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A IGREJA E CORO DO MOSTEIRO DE ST.ª MARIA DE AROUCA
Uma Leitura Iconográfica
Margarida Valente Gonçalves
M
Setembro | 2020
Margarida Valente Gonçalves
A IGREJA E CORO DO MOSTEIRO DE ST.ª MARIA DE AROUCA
Uma Leitura Iconográfica
Relatório realizado no âmbito do Mestrado em História da Arte, Património e Cultura
Visual, orientado pela Professora Doutora Ana Cristina Sousa
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Setembro | 2020
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2
Sumário
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5.2.4 Altar da Senhora das Neves ..................................................................................... 124
5.3 A Nave do Coro ............................................................................................................... 127
5.3.1 Altar da Nª Sr.ª da Piedade ....................................................................................... 127
5.3.2 A Coroação da Virgem ............................................................................................. 131
5.3.3 As Pinturas nos Espaldares ...................................................................................... 135
Sagrado Coração de Jesus – .............................................................................................. 136
Sagrado Coração de Maria – ............................................................................................. 137
Última Ceia – .................................................................................................................... 138
Lava-pés – ......................................................................................................................... 139
S. Bernardo e S. Gerardo –................................................................................................ 140
St.ª Umbelina e S. Bernardo – ........................................................................................... 141
Natividade de Maria – ....................................................................................................... 142
Natividade de Jesus – ........................................................................................................ 143
S. José com o Menino – .................................................................................................... 145
S. Cristóvão – .................................................................................................................... 146
A Entrada da Rainha Mafalda no Mosteiro –.................................................................... 147
A Vinda de D. Mafalda para Arouca – ............................................................................. 148
Nossa Senhora da Conceição – ......................................................................................... 149
Nossa Senhora do Pilar – .................................................................................................. 150
Rainha Mafalda lança o hábito às religiosas – .................................................................. 151
Morte da Rainha Santa – ................................................................................................... 152
S. António – ...................................................................................................................... 153
S. Marçal de Limoges – .................................................................................................... 154
Batismo de Cristo – ........................................................................................................... 155
Epifania – .......................................................................................................................... 156
A Samaritana – .................................................................................................................. 157
S. Roberto de Molesmes – ................................................................................................ 158
Santa Maria Egipcíaca –.................................................................................................... 159
A Adúltera – ...................................................................................................................... 160
Conversão de S. Paulo –.................................................................................................... 161
Conversão de Maria Madalena –....................................................................................... 162
6. CAPÍTULO VI – As Esculturas de Jacinto Vieira ...................................................... 171
6.1 Na Igreja .......................................................................................................................... 171
6.2 No Coro ........................................................................................................................... 176
Considerações Finais ............................................................................................................... 186
Referências Bibliográficas ....................................................................................................... 188
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Declaração de Honra
Declaro, por minha honra, que o presente relatório é da minha autoria, não tendo
sido utilizado previamente em qualquer outro curso e/ou unidade curricular, desta ou
outra instituição. Todas as formulações de ideias e conceitos usados, adotados
literalmente ou adaptados a partir dos originais, encontram-se devidamente identificados
e citados, conforme as normas de referenciação.
Tenho consciência de que a cópia ou plágio, além de desencadearem
responsabilidade civil, criminal e disciplinar, constituem violação da ética académica.
5
Agradecimentos
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Resumo
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Abstract
The present work integrates the report of the curricular internship, element of final
evaluation of the Masters Degree in Art History, Heritage and Visual Culture, held at the
Museum of Sacred Art in Arouca, presenting an iconographic and iconological reading
of the most diverse artistic pieces that exist in the Church and Choir of the Monastery of
Santa Maria de Arouca. Through the experience acquired as a guide at the Museum of
Sacred Art, the need to create an iconographic guide of these spaces emerged, privileged
within the monastery, thus justifying the sublimity of the art that integrates them, resulting
in the final product of this internship.
The application of the proposed methodology for the study, based on the
iconographic and iconological method, made it possible to create links with the textual
sources, starting from the study of the sacred texts, without forgetting the mystical
literature that was an inspiration drink for many of the contents represented in the
surroundings liturgical, which can be interpreted and interconnected in religious circuits.
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Índice de Figuras
FIGURA 1 – FACHADA NORTE DO MOSTEIRO DE AROUCA, ACESSO À IGREJA PELA VIA PRINCIPAL; .......... 29
FIGURA 2 – MOSTEIRO DE AROUCA, ACESSO AO MUSEU DE ARTE SACRA PELO TERREIRO; ..................... 30
FIGURA 3 – LARGO DA RAINHA SANTA MAFALDA; .................................................................................. 31
FIGURA 4 – ESCADARIA DE APARATO, LARGO DE SANTA MAFALDA; ....................................................... 32
FIGURA 5 – CORREDORES DO CLAUSTRO; ................................................................................................ 33
FIGURA 6 – O CHAFARIZ AO CENTRO DO CLAUSTRO; ............................................................................... 34
FIGURA 7 – ALTAR-MOR DA IGREJA DO MOSTEIRO DE AROUCA, VISTA DA TRIBUNA; .............................. 36
FIGURA 8 – A NAVE DA IGREJA, VISTA PARA O CORO; ............................................................................... 37
FIGURA 9 – A INCREDULIDADE DE S. TOMÉ, C. 1595 – 1597, DIOGO TEIXEIRA; ....................................... 40
FIGURA 10 – A ASCENSÃO DE CRISTO, C. 1595 – 1597, DIOGO TEIXEIRA; ............................................... 42
FIGURA 11 – O PENTECOSTES, C. 1595 – 1597, DIOGO TEIXEIRA; ............................................................ 44
FIGURA 12 – O PAI ETERNO, C. 1595 – 1597, DIOGO TEIXEIRA; ............................................................... 46
FIGURA 13 – ST.ª ESCOLÁSTICA, ST.ª OFÉMIA [EUFÉMIA] E S. MAURO, C. 1595 – 1597, DIOGO TEIXEIRA;
.......................................................................................................................................................... 48
FIGURA 14 – S. SEBASTIÃO, SANTA LUZIA E SANTA BÁRBARA, C. 1595 – 1597, DIOGO TEIXEIRA; ......... 50
FIGURA 15 – O RETÁBULO NO ALTAR-MOR DA IGREJA, 1723, LUÍS VIEIRA DA CRUZ; .............................. 54
FIGURA 16 – S. COSME E S. DAMIÃO, RETÁBULO-MOR DA IGREJA; .......................................................... 55
FIGURA 17 – BEATAS TERESA E SANCHA, RETÁBULO-MOR DA IGREJA; .................................................... 56
FIGURA 18 – S. BENTO E S. BERNARDO, RETÁBULO-MOR DA IGREJA; ...................................................... 57
FIGURA 19 – COBERTURA DO RETÁBULO-MOR DA IGREJA EM ABÓBADA DE CAIXOTÕES RELEVADOS; ..... 58
FIGURA 20 – A TRIBUNA ASCENDENTE COM A Nª SR.ª DA ASSUNÇÃO, RETÁBULO-MOR DA IGREJA; ......... 58
FIGURA 21 – S. BERNARDO RECEBIDO NA ORDEM E A MORTE DE S. BERNARDO, 1738, DIOGO TEIXEIRA;
.......................................................................................................................................................... 61
FIGURA 22 – LACTATIO E EL AMPLEXUS, 1738, ANDRÉ GONÇALVES; ..................................................... 63
FIGURA 23 – S. JOÃO E S. LUCAS, 1738, ANDRÉ GONÇALVES; ................................................................. 65
FIGURA 24 – S. MATEUS E S. MARCOS, 1738, ANDRÉ GONÇALVES; ........................................................ 66
FIGURA 25 – PLANTA DE IDENTIFICAÇÃO DOS ALTARES DISTRIBUÍDOS PELA NAVE NA IGREJA; ................ 68
FIGURA 26 – ALTAR DA RAINHA SANTA, 1718, NAVE DA IGREJA; ............................................................ 70
FIGURA 27 – TÚMULO DA RAINHA ST.ª MAFALDA, (S.D.), JOSÉ FRANCISCO PAIVA; ................................ 71
FIGURA 28 – PORMENOR DO ALTAR DA RAINHA ST.ª MAFALDA, (S.D.), JOSÉ FRANCISCO PAIVA; ........... 71
FIGURA 29 – BRASÃO DE D. MAFALDA, PORMENOR NO TÚMULO DA RAINHA, JOSÉ FRANCISCO PAIVA; . 72
FIGURA 30 – ALTAR DE S. BARTOLOMEU, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; .................................... 73
FIGURA 31 – ALTAR DE S. BARTOLOMEU, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; .................................... 74
FIGURA 32 –S. BARTOLOMEU, PORMENOR DO ALTAR, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; .................. 75
FIGURA 33 – ALTAR DE S. BENTO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ............................................... 76
FIGURA 34 – ALTAR DE S. BENTO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ................................................ 77
FIGURA 35 – ALTAR DE S. BERNARDO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ......................................... 79
FIGURA 36 – ALTAR DE S. BERNARDO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ......................................... 80
FIGURA 37 – ALTAR DO CALVÁRIO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; .............................................. 81
FIGURA 38 – ALTAR DO CALVÁRIO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; .............................................. 82
FIGURA 39 – ALTAR DA RESSURREIÇÃO DE CRISTO, 1741, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ..................... 83
FIGURA 40 – ALTAR DO SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, SÉC. XVIII; ....................................................... 85
FIGURA 41 – ALTAR DA IMACULADA CONCEÇÃO DA VIRGEM, SÉC. XVIII; ............................................. 87
FIGURA 42 – S. JOSÉ COM O MENINO, SACRISTIA DO LADO DO EVANGELHO; ............................................ 90
FIGURA 43 – S. BENTO DE NÚRSIA, SACRISTIA DO LADO DO EVANGELHO; ............................................... 91
FIGURA 44 – S. BERNARDO DE CLARAVAL, SACRISTIA DO LADO DO EVANGELHO; .................................. 92
FIGURA 45 – A VIRGEM DA TERNURA, SACRISTIA DO LADO DO EVANGELHO; .......................................... 93
FIGURA 46 – TEMA MARIANO, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ........................................................... 94
FIGURA 47 – TEMA MARIANO, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ........................................................... 95
FIGURA 48 – A FUGA PARA O EGITO, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ................................................. 96
FIGURA 49 – JESUS NO MONTE DAS OLIVEIRAS, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ................................ 97
FIGURA 50 – A FLAGELAÇÃO DE CRISTO, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; .......................................... 98
9
FIGURA 51 – A COROAÇÃO DE CRISTO COM ESPINHOS, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ..................... 99
FIGURA 52 – CRISTO CARREGA A CRUZ ATÉ AO CALVÁRIO, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ............. 100
FIGURA 53 – CRISTO CRUCIFICADO, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ............................................... 101
FIGURA 54 – MARIA MADALENA, PENITENTE, SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ................................. 102
FIGURA 55 – S. JERÓNIMO, PENITENTE, PINTURA NA SACRISTIA DO LADO DA EPÍSTOLA; ........................ 103
FIGURA 56 – ALTAR DO ECCE HOMO, 1730, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ......................................... 105
FIGURA 57 – ALTAR DO ECCE HOMO, 1730, MIGUEL FRANCISCO DA SILVA; ......................................... 106
FIGURA 58 – ALTAR DE S. BERNARDO, SÉC. XVIII, (A.D.); .................................................................... 107
FIGURA 59 – ALTAR DE S. BERNARDO, SÉC. XVIII, (A.D.); .................................................................... 108
FIGURA 60 – EL AMPLEXUS E LACTATIO, SÉC. XVIII, (A.D.); ................................................................ 109
FIGURA 61 – ALTAR DE S. BENTO, 1743, JOSÉ DA FONSECA E LIMA; ..................................................... 110
FIGURA 62 – ALTAR DE S. BENTO, 1743, JOSÉ DA FONSECA E LIMA; ..................................................... 111
FIGURA 63 – ALTAR DA Nª SR.ª DO ROSÁRIO, C. 1680, (A.D.); ................................................................ 113
FIGURA 64 – ALTAR DA Nª SR.ª DO ROSÁRIO, PORMENOR DO PANO INTERMÉDIO; .................................. 114
FIGURA 65 – MEDALHÕES RETRATANDO A COROAÇÃO DE ESPINHOS E A FLAGELAÇÃO DE CRISTO,
PORMENOR DO ALTAR DA Nª SR.ª DO ROSÁRIO; ............................................................................... 115
FIGURA 66 –ALTAR DO SENHOR DOS PASSOS, 1731, (A.D.); ................................................................... 116
FIGURA 67 – MEDALHÕES RELEVADOS COM AS ESTAÇÕES DA VIA CRUCIS; .......................................... 117
FIGURA 68 – MEDALHÕES RELEVADOS REPRESENTANDO S. PEDRO E MARIA MADALENA; .................... 118
FIGURA 69 – ALTAR DA Nª SR.ª DAS DORES, 2ª METADE DO SÉC. XVIII; ................................................ 119
FIGURA 70 – MOSTRUÁRIO COM A Nª SR.ª DAS DORES; .......................................................................... 120
FIGURA 71 – PORMENOR DO COROAMENTO DO ALTAR DA Nª SR.ª DAS DORES; ...................................... 121
FIGURA 72 – MEDALHÕES RELEVADOS COM AS ARMA CHRISTY; ........................................................... 122
FIGURA 73 – ALTAR DO MENINO JESUS, 2ª METADE DO SÉC. XVIII, (A.D.); ........................................... 123
FIGURA 74 – ALTAR DA NOSSA SENHORA DAS NEVES, 2ª METADE DO SÉC. XVIII (A.D.); ...................... 125
FIGURA 75 – NOSSA SENHORA DAS NEVES, PORMENOR DO NICHO CENTRAL DO ALTAR; ....................... 126
FIGURA 76 – ALTAR DA PIETÁ, 1732, (A.D.); .......................................................................................... 129
FIGURA 77 – ALTAR DA PIETÁ, 1732, (A.D.); .......................................................................................... 130
FIGURA 78 – ALTAR DA COROAÇÃO DA VIRGEM, SÉC. XVIII, (A.D.); .................................................... 133
FIGURA 79 – COROAÇÃO DA VIRGEM, PORMENOR DO NICHO CENTRAL; ................................................. 134
FIGURA 80 – S. JOSÉ E S. CATARINA DE ALEXANDRIA, PORMENOR DOS NICHOS DO ALTAR; .................. 135
FIGURA 81 – SAGRADO CORAÇÃO DE JESUS, SÉCULO XVIII, (A.D); ....................................................... 137
FIGURA 82 – SAGRADO CORAÇÃO DE MARIA, SÉCULO XVIII, (A.D.); .................................................... 138
FIGURA 83 – A ÚLTIMA CEIA, SÉCULO XVIII, (A.D.); ............................................................................. 139
FIGURA 84 – O LAVA-PÉS, SÉCULO XVIII, (A.D.); .................................................................................. 140
FIGURA 85 – S. BERNARDO E S. GERARDO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................................ 141
FIGURA 86 – SANTA UMBELINA E S. BERNARDO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ............................................... 142
FIGURA 87 – NATIVIDADE DE MARIA, SÉCULO XVIII, (A.D.); ................................................................ 143
FIGURA 88 – NATIVIDADE DE JESUS, SÉCULO XVIII, (A.D.); .................................................................. 144
FIGURA 89 – S. JOSÉ COM O MENINO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ................................................................. 145
FIGURA 90 – SÃO CRISTÓVÃO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ............................................................................ 146
FIGURA 91 – A ENTRADA DA D. MAFALDA NO MOSTEIRO, SÉCULO XVIII, (S.D.); ................................. 147
FIGURA 92 – A VINDA DE D. MAFALDA PARA AROUCA, SÉCULO XVIII, (S.D.); ...................................... 148
FIGURA 93 – NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ................................................. 149
FIGURA 94 – NOSSA SENHORA DO PILAR, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................................... 150
FIGURA 95 – RAINHA MAFALDA LANÇA O HÁBITO ÀS RELIGIOSAS, SÉCULO XVIII, (A.D.); .................... 151
FIGURA 96 – A MORTE DA RAINHA SANTA, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................................ 152
FIGURA 97 – SANTO ANTÓNIO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................................................... 153
FIGURA 98 – SÃO MARÇAL, SÉCULO XVIII, (A.D.); ................................................................................ 154
FIGURA 99 – O BATISMO DE CRISTO, SÉCULO XVIII, (A.D.); .................................................................. 155
FIGURA 100 – EPIFANIA, SÉCULO XVIII, (A.D.); .................................................................................... 156
FIGURA 101 – A SAMARITANA, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................................................... 157
FIGURA 102 – SÃO ROBERTO DE MOLESMES, SÉCULO XVIII, (A.D.); ..................................................... 158
FIGURA 103 – SANTA MARIA EGIPCÍACA, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................................... 159
FIGURA 104 – A ADÚLTERA, SÉCULO XVIII, (A.D.); .............................................................................. 160
FIGURA 105 – A CONVERSÃO DE S. PAULO, SÉCULO XVIII, (A.D.); ....................................................... 161
FIGURA 106 – CONVERSÃO DE MARIA MADALENA, SÉCULO XVIII, (A.D.); ........................................... 162
10
FIGURA 107 – S. BENTO E S. FRANCISCO DE ASSIS, SÉCULO XVIII, (A.D.); ............................................ 164
FIGURA 108 – SÃO BERNARDO E SANTO AMARO, SÉCULO XVIII, (A.D.); .............................................. 164
FIGURA 109 – CONSOLA DO ÓRGÃO, VISTA DA TRIBUNA, 1743, MANUEL BENITO HERRERA; ................ 165
FIGURA 110 – ÓRGÃO IBÉRICO, VISTA DA TRIBUNA, 1743, MANUEL BENITO HERRERA; ........................ 166
FIGURA 111 – PORMENOR DA CONSOLA DO ÓRGÃO; ............................................................................... 168
FIGURA 112 – PINTURA CHINOISERIE NA CONSOLA DO ÓRGÃO, TEMA DA CAÇA; ................................... 169
FIGURA 113 – PINTURA CHINOISERIE NA CONSOLA DO ÓRGÃO, TEMA BUCÓLICO; ................................. 169
FIGURA 114 – SANTA CECÍLIA A TOCAR O ÓRGÃO, PINTURA NA CONSOLA DO ÓRGÃO; ......................... 170
FIGURA 115 – SANTA CECÍLIA A TOCAR O ÓRGÃO, PORMENOR DA PINTURA NA CONSOLA; .................... 170
FIGURA 116 – SÃO ROBERTO E A VIRGEM, ESCULTURAS NA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ....... 172
FIGURA 117 – ARCANJO GABRIEL E SÃO GERARDO, ESCULTURAS NA NAVE DA IGREJA, 1723-1725,
JACINTO VIEIRA; ............................................................................................................................. 173
FIGURA 118 – SÃO ALBÉRICO, E SÃO THOMAS DE CANTUÁRIA, ESCULTURAS DA NAVE DA IGREJA, 1723-
1725, JACINTO VIEIRA; .................................................................................................................... 173
FIGURA 119 – SÃO GUILHERME E SÃO BERNARDO, ESCULTURAS DA NAVE DA IGREJA, 1723-1725,
JACINTO VIEIRA; ............................................................................................................................. 174
FIGURA 120 – SÃO ESTEVÃO E SÃO MALACHIAS, ESCULTURAS DA NAVE DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO
VIEIRA; ............................................................................................................................................ 175
FIGURA 121 – SANTA LEOGARDA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ....... 177
FIGURA 122 – SANTA ALDEGUNDA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; .... 178
FIGURA 123 – SANTA HEDWIGA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ......... 179
FIGURA 124 – SANTA GERTRUDES, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ..... 180
FIGURA 125 – SANTA ESCOLÁSTICA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; .. 181
FIGURA 126 – SANTA JULIANA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ........... 182
FIGURA 127 – SANTA UMBELINA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ....... 183
FIGURA 128 – SANTA FRANÇA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ........... 184
FIGURA 129 – SANTA MAFALDA, ESCULTURA NO CORO DA IGREJA, 1723-1725, JACINTO VIEIRA; ....... 185
11
Índice de Abreviaturas e Siglas
CMA ................................................................................... Câmara Municipal de Arouca
RIRSMA .......................................................... Real Irmandade da Rainha Santa Mafalda
ESA ..................................................................................... Escola Secundária de Arouca
IPP ....................................................................................... Instituto Politécnico do Porto
INATEL............................ Instituto Nacional para o Aproveitamento dos Tempos Livres
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Introdução
O meu interesse pela Igreja do Mosteiro de Santa Maria de Arouca partiu da minha
proximidade ao mesmo, motivada por um enorme fascínio e curiosidade relativamente ao
riquíssimo espólio existente no seu interior que urge ser dissecado. Assim, o presente
estudo prende-se com a vontade de contribuir para o saber e reconhecimento de todas as
áreas artísticas presente no interior da Igreja. Surge, sobretudo, como resultado de uma
investigação efetuada ao longo deste último ano letivo, no decorrer do estágio que realizei
na Irmandade Rainha Santa Mafalda, a qual mantem a seu encargo o Museu de Arte
Sacra, inserido nos espaços deste antigo Mosteiro. Numa investigação subjacente ao
estudo da arte religiosa, é necessário conhecer em profundidade o objeto de estudo e, é
nessa perspetiva, que este estágio se revelou indispensável para a tomada de consciência
das potencialidades e fragilidades deste espaço-memória.
Na História da Arte, as fontes documentais caminham lado a lado com os objetos,
verdadeiras fontes primárias reivindicando a sua leitura, traduzindo conhecimentos
técnicos e estéticos epocais que precisam de nós, investigadores e historiadores de arte,
para serem desvelados. Assim, à procura de estabelecer a relação intrínseca entre a fé e a
imagem, proponho, com este relatório, uma análise e interpretação dos espaços deste
mosteiro e da arte que os ocupa, estabelecendo vínculos com as fontes textuais, que tão
grandes influências exerceram na execução dos seus programas iconográficos. Desde os
riquíssimos altares de talha dourada, às pinturas e às esculturas, passíveis de serem
interpretadas e interligadas em circuitos religiosos. Portanto, grande parte do relatório
dedica-se à análise iconográfica dos objetos artísticos e respetiva contextualização, a fim
de compreendermos o seu poder no que diz respeito à ambientação dos espaços onde se
inserem, justificando a sua escolha na cronologia em estudo. Para dar resposta a este
propósito, alguns objetivos foram traçados:
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e ainda Louis Réau com a sua incontornável obra Iconografia del Arte Cristiano (1996),
oferecendo-nos uma dissecação dos repertórios iconográficos na arte ocidental e oriental.
O estudo da origem das temáticas carece também de um estudo dos textos
sagrados, dos Evangelhos Apócrifos e autores da patrística, sem esquecer a literatura
mística que foi bebida de inspiração para tantos conteúdos representados na envolvente
litúrgica como La Leyenda Dorada (1996) de Santiago de la Voragine, com uma fusão
entre história e lenda, espiritualidade e materialidade.
Em termos estruturais, o objeto de estudo é aqui ordenado com base nas partes
constituintes da Igreja e Coro, organizados num total de seis capítulos, facilitando a
organização e leitura de conteúdos. No primeiro capítulo, apresenta-se a Real Irmandade
da Rainha Santa Mafalda (RIRSMA), instituição na qual estagiei, seguindo-se as
respetivas atividades desenvolvidas no setor educativo e cultural da instituição. O
segundo capítulo contextualiza o antigo Mosteiro de Arouca no tempo e no espaço,
oferecendo um panorama geral desde a fundação à atualidade. O terceiro capítulo
contempla a análise dos objetos artísticos presentes na igreja, com base nas suas partes
constituintes: a Capela-mor, desde o antigo retábulo com as pinturas de Diogo Teixeira à
monumental máquina retabular atual, terminando nas pinturas de André Gonçalves nos
alçados laterais; e a Nave, desenvolvendo um estudo iconográfico dos altares e da talha
que os envolve, seguindo a ordem do circuito de visita que propus realizar. As sacristias,
são uma extensão do altar, onde se inicia e encerra o ritual litúrgico, merecendo, assim, o
quarto capítulo. Segue-se o quinto capítulo, correspondente ao Coro, partindo de uma
análise dos altares das galerias a Norte e Sul, passando pelos espaldares de talha e
respetiva pintura na Nave, concluindo com a análise do majestoso órgão ibérico. O sexto
capítulo encerra o desenvolvimento deste estudo, sendo dedicado às esculturas de Jacinto
Vieira, distribuídas em nichos pela nave e coro da igreja.
O entendimento deste antigo mosteiro, enquanto residência monástica cisterciense
e sobretudo feminina, assisou a minha pesquisa, impulsionada pela carência de estudos
acerca do tema dos mosteiros femininos, que só muito recentemente se tem vindo a
desenvolver. Embora as fontes primárias tenham sido o ponto de partida para as minhas
análises, foi necessária uma pesquisa pelos assuntos que tem vindo a ser desenvolvidos
acerca deste espaço e da sua envolvente litúrgica, proporcionando-me um embasamento
teórico que sustentasse as minhas convicções. Assim, e reconhecendo as contribuições da
pesquisa na constituição da minha investigação, alguns autores foram dissecados por se
debruçarem sobre a história do Mosteiro de Arouca e já referidos acima: Maria Helena
15
Coelho, O Mosteiro de Arouca do século X ao século XIII (1988) e Manuel Joaquim
Rocha, A Memória de um Mosteiro, Santa Maria de Arouca, Das Construções e
Reconstruções (2010) que, embora se incline para o estudo da arquitetura, apresenta já
uma compreensão do objeto artístico associado ao encomendante, ao produtor e à sua
finalidade.
Contudo, deparei-me com uma análise diminuta dos objetos artísticos integrados
na igreja e respetivas sacristias, muito aquém do que merecem verdadeiramente. No coro,
poucos souberam valorizar o quadro primoroso que lhe assiste, tendo sido alvo de estudo
por parte de Ana Cristina Sousa, que interpreta as pinturas dos espaldares considerando
uma leitura iconográfica, tendo em conta o usufruto do local por parte das monjas e a sua
componente pedagógico-religiosa, no estudo O coro do Mosteiro de Santa Maria de
Arouca: uma leitura iconográfica (2015). Contudo, à maior parte dos objetos artísticos
faltavam alguns títulos, autores, datações e descrições detalhadas, que permitissem
valorizar ainda mais o seu conteúdo, pois tal como refere Manuel Rocha, na sua
incontornável obra (...) o silêncio que vivêramos no interior do Mosteiro parecia ter
continuidade nessas fontes primárias.1
1
ROCHA, 2010: 29;
16
1. CAPÍTULO I – Estágio no Museu de Arte Sacra de Arouca
2
DIAS, 2000: 16;
3
Artigo 3º do Regulamento Interno do Museu: 2018;
4
Artigo 3º do Regulamento Interno do Museu: 2018;
5
VEIGA, 2005: 41;
6
DIAS, 2000: 16;
7
DIAS, 2000: 16;
17
empreendimento turístico com vista a uma unidade hoteleira de qualidade.8 A nova
valência dos espaços constituirá um modo de convivência harmoniosa e de respeito para
com a história e memória do edifício, evitando a sua degradação e perda através da fruição
plena dos espaços.
Atualmente, o complexo monasterial de Arouca apresenta alguns dos seus espaços
musealizados que fazem parte do circuito de visitas nomeadamente o claustro, a cozinha,
a sala do capítulo, o coro da igreja e ainda o Museu propriamente dito, ocupando a ala
oeste do complexo monástico.
8
CADERINO REVIVE: 2018: 13;
18
de Coimbra, até ao século XVIII. A coleção de mobiliário conta essencialmente com
peças da lavra nacional e cuja cronologia varia entre os séculos XVI e XIX, considerando
que a região de Arouca desfrutou de uma forte tradição no lavor da madeira. Destaque-se
sobretudo as peças de mobiliário que faziam parte do enxoval das noviças que
ingressavam no mosteiro e que revelam qualidades e caraterísticas diversas. Dispostas,
cronologicamente, pelos espaços do museu, estão oratórios, cómodas, papeleiras,
cadeiras de palhinha, entre outros, que compunham o seu enxoval. A coleção apresenta
ainda algum mobiliário civil dos séculos XVII e XVIII como arcas e baús de madeira e
couro, cadeiras de braços, um contador, secretárias com gavetas e ainda uma cadeira
abacial com faldistório e uma mesa de sacristia de elaborada conceção. Existe ainda uma
sala dedicada exclusivamente à prataria, expondo os metais mais preciosos que estariam
ao serviço do divino. Esta coleção, embora com um menor número de peças relativamente
às anteriores, mostra-nos alguns exemplares representativos do trabalho de ourives
portugueses, em épocas distintas. Destaque-se um díptico-relicário, datável dos
primórdios do século XIII e que se diz ter pertencido à Rainha D. Mafalda. Apresenta
magníficos relevos narrativos como a Anunciação nas faces exteriores e um Calvário no
interior do volante esquerdo. Conta ainda com alguma prataria, utilizada no decorrer das
cerimónias litúrgicas nomeadamente turíbulos, navetas, coroas que eram colocadas nos
santos e as próprias cruzes processionais.
Para além de todo o espólio patente no Museu, existem muitas outras peças
dispersas pelos espaços do mosteiro, umas de autor desconhecido, outras provenientes de
escolas regionais e até algumas de traço mais ingénuo, mas que valem pelo seu conteúdo
iconográfico e que aguardam a nossa atenção e estudo enquanto historiadores de arte.
O destino que a Irmandade ofereceu ao património material e imaterial do
Mosteiro de Arouca, após a sua extinção, é de facto exemplar e de grande relevo a nível
nacional pois possibilita, ainda hoje, o usufruto de uma coleção de enorme valor cultural
e artístico, mantendo-o no local que lhe confere a extensão plena do seu significado e
afeto.
Considerando os espaços musealizados e o espólio disponível no Museu, é
importante mencionar os circuitos de visita disponíveis para aqueles que visitam este
mosteiro: a visita parcial, que inclui um circuito menor feito sem qualquer guia-intérprete
e que disponibiliza apenas três espaços para visitação nomeadamente o claustro, a cozinha
e a sala do capítulo; e a visita integral, de circuito maior, com a duração de 40 minutos e
conduzida por um guia. A última, integra não só os espaços acima referidos como também
19
inclui o acesso ao coro da igreja do mosteiro, passando pelas galerias laterais do mesmo
e seguindo para o Museu de Arte Sacra.
A visita integral tem inicio no claustro, um espaço aberto onde estão expostos
alguns painéis referentes à fundação do cenóbio, à história do edifício e ainda algumas
descrições introdutórias e romantizadas dos espaços aos quais o claustro dá acesso.
Segue-se a cozinha, articulada com o refeitório, embora este último seja apenas visível a
partir de um pequeno postigo da cozinha. Voltando novamente ao claustro, entra-se na
Sala do Capítulo onde está exposta uma réplica da cadeira abacial e os bancos das monjas
dispostos de um e outro lado da mesma. Ainda nesta sala, apresenta-se uma série de
painéis azulejares que ocupam um terço da zona parietal, datados do século XVIII e da
autoria de Silva Carvalho. Com ligação a partir do claustro, a visita continua pela galeria
Sul de acesso ao coro da igreja onde existem três retábulos de invocações distintas,
datados do século XVIII e inteiramente revestidos em talha dourada. Chegando ao coro
da igreja, que foi continuamente enriquecido no decorrer da primeira metade do século
XVIII, o visitante dispõe de uma nascente artística, desde o imenso cadeiral com assentos
em pau-preto aos espaldares preenchidos com religiosas pinturas narrativas de temática
cristológica, mariológica e sobre a vida da Rainha D. Mafalda. É ainda possível observar
o conjunto escultórico de Jacinto Vieira, um universo de representações femininas9,
representando santas de hábito cisterciense e ainda o majestoso órgão ibérico. A saída do
coro é feita pela entrada poente de acesso ao mesmo e subindo as escadas a norte, os
visitantes são conduzidos ao Museu de Arte Sacra.
Crê-se igualmente pertinente apresentar o espaço destinado ao Museu, a área
expositiva que é disponibilizada para a exposição permanente – inserida no espaço
correspondente a um antigo dormitório, no segundo piso da ala oeste. O espaço do museu
conta com oito salas correspondentes às antigas celas das monjas, que sofreram algumas
alterações para facilitar a organização da exposição. As peças estão dispostas pelas salas
e pelos dois corredores de acesso às mesmas, sendo que cada sala abriga uma cronologia
diferente à exceção dos corredores e da penúltima sala de exposição. Esta, dedicada à
prataria, exibe peças datadas entre os séculos XII e XVIII relacionadas, em parte, com as
cerimónias litúrgicas e ainda alguns relicários e pertences pessoais das monjas.
9
ROCHA, 2010: 349;
20
1.3 – Estágio nos Serviços Educativos – Atividades Desenvolvidas
24
1.4 – Desenvolvimento do Guia Iconográfico
25
2. CAPÍTULO II – O Mosteiro de Arouca
10
COELHO, 1988: 23;
11
COELHO, 1988: 29;
12
COELHO, 1988: 25;
26
as cartas de couto de 1132 e 1143, a favor do mosteiro de Arouca.13 Assim, assumindo o
cargo de patrona e abadessa, D. Toda dotou a congregação de avultados bens
patrimoniais. O seu patronato no cenóbio Arouquense vai durar até 1154, ano em que D.
Toda, certamente por se sentir idosa, doa o domínio à abadessa Elvira Anes.14 Até então,
o mosteiro de Arouca era dúplice e estava sob a regra de S. Bento, adotada no último
quartel do século XI, opção semelhante a outros cenóbios peninsulares. No ano da
permuta para as mãos da abadessa Elvira Anes, o cenóbio que esta governaria doravante,
passaria a ser exclusivamente feminino, respondendo à regra beneditina.15 Com a morte
de Elvira Anes, no ano de 1203, o mosteiro passa para a coroa16. Em 1210, D. Sancho I
deixa-o em testamento, à sua filha D. Mafalda que, anos mais tarde, ingressou no mosteiro
deixando a marca indelével da sua passagem, nos muitos benefícios temporais e
espirituais com que assistiu a instituição.17 A sua estadia conferiu notoriedade ao
mosteiro, cujo poder e imponência viu aumentar, através da sua atitude mecenática. Foi
promotora da filiação do mosteiro à ordem de Cister18 , certificada a 5 de Junho de 122619
pela Bula papal de Honório III, o que levou a que as monjas substituíssem o hábito negro
beneditino pelo branco cisterciense. Com a oficialização da ordem, seguiu-se uma
companha de ampliação dos espaços monasteriais e uma alteração no orago, passando a
invocar Santa Maria.20
A presença de D. Mafalda contribuiu de tal forma para a proeminência e
desenvolvimento da região que aquando da sua morte, em 1256, o mosteiro era já
reconhecido como um dos mais importantes mosteiros femininos em toda a península
ibérica, ao lado do de Lorvão.21 O prestigio alcançado levou a que este mosteiro fosse a
primeira escolha no destino de muitas mulheres de linhagem nobre, não restando dúvida
da sua importância para a sociedade portuguesa do século XIII. Os Portocarreiro, os Riba
de Vizela, os Buval e os Avelar22, contam-se entre algurns cujo nome da Família se liga
ao cenóbio. A permanência da Rainha prolongou-se no tempo, por meio de discursos de
santidade que levaram ao desenvolvimento de um culto popular à sua pessoa. De facto,
13
COELHO, 1988: 31;
14
COELHO, 1988: 39;
15
COELHO, 1988: 53;
16
COELHO, 1988: 39;
17
COELHO, 1988: 40;
18
Mosteiros Cistercienses femininos em Portugal, s.d: p. 3;
19
Mosteiros Cistercienses femininos em Portugal, s.d: p.4;
20
COELHO, 1988: 35;
21
Mosteiros Cistercienses femininos em Portugal, s.d: p.3;
22
RÊPAS, 2005: 69;
27
D. Mafalda alcançou o poder máximo, conjugando a autoridade terrena de um título com
o privilégio de ser aclamada rainha espiritual23 desta comunidade. Ainda em vida,
durante a sua estadia em Tuias24, D. Mafalda referiu o seu desejo de ser sepultada neste
mosteiro25 motivando, assim, a lenda cuja memória os arouquenses mantêm presente: a
de que o seu corpo findo terá sido depositado numa mula que seguiu livremente caminho,
estagnando no local onde D. Mafalda deveria ser sepultada:
Chegou a mulla athe este nosso convento de Arouca (...) entrou pella
igreja dentro e pondo-se diante do Altar de São Pedro que esta na capella a
parte da epistola da capella mor se postrou em terra dobrando as mãos e os pes
e assim esteve esperando que lhe tirassem a sagrada carga.26
Até ao século XVII, o túmulo da rainha manteve-se intacto. Porém, sete monjas,
movidas pela curiosidade, abriram o sepulcro em 1616, segundo a descrição de Frei
António Brandão:
Muits anos esteve o corpo desta Santa Raynha naquela sepultura, &
correndo a anno do Senhor de de mil & seiscentos & dezasseis hua Religioza
por nome Violante de moura, teve devoção de saber se estava ali aquelle corpo,
& em companhia de seis Religiozas, (…) abrio a sepultura & achou o corpo da
Raynha inteiro emvolto em hum sendal de tafetá pardo, o qual estava são &
descobrindo o sendal acharão o corpo da santa Raynha como de pessoa que
estava dormindo, o rosto composto & as mais partes do corpo inteiras(...)
(Monarchia Lusitana L. XV)27.
23
ROCHA, 2011: 113;
24
COELHO, 1988: 32;
25
ROCHA, 2011: 113;
26
A.P., Benaventurada Vida..., Ms. Cit., N/fl.
27
VITORINO, 1936: 12-13;
28
ROCHA, 2011: 259;
29
ROCHA, 2011: 120;
28
início da construção da nova, um projeto de Carlos Gimac. Assim, em Outubro de 1718
dá-se a verdadeira permuta, alterando-se o túmulo do local provisório para o atual30, que
analisarei no subcapítulo sobre os altares da nave. Apenas em Julho de 1792, D. Mafalda
foi declarada beata pela bula papal do Papa Pio VI31, motivo da mais sumptuosa festa
empreendida pelas monjas de Arouca, no ano seguinte.32 Claramente os festejos foram a
razão das maiores intervenções que sucederam no mosteiro, sobretudo na igreja, onde se
viram as intervenções artísticas mais profundas33 com a introdução de novas artes de
interior - pintura, talha, azulejo, paramentaria, prataria, mobiliário, entre outros.
FIGURA 1 – Fachada Norte do Mosteiro de Arouca, acesso à igreja pela via principal;
30
ROCHA, 2011: 123;
31
ROCHA, 2011: 124;
32
ROCHA, 2011: 124;
33
ROCHA, 2011: 125;
29
FIGURA 2 – Mosteiro de Arouca, acesso ao Museu de Arte Sacra pelo terreiro;
30
FIGURA 3 – Largo da Rainha Santa Mafalda;
31
FIGURA 4 – Escadaria de aparato, largo de Santa Mafalda;
32
FIGURA 5 – Corredores do Claustro;
33
FIGURA 6 – O Chafariz ao centro do claustro;
34
3. CAPÍTULO III – A Igreja
34
ROCHA, 2011: 322;
35
VITORINO, 1936: 12-13;
36
VITORINO, 1936: 12-13;
37
ROCHA, s.d.: 314;
38
ROCHA, 2011: 327;
39
ROCHA, 2011: 331;
40
ROCHA, 2011: 331;
41
ROCHA, 2011: 331;
35
pilastras marcam ritmicamente os três arcos de volta perfeita onde se abrem capelas
laterais, de um e outro lado da nave, e a entrada principal da igreja cuja correspondência
frontal é o púlpito. As capelas laterais, recuadas relativamente ao alçado da nave,
apresentam um conjunto de oito retábulos, revestidos em talha dourada, sobre os quais
escreverei no subcapítulo sobre a Nave.
36
No segundo nível dos alçados apresentam-se nichos, destinados à ostentação de
oito esculturas do mestre bracarense Jacinto Vieira, do qual se sabe muito pouco. O seu
nome é referido como o (...) autor das belíssimas esculturas em pedra de Ançã, datadas
de 1723 e 1725 que representam santos e santas cistercienses e beneditinos, e que se
encontram no coro e no corpo da igreja do Mosteiro de Santa Maria de Arouca. 42
Intercalados com os nichos, rasgam-se janelões retangulares que permitem ver a galeria
de circulação do lado da epístola e, do lado do evangelho, voltadas para o exterior.43 O
último nível do alçado é definido por um ático que opera o arranque da abóbada e no qual
se rasgam lunetas de iluminação e arejamento. 44 Entre a igreja e o coro, abre-se um
enorme arco de volta perfeita que define a altura do sistema de cobertura do coro, também
ele abobadado.
42
ALVES, 2003: 753;
43
AFONSO, 2003: 51
44
ROCHA, 2011: 331;
37
A altura é limitada pelo toral da igreja e, numa cota inferior, pelo toral do coro
formando, assim, uma tribuna. Existe ainda uma tradicional grade, enquadrada por arco
de cesto, que encerrava a comunidade religiosa sobre si mesma e, a meia altura do vão,
uma outra tribuna atravessa o coro.45 O coro apresenta-se mais estreito relativamente à
nave da igreja, porém com uma organização similar relativamente aos alçados. Relembra-
nos uma falsa basílica de três naves cujas laterais formam galerias de circulação. Nas
colaterais, os arcos formeiros dão abertura a seis retábulos divididos entre ambas as
galerias de circulação.
3.1 A Capela-mor
45
ROCHA, 2011: 336;
46
ALVES, 2003: 742;
47
SERRÃO, 1991: 73;
38
leitura original e conjunta. Assim, e sendo as únicas imagens fora do contexto que aqui
abordo, considero por demais pertinente a sua análise, tábua a tábua, com o objetivo de
devolver a sua significação.
48
SERRÃO, 1993: 59;
49
SERRÃO, 1993:124;
50
SERRÃO, 1993:124;
39
A Incredulidade de S. Tomé
40
Jo (20: 24-29). Oito dias depois, Cristo reuniu com os seus discípulos, entre eles Tomé, e
entrando, colocou-se no meio deles e disse: Chega aqui o teu dedo e vê as Minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no Meu lado; e não sejas incrédulo, mas crente Jo (21: 27).
Ao tocar nas suas feridas, Tomé professou a sua fé em Cristo que lhe disse: Porque Me
viste, Tomé, acreditas-te; bem-aventurados os que, sem terem visto, acreditaram! Jo (21:
29). Esta aparição é distinta das outras pois conjetura a crença num Cristo intangível mas
suficientemente corpóreo para que Tomé pudesse colocar os dedos nas suas chagas.51
A pintura que aqui analisamos, será a metáfora para o corpo anatomicamente
robusto, para a pose teatralizada das figuras de tonalidades quentes, envoltas em
atmosferas sombrias que destacam a figura central da composição, trazendo-a para
primeiríssimo plano. Já não vemos um Cristo cadavérico, de rosto sofredor, mas sim um
homem de porte atlético, exibindo as suas virtudes físicas e espirituais. Atentemos no
tratamento dos tecidos e da volumetria dos corpos, criadores de uma atmosfera de forte
intensidade plástica. Admite-se uma liberdade criativa que confere às figuras principais
o protagonismo, deixando as restantes figuras perfilando na retaguarda, enfatizando o
ceticismo expetante de S. Tomé, representado à direita de Cristo. Se em representações
anteriores Cristo apenas exibe a sua ferida, aqui vemos uma atitude em meio de um gesto
vigoroso, pois o próprio, firma a mão do incrédulo Tomé, que coloca os dedos na sua
chaga. À esquerda de Cristo, está S. Pedro, príncipe dos Apóstolos, que encabeça a lista
dos doze discípulos. É representado com o cabelo e a barba grisalhos, características
próprias da sua iconografia, e identificado por uma parte do seu manto laranja.52 É o eleito
de Cristo para dar corpo a uma missão: cuidar do rebanho, manter viva a fé e, sobre ela,
edificar os muros da futura igreja.53 À direita, S. João evangelista, caraterizado por um
rosto jovem e imberbe, pois era o mais novo de entre os apóstolos. A sua indumentária
verde e o manto vermelho, alusivo ao facto de não ter morrido vitima de nenhum
tormento, é também caraterística das suas representações.54
A modelação do corpo de Cristo é criada por uma conformidade lumínica, que o
transforma num ente palpável embora permaneça aureolado por uma leve faixa de luz
que emana da sua cabeça.
51
RÉAU, 1996: 591;
52
MUELA, 2008: 364;
53
RÉAU, 1996: 362;
54
MUELA, 2008: 234;
41
A Ascensão de Cristo
Embora em alguns documentos esta obra apareça identificada como sendo uma
Transfiguração, sabemos que algumas das personagens representadas não estariam
presentes neste episódio, de acordo com as escrituras. Defendendo o tema da Ascensão
de Cristo, ele aparece aqui representado estigmatizado, o que poderia então ser entendido
como uma premonição da Paixão de Cristo ou apenas mais um elemento de fusão entre
estes dois temas. Em todo o caso, do ponto de vista iconográfico, pode classificar-se o
tema como integrado no ciclo de glorificação de Cristo, embora seja frequente confundir-
42
se ambos os temas.55A Ascensão é a última das aparições de Cristo e é narrada apenas no
evangelho de S. Lucas enquanto que S. Marcos e S. João mencionam apenas que Cristo
subiu aos céus.
Este é, de entre todas as pinturas, o quadro de maiores dimensões, provavelmente
uma das peças centrais do conjunto retabular. Iconograficamente, o autor parece ter
bebido inspiração da célebre Transfiguração de Rafael de Urbino, que serviu de base a
muitas interpretações do século XVI, tendo sido muito partilhada e reproduzida. A nítida
influência de Rafael verifica-se na parte superior da peça, onde Cristo é representado com
vestes brancas resplandecentes em ascese e mantendo a sua aparência física terrena. O
corpo eleva-se, de mãos abertas e olhos postos no céu, e se espiritualiza, convertendo-se
num corpo glorioso, cuja carne perde os contornos, diluindo-se na luz. Toda a composição
inferior é caraterizada por uma afluência de figuras que provocam agitação no observador
pois também elas parecem inquietas. A peça é de soberba execução e segue os preceitos
tridentinos de exaltação e decoro, sendo (...) absolutamente original e replica modelos
teixeirianos, já antes tratados em quadros seus.56 Ainda na parte inferior, os apóstolos
são representados de um e outro lado de Cristo. Entre eles, é possível identificar S. João
Evangelista e S. Pedro que tem lugar em primeiro plano, à direita do observador e cujos
modelos se repetem da pintura anterior. A presença das três Marias, à direita de Cristo, é
também uma das particularidades desta pintura, pois não é comum aparecerem
representadas nesta temática. Maria Madalena, Maria de Cléofas e Maria Salomé, são
uma inclusão atípica do pintor sendo que apenas a Virgem e os apóstolos terão assistido
a este momento.57 Maria, representada como orante é, aqui, a personificação da igreja,
que Cristo deixa na terra quando sobe aos céus.58
55
RÉAU, 1996: 598;
56
SERRÃO, 1993: 57;
57
RÉAU, 1996: 609;
58
RÉAU, 1996: 609;
43
O Pentecostes
A pintura que se segue retrata o Pentecostes que, na tradição Cristã, marca o dia
da descida do Espírito Santo à terra, encerrando as celebrações da Páscoa. O tema é
narrado nos Atos dos Apóstolos (2: 1-41) referindo que:
44
poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e
começaram a falar outras línguas (...) (Act 2: 1-4)
59
MUELA, 2008: 312;
60
RÉAU, 1996: 616;
61
RÉAU, 1996: 616;
45
silenciosa a documentação existente sobre as obras no Mosteiro durante os finais do
século XVI62, é difícil apurar-se os enredos da empreitada bem como os seus
encomendantes e até clausulas a que o pintor se sujeitou. Tal como refere Vitor Serrão
esta série foi delineada em exclusividade pelos pincéis de Teixeira.63 Assim, concluímos
que há uma forte possibilidade das monjas terem tido influência na forma como o pintor
executou estes temas, destacando a evidência de um mosteiro feminino. Tal como as
Marias, figuras femininas, receberam o Espirito Santo, também as monjas se achavam no
direito de o receber, podendo contemplar tais obras e identificando-se como
verdadeiramente devotas.
Toda a cena se desenrola num espaço arquitetónico desconstruído segundo os
cânones anticlássicos do Maneirismo.64 Uma pintura equilibrada e cromaticamente
vigorosa no tratamento plástico, composta de modelos requintados que se repetem, dando
seguimento aos temas e permitindo estabelecer uma ligação entre eles. O tema, simboliza
sobretudo o nascimento da igreja, permitindo o acesso ao evangelho às diferentes nações
e cumprindo a profecia de Jesus de enviar o Espírito Santo à terra. (Jo 20: 21- 22)
O Pai Eterno
62
SERRÃO, 1993: 59;
63
SERRÃO, 1993: 56;
64
SERRÃO, 1993: 58;
46
A pintura que se segue, parece rematar todo o conjunto não só pela sua temática,
mas também pela forma como se dispõe estreita e horizontalmente. Uma representação
do Pai Eterno emerge de um fundo amarelo resplandecente, semelhante às tonalidades de
fundo que enquadra o tema da Ascensão de Cristo. Possivelmente estaria colocada no
ático do retábulo, acima da Ascensão65, completando iconograficamente essa mesma
composição. A representação de Deus Pai é executada em profundidade, sugerida por um
rosto que paira no céu, por entre as vestes esvoaçantes projetadas obliquamente para a
esquerda sublinhando a assimetria do desenho. Vestido com largos panejamentos, Deus
é envolto por um manto arroxeado, tonalidade comum na paleta de Diogo Teixeira.66 Esta
dinâmica acompanha a leveza de uma figura esbelta, de rosto fino e expressão contida ao
mesmo tempo que realça a agitação dos seus cabelos e barbas grisalhos, de ancião.
Por detrás da cabeça, figura-se um triângulo equilátero azul, simbolizando a
Santíssima Trindade, dogma que assenta na crença de um Deus uno e trino.67 Este,
juntamente com o círculo, revelam-se as formas simbólicas que melhor se adequam à
invocação da ideia de triplicidade e unidade, pois falamos de um só triângulo com três
lados iguais, podendo ser inscrito num circulo. 68
Deus pai dirige o seu olhar para Cristo, seu filho, enquanto que na pintura da
Ascensão de Cristo ascende e olha para o Pai, reforçando a defesa deste tema em
detrimento da ideia de uma Transfiguração. Os planos parecem completar-se num céu
enublado, no qual surgem as figuras, envoltas numa áurea resplandecente.
65
SERRÃO, 1993: 57;
66
SERRÃO, 1993: 57;
67
RÉAU, 1996: 38;
68
RÉAU, 1996: 40;
47
St.ª Escolástica, St.ª Ofémia [Eufémia] e S. Mauro
FIGURA 13 – St.ª Escolástica, St.ª Ofémia [Eufémia] e S. Mauro, c. 1595 – 1597, Diogo Teixeira;
Sta. Escolástica, irmã gémea de S. Bento, com quem mantinha uma relação de
profunda inspiração. É representada jovem, tendo envergado pela vida religiosa ainda em
tenra idade. A sua importância é justificada pela sua fé que, na sequência do primeiro
Mosteiro Beneditino, fundado pelo seu irmão, se traduziu na criação do primeiro mosteiro
feminino do Ocidente.70 Esta representação de Escolástica não se fixa na sua condição de
abadessa pois a santa é desprovida dos seus atributos comuns (o hábito, o báculo e a
pomba). Ricamente vestida com uma túnica verde-adamascado com um pormenor de
vivo rubro nos braços71, é embelezada com uma fita vermelha, por entre os cabelos
entrelaçados e adornada com joias. Segura apenas um livro, alusivo à regra de S. Bento e
a palma de mártir enfatizando a sua vitória sobre o pecado e a morte.
69
SERRÃO, 1993: 58;
70
II Livro dos Diálogos de S. Gregório Magno, Cap. XXXIV;
71
SERRÃO, 1993: 59;
48
Sta. Ofémia – S. Eufémia, ao lado de Escolástica, é considerada protetora dos
doentes de pele, invocada pelos cristãos no auxilio de doenças dermatológicas ou
cancerígenas. É identificada como mártir por ter sido torturada aquando da perseguição
aos Cristãos pelo imperador romano Diocleciano, na Calcedónia (Grécia). Foi sujeita aos
maiores tormentos para que renegasse a sua fé, entre as quais ser lançada aos leões, que
nada lhe fizeram, mantendo-a intacta. Tentaram ainda queimá-la com carvão em brasa
num engenho para o efeito, mas quis Deus que Eufémia saísse ilesa. Irados com a
persistência e fé da Santa, trespassaram-lhe o coração com uma espada.72 É comum ser
representada com um livro, símbolo da sua defesa pela ortodoxia e a palma de mártir,
podendo ainda ser acompanhada por um leão, aos seus pés, alusivo a um dos seus
tormentos.73 Vestida luxuosamente, tal como Santa Escolástica, é de notar o bonito busto
que lhe é conferido, magnifico exemplo do ideal psicológico da venustà maneirista
italianizante, caraterizador das figuras femininas de Diogo Teixeira.74
S. Mauro, ou Santo Amaro foi um dos seguidores de S. Bento, fundador da ordem
beneditina tendo sido entregue aos seus cuidados desde muito jovem, no Monte Cassino.
Tornou-se o braço direito de S. Bento por ser um homem de grande virtude, modelo de
obediência, humildade e caridade. A ele se atribuem alguns milagres durante a sua vida.
Representado com as vestes de monge, castanhas cor da humildade, S. Mauro
apresenta-se como homem maduro, de tonsura monacal, barba e bigode compridos,
segurando um cajado e fazendo um gesto de bênção. Recorde-se que os gestos de
eloquência romanos, tornaram-se signos de bênção, nos gestos do cristianismo.75 A
escolha da representação de S. Mauro neste conjunto não será um acaso pois é um santo
protetor do gado. Foi à sombra deste mosteiro que, durante muitos séculos, o povo
arouquense viveu e trabalhou. Sendo a criação de gado uma das mais antigas atividades
em Portugal, desempenhou nesta vila, um papel relevante na vida das pessoas, em alguns
casos, como único meio de subsistência familiar. O gado bovino arouquês era
reconhecido não só pelo apoio nos trabalhos da lavoura como também pela sua carne,
ainda hoje apreciada por aqueles que nos visitam.
72
VORÁGINE, 1996: 600;
73
VORÁGINE, 1996: 603;
74
SERRÃO, 1993: 59;
75
BARASCH, 1999: 27;
49
S. Sebastião, Santa Luzia e Santa Bárbara
FIGURA 14 – S. Sebastião, Santa Luzia e Santa Bárbara, c. 1595 – 1597, Diogo Teixeira;
Atentando na direção do olhar e postura das figuras, este painel estaria localizado
à esquerda na predela do retábulo.76 São representados, S. Sebastião, Sta. Luzia e Sta.
Bárbara, que honram os modelos Teixeirianos com o mesmo ideal de embelezamento das
figuras anteriores.
S. Sebastião é representado como um jovem imberbe, de rosto melancólico, atado
à árvore do seu martírio. Exibe um corpo de porte atlético, desnudo, cujo tratamento
plástico se enquadra nos modelos do artista. Nascido no ceio de uma família nobre,
Sebastião viajou para Milão ainda jovem onde se tornou elemento da corte do imperador
Diocleciano.77 Apesar do estatuto, nunca renunciou a sua fé e lutou contra a
marginalização dos cristãos.78 Porém, as suas crenças levaram a que fosse rotulado como
desertor e traidor dos valores e crenças pagãs do Império Romano (...) e, por ordem do
imperador, (...) foi amarrado a uma coluna ou tronco de árvore (...) onde múltiplos
arqueiros alvejaram incessantemente o seu corpo com flechas (...)79 Por ter sobrevivido
ao martírio, o imperador, furioso, ordenou uma nova sentença que levaria Sebastião a ser
76
SERRÃO, 1993: 58;
77
RÉAU, 1996: 420;
78
RÉAU, 1996: 420;
79
AMORIM, 2014: 5;
50
espancado até à morte, tendo o seu corpo sido atirado à Cloaca Máxima.80 Desde a idade
média que S. Sebastião é invocado para proteção contra as pestes, sendo esse papel anti
pestífero fundamentado por Réau a partir das representações medievas da peste, figurada
numa chuva de setas, como castigo de Deus aos pecadores.81
Sta. Luzia, representada ao centro da composição, traja com indumentária
luxuosa da Roma Antiga, de um cromatismo vigoroso na túnica verde coberta com a toga
avermelhada presa por uma pregadeira dourada. Traz consigo uma bandeja com dois
olhos, o seu atributo mais comum e a palma de mártir.82 A coroa real ou de flores83 pode
ser também considerado um dos seus atributos, embora Diogo Teixeira as substitua por
uma fita vermelha entrelaçada nos seus cabelos. Luzia, educada segundo os valores
cristãos,84 havia sido prometida a um pagão porém tinha consagrado a sua vida a Deus
num voto de perpétua castidade.85 Ao ver a sua mãe doente, peregrinou ao túmulo de
Santa Ágata para alcançar a cura e adormeceu enquanto orava. Ao despertar e ver a sua
mãe sã, convenceu-a de que todos os seus bens deveriam ser distribuídos pelos pobres,
incluindo o seu dote matrimonial.86 Acusada pelo noivo de ser cristã, Luzia foi condenada
à violação negando-se a prestar culto aos deuses pagãos. Mil homens e mil parelhas de
bois foram chamados para mover o corpo de Luzia mas ela não se mexeu, por obra do
Espírito Santo.87 Intentaram queima-la mas saiu ilesa do fogo e enfurecidos, os seus
carrascos trespassaram a sua garganta com uma espada.88 O nome Luzia, deriva da
palavra luz que, na sua natureza, está associada ao deleite da vista.89 Por essa razão, esta
Santa é considerada padroeira dos oftalmologistas, sendo invocada para curar as
enfermidades dos olhos, a janela da alma.
Sta. Bárbara, é representada num busto sublime, caraterizada por vestes de gosto
epocal e joias que a embelezam. Segura na mão direita uma torre, com três janelas,
alusivas à santíssima Trindade, sendo este o atributo que melhor a identifica. Na mão
esquerda, a palma alusiva ao seu martírio.90 Bárbara era de ilustre linhagem e riquíssima
em bens de fortuna mas o seu pai, ao considerar tamanha beleza, ordenou que se
80
Cloaca Máxima, equivalente a esgoto romano;
81
RÉAU, 1998: 195;
82
MUELA, 2008: 292;
83
MUELA, 2008: 292;
84
VORÁGINE, 1996: 44; (tradução de Margarida Gonçalves);
85
VORÁGINE, 1996: 44;
86
VORÁGINE, 1996: 44;
87
VORÁGINE, 1996: 46;
88
MUELA, 2008: 292;
89
VORÁGINE, 1996: 43;
90
MUELA, 2008: 39;
51
construísse uma torre onde a manteve cativa. Acusada pelo pai de ser cristã, compareceu
diante do governador e, não renunciando à sua fé foi condenada aos piores tormentos. Ao
ser açoitada e exibida por toda a cidade, Bárbara olhou para o céu a orar, e um anjo de
Deus desceu dos céus, envolvendo o seu corpo num manto branco. Ao assistir ao milagre,
o governador ordenou aos carrascos que a matassem com as suas espadas porém, o seu
pai interveio pedindo que lhe fosse concedida a execução da sentença.91 Cumprida a
condenação, o seu pai pôs-se a caminho de casa, mas nunca lá chegou, pois um misterioso
fogo, proveniente do céu, abrasou o seu corpo.92 Por essa razão, Santa Bárbara é invocada
como protetora por ocasião de tempestades, raios e trovões mas também contra a morte
súbita, sendo ainda patrona dos artilheiros, mineiros e fundidores de sinos.93
Numa leitura conjunta de ambas as peças, é possível comprovar não só a
imponência que a presença feminina alcançava neste mosteiro através da representação
das Santas Mártires, exemplos de fé e virtude para as monjas, mas também constatar as
exigências que ocorriam por parte das encomendantes que intervinham, dando indicações
sobre os Santos e a forma como desejavam que fossem figurados. A escolha destes santos
reflete claramente uma ordem de encomenda pois, se de um lado vemos Sta. Escolástica
e Sta. Eufémia acompanhadas por S. Mauro, protetor do gado, sobretudo bovino no caso
de Arouca, do outro lado Sta. Luzia e Sta. Bárbara estão na presença de um santo anti
pestífero, S. Sebastião.
91
VORÁGINE, 1996: 901;
92
VORÁGINE, 1996: 902;
93
MUELA, 2008: 39;
94
FERREIRA, 2009: 2;
95
ALVES, 2003: 739;
52
Entalhadores, ensambladores, imaginários, pintores e douradores, organizavam-
se em oficinas para dar resposta às clausulas dos contratos, rubricados pelos clientes e
artistas, que mencionavam os requisitos aos quais deveriam cumprir as madeiras a ser
entalhadas: (...)lisa, sem nós, defeitos ou rachaduras que pudessem vir futuramente a
danificar a peça.96 Também o ouro deveria cumprir formalidades, nomeadamente quanto
ao grau de finura (entre 20 e 24 quilates) e cor. O entalhe era demorado e a execução do
douramento exigia uma grande perícia do dourador, sendo eles responsáveis pela
aplicação das finas placas de ouro produzidas pelos bate-folhas.97 Porto e Braga
destacaram-se como grandes centros produtores nesta época de estudo, com mestres
como António Gomes, portuense distinto pelas obras de vulto na cidade, algumas delas
em parceria com Domingos Nunes, nos retábulos da igreja do Mosteiro de Santa Clara,
em Coimbra, ou com Filipe da Silva na talha do coro da igreja do Mosteiro de Arouca. A
hegemonia e significação que estas peças têm dentro do edifício da igreja garantem a
relevância deste estudo.
Com data anterior à magnífica obra de talha atualmente exibida na igreja do antigo
Mosteiro de Arouca, existem registos de compromisso com dois mestres entalhadores do
Porto, António Gomes e João da Costa98, para execução do retábulo-mor e tribuna que
deveria estar concluído em 1702.99 Contudo, de acordo com a Visitação de 24 de
Novembro desse ano, a igreja encontrava-se num estado deplorável pelo que, no ano
seguinte, Carlos Gimac executava a planta atual da igreja. A necessidade de se construir
uma nova igreja obrigou ao cancelamento deste contrato e em Junho de 1723, Luís Vieira
da Cruz brindava as religiosas com o retábulo atual.100 Mestre bracarense e com atividade
reconhecida em Braga, no Porto e em Arouca, durante os finais do século XVII e o
primeiro quartel da centúria seguinte, Luís Vieira da Cruz executou este grandioso
retábulo, integrado na estética barroca de inícios de setecentos. A estrutura dos retábulos
inseridos no período em estudo, é marcada por uma configuração mais escultórica,
comparativamente aos retábulos maneiristas de carácter arquitetónico, que se traduz
numa maior estabilidade formal da peça na qual a talha se torna predominante.
Ponto fulcral da capela-mor, o retábulo ocupa toda a altura da mesma, adquirindo
uma continuidade relativamente às divisões do complexo arquitetónico que desde logo
96
ALVES, 2003: 740;
97
ALVES, 2003: 740;
98
Diocese do Porto- Subsídios para o seu estudo –II: p.68;
99
Diocese do Porto- Subsídios para o seu estudo –II: p.67;
100
Diocese do Porto- Subsídios para o seu estudo –II: p.69;
53
nos permite compreender a submissão da talha ao corpo e organização da arquitetura.
Hierarquizado na sua estrutura, o retábulo mantém o lugar central destinado ao
acolhimento do Santíssimo Sacramento e, sendo uma obra de vulto, permite-nos percorrer
caminho em torno do Sacrário.
54
O retábulo apresenta-se tripartido, com três tramos em cada nível, à exceção do
remate que é feito com arquivoltas. Os entablamentos em pedra, do corpo da igreja, têm
continuidade no retábulo em madeira, acentuando a segmentação e horizontalidade da
igreja. Os tramos são demarcados por colunas salomónicas rematadas por capitéis
coríntios, caraterizados com volutas e folhas de acanto. O primeiro e segundo nível do
retábulo são separados por um entablamento ininterrupto e destacam-se pela contínua
sequência vertical das duplas colunas torsas nas laterais. Em ambos os níveis, os tramos
laterais apresentam pequenos nichos apainelados com mísulas de acantos, destinados à
imaginária. No primeiro nível, os intercolúnios apresentam esculturas representativas de
S. Cosme, à esquerda, e S. Damião, à direita, mártires ligados à fundação do primeiro
cenóbio. Irmãos gémeos, estes Santos tinham o dom divino de curar qualquer doença, não
cobrando pelos seus serviços. Figurados com grandes parecenças físicas, apresentam-se
jovens adultos, sendo comum trazerem consigo objetos médicos e cirúrgicos como uma
vasilha para análise da urina, frascos de cerâmica ou a espátula.101 Apesar de não se
fazerem acompanhar por eles, possivelmente por se terem partido e desagregado do resto
101
MUELA, 2008: 90;
55
da peça, trajam com indumentária de médico com a toga e boina segurando um livro,
símbolo da sua fé.
56
FIGURA 18 – S. Bento e S. Bernardo, retábulo-mor da igreja;
102
ROCHA, 2011: 386;
57
FIGURA 20 – A tribuna ascendente com a Nª Sr.ª da Assunção, retábulo-mor da igreja;
58
3.1.3 As pinturas de André Gonçalves
Ainda na capela-mor, a talha conjuga-se com outra arte, numa série de oito (...)
preciosas telas setecentistas, feitas numa oficina em Lisboa, onde se acabaram em 1738,
e pelas quais as monjas de Arouca pagaram a avultada quantia de 178.800 reais (...)103.
Atribuídas por Pedro Dias a André Gonçalves104, estas pinturas foram emolduradas em
talha, da lavra de Miguel Francisco da Silva, no ano de 1738.
Na conjuntura artística barroca que se vivia em Portugal, designada o Siglo de
Oro105, o pintor destacou-se como um dos melhores artistas nacionais (...) em
equivalência aproximada, em qualidade, à produção italiana.106 Durante a sua
adolescência foi aprendiz com um (...) famoso pintor de azulejos, futuro patriarca de uma
família de artistas (...)107 António de Oliveira Bernardes (1660-1732), e contactou com
artistas como Francisco Vieira Lusitano108. Na década de 1730, dá-se o auge da sua
produção, possuindo um elevado conhecimento internacional a nível de formação
artística que obteve a trabalhar em Mafra, contemplando obras de contemporâneos,
franceses e italianos, que D. João V custeou para os corredores de Mafra.109 A sua
produção, de explicita influência italiana classicista, traduziu-se numa abertura cromática
da sua paleta fazendo evidenciar-se as tonalidades mais claras.
À altura do primeiro nível do alçado, divididas entre o lado da Epístola e o lado
do Evangelho, encontram-se quatro telas referentes a episódios da vida de S. Bernardo,
enquanto difusor do movimento cisterciense. As duas pinturas, correspondentes ao lado
do Evangelho dizem respeito à entrada do abade para a Ordem de Cister e à sua morte e,
do lado da Epístola, são retratados dois dos momentos místicos ocorridos durante a sua
vida: a Aparição da Virgem e El Amplexus. Relembremos que este espaço era de acesso
restrito ao clero que, naturalmente, ali realizava os atos litúrgicos, mas era também espaço
visível para as monjas que, através das galerias que ladeiam a capela-mor, contemplavam
estas obras. Ora, um público tão distinto como eram aquelas Senhoras, cujo olhar se
103
ROCHA, 2011: 386;
104
DIAS, 2000: 27;
105
SALDANHA, 1990: 36;
106
PEREIRA, 2011: 674;
107
MACHADO, s.d.: 20;
108
Com quem travou uma grande amizade e trabalhou em parceria em várias encomendas. O estudo italiano
que Vieira Lusitano fez, em Roma, possibilitou a André Gonçalves a aquisição de conhecimento
relativamente à técnica italiana. ISIDRO, 2014: 105;
109
ISIDRO, 2014: 97;
59
perdia horas incontáveis a contemplar o guia espiritual da Ordem(...)110 , pediam arte de
elevada qualidade e requinte.
A segunda tela com que nos presenteia o pintor setecentista retrata o momento da
morte de S. Bernardo. O abade faleceu em Agosto de 1153111, com sessenta e três anos
de idade, quarenta dos quais passou em clausura total. Foi primeiramente enterrado na
abadia de Claraval e, mais tarde transladado para a Catedral de Troyes.112 Vinte e um
anos após a morte, foi canonizado pelo papa Alexandre III, em Janeiro 1174113 e, em
1830, o papa Pio VIII proclamou-o doutor da igreja. Bernardo é representado no seu leito
de morte na presença de seis monges cistercienses, todos de hábito branco e tonsura
monacal. À cabeceira, um dos monges segura a cruz de Cristo crucificado e, aos pés do
abade, outro monge, ajoelhado, eleva um livro aberto, símbolo da palavra de Deus.
Bernardo aparece, agora, aureolado com uma suave luzência e coberto com um manto
110
ROCHA, 2010: 346;
111
MUELA, 1998: 52;
112
A transladação deveu-se ao facto da abadia de Claraval ter sido dissolvida em 1792, aquando da
Revolução Francesa.
113
MUELA, 1998: 52;
60
vermelho. A escolha desta cor parece propositada, atraindo o observador para a cena
principal, porém poderá albergar significados distintos: é a cor associada à Paixão de
Cristo, da dor e sofrimento, mas também a de um amor espiritual, associado a Cristo. Sob
outra perspetiva, conhecemos o presságio que antecedeu o nascimento do Santo, no qual
a sua mãe sonhara que levava nas entranhas, um cão branco, manchado de vermelho no
dorso, que defenderia a casa de Deus e ladraria contra os inimigos da fé.114
114
MUELA, 1998: 51;
115
PINTO, 2015: 9;
116
PINTO, 2015: 38;
61
exaltada com espírito de grandeza, dignidade e poder. Este clima de devoção foi
promovido por instituições religiosas que deram lugar a Maria quer na liturgia, com os
mariale117, quer nos livros e na homilética. A ordem de Cister foi uma delas, adquirindo
um papel preponderante na disseminação do culto, colocando os seus mosteiros sob
invocação da Virgem a quem se dirigiam como Mater Cisterciensium.118 O próprio S.
Bernardo granjeou a reputação de grande pregador e doutor mariano por excelência, que
se amplificou por meio de temas iconográficos como este.119 André Gonçalves oferece-
nos uma interpretação de uma das experiências místicas de S. Bernardo, episódio que
dispõe como fonte literária os sermões ao cantar dos cantares120, escritos pelo próprio.
O momento representado é o instante da aparição que ocorreu enquanto S. Bernardo orava
perante uma simples imagem da Virgem. Ao proferir em voz alta as palavras monstrate
esse matrem121, apareceu-lhe a Virgem com o Menino nos braços respondendo monstro
me esse matrem122 e do seu peito jorrou leite materno, alimentando S. Bernardo. Assim o
representa o artista, respeitando os modelos da peça anterior e criando uma uniformidade
a nível do traço e do cromatismo em todo o conjunto, através da utilização de uma paleta
suave e luminosa. A Virgem, de desenho elegante, está com o Menino ao colo e amamenta
o abade, colocando a mão no seu seio e jorrando leite materno. O vermelho das suas
vestes e o azul do seu manto, sobrepõem-se aos tons neutros da restante composição. Já
o rosto sereno da Virgem e a graciosidade do Menino, conjugados com a particular
iluminação dada à cena principal, criam uma atmosfera mística, enfatizada pelos
panejamentos pregueados e esvoaçantes assim como pelas nuvens e anjinhos, alguns
apenas sugeridos por pequenos rostos pálidos e cabelos ondeados.
• EL AMPLEXUS
A terceira tela representa uma outra visão de S. Bernardo, El Amplexus, cujo relato
participa da sua biografia, descrevendo o abraço dispensado ao santo por Cristo
crucificado. Enquanto Bernardo orava fervorosamente, Cristo apareceu-lhe na cruz e,
descravando um dos seus braços, abraçou-o.123 A fonte para este tema volta a estar
117
PINTO, 2015: 12;
118
Mater Cisterciensium- Título colocado nas portarias dos Mosteiros da Ordem;
119
PINTO, 2015: 69;
120
MUELA, 1998: 53;
121
MUELA, 1998: 53;
122
MUELA, 1998: 53;
123
MUELA, 2008: 53 (tradução de Margarida Gonçalves);
62
presente nos Sermões ao Cantar dos Cantares124, onde S. Bernardo confessa a sua
devoção pela Paixão de Cristo, tema frequente nos seus escritos.
124
MUELA, 2008: 56;
63
S. João era um pescador que se tornou um dos escolhidos por Jesus e ocupou um
lugar especial entre os apóstolos, tendo presenciado alguns dos mais importantes
momentos da vida de Cristo,125 como a Transfiguração ou a Oração no Monte das
Oliveiras.126 É aquele que Jesus amava (Jo 19, 26-27) e, como prova desse amor, lhe
encomendou o cuidado de sua mãe, Maria, que João acolheu e a tomou por sua.127 É
representado jovem e imberbe, figuração comum na arte ocidental,128 espelhando a sua
jovialidade, pois era o mais novo entre os apóstolos.129 Sentado, segura um livro e uma
pena, símbolos do evangelho que escreveu. Veste uma túnica verde e um manto vermelho,
por não ter morrido de martírio algum. A presença da águia, com quem troca um olhar, é
uma constante nas suas representações, destacando-se como seu atributo principal.130
S. Lucas, é o autor do terceiro evangelho canónico, foi quem recebeu informação
privilegiada de Maria sobre o momento da Anunciação e o Nascimento de Jesus,
disfrutando de uma consideração privilegiada dentro da igreja.131 Ao contrário de S. João
e S. Mateus, S. Lucas não conheceu Jesus pessoalmente, tendo abraçado a fé cristã por
volta do ano 40, depois da Paixão de Cristo.132 Discípulo direto de S. Paulo133, era culto
e versado em literatura mas também médico de profissão.134 A sua iconografia pode variar
entre três facetas, que se destacam na sua personalidade, podendo ser representado como
como médico, pintor ou evangelista, tal como nos mostra André Gonçalves nesta tela. É
representado como adulto, com barba e cabelo grisalho, escrevendo o seu evangelho na
presença de um touro, o seu atributo principal, símbolo do sacrifico de Cristo por nós.135
125
MUELA, 1998: 234;
126
MUELA, 1998: 64;
127
MUELA, 2008: 232;
128
MUELA, 2008: 64;
129
VORÁGINE, 1996: 65;
130
MUELA, 2008: 234;
131
MUELA, 2008: 289;
132
VORÁGINE, 1996: 669;
133
VORÁGINE, 1996: 669;
134
VORÁGINE, 1996: 669;
135
VORÁGINE, 1996: 669;
64
FIGURA 23 – S. João e S. Lucas, 1738, André Gonçalves;
136
MUELA, 1998: 61;
137
MUELA, 2008: 322;
138
MUELA, 1998: 61;
65
integrando toda a doutrina e atividade de Cristo, incluindo os seus milagres.139 É o autor
do segundo evangelho canónico, mas foi o primeiro a colocar por escrito todos os
ensinamentos de Jesus, tendo como objetivo primordial demonstrar que Ele era
verdadeiramente o filho de Deus. S. Marcos aparece sentado, escrevendo o seu evangelho
junto ao seu animal simbólico, o leão140, podendo ser substituído por ele. O leão é símbolo
da ressurreição e é representado à direita de Cristo quando em conjunto com os restantes
elementos do Tetramorfo.
139
VORÁGINE, 1996: 253;
140
MUELA, 1998: 61;
66
3.2 Na Nave
141
ROCHA, 2011: 348;
67
Altar da Imaculada
Conceção da Virgem
Altar do Sagrado
Coração de Jesus
Altar da Rainha Santa Mafalda
Altar de Cristo
Ressuscitado
Altar do Calvário
Altar de S. Bartolomeu
Fonte: Margarida Gonçalves, 2020
68
3.2.1 Altar da Rainha Santa Mafalda
O local mais representativo da memória desta Rainha é o seu túmulo. Tendo a sua
eleição como beata justificado a permanente exposição das suas relíquias, suporte
concreto para paradeiro das demais devoções,142 as monjas não se demoraram a
encontrar local privilegiado para tal, respondendo à afluência dos fiéis. A existência da
Rainha Santa Mafalda povoou o imaginário de um povo durante séculos, afirmando-se
na memória da coletividade e sendo, claramente, a chave para a desconstrução da história
deste mosteiro. Assim, localizado quase de frente para a porta principal da igreja, o altar
dedicado à Santa é o ponto de partida neste percurso iconográfico que inicio.
Em 1718, a igreja nova estava pronta a ser benzida, não havendo melhor ocasião
para a trasladação do túmulo de Mafalda do altar provisório, ao lado direito das grades
do coro, para o local onde atualmente se encontra. O altar denota expressão Joanina,
visível na utilização de uma gramática decorativa caraterística, com base na concha,
feixes de plumas e volutas que antecedem a peça primordial do altar, o cofre que acolhe
a Rainha. Desenho de José Francisco Paiva, entalhador portuense, a peça é de forma
trapezoidal e envidraçada, conjugando a transparência das zonas vidradas com a armação
laboriosa em pau preto e ébano. No seu interior, acolhe os restos mortais da Beata
Mafalda, num relicário que se crê fiel à sua imagem. A Rainha, de rosto sereno e traços
delicados, encontra-se recostada sobre uma almofada, com o corpo ligeiramente voltado
para os fiéis. O cofre, adornado com apliques de prata e bronze dourado da lavra de
António Faria Soares, explora a estética entre a linearidade do Neoclássico e a
sinuosidade característica do Barroco143, visível sobretudo no recorte ondulado da tampa
em oposição às molduras lisas de contorno da peça. Destaque-se a moldura inferior pela
ligeira curvatura ao centro que recebe as armas de Portugal e Castela. Nas ilhargas, duas
cabeças de anjo em bronze dispostas de um e outro lado do cofre. A peça é encimada por
um corolário que sustenta a coroa real em bronze dourado, ornada com volutas e motivos
florais vários. Todo o altar é integrado numa estrutura que relembra o Baldaquino
Berniniano, onde o cofre é ladeado por duas colunas pseudo salomónicas de capitel
coríntio e cujo remate é feito por um frontão curvo interrompido. Nas aletas, duas figuras
se estendem, a alegoria da fé, segurando uma cruz e, do outro lado, um anjo que segura
um bebé. Recorde-se que, desde a idade média, o corpo de D. Mafalda se encontrava
142
ROCHA, 2011: 126;
143
ROCHA, 2011: 126;
69
encerrado num túmulo de pedra, atualmente exposto no lugar debaixo da banqueta do
altar.
70
FIGURA 27 – Túmulo da Rainha St.ª Mafalda, (S.d.), José Francisco Paiva;
FIGURA 28 – Pormenor do altar da Rainha St.ª Mafalda, (S.d.), José Francisco Paiva;
71
FIGURA 29 – Brasão de D. Mafalda, Pormenor no túmulo da Rainha, José Francisco Paiva;
144
ROCHA, 2011: 387;
145
MUELA, 1998: 42;
72
seu martírio, pois fora-lhe retirada a sua vestimenta natural, a pele,146 simbolizando o
desprendimento corpóreo da alma. Traz, acorrentado, um demónio, figura contorcida e
disforme, subjugada aos seus pés147, símbolo da sua qualidade de Santo exorcista pelo
poder que demonstra no domínio dos demónios, fazendo-os temer a sua presença. Para
além da sua condição de exorcista, é considerado advogado dos que sofrem de epilepsia
ou gaguez. Atrás, um pequeno Calvário com Cristo Crucificado ao cimo de um
amontoado de pedras. De um e outro lado de Cristo, dois plintos vazios, que
possivelmente seriam ocupados por uma escultura da Virgem à esquerda e S. João
apóstolo, à direita. À esquerda de S. Bartolomeu, Santa Francisca, protetora dos
emigrantes e refugiados, segura um livro que diz: OMNIA POSSVM IN EO QVI ME
CONFORTAT – TUDO POSSO NAQUELE QUE ME CONFORTA. Todo o conjunto retabular,
segue o esquema do Baldaquino Berniniano, encimado por um frontão curvo
interrompido adornado com anjos que exaltam uma coroa e ainda a alegoria da fé. A
justificação para que se tenha mantido um altar de culto a S. Bartolomeu prende-se com
o facto de esta ter sido a invocação da igreja matriz, onde, no século XVIII, se davam
todas as funções paroquiais.148
146
MUELA, 1998: 41;
147
MUELA, 1998: 42;
148
ROCHA, 2011: 243;
73
FIGURA 31 – Altar de S. Bartolomeu, 1741, Miguel Francisco da Silva;
74
FIGURA 32 –S. Bartolomeu, pormenor do altar, 1741, Miguel Francisco da Silva;
75
3.2.3 Altar de S. Bento
149
COELHO, 1988: 56;
150
MUELA, 1998: 46;
151
MUELA, 1998: 44;
76
FIGURA 34 – Altar de S. Bento, 1741, Miguel Francisco da Silva;
77
3.2.4 Altar de S. Bernardo
152
MUELA, 1998: 52;
153
COELHO, 1988: 58-59;
154
MUELA, 1998: 53;
78
FIGURA 35 – Altar de S. Bernardo, 1741, Miguel Francisco da Silva;
79
FIGURA 36 – Altar de S. Bernardo, 1741, Miguel Francisco da Silva;
155
MUELA, 1998: 314;
80
para a devoção popular sendo umas das santas de maior culto no Cristianismo.156 É
identificada de imediato pela sua túnica alaranjada157 e os seus cabelos soltos ondulados
e descobertos158 trazendo consigo um pano onde enxugara as suas lágrimas. Recorde-se
que a devoção à Santa Cruz e à Paixão do Senhor atingiram o auge neste período através
da liturgia da Semana Santa o que promoveu a execução de verdadeiros Teatros
Litúrgicos nos altares interiores das igrejas barrocas.159
156
MUELA, 1998: 309;
157
MUELA, 1998: 313;
158
MUELA, 1998: 314;
159
SILVA, 2011: 118;
81
FIGURA 38 – Altar do Calvário, 1741, Miguel Francisco da Silva;
82
FIGURA 39 – Altar da Ressurreição de Cristo, 1741, Miguel Francisco da Silva;
83
3.2.7 Altar do Sagrado Coração de Jesus
160
ROCHA, 2011: 162;
161
Com base nas visões de Santa Margarida Maria Alacoque que refere ter tido uma visão com Jesus
exibindo o seu coração ensanguentado. RÉAU, 2008: 54;
162
RÉAU, 2008: 54;
163
RÉAU, 2008: 53;
164
RÉAU, 2008: 53;
165
RÉAU, 2000: 101;
84
FIGURA 40 – Altar do Sagrado Coração de Jesus, Séc. XVIII;
85
3.2.8 Altar da Imaculada Conceção da Virgem
Quem é esta que surge como a aurora, bela como a lua, brilhante como o sol,
temível como um exército em ordem de batalha? (Cântico dos Cânticos 6, 10)
166
NADAL INIESTA, 2008: 278;
167
NADAL INIESTA, 2008: 278;
168
RÉAU, 2000: 110;
169
NADAL INIESTA, 2008: 278;
170
SMITH, 1962: 69;
86
FIGURA 41 – Altar da Imaculada Conceção da Virgem, Séc. XVIII;
87
4. CAPÍTULO IV – As Sacristias
As sacristias são uma extensão do altar, de onde parte o rito e onde o mesmo se
encerra.171 Podem apresentar-se com várias designações desde secretarium, diaconicum,
sacrarium, vestiarium, armarium ou até biblioteca.172 Parte integrante da igreja cristã, as
sacristias passaram de espaços anexos de apoio à liturgia, para dependências aparatosas
onde os sacerdotes encontravam a ordem e o esplendor necessários à prossecução das
cerimónias. A capela-mor da igreja do Mosteiro de Arouca é ladeada por duas sacristias
dispostas uma no lado do Evangelho, destinada aos confessores e capelães, e outra do
lado da Epístola onde, anteriormente, as monjas recebiam o Corpo de Cristo. A comunhão
era feita através de um postigo, na porta de acesso ao corredor lateral da igreja que, por
sua vez, dá para o coro. As monjas percorriam-no e subiam os degraus de um
genuflexório173 colocado no local, para o efeito. Nesse postigo, uma inscrição: Panem
angelorum manducavit homo – que significa o pão dos Anjos alimenta o homem.174 Mas
pensemos a liturgia divina como uma construção, que integra não só a convergência da
interação coletiva e individual, na intimidade de cada um, mas sobretudo a linguagem
escrita, oral, gestual e imagética que determinam o tempo divino que se faz presente no
tempo humano.175 Assim, a presença de figuras sagradas no interior das sacristias é um
fator comum, que se adequa à liturgia cristã e lhe confere sentido, direcionando a
existência do espaço. O interior de ambas as sacristias na igreja de Arouca é composto
por Arcazes robustos, de castanho, e espaldares embutidos que ambientam pinturas cuja
autoria se desconhece.
171
SANTOS, 2012: 16
172
MARQUES, 2007: 6;
173
Genuflexório- do latim genuflexorium que se entende por um móvel apropriado para orar de joelhos.
174
Voz Evangelica qve nos mudos Caracteres da Eftampa Catholicamente brada, & fe Divulga em 40,
Sermoens Panegyricos Feftivos, como tambem Funebres, & Quarefmais, p.381;
175
COSTA, 2017: 101;
88
que S. José adquire maior protagonismo, alcançando um espaço próprio e individual na
iconografia e na devoção popular.176 Entendido como um afetuoso pai de família, protetor
da Virgem e do Menino Jesus, afigura-se um S. José jovem, procurando enfatizar a força
do corpo e as virtudes da alma, tal como a Contrarreforma o dignificou.177 Se na idade
média víamos um S. José representado secundariamente nas composições178, vemos,
neste período, um jovem adulto acompanhado pelo Menino, numa atitude ternurenta,
assumindo, de alguma forma, a função que até então era exercida por Maria.179 Dois
querubins observam a cena e estreitam a ligação entre o carnal e o divino. Não havendo
atributos ligados à carpintaria (serra, plaina ou esquadro) que nos permitam ter plena
certeza desta identificação, o Menino brinca com a vara florida, principal atributo de José
que expurga qualquer dúvida em relação à sua identificação.
176
MUELA, 2008: 230;
177
MUELA, 1998: 58;
178
MUELA, 2008: 229;
179
MUELA, 2008: 231;
89
FIGURA 42 – S. José com o menino, sacristia do lado do Evangelho;
180
MUELA, 1998: 46;
181
MUELA, 1998: 46;
182
MUELA, 1998: 46;
183
II Livro dos Diálogos de S. Gregório Magno, Cap. XXXIV;
90
FIGURA 43 – S. Bento de Núrsia, sacristia do lado do Evangelho;
184
MUELA, 1998: 47;
185
MUELA, 1998: 47;
186
Recordemos que a religião Cristã é a religião da palavra e os gestos especificamente eloquentes, segundo
a configuração da Idade Média, observam-se, agora, como gestos de bênção do Cristianismo com origem
nos movimentos da retórica dos gregos e romanos. BARASCH, 1999: 27;
91
FIGURA 44 – S. Bernardo de Claraval, sacristia do lado do Evangelho;
A última tela conclui a leitura, encerrando a narrativa conjunta com uma Virgem
187
Nª Sª na Devoção do povo de Arouca, 1988: 13;
188
Nª Sª na Devoção do povo de Arouca, 1988: 18 - 19;
92
FIGURA 45 – A Virgem da Ternura, sacristia do lado do Evangelho;
A sua expressão maternal189 comporta uma matriz mais livre e imprevista sendo
que a Virgem aparece representada sentada de forma mais humanizada participando nas
brincadeiras do Menino.190 Inseridos num ambiente intimista, de interior, Jesus brinca
sobre o olhar ternurento de sua mãe, apontando o livro, estando ambos protegidos por
dois querubins, sugeridos pelos rostos que brotam da nuvem.
Do lado da Epístola, uma outra sacristia que conta com uma única e sólida peça
de mobiliário com disponibilidade para arrumações alargadas. Esta peça acompanha toda
189
Nª Sª na Devoção do povo de Arouca, 1988: 18 - 19;
190
RÉAU, 1996: 78;
93
a área parietal e exibe oito pinturas, integradas nos espaldares de castanho. O conjunto
inicia-se com um Tema Mariano.
Apesar da extensão dos danos causados pelo tempo e humidade do espaço, uma
observação atenta permitiu identificar alguns elementos que ajudaram a clarificar o tema
possível desta pintura. Ao centro da composição, encontra-se uma figura feminina,
percetível pelo corte das vestes e do manto branco que sustenta no colo. No canto superior
direito um galo, sobre o parapeito da janela, única fonte de iluminação do espaço. São
diversas as simbologias atribuídas ao galo entre as culturas orientais e ocidentais, mas
comummente, em todas elas o galo está ligado aos cultos solares, pois o seu canto anuncia
o nascer do sol. Na tradição cristã, o Galo é quem anuncia a boa nova do nascimento de
Jesus, à meia noite, e anuncia, ao nascer da aurora, a Ressurreição de Cristo.191 Aqui, na
191
RÉAU, 1996: 112;
94
presença de Maria, identificada pelo azul da sua indumentária, o galo parece anunciar um
novo dia, no sentido do nascimento de uma nova luz para o mundo, o nascer de Jesus,
como o renascer da esperança da humanidade.192
192
RÉAU, 1996: 112 - 127;
193
RÉAU, 1996: 108;
95
FIGURA 48 – A Fuga para o Egito, sacristia do lado da Epístola;
O anjo, de tez branca, traz consigo um manto vermelho, símbolo do amor puro e
S. José afigura-se rejuvenescido, no auge das suas virtudes físicas e espirituais,
demonstrando como as normas dimanadas do Concilio de Trento encontraram
repercussão na pintura, ao serviço dos revigorados dogmas da igreja. A família encontra-
se aureolada embora de maneira diferente: S. José aparece-nos apenas com um halo fino
e gracioso enquanto que o Menino emana uma luz mais forte e Maria é agraciada com
uma estrela ou clarão branco que a nomeia mãe de Jesus.
Sucede-lhe o tema de Jesus no Monte das Oliveiras representando o momento
que antecede a Paixão de Cristo. Tema predileto no século XV, inclusive em grupos
escultóricos,194 é narrado pelos evangelistas Mateus, Marcos e Lucas, descrevendo o
momento em que Cristo revelou a sua sublimidade aos discípulos prediletos: Pedro, Tiago
e João. O artista procede à junção dos três momentos que completam o episódio, através
de uma composição figurada em três planos, embora a ideia de profundidade não seja tão
bem concebida. No primeiro plano, Cristo ajoelhado com as mãos unidas em
conformidade com o seu destino. Os três discípulos, afastados e adormecidos no chão e,
194
RÉAU, 1996: 444 a 448;
96
no céu, um anjo, que apareceu a Jesus para apaziguar a sua angústia, facto que apenas o
evangelho de S. Lucas menciona.195 O anjo segura um cálice que serve de metáfora a
Cristo para explicar a sua Paixão, comparando-o a um copo de fel que se deve beber até
ao fim, tal como o ciclo da sua Paixão deveria ser terminado.
195
RÉAU, 1996: 444 a 448;
196
Palavra que designa o tribunal religioso dos judeus, uma assembleia de juízes judeus;
197
RÉAU, 1996: 470;
198
RÉAU, 1996: 472;
97
nível perspético. Denote-se que os carrascos parecem flutuar, atrás e à frente da coluna,
simultaneamente. Um deles segura na mão um chicote e o outro exibe um objeto difícil
de identificar. A auréola de Cristo é empregue pelo artista como o único indicador da sua
natureza divina.
199
VORÁGINE, 1996: 220;
200
RÉAU, 1996: 476;
98
coroa de espinhos é feita por um dos soldados que, com a ajuda do seu bastão, pressiona
a coroa contra cabeça de Cristo enquanto o outro se ajoelha, ridicularizando-o. A cena é
representada num interior, onde o degrau sobre o qual repousa o pé de Cristo parece ser
o trono fictício onde os carrascos o sentaram.
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
Da mesma forma que obrigavam os condenados à morte a cavar a sua própria
sepultura antes da execução, também Cristo carrega a Cruz até à colina de Gólgota,
onde foi crucificado. A representação de Cristo caído, sucumbido pelo peso da cruz,
resume com frequência o caminho até ao Calvário e a arte ocidental representou este tema
com todo o seu dramatismo, colocando Cristo sozinho sob o peso da cruz (Jo 19:16).
Cristo avança carregando uma cruz de grande porte, desmesuradamente pesada,
enfatizando todo o seu sofrimento e apelando à sensibilidade dos fiéis.201 Vestido com
201
RÉAU, 1996: 483;
99
uma túnica roxa e com a coroa de espinhos, Cristo parece desfalecer a cada passo, na
presença dos soldados romanos, caraterizados pelas suas armaduras e elmos.
FIGURA 52 – Cristo carrega a cruz até ao Calvário, sacristia do lado da Epístola;
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
Cristo Crucificado é o último momento da sua Paixão, sendo esta uma imagem
que se fixou no pensamento de todos os cristãos, espelho do sacrifício de Cristo pela
humanidade e a esperança no alcance da salvação de cada um. Cristo é a figura central da
composição, representado nu, imberbe, com o perizonium e a coroa de espinhos, de olhos
cerrados e a cabeça caída sobre o seu ombro direito. Assim o representa o autor, embora
sem qualquer rigor perspético e anatómico. A encimar a cruz, o Titulus (Jo 19, 18:20),
inscrição em latim que refere: Este é Jesus, o Rei dos Judeus (Mt 27:37). Contemplamos
uma representação simbólica da Crucificação, reduzida às personagens que dela
participaram. À direita de Cristo, a Virgem, de mãos abertas em oração, vestida com o
100
seu manto azul e à esquerda, S. João evangelista, com indumentária verde e um manto
vermelho. Maria Madalena ajoelha-se aos pés de Cristo, junto do crânio de Adão.
202
CHILTON, 2006: 42;
203
CHILTON, 2006: 42;
204
CHILTON, 2006: 42;
101
FIGURA 54 – Maria Madalena, penitente, sacristia do lado da Epístola;
Representada na condição de penitente (comum na arte barroca da
contrarreforma), traz consigo o crucifixo, símbolo da paixão de Cristo205 e um crânio.
Este último simboliza a perenidade da vida e recorda que a beleza da juventude é também
ela efémera, sendo o Homem avaliado pelos seus atos e não pela sua beleza exterior. O
crânio destaca-se, assim, como um dos principais atributos de Maria Madalena.
Contemplada por uma luz proveniente do céu que ilumina o seu rosto, Madalena é
representada num local deserto, alusivo à sua vida eremítica, quando se retirou para o
deserto durante trinta anos.206 Sobre a pedra, um vaso de perfumes, o seu atributo mais
comum207 e ainda um livro símbolo da boa aprendizagem ou da sua vida de pregação.
Representada com os cabelos ruivos soltos e as suas vestes cor-de-laranja, estes revelam
o seu passado de devassidão, pois esta cor assumiu contornos negativos em toda a sua
205
RÉAU, 1996: 309;
206
VORÁGINE, 1996: 384;
207
RÉAU, 1996: 309;
102
cronologia.208 De joelhos, em remissão, a mensagem é de conversão sendo que os braços
cruzados sobre o peito, assinalam resignação.209
A última pintura deste conjunto integra-se numa outra peça de mobiliário,
independente, que nos traz uma representação de S. Jerónimo, reconhecido como doutor
e padre da Igreja Latina.210
FIGURA 55 – S. Jerónimo, penitente, pintura na sacristia do lado da Epístola;
Esta é uma das iconografias mais emblemáticas do santo, onde é representado
enquanto penitente, isolado e na presença dos seus atributos: uma pedra, na mão direita,
alusiva à sua autoflagelação, pois feriu o seu peito com golpes consecutivos e, na mão
esquerda, um crucifixo.211 Encontra-se na companhia de um leão, a quem retirou um
espinho que feria a sua pata e que é símbolo da sua vida inóspita e solitária enquanto
208
PASTOUREAU, 2017: 102;
209
ALVES, 2018: 90;
210
MUELA, 1998: 218;
211
MUELA, 1998: 221;
103
penitente.212 É representado ajoelhado perante um livro aberto e um crânio, sobre os quais
medita, símbolos da sua remissão no deserto. Veste indumentária vermelha que lhe cobre
parcialmente o corpo e um capelo cardinalício vermelho, reclinado sobre a rocha, pois
embora não tenha sido cardeal, exerceu funções de secretariado do Papa Dâmaso.213
5. CAPÍTULO V – O Coro
Na galeria Sul, três retábulos ocupam todo o espaço dos arcos formeiros.
212
RÉAU, 1998:144;
213
RÉAU, 1998:144;
214
ROCHA, 2011: 385;
215
Recordemos a sua participação no retábulo-mor da Sé do Porto, que segue o modelo de retábulo joanino,
inspirado no barroco romano e que havia sido concluído em 1729, um ano antes deste mesmo retábulo.
Assim, não descuremos a importância do retábulo-mor da Sé pelo modelo que introduz, mas também não
esquecendo o afluxo de influências da talha lisboeta e concludentemente, da Tratadística Europeia, a que
os mestres entalhadores portuenses se sujeitaram. ALVES, 2003: 742;
216
ALVES, 2003: 743;
104
Mendes e João Nunes Abreu.217 Risco de grande criatividade e vigor decorativo, o
retábulo denota erudição e elegância nas formas desenvolvidas, englobando o próprio
revestimento do arco formeiro. Organiza-se tripartido sendo que os tramos são
demarcados por colunas salomónicas onde querubins se intervalam com volutas e
grinaldas. Os remates, em capitéis coríntios, caraterizam-se pelas volutas e folhas de
acanto. Seguem-se pilastras relevadas ornadas com pequenos atlantes, que introduzem a
composição central apresentada ainda por uma belíssima sanefa, cujas cortinas se abrem
pelas mãos de dois anjos. Ao centro do retábulo, um mostruário com Cristo subjugado
depois de açoitado, de frente para o espetador, com a coroa de espinhos, tal como fora
apresentado à multidão por Poncio Pilatos (Jo 19, 2). Na parte inferior do retábulo, um
pequeno sacrário cuja cenografia se repete exibindo um relevo com o tema da Flagelação
de Cristo. A imagem escultórica adquire uma outra dimensão, quando enquadrada na
estrutura retabulística, proporcionando ao espetador uma leitura de conteúdo profundo
que pretende suscitar o arrependimento, a compaixão e a dor no crente, permitindo criar
um momento de empatia com Cristo.218
217
ROCHA, 2011: 385 - 386;
218
ALVES, 1995: 63;
105
FIGURA 57 – Altar do Ecce Homo, 1730, Miguel Francisco da Silva;
106
5.1.2 Altar de S. Bernardo de Claraval
219
MUELA, 1998: 53;
107
FIGURA 59 – Altar de S. Bernardo, Séc. XVIII, (a.d.);
108
Entre as duplas de pilastras, abre-se espaço à imaginária, com nichos que abrigam
pequenas esculturas. Santo Inácio, Bispo de Antioquia é representado à esquerda, vestido
com indumentária papal com a mitra e acompanhado por um leão que se atira aos seus
pés, alusivo ao momento do seu martírio, pois foi atirado aos leões.220
À direita, S. João Evangelista com a águia, seu principal atributo221. Nas laterais
do retábulo, duas telas representativas de duas vivências místicas de S. Bernardo: El
Amplexus, quando Cristo dispensou o abraço a S. Bernardo e o tema da amamentação do
Santo pela Virgem, com o Menino ao colo. Na base do retábulo, dois anjos ladeando e
iluminando o sacrário, também ele relevado com a figura de S. Bernardo.
FIGURA 60 – El Amplexus e Lactatio, Séc. XVIII, (a.d.);
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
220
DUCHET- SUCHAUX; PASTOUREAU, 2009: 237;
221
MUELA, 1998: 234;
109
5.1.3 Altar de S. Bento
222
ROCHA, 2011: 387;
223
ALVES, 2003: 745;
224
ALVES, 2003: 745;
225
MUELA, 1998: 46;
226
MUELA, 1998: 44;
110
FIGURA 62 – Altar de S. Bento, 1743, José da Fonseca e Lima;
111
5.1.4 Retábulo da Nª Srª do Rosário
227
DIAS, 1980: 45;
228
MUELA, 2008: 101;
229
MUELA, 2008: 101;
230
MUELA, 2008: 76;
112
FIGURA 63 – Altar da Nª Sr.ª do Rosário, c. 1680, (a.d.);
113
FIGURA 64 – Altar da Nª Sr.ª do Rosário, pormenor do pano intermédio;
114
FIGURA 65 – Medalhões retratando a Coroação de Espinhos e a Flagelação de Cristo, pormenor
do altar da Nª Sr.ª do Rosário;
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
231
Tema divulgado a partir do século XVI, por influência da Via- Crucis, composta por 14 estações,
relativas ao percurso doloroso de Cristo até ao Calvário. RÉAU, 1996: 483 a 487;
232
ROCHA, 2011: 386;
115
FIGURA 66 –Altar do Senhor dos Passos, 1731, (a.d.);
116
As espirais das colunas e dos arcos de volta concêntrica que encerram o retábulo,
correm em torno do camarim, promovendo uma continuidade estrutural entre o corpo e o
coroamento. No nicho central do retábulo, a imagem devocional de Cristo carregando a
cruz (latina), coroado com espinhos, testemunha a devoção à Paixão de Cristo, assim
como o valor pedagógico que a sua representação transporta para os fiéis. É a
representação de um Cristo ultrajado e humilhado, prestes a ser crucificado. Nos
intercolúnios, quatro medalhões exibem pinturas que não podem ser identificadas pela
acumulação de pó e problemas de luz. No início de cada uma das pilastras laterais, no
arco externo do retábulo, outros medalhões narram seis episódios da Via Crucis em altos
relevos policromados: 1 - Simão de Cirene ajuda Jesus a carregar a cruz; 2 – Cristo cai
pela primeira vez a caminho do Calvário; 3 – Exposição do véu Verónica (Vera-icona -
verdadeira imagem/face de Cristo)233 4 – Cristo cai pela segunda vez; 5 – Cristo cai pela
terceira vez; 6 – Jesus é pregado na cruz;
6 1
5 2
4 3
233
DUCHET- SUCHAUX; PASTOUREAU, 2009: 447;
117
Na base do retábulo, outros dois medalhões com relevos esculpidos: à esquerda,
S. Pedro é representado de barba e cabelo grisalhos, caraterísticas próprias da sua
iconografia. Aparece na presença de um galo, um dos seus atributos mais comuns, alusivo
ao momento em que negou Cristo três vezes antes do canto do animal.234 Traz ainda um
livro aberto e a chave de ouro, também comuns na sua iconografia;235 à direita, Maria
Madalena é representada ajoelhada, com as mãos unidas em oração. Ao seu lado, está
uma pequena mesa coberta de um tecido ricamente colorido sobre a qual repousam os
seus atributos: o vaso de perfumes e um livro aberto.236 Um guarda-joias aparece caído,
espalhando as joias pelo chão como símbolo do desprendimento total dos bens terrenos.237
O coroamento do retábulo é ultimado, ao centro, por um medalhão altamente
relevado com um Calvário, enriquecido por pequenos apontamentos de cor. Há
claramente uma leitura contínua que parte do retábulo do Ecce Homo e termina neste, não
só por se tratar do momento que o sucede238 (Mc 15,20), mas também pela organização e
estrutura do retábulo que se mostram semelhantes na densidade da talha.
FIGURA 68 – Medalhões relevados representando S. Pedro e Maria Madalena;
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
234
MUELA, 2008: 362;
235
MUELA, 2008: 364;
236
RÉAU, 1996: 309;
237
SOUSA, 2015: 123;
238
Após a exibição pública de Jesus, dá-se a condenação e levam-no para fora da cidade para o crucificar.
118
5.2.2 Altar da Nossa Senhora das Dores
239
cuja irmandade terá sido instituída no Mosteiro em 1785 por devoção da religiosa D. Quitéria de Vilhena
Castro e Meneses;
240
RÉAU, 1996: 117;
119
As dores da Virgem recordam a profecia de Simeão, aquando da Apresentação do
Menino no Templo: uma espada trespassará a tua alma (Lc 33,35). Nesta representação,
podemos contemplar uma variante do tema que enfatiza a solidão da Virgem Mãe após a
morte de Cristo, pois a escultura de vulto integra a procissão do Enterro do Senhor, na
Sexta-feira Santa, seguindo o andor de Cristo morto.241
FIGURA 70 – Mostruário com a Nª Sr.ª das Dores;
120
Estruturalmente, o retábulo parece respeitar algumas formas do barroco nacional
nomeadamente na utilização das colunas salomónicas ornadas com parras, uvas, fénixes
e meninos, aqui representados em corpo inteiro e carnados. Porém, denota já uma
gramática decorativa rococó com uma linha mais fluida, conferindo ao retábulo elegância
e requinte.242 No arco exterior, que envolve toda a peça, apresentam-se em relevo as
Arma Christy ou os instrumentos da Paixão de Cristo. A superfície retabular inteiramente
dourada desaparece em parte, para dar lugar a alguma policromia, visível no nicho central
onde está a Virgem. Este, por sua vez, é ladeado por colunas de fuste liso, de
marmoreados fictícios e demarcadas no terço inferior.
O coroamento, menos ornado que o nacional, evidencia os arranques de frontão,
também eles de falsos marmoreados rosa e verdes, com delineados dourados e
interrompido por uma tarja central com rocalha, elemento de origem francesa,
tipicamente rococó.243 Os apliques, mais espaçados e delgados, aplicados com maior
parcimônia, conferem ao pano central um aspeto mais limpo e arquitetónico.
FIGURA 71 – Pormenor do coroamento do Altar da Nª Sr.ª das Dores;
242
ALVES, 2003: 749;
243
ALVES, 2003: 749;
121
FIGURA 72 – Medalhões relevados com as Arma Christy;
122
FIGURA 73 – Altar do Menino Jesus, 2ª metade do Séc. XVIII, (a.d.);
123
5.2.4 Altar da Senhora das Neves
Encostado à zona parietal norte, de frente para o arco de acesso ao coro, encontra-
se um altar, datado da segunda metade de setecentos, dedicado à Senhora das Neves. Um
tema iconográfico raro no contexto da arte portuguesa e um culto popular ainda por
definir em toda a sua magnitude. A sua imagem surgiu antes da colonização castelhana
tendo a sua origem profundamente enraizada na cidade de Palma.244 A disseminação do
seu culto ocorreu na primeira metade do século XVII tendo sido consolidado já na
segunda metade do século. A crescente e fervorosa devoção da população sustentou a
lenda de que a imagem da Virgem das Neves tinha sido encontrada numa gruta, não muito
distante do local onde hoje se encontra o seu santuário.245 As grutas, integradas em
ambientes paisagísticos, por vezes deslumbrantes e dramáticos, favorecem o numinoso
levando à sacralização do território. A carência de água era uma das causas pelas quais o
povo recorria ao seu auxilio, pois, a sua sobrevivência dependia disso. Por essa razão a
Senhora das Neves é invocada contra as temíveis secas e neves.
Relativamente à gramática decorativa vemos, mais uma vez, o douramento
integral do retábulo a ceder lugar a pequenos ornatos de concheados dourados sob um
fundo menos profuso e mais claro, facultado pelas pinturas que imitam superfícies
marmoreadas sobretudo no nicho central, destinado ao abrigo de uma escultura de Nª Srª
das Neves. É representada com o Menino ao colo, apresentando-se ricamente vestida com
indumentária azul decorada com rosas e leves pregueados. A decoração é fortemente
influenciada por elementos arquitetónicos, mais do que escultóricos, revelando
tendências rococós. Há um abandono da decoração antropomorfa das colunas que são
agora de fuste liso, com anel a demarcar o terço inferior da mesma. No coroamento, os
arranques do frontão formam pedestais para dois anjos que ladeiam a tarja central, por
sua vez decorada com rocalhas que resultam da fusão entre volutas e conchas. Ao centro
da tarja, um pequeno escudo pintado com um coração trespassado, o Sagrado Coração de
Maria e, a encimar este, uma enorme concha estriada que encerra todo o retábulo.
244
CAPOTE, 2010: 90;
245
CAPOTE, 2010: 92;
124
FIGURA 74 – Altar da Nossa Senhora das Neves, 2ª metade do séc. XVIII (a.d.);
125
FIGURA 75 – Nossa Senhora das Neves, pormenor do nicho central do altar;
126
De facto, de acordo com os preceitos Tridentinos, as igrejas souberam impulsionar
o aparecimento de devoções especificas, colocando nos seus altares imagens ou
verdadeiros esquemas iconográficos que, através dos efeitos sensoriais e do atrativo
brilho da folha de ouro, eram eficazes na promoção dos ideais de fé católica.246 Sendo
estas galerias locais de meditação individual das monjas, respondiam certamente ao
desejo de algumas de implementar estes cultos.
Junto às tradicionais grades que dividem o coro da nave da igreja, foram erguidos
dois altares, um dos quais dedicado à Nossa Senhora da Piedade e, de frente para este,
um outro consagrado à Coroação de Nossa Senhora.
246
ALVES, 1995: 63;
247
LORENTE, 2002: 214 e 215;
248
LORENTE, 2002: 214 e 215;
249
MUELA, 1998: 103;
250
RÉAU, 1996: 113;
127
coberto por um pano branco, coroado de espinhos e com as chagas abertas, ligeiramente
inclinado para o observador. Uma imagem de sofrimento que se impõe no pensamento de
todo o cristão como figuração do sacrifício do Redentor e a esperança da sua própria
salvação. Maria, de semblante sereno e atemporal, expressa conformidade e resignação,
demonstrando a sua santidade apesar da dor da perda. Em contrapartida, a policromia e o
douramento das suas vestes são reveladores do seu sofrimento interior. Recordemos as
Virgens do século XII, vestidas de mantos escuros, azuis, negros e castanhos, trazendo à
memória a dor de uma mãe que perde um filho. Embora seja utilizada uma cor escura, a
sua combinação com o dourado foi uma constante nas representações da Virgem.
Em segundo plano, um relevo com ligação direta ao grupo escultórico que
denuncia o momento que lhe precede: o Descimento da Cruz. José de Arimateia e
Nicodemos são representados respetivamente à direita e esquerda da cruz de Cristo251,
firmando-se cada um na sua escada, ambas dispostas de forma simétrica sobre os braços
da cruz. Cada um segura o seu atributo, que permitira a retirada do corpo de Cristo: José
um martelo e Nicodemos um alicate, com o qual despregou os pés de Jesus.252
O conjunto é demarcado lateralmente por duas colunas, assentes sobre plintos de
ornatos vegetalistas e interrompidas por nichos, destinados à estatuária, e encimados por
uma concha em jeito de remate. À direita, uma figura feminina, de habito religioso, com
uma túnica verde cingida à cintura. Segura um livro aberto enquanto estende a mão direita
em rogo. À esquerda, uma outra entidade feminina, ricamente vestida. A ausência de
atributos dificulta estas duas identificações, porém, por estarem num espaço
exclusivamente dedicado às religiosas, no qual se sente a valorização desse universo
feminino, e ainda relacionando estas imagens com outras do mesmo espaço, levantamos
a hipótese de se tratarem das irmãs dos fundadores da Ordem Beneditina e Cisterciense:
Santa Escolástica e Santa Umbelina, respetivamente. No remate, um frontão curvo
interrompido sustenta a cobertura em dossel, teatralmente decorada com sanefa e
cortinados que se abrem apresentando-nos todo o conjunto escultórico e de relevo. Nos
acrotérios, quatro anjos estendidos em direção ao brasão com três espadas ao centro.
Ainda na lateral esquerda deste altar, um pequeno nicho abre-se para o cadeiral, expondo
uma escultura representativa de S. Bernardo, figurado como jovem imberbe, de tonsura
monacal e hábito da Ordem. Firma contra o seu peito, um livro, alusivo à regra.253
251
RÉAU, 1996: 534;
252
RÉAU, 1996: 534;
253
MUELA, 2008: 53;
128
FIGURA 76 – Altar da Pietá, 1732, (a.d.);
129
FIGURA 77 – Altar da Pietá, 1732, (a.d.);
130
5.3.2 A Coroação da Virgem
254
DIAS, 2000: 28 - 29;
255
RÉAU, 2000: 99;
256
SOUSA, 2016:359;
257
RÉAU, 1998: 644;
131
pomba branca, envolta num resplendor. Destaque-se a solenidade do momento
representado, que parece ainda estar a decorrer e que todos aguardam e assistem, olhando
para baixo.
Todo o relevo é demarcado por duas colunas, assentes em plintos de motivos
vegetalistas e interrompidas por dois nichos destinados ao abrigo de duas esculturas em
madeira policromada e dourada. Uma delas corresponde a Santa Catarina de Alexandria,
representada com a roda dentada símbolo de um dos seus martírios.258 A coroa representa
a sua castidade e o livro a sabedoria com que converteu ao cristianismo os cinquenta
oradores sábios, chamados pelo imperador para a refutar e abalar a sua fé.259 A mártir é
representada cravando a espada na cabeça de Maxêncio, que se encontra aos seus pés,
significando assim, o triunfo dialético sobre o paganismo, figurado na personagem deste
imperador.260 No nicho à direita, uma figura masculina, não identificável pela ausência
de atributos. Atendendo às caraterísticas de jovem adulto, de barba e cabelo vasto261,
indumentária curta e botas, e o próprio enquadramento temático, considero tratar-se de S.
José. O altar é rematado por um baixo frontão curvo, interrompido, com acabamento em
sanefa e cortinados que se abrem teatralmente, culminando com um brasão da Ordem,
com as cinco chagas. Os acrotérios, destinados à função de pedestal, sustêm duas figuras
celestiais que, dada a colocação dos seus braços, certamente erguiam instrumentos
musicais. Na lateral esquerda deste altar, de frente para o magnífico cadeiral, uma
escultura representando S. Bento, de hábito negro beneditino, tonsura monacal e o livro
da sua regra.262
258
MUELA, 1998: 73 - 74;
259
VORÁGINE, 1996: 768;
260
VORÁGINE, 1996: 768;
261
MUELA, 2008: 230;
262
MUELA, 1998: 46;
132
FIGURA 78 – Altar da Coroação da Virgem, séc. XVIII, (a.d.);
133
FIGURA 79 – Coroação da Virgem, pormenor do nicho central;
134
FIGURA 80 – S. José e S. Catarina de Alexandria, pormenor dos nichos do altar;
263
ALVES, 2001: 57;
264
Mosteiros Cistercienses Femininos em Portugal, (s.d.): p.3;
265
SOUSA, 2015: 114;
135
evidenciam a fluidez de toda a composição que se eleva por meio dos meninos e das
grinaldas que se envolvem com outros, mais altos, aos quais os quartelões servem de
peanhas. Os espaldares, repartidos por pilastras, acionam espaços destinados ao abrigo de
30 pinturas narrativas de autoria desconhecida. Os painéis, acusam data posterior aos
espaldares, talvez do terceiro quartel de setecentos266, como a indumentária de algumas
personagens indica.267 Distribuem-se entre a temática Mariana, Cristológica, mas também
a hagiografia dos Santos e Santas assim como da iconografia da Rainha D. Mafalda, num
espaço que intentava impingir direta e objetivamente exemplos de virtude pelo que
deverão ser entendidos na sua componente pedagógica.268
Sagrado Coração de Jesus – Sob fundo azul, um coração, envolto por uma coroa de
espinhos que o fere pelos pequenos veios de sangue de vermelho mais vivo. O coração
emana uma chama, símbolo do amor que inflama, o amor de Cristo pela humanidade e é
encimado por uma cruz latina. No fundo azul esfumado, quatro anjos brotam de nuvens
situadas nos limites da composição.
266
SOUSA, 2015: 116;
267
ALVES, 1992: 380;
268
ROCHA, 2010: 352;
136
FIGURA 81 – Sagrado Coração de Jesus, século XVIII, (a.d);
137
FIGURA 82 – Sagrado Coração de Maria, século XVIII, (a.d.);
269
RÉAU, 1996: 40;
138
identificar Judas, à direita, de rosto voltado para o exterior do cenário e indumentária de
um amarelo encardido, escondendo atrás das costas a bolsa das moedas.270
270
SOUSA, 2015: 119;
139
a sua vez. Vestem todos túnica e capa em tons de vermelho e cinza à exceção de Judas, à
direita do observador, que veste uma túnica amarela. O tema anuncia também a traição
de Judas, evidenciado no diálogo de Cristo: Também vós estais limpos, mas não todos.
(Jo 13, 10).
140
FIGURA 85 – S. Bernardo e S. Gerardo, século XVIII, (a.d.);
271
RIBADENEIRA, 2006: 2;
272
FASHION HISTORY – O Robe à la Française;
141
FIGURA 86 – Santa Umbelina e S. Bernardo, século XVIII, (a.d.);
273
VORÁGINE, 1996: 567;
274
VORÁGINE, 1996: 567;
142
serviçais e parteira participam, uma com Maria no colo e outra verifica a temperatura da
água do banho.275 Num plano recuado, duas cenas são separadas por uma coluna ao centro
da composição: à esquerda Santa Ana, deitada na cama, auxiliada por uma serva que lhe
dá alimento e, à direita, uma outra aquecer os panos, à lareira.
275
SOUSA, 2015: 118;
276
VORÁGINE, 1996: 53;
143
diagonal orientadora do observador. S. José, recuado relativamente a Maria, é
representado aureolado e segura o seu cajado. A adoração ao Menino é feita também pelos
pastores277 que, ajoelhados ou de pé veneram o Menino. Também a vaca e o burro
participam do cenário, relembrando-nos a pobreza do logradouro no qual nasceu o
Menino, pois chegados a Belém, já as hospedarias estavam ocupadas.278
277
VORÁGINE, 1996: 55;
278
VORÁGINE, 1996: 53;
279
RÉAU, 2000: 99;
144
a narrativa, um anjo sobre fundo dourado surge na nuvem, segurando uma faixa que diz:
Glória in excelsis Deo, e iluminando a sagrada família com raios de luz.
S. José com o Menino – José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois
o que ela concebeu é obra do Espírito Santo (...) (Mt 2, 20). Carpinteiro, da real casa de
David, S. José, esposo de Maria, é representado com o Menino ao colo, de cabelo e barba
fartos, vestindo uma humilde túnica verde e manto castanho.
145
Contrarreforma o dignificou.280 Apoiada sobre o ombro direito, uma vara de amendoeira
de onde despontaram açucenas, símbolo da sua eleição como esposo de Maria281, mas
também da dignidade e pureza da sua alma.
280
MUELA, 1998: 58;
281
RÉAU, 1996: 170;
282
VORÁGINE, 1996: 405;
283
VORÁGINE, 1996: 405;
284
VORÁGINE, 1996: 407;
146
A Entrada da Rainha Mafalda no Mosteiro – Filha de D. Sancho I, D. Mafalda terá
nascido em Coimbra em Maio de 1195. Casou com Henrique I de Castela em 1215, sem
saber, pois, que o casamento havia de ser anulado no ano seguinte, por dispensa do grau
de parentesco entre ambos. Não tendo sido consumado o casamento, envergou pela vida
religiosa, dedicando-se a Deus. À esquerda, na pintura, a rainha D. Mafalda está
acompanhada das suas aias, coroada e trajada com um longo e enobrecido vestido azul
sobre panier que lhe confere volume. À direita, a comunidade de religiosas, sobre um
degrau superior entapetado, veste o hábito negro beneditino, destacando-se a abadessa
que segura o báculo. É de salientar a distinção que o pintor faz da Rainha Mafalda, pois
esta é representada de maiores dimensões que as restantes figuras.
147
FIGURA 92 – A vinda de D. Mafalda para Arouca,
século XVIII, (s.d.);
285
Foram construídos três memoriais: um em Paço de Sousa, hoje reconhecido como de D. Sousino
Álvares, outro em Paiva e ainda um terceiro no lugar de Santo António designado Arco da Rainha Santa,
um arco românico do século XII, PEREIRA, 1959: 40;
148
FIGURA 93 – Nossa Senhora da Conceição, século
XVIII, (a.d.);
286
RÉAU, 1999: 81;
287
LIMA, 1930: 18;
288
LIMA, 1930: 18;
149
dos seus pés e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça. Estava grávida, com dores de
parto, e gritava com ânsias de dar à luz. (Ap 12, 1-2)
Nossa Senhora do Pilar – Padroeira de Espanha, Nª Srª do Pilar teve o seu culto
consolidado, em Portugal, na década de quarenta de seiscentos, tendo sido reforçado após
a Guerra da Restauração.289 Representada de pé, sobre um pilar de mármore com remate
em capitel jónico, a Virgem apresenta-se com o Menino ao colo, coroada e vestindo uma
túnica lilás e um manto azul de debruados dourados. O pilar, símbolo da solidez da igreja,
faz a ligação entre o céu e a terra, através da condição da Virgem como intercessora.290
No céu, pequenas nuvens pairam sobre fundo dourado, das quais brotam cabeças de anjos.
289
SOUSA, 2015: 117;
290
SOUSA, 2015: 117;
150
FIGURA 95 – Rainha Mafalda lança o hábito às
religiosas, século XVIII, (a.d.);
291
COELHO, 1988: 59;
292
COELHO, 1988: 56;
293
COELHO, 1988: 56;
151
Morte da Rainha Santa – Desaparecida da vida terrena a 1 de Maio de 1256,294 em
Tuias, não em Rio Tinto como refere a lenda, D. Mafalda pediu, ainda em vida, que o seu
corpo fosse depositado no mosteiro de Arouca. In primis mando sepeliri corpus meum in
monasterio de Arouca.295 O seu testamento demonstra a afeição que reservara à
comunidade religiosa de Arouca, quer pelo legado material que deixou, mas
especialmente por ter exigido que o seu corpo, findo, ali permanecesse. Assim a
representa o artista, de hábito cisterciense, deitada no seu leito de morte e rodeada pela
comunidade de monjas que toda a vida amparou. Uma delas segura um livro de orações,
talvez rezando pela sua virtuosa alma.
294
Vários autores apontam para esta datação; COELHO, 1988: 38, ROCHA, 2010: 113;
295
Já publicado por alguns autores e por outros tantos citado, remeto para a transcrição mais recente,
ROCHA, 2010: 113;
152
FIGURA 97 – Santo António, século XVIII, (a.d.);
296
ROSÁRIO, FLOS SANCTORUM, p. 527;
297
HALLAM, 1998: 101;
298
ROSÁRIO, 1681: 527;
153
FIGURA 98 – São Marçal, século XVIII, (a.d.);
299
RÉAU, 2001: 316;
300
RÉAU, 2001: 317;
301
RÉAU, 2001: 321;
302
RÉAU, 2001: 318;
303
RÉAU, 2001: 321;
154
vida e outra depois de morta.304 Assim, a representação do milagre de São Marçal, neste
contexto, vem relembrar o poder divino e a santidade de D. Mafalda.
304
SOUSA, 2015: 123;
305
MUELA, 2008: 237;
306
MUELA, 2008: 237;
307
SOUSA, 2015: 118;
308
BARASCH, 1999: 111;
155
FIGURA 100 – Epifania, século XVIII, (a.d.);
309
MUELA, 1998: 105;
310
SOUSA, 2015: 118;
156
oferecer mirra ao Menino. Em último plano, quatro personagens, os pastores que
visitaram o Menino.311
311
SOUSA, 2015: 108;
157
S. Roberto de Molesmes – Reconhecido como um dos abades fundadores da Ordem de
Cister, S. Roberto destacou-se sobretudo como contestador da vida litúrgica faustosa e
desafogada, procurando o recolhimento na natureza, na austeridade e na observância à
regra de S. Bento de Núrsia.312 A renúncia aos bens materiais foram caminho para a
perfeição da vida monástica. É aqui representado na sua qualidade de abade fundador da
Ordem pela qual se regeu este mosteiro, de hábito cisterciense, encontrando-se de joelhos
perante a Virgem Maria. Sentada numa nuvem, com o Menino ao colo, galardoa o Santo
com uma fita escura. No chão, uma vassoura, presumivelmente símbolo da renovação
espiritual de Cister. 313
312
Site Caminho Cisterciense, Disponível em: https://caminhocisterciense.com/2018/01/26/os-fundadores-
de-cister-i-s-roberto-de-molesmes/ Consultado a: 20 de Novembro.
313
SOUSA, 2015: 120;
158
FIGURA 103 – Santa Maria Egipcíaca, século
XVIII, (a.d.);
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020 ao seu encontro sobre as águas do rio.
Ao ver tal milagre, prostrou-se
315
humildemente aos seus pés. Enquadrados pela natureza, Santa Maria Egipcíaca
recebeu o corpo de Cristo pela mão do abade, humildemente vestido. Aureolada, a Santa
é ladeada por dois anjos que seguram uma toalha branca, em sinal de respeito pelo
momento da Eucaristia. Ao cimo da composição, cabeças de anjos aladas, observam o
momento.
314
VORÁGINE, 1996: 238;
315
VORÁGINE, 1996: 239;
159
A Adúltera – O momento representado acontece depois da Jesus ter estado no Monte
das Oliveiras. Voltou ao templo e sentou-se a ensinar. Os doutores da Lei e os fariseus
trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério, colocaram-na no meio deles e
disseram: Moisés, na Lei, havia dito para matar à pedrada tais mulheres e Tu, que dizes?
(Jo 8, 5) Jesus, inclinou-se, e pôs-se a escrever com o dedo na terra, tal como é
representado nesta pintura. Ligeiramente aureolado com uma luzência esfumada, veste
túnica humilde acastanhada e um manto vermelho. Escreve na terra com um dedo, na
presença dos doutores e fariseus. À sua frente, a mulher adúltera, de tez suave e mão ao
peito. Ao ver que insistiam em interroga-lo, Jesus ergueu-se e disse-lhes: Quem de vós
estiver sem pecado seja o primeiro a lançar-lhe uma pedra! (Jo 8, 6)
160
Conversão de S. Paulo – O episódio da conversão de S. Paulo é aqui resumidamente
representado, congelando o momento em que fora surpreendido por uma luz do céu.316 S.
Paulo, era perseguidor dos primeiros Cristãos e dirigia-se para Damasco quando,
inesperadamente, o Senhor Ressuscitado lhe apareceu e se revelou. O artista representa o
instante em que S. Paulo cai do seu cavalo. Encontra-se representado de armadura e
escudo na companhia de três outros soldados igualmente apetrechados. Destaque-se o
pormenor da cela e arreios do cavalo, ricamente decorados, ao gosto do século XVIII. Os
soldados, pelas suas contorções, parecem surpreender-se e olham para o céu onde Jesus
é representado brotando de uma nuvem com o seu manto vermelho. Vencido pela graça,
S. Paulo entregou-se incondicionalmente a Cristo, que o escolhe para Seu apóstolo e o
encarrega de espalhar o evangelho.317
316
ROSÁRIO, 1681: 211;
317
ROSÁRIO, 1681: 211;
161
Conversão de Maria Madalena – Contrapõe-se uma representação da conversão de
Maria Madalena, figurada numa jovem de cabelos claros, soltos e descobertos, símbolos
da sua devassidão.318 Enquadrada arquitetonicamente, dando-nos a ideia de um interior,
Madalena aparece ricamente vestida, de frente para um espelho, característico do século
XVIII, símbolo da vaidade e da luxúria (pecados mortais). Ao mesmo tempo, é revelador
de uma realidade aparente, chamando a atenção para a sua perenidade. O espelho está
sobre a mesa, juntamente com o vaso de perfumes, seu atributo principal319. O guarda-
joias caído é revelador da sua essência, mas, também, do momento que se retrata: a sua
conversão, pois Madalena parece desprezar a sua riqueza material, olhando para o céu e
deixando as joias no chão.320 A ocasião de se converter esta Santa (como refere Santo
António) pode-se crer piedosamente que foi ouvir pregar o Salvador e Redentor (...)321
318
MUELA, 2008: 312;
319
MUELA, 2008: 312;
320
SOUSA, 2015: 123;
321
ROSÁRIO, 1681: 582;
162
À direita da entrada poente de acesso ao coro, S. Bento, imberbe e subtilmente
nimbado, de hábito beneditino com capuz que lhe cobre a tonsura. Segura o báculo na
mão esquerda e faz sinal de bênção com a mão direita. Aos seus pés, a mitra. É
representado na sua condição de Patriarca entre os Cistercienses, fazendo-se presente nos
cenóbios da Ordem.
Do outro lado, que lhe corresponde em composição idêntica, S. Bernardo,
tonsurado e nimbado322, num fundo paisagístico. Veste o hábito branco de Cister,
segurando o báculo na mão direita e fazendo sinal de bênção com a esquerda. Ao seu lado
a mitra, igualmente lavrada, símbolo das repetidas vezes que haverá recusado a dignidade
episcopal.323
S. Francisco de Assis, à direita da entrada cerimonial, representado na qualidade
de Santo fundador da Ordem dos Frades Menores, instituição protegida pelos reis da
primeira dinastia, D. Afonso II e D. Afonso III, assim como pelas infantas Teresa e
Sancha.324 Oriundo de nobre estirpe, Francisco de Assis teve o seu momento de conversão
renunciando ao mundo.325 É representado de hábito castanho, cor que atesta a sua
humildade, envolto por um cordão de três nós alusivos aos preceitos básicos da Regra:
pobreza, castidade e obediência.326 Ajoelhado e de braços abertos, perante a luz que
provem do céu e o ilumina, é representado no momento da Estigmatização327, na presença
de Cristo crucificado que se afigura no céu cingido de asas seráficas.
À esquerda da mesma entrada, uma representação de evidente afinidade
compositiva representando Santo Amaro. Este é representado de pé, ao centro da
composição, de hábito preto com capuz. Na mão esquerda, segura o báculo enquanto faz
sinal de bênção com a mão direita. A mitra encontra-se no chão, à sua direita, com
bordados a ouro que cercam o rubi ao centro. A sua representação reforça o simbolismo
fundador e o respeito pelos valores da vida monástica.328
322
SOUSA, 2015: 120;
323
SOUSA, 2015: 120;
324
SOUSA, 2015: 121;
325
MUELA, 2008: 153;
326
MUELA, 2008: 153;
327
Parece representar o momento em que recebeu os cinco estigmas de Cristo pelo rasgo que leva no seu
hábito, MUELA, 2008: 153;
328
SOUSA, 2015: 120;
163
FIGURA 107 – S. Bento e S. Francisco de Assis, século XVIII, (a.d.);
164
5.5 O Órgão
FIGURA 109 – Consola do Órgão, vista da tribuna, 1743, Manuel Benito Herrera;
329
ROCHA, 2009: 23;
330
ROCHA, 2009: 23;
165
Foi executado por Manuel Benito Gomes de Herrera, natural de Valhadolide e
residente em Lisboa, cuja assinatura se encontra no someiro: D. Emmanuel Benedictus a
Gomez ex-hispanus et cônsul Hispaniarum Olisipone fecit anno Domini 1739.
FIGURA 110 – Órgão Ibérico, vista da tribuna, 1743, Manuel Benito Herrera;
166
O seu douramento, à posteriori, ficou a dever-se ao mestre Manuel Cerqueira
Mendes, estando concluído apenas em 1743, como assegura a data exposta na cartela, na
bacia do órgão.331
Quanto à sua sonoridade, o órgão dispõe de 1352 vozes, distribuídas por 24
registos. A consola, em janela fixa, acoplada ao móvel do órgão, é ladeada por uma
pedaleira, aqui organizada em botões corridos de um e outro lado do teclado, (comum
nos órgãos ibéricos de maior dimensão).332 À sua grandiosidade, junta-se a exuberância
do pormenor da caixa, dentro do gosto artístico mais vanguardista do seu tempo.333
Enobrecido de motivos vegetalistas e concheados, pequenas cariátides e figuras celestiais,
conta ainda com dois bustos de atlantes a ladear a consola, que parecem suportar o peso
dos tubos. A cor, autêntica na gramática decorativa da caixa do órgão, abraça o exotismo
oriental, assumindo cromatismos vivos de vermelho e azul-baço, destacados como fundos
para a pintura chinoiserie, onde os motivos fitomórficos e zoomórficos334, ainda que
estilizados, se destacam pelos contornos negros e acabamentos dourados que lhe
conferem um aspeto relevado.335 Entre Insetos, borboletas, cães, pássaros e árvores,
surgem silhuetas humanas, erguendo instrumentos de caça ou elegantes sombreros e
336
enquadradas em arquiteturas orientais como os pagodes. Manifestam, com delicado
traço, a inspiração que chegava do Oriente, tão bem reinterpretada na conceção artística
nacional.337
Ao centro da caixa, uma pintura sobre madeira representando Santa Cecília,
padroeira dos músicos, a tocar órgão, o seu principal atributo,338 na companhia de uma
mulher (foleira) que aciona os foles do órgão pneumático. A Santa, figurada numa
formosa jovem aureolada, ricamente vestida e adornada com joias, apresenta-se num
interior arquitetónico, com uma janela que se abre a um céu azul, celestial. Na bacia do
órgão, destaque-se a pintura de fingidos que procura reproduzir outros suportes. Entre as
superfícies marmoreadas e as estruturas arquitetónicas são representando plintos,
erguendo elegantes albarradas. Dois bustos, de feição clássica, pintados escultoricamente
331
ROCHA, 2009: 35;
332
RODRIGUES, 2017: 62;
333
ROCHA, 2009: 35;
334
PÁSSARO, 2015: 57;
335
PÁSSARO, 2015: 62;
336
PÁSSARO, 2015: 57;
337
PÁSSARO, 2015: 53 - 54;
338
MUELA, 2008: 81;
167
e emoldurados com elegantes caixilhos dourados, ladeiam a cartela com a data de
instalação do órgão.
A sua fachada com coroamento em forma de lira invertida, ergue-se à altura da
cobertura, fazendo corresponder os seus elegantes remates à própria curvatura da
abóbada, ostentando os escudos de Portugal, à esquerda e de Cister-Alcobaça, à direita,
além de pequenas figuras alegóricas da Fama.
168
FIGURA 112 – Pintura Chinoiserie na Consola do Órgão, tema da caça;
169
FIGURA 115 – Santa Cecília a tocar o órgão, Pintura na Consola do Órgão;
170
6. CAPÍTULO VI – As Esculturas de Jacinto Vieira
Sendo clara a separação entre a nave da igreja e o coro, e pelo facto das esculturas
se encontrarem em nichos que lhe foram originalmente destinados, atentei que separá-las
por espaços, lhes tiraria a sua leitura conjunta, considerando uma análise contínua entre
a nave da igreja e o coro, o mais adequado.
6.1 Na Igreja
339
ROCHA, 2011: 331;
340
SANTOS, 1950: 64;
341
ALVES, 2003: 753;
171
Ordem de Cister, o conjunto escultórico pede uma leitura íntegra, reforçando as
caraterísticas comuns entre si. Estamos perante um programa iconográfico pensado sobre
um conjunto de homens que se destacaram como lideres da igreja e de comunidades,
doutrinadores e confessores, em honra da Ordem de Cister: S. Roberto de Molesme, na
sua condição de fundador da Ordem, Santo Albérico abade, seu sucessor na abadia de
Molesme, S. Estevão, igualmente importante na fundação, tendo sido sob o seu governo
que a Ordem alcançou maior prestigio.342 S. Thomas de Cantuária, arcebispo reconhecido
como Thomás Becket343, S. Bernardo e S. Gerardo, irmãos que prescindiram a
mundanidade, refletindo o sentido de abnegação e sacrifício necessário ao alcance da
santidade.
FIGURA 116 – São Roberto e a Virgem, esculturas na igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
342
RESENDE, 2015: 108;
343
RESENDE, 2015: 108;
172
FIGURA 117 – Arcanjo Gabriel e São Gerardo, esculturas na nave da igreja, 1723-1725,
Jacinto Vieira;
FIGURA 118 – São Albérico, e São Thomas de Cantuária, esculturas da nave da Igreja, 1723-
1725, Jacinto Vieira;
173
Talhadas diretamente nos blocos de pedra, as esculturas, de tamanho considerável,
manifestam quietude, serenidade e recolhimento que, embora alheio à particular agitação
da cenografia barroca, exprime a atmosfera de um Mosteiro Cisterciense. Mestre no lavor
da madeira, Jacinto Vieira adequou as suas habilidades à pedra, transpondo para o
calcário um virtuosismo imenso344, percetível em cada uma das esculturas, conferindo-
lhes uma responsabilidade catequética. Em poses hirtas, rostos particulares e serenos, que
exprimem a seriedade da sua missão espiritual, os Santos Abades gesticulam
virtuosamente, ostentando os atributos representativos dos seus poderes espirituais na
terra, entre eles os báculos, as mitras e as tiaras pontífices.
A leitura era clara para os crentes que afluíam à igreja, mas também para as que
professavam, assistindo às cerimónias nas tribunas que intercalam os nichos. Pois se as
esculturas dos homens de Cister eram motivação e alento à religiosidade das monjas, elas
eram o exemplo vivo para os fiéis, da comunhão com o eterno.345
FIGURA 119 – São Guilherme e São Bernardo, esculturas da nave da Igreja, 1723-1725,
Jacinto Vieira;
344
SALDANHA, 2014: 48;
345
ROCHA, 2010: 346;
174
FIGURA 120 – São Estevão e São Malachias, esculturas da nave da Igreja, 1723-1725,
Jacinto Vieira;
175
6.2 No Coro
O coro segue a mesma organização formal dos alçados laterais da nave da igreja,
alternando as tribunas com nichos, aqui destinados à exposição de um universo de
representações femininas,346 que respeitam a seguinte disposição:
346
ROCHA, 2010: 349;
347
PIMENTEL, VIEIRA, s.v., in PEREIRA e PEREIRA, 1989: 524 - 525;
348
II Livro dos Diálogos de S. Gregório Magno, Cap. XXXIV;
349
II Livro dos Diálogos de S. Gregório Magno, Cap. XXXIV;
176
ofuscada pelo véu e cogula que enaltecem a sua condição de religiosa deste mosteiro.
Segurou, outrora, a coroa e o cetro, símbolos da realeza, entretanto desaparecidos350,
erguendo apenas um livro na mão esquerda. A delicadeza dos gestos e semblantes destas
esculturas são reveladores da permanência de uma corrente artística genuína, arraigada
na produção bracarense. Tal como escreveu Robert C. Smith, As esculturas parecem tão
enclausuradas como as monjas, tão intocáveis pelo movimento do mundo exterior.351
FIGURA 121 – Santa Leogarda, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
350
ROCHA, 2010: 350;
351
SMITH, 1968: 163, (tradução de Margarida Gonçalves);
177
FIGURA 122 – Santa Aldegunda, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
178
FIGURA 123 – Santa Hedwiga, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
179
FIGURA 124 – Santa Gertrudes, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
180
FIGURA 125 – Santa Escolástica, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
Fonte: Fotografia de Alexandra Santos, 2020
181
FIGURA 126 – Santa Juliana, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
182
FIGURA 127 – Santa Umbelina, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
183
FIGURA 128 – Santa França, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
Fonte: Fotografia de Margarida Gonçalves, 2020
184
FIGURA 129 – Santa Mafalda, escultura no coro da Igreja, 1723-1725, Jacinto Vieira;
185
Considerações Finais
186
esculturas, quer na pintura das sacristias e dos espaldares do coro. Também as esculturas
nas tribunas, imortalizando santos abades e monjas, legitimados pelos serviços prestados
à fé católica, eram de leitura direta para os crentes e para as religiosas deste mosteiro que
viam neles exemplos de virtude. Note-se ainda que, da totalidade dos painéis narrativos,
há preferência pelos temas marianos, por vezes associados aos fundadores.
O coro, presença obrigatória por parte das religiosas, era um local privilegiado
dentro desta instituição, justificando, assim, o primor e a sublimidade dos objetos
artísticos que o integram. Os vinte e seis painéis pictóricos, expostos nos espaldares do
cadeiral, executavam, sem réstia de dúvida, um papel pedagógico e moralizador.
Despontavam nas religiosas, que ali passavam largas horas diárias, o ânimo, o
encorajamento e a perseverança necessários para nutrir a sua fé. Habituados ao elemento
clerical e santoral masculino no rol da santidade, assistimos, neste mosteiro, a uma
valorização do género feminino, através das constantes representações de santas mártires,
cuja morte resignada em nome da fé cristã, culmina uma vida coroada de virtudes.
Este relatório trás não só uma leitura dos objetos no espaço sacro, como propõe
também uma reflexão sobre a presença feminina num espaço que, sendo frequentado por
religiosas, tencionava inculcar direta e objetivamente modelos de vivência e conduta.
Relembremos as pinturas de Diogo Teixeira e a inclusão atípica que o artista faz das
Santas mulheres em algumas iconografias como a Ascensão de Cristo e o Pentecostes,
que evidenciam a presença feminina neste mosteiro, não só pela condição de santidade
destas mulheres, que seriam modelo de conduta para as monjas, mas sobretudo pelo
destaque que lhes é dado, sendo colocadas ao centro das composições refletindo,
claramente, o desejo das ilustres encomendantes. Não esqueçamos a virtuosa D. Mafalda,
cuja imagem é uma constante e que, pela perpetuada memória, se tornou no rosto desta
vila e na insígnia desta instituição (RIRSMA). Se fizermos a leitura conjunta destes
espaços, unindo as pinturas e esculturas à protuberância dada às imagens de D. Mafalda,
a mensagem é clara: uma Rainha que renuncia ao mundo e se recolhe num mosteiro,
permanecerá eternamente na memória daquelas que, pertencendo à nobreza, também
cederam a sua vida temporal em prol de construírem a sua eternidade.
187
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