diferenças estão, provavelmente, em sintonia com o modo de o desenvolvimento do raciocínio criativo, mas quase sempre,
vida de cada um que, desde a infância, sofre a influência do apenas, a memorização de problemas-modelo ou de demonstra-
ambiente cultural e econômico no qual vive. No entanto, há ções inteiras.
fregiientemente por parte da Escola um profundo desinteresse
em relação às formas como os alunos pensam a respeito da O medo fregiiente de se exporem ao erto, isto é, a insis-
Matemática. Os alunos têm suas especificidades culturais de tência de não se mostrarem como de fato são, pessoas em con-
grupo, apreendidas de certas formas por eles, enquanto seres tínua formação intelectual, faz com que professores e alunos
individuais, mas não é dada às mesmas a devida importância. não busquem, na sala de aula, novos caminhos, ao resolverem
Assim, por exemplo, se uma costureira não entende o que lhe os problemas matemáticos. Isso contribui para o ocultamento
é ensinado, em aulas de Geometria, não é, provavelmente, por- do ato de criação na Matemática, pois este reside em um traba-
que não tenha um bom raciocínio espacial, mas porque aquilo lhoso caminho de busca.
que traz de sua vivência nunca é utilizado como elemento de Esse comportamento em que o erro é visto como algo que
construção de um raciocínio abstrato. Neste exemplo, podemos deve ser evitado nas exposições de sala de aula e que não leva
dizer que, de uma maneira não rigorosa, o espaço é, na acepção em conta o seu potencial heurístico, traz consigo os cultos ao
matemática do termo, o seu campo de atuação profissional. Vi- mito da eficiência e ao princípio da autoridade, tão caros à
sões espaciais lhe são sempre solicitadas na confecção de com- ideologia dominante em uma sociedade de classes que tem
plicadas peças do vestuário. Entretanto, a abstração pode pa- pressa.
recer não estar ao seu alcance nas situações de sala de aula.
Estarei sugerindo o abandono às soluções já produzidas,
Se é verdade que a Matemática permeia as atividades hu- às antigas soluções de problemas matemáticos, em sala de aula?
manas, o que há de errado em seu ensino? A Matemática está Não se trata disso. Estou negando a sua exclusividade e a forma
presente no noticiário econômico do jornal e da TV, na música, tradicional em que são apresentadas. Estou combatendo a dis-
na pintura, nas receitas culinárias e na natureza de uma forma tância existente entre o professor e o aluno.
geral, Vivemos em um mundo de números representados pot
toda a parte. O próprio corpo humano já confere a vivência de Buscar com os alunos caminhos ainda não trilhados, e não
uma espacialidade. apenas os já constantes na memória do professor, poderia pro-

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piciar um aprendizado mútuo, mais verdadeiro e mais próximo ma dissociada da realidade, seja esta o universo físico ou as
do ato de criação matemática. Isto não exclui, no entanto, a formas de pensar de quem aprende.
possibilidade de estudo compreensivo de situações matemáticas
já resolvidas. “A Matemática é geralmente considerada como
uma ciência à parte, desligada da realidade, vivendo
Mas, afinal, o que impede tal concretização, mesmo da na penumbra do gabinete, gabinete fechado, onde não
parte daqueles que são matemáticos criadores e que conhecem entram os ruídos do mundo exterior, nem o sol, nem
de perto o que é verdadeiramente trabalhar em Matemática? os clamores dos homens. Isto só em parte é verdadeiro.
Seria a forma reveladora do verdadeiro caminho que con- Sem dúvida, a Matemática possui problemas pró-
duz à criação matemática um atentado à pretensa e cultuada prios, que não têm ligação imediata com os outros
supremacia intelectual do professor? Ou se trata de um não problemas da vida social. Mas não há dúvida também
saber ensinar? de que os seus fundamentos mergulham tanto como
os de outro qualquer ramo da Ciência, na vida real;
O ensino tradicional, sob o peso de uma apresentação ló-
uns e outros entroncam na mesma mader.”E)
gica e consistente, induz a acreditar na existência de um mé-
todo que teria levado à criação deste saber, e ao qual, aparen- Pensar na Matemática, sem situá-la nem ao seu ensino
temente, apenas os mais dotados poderiam ter acesso É aqui numa dimensão social, implica manter lacunas neste pensar.
estou negando esse método enquanto uma forma cristalina de
Para se aprender compreensivamente, criando em Matemá-
se chegar às respostas e demonstrações das questões, sem O re-
das tentativas, como se houvesse tica, é preciso querer aprender, propor a si mesmo problemas.
curso do pensar contínuo,
Mas isso traz uma dupla interrogação: O que é um problema?
uma receita para se chegar às soluções e para se ter idéias.
Neste sentido, aqueles que ensinam ou escrevem a respeito da
e Por que a prática tem mostrado que a maioria dos alunos não
Matemática, apresentam em geral o quadro já terminado, evi- faz perguntas ou observações originais?
denciando sua beleza e estrutura lógica, mas É preciso diferenciar um problema de uma simples ques-
tão(?), pois há uma
“... aqueles que contribuíram para realizá-lo têm confusão fregiiente sobre estes dois termos,
uma experiência completamente distinta; uma expe- entre os professores. Todo problema pode ser entendido como
riência com mais frustrações e com mais satisfações uma questão, mas a recíproca não é verdadeira, nem toda ques-
que a daquele que vê unicamente os resultados” (2) tão constitui-se um problema, Uma questão torna-se um pro-
blema para o aluno apenas se este necessitar ou desejar a sua
Se olharmos atentamente para a história da Matemática, solução. Um problema só é problema quando o indivíduo se
encontraremos nela uma imagem bem diferente daquela que se apropria dele e é apropriado por ele, deseja pensar a respeito
pode perceber nas esquemáticas apresentações realizadas em
sala de aula, onde costuma-se enfatizar o seu rigor de uma for- 3. CARAÇA, B.. Conceitos Fundamentais da Matemática. Lisboa,
1975, p. 13.
2. ANDERSON, D.L. El Descubrimiento del Electron. México, Ed. 4. Esta idéia está muito bem colocada por DERMEVAL SAVIANI
Reverté Mexicana, 1968 p. 23. N.B.: neste texto, o autor refere-se a em Educação: Do Senso Comum à Consciência Filosófica. São Paulo,
livros de metodologia científica. Cortez Editora, 1980, p. 18-23.

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mo, ou porque à criatividade é associada à própria idéia de
x 2 a
dele, estabelece uma busca contínua para a compreensão e so-
lução do mesmo. Para que essas surjam é preciso que o sujeito liberdade.
se correlacione intencionalmente com o objeto de investigação. É neste segundo sentido que sitio uma Educação Matemá-
É preciso que haja participação intelectual do sujeito, que apren- tica crítica e libertadora, vendo o homem como um ser que só
de, na construção do conhecimento. É isto que significa uma é livre quando criativo. Sendo criativo, emerge sua autonomia,
participação ativa do aluno e não a simples manipulação física não o sendo, ele é apenas um ser-para-os-outros. O seu eu não
de objetos. é respeitado, a sua existência profissional não tem um sentido.
Na educação tradicional, o aluno é acostumado desde cedo, para as ua vida vivida na heteronomia, A criatividade é neces-
logo nas primeiras séries, a conhecer os seus deveres, entre os
sariamente libertária do ponto de vista da produção do conhe-
quais está sempre presente o de prestar atenção ao que lhe en- cimento.
sina o professor, e este prestar atenção significa ficar calado e A não possibilidade da Matemática para uma maioria de
olhando. E por não estar ali, o aluno, geralmente, olha, mas não alunos pode ser atribuída, principalmente, ao fato de que o ser
vê. Essa situação vai reprimindo a sua curiosidade, alimentando que aprende tem sido esquecido. O aprender tem sido visto
o despotismo da Escola, para a qual uma criança curiosa pode como emissão de respostas imediatas seguidas a estímulos, e
tornar-se uma criança perigosa, pois coloca em dúvida, como não como compreensão, como estados de entendimento de um
é de seu espírito, o que lhe é ensinado. Os professores tiveram, conhecimento científico que vão sendo atingidos a partir do
em geral, uma formação deficiente, talvez pelos mesmos moti- conhecimento que o aluno já possui.
vos, e colocamm-se na defensiva, reprimindo a curiosidade. As-
A insatisfação dos que fazem este ensino é decorrente de
sim, a Escola que aí está, no mais das vezes, está longe de ser
uma relação com o aluno, na qual o mesmo é visto meramente
um ambiente democrático e um local onde possa se dar o de-
como um organismo, um ser apenas biológico. A sua intencio-
senvolvimento do pensamento criativo.
nalidade no aprender, propósitos ou desejos não são tidos como
Frente a essas considerações, proponho a prática de uma relevantes.
Educação Matemática crítica. Essa educação implica olhar a
Nesta ação pedagógica há subjacente uma concepção psi-
própria Matemática do ponto de vista do seu fazer e do seu cológica behaviorista do aprender, onde pretende o professor,
pensar, da sua construção histórica e implica, também, olhar
através de aulas expositivas, organizadas no melhor dos casos,
o ensinar e o aprender Matemática, buscando compreendê-los.
estar emitindo estímulos suficientes que eliciariam prontamente
Nessa perspectiva, a Educação Matemática crítica tem presen-
a resposta esperada: a aprendizagem. Há uma concepção do
tes, em seu bojo, a busca e o compromisso com a criatividade,
aprender como sendo ato de consumo. Estímulo, reforço, me-
bem como a preocupação com o pata quê ensinar e aprender
morização. .. Compreensão?
a Matemática.
Ao adotar uma certa prática pedagógica, o professor de
Criatividade, para quê? A serviço de que valores? Matemática assume, ainda que não lhe seja clara, uma concep-
O desejo de criatividade pode ter fins bem diversos. Pode ção psicológica, uma posição acerca do que é o homem, enca-
ser buscada, por exemplo, porque as idéias novas são sempre rando o aluno como um produtor ou, contrariamente, como
bem-vindas à corrida desenvolvimentista e à ideologia do consu- um mero consumidor do conhecimento. É preciso que o pro-

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fessor tenha consciência da posição assumida, sabendo o pá Outros alunos ultrapassam montanhas, são os alpinistas
subjaz à sua ação em sala de aula, porque esta ação estará a ,
que apesar da Escola, conseguem até
mesmo transcendê-la, tal
denciando tão bem a sua ideologia quanto o seu discurso, or a firmeza com que se dispõem à taref
a do aprender; mas boa
da sala, acerca da Educação Matemática e da sociedade. parte dos alunos enganam a Escola
da mesma forma que são
O ensino em que se adote o treinamento, sem que se pos- ludibriados por ela: assumem a farsa,
sibilite o envolvimento intelectual do aluno, onde a conseii Outros ainda, por não suportarem acrescentar o peso
cia, isto é, o estado de alerta para o que este esteja puendo; de
uma Matemática não compreendida à
carga que são suas pró-
não tome parte, conseguirá, quando muito, um aluno ades rado, prias vidas marcadas por uma condição
econômica não condi-
mas sem uma criatividade iminente. Este aluno continua, = zente com a dignidade humana, afast
am-se irremediavelmente
ser humano, com uma criatividade potencial, porque é ser e da Escola; esse mundo difícil e distante
dos seus significados,
possibilidades, podendo ainda tornar-se criativo, transforma dor distante daquilo em que vêem senti
do e que constitui os seus
ativo das idéias e das coisas, apesar da passividade enraiza e mundos. É a evasão dos que preferiram
, pelo menos, não terem
apesar do embotamento de suas próprias idéias ocasionado pe o pensamento invadido por idéias
alheias, de quem fala sem
ensino tradicional. estar disposto a ouvir. É o não aprender
como recusa à domes-
ticação, ao treinamento
São muitos os alunos para os quais a liberdade inerente no decorar fórmulas matemáticas sem
ao ser humano fala mais alto e estes deixam de centrar a aten nenhum sentido existencial.
ção no que lhes é ensinado, frustrando os objetivos compor a Por que, então, esta situação se mant
ém?
mentais do professor. O aluno sabe que corre vários riscos po
Existem dois componentes fundamentais
não prestar atenção ao que lhe fala o professor; mesmo assim, que contribuem
para que a Educação Matemática conti
o seu livre arbítrio lhe diz que se ausente daquela o nue sendoo que tem
sido, em geral, em nossas escolas: a
Ele se ausenta de ouvir o professor, havendo uma intencionali- incompetência na profissão
do ensino e o autoritarismo. Esses dois
dade neste não ouvir. elementos juntos condu-
zem o professor a confundir duas funçõ
es, o professor e o ensi-
O professor dá aulas, dá a matéria, dá a Matemática para nar, o mero exercício de uma função
com a sua funcionalidade;
o aluno. É quase sempre a ssim. Ele faz para o aluno, mas não e essa confusão gera uma incompet
ência social.
faz com o aluno. Por ser a Matemática, desta forma, uma es- Uma boa parte dos professores
tranha ao mundo do aluno, ao conjunto de significados que está, em geral, apenas
ocupando um catgo, e, na maioria das vezes,
constitui a sua existência, o aluno recusa esta Matemática que não se dão conta
de que ainda Precisam aprender para poder
lhe é dada como um presente, por não perceber um sentido na ensinar, seja no
que diz respeito à Matemática, buscando suas
ou aos origens,
sua posse, assuntos educacionais. Aliado a essa
incompetência que os fa-
Alguns alunos até se permitem emitir algumas Fepost zem inseguros está o autoritarismo,
São duas coisas que se com-
esperadas pelo professor de Matemática, para satisfazer Ê : pletam e se alimentam mutuamente,
cola. Mas essas respostas são descartadas logo em seguida de Esse autoritarismo se manifesta em
seu universo simbólico imediato. A uma rápida aprendizagem, dois níveis, Há o auto-
ritarismo hostil que atinge diretame
nte o aluno através de pa-
segue-se um quase imediato esquecimento. lavras e gestos do professor, mas
há, sobretudo, um autoritaris-
28
29
mo sutil e, por isso, mais perigoso porque não é tão perceptível O que quero dizer com diálogo no ensino da Matemática?
quanto o primeiro, caracterizado pela violência cultural exerci- Essa palavra assume várias acepções. Há o diálogo visto
da pelos que pretensamente tudo sabem e ensinam aos que nada como discussão. Há a polêmica. Há a conversa sobre fatos cor-
sabem. Nesta situação, o aluno é visto como uma tábula-rasa. riqueiros do tipo: “como foi o jogo ontem?” ou “como está
O
Para que haja uma mudança radical dessa situação, é pre- tempo, lá fora?”, às vezes utilizados pelo professor tentando

emma
ciso a consciência da necessidade dessa mudança e a busca do descontrair o aluno, Tais tentativas de comunicação fazem parte
que fazer para mudar. Uma mudança nesse ensino se fará com do relacionamento humano, mas eu me refiro a um outro É o
o esgotamento dessa ideologia a respeito do aprender e do en- de diálogo: o diálogo científico. Refiro-me à ação em que o
als
sinar a Matemática, Creio que para isso é preciso, ptrincipal- no e o professor permitem e procuram apresentar as formas
mente, que o ato educativo em Matemática se transforme
em como se lhes mostram os assuntos matemáticos, os conceito
s
ato de comunicação, em encontro entre professor e aluno. os problemas que pretendam resolver. Refinoane à situação Er
que o aluno e o professor expõem suas visões, explicitam seus
No ensino tradicional da Matemática, o ouvir o aluno não mundos, O mundo de quem ensina e de quem aprende,
Isso
tem sido, em geral, valorizado; no entanto, é preciso saber ouvir significa uma não dicotomia entre o ensinar e o aprender
.
e não apenas falar, pois ouvir faz parte da comunicação hu-
| Para que haja um diálogo científico sobre a Matemá
mana. tica
visando à compreensão, é preciso uma atitude quanto ao cout
Para que a compreensão do conhecimento matemático se e ao falar, na qual é tão importante o que pensa ou fala
o aluno
realize, a didática, enquanto facilitância, tem pouca utilidade. que O que pensa ou fala o professor. É preciso que o aluno
a
Na apreensão do conhecimento, o aprender exige o pensar, expresse a sua palavra. Isso só é possível se ambas as
busca compromissada, o estabelecimento da dúvida. E a didá- partes estiverem disponíveis ao diálogo. Isso só é possíve
l se o
aluno quiser compreender e se o professor possuir um
tica da facilitância mais oculta o que é a criação matemática do conheci-
mento do que ensina e deseja que o aluno compreenda
que a explicita.
ão com que surja uma Educação Matemática em que haja
É necessária uma didática que inicie o aluno na produç
he ser sujeito de sua com nitação entre professor e aluno é preciso que se substit
do conhecimento matemático, permit indo-l ua
onólogo tradicional de nossas salas de aula pelo diálogo
ação, já que no tempo de que dispõe a Escola, não seria mesmo
possível responder a todas as suas perguntas € dúvidas. Por que penso ser necessário esse diálogo?
en- rio ai eee
Pensando na Educação Matemática como comunicação surge a partir do fato de que geralmente
que o seu lugar é a in- iaui que o aluno está entendendo, do que lhe está
tre quem ensina a quem aprende, vejo sendo en-
e o meio para qe E os aquilo que o professor espera que
tersubjetividade, o resultado é a compreensão estivesse enten-
iálogo se faz necessário porque, comumente, a
isso é o diálogo. form
de pensar do aluno não coincide, de imediato,
com a Hm .
O seu lugar é a troca das apreensões subjetivas, das for- prossa pelo professor, havendo entre eles
um désênconiro Essa
mas íntimas de percepção desse conjunto de idéias, formas, ao nsão Anediata é bastante natural porque
um objeto
símbolos e relações entre idéias e símbolos que é a Matemática. mostra de imediato em sua plenitude.

30
31
vezes, As umfo ms diferentes
i de apreender a Matemática têm, por
que emerja uma Educação Matemática libertadora,
Para se potencial impii po encial explicativo, mas a exploração des-
quanto sociais, não podem ser
os seus fins, tanto educacionais Melides É ipi ca O crescimento de sua negação, face às suas
as de ensino.
atingidos por quaisquer meios ou metodologi ções trazidas às claras, pela problematização do professor
seja apreen-
É preciso que a subjetividade de quem aprende É niepreci porto, explorar os limites expli
cativos das
diálog o, e utiliz ada de modo
dida por quem ensina, através do
imposi ção, mas co-
que a Matemática seja vista não como uma si
subtrai dois núme
i ros, DOE CRS O, ee qe 4656 €(),esmo
comopodpode
dialeticamente as a
mo um conhecimento que possa vir a superar a du o ng por mim. realizada (), retirando cem.
de fazer a Ma-
representações alternativas ou os distintos modos o nor e cada ordem de um número, do alga
Essas repres entaçõ es alter- -
temática, apresentados pelos alunos. pao m correio deetiva ordem no
outro número, não perce-
indivi duais
nativas a que me refiro poderiam ser elaborações ae dr ação total de cada número, esse seu
erro é
grupo.
dos alunos, ou estar presentes na cultura do seu e visão parcial que necessita ser esgot
ada, ou
ática, pelos j plorada
A superação dessas formas de ver a Matem
até os seus limites.
vendo a Mate-
alunos, deveria ser buscada no caso de se estar Se o subtrai
consistência
mátjca que aí temos, como portadora de uma maior tanto po fo
nos vários mo- professor. A forma E quer outrano
que lhe jogo Bila, rege fi
seja fornecida pelo
que a daquelas concepções alternativas. Isso, meros é pod a ernativa que usa para subtrair dois nú-
mentos do aprender e do ensinar.
Essa proposta só tem um sentido para quem esteja imbuíd
o presta um se n EOtanda parcialidade
Seria preciso de uma visão que não em-
s à representação posicional numérica,
formas dife-
da percepção da existência de mundos, isto é, de casa, EUDES À Em O, ir ao fundo da questão e analisar com
rentes de pôr ordem e atribuir signifi cados aos conceit os e idéias números: con vidás amentos da forma como ela representa os
científ ico. Só tem
em geral, pertencentes a um conhecimento quaisquer tentar a a construir outras formas de representação
e, por
sentido se a apreensão da subjetividade de quem aprend operar com tais representações.
for utilizada de um modo construtivo, fazendo
quem ensina,
imposição,
com que a Matemática possa ser vista não como uma Ç
da supera ção das
mas como um conhecimento que possa nascer
s 3 q p

o estas
explicações alternativas elaboradas pelos alunos, podend
A superação
estarem presentes na cultura do seu grupo social.
os signifi cados atribuí-
dialética consistiria em tomar os distint siso 5. Para a criança estudad a
do o real pen- (3º * série
dos pelos. alunos às situações matemáticas, captan
séri — Escola Públi i
nto Ph iad o mesmo que subtrair 4656
de de 3189, aq
sado por cada um, aquilo que as pessoas pensam à partir a dis não é Possível. Ao subtrair, aobirair
fez coisas do s inte
iria em tomar
suas vivências do passado ou do presente. Consist 3189 E meno
is racio
-las, estabe lecendo a 1 dá a:5; 94 meno
s cinav menos
s 6 dá:3; 8 me as
suas distintas heurísticas e problematizá 3 dá 1 Pes é tê
ar o cresci mento
dúvida, o conflito, com o objetivo de explor 1533
surgimento
das contradições que nelas residam e propiciar o 6. MEDEIROS, C, F ítica: Di
o. O es- 3, €. E. EducaçãoM
de uma síntese. É o diálogo se dando através do conflit
die
me a Sustenta, Dissertação de Mestrado. PUC/SP. o as O
tado de dúvida é necessário para se aprend er.
33
32
problematizar
posicional, pelo aluno, é que vejo sentido em podendo ele apenas contribuir para este querer aprender do
subtração. Só a
então a sua forma alternativa de executar a aluno, e não sendo jamais o único responsável dessa situação
surgir a cri-
consciência da parcialidade de sua visão pode fazer pois o aluno é livre e deve assumir os riscos dessa liberdade.
cimen to matem ático.
ticidade necessária à construção do conhe A responsabilidade atribuída exclusivamente ao professor de
a heurís tica do
Tratar-se-ia, em última instância, de resgatar motivar ao aluno, escond
e e a responsabilida
ili de deste n -
extirpá-lo, partir
que é tido como um simples erro. Ao invés de rer saber. à dE ue
dele,
: Ensinar uma ciência, no caso a Matemática, é a tentativa
ática
Isso, para mim, é o que significa construir a Matem de cogotamento das distintas representações dos estudantes
tivo em ato de pesqui sa.
com o aluno. É transformar o ato educa cerca dessa ciência, auxiliando-os a compreender o sentido de
-
Na Educação Matemática entendida como intersubjetivi is representações e os limites de suas possibilidades explica-
tualmen te, e não
dade, o aluno é sujeito participante, intelec ivas.
ca-
objeto do ato educativo. Essa Educação Matemática é um ão? Mas
- o que éé aprender compreensivame
minhar no qual as representações do aluno, acerca da Matemá
j nte, nessa concep-
a ser seguida e que,
tica e da sociedade, ditam também a direção
passos
portanto, não comporta, a priori, nenhuma segiiência de A compreensão de, uma ciência não deve ser vista como
Matemá tica não pode ser visto
rígidos. Dessa forma, o ensino da um estado final e perfeito, mas sim, como estados de conheci-
se para O ft-
como processo e sim como um projeto, um lançar- mento que vão sendo atingidos por quem aprende ao pensar a
a
turo, para que os resultados desse ensino não sejam apenas Matemática. Para que o aluno a compreenda é preciso que es-
o), mas sejam com-
aprendizagem de algoritmos (que é process teja com a consciência dirigida para o assunto matemático es-
de
preensão. É um educar que se constrói guiado por metas tudado. Assim a pessoa só se apropria dele se também for
conhecimento matemático, aí estabelecido, mas a apropriada por ele, se desejar compreendê-lo. Esta é a condição
atingir um
re-
partir do respeito e do esgotamento das possibilidades das para a compreensão e ela é. atingida quando a pessoa parte dos
dão
presentações do educando, onde as metas de longo alcance significados que atribui aos assuntos matemáticos e os supera
a direção desse caminhar. pelos novos significados da Matemática, que não eram ainda
se deem ;
us, que já existiam impressos nos livros,
Essa Educação Matemática, que entendo libertadora, não nas aulas e não eram
De- por ela percebidos,
é algo que possa se dar como busca de objetivos imediatos.
pende de um papel primordial que cabe ao aluno, que é a busca A compreensão é um pro-jeto e como pro-jeto, requer tem-
que
do aprender. Para isso é preciso que ele deseje o saber. O Po pivido, Por isso, o momento em que o esclarecimento
r hoje, talvez só no da
a intencionalidade do aluno não permiti compre e não pode ser determinado previamente. Essa
terá o profess or
amanhã possa se realizar. De qualquer forma Apreensão exige um contínuo trabalho de interpretação, pois
e
cumprido o seu papel, ao buscar esse encontro com O aluno as idéias científicas não se doam de início em sua plenitu
de
servir de intermediário para a sua compreensão da Matemática. Para que haja compreensão, é preciso que se respeite
do o fem o
O professor estará sendo coerente ao exigir a presença ativa necessário, um tempo vivido na Matemática. É preciso
impresc indível , ao
aluno na produção do conhecimento como algo aluno a habite, lançando-lhe sempre um novo olhar.
neo
34
35
Falar sobre o que é uma Educação Matemática, com a ad- sociedade desejada como ideal. Postura que se mostra logo
jetivação de crítica e libertadora, envolve o falar de uma ativi- a partir da atuação do professor na sala de aula, no seu rela-
dade humana que busque a transformação do que aí está. cionamento com o aluno, na sua forma de ensino.
O problema é: o que aí está? Isso abrange a Escola com Agi, novamente, os que se pretendem neutros, ao fazerem
um ensino tradicional que precisa ser interrogado; Escola inse- a Matemática ou o seu ensino, haverão de se autodeterminar
rida em uma sociedade que está enferma, indigente de valores apolíticos.
humanos, carente de novos valores e cuja organização também
precisa ser questionada. Quero me opor a essa visão: não existe ser humano apo-
lítico. Ser político é uma das principais características humanas
Tal postura talvez incomode os defensores de uma Mate- em que o indivíduo, por pertencer a um grupo social, necessa-
mática pura e de um ensino neutro da mesma, resguardados riamente precisa se ver nas coisas € relações sociais, tais como
nos seus isolamentos cômodos e também pretensamente neutros, elas estão postas e se perguntar: qual a tinha participação na
dos gabinetes de trabalho. Talvez incomode àqueles, para os transformação ou manutenção dessa sociedade?
quais ser competente significa ser eficiente para si mesmo ou
para a classe social hegemônica, onde o individual se sobrepõe A ausência desse ver político, não procurando a pessoa ser
a uma competência social, sem um sentido transformador e pa- ativa e participante, de uma forma crítica e ao mesmo tempo
ra quem o viver está isento de dúvidas sobre ao que conduz a humana, significa que ela não está presente no mundo, no grupo
sua eficiência. social a que pertence, significa que sua consciência está alie-
nada, alheia à sua condição natural de ser-no-mundo, que é ser
Para pensar em uma Educação Matemática libertadora é pessoa inserida no grupo. Se sua ausência é consciente, signi-
necessário pensar nos aspectos cognitivos presentes na produ- fica que é conivente com as injustiças sociais e que seu egocen-
ção do conhecimento matemático e pensar, também, nos aspec- trismo é mais forte que o senso de coletividade, ou que vê
tos sociais que a envolvem, Focalizar um ou outro desses dois ingenuamente a sociedade de forma reificada, isto é, como se
dois aspectos é manter uma visão parcial acerca desse tema. ela sempre houvesse sido o que está sendo e sem possibilidade
Nessa perspectiva de Educação Matemática, tais aspectos não de mudar.
podem ser focalizados separadamente, de uma forma dicotô-
mica, pois um não faz sentido sem o outro. Pensar na Educação O individual só faz sentido se também for coletivo. Dessa
implica pensar na sociedade. forma, o sentido que vejo no aprender a Matemática e no seu
ensino, assim como em qualquer outro conhecimento humano,
Justamente por reconhecer o valor da Matemática, pela é o de que a finalidade desse conhecimento transcenda a pró-
sua utilização na resolução de problemas da natureza, por estar pria satisfação intelectual individual, seja útil ao próprio ser
entranhada na sociedade tecnológica em que vivemos, por ne- humano e não apenas a si mesmo.
cessitarmos dela para decodificar, inclusive, a nossa realidade
social, é que ela é importante para quem aprende. O ensino tradicional da Matemática, por outro lado, tem
sacrificado o indivíduo, enquanto sujeito cognoscente, enquanto
A Educação Matemática, enquanto ato político, diz res- sujeito possuidor de uma forma própria de olhar para as coisas,
peito a uma postura adotada pelos que pensam e/ou fazem o como se ele pudesse ser confundido com o grupo. E aí está a
ensino da Matemática, quanto àa sociedade em que vivem e à importância da Educação Matemática como intersubjetividade.

36 37
O indivíduo é uma totalidade dentro de uma outra que reconguistada e o ato político não deve ser confundido com a
é a sociedade, o grupo social a que pertence. Indivíduo e so- conquista dos fins por quaisquer meios.
ciedade se relacionam numa interferência mútua, um faz o ou-
tro, mas um não é o outro. A Educação Matemática, enquanto ato político, tem um
papel a desempenhar que não é diferente daquele que cabe a
Dessa forma, o porquê e o para quê aprender ou ensinar todo e qualquer-ser humano, que é o de resgatar um humanismo
a Matemática estão interligados, pois ao mesmo tempo que é adormecido nos indivíduos como um dos meios de superação
importante o próprio desenvolvimento intelectual do indivíduo, desta sociedade de classes, embora sem descartar a importância
que como-ser humano tem a característica de procurar conhecer da luta no plano econômico-produtivo.
o que o cerca, de igual importância é q seu fim, que deve ser o
de contribuir para aliviar a miséria humana em toda a sua ex- Estando presente o desejo de uma sociedade com justiça
tensão. , econômica e mais humana, o grande problema que se impõe
na construção de uma concepção libertária da Educação Mate-
Assim, a Educação Matemática é sempre ideológica, carre- mática é conciliar a questão epistemológica das formas de pro-
gada de valores, explícitos ou não, pois a cada forma de ensino dução do conhecimento matemático com as questões sociais, no
adotada está associada uma visão de homem, homem este que ato educativo.
pode ser tido ou não como um produtor de conhecimento. Está
O econômico não é o único dos sentidos da existência hu-
associada, também, a um modelo de sociedade que se esteja
mana. O ter não deve ocupar o lugar do ser no caminho a ser
procurando manter ou atingir.
seguido pelo homem, que é a busca de ser mais, porém, uma
As formas de ensino da Matemática precisam, portanto, grande quantidade de empecilhos econômicos diminui as possi-
serem analisadas em sua dimensão política dissimulada. bilidades até mesmo de ser, de poder ser, pois o econômico
interfere tanto na sobrevivência orgânica do ser humano como
Fazer um ensino de Matemática político, em que se ques- lhe fornece uma base material para a sua produção intelectual.
tione a sociedade, não é fazer, porém, em sala de aula, o meto
discurso panfletário da exploração da classe social dominante A Educação Matemática, enquanto ato político, deve con-
sobre a classe oprimida. Tais discursos, comumente, ou soam tribuir para a construção de uma sociedade em que os valores
com indiferença a certos ouvidos, ou, pela atsência de diálogo, humanos de justiça econômica, de democracia com o exercício
onde o próprio dizer não é questionado, mas sempre colocado das consciências e de autonomia na produção do conhecimento
de forma pronta, conseguem, quando muito, adesões movidas superem os antigos e respectivos valores de paternalismo eco-
apenas pelo emocional, sem crítica. Infeliz e geralmente, fica nômico, de controle hegemônico movido pela propaganda ideo-
implícito que o objetivo de uma transformação radical da so- lógica e do consumismo do saber pronto. Esses valores fazem
parte de um conjunto de metas a serem atingidas.
ciedade é a simples troca de lugar entre oprimidos e opressores,
às custas de quaisquer meios. Esta visão tão comum dó ato po- Pensando em autonomia na produção do conhecimento, a
lítico da Educação é antidialética por construir-se sobre o equí- Educação Matemática, como ato político, se revela logo a partir
voco de confundir o papel da superação com o da simples subs- das atitudes do professor frente ao aprender e ao ensinar a Ma-
tituição das class:s no poder. A dignidade humana precisa ser temática.

38 39
Pensando naquelas metas sociais, de que forma poderia
o cerca, suas representações alternativas, o desenvolvimento de
se dar, neste sentido, a atuação do professor de Matemática?
seu pensamento racional, são coisas que lhe levam a formular
Como conciliar tão difícil tarefa ligada às questões sociais, com
certas heurísticas não codificadas das quais lança mão para em-
o não menos dificultoso trabalho de intermediar o acesso do
aluno ao conhecimento matemático? prestar um sentido, seja às idéias matemáticas, seja ao mundo
físico ou social, Dessa forma, a realidade útil no ensino da Ma-
A mudança social não dependerá apenas das palavras e das temática é aquilo que o aluno pensa a respeito de sua vivência,
ações do educador. O que o educador pode fazer na Escola, que é o real enquanto real pensado. E a vivência não significa só
é apenas uma fração da sociedade, é explicitar as suas crenças e o passado vivido, mas também o presente, com todas as influên-
defendê-las, possibilitando a abertura das consciências, enquan- cias do que está acontecendo ao redor de quem aprende; prin-
to estados de alerta, para as coisas àqueles com quem convive, cipalmente as influências dos conhecimentos que lhe ensina o
tendo o diálogo como um meio que lhes propicie uma nova lei- professor.
tura do mundo. E onde ser consciente significa, antes de tudo,
poder ser consciente, querer ser consciente. Sem partir da realidade, das formas como os alunos lêem
a Matemática que lhes está sendo ensinada, ou como lêem o
É necessário resgatar a Matemática que está inserida na mundo, não há como questionar, também, consegiientemente,
codificação de toda uma realidade física e social, vivenciada
a idéia do que é um probiema, de forma a colocá-la em prática
pelos educandos, e analisar junto com eles, de forma dialógica, no ensino.
os diferentes significados atribuídos e as diferentes formas de
pôr ordem nas idéias na construção desse conhecimento. “Interrogar, pois, o que é um problema, implica não apenas
considerar, mas também interrogar o que é realidade para as
O trabalho do professor de Matemática, no que diz res-
pessoas envolvidas na ação pedagógica.
peito à realidade social, pode explicitar as contradições da so-
ciedade, mas a intensidade em que tal tarefa pode se realizar O professor não vê, não dispõe dessa vivência, dessa rea-
não será a mesma que em outras ciências cujos objetos de es- lidade vivida pelo aluno. Ele pode dispor é do discurso do alu-
tudo sejam o homem e a própria sociedade. Há, entretanto, um no sobre as coisas. É através da fala e da ação deste, no fazer
certo tipo de desmistificação das relações sociais de produção, a Matemática, que ele evidencia o seu mundo. E esse mundo só
codificadas, por exemplo, nos estudos da Economia, e um certo pode ser compreendido em uma situação de intersubjetividade.
tipo de compreensão dos fenômenos físicos que cabe diretamen-
te ao professor de Matemática pela especificidade dos signifi-
cados envolvidos.
Vejo, porém, que o professor de Matemática, ao não inter-
rogar o que é esta realidade e para quem, está elegendo de
forma objetiva o que ela seria, esquecendo-se do caráter múlti-
plo e subjetivo dessa idéia.
O pensar do aluno, suas explicações acerca dos assuntos
matemáticos que estuda e acerca do mundo social ou físico que

40
41
36. PIAGET, Jean. 4 Psicologia. Trad, Maria J. Seixas. Lisboa, Liv.
Bertrand, 2º ed., 1973. (Coleção Ciências Sociais e Humanas).
37. RICOEUR, Paul. Interpretação e Ideologia. Trad. Hilton Japiassu.
Rio de Janeiro, Ed. Francisco Alves, 1977.
38. SARUP, Madan. Marxismo e Educação. Trad. Waltensir Dutra. Rio
de Janeiro, Ed. Zahar, 1980.
39. SANTOS, Irineu Ribeiro dos. Os Fundamentos Sociais da Ciência.

40.
São Paulo, Ed. Polis, 1979 (Coleção
SAVIANI, Dermeval. Educação: Do Senso
Teoria e História).
Comum à Consciência
2
Filosófica. São Paulo, Ed. Cortez, 1980.

O professor de Matemática
nas escolas de
1.º e de 2.º Graus

Maria A. V. Bicudo*
x

P sendo abordar esse tema sob


o enfoque da Filosofia da Educação, o que significa dizer que,
na medida do possível, tentarei pensar sobre o mesmo de modo
abrangente, metódico e cuidadoso. Tentarei colocar sob a luz
do meu olhar indagador o dado o-prafessor-de-Matemática-nas-
escolas-de-1.e-de-2.º-Graus e procurar compreender o que aí
está implícito e que questões para serem investigadas aparecem.
Olhando para esse dado, o-professor-de-Matemática-nas-
escolas-del .“-e-de-2.º-Graus, de imediato já surgem alguns as-

* Professora Adjunta da UNESP, 1.G.C.E., Campus de Rio Claro.


** Professora do Curso de Pós-Graduação em Matemática, Ensino
de Matemática, UNESP — Rio Claro.

44 45
pectos: ele é um professor de Matemática, trabalha em uma específica de sala-de-aula, onde outros aspectos surgem como
escola, a escola pertence a uma organização estruturada, pois relevantes que não só o do conhecimento da Matemática. Se
já aparecem os termos 1.º e 2.º Graus. Vou me deter nesses esses outros aspeotos não forem suficientemente clareados para
aspectos e tentar ver como eles se configuram na situação espe- ele, o contexto específico onde trabalha fica confuso, obscuro,
cífica de ensino de Matemática. ambíguo e ele fica com o seu sem-sentido-dos-conteúdos-do-co-
Enfocarei, inicialmente, ele-é-um-professor-de-Matemática. nhecimento-da-Matemática-e-do-seu-ensino.
O que isso significa? Agora, acrescida à questão conhecimento-da-Matemática
Procurando esse sentido, surge inicialmente nesse dado, aparece a do ensino da mesma, a qual envolve os componentes
que ele é um profissional formado, espera-se, em uma escola sala de aula, alunos. Isso quer dizer que o professor ensina a
de ensino superior onde cursou Licenciatura em Matemática alunos que se encontram. em uma sala de aula, a qual, por sua
ou em área de conhecimento afim. Esse é um dado que, por si, vez, está em uma Escola, que é uma Instituição Social. Assim,
merece estudo, pois não se pode tomar como certo que isso Alunos, Escola e Sociedade esperam que ele faça alguma coisa.
ocorre. Entretanto, como esse não é o ponto central desta aná- Porém, todos esperam a mesma coisa? Essas expectativas po-
lise, aceitarei, como sendo o mais comum, sex ele licenciado em dem ser diferentes e até antagônicas e chegarem a ele de modo
Matemática ou em área afim e passarei a deter-me no que mais confuso e através dê diversos canais e maneiras. ,
pode surgir desse fato.
Com isso, o seu sem-sentido-da-atividade-que-realiza aumen-
Sendo ele um professor de Matemática, então a Matemá- ta. É misturado a toda uma gama de ocorrências desencontradas,
tica surge como um elemento de destaque. Isto acarreta a de insatisfações para consigo mesmo, para com a profissão, para
preocupação desse professor para com a área de conhecimento com os alunos, pata com a sociedade. Insatisfações que se vol-
com a qual irá trabalhar, fazendo com que fique às voltas com tam pata o seu salário, que é péssimo, para as condições de
a Matemática vista como Ciência, ou seja, como um corpo de ensino que, em getal, são precárias, para com os alunos que
conhecimentos organizado de modo lógico e explicitado em uma aparecem para ele como indisciplinados e desinteressados, para
linguagem específica que almeja ser suficientemente objetiva com a sociedade que não valoriza o seu trabalho, para consigo
para evitar ambigiiidades. próprio, vendo-se impotente e, até, incompetente para desempe-
Essa sua preocupação é procedente. Tem sentido, pois não nhar a sua função a contento.
é possível que se queira ensinar algo a alguém sem que se co- Na busca de superar essa situação de insatisfação, de de-
nheça esse algo. sassossego, volta-se para a matriz geradora da sua formação e
Dada a complexidade da Ciência Matemática, não é difícil procura pot cursos que possam mostrar-lhe o que fazer para
que a preocupação com o seu conhecimento torne-se o foco acertar. Como a questão do conhecimento específico falou pri-
principal da atenção do professor de Matemática, pois, à medida meiro e mais alto, escolhe cursos que tratam de Matemática.
que caminha em torno dos conteúdos a ela pertinentes, come- Entretanto, isso não
2
é suficiente, pois os outros compo-
çam a aparecer dificuldades até então não percebidas e o sen- nentes da situação escolar continuam presentes e não aclarados,
tido da mesma escapa-lhe. Se o professor possuía alguma segu- não podendo, assim, aparecer o próprio sentido da Matemá-
rança, essa fica abalada ao perceber-se agindo em uma situação tica e do seu ensino.

46 47
Para que o significado do seu ser-professor-de-Matemática Além da: preocupação mais geral para com o ser do ser
surja, é preciso que se detenha no dado ser-professor-de-Matemá- do homem tem, também, a de conhecer o ser do aluno que ali
tica, procurando entender o que é próprio desse ser. está para ser auxiliado, o qual, sendo homem e podendo com-
portar-se de modo caracteristicamente humano, apresenta uma
Ser-professor-de-Matemática é, antes de tudo, ser-professor.
maneira peculiar de ser no seu cotidiano, Ou seja, o seu modo
Ser-professor é preocupar-se com o ser do aluno, tentando auxi-
de comportar-se está ligado ao mundo-vida onde vive. Com isso,
liá-lo a conhecer algo que ele, professor, já conhece e que julga
questões sobre a situação de vida desse aluno são colocados,
importante que o aluno venha a conhecer, também. Esse já co-
levando à procura de conhecimentos sobre o contexto social
nhece tem o sentido de que o professor é alguém que já possui
onde a escola está situada bem como à compreensão do próprio
pelo menos algum domínio sobre a área de conhecimento, objeto
comportar-se do aluno, ou seja, do seu portar-se-com-os-outros.
do seu ensino. Não possui o significado de que o professor
domine completamente tal área e que não esteja em situação de Dentro do campo de indagações sobre o ser do aluno en-
abrir-se a novos conhecimentos. contram-se, por exemplo, as perguntas: Quem é o homem?
Como ele se relaciona com o mundo? Como se relaciona con-
Nessa preocupação aparecem como focos merecedores de
sigo mesmo? E com os outros? Como conhece? Como expressa
atenção os dados ser-do-aluno, auxiliar-o-conhecimento-de-algo,
o seu conhecimento? Como esse aluno, com o qual o professor
considerado-importante-para-o-aluno-conhecer. está trabalhando, conhece o mundo no qual vive? Como esse
O ser-do-aluno. Para que o significado desse dado apareça, mundo se apresenta a ele, ou seja, quais significados estão pre-
é preciso que o professor pense sobre quem é o aluno o qual sentes no seu cotidiano? Como se relaciona consigo próprio e
está tentando auxiliar a conhecer Matemática. Essa pergunta com os outros com quem convive? O que importa a ele co-
orienta a procura pelo modo de ser desse aluno que é um ser nhecer?
humano. Portanto, a indagação sobre o modo de ser do ser do Essas são questões que exigem estudo cuidadoso, o qual
aluno leva à indagação sobre o modo de ser do homem. pode partir de trabalhos existentes a esse respeito, que são inú-
meros, variados quanto à visão de homem que apresentam e
Com isso, revela-se como próprio do ser-professor a preo- distribuídos ao longo da História da Filosofia Ocidental e da
cupação para com o ser do ser do homem e, então, a pergunta Oriental. Entretanto, para que tal investigação seja significativa,
antropológica quem é o homem? coloca-se para o professor. Esta é preciso que a pergunta indagadora persista ao longo de todo
pergunta vai se instalando nele como uma inquietação genera- o trabalho docente, que o professor esteja constantemente alerta
lizada, de modo difuso, na medida em que, por exemplo, não para o sentido do ser do ser do homem, tentando compreen-
compreende ou tenta explicar comportamentos dos seus alunos, dê-lo onde quer que esse homem esteja presente: em situação
de si mesmo, dos seus colegas. Diz respeito à procura pelo modo de vida, em textos que discursem sobre ele.
característico que o ser humano apresenta de viver, de expor-se, Outro dado presente na preocupação do ser-professor é o
de conhecer as coisas com as quais se depara, de questionar-se auxiliar-o-conhecimento-de-algo. Todo professor, por ser profes-
a si próprio sobre o que faz, o que pensa, o que conhece e sor, encontra-se na posição de ensinar algo a alguém. Essa po-
como conhece, de questionar o mundo, buscando compreender sição já exige clareza sobre o sentido de ensinar. Daí a pergunta
o seu significado. o que é ensinar?, a qual pode ou não ter-se colocado de modo

48 49
explícito para ele. Pode aparecer de modo confuso, no seu não que quer conhecer estão separados ou unidos na relação do
saber como proceder ao tentar ensinar o que pretende, perden- conhecimento? Existe um conhecimento objetivo? Existe um
do-se na escolha de métodos de ensino; no seu não saber como conhecimento subjetivo? Como o ser cognoscente explicita o co-
e'por que avaliar o que o aluno trabalhou a partir do que se nhecido? Como o outro com quem convive pode chegar a en-
propôs ensinar, perdendo-se na grande variedade de testes e de tender aquilo que expressa através da linguagem? Como o ser
provas de avaliação. Mas ela está presente no seu cotidiano. E, huimano conhece o objeto específico estudado pela área de co-
por ser fundamental para o aparecimento do sentido do ser- nhecimento com a qual o professor trabalha na situação de
professor, deve ser analisada. ensino?

Essa não é uma pergunta ingênua, nem engendra uma res- Tais perguntas apontam o caminho da reflexão sobre o sen-
posta fácil. Ensinar está ligado a aprender, a conhecer, na me- tido do ato de ensinar. Esta reflexão indica que o ensinar está
dida em que se pretende que o que é ensinado seja aprendido. ligado ao conhecer. E que o conhecer, por sua vez, está ligado
Mas ensinar e aprender são atos diferentes, realizados por pes- ao conhecido, pois o conhecido é o passado daquilo que em
soas diferentes e um não é garantia do outro. Isto é, o conheci- um certo momento foi o presente do ato de conhecer. Assim, o
mento de algo que alguém possa ter não é, necessariamente, conhecido traz em si a presença de um ato criador, gerador
fruto de ensino e ensinar algo a alguém não é garantia que esse do conhecimento, de uma lógica a ele peculiar, de um certo
alguém venha a conhecer esse algo que foi ensinado. Assim, modo característico de expressão, de comunicação e de possi-
pelo ato de aprender, o significado. de ensino não é clareado. bilidade de entendimento. Desse modo, o sentido do ensinar-
" Apenas mostta que o ensinar traz implícita a preocupação para algo-a-alguém começa a mostrar-se. O professor ensina algo ao
com o conhecer de alguém. Isso significa que a intenção do ato seu aluno, ou seja, ensina algo que conhece e julga importante
de ensinar volta-se para o ser do outro, pois envolve a pretensão que o outro também venha a conhecer.
de que esse outro venha, também, a conhecer aquilo que aquele
Assim, o conhecimesto sobre o corpo de conhecimentos a
que ensina conhece e julga importante ser ensinado.
ser ensinado surge como um foco merecedor de atenção para
Significa, ainda, que ensinar está indissoluvelmente ligado a atividade ensino. Tal atividade exige que o professor conheça
a conhecer, pois ensinar implica um certo modo de comportar-se a realidade do objetivo específico da área de conhecimento com
frente ao aluno, visando o seu conhecimento do corpo de co- a qual trabalha. Na busca deste conhecimento aparecem inda-
nhecimentos que está sendo ensinado. Com isso, fica nítida a gações sobre o ser dessa área, como ela se mostra, ou seja,
importância do entendimento de como o ser humano conhece quais são as suas afirmações básicas (proposições fundamentais),
para a explicitação do sentido de ensinar, Fica claro, também, quais as teorias que a sustentam, qual o seu significado no
que a concepção de conhecimento está subjacente ao modo pelo mundo humano, o que ela revela desse mundo, como procede
qual o professor ensina, bem como ao modo pelo qual avalia o para gerar os conhecimentos que agrupa de modo lógico no que
que o aluno elaborou a partir do ensinado. é denominado de corpo de conhecimentos ou teoria, como
expressa seus conhecimentos, ou seja, qual o modo de expressão
Quando se focaliza a questão do conhecimento, aparecem
perguntas tais quais: Como o ser humano conhece? Como con- específico de que se utiliza para comunicar o percebido e o
segue aproximar-se daquilo que quer conhecer? Ele e o objeto conhecido sobre o mundo.

50 51
Essas questões orientam para o conteúdo a ser ensinado, É a partir desse significado que o considerado-importante-
clamando pelo entendimento do significado do corpo de conhe- que-o-outro-venha-a-conhecer se mostra. É fundamental que o
cimentos com o qual o professor trabalha, da lógica subjacente professor ajude o aluno a des-vendar, tirar a venda do mundo.
ao mesmo, da linguagem para expressar o que revela sobre o Sendo o que ensina uma das formas desse desvendamento, aí
mundo, da fórma pela qual esse conhecimento se origina no se encontra a importância do seu ensino.
pensamento humano. A compreensão desses aspectos permite
Desse modo, o ser-professor-de-Matemática envolve o enten-
ao professor auxiliar a aprendizagem do aluno, pois, estando
dimento. do ser do ser humano e do ser da própria Matemática,
claro para si o campo do corpo de conhecimentos com o qual
vista como um corpo de conhecimentos organizado segundo uma
trabalha, a lógica a ele pertinente, o seu núcleo básico de signi-
lógica específica, possuidor de uma linguagem peculiar de ex-
ficado, poderá ajudar o outro (o aluno) a trilhar caminhos que
pressão, revelador de certos aspectos do mundo. Aspectos esses
também o levem a compreender aquele significado. Poderá,
que não são isolados de outros desvendados por outras áreas
ainda, vir a perceber outros caminhos que talvez sejam esbo-
do conhecimento. E nem são apresentados num bloco uno, pois,
çados no próprio pensar do aluno, tornando possível o fluir do
embora a Matemática seja uma ciência possuidora de uma uni-
que aí está sendo gerado, o que, por sua vez, deve ser analisado
dade conferida, por aquilo que revela sobre o mundo, apresenta,
à luz do significado do corpo de conhecimentos
em questão.
dentro de si, áreas que se dedicam, cada qual, a aspectos mais
O ser-professor traz, portanto, em seu bojo, tanto a preo- particulares daquilo que estuda. Assim, apresenta diferentes
cupação para com o modo de ser e de conhecer do aluno como modos de trabalhar e de expressar o conhecido, os quais devem
pata com o do ser e do conhecer do corpo de conhecimentos ser entendidos à luz da sua unidade e em relação às outras áreas
humano, objeto do seu ensino. É preciso, assim, que o professor do conhecimento humano.
tenha claro para si o que essa área diz do mundo, o que revela Compreendendo que a Matemática revela certos aspectos
sobre ele, como explicita o que revela, como são gerados os do mundo e que existem outras áreas de conhecimento que re-
seus conhecimentos, como os mesmos são perpetuados na tra- velam outros aspectos, o professor de Matemática não pode
dição cultural da humanidade e são transmitidos em uma cadeia olhá-la como isolada, como algo que existe por si, sem relação
sem fim de contatos humanos na qual sempre existem centelhas alguma com o homem, com o mundo humano e com aquilo que
de pensamento criativo e de abertura para o original. o homem conhece desse mundo.

Esse pensar, que é meditativo, leva à compreensão do sig- Tendo clareado o sentido do ser-professor-de-Matemática,
nificado do corpo de conhecimentos, objeto da consciência aten- permanece para ser esclarecido o de ser-professor-de-Matemá-
tiva do professor. Tal pensar não prescinde da transmissão do ticas-nas-escolas-de-1.“-e-de-2.º-Graus. O que isso revela sobre
conhecimento efetuado do modo tradicional, através de livros, sua atividade? Revela, num primeiro olhar, que ele é um pro-
de cursos, de obras de autores importantes. Mas não pára aí. fessor que trabalha em uma escola pertencente, por sua vez, a
Antes, faz disso o dado sobre o qual parte para entender o uma organização escolar, a qual se insere em uma organização
sentido do que está sendo conhecido. E esse sentido surge, na maior, a sociedade.
sua clareza, quando aquele que pensa capta naquilo que o que Enfocarei, inicialmente, o dado projessor-de-Matemática-
está estudando revela sobre o ser do mundo. que-trabalha-em-uma-organização-escolar. Isso significa que ele

52 53
1

não trabalha isoladamente, tendo em vista apenas o aluno e a muito fregiente, fica obscurido na aparência dos próprios obje-
Matemática, mas que trabalha em um local-escola onde se en- tivos escolares, dos conteúdos ensinados, da metodologia já
contram muitos alunos e muitos professores, de Matemática usada, dos valores trabalhados nas avaliações escolares, das
ou não. propostas pedagógicas. É preciso uma análise atenta, rigorosa e
lúcida para que, além da aparência, se capte a Ideologia que
A escola aparece como um espaço físico e psicossocial
está sendo trabalhada. Somente então é possível transcendê-a.
onde professores e alunos se encontram. É organizada de tal
modo que possa promover ensino e, como consequência, Edu- Essa é a rede de emaranhados de sentidos na qual o pro-
cação. Assim, o professor de Matemática se vê em um contexto fessor de Matemática é posto para trabalhar. Novamente, por
social complexo, pois existe dentro da escola na qual trabalha faltar-lhe lucidez a respeito da sua atividade, pode fechar-se
toda uma organização em termos de distribuição de áreas de no ensino da Matemática, ainda que agora enriquecido pela
conhecimentos e respectivas disciplinas e atividades a serem sua atenção para com o ser do ser do aluno e para com o set
desenvolvidas, as quais compõem o currículo escolar do curso da Matemática. Mas isso não é o bastante para que o significa-
em que ensina; da quantidade de horas disponíveis para sua do do ser-professor-de-Matemática-em-uma-escola-de-1
.º-e-de-2.º-
atividade específica; de modos de avaliação do rendimento Graus apareça. Para tanto, é preciso que se situe junto aos
escolar e de outros componentes diretamente ligados ao seu demais professores presentes na escola, procurando compteen-
fazer enquanto professor. der que todos ali estão para buscar, em seus modos específicos
Entretanto, esses componentes do currículo escolar nem
de ser e de conhecer, desvendar o mundo para si e para os
alunos. Procurando, ainda, captar as ideologias presentes na- |
sempre se apresentam harmonicamente relacionados, quando
quilo que a escola faz e mesmo os modos pelos quais é visto
objetos de um primeiro olhar. Na sua aparência superficial, a
e aplicado o corpo de conhecimentos com o qual trabalha. Daí
realidade escolar é densa e o seu sentido, difícil de ser com-
a importância de, se possível, em conjunto com os professores
preendido. Seu significado pode perder-se no desencontro entre
que trabalham no currículo do curso onde ensina, sé não isola-
as pessoas que ali estão e no das atividades que realizam, as
damente, refletir sobre o sentido do próprio curso e do de cada
quais, muitas vezes, parecem peças da engrenagem de uma má-
disciplina que ali está presente, bem como dos objetivos a
quina que funciona apenas por funcionar, sem visar a um fim.
serem visados, dos procedimentos mais adequados para auxiliar
Mesmo quando os fins educacionais do currículo com o a aprendizagem do aluno e dos modos de avaliação do rendi-
qual a escola trabalha estão nitidamente traçados e os proce- mento escolar que permitam uma retomada do que foi visado
dimentos que visam a desenvolvê-los distintamente delineados, no curso e do que foi trabalhado pelo aluno.
o sentido da sua atividade educadora pode ser mascarado,
A partir dessa reflexão, o sentido do seu trabalho na es-
obscurecido, se as ideologias a eles subjacentes não forem des-
cola começa a clarear. Entretanto não é suficiente para a sua
vendadas e trazidas ao conhecimento lúcido daqueles que nela
percepção do ser-professor, profissional que trabalha em um
trabalham. Isso significa que subjacente ao currículo escolar
contexto social. É preciso que entenda que a escola onde leciona
existem ideologias, modos de ver e de entender as atividades
não é isolada, mas que ela também faz parte de uma organi-
desenvolvidas na escola e seus respectivos fins e objetivos. En-
zação mais ampla — a sociedade. Que entenda que é estrutu-
tretanto, nem sempre os fins a que servem as ações educadoras
rada de tal modo que as expectativas dessa sociedade, em
realizadas na escola são de conhecimento fácil. O seu sentido,

55
54
relação à formação do ser humano — o cidadão — que a ela BIBLIOGRAFIA
pertence, transparecem na própria organização escolar, nas ver- - HEIDEGGER, M. Being and Time. New York, Harper
bas que destina à Escola, no cuidado que dispensa à Educação. Publishers, 1962.
& Row

Assim, O seu ensinar Matemática, dentro de uma sala de - HEIDEGGER, M. Discourse on Thinking.
New York, Harper Torch-
books, 1966.
aula, para alunos determinados, pertencentes a um contexto
- GREEN, T. E. The Activities of Teaching. New Tork,
específico, transcende a realidade vivida por ele próprio junto McGraw-Hill
Books, 1971.
aos seus alunos, ao ser esse ensinar atingido pelas expectativas
- PHENIX, P. H. The Realms of Meani
e ações da organização social maior. ng. New York, McGraw-Hill
Book Co., 1964.
E é nessa relação sala-de-aula<>Escola<>Sociedade que o
político explicita-se no pedagógico. Não se trata aqui de uma
política partidária, mas do político enquanto uma ação que visa
a fins relacionados à formação do homem, do cidadão, e de uma
Sociedade humana justa em termos de ser organizada de ma-
neira a possibilitar o fluir pleno das possibilidades do modo
de ser desse homem no mundo.
Essa percepção do campo do seu fazer permite ao pro-

ia
fessor entender-se enquanto tal e às suas possibilidades. Permi-

e
-—
te-lhe refletir sobre as suas ações e conscientemente agir de
modo político, dando pleno sentido ao pedagógico, uma vez
que a importância do sey ensino surge no contexto do co-
nhecimento humano do mundo e no da importância que esse
conhecimento possui na sociedade na qual vive e trabalha.
Permite-lhe, ainda, lutar politicamente para auxiliar a sociedade
a entender o sentido da Educação e, consequentemente, destinar
a ela mais cuidados traduzidos em melhores verbas para as
instituições educacionais e salários dos profissionais que nela
trabalham.

57
Apenas tabuadas. o.

Maria Cecília.de Oliveira Micotti*


dk

A, dificuldades relativas ao es-


tudo das tabuadas é assunto que ultrapassa o ambiente escolar
e, às vezes, chega até os meios de comunicação.
Memorizar é2 a medida indicada. Os argumentos variam
desde o simples não há outro jeito às justificativas baseadas no
papel da memória na vida humana,
As causas não são questionadas.
No ensino predominam leituras das sentenças matemáti-
cas, geralmente exemplificadas com desenhos. Cada tabela re-

* Professora Adjunta do Departamento de Educação do Instituto


de Biociências — UNESP — Rio Claro.
** Professora do Curso de Pós-Graduação em Matemática, Ensino
de Matemática, UNESP — Rio Claro.

59
ferese a uma modalidade de operação e seus componentes são Como as crianças geralmente sabem contar, são feitos apenas
vistos como novos, mesmo os já estudados. exercícios de. escrita de numerais e de correspondência entre
eles e desenhos.
Os procedimentos permanecem, apesar do insucesso face
às sentenças deslocadas da ordem fixa ou às alterações na Sobre a construção do número, PIAGET & INHELDER
ordem de uma mesma sentença ou, ainda, em sua aplicação. (6:142-3) assinalam que neste, como aliás em outros casos,
cabe desconfiar das aparências verbais. A aprendizagem verbal
Os critérios para avaliar são pouco discutidos.
é insuficiente, embora possa auxiliar o processo. À criança, em
Não saber tabuada é o rótulo para o fracasso nos resulta- certo nível de desenvolvimento, considera iguais duas fileiras
dos de operações, enquanto que o saber é atribuído às respostas de cinco fichas postas em visível correspondência, termo a
corretas, embora automáticas. termo, mas as considerará desiguais, quando as fichas das extre-
midades de uma delas forem afastadas um pouco. Neste caso,
A observação revela que os alunos bem sucedidos em cál-
a numeração oral serve para individualizar os elementos, mas
culos e em raciocínios mais sofisticados são os que conseguem
não implica a idéia de que o todo seja igual à soma das partes,
compreender.
nem que se conserve, independente da disposição espacial dos
A evasão escolar e o sucesso relativo de parte da clientela componentes.
deslocam o enfoque dos fracassos, situando-os na aprendizagem,
Como o número é irredutível à contagem, repetir ou dar
ao invés de situá-los no ensino.
resultados de operações não expressa, necessariamente, domínio
A defesa do saber de cor conhecimentos fundamentais re- dessas qperações.
vela concepções educativas que, ao acentuarem o produto final,
A criança pode repetir de cor relações numéricas ainda
em prejuízo do processo que lhe dá origem, favorecem as defa-
que, em seu entender, a quantidade de um grupo de objetos
sagens entre ensino e experiências vividas.
postos à sua frente varie com a disposição espacial e o todo
A ênfase nas respostas corretas, na prática, funciona como deixe de ser visto como soma das partes. Isto explica as difi-
mecanismo discriminador; sua validade restringe-se aos alunos culdades em aplicar estas aquisições em cálculos.
que já dominam o significado do assunto e, portanto, O com-
preendem. Como o ensino, comumente, se pauta pelo aluno mé- Ausência ou dificuldades com a noção de número impedem
dio ideal, fica sem significado para grande parte da clientela. a compreensão das relações numéricas, da mesma forma que
Daí o recurso à decoração. seu domínio as facilita,

A rigor, a possibilidade de compreender ou a necessidade Segundo PIAGET (4:153-4), a construção do sistema nu-
de decorar retratam as diferenças de nível de exigências que o mérico é simultânea à dos agrupamentos de classes e relações,
ensino, aparentemente uniforme, faz. pois os primeiros números — anteriores a esses agrupamen-
tos — são intuitivos, presos às configurações perceptivas.
O enfoque deste assunto, a partir da teoria de Piaget e
colaboradores, sugere que as dificuldades com as tabuadas se- As operações constitutivas do número (a correspondência
jam manifestações de outras, mais profundas. Com efeito, O termo a termo, com conservação de equivalência apesar de
ensino da Matemática pressupõe o domínio da noção de número. mudanças de disposição dos objetos, a iteração da unidade

60 61
1+1=2;2 + 1 =õg3,ete.) envolvem os agrupamentos A adição, que corresponde à reunião aritmética das partes
aditivos de classes e a seriação das relações assimétricas — em um mesmo todo, compõe-se com a subtração, construção
ordem. Isto permite à unidade ser simultaneamente elemento reversível e assim afirmam-se em termos operatórios.
de classe — um está contido em dois, dois em três, etc. e da A passagem da composição aditiva à multiplicativa se com-
série — o primeiro um antes do segundo um, etc. pleta com a conservação da igualdade de duas partes conside-
O desenvolvimento dos esquemas numéricos permite en- radas como unidades e com o estabelecimento de igualdade
carar uma coleção de objetos como sendo, ao mesmo tempo, entre a soma das partes e o todo inicial,
equivalentes e seriáveis; as diferenças entre eles resumem-se na
A multiplicação aritmética, sendo uma distribuição eqiita-
posição da ordem de contagem. A reunião de diferenciação
tiva, tal que em n x m tem-se n coleções de m termos ou m
com a equivalência (posto que as qualidades das coisas são
coleções de n termos correspondentes entre si de forma biuní-
desconsideradas) permite constituir a unidade homogênea um e
voca, a adição A: + As = 2A constitui uma multiplicação,
isto corre ao mesmo tempo que a constituição das operações
onde a coleção A; é duplicada pela outra coleção A> que lhe
lógicas. Deste modo, classes, relações e número compõem um
- corresponde biunívoca e reciprocamente. Disto decorre a divisão
todo psicológico e logicamente indissociável.
aritmética 2A: 2 = A. Sobre o assunto, veja PIAGET & SZF-
A construção do número mostra-se como necessária aos MINSKA (7:24).
conhecimentos organizados nas tabuádas, não só porque estes Se o número implica as operações elementares, os proble-
incidem sobre determinadas operações numéricas, mas porque mas na aplicação destas em determinadas quantidades expressas
o próprio número implica tais operações. em sentenças organizadas em tabuadas, podem ser resultantes
Segundo PIAGET & SZEMINSKA (7:198-9), a construção de ausência vu desenvolvimento incompleto dele. Neste contexto,
do sistema numérico completa-se com a descoberta das opera- as medidas com vistas à sua elaboração assumem particular
ções aditivas e multiplicativas. importância para o educador.

Um número qualquer inclui composição aditiva, reunindo, Quanto ao fazer a criança aprender a contar, de acordo
em totalidades, elementos esparsos ou decompondo um total em com PIAGET (4:153), a numeração falada independe das ope-
partes. rações numéricas. Revela a experiência que estas tanto podem
precedê-la como sucedê-la, sem ligação necessária entre elas.
A correspondência termo a termo, entre duas ou mais co-
leções, quando estabelecida, apesar de mudanças de configura- Quando as operações são construídas no plano prático é
ção — mediante conservação da equivalência — implica uma que a numeração falada assume significado propriamente nu-
forma elementar de multiplicação. mérico. Veja-se PIAGET & SZEMINSKA (7:88-9).
Do exposto, depreende-se que a própria noção de número Do exposto, decorre que ensinar apenas as representações
envolve a de operações aritméticas, posto que se completa com verbais ou escritas das operações é privilegiar os alunos que
as operações aditivas e multiplicativas. Estas, por sua vez, são dispõem, entre outros fatores, de suficientes experiências prá-
solidárias, de modo que a conquista de uma implica a da outra. ticas, em prejuízo dos demais.

62 63
O ensino restrito às atividades verbais ou com papel e o grupos de quatro objetos e apresentariam o total equiva-
é discriminador, apesar de aparentemente dispensar o
lápis ente.
mesmo tratamento didático à todos os alunos. Este ensino, ao
que se apoia em certas noções, as ignora. o cm confronto com o recitar, estes procedimentos parecem
mesmo tempo em
inova ares Entretanto, sua validade é questionável, exceto para
Resta saber como propiciar sua elaboração.
parte os alunos. Para a maioria, talvez constituam apenas ex-
A experiência lógico-matemática baseia-se, de acordo com periências particulares.
sobre os
PIAGET (3:242-76), nas ações que a pessoa exerce
nos As diferenças entre experiências psicológicas
objetos, diferentemente da experiência física, que se baseia e lógico-ma-
temáticas aclaram essas restrições.
próprios objetos.
A experiência psicológica baseia-se, segundo PIAGET
Constitui experiência física a descoberta de que um pedre-
(3:251), em aspectos particulares de qualquer ação — rir
gulho grande pesa mais que outro pequeno. A pessoa age sobre
pro- colher uma flor, etc., com introspecção ou tomada de consiso
eles, segura cada um para avaliar seu peso € descobre suas
e quando cia de caracteres subjetivos — facilidade ou dificuldade pre-
priedades, que são anteriores à avaliação. É diferent sença ou ausência de imagens mentais.
a pessoa enfileira cinco pedras € descobre que o total é o mesmo,
contando-se da esquerda para a direita ou vice-versa. Este caso . A experiência lógico-matemática baseia-se em esquemas de
constitui experiência lógico-matemática, por apoiar-se nas rela- ação — conjunto estruturado dos caracteres generalizáveis desta
ções entre os atos de ordenar € de reunir em um total, e não ação, que permitem repeti-la ou aplicá-la em novos conteúdos
nas pedras como tais. A ordem linear não existe nos objetos (o esquema é imperceptível, percebe-se a ação, mas não o es-
quema, tomando-se consciência de suas implicações repetindo-se
antes de serem infileirados e a soma depende da ação de reunir.
e comparando-se resultados).
A descoberta é a de que o resultado do ato de reunir inde-
ão
pende da sequência seguida na ação de ordenar. A abstraç º Mediante abstração, procedentes da coordenação geral das
se dá a partir da atividade exercida sobre os objetos, sem con- ações, as operações se constituem. Sobre o assunto, PIAGET
siderar as qualidades deles. (5:77) observa que as operações de ordenar originam-se dessas
coordenações, A descoberta de certa ordem numa série de obje-
O enfoque das características da experiência lógico-mate- tos ou segiiência de fatos depende da capacidade de registrar
mática, face à realidade escolar, sugere O exercício de tarefas
de a ordem por meio de ações, desde os movimentos dos olhos até
correspondentes aos conhecimentos visados como proposta
que o total inde- a recomposição manual, que também são ordenadas.
ensino. Segundo esta perspectiva, a noção de
ando-se
pende do início da contagem pode ser ensinada, solicit . A ordem objetiva é conhecida através da ordem inerente
, da direita para a esquerd a e
contagens sucessivas de objetos às próprias ações.
vice-versa.
Reunir, dissociar, ordenar, estabelecer correspondência são
de
As dificuldades com as tabuadas se resolveriam através o ponto de partida de operações elementares de classes e rela-
ditados de ações de separar, juntar ou distrib uir coisas. Por
ções, Seus esquemas exprimem coordenações gerais de todas as
iam
exemplo, diante da sentença 3 X 4 = 12,0s alunos compor ações cujas leis independem de atos particulares do indivíduo.

64
65
Deste modo, a experiência lógico-matemática, embora en-
respostas dadas pelo sujeito a um conjunto de estímulos ante-
volva comprovação dos resultados da ação, a leitura ou inter- tiores e atuais.” — PIAGET (2:27-67). Como a aprendizagem
pretação destes resultados requer ações baseadas nos mesmos
não parte do zero, tanto a assimilação (processo de incorporar
esquemas que os originam. dados aos esquemas) quanto a acomodação (processo de modi-
Vê-se que é inútil pretender ensinar determinadas noções, ficar esquemas para compensar as perturbações do meio) de-
estruturando-se situações que as configurem. pendem dos esquemas de ação disponíveis, as diferenças de
desenvolvimento entre as crianças requerem medidas para asse-
Novos conhecimentos ocorrem mediante abstrações que gurar aproveitamento por parte de todas.
comportam uma parte de construção cujo efeito é o de traduzir
o esquema e suas implicações em pré-operações ou operações Neste sentido, é fundamental distinguir a experiência lógico-
conscientes. Estas, estruturando-se, permitem ao sujeito, deduti- matemática desenvolvida e orientada por necessidades e inte-
vamente, por reflexão, ultrapassar a ação momentânea. resses próprios dos procedimentos tradicionais impostos pela
escola, Vale lembrar a limitação à contagem e escrita de nume-
É somente com o acesso ao pensamento operatório que é rais no ensino inicial de Matemática.
possível substituir as experiências ou procedimentos empíricos
pela dedução. O contraste entre modalidades de conhecimento e suas im-
plicações permite refletir sobre as finalidades educacionais a
Enfim, o pensamento lógico-matemático ultrapassa a reali- que servem e identificar as atuações correspondentes.
zação de exercícios com objetos, restritos a algumas situações
particulares. Pressupõe atividades em diferentes contextos e mo- O ensino com vistas ao conhecimento lógico-matemático
mentos, orientadas pelas necessidades cognitivas do sujeito. Em- dispensa a proposta de objetivos a prazo fixo.
bora comporte leitura dos resultados de ação, esta leitura Como o exercício de raciocínio é individual, requer des-
pressupõe conhecimentos correspondentes aos necessários para padronização do ensino, mediante trabalho didático desvinculado
obtê-los, daí à pouca utilidade das tentativas de transmitir, por de pré-requisitos, portanto voltado para todas as crianças e não
demonstração, este conhecimento, verbalmente ou por ilustra-
apenas para o aluno médio ideal.
ções. O encadeamento do raciocínio com base em argumentos
lógicos pressupõe o acesso ao pensamento operatório que viabi- Neste caso, colocam-se como alternativas as atividades que
liza a dedução e é posterior à elaboração do sistema numérico. as crianças desenvolvem espontaneamente com as coisás. Sem
objetivos previamente descritos pelo professor, são importan-
O problema que se coloca para o educador é o de encon- tes para elas. Espontâneas, cada uma tem seu próprio ponto
trar perspectivas didáticas com vistas à noção de número que
de partida, diversificam-se.
superem as atuais defasagens entre a escola e o contexto sócio-
cultural de sua clientela. As atividades livres dispensam roteiro determinado pelo
professor. Cabe à escola providenciar material de apoio (sucata)
As buscas de novas perspectivas para o ensino devem con- suficientemente numeroso para várias repetições e correspon-
siderar que a aprendizagem, “em sentido amplo constitui pro- dências, e diversificado, para que a ação se desprenda de obje-
cesso adaptativo que se desenvolve no tempo, em função de
tos específicos.
66
67
A ausência de roteiro significa apenas que o aluno é livre mentos com cada grupo ou (dependendo dos progressos) com
para deter-se nos aspectos que quiser e explorar a situação a a classe toda.
seu modo. As relações que estabelece entre os objetos e as ações
a que os submete são de sua escolha. Dominadas as relações entre partes e todo com conserva-
ção do total independente da distribuição de seus componentes,
O desempenho didático pressupõe orientação geral — de- faz sentido o estudo dirigido dos chamados fatos fundamentais
corrente do estudo das 'construções matemáticas pela criança — relativos às quatro operações e. sua organização em. tabelas.
confronto do desempenho infantil face à segtiência dessa cons-
Incluem-se, aqui, os exercícios de explorar as possibilida-
trução para identificar as estruturas cognitivas subjacentes à
des de formar, com certo número de objetos, grupos com dife-
ação, organização de situações que propiciem conflitos cogniti-
rentes quantidades de elementos.
vos. Por exemplo, se as relações assimétricas estiverem em jogo,
é interessante dispor de materiais adequados para seu estabele- Ao evidenciar em um total, a relação entre quantidade de
cimento e questionar sobre atos ou aspectos do trabalho. grupos e a de elementos reunidos em cada grupo, estes exercí-
cios colocam em jogo as quatro operações mediante reunião,
O conteúdo programático desenvolveu-se naturalmente em
separação, distribuição e repetição. Destacam-se, assim, as ca-
trabalhos com material concreto (tampinhas, caixas, palitos, etc.
tacterísticas operatórias referentes à reversibilidade e associati-
de cores e tamanhos variáveis). vidade.
Brincando com os objetos, a criança os agrupa, compara, A avaliação do ensino no decorrer de situações concretas,
analisa, submete-os a tratamentos diversos — emparelha, esta-
assume caráter contínuo e de reajustamento. As ações, ao reve-
belece correspondência, reúne, separa, ordena de acordo com
larem dificuldades ou sucesso, indicam as necessidades de mu-
diferentes critérios.
danças na otientação do trabalho.
O professor, observando, informa-se sobre a pesquisa do
Hoje é possível que as propostas de um espaço para ativi-
aprendiz e as suas estruturas cognitivas. Situações concretas
dades livres na escola e de um ensino centrado nas atividades
tornam a comunicação mais objetiva. A interação professor-
dos alunos sejam vistas com restrições. Aparentemente, elas
aluno, por ser diferenciada, torna-se mais produtiva.
contestam a importância da escola e podem ser apontadas como
As atividades individuais completam-se com outras, em pe- fator de desordens, o que não as invalida.
quenos grupos; progridem os conflitos cognitivos, propostos a
partir do desempenho observado em confronto com a construção Ao corresponder às necessidades individuais, o trabalho in-
do sistema numérico. teressa por si mesmo e, após o impacto da novidade, absorve
toda a atenção.
Gradativamente, essas situações são representadas através
de desenhos, seja pelo contoino dos objetos, seja por traço livre Dada a importância das atividades livres e do ensino cen-
e, mais tarde, de acordo com as. convenções. trado no aluno para a educação pré-escolar e séries iniciais do
1.º Grau, os conhecimentos que os fundamentam, bem como o
O trabalho individual e em grupo conduz à sistematização desempenho didático correspondente, requerem cuidados espe-
de experiências, organizando-se a representação dos conheci- ciais por parie dos cursos de formação para o magistério.

68 69
BIBLIOGRAFIA
Do ponto de vista da realidade escolar, as mudanças didá-
ticas envolvem reflexão pedagógica e, principalmente, mudanças 1. EISNER, E. W. The educational imagination. New York, Macanil-
lan, 1979.
práticas. Envolvem colaboração entre docentes, para que a escola
2. PIAGET, Jean. Apprentissage et connaissance. In PIAGET, Jean
reafirme seu compromisso com a aprendizagem para todas as & GRECO, Pierre. Apprentissage et connaissance. Etudes D'Episté-
crianças, . , mologie Génétique. Paris, PUF, 1959, v. VII.

E as tabuadas serão, apenas, tabuadas.. 3. PIAGET, Jean. Les problêmes psychologiques de la pensée pure.
In: GETH, E. W. & PIAGET, Jean. Epistemologie, Mathématique et
Psychologie: Estudes D'Epistémologie gênétique. Paris, PUF, 1961,
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4. PIAGET, Jean. La psychologie de Vintelligence. Paris, Armand Co-
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de Menezes. Rio de Janeiro, Forense, 1963. y. 3.
6. PIAGET, Jean & SZEMINSKA, A. La genêse du nombre chez
Venfant. Neuchâtel, Delachaux et Niestlé, 1941.

7
70
4

Ação pedagógica
e Etnomatemática como
marcos conceituais para
o ensino de Matemática

por Ubiratan D'Ambrosio**

N este trabalho é desenvolvida a


noção de ação pedagógica, a partir de reflexões sobre teoria e
prática e um conceito de currículo que -dériva do modelo cíclico
de comportamento: “realidade -—- indivíduo — ação — reali-
dade” (ver [D'Ambrósio, 1985]). Nós nos referimos de maneira
especial ao ensino de Ciências, abrangendo o ensino de Mate-
mática. Embora reconheçamos especificidades no ensino de Ma:
temática com relação ao ensino de Ciências; nossa tendênciaé

x Coordenador dos Institutos da UNICAMP.


“** Professor do Curso dé Pós-Graduação em Matemática, Ensino
de Matemática, L.G:CE,, UNESP — Rio Claro.

73
manifestadamente favorável à integração. Há mais de 10 anos (psitacismo: repetição de frases ou palavras desprovidas de sen-
temos defendido uma integração entre ensino de Ciências e de tido; psitacídeo: papagaio). Mas a capacidade de se comunicar
Matemática. Como esperávamos e predizíamos em [D'Ambrosio, através dos sons, palavras e frases articuladas é outra coisa.
1974], “a integração total (que) só poderá ser atingida quando E isto se aprende (ver, por exemplo, o filme O Enigma de
Kasper Hauser, de W. Herzog) e representou um importante
as primeitas gerações de alunos da escola primária iniciados no
estágio na evolução da humanidade (ver por exemplo, a lin-
ensino integrado, constituírem a geração docente. É um processo
longo, o de integrar o que vem sendo desintegrado há séculos.” guagem criada para o filme A guerra do. fogo, por Anthony
Já estamos identificando mudanças de atitudes, os primeiros Burgess).
pássaros que o navegante vê quando se aproxima de terra firme! Por que a comparação de Ciências e Matemática com o fa-
Apesar disso, vamos nos referir mais especificamente à Edu- lar? Esperamos destacar assim dois pontos fundamentais, quais
cação Matemática ao longo do trabalho. sejam, o fato de a Ciência, em particular a Matemática, ser
Discutimos ainda, algumas questões básicas que se referem uma linguagem (mais fina e precisa que a linguagem natural)
especificamente à etnomatemática e à sua pedagogização. O que permite ao homem comunicar-se sobre fenômenos naturais.
texto é essencialmente aquele que foi publicado na revista For Consegiientemente, desenvolve-se na história da humanidade
the learning of Mathematics vol. 5, n.º 1, em fevereiro de 1985, desde os “sons” mais elementares e, portanto, intimamente li-
p. 44-48, sob título “Ethnomathematics and its place in the gada ao contexto sócio-cultural em que se desenvolve — por
History and Pedagogy of Mathematics”. Agradeço à Ocsana isso falamos em Ciência grega, Ciência hindu, Ciência pré-co-
Danyluk, Maria Dolis e Regina de Buriasco pela tradução. lombiana. Daí a relevância da referência ao filme “A guerra
do fogo”. Ainda à semelhança da linguagem, Ciência aprende-
se, melhor diríamos, absorve-se, por um processo natural, po-
4.1. Ciência e Educação como ação deríamos mesmo dizer “osmótico”, resultante da vida em so-
cicdade e de exposição mútua entre indivíduos, da mesma
Uma das preliminares que se colocam ao tema é simples- maneira como a linguagem. E daí a relevância da referência
mente perguntar se, efetivamente, Educação Científica e Educa- ao filme “O Enigma de Kasper Hauser”. Sua lógica — a de
ção Matemática são, em si, disciplinas. Sem dúvida, Educação Kasper Hauser — é muito peculiar. Desenvolveu-se sem a ex-
Científica poderia ser caracterizada como uma atividade mul- posição aos grupos sociais e etários que seriam típicos daquela
tidisciplinar e que se pratica com um. objetivo geral bem es- sociedade, naquela época. Com isso, ele raciocinava de maneira
pecífico -—— transmitir conhecimentos, habilidades e atitudes diferente — e podemos inferir daí que suas atitudes e habilida-
científicas — através dos sistemas educativos (formal, não for- des científicas também haveriam de ser diferentes. Isto se ilus-
mal e informal). O questionamento se põe, então, em. outros tra muito bein na entrevista que ele mantém com o Professor
termos. Como, e o que são esses conhecimentos, habilidadese que procura verificar se Kasper Hauser é normalmente inteli-
atitudes. científicas? Não estariam. eles na mesma categoria do gente!
falar? Haveria uma educação para falar, no sentido acima, isto
Ora, demacamos acima dois elementos essenciais na eve:
é, transmitir, através de sistemas educativos, a “capacidade de
lução. da Ciência e no seu ensino, que a coloca: fortemente
falar — isto é, utilizar-se a linguagem como meio de comuni-
artaigada a fatores sócio-culturais. Isto nos conduz a atribuir
cação? Naturalmente, podemos pensar numa educação psitácica

15
74
à Ciência e, em. particular à Matemática, o caráter de uma ati- pela Idade Média. Os tratados medievais de Geometria prática
vidade inerente ao ser humano, praticada com plena esponta- mostram claramente a finalidade imediatista da Matemática
neidade, resultante de seu ambiente sócio-cultural e, consegiien- destinada a um público muito específico [Victor, 1979], em-
temente, determinada pela realidade material na qual o indiví- bora, já na época de Newton, vemos, na Inglaterra, o educador
duo está inserido. É, portanto, a Educação Científica uma ati- Issac Watts dizendo, no seu “Discourse on the Education of
vidade social muito específica, visando ao aprimoramento dessa Children and Youth”, que “eu, de maneira alguma, recomen-
atividade. Em resumo, Ciência e Educação Científica são carac- daria para todos o estudo dessas ciências (matemáticas) (...)
terizadas como uma ação e, a partir daí, falaremos em teoria e Isto nem é necessário nem adequado para todos os estudantes,
prática da Educação Científica. O que lhe dará, inequivoca- mas apenas para aqueles poucos que devem fazer desses estudos
mente, o caráter de uma disciplina. sua profissão principal e negócio de vida, ou para aqueles ca-
Vamos examinar ao longo da história da humanidade, a valheiros cujas capacidades e poder de mente são adequados
evolução da Matemática como atividade educacional. Destaca- para esses estudos.” (citado em [Howon, 19821).
remos a Matemática sobre as demais ciências por razões de Assim se precisa, até nossos dias, a separação claramente
anterioridade histórica. indicada em Platão, de uma Matemática aprendida dos egípcios,
É interessante destacar o fato de que no mundo ocidental em que se fixam três estacas no solo e com um barbante está
materializado um triângulo, e de uma nova forma de Matemá-
— que nos toca mais de perto, pata compreender a evolução
das idéias hoje prevalecentes, Educação Matemática remonta tica em que o triângulo resulta de marcar três pontos num pa-
aos sofistas. Como diz H.I. Marrou [Marrou, 1948], os sofistas pel e com uma régua traçar os lados do triângulo. Há uma dife-
foram os primeiros a reconhecer o grande valor educacional da rença essencial entre os dois modos de ver as coisas e, de acordo
Matemática e os primeiros a incorporá-la num sistema de en- com Sohn-Rethel, essa distinção representa a linha divisória
sino. É interessante destacar também a desconfiança com que entre trabalho manual e trabalho intelectual [Sohn-Rethel,
os sofistas encaram a especialização e o utilitarismo fundamen- 1978]. Essa distinção, que a partir da Matemática de Platão
tal ao pensamento sofista. Uma alta dose de humanismo que determina a base epistemológica que prevalece na Ciência mo-
caracteriza esse pensamento serve de base para que eles desta- derna, nos leva à separação entre trabalho manual e intelectual
quem o grande valor educativo da Matemática, Mas é efetiva- sobre o qual repousam nossos sistemas de produção e proprie-
mente com Platão que a importância da Matemática como um dade, mereceria uma consideração mais detalhada. Sobretudo
dos pontos focais do sistema educacional se consolida. Seu quando se pensa que prevaleceu, após Platão, o domínio da
Matemática — e, conseguentemente, tudo o que se associa ao
dupla papel no sistema educacional é essencialmente prope-
déutico, possibilitando selecionar as melhores mentes [Platão. tipo de pensamento matemático — pelas melhores mentes, isto
República VIIl. Mas tudo leva a crer que
é, pelo nobre ou proprietário, ou intelectual, identificados com
pouca atenção Toi
dada em posteriores gerações ao primeiro aspecto, em que mui- uma elite dominante.
to claramente Platão colocou a prática matemática como aces- Vamos agora atentar, de modo direto, ao que hoje se de-
sível, e mesmo. natural, para. todos, prevalecendo o segundo nomina prática de ensino de Ciências. A prática de ensino em
aspecto, qual seja, a elitização intelectual através: da Matemá- geral é uma ação pedagógica que visa ao aprimoramento da
tica, Sobretudo entre os-romanos isto prevalece. E se prolonga ação educativa, mediante uma multiplicidade de enfoques e é

76 71
exercida no sistema educacional de maneira mais direta e ca-
aprendizagem da linguagem e do ler-escrever, do contar e da
racterística, qual seja a forma por excelência desta ação, isto é,
Aritmética, da atitude científica e do fazer ciência.
o trabalho na sala de aula.
É no processo de unir a realidade à ação que se insere O
A multiplicidade de enfoques dessa ação, chamada prática
indivíduo, claramente distinguido das demais espécies animais
de ensino, nos leva a buscar a melhor maneira de atingir um
pelo fato de sua. ação ser sempre o resultado de uma relação
determinado fim, visando ao aperfeiçoamento moral e político
dialética teoria-prática [D'Ambrosio, 1981].
dos praticantes da ação (agente — professor e aprendiz — alu-
no), mediante o manejo de conhecimentos gerais. Aqui enten-
Fig. 1
demos moral e político no seu sentido mais amplo, encarando
o homem na plenitude de seu questionamento interno e externo,
como indivíduo, ou como membro de um grupo social. Mas
justamente o enfoque múltiplo da ação, como discriminamos
aqui caracteriza o relacionamento dialético entre teoria e prá-
tica, como conceitua Jiirgen Habermas em sua importante obra
filosófica [Habermas, 19821. REALIDADE
Colocamos como ponto focal de nossa discussão o conceito
de ação, como sendo o mecanismo próprio de nossa espécie
para modificar a realidade no seu sentido mais amplo, seja a
realidade social e material, na qual estamos inequivocamente
inseridos, seja a realidade psíquica, resultante de inúmeros fa-
tores ainda insuficientemente identificados no estado atual de
nossos conhecimentos científicos. Embora distinguindo uma
ação modificadora de realidade social e material de uma ação
puramente cognitiva, não erramos ao considerar simplesmente
ação como estratégia própria de nossa espécie para impactar ioga

a realidade, Assim, o colher um fruto, ou o construir um açude,


ou o enviar uma carta a alguém são ações, assim como é ação
o puro meditar — tornando-se alegre ou triste — sobre a carta
recebida, ou o observar o açude — e criar expectativas sobre
o mesmo ou crer que o mundo tem muita água, ou saborear o
fruto — reconhecendo-o como caju ou como uva. A relação
entre uma ação puramente cognitiva — por exemplo, aprendi-
zagem, o pensar — e uma ação modificadora da realidade —
ro

por exemplo, praticar o que aprendemos, o saber — é uma re-


Os esforços na direção de ''mecanizar”' ações, no sentido
lação dialética permanente. Aí reside a diferença essencial da
toe

de se provocar uma reação instantânea e padronizada a estí-


78
=

79
ms
mulos igualmente padronizados, nada mais são do que a ativa- dimento e desequilíbrio psico-emocional não estão intimamente
ção, muito rápida, da relação teoria-prática. Mais ou menos associados, Inúmeros casos são constatados de alto rendimento
rápida, conforme estímulos que são extremamente difíceis, qua- associado ao desequilíbrio psico-emocional, manifestado sobre-
se impossíveis de se identificar. Neste enfoque vemos alguns tudo em alienação e ausência de crítica. Em outros termos, a
dos erros fundamentais do ensino, chamado tradicional, das criatividade comportamentalizada, absorvendo, numa única di-
ciências. Sem dúvida, apesar dos defeitos e exageros, a chamada reção, todo o potencial criativo do indivíduo, pode usualmente
Matemática Moderna visava exatamente a corrigir esses erros. provocar distúrbios psico-emocionais (ver, a esse respeito, [May,
O que hoje começa a se caracterizar como um movimento de 19821). Na ação pedagógica, outros fatores intervêm, também
retorno ao tradicional (back to basics) representa um conside- resultantes de estados psico-emocionais que encontram na edu-
rável regresso com relação aos conhecimentos que hoje são cação científica, um campo extremamente fértil para se mani-
disponíveis sobre a relação mente-corpo ou sobre a análise que festarem, embora, naturalmente, não exclusivamente [Pajak,
resulta da moderna crítica de nossos sistemas sócio-econômicos 1981]. Assim, não é de se admirar a importância que é dada,
e mesmo da procura de uma nova ordem social mais justa. desde os primórdios de nossa civilização, à Matemática como
Vamos refletir um pouco sobre o processo de unir a reali- base para o estudo das ciências e, daí, a sua posição privilegia-
dade à ação e sobre o papel da escola, como estratégia de en- da em todos os sistemas educacionais de que se tem notícia.
sino-aprendizagem. nesse processo.
Em especial, deve-se destacar, agora levando as considera-
A conceituação de ação é um problema filosófico de na-
ções ao âmbito sócio-cultural, o difícil problema de transmissão
tureza extremamente complexa. Depende, basicamente, como
intercultural, Aí, mais uma vez vemos a Ciência e em particular
mencionamos acima, de nosso conhecimento do mecanismo
a Matemática, em situação privilegiada, Não vamos entrar em
mente-corpo, de uma conceituação de criatividade e dos fatores
discussões de por que as Ciências encontram-se na base de
que determinam esse ato tão característico do ser humano, que
todo avanço científico e tecnológico. É relativamente fácil cons-
é o criar. Naturalmente, isso nos leva a considerar alguns ele-
tatar, através da análise histórica das ciências, seu papel essen-
mentos determinantes do ato de criar, quais sejam fatores so-
cial no chamado progresso tecnológico, que determinou e de-
ciais e fatores culturais, necessidades e vontades [D'Ambrosio,
termina o desequilíbrio entre nações, que possibilitou e possibi-
1982]. Os inúmeros outros fatores como que convergem nos
lita conquista e colonização e que causou e causa domínio de
determinantes sociais e culturais. Seria um erro crasso falar
uma classe social sobre a outra. A análise de Sohn-Rethel, em
em educação científica desprezando, ou evitando, ou contor-
[Sohn-Rethel, 1978], é elucidativa. Mas mesmo sem elaborar
nando essas discussões.
os porquês, ou mesmo sem se aprofundar na questão se, efeti-
O estado atual, ainda muito pobre, do nosso conhecimento, vamente, as ciências ocupam esta posição basilar na ordem
de nossa análise, de nossa crítica sobre os determinantes sócio- social internacional, o problema de pura transmissão intercul-
culturais na educação científica, talvez seja uma das causas tural das ciências é da maior importância. Como inencionamos
fundamentais dos resultados desastrosos, poderíamos dizer, mes- no início, fala-se de Ciência grega, de Ciência hindu e de ou-
mo, negativos, do ensino de Ciências. Não só o rendimento é tras ciências. No entanto, destaca-se também e identifica-se fa-
baixo, como muitas vezes é perturbador do equilíbrio psico- cilmente, uma Ciência universal, independentemente de fatores
emocional dos sujeitos envolvidos. Estranhamente, baixo ren- como língua, Geografia ou Economia. Diz-se que a Ciência de

80 81
ricos e de pobres é a mesma! Aí talvez resida o ponto mais vul- Alguns estranham que em nosso modelo de currículo não
nerável da educação científica como é praticada hoje. O pro- esteja explícita a avaliação a ele coordenada. Na verdade, fun-
blema dificílimo da transmissão cultural leva-nos a crer mais damentamos a conceituação de currículo no conceito de ação.
e mais numa ciência diferenciada pelo seu contexto sócio-cul- Mais uma vez recorrendo a Jirgen Habermas, e essa concei-
tural. Surge, então, o problema do currículo. tuação já se encontra em Hobbes, a ação é interpretada como
a consecução resultante da escolha da melhor maneira de se
Muito se tem falado que o currículo é função do momento atingir um determinado fim, visando ao aperfeiçoamento moral
social em que está inserido. Destacamos um conceito de currí- e político, e mediante o manejo de conhecimentos adequados,
culo em que os seus componentes básicos (objetivos, conteúdos de natureza muito geral. Aí encontramos apoio nos componen-
e métodos) aparecem solidários, como coordenadas num ponto tes de technê, praxis e epistemê sobre os quais J. Habermas faz
do espaço, e não independentemente como componentes isola- repousar seu tratamento da relação dialética entre teoria e prá-
dos. Assim, ao se falar em novos objetivos, naturalmente estão tica. De maneira muito natural, derivamos de technê, praxis
implícitos novos conteúdos e novas metodologias modificadas e epistemê os conceitos de métodos, objetivos e conteúdos, mas
solidariamente, como na imagem de um ponto no espaço. de forma solidária, possibilitando a ação, no caso do currículo,
a ação pedagógica, e aí reside a essência desta conceituação
Fig. 2 de currículo. Na prática da educação científica, isto se reflete
naturalmente na incorporação permanente do componente crí-
technê tica em todas as disciplinas. A cada instante, devemos estar
questionando a nossa prática e os métodos utilizados. Isto fica
AÇÃO: praxis mais evidente se atentarmos um pouco mais ao conceito de
transmissão cultural, a que já nos referimos acima (ver tam-
epistemê
bém [D'Ambrosio, 19821). O conceito de cultura é muito am-
plo e inclui a aglomeração de atitudes e interesses próprios de

ego
M E métodos
uma faixa etária, de um grupo sócio-cultural específico. Estes

q
são, claramente, grupos culturalmente diferenciados, e, como

morta
tal, estão sujeitos a todas as peculiaridades que se aplicam à
“(M, O, C) educação neste caso (ver [D'Ambrosio, 1983]). Daí a necessi-
dade de se criar a flexibilidade curricular adequada. No caso
.* objetivos específico da educação científica, não vemos outra alternativa
além da de se incorporar aos programas o que chamamos etno-
conteúdos ciência e etnomatemática. Embora raramente considerado como
parte integrante da Ciência, e muito menos de Matemática es-
colar, parece-nos residir aí o busílis. Se atentarmos às primeiras
currículo = (M, O, C)
referências à Educação Matemática, como, por exemplo, em
Platão ou na própria Idade Média, quando se teceu a Ciência

82 83
moderna, veremos que ali já se encontrava a Etnomatemática 4.2. Uma breve visão histórica da |
(ver [ Victor, 19797). Matemática e de sua educação
A incorporação da Etnociência à prática de educação cien-
Discutiremos agora algumas questões fundamentais que po-
tífica exige, naturalmente, liberação de alguns preconceitos so-
bre as próprias ciências. O que é Ciência, o que é experimenta- dem estabelecer as bases para uma abordagem histórica do
ção, o que são princípios, o que é causa-efeito, Igualmente, o ensino da Matemática de uma maneira nova. Nosso projeto re-
que é Matemática, o que é rigor, o que é uma demonstração, pousa principalmente no- desenvolvimento do conceito de Etno-
o que é aceitável. Caímos assim numa discussão sem a qual a matemática.
educação científica dificilmente encontrará o campo adequado
Nosso assunto situa-se na fronteira entre a história da
pata se revitalizar. Esta discussão é de natureza histórico-epis-
matemáticas, tais como a contagem, a ordenação, a classifica-
temológica, lamentavelmente ausente na quase totalidade dos como o estudo dos fenômenos científicos e, por
Etnociência
enfoques à educação científica. Repousando num alicerce apa-
extensão, tecnológicos, em relação direta com suas origens so-
rentemente sólido, que é a Ciência como estrutura formalizada
ciais, econômicas e culturais. Já tem havido muita pesquisa em
de conhecimentos, a educação científica tem refletido essa so-
Etnoastronomia, Etnobotânica, Etnoquímica, Etnoculinária e
lidez, em alguns casos de forma pedante e refletindo o que ficou
assim por diante, Não muita coisa tem sido feita em Etnomate-
desde a Antigiiidade greco-romana: o selecioiador das me-
mática, talvez porque as pessoas acreditem na universalidade
lhores mentes. Até o ponto de serem as ciências, em particular
da Matemática. Isto parece ser mais difícil de sustentar, pois,
a Matemática, vistas como disciplinas escolares, as maiores res-
como pesquisa recente, principalmente levada avante pelos an-
ponsáveis pela deserção escolar, por inúmeras frustrações e,
tropólogos, mostra evidência de práticas que são tipicamente
em última instância, pela manutenção de uma estratificação tais como a contagem, a ordenação, a classifica-
matemáticas,
social inaceitável ou, pelo menos, injusta. Mas os marginaliza-
ção, a medição, e a pesagem, feitas de maneiras radicalmente
dos pelos processos de avaliação que, inadequada e pedante-
diferentes do que aquelas que são comumente ensinadas no
mente se incorporam à conceituação de currículo, são pratican-
sistema escolar. Isto tem encorajado alguns estudos a respeito
tes das ciências no seu dia-a-dia. São cientificamente funcio-
da evolução dos conceitos de Matemática em uma estrutura
nais, ou melhor dizendo, etnocientificamente funcionais. A crí-
cultural e antropológica. Porém consideramos que esta direção
tica histórico-epistemológica, por exemplo, como é feita por
foi perseguida somente até um grau muito limitado e, podería-
PJ. Davis e R. Hexsh em [Davis, 1981], seria fundamental
mos dizer, tímido. Um livro recente, escrito por R.L. Wilder,
no importante processo de treinamento de professores. Possi-
que assume esta abordagem e um comentário recente sobre a
bilitaria um reconhecimento de que Ciência é efetivamente uma
abordagem de Wilder [ Wilder, 1981], feito por C. Smorinski
disciplina dinâmica e viva e reage, como qualquer manifestação
parecem ser as tentativas mais importantes feitas por matemá-
cultural, a fatos sócio-culturais e, por conseguinte, econômicos.
ticos. Por outro lado, existe uma quantidade razoável de lite-
Dificilmente chegaremos a uma melhoria da educação cien- ratura a este respeito feita pelos antropólogos. Fazer uma liga-
tífica sem primeiro conceituar melhoria e, em segundo lugar, ção entre os antropólogos e os historiadores da Cultura e os
reconhecer que o processo aprendizagem-ensino é, na sua essên- matemáticos é um passo importante na direção do teconheci-
cia, apenas aprendizagem. mento de que diferentes modos de pensar podem conduzir a

84 85
diferentes formas de Matemática; este é o campo que podemos
denominar Etnomatemática. Examinemos brevemente alguns aspectos da Educação Ma-
temática através da História. Necessitamos de algum tipo de
A extensa história da Lógica feita por Anton Dimitru
periodização para esta visão generalizada que corresponda, até
[Dimitru, 1977] descreve de maneira breve as lógicas indianas
certo ponto, a mudanças principais na composição sócio-cultu-
e chinesas meramente como um pano de fundo para seu estudo
ral da história ocidental (desconsideramos para este fim outras
geral, histórico, da lógica que se originou do pensamento grego.
Sabemos, a partir de outras fontes que, por exemplo, o conceito culturase civilizações).
de número 1 é um conceito bastante diferente na epistemologia
Até a época de Platão, nossa referência é o início e o de-
Nyaya-Vaisesika: “O número 1 é eterno nas substâncias eter-
senvolvimento da Matemática em dois ramos claramente dis-
nas, enquanto que 2, etc... . são sempre não eternos”, e a par-
tintos: o que poderíamos chamar de Matemática erudita, que
tir deste ponto continua uma Aritmética [Potter, 1977, p. 91.
estava incorporada no ideal da educação dos gregos, e um ou-
Praticamente nada se conhece a respeito da lógica que subjaz
tro que poderíamos chamar de Matemática prática, reservado
da base ao tratamento inca dos números, embora o que seja
principalmente aos trabalhadores manuais. Nas origens egípcias
conhecido através do estudo dos quipus sugira que eles usavam
da Matemática, houve o espaço reservado para a Matemática
uma linguagem mista qualitativo-quantitativa [Ascher, 1981].
prática por trás dela, que eta ensinada aos trabalhadores. Esta
Estes comentários convidam-nos a examinar a história da distinção foi levada adiante até os tempos gregos, e Platão cla-
Matemática em um contexto mais amplo, de maneira a incor- ramente diz que “todo estudo (cálculo e Aritmética, medições,
porar nela outras possíveis formas de Matemática. Porém ire- relações das órbitas planetárias) em seus mínimos detalhes não
mos além dessas considerações. Isto não é meramente um exer- é para as massas, mas pata uns poucos selecionados” [ Platão,
cício acadêmico desde que suas implicações para a pedagogia Leis VII, 818] e “deveríamos induzir aqueles que devem com-
da Matemática são claras, Referimo-nos a avanços recentes nas partilhar das mais altas funções de Estado a entrarem no estudo
teorias de cognição que mostram quão intensamente a cultura de cálculos e se agarrarem a ele, (...), não para fins de com-
e a cognição estão relacionadas. Muito embora durante um pra e venda, como se estivessem se preparando para serem mer-
longo tempo tenha havido uma estreita ligação entre os meca- cadores ou mascates [Platão, República VII, 525b]. Esta
nismos cognitivos e o meio ambiente cultural, uma tendênci distinção entre Matemática erudita e Matemática prática, re-
a
reducionista, que remonta a Descartes e tem se desenvolvido servada às diferentes classes sociais é levada adiante pelos ro-
até certo ponto em paralelo com o desenvolvimento da Mate- manos com o trivium e quadrivium e, em paralelo, um treina-
mátjca, tendeu a dominar a educação até recentemente, impli- mento prático, para os operários, Na Idade Média começamos
cando uma cognição isenta de cultura. Recentemente, um te- a ver a convergência de ambas em uma direção, isto é, a Ma-
conhecimento holístico da interpenetração da Biologia e da temática prática começa a usar algumas idéias da Matemática
cultura abriu um campo fértil de pesquisas a respeito da cul- erudita, no campo da Geometria. A Geometria prática assume
tura e da cognição matemática (ver, por exemplo, [Lancy, um valor por seu próprio mérito na Idade Média. Esta aproxi-
1983]). Isto tem implicação clara para a Educação Matemáti- mação da Geometria prática à teórica segue à tradução do árabe
o ae tem sido amplamente discutido [D'Ambrosio, dos Elementos de Euclides, feita por Adelard de Batb (início
do século XII). Dominicus Grandissalinus, em sua classifica-
ção de Ciência diz que “seria vergonhoso para alguém exercer
86
87
qualquer arte e não saber o que ela é e de qual assunto ela que para Platão. A resposta foi que deveria ser uma Matemática
trata e as outras coisas que dela são prometidas”, conforme que mantivesse a estrutura econômica e social, remanescente
citado em [ Victor, 1975, p. 8]. Com respeito
daquela dada para a aristocracia quando uma boa aprendizagem
ao cálculo e à
contagem, as mudanças começam a ocorrer com em Matemática era essencial para o progresso da elite (confor-
a introdução
dos numerais arábicos; o tratado de Fibbonaci [D'Ambrosio,
me advogado por Platão) e, o mesmo tempo, permitir a esta
1980, p. 481] é, provavelmente, o primeiro a começar a mescla elite assumir um controle efetivo do setor produtivo. A Mate-
de aspectos. práticos e teoréticos da Aritmética, mática é adaptada e recebe um lugar como Matemática prática-
erudita, que será denominada, daqui por diante, Matemática
À próxima etapa de nossa periodização é2 a Renascença, acadêmica, isto é, a Matemática que é ensinada e aprendida
quando surge uma nova estrutura obreira: mudanças ocorrem nas escolas. Em contraste a isto, denominaremos Etnomatemá-
no domínio da Arquitetura, desde que o desenho permite fazer tica a Matemática que é encontrada entre os grupos culturais
planos acessíveis aos pedreiros e um maquinário pode ser de- identificáveis. tais como: sociedades tribais nacionais, grupos
senhado e então reproduzido por outros além dos inventores. obreiros, crianças de uma certa categoria de idade, classes pro-
Na Pintura, descobre-se que as escolas são mais eficientes e os fissionais, etc. Sua identidade depende amplamente dos focos
tratados tornam-se disponíveis. A aproximação é sentida pelos de interesse, da motivação e de certos códigos e jargões que não
eruditos, que começam a usar o vernáculo em seus trabalhos, pertencem ao domínio da Matemática acadêmica. Podemos ir
algumas vezes escrevendo em uma linguagem não técnica, em ainda mais além neste conceito de Etnomatemática, para in-
um estilo acessível aos não eruditos. Os exemplos melhores cluir grande parte da Matemática que é correntemente pratica-
conhecidos são Galileu, e Newton, com
da por engenheiros, principalmente o Cálculo, e que não res-
sua Optiks.
ponde ao conceito de rigor e de formalismo desenvolvidos nos
A aproximação da Matemática prática à Matemática eru- cursos acadêmicos de Cálculo. Como exemplo, a abordagem
dita aumenta rapidamente na era industrial, não apenas por de Sylvanus Thompson ao Cálculo pode ajustar-se bem a esta
razões e necessidades de trabalhar com maquinário e manuais categoria de Etnomatemática. E os construtores, os perfurado-
de instrução cada vez mais complexos como também por mo- res de poços, e os construtores de barracos nas favelas também
tivos sociais. O aprendizado exclusivamente erudito não basta- fazem Etnomatemática,
ria para os filhos de uma aristocracia que tinha de estar prepa-
Naturalmente, este conceito pede uma interpretação mais
rada para conservar seu predomínio social e econômico em
ampla do que seja Matemática. Agora, incluímos na Matemá-
uma nova ordem [D'Ambrosio, 1980, p. 482]. A aproximação
tica a parte do Cálculo Aritmético e da Aritmética platônica,
da Matemática erudita e da Matemática prática começa a pene-
a medição e as relações das órbitas planetárias, as capacidades
trar no sistema escolar, se assim podemos chamar a educação de classificar, ordenar, inferir e modelar. Esta é uma gama
naquela época.
muito ampla de atividades humanas, as quais, por toda a His-
Finalmente, alcançamos a última etapa nesta periodização tória, têm sido expropriadas pela instituição erudita, formaliza-
difícil, ao chegarmos ao século XX e à difusão do conceito da das, codificadas e incorporadas no que denominamos Matemá-
educação de massa, e à questão de qual Matemática deveria ser tica acadêmica, mas que permanecem vivas nos grupos cultu-
ensinada nos sistemas educacionais torna-se mais premente do ralmente identificados e constituem rotinas em suas práticas.

88 89
4.3. Etnomatemática na História e na Neste modelo holístico não entraremos em uma discussão
Pedagogia do que seja realidade, ou do que seja um indivíduo, ou do que
seja a ação. Faremos referência a [D'Ambrosio, 1981]. Sim-
Gostaríamos de insistir na ampla conceitualização da Ma- plesmente supomos a realidade em um senso amplo, tanto na-
temática que nos permite identificar várias práticas que são tural, material, social como psico-emocional. Observamos que
essencialmente matemáticas quanto à sua natureza. E também as ligações são possíveis através de mecanismos de informação
pressupomos um amplo conceito de etrno — para incluir todos (que incluem sistemas tanto sensoriais como de memória e tan-
os grupos culturalmente identificáveis com seus jargões, códi- to genéticos quanto adquiridos) e que produzem estímulos no
gos, símbolos, mitos e até mesmo maneiras específicas de racio-
indivíduo. Através de um mecanismo de reificação, estes estí-
cínio e de inferência. Naturalmente, isto vem de um conceito mulos dão origem a estratégias baseadas em códigos e modelos
de cultura como o resultado de uma hierarquização de compor- que levam em conta a ação, os impactos da ação sobre a rea-
tamento, a partir do comportamento individual, através do lidade através de introdução de fatos na realidade tanto artefa-
comportamento social, até o comportamento cultural. tos como mentefatos. Introduzimos este neologismo para indicar
O conceito repousa em um modelo de comportamento in- todos os resultados da ação intelectual que não se materializam,
dividual, baseado no ciclo ... realidade — indivíduo — ação tais como: idéias, conceitos, teorias, reflexões e pensamentos.
-— realidade ... esquematicamente mostrado como
Estes são acrescentados à realidade no sentido amplo men-
cionado acima e a modificam de maneira clara. O conceito de
reificação tem sido usado pelos sócio-biólogos como “a ativi-
+ INFORMAÇÃO dade mental na qual os fenômenos vagamente percebidos e re-
lativamente intangíveis, tais como arranjos complexos de objetos
REALIDADE
ou atividades, recebem uma forma facciosamente concreta ou
simplificada e identificada com palavras ou outros símbolos”.

| | Fatos = ———» RETIFICAÇÃO [Lumsden, 1981, p. 380]. Supomos que isto seja o mecanismo
básico através do qual as estratégias para a ação são definidas.
Esta ação, aconteça ela através de artefatos ou de mentefatos,
modifica a realidade, a qual, em troca, produz informação adi-
MO ESTRATÉGIA
cional, a qual, através deste processo reificativo, modifica ou
gera novas estratégias para a ação, e assim por diante. Este
ciclo interminável é a base para a estrutura teórica sobre a qual
baseamos nossos conceitos matemáticos.

O comportamento individual é homogeneizado em certas


maneiras através de mecanismos tais como a educação, para
construir o comportamento social, o qual, em troca, gera o que
denominamos cultura. Novamente um esquema tal como:

90 91
HISTÓRIA
dos viajantes por todo o mundo. O interesse nestes relatos tem

ace
REALIDADE sido principalmente a curiosidade ou a fonte de interesse an-
tropológico a respeito da aprendizagem de como pensam os na-
tivos. Damos um passo à frente ao tentar encontrar uma estru-
tura subjacente de indagação nestas práticas ad hoc. Em outros
EVENTOS termos, temos que colocar as seguintes perguntas:
SOCIEDADE COMUNICAÇÃO
1.º) Como as práticas ad hoc e 'à solução dos problemas

Dá "CULTURA 2.º)
se transformam em métodos?
Como são os métodos transformados em teorias?
3.º) Como são as teorias transformadas em invenção cien-
tífica?
Parece, a partir de um estudo da história da Ciência, que
leva em conta o conceito de cultura como a estratégia para O estas são as etapas na formação de teorias científicas. Em par-
social. Agora, o mecanismo de reificação, que é característico ticular, a história da Matemática dá uma boa ilustração das
do comportamento individual, é substituído pela comunicação etapas 1, 2 e 3 e os programas de pesquisa na história da Ciên-
enquanto que a informação, que causa impacto sobre um indi- cia estão, em essência, baseados nestas três perguntas.
víduo, é substituída pela história, que tem seu efeito sobre a
A questão principal é, então, metodológica e ela se situa
sociedade como um todo (não nos aprofundaremos aqui nesta
no conceito da própria História, em particular da história da
estrutura teórica; isto irá aparecer mais à frente). Ciência, Temos que concordar com a sentença inicial de um
Conforme mencionamos acima, a cultura se manifesta excelente livro escrito por Belloni, a respeito da segunda revo-
através de jargões, códigos, mitos, símbolos, utopias e maneiras lução científica: “Existe uma tentação oculta nas páginas da
de raciocinar e inferir. Associadas a estas, temos práticas, tais história da Ciência — a tentação de derivar o nascimento e a
como: o cálculó e a contagem, medição, classificação, ordena- morte das teorias, a formalização e o crescimento de conceitos,
ção, inferição, modelação, etc. que constituem a Etnomatemá- a partir de um esquema (ou lógico, ou filosófico) sempre sólido
tica, e aplicável em toda parte. Ao invés de tratar de problemas
reais, a História tornar-se-ia então uma revisão aprendida de
A questão básica que enfrentamos então é a seguinte: quão contos edificadores para o benefício de uma escola filosófica
teorética pode ser a Etnomatemática? Tem sido reconhecido
ou outra” [Belloni, 1980, p. 1]. Esta tendência permeia a aná-
desde há muito que as práticas matemáticas, tais como aquelas lise das práticas populares, tais como a Etnociência e, em par-
mencionadas no final do parágrafo anterior, são conhecidas por
ticular, a Etnomatemática, privando-as de qualquer história.
vários grupos culturalmente diferenciados; e, quando dizemos Como consegiiência, essa tendência as priva do status de co-
conhecidas, queremos dizer de uma maneira que é substancial-
nhecimentos.
mente ocidental ou acadêmica de conhecê-las. Isto é frequente-
mente visto na pesquisa dos antropologistas e, mesmo antes que É apropriado neste momento fazer alguns comentários a
a Etnografia fosse reconhecida como uma ciência,
respeito da natureza da Ciência hoje em dia, considerada como
nos relatos

92 93
uma atividade profissional de grande escala, Conforme já men- teorizáveis na Matemática, dotadas como códigos apropriados
cionamos, ela atingiu esta posição apenas a partir do início da disciplina, que culmina com a expropriação da idéia e sua
do
século XIX. Muito embora os cientistas se comunicassem entre formalização como Matemática. Durante este período de tempo,
si e os periódicos científicos, assembléias e associações fossem a idéia é colocada em uso e praticada; é um exemplo do que
conhecidos, a atividade dos cientistas nos séculos anterio denominamos Etnomatemática em seu sentido amplo. Eventual-
res não
recebia qualquer recompensa como tal. Qualquer recompensa mente, ela pode tornar-se Matemática no estilo ou modo de
que houvesse vinha mais como um resultado de patrocínio. pensamento reconhecido como tal. Em muitos casos ela jamais
As
universidades estavam pouco preocupadas com a preparação se formaliza, e a prática continua restrita ao grupo cultural-
de
cientistas ou treinamento de indivíduos para o trabalh mente diferenciado que a originou. O mecanismo da escolariza-
o cientí-
“fico. Somente no século XIX o tornar-se um cientista ção substitui estas práticas por outras equivalentes que já te-
começou
a ser considerado como uma atividade profissional. E, nham adquirido status de Matemática, isso é. que tenham sido
desta
mudança, a subdivisão da Ciência em campos expropriados em suas formas originais e retornado em uma
científicos tor-
nou-se inevitável. O treinamento de um cientista, agora versão codificada.
um
profissional com qualificações específicas, é feito em sua espe-
cialidade, em universidade ou instituição similar, mecani Reivindicamos um status para estas práticas, que não al-
smos
para qualificá-lo para a atividade profissional e cançam o nível da matematização no sentido usual e tradicio-
padrões da
evolução de suas credenciais são desenvolvidos. O
conheci- nal, e que chamamos Etnomatemática. Parafraseando a termino-
mento, particularmente o conhecimento científico,
recebe um logia de T.S. Kuhn, dizemos que elas não são matemáticas
status que permite que seja aplicado a indivíduos
que exigem normais e que é muito improvável que elas irão gerar matemá-
credenciais para a sua atividade profissional. Este
mesmo co- ticas revolucionárias. A Etnomatemática mantém sua própria
nhecimento, praticado em muitas camadas da socieda
de em di- vida, evoluindo como um resultado de mudança social, porém
ferentes níveis de sofisticação e profundidade, foi expropt as novas formas simplesmente substituem as anteriores, que
iado.
por aqueles que tinham a responsabilidade e o poder para caem no esquecimento. O caráter cumulativo desta forma de
pro-
porcionar um crédito profissional. conhecimento não pode ser reconhecido, e seu status como dis-
Podemos procurar exemplos na Matemática de desenv ciplina científica torna-se questionável. As revoluções internas
ol- na Etnomatemática, que resultam nas mudanças sociais como
vimento paralelo desta disciplina científica fora do
modelo es-
tabelecido e aceito pela profissão. Um dos tais exempl um todo, não suficientemente ligadas à Etnomatemática
estão
os é a
função delta de Dirac que, somente cerca de normal. A cadeia de desenvolvimento histórico, que é a espinha
20 anos depois
de estar em pleno uso dentre os físicos, foi exprop dorsaí de um corpo de conhecimento estruturado como disci-
riada e tor-
nou-se um objeto matemático estruturado como plina, não é reconhecível. Consegientemente, a Etnomatemáti-
teoria das dis-
tribuições. Este processo é um aspecto da dinâmi
ca interna do ca não é reconhecida como um corpo estruturado de conheci-
conhecimento face à sociedade, mentos, porém antes, como um conjunto de práticas ad hoc.

Existe inquestionavelmente um atraso de tempo É objetivo de nosso programa de pesquisa identificar den-
entte o
no de novas idéias na Matemática, fora do círculo tro da Etnomatemática um corpo estruturado de conhecimento.
e seus profissionais, e o reconhecimento destas Para alcançar isto, é essencial seguir as etapas 1, 2, e 3 acima.
idéias como

94 95
Como as coisas estãó agora, estamos coletando exemplos Isto é bastante diferente do que tem sido frequente e erronea-
e dados a respeito de práticas de grupos culturalmente diferen- mente feito, que é incorporar estas descobertas individualmente
ciados que são identificáveis como práticas matemáticas, por em cada coordenada ou componente do currículo.
isto, Etnomatemática; e estamos tentando ligar estas práticas
a um padrão de argumentação, uma maneira de pensar, utili- Esta abordagem tem muitas implicações para as priorida-
zando tanto a teoria cognitiva como a antropologia cultural, e des de pesquisa na Educação Matemática, para os países do
esperamos traçar a origem destas práticas, Desta maneira, pode Terceiro Mundo e tem uma contrapartida óbvia no desenvol-
resultar uma organização sistemática destas práticas em um cor- vimento da Matemática como uma ciência. De maneira clara,
po de conhecimento. a distinção entre a Matemática pura e a Matemática aplicada
tem que ser interpretada de uma maneira diferente. O que foi
denominado Matemática pura e continua assim chamado, é o
resultado natural da evolução da disciplina dentro de uma at-
4.4. Conclusão
mosfera social, econômica e cultural que não pode ser desen-
gajada das principais expectativas de um certo momento histó-
Para uma ação educacional efetiva, não apenas uma ex-
tico. Não se pode desconsiderar que L. Kronecker (“Deus criou
periência intensa do desenvolvimento de currículo é exigida,
os inteiros — o resto é trabalho dos homens”), Karl Marx e
como também métodos de investigação e de pesquisa que pos-
Charles Darwin foram contemporâneos. A Matemática pura
sam absorver e entender a Etnomatemática. E isto claramente
em oposição à Matemática aplicada entrou em consideração
exige o desenvolvimento de métodos de pesquisa antropológica
mais ou menos na mesma época, sem os sentidos sugeridos po-
bastante difíceis relativamente à Matemática, um campo de es-
tudos até agora precariamente cultivado. Juntamente com a his- líticos e filosóficos óbvios. Para os países do Terceiro Mundo
tória social da Matemática, que visa a entender a influência esta distinção é altamente artificial e ideologicamente perigosa.
mútua de fatores sócio-culturais, econômicos e políticos no de- Claramente, revisar o currículo e as prioridades de pesquisa de
senvolvimento da Matemática, a Matemática antropológica, se tal modo a incorporar as prioridades de desenvolvimento na-
é que podemos estabelecer um nome pasa esta especialidade, é cional nas práticas eruditas que caracterizam a pesquisa uni-
um tópico que, acreditamos, constitui um tema essencial de versitária é a coisa mais difícil de se fazer. Porém, todas as
pesquisa nos países do Terceiro Mundo, não como um mero dificuldades não devem mascarar a crescente necessidade da
exercício acadêmico, conforme atualmente atrai o interesse nos reunião dos recursos humanos para as metas mais urgentes e
países desenvolvidos, mas como uma base subjacente sobre a imediatas de nossos países.
qual podemos desenvolver currículos de uma maneira relevante.
Isto coloca um problema político para o desenvolvimento
O desenvolvimento de currículos nos países do Terceiro da Matemática e da Ciência nos países do Terceiro Mundo.
Mundo requer uma abordagem mais global, claramente holís- Este problema conduz naturalmente a um fecho deste trabalho:
tica, não apenas considerando métodos, objetivos e conteúdos isto é, a relação entre Ciência e ideologia.
em interdependências, porém, e principalmente, incorporando A ideologia implícita no vestuário, na habitação e nos tí-
os resultados das descobertas antropológicas em um esforço tulos, tão esplendidamente denunciada por Aimé Césaire em
tridimensional que temos usado para caracterizar o currículo. “A tragédia do Rei Cristovão”, dá uma volta mais sutil e pre-

96 97
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Resumo
A teoria de educação crítica de Paulo Freire é re-in-
ventada no contexto de um currículo de Matemática
para a classe trabalhadora adulta urbana. Os proble-
mas que Freire coloca para professores nesse contexto
são explorados e é discutido o trabalho de outros teó-
ricos que aprofunda e questiona aspectos da teoria de
Freire. A seguir, a teoria de Freire é aplicada para o
ensino de Matemática e Estatística básicas para as
ciências sociais. É argumentado que tal alfabetização

* College of Public & Community Service, University of Massa:


chusetis, Boston, Massachussetts, in Journal of Education, Volume 165,
Number 4, 1983.
** Traduzido por Maria Dolis e Regina Luzia Corio de Buriasco,
alunas do Curso de Pós-Graduação em Ensino de Matemática — L.G.CE,,
UNESP — Rio Claro, 1986.

100 101
matemática é vital na luta para a mudança social libe- metodologia para desenvolver consciência crítica. Por causa do
radora em nossa sociedade tecnológica avançada. Fi- argumento de Freire de que educação crítica envolve colocação
nalmente, essa reflexão sobre prática é usada para de problemas em que todos os envolvidos são desafiados a re-
colocar problemas adicionais a serem explorados na considerar e recriar seu conhecimento prévio, essa apresentação
criação e re-criação da pedagogia do oprimido. deveria ser vista como uma exploração pretendida para ajudar
a ampliar nosso pensamento, não como fórmulas definitivas
O conhecimento de Matemática e Estatística básicas é uma
de Freire para a libertação. Uma discussão da minha própria
parte importante do avanço real popular do controle demo-
experiência de ensino de Matemática e Estatística básicas para
crático sobre a estrutura econômica, social e política de nossa
ciências sociais a adultos(!) da classe trabalhadora urbana de-
sociedade. Mudança social libertadora requer uma compreen- monstra maneiras nas quais a teoria de Freire pode esclarecer
são do conhecimento técnico, que é também muitas vezes usado
problemas específicos e soluções em ensino crítico e maneiras
para obscurecer realidades econômica e social, Quando nós
nas quais a educação matemática pode contribuir para mudan-
desenvolvemos estratégias específicas para uma educação eman-
ça social libertadora.
cipadora, é vital que incluamos tal alfabetização matemática.
Estatística é usualmente abandonada para especialistas, porque
é tida como muito difícil para a maioria das pessoas entender. 5.1. Os problemas que Freire coloca para
Desde que este conhecimento é também considerado neutro, é professores nos Estados Unidos
raramente questionado. Na tentativa de criar uma abordagem
O QUE É CONHECIMENTO?
para Educação Matemática que possa levar tanto a um maior
controlé sobre o conhecimento quanto à consciência crítica, A epistemologia de Freire está em oposição direta ao pa-
é importante ter uma teoria pedagógica adequada que possa radigma positivista correntemente dominante em teoria educa-
guiar e esclarecer práticas específicas de sala de aula. Eu quero cional. Positivistas vêem o conhecimento como neutro, livre de
argumentar que pedagogia do oprimido de Paulo Freire pode valor e objetivo, existindo totalmente fora da consciência hu-
dar a fundamentação teórica para essa prática. mana, Além disso, é completamente separado de como as pes-
4
A teoria educacional de Paulo Freire é complexa. Neste soas o usam. Aprendizagem é a descoberta desses fatos estáticos
artigo, concentrar-me-ei sobre os problemas por ele colocados e sua subsegiiente descrição e classificação (Bredo e Feinberg,
que estão particularmente afligindo professores em escolas nos 1982). A crítica de Giroux (1981) do positivismo em teoria de
Estados Unidos, Por esta razão, não tratarei da sua teoria sobre educação se concentra sobre o que é omitido desse paradigma.
por que líderes de partidos revolucionários precisam ser tam- Questões concernentes à construção social do conhe-
bém educadores, ou sua hipótese (historicamente fundamenta- cimento e os interesses constitutivos subjacentes à
da na realidade de vários países do Terceiro Mundo nos quais seleção, organização e avaliação de fatos brutos são
ele praticou) de que esses líderes viviam da burguesia, “come- encobertos pela hipótese de que conhecimento é obje-
tendo suicídio como uma classe, de modo a aparecerem de novo
como trabalhadores revolucionários” (Freire, 1978, p. 16). Em 1. Os estudantes em minha escola são adultos que têm um claro
compromisso com trabalho em serviço público ou de comunidade. Sua
vez disso, eu quero investigar sua epistemologia, sua teoria so- média de idade é 35, cerca de 70% são mulheres, e cerca de 3% são
bre o relacionamento entre educação e mudança social, e sua pessoas de cor,

102 103
tivo e livre de valor. Informação ou dados trazidos Negar a importância da subjetividade no processo de
do mundo subjetivo da intuição, insight, filosofia e transformação do mundo e da história é... adquirir
subestruturas teoréticas não científicas não são reco- o impossível; um mundo sem pessoas... Por outro
nhecidos como sendo relevantes. Valores, então, apa- lado, a negação da objetividade em análise ou ação...
recem como sendo impostos pelos fatos, são vistos, no postula pessoas sem um mundo... (e) nega a própria
melhor dos casos, como interessantes, e, no pior, como ação, negando a realidade objetiva. (Freire, 1970a.,
reação irracional, subjetiva e emocional (p. 43-44). p. 35-36)().
Paulo Freire insiste em que conhecimento não é estático: Por causa da unidade entre subjetividade e objetividade,
que não há dicotomia entre objetividade e subjetividade, ou as pessoas não podem conhecer completamente aspectos par-
2
entre reflexão e ação; e em que conhecimento não é neutro. ticulares do mundo — nenhum conhecimento é acabado.
2
Para Freire, conhecimento é continuamente criado e re- Como humanos mudam, assim também o conhecimento que
criado tal como pessoas refletem e agem no mundo. Conheci- eles produzem. Mas, através de busca constante e diálogo, nós
mento, portanto, não é fixo permanentemente nas propriedades podemos refinar continuamente nossa compreensão no sentido
abstratas dos objetos, mas é um processo onde adquirir o co- que possamos atuar mais efetivamente.
nhecimento existente e produzir novo conheciniento são “dois Essa ação e a reflexão sobre ela que leva à nova ação não
momentos no mesmo ciclo” (Freire, 1982). Além do mais, são momentos separados de conhecer. Reflexão que não é fi-
conhecimento requer sujeitos: objetos para serem conhecidos nalmente seguida por uma ação para transformar o mundo é
são necessários mas não são suficientes. sem sentido, retórica alienante(”). Ação que não é criticamente
Conhecimento... necessita a presença curiosa de su- 3. Um dos primeiros comentários de Freire no Curso do Boston
jeitos confrontados com o mundo. Requer sua ação College que ele ministrou (julho 1982) referiu-se a seu débito para com
as muitas mulheres americanas que lhe escreveram elogiando a Peda-
transformadora sobre a realidade. Demanda uma gogia do Oprimido, mas criticando sua linguagem que mostra discri-
constante busca... No processo de aprendizagem a minação sexual. Ele mudou sua linguagem; eu, entretanto, mudo suas
única pessoa que realmente aprende é aquela que... citações a esse respeito. :
reinventa o que aprende. (Freire, 1973, p. 101) 4. Os escritos de Freire sobre os detalhes de como consciência
crítica conduz a mudança social radical (por exemplo, “Esta pedagogia
Conhecimento não existe separado da consciência huma- faz da opressão e suas causas objetos de reflexão pelo oprimido, e desta
reflexão surgirá seu necessário engajamento na luta por sua libertação”
na; é produzido por nós coletivamente, buscando e tentando (1970(a), p. 33)) deixa-lhe abertura para a crítica de Mackie de que
dar sentido ao nosso mundo(?). por ignorância “a economia política de revolução em favor de uma
ênfase em sua dimensão cultural... o discurso (de Freire) de revolu-
Assim, para Freire, o mundo é dando mais que dado
ção... tende a tornar-se utópico e idealizado”. (Mackie, 1981, p. 106).
(Collins, 1977, p. 82) e subjetividade e objetividade não são Contudo, os comentários de Freire em seu curso de 1982 no Boston
maneiras separadas de conhecer. College (por exemplo, “em encontros como este não podemos mudar o
mundo, mas podemos descobrir e nos tornar comprometidos”) conven-
2. Matthews (1981) segue as ênfases de Freire sobre a natureza cem-me de que ele reconhece as limitações bem como as possibilidades
social do pensamento para a filosofia de Karl Mannheim de que, estri- da educação em realizar mudança social libertadora. Seu escrito, pos-
tamente falando é incorreto dizer que indivíduos pensam; é mais correto sivelmente, se concentra sobre o papel da consciência humana na mu-
insistir em que eles participam em pensar além do que outros pensaram dança do mundo um franco opositor a determinadas teorias estrutu-
anteriormente. ralistas de revolução.

104 105
analisada não pode sustentar mudança progressiva. Sem re- mundo e, finalmente, ajudá-las a lutar coletivamente
flexão, as pessoas não podem aprender a partir de cada sucesso para transformar esse mundo (p. 114, 116).
e erro da outra; atividades particulares precisam ser avaliadas As categorias centrais da formulação de Giroux da dialé-
em relação a metas coletivas maiores. Somente através da
tica — totalidade, mediação, apropriação e transcendência —
praxis — reflexão e ação dialeticamente interagindo para re-
detalham as várias dimensões de um conhecimento crítico
criar realidade — as pessoas podem tornar-se sujeitos no con-
freitiano da realidade. Totalidade envolve compreensão de
trole de organizar sua sociedade. Além disso, essa praxis não qualquer fato ou situação em seu contexto histórico, sócio-
é neutra. O conhecimento não existe separado do como e
econômico, político e cultural, Assim como nós chegamos a
porquê é usado, no interesse de quem. Mesmo, por exemplo,
conhecer um aspecto particular do mundo, nós precisamos
no supostamente neutro conhecimento técnico de como cultivar
estar preocupados com seus relacionamentos causais, com suas
batatas, Freire afirma que
conexões com qutros fenômenos, com quem se beneficia com
há alguma coisa que vai além dos aspectos agrícolas sua permanência e como isso se relaciona à nossa humanização
do cultivar batatas... Nós temos não somente... os ou desumanização. À medida que exploramos essas questões,
métodos de plantar, mas também a questão que tem as respostas que nós formulamos são mediadas pelas estruturas
a ver com a tarefa desse que planta batatas no pro- institucionais da sociedade, por nossas histórias individual e
cesso de produção, por que nós plantamos batatas, de classe, por nossa profunda psicologia, por nossos relacio-
em favor de quem. É mais alguma coisa. É muito namentos atuais e pelos detalhes específicos do momento con-
importante para o lavrador... pensar sobre os mui- creto no qual estamos envolvidos. A categoria de mediação
tos processos de trabalho — o que significa traba- desafia o tomado por certo, ajudando-nos a desembaraçar
lhar? (Brown, 1978, p. 63, nota 1) as camadas das forças objetivas e subjetivas através das quais
nós achamos significado. A categoria da apropriação focaliza
Para Freire, o propósito do conhecimento é as pessoas se nossa atenção sobre a ação humana -— sobre como as ações
humanizarem, superando a desumanização através da resolução das pessoas tanto mantêm quanto desafiam as relações de do-
da contradição fundamental da nossa época: aquela entre do- minação que marcam nossa sociedade. Portanto, conhecimento
minação e libertação. crítico envolve a descoberta dos limites e das possibilidades
Um conceito adicional que esclarece a epistemologia de de nossas ações para transformar o mundo. Finalmente, a trans-
Freire auxiliando desvelar as forças objetivas e subjetivas que cendência une compromisso com teoria, insistindo em que
modelam o conhecimento e os momentos reflexivos e ativos recusemos aceitar a dominação como um fato da existência e
no conhecer, é a dialética. Giroux (1981) define esse conceito em que usemos nossos conhecimentos do mundo para recons-
como: truir a sociedade do modo que seja “livre de instituições sociais
opressivas e formas de vida alienantes” (Giroux, 1981, p. 122).
um modo crítico de raciocínio e comportamento... Assim, a dialética como um modo de análise não somente cla-
(que) funciona tanto para ajudar as pessoas a anali- reia a natureza crítica do conhecimento mas também aponta
sar o mundo em que vivem, como para tornarem-se as conexões entre conhecimento crítico e mudança social eman-
cônscias da repressão que as impede de mudar esse cipadora,

106 107
5.2. Educação e mudança social libertadora mesmas, aniquiladas por um tempo e espaço todo-poderoso.
Qualquer que seja seu estado, as pessoas são seres abertos”
Embora Freire insista que “Não existe algo como ignorân- (1973, p. 17). Um aspecto muito importante desta expectativa
cia absoluta ou sabedoria absoluta.” (1973, p. 43), ele também para Freire é a conscientização das pessoas — o desenvolvi-
afirma que numa sociedade opressiva o conhecimento das pes- mento de sua consciência crítica — que, ele afirma, pode
soas está em diferentes níveis. Povos com a maioria dominada emergir apenas através de uma educação dialógica de colocação
e consciência semi-intransitiva têm uma consciência fragmen- de problemas. Uma vez que a ação não pode ser dicotomizada
tada e localizada de sua situação e são incapazes de pensar da reflexão e educação crítica desenvolve conhecimento crítico,
dialeticamente sobre ela, Portanto, eles vêem sua condição Freire vê a educação como vital para ajudar as pessoas a se
como causada por seu próprio fracasso e/ou por Deus. tornarem sujeitos envolvidos numa mudança social liberta-
Pessoas que vivem em sociedades mais abertas desenvolvem dora(”).
naturalmente uma consciência transitiva ingênua onde elas co- Uma análise de como a educação nos Estados Unidos
meçavam a ver causas em um contexto mais amplo, mas estão pode levar à conscientização das pessoas envolve uma focali-
ainda convencidas de que “causalidade é um fato estático e zação sobre a superação do que Freire chamou consciência
estabelecido” (Freire, 1973, p. 44) e portanto, não susceptível massificada como oposta à consciência semi-intransitiva. Pes-
à mudança através de suas ações. soas com consciência massificada compreendem que os hu-
Um dos maiores obstáculos que a pedagogia do oprimido manos mudam e controlam o mundo. Mas elas acreditam que
precisa superar é a participação do oprimido na sua própria cada indivíduo age mais a partir de livre escolha racional do
dominação. Freire explora os fatores estruturais, emocionais e que de uma interação complexa de escolha e a manipulação.
cognitivos por trás desta cultura do silêncio. No Brasil, as Em Ação Cultural para a liberdade, Freire começa uma análise
pessoas internalizaram sua falta de experiência democrática de como a consciência massificada típica de sociedades tecno-
participadora sob o imperialismo português. Essa identificação lógicas avançadas torna-se o maior fator na participação das
emocional foi reforçada pelos mitos que os opressores criaram pessoas na sua própria dominação:
de que o statu quo representava a única situação possível
A racionalidade básica para ciência e tecnologia de-
porque o oprimido era completamente ignorante e impotente,
saparece sob os extraordinários efeitos da própria tec-
enquanto os governantes eram oniscientes e onipotentes. Em
nologia e seu lugar é tomado pelo irradionalismo de
tais situações, o oprimido tende fatalisticamente a adaptar-se
criação de mitos... Pessoas começam a pensar e agir
à sua condição. Uma vez que os relacionamentos que eles
de acordo com as prescrições que recebem diaria-
experienciaram e internalizaram envolvem a divisão opressor-
mente dos meios de comunicação mais do que em
oprimido, suas visões de uma vida melhor eram muito indivi-
resposta a seus relacionamentos dialéticos com o
dualistas e concentradas sobre a adesão aos opressores em vez
de eliminá-los.
5. Para uma discussão das condições específicas no Brasil sob as
quais Freire desenvolveu sua teoria e prática, ver Imperialismo, Subde-
Contudo, como Freire insiste, “o conceito de semi-intran-
senvolvimento e Educação por Barnard (1981). Para uma detalhada
sitividade não significa o encerramento das pessoas dentro delas apresentação da metodologia de Freire, ver Freire, 1973, p. 41-84.

108 109
mundo. Em sociedades de massa onde tudo é pré- todos, pressupostos, doutrinas e metas. Continuamen-
fabricado e o comportamento é quase automatizado, te, a crítica testa suas idéias na prática, permanecendo
as pessoas estão perdidas, porque elas próprias não aberta para experiências, jlexível e capaz de crítica,
têm de arriscar... tecnologia... torna-se... uma es- auto-crítica e revisão (p. 54).
pécie de nova divindade para a qual (as pessoas)
As idéias e imagens sobre o modo pelo qual o mundo é
criam um culto de veneração (1970(b), p. 49-50). que constituem uma ideologia tornam-se hegemônicas, quando
- Tanto as (aparentes) complexidades da tecnologia quanto elas servem para manter o statu quo, apresentando-o como
as (superficialmente) maravilhosas mudanças concretas que fo- “natural, bom e justo” (p. 50). Ideologias hegemônicas,
ram feitas na vida do dia-a-dia, desde a lavagem das máquinas contudo, não são simplesmente impostas pelas classes gover-
até processadores de palavras, convencem as pessoas de que o nantes e aceitas pelas massas enganadas — essas ideologias são
controle de nossa sociedade altamente técnica deve ser deixado construídas através da negociação, de modo a incorporar as
para os especialistas. Educação crítica nos Estados Unidos, idéias das pessoas de tal forma que elas não sejam perigosas
entretanto, precisa opor-se a essa crença e mostrar às pessoas para a classe. Esse processo deixa a ideologia hegemônica com
que elas podem compreender como a tecnologia opera e no contradições e sujeita a desafios.
interesse de quem. Também, educação crítica deve desafiar e De modo a centrar-se nessas contradições e desafios,
expor as contradições nessa definição de sociedade de progresso Kelver refina sua teoria pata detalhar várias regiões ideológi-
e boa vida, cas — econômica, política, social, cultural — “que reproduzem
O significado de massificação em sociedade altamente in- flo pensamento as práticas, instituições e relações em cada
campo da existência, de modo a legitimá-la e alcançar a hege-
dustrializadas é elucidado pelos conceitos de ideologia e hege-
monia” (p. 58), Tensões entre ideologias em diferentes campos
monia. Esses conceitos podem estimular a análise de como
(por exemplo, a ética do consumidor hedonístico x monogamia
uma consciência massificada é desenvolvida e perpetuada e
e família), contradições entre ideologia hegemônica e realidade
indicam modos pelos quais educação pode ajudar a romper
(por exemplo, a noção ideológica de igualdade x racismo insti-
isso. Kelver (1978), valendo-se do trabalho de Karl Korsch e
tucional), o fato de que não existe uma ideologia hegemônica
Antonio Gramsci, desenvolve uma teoria de ideologia-hegemo- unificante — isso tudo ajuda a criar uma abertura pata a
nia e de regiões ideológicas que demonstra como ideologia educação desenvolver uma teoria crítica que pode, por sua vez,
contém “momentos anti-capitalistas e oposicionistas — contra- encorajar a mudança social libertadora,
dições que produzem espaço para conflito ideológico e mudança
social” (p. 59). Para Kelver, conhecimento ideológico em con-
traste a pensamento crítico 5.3. Conteúdos e métodos de educação
tende a suprimir a reflexão e resiste mudando seu
para consciência crítica
núcleo de idéias à luz de experiência recalcitrante...
Ao desenvolver uma pedagogia crítica, nós devemos con-
Pensamento e discurso não ideológico exercita refle-
siderar tanto conteúdo quanto métodos. Conteúdo emancipador
xão e crítica consistente e sistemática sobre seus mé-

110 111
apresentado numa forma não libertadora reduz insights críti- nos quais elas, percebem essa realidade e sua visão
cos para despejar palavras que não podem desafiar a realidade do mundo, na qual seus temas geradores são escon-
tomada-por-certa dos estudantes e não pode inspirar compro- trados (Freire, 1970(a), p. 86).
misso para mudança radical. Métodos humanísticos sem con-
A análise de Apple (1979) de classificação aponta para o
teúdo crítico podem fazer os estudantes sentirem-se bem mas
valor, nesse contexto, de estudar a linguagem usada para dis-
não podem ajudá-los a tornarem-se sujeitos capazes de usar
cutir a condição de oprimido. Ele argumenta que os rótulos
conhecimento crítico para transformar seu mundo.
usados no ambiente educacional trabalham contra o desenvol-
2.
Freire é inflexível em que o conteúdo de uma educação vimento de consciência crítica, mistificando as situações e rela-
para a consciência crítica deve ser desenvolvido pela busca ções que eles descrevem, de modo que causalidade e comple-
com os estudantes de idéias e experiências que dêem signifi- xidade fiquem escondidas. Rótulos tendem a centrar culpa
cado a suas vidas (1970, p. 118). Esses temas geradores deve- sobre as vítimas e encorajar soluções dirigidas exclusivamente
riam ser organizados e re-apresentados dialeticamente de modo para elas, enquanto simultaneamente dirigem a atenção para
que os elos entre eles, seu relacionamento com a totalidade de longe dos mais amplos fatores sociais, econômicos e culturais
idéias, esperanças, valores e desafios da época, seu contexto que criaram as condições rotuladas.
histórico, seu relacionamento com a comunidade e sua razão de Uma vez que a linguagem dominante pode distorcer a
ser fossem clareados. Somente quando as pessoas chegam a habilidade das pessoas de conhecerem criticamente a realidade
conhecer esses temas criticamente, elas conseguem compreen- e que o analfabetismo pode impedi-las de objetivar o mundo
der como esses temas apóiam ou contradizem as ideologias de modo a atingir uma compreensão sócio-histórica não frag-
dominantes, e enxergam que “desumanização, embora um fato mentada dela, alguns temas fundamentais podem não emergir
histórico concreto, não é um destino dado, mas o resultado de das pessoas. Freire não vê problema com professores sugerindo
uma ordem injusta” (Freire, 1970(a), p. 28). E, somente então, temas adicionais desde que a natureza dialógica da educação
elas são motivadas a intervir para transformar aquela ordem. crítica deve respeitar as idéias de professores tanto quanto as
dos estudantes. O tema central que Freire e sua equipe acres-
Alfabetização se torna uma parte importante de um currí- centaram em seu trabalho foi o conceito antropológico de cul-
culo libertador porque a leitura capacita as pessoas a tomarem tura.
distância do imediatismo concreto de suas vidas diárias, de
modo a compreender mais claramente como suas vidas são -. «a distinção entre o mundo da natureza e o mundo
modeladas pelo mundo, ao mesmo tempo que o modelam. da cultura... Cultura como o acréscimo feita pelas
(Freire, 1983, p. 11). Além disso, o estudo da linguagem é pessoas a um mundo que elas não fizeram; cultura
vital porque como o resultado do trabalho das pessoas, de seus
esforços para criar e re-criar;... a democratização da
o objeto da investigação (de temas geradores) não cultura; a aprendizagem da leitura e da escrita como
são as pessoas (como se elas fossem fragmentos ana- chave para o mundo da comunicação escrita. Em
tômicos), mas sim a linguagem — pensamento com resumo, o papel das pessoas como sujeitos no mundo
x
a qual as pessoas se referem à realidade, os níveis e com o mundo. (Freire, 1973, p. 46).

112 113
que elas já . cação bancária — é importante também para professóres nos
Com essa compreensão, as pessoas entendem
a natureza Estados Unidos(9).
se engajaram em muitas ações que transfomatam
em cultura e, “pela compreensão do que é cultura, (elas) pas- Quando a equipe de Freire discutiu os temas geradores
sam a compreender o que é história. Se nós podemos mudar a com as pessoas, elas colocaram como problemas o que elas
natureza do que nós não fizemos, então porque não podemos tinham aprendido da sua investigação. Esses problemas não
mudar as instituições que fizemos?” (Freire, 1982) tinham respostas exatas, típicas dos exercícios de livros-texto,
mas pretendiam desafiar alunos e professores a responderem
Um tema central que Apple (1979) sugere para inclusão no
através do diálogo e da ação conjunta, Os currículos tradício-
currículo nos Estados Unidos é a natureza do conflito. Ele
nais de resolução de problemas, isolam e simplificam aspectos
teoriza que um bloqueio significante para transformar cons-
particulares da realidade, de modo a dar a aos estudantes a prá-
ciência massificada em consciência crítica é a ideologia de que
ticad e certas técnicas. A colocação freireana de problemas
em nossa sociedade pluralista os interesses de todos os grupos

pretende revelar as interconexões e complexidades de situações
(por exemplo, negócio, trabalho, desemprego) são os mesmos
da vida real onde “muitas vezes os problemas não são resol-
que política e instituições são formadas por consenso.
vidos e somente uma excelente compreensão da sua natureza
Uma hipótese básica parece ser que o conflito entre pode ser possível” (Connolly, 1981, p. 73).
grupos de pessoas é inerentemente e fundamen-
Além disso, a colocação freireana de problemas pretende
talmente mau e nós deveríamos nos empenhar em envolver os estudantes num diálogo e numa investigação com
eliminá-lo dentro da estrutura estabelecida das insti-
Os professores. Freire insiste em que as pessoas não podem
tuições mais precisamente do que ver conflito e con-
aprender através de um processo bancário — professores espe-
tradição como as “forças matrizes” básicas na socie-
cialistas depositando conhecimênto nas presumivelmente men-
dade. (p. 87)
tes vazias de seus estudantes, que 'memorizam as regras exi-
Apple continua a argumentar que pelo estudo dos aspectos gidas, de modo a conseguir futuros dividendos. Ele enfatiza
positivos do conflito, tal como seu papel em promover mu- que esse diálogo não envolve a pretensa ignorância dos pro-
dança criativa e emdirigir a atenção para a injustiça, os estu- fessores. Desde que ninguém é onisciente e que cada pessoa
dantes desenvolverão o insight crítico de que a sociedade não tem diferentes experiências relacionadas aos temas que estão
é estática, sendo investigados, professores e alunos podem realmente
Por mais que os temas surjam como o conteúdo de um
currículo libertador, a teoria de Freire insiste em que preste- 6. Embora este artigo focalize Matemática e Estatística básicas, a
teoria de Freire pode também iluminar outras áreas do conhecimento
mos igual atenção aos métodos pelos quais as pessoas e pro- matemático. Algumas dessas conexões são sugeridas pelas idéias acerca
fessores co-investigam essas idéias. Embora sua metodologia da natureza do conhecimento matemático abstrato em Gordon (1978)
tenha sido desenvolvida para lavradores em vários países do e Kline (1980). Em sua introdução, Kline cita Hermann Weyl, um dos
mais proeminentes matemáticos do século 20, * “Matematização” pode
Terceiro Mundo, seu enfoque sobre colocação de problema em
bem ser uma atividade criativa do homem, como linguagem ou música,
contraste com resolução de problema — junto com seu com- de primeira originalidade, cujas decisões históricas contestam completa
prometimento mais com educação dialógica do que com edu- racionalização objetiva” (p. 6).

114 115
para transformar o mundo. A próxima seção deste escrito se
aprender um com o outro. Particularmente, uma vez que a
Crise da Alfabetização está sendo substituída nos meios de refere a minhas experiências usando a teoria de Freire para
comunicação de massa pela Crise do Pensamento Crítico na ensinar Matemática. Os detalhes específicos são apresentados
educação Americana (Daniels, 1983, p.5, nota 2), precisamos para fornecer um estudo de caso de como a teoria de Freire
ressaltar o ponto de vista de Freire de que “Nossa tarefa não pode gerar ensino crítico, Eles também apóiam a crença de
é ensinar os alunos a pensarem, eles já podem pensar; mas que conhecimento crítico de Estatística é vital para a trans-
trocar mutuamente nossos modos de pensar e buscar melhores formação de nossa sociedade tecnológica.
maneiras de abordagem e decodificação de um objeto” (1982).
Contudo, Freire é igualmente insistente em que seu conceito
de educação dialógica não significa que os professores sejam
meramente presenças passivas, acidentais (1982). Eles ouvem 9.4. À teoria de Freire para professores de
os alunos para descobrir temas que então organizam e apre- Matemática
sentam como problemas, desafiando as percepções prévias dos
Todas as pessoas refletem sobre sua prática em algum
alunos. Os professores também sugerem temas que julgam im-
nível; trabalho mental e manual nunca pode ser completamen-
portantes. Os professores podem ser fortes influências, sem
te dividido. Mesmo os professores de Matemática que nunca
serem superiores, que controlam totalmente o ambiente de
tenham ouvido falar de Polya (1957, 1981) ou Freire pensarão
aprendizagem.
sobre problemas tais como explicar a distribuição amostral da
2
O oposto de manipulação não é uma neutralidade média de modo que os estudantes não a confundam com a dis-
iribuição de escores dentro de uma amostra. Entretanto, o
ilusória, nem é ela uma espontaneidade ilusória. O
estudo da teoria aprofunda a natureza dessas reflexões; em
oposto de ser diretivo não é ser não diretivo — que
particular, eu acredito que uma estrutura teórica muda a pro-
é igualmente uma ilusão. O oposto tanto de mani-
fundidade e os tipos de questões que se consideram quando se
pulação como de espontaneidade é participação cri-
pensa sobre a própria prática. A teoria de Freire compele os
tica e democrática pelos aprendizes no ato de co-
(Freire, 1981,
professores de Matemática a provarem os significados não po-
nhecer, do qual eles são os sujeitos
sitivos do conhecimento matemático, a importância do
p. 28). racio-
cínio quantitativo no desenvolvimento de consciência crítica,
Os aspectos da teoria de Freire que eu discuti acima fa- as formas pelas quais a ansiedade matemática ajuda a sustentar
lam aos professores em busca de caminhos para conciliar sua ideologias hegemônicas, e as conexões entre nosso currículo
prática de sala de aula com lutas por mudança social. De modo específico e o desenvolvimnto de consciência crítica. Além
a desenvolver uma pedagogia do oprimido, Freire sustenta que disso, sua teoria pode fortalecer nossa energia na luta por huma-
nização, focalizando nossa atenção sobre os inter-relacionamen-
precisamos explorar a natureza não positivista do conhecimento
tos entre nossa prática de ensino diária concreta e o contexto
que estamos ensinando, e as maneiras pelas quais a produção
de tal conhecimento aprofunda o compromisso e envolve ação ideológico e estrutural mais amplo.

116 117
exemplo, Karl Pearson, uma importante figura no desenvolvi-
5.5. À Epistemologia de Freire e o significado
mento da teoria estatística moderna, encontrou diferenças “es-
de conhecimento de Matemática e
Estatística básicas tatisticamente significantes” em características físicas e inteli-
gência de crianças judias — levando-o a concluir que elas não
Os meios de comunicação de massa, a maioria dos cien- deveriam ter permissão para emigrar para a Grã-Bretanha (p.
tistas sociais e o senso comum assumem que o conhecimento 101-102). Mas que significância substantiva tem isto quando
matemático consiste de fatos neutros descobertos, não criados essas características são tão claramente ambientais? Também,
por pessoas através de suas interações com O mundo. Clínicos a natureza da probabilidade requer inferência estatística para
alegam que as estatísticas são todas auto-serventes de mentiras. estar incerta — uma hipótese de pesquisa testada significante
Uma análise freiteana, diferente dessas abordagens, direciona ao nível de 0,05 dá impressão de certeza, ao passo que isto
nossas reflexões para o relacionamento entre subjetividade e significa que existe uma chance de 5% de que a hipótese é
objetividade na produção de conhecimento matemático. falsa. Eventos com probabilidade inferiores algumas vezes ocor-
rem; os testes de significância apenas permitem aos pesqui-
Um curso tal como “Estatística para as Ciências Sociais”
sadores estarem razoavelmente (digamos, 95%) certos de que
proporciona muitas oportunidades para examinar como a es-
na descrição e coleta de dados o evento descrito por suas hipóteses não é devido ao acaso.
colha subjetiva está envolvida
Contudo, os testes não podem determinar qual das várias teo-
e no fazer inferências sobre o mundo. Por exemplo, Max (1981) e
(1981) mostram como o governo faz os gastos rias possíveis explica o evento. Por exemplo, R.A. Fischer, au-
Greenwóod
tor de um texto de Esttatística moderna vastamente usado, usa
militares parecerem menores incluindo fundos. administrados
tais como Segurança Social na porção do orçamento destinados resultados de um teste qui-quadrado, mostrando uma maior
aos serviços sociais e calculando os gastos relacionados a guer- fregiiência estatisticamente significante de criminalidade dentre
ra tais como a produção de novos mísseis nucleares, programas gêmeos monozigóticos do que dizigóticos de criminosos, para
espaciais e programas de veteranos como parte de várias cate- concluir que isto acontece por causa de fatores genéticos. Ele
gorias não militares como o orçamento do Departamento de ignora qualquer outra explicação possível, tal como o trata
Energia (os mísseis!) e Pagamentos de Benefícios Diretos (sa- mento de pessoas e expectativas de gêmeos idênticos versus
lários dos veteranos). O governo calcula que 25% do otça- gêmeos parecidos (Schwartz, 1977, p. 28).
mento é destinado para “Defesa Nacional”; o cálculo de Max
O conceito de Freire acerca de conhecimento crítico nos
e Greenwood dá um quadro de 57% do orçamento destinado
conduz a explorar não meramente como as estatísticas são não
a pagar por “Guerras Passadas, Presentes e Futuras”. Atkins e neutras, mas por que e no interesse de quem. Certamente não
Jarret (1979) mostram como testes de significância, uma das
é acidental que as estatísticas são muito mais úteis aos conser-
técnicas de inferência estatística mais comumente usadas podem
vadores do que aos radicais. Nem é acidental que, apesar da
ser usados para fornecer decisões definitivas e aparentemente fragilidade técnica dos testes de significância, muito computador
objetivas numa forma basicamente superficial” (p. 103). Uma padrão de ciência social acondiciona deficiência de procedi-
razão disto ocorrer é que um resultado numérico favorável mentos convenientes para estimativa, uma alternativa para tes-
num teste de significância não dá qualquer garantia de que as
tes de significância que pode ser avaliada por critérios es-
medidas usadas no estudo são significativas. Em 1925, por

118 119
tatísticos e outros, e pode facilitar a comparação dentre as mente para outros propósitos. Por exemplo, na Inglaterra, as
investigações. estatísticas de desemprego estão baseadas em registros mantidos
por centrais de emprego, assim, os trabalhadores que faltam
Por outro lado, os milhares de trabalhadores do governo para registrar são omitidos dos relatórios oficiais (Hyman e
e cientistas sociais de universidade que produzem este conheci. Price, 1979). Um outro fator envolve pressões sobre cientistas
mento estatístico não são forçados a usar métodos cujos efeitos sociais por parte de jornais que aceitam apenas artigos que
apoiarão uniformemente as classes dominantes. Um exame da relatam resultados estatisticamente significantes e por parte de
história da Estatística pode ajudar a explicar como o conheci- universidades que conferem direitos apenas a professores lar-
mento estatístico surge naturalmente das condições de nossa
gamente reconhecidos. Isso naturalmente resulta em insufi-
sociedade, de uma tal maneira que sua produção é controlada ciência de informação de resultados que são estatisticamente
pelas classes dominantes. Shaw e Miles (1979) traçam o curso
não significantes. Assim, um pesquisador, por acaso, pode pro-
de seu desenvolvimento para a expansão do comércio e das duzir e publicar uma averiguação estatisticamente significante,
necessidades de mudança do Estado. Em Londres do século enquanto vários outros, pesquisando o mesmo problema, não
dezesseis, as condições comprimidas das cidades, que surgiram encontram qualquer significância estatística, mas, uma vez que
do crescimento de mercados, criaram o ambiente para epide- seu trabalho não seja publicado, nenhum conflito dentre os
mias, muito difundidas, que levaram à primeira coleta de esta- resultados pode ser detectado (Atkins e Jarret,
tísticas de mortalidade. Como essas estatísticas foram refinadas, guida, a categoria de Giroux de aprepriação focaliza a atenção
1979). Em se-
elas se tornaram mais úteis para as classes dominantes. Por sobre como, apesar dos muitos fatores resultantes no que ele
exemplo, o governo de William e Mary pagou pelo empréstimo chama uma afinidade seletiva por pessoas para produzir co-
para conduzir a guerra contra a França com rendas vitalícias
nhecimento estatístico para apoiar os interesses das classes
cujo valor foi calculado usando estatística sobre probabilidades
dominantes, as pessoas podem ainda aprender a partir de esta-
de vida das pessoas em vários grupos de idade. No século deze-
tísticas. Isto é possível porque o conhecimento estatístico pode
nove, o surgimento do capitalismo industrial acarretou º assu-
ser analisado criticamente, examinando seus interesses
mir do Estado de um grande papel em fornecer condições sob subja-
centes e métodos de coleta, descrição, inferência e
as quais a indústria privada poderia prosperar, incluindo a ex- por consi-
deração histórica, filosófica, e outros insights à parte do conhe-
pansão e centralização de conhecimento estatístico. Uma conse-
giiência disto foi que, em 1832, o Departamento de Estatística cimento estatístico. Finalmente, a categoria de transcendência
da Câmara de Comércio foi encarregado da arrecadação e or de Giroux insiste em que critiquemos não apenas as estatísticas
ganização de material concernente à “riqueza, comércio e in- existentes, mas que também exploremos que novos conhecim
en-
dústria” da Grã-Bretanha. tos poderiam ser produzidos, compatíveis com humanização.
Paralelamente a esta linha, Griffiths, Irvine, e Miles
A categoria de Giroux (1981) de mediação estende esta (1979)
sugerem que novas técnicas estatísticas para coleta de
análise histórica chamando nossa atenção para a combinação dados
sejam desenvolvidas. Por exemplo, levantamentos interativ
de fatores estruturais e individuais que geram a produção desse os po-
deriam, ao invés de tratar os respondentes como isolados,
conhecimento. Um fator envolve eficiência organizacional, objetos
passivos, torná-los participantes na análise de como eles
que resulta em certas estatísticas que são produzidas como po-
subproduto de sistemas administrativos que existem principal- dem usar a informação colhida para melhorar suas vidas.
Mais

120 121
contribuintes mais ricos
adiante, Shaw e Miles (1979) formulam a hipótese de que, numa era $ 45,000 (Babson & Brigham,
1978, p. 37). Também em 1980, & 510 milhões de nosso di-
sociedade libertadora
nheiro de imposto pagaram por novos aeroportos para que pi-
nós substituiriamos contabilidade em termos de di- lotos privados não aterrissassem seus aviões em grandes aero-
nheiro e benefício por contabilidade em termos de Portos comerciais (Judis & Noberg, 1981, p. 22). Além disso,
necessidades sociais. Nós substituiriamos a definição a concepção errônea das pessoas de que o conhecimento esta-
de metas sociais por aquelas dos topos das pirâmides tístico é objetivo e livre de valor afasta dúvidas de tais dados.
burocráticas, por autocontrole democrático sobre todas Como Marcuse (1964) afirma:
ts atividades coletivas. Nós exigiríamos, então, novas
formas de medir nossas necessidades e metas, que ex- Nesta sociedade, o racional mais do que o irracional
pressassem sua grande variedade, mais do que redu- se torna o mais efetivo veículo de mistificação. .. Por
zissem-nas a valores de dinheiro ou padrões impostos exemplo, a abordagem científica para o problema
de cima (p. 36). opressivo de aniguilação mútua — a Matemática e
cálculos de matança e supermatança, a medida de
ocorrência de divulgação ou paradivulgação ocorrem
5.6. Educação Matemática e mudança social « — é mistificante à medida que promove (e até
libertadora mesmo exige) comportamento que aceita a insanidade.
Ele neutraliza assim um comportamento verdadeira-
Aplicar a teoria de Freire para Educação Matemática dire- mente racional — a saber, a recusa para prosseguir e
ciona nossa atenção para com os mais correntes usos da Mate- o esforço para acabar com as condições que produ-
mática apóiam ideologias hegemônicas, como educação matemá- zem a insanidade (p. 189-190).
tica também reforça ideologias hegemônicas e como educação
Educação matemática tradicional apóia as ideologias he-
matemática crítica pode desenvolver compreensão crítica e levar
gemônicas da sociedade, especialmente através do que Giroux
à atenção crítica.
chama silêncios estruturados. Mesmo aplicações matemáticas
Um fator significante na aceitação dessas ideologias hege- triviais como somar as contas do armazém carregam a mensa-
mônicas da sociedade é que pessoas não exploram as mistifi- gem ideológica de que pagar por alimento é natural e de
que
cações matemáticas, que, em sociedade industrial avançada, fun- a sociedade só pode estar organizada de uma tal forma que
ciona como apoio vital dessas ideologias. Uma poptlação mate- as
Pessoas comprem alimento de mercearias. Também é raro so-
maticamente analfabeta pode ser convencida, por exemplo, que licitar aos estudantes que avaliem sua própria compreensão de
programas de bem-estar social são responsáveis por seu deca-
Matemática. Meus alunos estão convencidos de que estão
dente padrão de vida, porque tais programas não pesquisam se
iludindo, se conferirem seu próprio trabalho usando uma res-
os números para revelar que bem-estar para o rico faz pa-
recer menor qualquer parco subsídio dado para o pobre. Por posta-chave ou com o de outra pessoa, e eles não têm qualquer
exemplo, em 1975, o máximo pagamento para um Auxílio experiência de analisar quais tópicos específicos estão lhes
dan-
por Crianças Dependentes numa família de quatro era $ 5.000 do dificuldade, Antigamente, quando não poderiam fazer
uma
e a média de juros em imposto para cada um dos 160.000 alegação, eles expressavam apenas confusão geral e forneciam

122 123
ansiedade, Envolve também o reconhecimento de que, razoa-
o controle de sua aprendizagem ao professor para diagnos- velmente, as pessoas participam de sua própria descapacitação
ticar o que necessitavam revisar. Isto reforça a ideologia he- matémática. Considerável pesquisa (resumida em Becwith,
gemônica de destreza — de que algumas pessoas possuem 1983) documentou que
uma grande quantidade de conhecimentos que só podem ser
obtidos delas e que elas concederão somente se você seguir diferenças sexuais em atitudes e treinamento matemá-
as regras. tico... não são o resultado de escolha livre e infor-
mada... Elas são o resultado de muitas forças sutis
Um dos obstáculos que a educação matemática crítica deve
(e não tão sutis), restrições, estereótipos, papéis se-
superar nos Estados Unidos é a ansiedade matemática das
xuais, atitudes de grupos de pais e de professores e
pessoas. Uma vez que, como Freire salienta, as pessoas que não
de outras repressões culturais e psicológicas. (Ernest
estão cientes da razão de ser de sua situação, fatalmente acei-
et al., 1976, p. 11)
tam sua exploração, professores e estudantes devem consi-
derar as causas que estão por trás da ansiedade matemática Pesquisa adicional precisa ser feita. Em particular, pteci-
como parte do desenvolvimento de educação matemática crí- samos investigar como tratamento diferencial baseado em raça
tica. As causas pedagógicas imediatas da situação — tais como e classe interage com ansiedade matemática e fuga. Preci-
exercício mecânico sem significado, ensinando de modo que samos também explorar porque a pesquisa sobre ansiedade de
exige extensiva memorização, e aplicações desmotivadas que Matemática focaliza-se apenas sobre o relacionamento entre sexo
não são relacionadas à Matemática que se usa realmente na e aprendizagem matemática,
vida diária — criam uma situação onde as pessoas natural- Além dos efeitos de discriminação sexual, de raça e de
mente evitam Matemática (Hilton, 1980). Discussão com alu- classe social, a ideologia hegemônica de aptidões — a crença,
nos ajudaram-me a reconceitualizar essas causas pedagógicas em relação à Matemática, de que apenas algumas pessoas tem
em termos de concepções errôneas sobre aprendizagem. Uma uma mente matemática — precisa ser analisada. A crença
concepção errônea se refere ao processo de grupo em aprendi- de mulheres de que os homens têm mais aptidão matemática
zagem. Os estudantes, muitas vezes, sentem que devem ser foi explorada. Tobias (1978) discute a pesquisa, investigando
capazes de resolver um problema por si próprios antes que as mensagens ocultas em conteúdo e imagens de livros-texto de
possam contribuir ao grupo. Eles não concebem a idéia de Matemática; Beckwith (1983) resume estudos de influência de
que coletivamente um grupo pode resolver problemas que mem- meios de comunicação sobre a percepção de meninos terem
bros individuais, trabalhando sozinhos, não poderiam resolver. habilidades matemáticas alegadamente superiores. Entretanto, a
Uma outra concepção errônea é a idéia de que “uma resposta discussão de Apple (1979) de classificação sugere que mais
errada é totalmente errada, e nada pode ser aprendido anali- pesquisa precisa ser feita sobre os efeitos contraditórios do
sando-a” (Frankestein, 1983). termo ansiedade matemática. Os estudantes são inicialmente
aliviados de que seus sentimentos sobre Matemática são tão
A compreensão das causas mais profundas de ansiedade
comuns que os educadores têm um nome para eles. Mas, na
matemática envolve uma investigação de como as estruturas e
verdade, este rótulo focaliza o problema, e, portanto, as solu-
ideologias hegemônicas de nossa sociedade resultam em dife-
ções em fracasso individual, mais do que no contexto social
rentes grupos, sendo uns mais afetados que outros por esta

124 125
poles estudadas, das áreas e grupos cuja opiniã
na pro- o pú-
mais amplo que desempenha um tal papel significante blica é apurada ou cuja chance de sobrevivência
t (1979) de- é
dução de ansiedade matemática pessoal. Bissere calculada. -- Este contexto real em que os temas par-
monstra como a linguagem funciona ideologicamente para apoiar
hu- ticulares obtêm sua real significância é definível
so-
a crença de que “uma diferença em essência dentre seres mente dentro de uma teoria de sociedade (p. 190).
de fenôme nos psíquic os
manos... predetermina a diversidade
esta ideo-
e mentais” (p. 2). Sua análise esclarece o papel que
logia de aptidões desempenha nas crenças das pessoas de que 9.7.
e Conteúdo e métodos em Educação
a dada estruttura de sociedade é natural e inevitável,
Matemática crítica
sugere pesquisa adicional a ser feita na revelação dos fatores
complexos por trás da ideologia de uma mente matemática. o De modo a aplicar a teoria de Freire à educação
Bisseret argumenta que essa ideologia resulta em linguagem es- mática crítica precisamos considerar que conhecimento
mate-
pecífica de classe; precisamos considerar como esta linguagem matemá-
tico é envolvido pelos temas geradores dos nossos estudan
encoraja grupos dominados a acreditarem e agirem como se ti- ao mesmo tempo que esclarece essas teorias. Na maioria
tes
vessem mentes não matemáticas. dos
ambientes escolares, os professores não conseguem conhec
er seus
Educação matemática crítica pode desafiar os estudantes a alunos assim como as equipes de Freire conseguiram
conhecer
questionarem essas ideologias hegemônicas usando estatística as comunidades nas quais ensinavam. Contudo, os profess
ores
para revelar as contradições (e falsidades) sob a aparência des- podem questionar os estudantes sobre os problemas que
os preo-
sas ideologias, fornecendo experiências de aprendizagem onde cupam no trabalho, sobre as atividades fora do trabalh
o que
lhes interessam, sobre tópicos que eles gostariam de
estudantes e professores sejam co-investigadores e onde os conhecer
com mais profundidade, e assim por diante. Essas discuss
estudantes com ansiedade matemática superem seus medos. ões
podem indicar o ponto de partida para o currículo.
Além disso, educação matemática crítica pode ligar este ques- Então a
contribuição do professor pode ser ligar os meolilemãs
tionamento com ação, tanto ilustrando como grupos organizados dos alu-
nos a uma investigação das ideologias hegemônicas relacionadas.
de pessoas estão usando estatística em suas lutas por mudança
Qualquer tópico pode ser. assim conectado; por exemplo, arte
social, quanto fornecendo informação sobre tais grupos locais pode levar a uma exploração de tais áreas como a ideolog
dos quais os estudantes podem querer participar. Mais impor- ia
de conhecimento de status elevado, a ideologia de bom gosto
tante que tudo, educação matemática crítica deve tomar seria-
e a co-modificação de cultura(”).
mente a recomendação de Marcuse (1964) de que
Além disso, quase todas as habilidades e
conceitos de Ma-
O problema é que a estatística, medidas, estudos de o e Estatística básicas, assim como a nature
za crítica
campo de sociologia empírica e ciência política não o conhecimento estatístico, podem ser aprendidos
no contexto
são suficientemente racionais. Elas se tornam mistifi-
cantes à medida que são isoladas do contexto verda- n di Qualquer tópico pode ser conectado à Matemática
também: sem-
deiramente concreto que constrói os fatos e determina pre hã estatística sobre aquele tópico. Neste caso, existe
até um grande
. número de artistas contemporâneos cujo trabalh
sua função. Este contexto é maior e diferente daquele o é baseado em estru-
turas matemáticas específicas (Frankenstein, 1982).
das plantas e lojas investigadas, das cidades e metró-

126 127
do
de trabalho em aplicações que desafiam as contradições envol- fiam as ideologias hegemônicas, mas os estudantes interessados
vidas na manutenção das ideologias hegemônicas(*). Por exem- podem também trabalhar com os vários grupos, unindo reflexão
plo, a crítica de Max e Greenwood das estatísticas oficiais sobre estatística com ação para mudança social. A Aliança pata
sobre a parcela militar do orçamento federal pode ser usada Necessidades Humanas Básicas, em Boston, usa Estatística (por
pata aprender percentagens e gráficos de círculo. Além disso, exemplo, mostrando que os custos reais de asilos em cada cidade
os estudantes podem discutir como decidiriam apresentar a crí- principal de Massachusetts excedem o auxílio bem-estar AFDC),
tica, e quais aspectos desta pesquisa e apresentação eles con- para lutar por condições decentes para o bem-estar (de pobres)
trolam. Escolheriam apresentar suas críticas usando dados brutos, dos receptores. A Associação Internacional de Engenheiros Me-
percentagens ou gráficos? Eles concordam com Max que o cânicos teve um estatístico para preparar um relatório sobre “O
programa espacial deveria ser considerado parte do custo de Impacto de Gasto Militar Sobre a União de Engenheiros Mecã-
“Guerras Passadas, Presentes e Futuras”? Discutindo como apre- nicos” (Anderson, 1979, observação 3) que documenta que “à
sentar a estatística para demonstrar que os Estados Unidos pro- medida que cresce o orçamento militar, e aumentam os con-
porcionam bem-estar ao rico pode incluir prática de operações tratos de mediação, a estabilidade de empregos de Engenheiro
aritméticas; os estudantes precisam dividir de modo a descre- Mecânico em indústria militar declina” (p. 1). Serviços de Con-
ver os dados de furo em impostos, como “cada um dos 160.000 tra-Informação (CIS), um grupo de jornalistas com base em
mais ricos contribuintes conseguiram nove vezes o tanto de Londres, membros de sindicatos e estatísticos, reconceitua in-
dinheiro quanto ao máximo auxílio AFDC para uma família formação em relatórios associados oficiais, a pedido de traba-
de quatro”. Estes mesmos dados ajudam os estudantes a apren- lhadores das companhias envolvidas. A CIS publica “Anti-Re-
der o significado de grandes números; eles podem considerar latórios” que apresentam uma análise crítica da estatística da
os serviços que os impostos totais não pagos por esses 160.000 companhia. O Anti-Relatório da CIS sobre a Ford (1978,
ricos ($ 7.200.000.000 = 7,2 bilhões) poderiam ser fornecidos observação(*), por exemplo, usa os dados da companhia para
se este dinheiro fosse incluído no orçamento federal. Para um mostrar que a Ford estava exagerando a rentabilidade de sua
exemplo final, Gray (1983) apresenta usos positivos de técnicas operação na Alemanha Ocidental e diminuindo a de suas fá-
estatísticas (tais como qui-quadrado e análise de regressão) em bricas britânicas. Uma vez que os trabalhadores do Reino Uni-
casos legais. Em uma situação, tais técnicas foram usadas para do eram mais militantes em suas exigências do que os trabalha-
mostrar que em seleção de júri “uma hipótese de seleção ao dores alemães, a Ford usou sua estatística falsificada para inti-
acaso, isto é, de nenhuma discriminação, é tão improvável midar os trabalhadores do Reino Unido com seu alegado pobre
quanto tornar plausível que algum outro processo possa ter desempenho. Para um outro exemplo, o Anti-Relatório da CIS
sido posto em funcionamento” (p. 72). sobre Rio Tinto Zinc (RTZ) Corporation (1972, observação 5),
Não apenas as habilidades e conceitos matemáticos podem usou dados da RTZ de que 42% de seus lucros foram produ-
ser aprendidos na sala de aula a partir das aplicações que desa- zidos na África do Sul, enquanto que apenas 7,7% de seus
ativos foram situados lá, junto com informações adicionais que
8. Para mais exemplos de Matemática básica, ver meu artigo que
a CIS pesquisou, para defender sua acusação de que esses altos
se centra em conteúdos e métodos (Frankenstein, 1981). Para mais lucros vieram diretamente dos baixos salários pagos aos mi-
exemplos de Estatística, ver Horwitz e Ferleger, 1980. neiros negros da RTZ,

128 129
Assim como esses exemplos de Matemática desafiam os
alunos provavelmente formulam questões que os professores
estudantes a reconsiderarem suas crenças tomadas por certo
não serão capazes de responder e que alunos e professores
previamente, eles também aprofundam e aumentam o alcance
terão de pesquisar juntos. Por exemplo, a tabela seguinte pode
de questões que eles fazem sobre o mundo, Logo que a idéia de
ser usada para iniciar um diálogo com os alunos que tenham
comparar os resultados de gastos militares com gastos civis em
sugerido previamente o tema de racismo:
empregos é introduzida, pode-se então formular essa mesma
questão de outros gastos governamentais. Por exemplo, são
TABELA 1
criados mais empregos através do gasto com conservação de
energia nuclear? E mais, aprendendo e recriando uma teoria Renda média de famílias brancas e negras 1969-1977
de educação matemática e mudança social com seus professo-
1969 1972 1974 1975 197% 1977
res, os estudantes podem desenvolver sua capacidade para cri-

eme mom
ticar ideologia em geral. Negras & 5,999 6,864 8,006 8,779 9,242 9,563


Brancas 9,794 11,549 15,408 14,268 15,537 16,740
A metodologia de Freire tem muito em comum com idéias
humanísticas sobre ensino centrado no aluno, mas suas idéias (Fonte: Census Bureau, Current Population Reports, P-60 Séries)
vão além daqueles métodos em termos de suas intenções. Ela
não é meramente um conjunto de técnicas que qualquer pro- Aos alunos pode ser inicialmente solicitado que descrevam
fessor dedicado que respeita seus alunos pode usar. Em vez qual o ponto principal da tabela, ou seja, um exercício em que
disso, pretende-se que ela seja parte do processo de desenvolvi- eles podem praticar tais habilidades como comparar números,
mento de novas relações sociais na luta por humanização. A subtração, ou achar que percentagem um número é de outro.
metodologia de Freire dirige a atenção dos professores de Ma- A medida que a investigação se aprofunda, alunos e professores
temática para como os estudantes com grandes lacunas em sua são iguais em problematizar que outras estatísticas poderiam
bagagem matemática podem, na prática, co-investigar os aspectos clarear o tema de racismo (por exemplo, comparações por raça
estatísticos de seus temas geradores. Dixeciona também os de razões de mortalidade materna; comparações por raça de
estatística de desemprego; comparações de latinos com negros
professores a considerarem como os estudantes se tornam inde-
e brancos). A importância da estatística em revelar padrões
pendentes em decodificar os problemas codificados na barragem
institucionais, em contraste com exemplos pessoais de racismo,
de dados quantitativos encontrados em suas vidas.
é também apresentada por esta pesquisa. Mais profundidade é
Explorando os aspectos estatísticos dos temas dos alunos, acrescentada à investigação por alunos e professores que pes-
de uma tal forma que a Matemática envolvida começa em um quisam juntamente e que consideram vários estudos de ciências
nível muito básico, e tendo os alunos que colocar problemas sociais que usam técnicas estatísticas mais avançadas para cla-
acerca dos dados, mesmo se eles ainda não podem resolver rear o tema. Reich (1978), por exemplo, usa coeficientes de
esses problemas, professores e alunos são verdadeiramente co- correlação entre várias medidas estatísticas de racismo e renda
pesquisadores. Uma vez que os professores de Matemática não dos brancos para mostrar que racismo resulta em salários mais
terão anteriormente investigado muitos dos temas sugeridos, os
baixos para trabalhadores brancos, assim como para negros,
e mais altos lucros para a classe capitalista. Finalmente, qual-
130
131
é um outro método para terem que refletir sobre seu processo
quer investigação temática deve incluir mais do que só dados
de aprendizagem. Os diários podem ser aberturas para os sénti-
estatísticos. Como Reich comenta, neste caso,
mentos dos alunos sobre Matemática e podem atuar como um
os economistas simples de racismo não explicam por- registro concreto do progresso para os alunos que tantas vezes
que muitos trabalhadores parecem ser tão veemente- depreciam seus sucessos e focalizam-se sobre o que não podem
mente racistas, quando o racismo não está em seu fazer. O diário ajuda os alunos a compreenderem que podem ago-
próprio interesse econômico. De maneiras não econô- ra realizar o que há um mês atrás pensavam que era impossível.
micas, o racismo ajuda a legitimar desigualdade, alie- Ajuda-os a clarear com que técnicas de aprendizagem traba-
nação, e legitimação de impotência que é necessária lham melhor e por quê, e pode dar-lhes reforço pessoal por
para a estabilidade do sistema capitalista como um parte do professor e/ou outros alunos, oferecendo encoraja-
todo... Através do racismo, brancos pobres passam mento e perspectivas alternativas. O diário é também uma outra
a crer que sua pobreza é causada por negros que estão maneira para os estudantes estarem envolvidos com o professor
desejando tomar seus empregos, e por salários mais no planejamento do currículo, à medida que seus comentários
baixos, ocultando-se, assim, o fato de que uma quanti- sobre sua aprendizagem e reações à aula são consideradas em
dade substancial de desigualdade salarial é inevitável lições futuras. A seguir está um exemplo de um dos diários de
em uma sociedade capitalista (p. 387). meus alunos:
O exemplo acima ilustra, também, como uma análise dia-
Aula 6: Eu sei que finalizei minha última declaração
lógica envolvendo a interpretação de dados estatísticos ajuda neste diário dizendo que: “Estou pronto para pegar
os alunos a praticarem o pensamento lento e cuidadoso neces- a próxima aula”, mas não estava. Estava muito can-
sário para produzir qualquer conhecimento crítico. Esta prática, sado e tudo tornou-se aborrecido, já no início da aula.
combinada com oportunidades pata refletir sobre o processo Tenho que aprender a controlar meus sentimentos de
de aprendizagem, ajuda os alunos a se tornarem aprendizes ser crítico de problemas de outras pessoas em Álge-
independentes. Muitas de tais oportunidades surgem do envol- bra. Encontrei-me pensando sobre as questões que al-
vimento dos alunos na avaliação. Por exemplo, à medida que guns dos outros fizeram como sendo elementares. Eu
os alunos trabalham na revisão de problemas, eles podem res- só assumi que, se eu compreendo, todos deveriam fa-
ponder a legendas que colocam questões sobre erros potenciais. zêlo. Alguns dos problemas, eu tive um pouco de
Por meio disto, os alunos são encorajados a tomar como alvo dificuldade ao fazê-los, mas não mencionei isso na aula
seus próprios enganos e determinar quão bem compreenderam porque senti que pareceria estúpido, ou deveria dizer
cada problema. Pode ser solicitado a eles que escolham entre incapaz de compreender o que estava sendo dito. Fi-
respostas erradas porque se confundiram, respostas corretas, nalmente comecei a combater os sentimentos que tinha
mas incerteza de método e compreender bem o suficiente sobre os problemas de outras pessoas e comecei a ficar
para ensinar os outros. Os alunos podem aprender muito sobre mais atento ao que estava sendo questionado. Comecei
colocação de problemas, avaliando a clareza, a dificuldade e o a compreender mais e mais e, em um momento, as
interesse de problemas de outros alunos e professores. Final- questões que desejava fazer eram respondidas assim,
mente, devem os estudantes manter um diário de Matemática, não era tão estúpido, afinal de contas.

132 133
Meus comentários na margem observavam que é difícil ser os alunos? Como Jlidarmos com a realidade concreta diária dos
paciente com os problemas dos outros, mas que afinal de con- alunos adultos cujos compromissos de família e trabalho tor-
tas, ele queria que os outros fossem pacientes com seus pro- nam difícil fazer sua tarefa ou mesmo prestar atenção à
blemas. Sugeri que poderia ser mais interessante para ele se aula? Como trabalharmos dentro das enormes tensões criadas
tentasse responder os problemas dos outros alunos, ajudando-os em nossa sociedade entre o desejo dos alunos por avanço
a ver exatamente o que os estava confundindo. Também objetei individual e nossa visão radical de progresso coletivo?
quanto a seu uso do rótulo estúpido, e elogiei seu insight no Os professores, evidentemente, são também afetados pelas
processo de aprendizagem. Terminei questionando se ele leria pressões da vida diária e das estruturas de nosso local de tra-
esta anotação para a classe inteira como uma maneira de intro- balho. Freedman, Jackson, e Boles (1983) mostraram como as
duzir uma discussão sobre o que podemos aprender de trabalho condições que os professores de escola elementar encontram em
coletivo. Este apontamento de diário ensinou-me sobre a im- sua situação escolar do dia-a-dia — condições tais como a ên-
portância de tais discussões em ajudar qualquer um a com- fase esmagadora em quantificação (tanto em resultados das
preender quanto pode ser aprendido se alguém coloca um crianças quanto em manutenção de registros), a deficiência cres-
problema, cente de controle sobre o currículo (separando concepção de
execução), o isolamento de seus pares, o tratamento condescen-
dente por administradores, e as dispensas temporárias maciças
5.8. Conclusão: de professores veteranos — naturalmente produzem a frus-
tração e a ita que os meios de comunicação de massa rotulam
O contexto em que estamos trabalhando nos Estados Uni- como desgastada. Em que lutas podemos nos engajar, de
dos é bastante diferente do contexto de círculo-cultural em que modo a mudar essas condições e manter nossa energia para
e para o qual Freire desenvolveu sua teoria. Neste artigo, tentei ensinar?
convencer as pessoas que trabalham em escolas americanas que É muitas vezes tentador abandonar educação dialógica, por
a teoria de Freire contém muitos insights que podemos usar causa dessas pressões sobre alunos e professores, porque os
para instruir nossa prática. Aqui, eu quero colocar alguns pro- alunos têm interiorizado concepções errôneas sobre aprendizagem
blemas que surgem da prática em nosso contexto que sugerem e sobre suas capacidades intelectuais a partir de sua educação
áreas da teoria de Freire que precisamos desenvolver mais. Esses escolar anterior, e porque podemos alcançar reforço positivo
incluem os papéis e responsabilidades dos alunos, as pressões tão rápido e (superficiais) resultados positivos por educação
sobre os professores, as complexidades de mudança dos alunos humanisticamente bancária. Mas o desejo dos estudantes por
de consciência massificada para crítica, e a fragilidade da ligação educação bancária em um ambiente acadêmico não significa
entre uma consciência crítica emergente e mudança social que eles não sejam aprendizes independentes em muitas outras
radical. situações. Freire discute como na transição de consciência se-
Freire evidencia as responsabilidades de professores para mi-intransitiva, mitos do estágio anterior permanecem à medida
desafiar as crenças tidas por certas pelos alunos, enquanto que a consciência se torna mais crítica e aberta a novas idéias
assegura simultaneamente que os alunos se tornam seus “co-in- (1970 (b)). Além desta superposição de níveis de consciência,
vestigadores” neste processo. Que responsabilidades, então, têm minha prática chama a atenção para o caráter não linear dos

134 135
níveis de consciência e colocar o problema de como fazer uma medida que percebemos como nossas ações estão ligadas a esta
ponte dos insights críticos que meus alunos têm em algumas luta coletiva. Sobre o uso do termo militantes para pessoas
áreas para seu desenvolvimento de uma abordagem crítica glo- comprometidas com justiça e libertação, Freire (1978, p. 73)
bal ao conhecimento. Os diários de meus alunos mostram como argumenta que
é difícil para eles manter um movimento totalizante; as ano- A militância força-nos a ser mais disciplinados e a
tações mostram frequentes altos e baixos em auto-imagem e se
tentar mais fortemente compreender a realidade que,
movem entre insight crítico e mito. Parece claro que, se a ex- junto com outros militantes, estamos tentando transfor-
periência dialógica de sala de aula é isolada, e os alunos são
mar e recriar. Encontramo-nos juntos alertos contra
tratados como objetos na maior parte das outras situações, então
ameaças de todas as espécies (1978, p. 146).
somente pode desenvolver fragmentos de consciência crítica.
Além disso, esses fragmentos são muitas vezes teóricos,
sem conexão com a prática. Tanto em minha experiência quan- REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
to na de outros (Rothenbers, 1983), o uso crítico de dados
t. Brown, C. Literacy in 30 hours: Paulo Freire's process in Northeast
quantitativos pode quebrar ideologias hegemônicas e fazer com
Brasil, 1978. (Alternative Schools Network, 1105 W. Lawrence, Rm.
que os alunos se tornem comprometidos furiosa e intelectual- 210, Chicago, III. 60640).
mente com a mudança social. Mas isso não significa necessaria-
2. Daniels, H. Notes from the interim: The world since CLAC. Confe-
mente que eles assim se juntem a organizações trabalhando rence on Language Attitudes and Composition, 1983, 8, 2-7. (Illinois
contra a opressão. Alguns até ocupam empregos em empresas Writing Project, P.O. Box 825, Elmhutst, III. 60126).
comerciais depois de obter seu grau. Mudança individual crí- 3. Anderson, M. The, impact of military spending on the machinists
tica ocorre quando os alunos superam sua ansiedade matemá- union. Lansing, Michigan: Employment Research Associates, 1979,
(400 South Washington Ave., Lansing, MI 48933).
tica e aprendem Matemática, eles têm uma experiência pro-
4. Ford antireport. London: Counter Information Services, 1978.
funda, concreta, de que as coisas podem mudar. Eles também (9
Poland Street, London W 1).
desenvolvem a capacidade para criticar e aumentam seu ques-
5. Rio Tinto zinc anti-report. London: Counter Information Services,
tionamento das condições em que vivem. Pode ser que a má- 1972.
xima mudança coletiva crítica que uma pedagogia do oprimido
pode realizar em nossas circunstâncias seja um sutil esquema
nas condições que auxiliarão o progresso da mudança social
libertadora.
A compreensão dos limites de nossa situação pode aumen-
tar nossa energia para focalizar as radicais possibilidades de
educação como uma força para promover mudança emanci-
padora, O uso das idéias de Freire como o fundamento teórico
para nossa prática de sala de aula situa essa prática individual
dentro da mais ampla luta ideológica e política para a huma-
nização. Tornamo-nos mais profundamente comprometidos à

136 137

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