Você está na página 1de 259

Lições aos Meus Alunos – Vol.

2 2

LIÇÕES AOS MEUS ALUNOS (Vol. 2)


[Clique na palavra ÍNDICE]

HOMILÉTICA E TEOLOGIA PASTORAL

C. H. SPURGEON

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS

Título original: Lectures To My Students


Tradução do original por: Odayr Olivetti
Primeira Edição em Português
1980

Contracapa:

Para muitos ministros do evangelho, mesmo ainda hoje, Charles


Haddon Spurgeon foi um dos maiores pregadores de todos os tempos.
Por que esta avaliação? Se quisermos compreender melhor seu grande
sucesso, então nada melhor que ler esta segunda parte de Lições aos
Meus Alunos – preleções dadas nas sextas-feiras à tarde àqueles que
estudavam em sua Escola Bíblicas (The Pastors' College).
O presente volume contém treze capítulos da obra Lectures To My
Students, talvez a mais conhecida de todas as publicações do "príncipe
dos pregadores". Que Deus abençoe estas "Lições" como o fez quando
originalmente elas foram proferidas é a oração dos que as publicam na
língua portuguesa.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 3

ÍNDICE

1. A Auto-vigilância do Ministro..............................................3

2. O Chamado para o Ministério...........................................25

3. Oração Particular do Pregador.........................................53

4. Oração em Público...........................................................69

5. O Conteúdo do Sermão....................................................93

6. A Escolha do Texto.........................................................109

7. A Arte de Espiritualizar...................................................132

8. A Voz..............................................................................150

9. Atenção...........................................................................175

10. A Capacidade de Falar de Improviso.............................194

11. As Crises de Desânimo do Ministro...............................214

12. A Conversação Comum do Ministro...............................231

13. Aos Obreiros Mal Equipados..........................................244


Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 4

A AUTO-VIGILÂNCIA DO MINISTRO

"Tem cuidado de ti mesmo e da doutrina" 1 Tim. 4:16.

Todo trabalhador sabe que deve manter as suas ferramentas em bom


estado, pois, "se estiver embotado o ferro, e não se afiar o corte, então se
devem pôr mais forças". Se a enxó do operário perder o corte, ele sabe
que terá que despender mais energia, ou então o seu trabalho será mal
feito. Miguel Ângelo, o eleito das betas artes, entendia tão bem a
importância dos seus instrumentos de trabalho, que sempre fazia com as
próprias mãos os seus pincéis, e com isto nos dá uma ilustração do Deus
da graça que, com especial cuidado, modela pessoalmente todos os
verdadeiros ministros da Palavra.
É certo que o Senhor, como Quintín Matsys na história do bom
artífice de coberturas de Antuérpia, pode trabalhar com a mais defeituosa
espécie de instrumentalidade, como acontece quando ocasionalmente faz
com que uma pregação bastante estulta seja útil para a conversão de
pecadores. Ele pode agir até mesmo sem intermediários, como quando
salva pessoas sem usar nenhum pregador, aplicando a Palavra
diretamente por Seu Espírito Santo. Mas não podemos considerar os atos
absolutamente soberanos de Deus como uma regra para a nossa ação. No
caráter absoluto do Seu Ser, Deus pode agir como bem lhe apraz, mas
nós temas que agir conforme as instruções mais claras que Ele nos dá em
Suas dispensações. É um fato bastante evidente este, que geralmente o
Senhor adapta os meios aos fins, o que nos dá a lição de que temos mais
probabilidade de realizar o máximo quando estamos nas melhores
condições espirituais. Ou, em outras palavras, geralmente fazemos
melhor a obra do Senhor quando os nossos dons e graças estão em boa
ordem, e o trabalho sai pior quando aqueles dons e graças estão
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 5
desordenados. Esta é uma verdade prática para nossa orientação. Quando
o Senhor faz exceções, estas apenas confirmam a regra.
Em corto sentido, somos as nossas próprias ferramentas, e,
portanto, precisamos manter-nos em ordem. Se quero pregar o
evangelho, só posso usar a minha própria voz; daí, devo aprimorar as
minhas virtudes vocais. Só posso pensar com o meu cérebro, e sentir
com o meu coração; portanto, devo educar as mInhas faculdades
intelectuais e emocionais. Só posso chorar e agonizar pelas almas com a
minha própria natureza renovada; portanto, devo manter vigilantemente
a ternura que havia em Cristo Jesus. Ser-me-á vão suprir minha
biblioteca, ou organizar sociedades, ou fazer planos, se eu negligenciar o
cultivo de mim mesmo; pois livros, agências e sistemas só remotamente
são instrumentos da minha santa vocação.
Meu espírito, alma e corpo são os meus mecanismos mais à mão
para o serviço sagrado; as minhas faculdades espirituais e a minha vida
interior são o meu machado de combate, as minhas armas de guerra.
McCheyne, escrevendo a um colega de ministério que estava no exterior
com vistas a aperfeiçoar os seus conhecimentos do idioma alemão,
empregou linguagem idêntica à nossa. Escreveu ele:
"Sei que você se aplicará arduamente ao alemão, mas não se esqueça
de cultivar o homem interior – quero dizer, o coração. Quão diligentemente o
oficial da cavalaria conserva limpo e afiado o seu sabre; qualquer mancha
ele a remove com o maior esmero. Lembre-se de que você é a espada de
Deus. É Seu instrumento – espero, vaso escolhido para Ele, para levar o
Seu nome. Em grande medida, o sucesso será de acordo com a pureza e
perfeição do instrumento. Deus abençoa não tanto a talentos, como à
semelhança com Jesus. O ministro santo é temível arma na mão de Deus".
Estar o arauto do evangelho espiritualmente fora de ordem em sua
pessoa é, tanto para ele como para o seu trabalho, uma calamidade das
mais graves. Contudo, irmãos, com que facilidade se produz esse mal, e
com que vigilância devemos prevenir-nos contra ele! Um dia, viajando
pelo expresso de Perth a Edimburgo, de repente o trem parou
bruscamente porque um parafusinho de nada de um dos motores se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 6
quebrara – sendo que toda a locomotiva compõe-se virtualmente de dois
motores. Quando partimos de novo, fomos obrigados a arrastar-nos
lentamente apenas com uma biela de pistão funcionando, em vez de
duas. Somente se perdera um pequeno parafuso. Se ele tivesse ficado em
ordem, o trem teria prosseguido velozmente em seu caminho de ferro,
mas a ausência de uma diminuta peça de ferro desarrumou tudo.
Conta-se que nas ferrovias dos Estados Unidos um trem parou por
causa de insetos que penetraram nas caixas de graxa dos eixos do
comboio. A analogia é perfeita. Uma pessoa em todos os demais
aspectos habilitada para ser útil pode, por algum defeito diminuto, ser
extremamente prejudicada, ou até tornar-se inútil por completo. Um
resultado desses é em extremo ruinoso, uma vez que está associado ao
evangelho que, no sentido supremo, é adequado a produzir os maiores
resultados. É terrível quando um ungüento perde a sua eficácia devido ao
trapalhão que o aplica. Todos vocês sabem dos efeitos nocivos
produzidos muitas vezes na água quando passa por canos ruins; assim
também o próprio evangelho, passando através de homens
espiritualmente doentios, pode ser aviltado a ponto de se tornar nocivo
aos ouvintes. É de temer que a doutrina calvinista se torne um ensino
muito danoso quando exposta por homens de vida ímpia, e apregoada
como se fosse um manto para a licenciosidade. O arminianismo, por
outro lado, com a sua ampla extensão do oferecimento de misericórdia,
poderá causar o mais sério dano às almas, se o tom descuidado do
pregador levar os ouvinte a acreditarem que são capazes de arrepender-
se quando bem quiserem. Com isso, pois, a mensagem do evangelho não
implica em nenhuma urgência. Além disso, quando o pregador é pobre
de graça, qualquer benefício permanente que poderia resultar do seu
ministério em geral será fraco e completamente desproporcional ao que
se poderia esperar.
Muita semeadura seguir-se-á de escassa colheita. O interesse pelos
talentos será inapreciavelmente pequeno. Em duas ou três batalhas em
que fomos derrotados na recente guerra americana, diz-se que o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 7
resultado deveu-se à má qualidade da pólvora entregue por certos
pseudo-fornecedores contratados pelo exército, de modo que os
canhoneios não produziram efeito. Pode acontecer o mesmo conosco.
Podemos errar o alvo, perder a nossa finalidade, o nosso objetivo, e
desperdiçar o tempo, por não possuirmos dentro de nós a verdadeira
força vital ou por não a possuirmos na medida em que, compativelmente,
levaria Deus a abençoar-nos. Cuidem para não serem pseudo-pregadores.
Um dos nossos primeiros cuidados deve ser que nos mesmos
sejamos homens salvos.
Que um mestre do evangelho seja antes um participante dele é
verdade simples, mas ao mesmo tempo é uma regra da mais ponderável
importância. Não estamos entre os que aceitam a sucessão apostólica de
jovens simplesmente porque a supõem. Se a experiência pedagógica
deles for mais de vivacidade do que de espiritualidade, se as suas honras
se ligam aos exercícios atléticos e não a trabalhos para Cristo, exigimos
prova de natureza diversa das que eles estão capacitados para apresentar-
nos. Nenhuma soma paga a título de honorários a cultos doutores do
saber, e nenhuma soma de conhecimentos clássicos recebidos em troca,
nos parecem evidência da vocação do alto. A verdadeira piedade é
necessária como o primeiro requisito indispensável. Seja qual for a
"vocação" que um homem simule possuir, se não foi vocacionado para a
santidade, certamente não foi vocacionado para o ministério.
"Arruma-te primeiro, e depois enfeita o teu irmão", dizem os
rabinos. "A mão", diz Gregório, "que tenciona limpar a outrem, deve
estar limpa." Se o seu sal for insípido, como pode dar sabor a outros? A
conversão é uma sine qua non em um ministro – uma condição
indispensável. Vós, que aspirais aos nossos púlpitos, "necessário vos é
nascer de novo". Tampouco deve ser presumida a posse desta primeira
qualidade, pois existe grande possibilidade de estarmos enganados sobre
se somos ou não convertidos.
Creiam-me, não é brincadeira infantil "fazer cada vez mais firme a
vossa vocação e eleição". O mundo está repleto de limitações, e está
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 8
apinhado de alcoviteiros do amor-próprio carnal, que cercam o ministro
como abutres em volta de uma carcaça. Nossos corações são enganosos,
de sorte que a verdade não está na superfície, mas tem que ser arrancada
do poço mais profundo. Devemos sondar-nos a nós mesmos com ávido
interesse e de modo completo, para não suceder que, tendo de alguma
forma pregado a outros, não venhamos a ficar reprovados.
Que corsa horrível, ser pregador do evangelho e, todavia, não estar
convertido! Cada qual sussurre consigo mesmo no íntimo de sua alma:
"Que coisa terrível seria para mim, se eu ignorasse o poder da verdade
que me estou preparando para proclamar!" O ministério exercido por um
inconverso envolve relações das mais antinaturais. Um pastor destituído
da graça é semelhante a um cego eleito professor de ótica, que faz
filosofia sobre a luz e a visão, comentando e distinguindo para outros os
belos sombreados e as delicadas combinações das cores prismáticas,
enquanto ele mesmo está absolutamente em trevas! É um mudo elevado
à cátedra de música; um surdo a falar sobre sinfonias e harmonias! Uma
toupeira pretendendo criar filhotes de águias; um molusco eleito
presidente de anjos!
A esse tipo de relação poder-se-iam aplicar as metáforas mais
absurdas e grotescas, se o assunto não fosse tão solene. É uma tremenda
posição para um homem ocupar, pois ao fazê-lo está se comprometendo
com uma obra para a qual está inteiramente, completamente, totalmente
desqualificado, mas de cujas responsabilidades sua falta de habilitação
não o resguarda, porque ele as assumiu voluntariamente. Sejam quais
forem os seus dons naturais, sejam quais forem os seus poderes mentais,
estará completamente fora do páreo para a obra espiritual se não tiver
vida espiritual. E será seu dever interromper o ofício ministerial
enquanto não receber esta qualificação, que é a primeira e a mais básica
de todas.
O ministério exercido por inconversos pode ser igualmente terrível
noutro sentido. Se o homem não for realmente comissionado, que infeliz
é esta posição para ele! Que poderá achar na experiência das pessoas sob
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 9
o seu cuidado pastoral que o possa confortar? Como haverá de sentir-se
quando escutar o clamor dos arrependidos, ou quando ouvir as suas
dúvidas repassadas de ansiedade e os seus graves temores? Ficará
espantado ao pensar que as suas palavras deveriam se adequadas àquela
necessidade aguda! A palavra de um homem não convertido pode ser
abençoada para a conversão de almas, desde que o Senhor, embora
repudie ao homem, continue honrando a Sua verdade. Como há de ficar
perplexo o homem, quando consultado sobre dificuldades de cristãos
amadurecidos! No caminho da experiência, pelo qual são conduzidos os
seus ouvintes regeneradas, ele mesmo só poderá sentir-se um completo
fracasso. Como poderá captar as alegrias dos que estão em seus eleitos
de morte, ou participar da comunhão fervorosa dos crentes à mesa do
Senhor?
Em muitos casos de jovens empregados numa profissão que não
podem agüentar, correm eles a engajar-se na marinha, preferindo isso a
seguir uma ocupação penosa. Mas, para onde fugirá aquele que treinou
para dedicar-se a vida toda a esta santa vocação, e, contudo, é
completamente alheio ao poder da vida piedosa? Como poderá
diariamente exortar que os homens venham a Cristo, enquanto ele
mesmo é estranho ao Seu amor que O levou à morte sacrificial? Ó
senhores, seguramente isto só pode ser uma escravidão perpétua. Tal
homem certamente odiará a simples visão de um púlpito, tanto quanto
um escravo das galés odeia o remo.
E quão imprestável há de ser um homem desses! Cabe-lhe guiar
viajores ao longo de uma estrada que ele nunca percorreu, navegar por
uma costa da qual não conhece nenhuma das balizas orientadoras! É
chamado para instruir a outros, sendo ele mesmo um tolo. Que é que ele
pode ser, senão uma nuvem sem chuva, uma árvore que só tem folhas?
Como quando uma caravana no deserto, com todos sedentos e quase
morrendo assados ao sol, chega à tão desejada fonte e – horror dos
horrores! – encontra-a sem uma gota d'água, assim, quando almas
sedentas de Deus chegam a um ministério carente da graça, ficam prestes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 10
a perecer porque não acham ali a água da vida. É melhor abolir os
púlpitos do que enchê-los de homens que não têm conhecimento
experimental daquilo que ensinam.
Ah! o pastor não regenerado vem a ser terrivelmente nocivo
também, pois, de todas as causas produtoras de infidelidade, os ministros
carentes de vida piedosa devem ser classificados entre as primeiras. Li
outro dia que nenhum aspecto do mal já apresentou tão extraordinário
poder de destruição como o ministro não convertido de uma paróquia
que contava com um órgão caríssimo, um coro composto de cantores
ímpios, e membros de uma igreja aristocrática. A opinião do escritor era
que não poderia haver maior instrumento de condenação do que isso,
fora do inferno. As pessoas vão para o seu local de culto, sentam-se
comodamente e se acham cristãs, quando o tempo todo, tudo aquilo em
que a sua religião consiste resume-se em ouvir um orador, sentir cócegas
nos ouvidos, feitas pela música, e talvez ter os olhos divertidos por
atitudes graciosas e maneiras elegantes, sendo o conjunto todo nada
melhor do que o que ouvem e vêem na ópera – talvez não tão bom,
quanto à beleza estética, e nem um átomo mais espiritual. Milhares se
congratulam, e até bendizem a Deus por serem Seus devotos adoradores
quando, ao mesmo tempo, vivem numa condição de não regenerados,
sem Cristo, tendo a forma da piedade mas negando o poder dela. Quem
dirige um sistema que não visa a nada mais elevado que o formalismo, é
muito mais servo do diabo do que ministro de Deus.
Um pregador meramente formal já é nocivo enquanto preserva o
seu equilíbrio externo, mas como não possui o equilíbrio da piedade que
poderia preservá-lo, mais cedo ou mais tarde é quase certo que cometerá
um erro em seu caráter moral, e em que posição fica ele neste caso!
Como Deus é blasfemado! E como o evangelho sofre abusos!
É terrível considerar que morte espera tal homem! E qual será a
sua condição posterior! O profeta retrata o reí da Babilônia descendo ao
inferno, e todos os reis e príncipes que ele tinha destruído, e cujas
capitais tinha assolado, erguendo-se dos seus lugares no inferno e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 11
saudando o tirano caído com o cortante sarcasmo: "Tu também adoeceste
como nós, e foste semelhante a nós" (Is. 14:10). E vocês não podem
imaginar um homem que foi ministro, mas que viveu sem Cristo no
coração, indo para o inferno, e todos os espíritos em prisão que
costumavam ouvi-lo, e todos os ímpios da sua igreja, levantando-se e lhe
dizendo em tom amargo: "Tu também te fizeste como nós? Médico, não
te curaste a ti mesmo? Tu, que te proclamavas ser brilhante luz, lançado
nas trevas para sempre?" Ah! se alguém tem que se perder, que não seja
desse jeito! Perder-se à sombra de um púlpito é terrível, mas quanto mais
terrível é perecer havendo ocupado o púlpito!
No tratado de John Bunyan intitulado "Suspiros do Inferno" (Sighs
from Hell) há uma temível passagem que muitíssimas vezes ressoa em
meus tímpanos:
"Quantas almas foram destruídas por causa da ignorância de clérigos
cegos? Pregação que não era melhor para as suas almas do que veneno de
rato para o corpo. É de temer que muitos deles tenham que responder por
cidades inteiras. Ah! amigo, digo-te, tu que te incumbiste de pregar ao povo,
pode ser que não consigas sequer falar aquilo de que te incumbiste. Não te
doerá ver toda a tua igreja ir atrás de você para o inferno? – e a clamar: "Isto
devemos agradecer-te. Tiveste medo de falar-nos dos nossos pecados, para
que acaso não continuássemos metendo comida suficiente na tua boca. Ó
ente vil e maldito, que não te contentaste, guia cego como foste, em cair tu
mesmo no fosso, mas também nos arrastaste contigo para o mesmo lugar!"
Richard Baxter, em sua obra, Reformed Pastor, em meio a muitas
outras coisas profundas, escreve como se segue:
"Tenham cuidado consigo mesmos, para que não estejam vazios
daquela graça salvadora de Deus que oferecem a outros, e não sejam
estranhos àquela obra eficaz efetuada por aquele evangelho que pregam; e
para não acontecer que, enquanto proclamam ao mundo a necessidade de
um Salvador, os seus próprios corações O negligenciem', e lhes falte
interesse por Ele e por Seus benefícios salvíficos. Tenham cuidado consigo
mesmos, para que você não pereçam enquanto chamam a atenção de
outros a que se cuidem para não perecerem, e para que vocês não morram
de fome enquanto prepararam alimento para eles. Embora haja uma
promessa aos que a muitos converteram à justiça, promessa de que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 12
refulgirão como as estrelas (Dn. 12:3), é feita com a suposição de que eles
mesmos foram guiados primeiro a ela. Promessas desse tipo são feitas
coeteris paribus, et suppositis supponendis (com a união dos iguais e com
as suposições que se devem fazer). Sua própria sinceridade na fé constituí a
condição da sua glória considerada simplesmente, embora os seus grandes
labores ministeriais sejam uma condição da promessa de maior glória a eles.
"Muitos que advertiram a outros a fim de que não 'venham para este
lugar de tormento', eles próprios se precipitaram para lá. Muito pregador que
cem vezes conclamou os seus ouvintes a empregarem o máximo cuidado e
diligência para escaparem ao inferno, lá está. Pode alguma pessoa razoável
imaginar que Deus salvaria homens por oferecerem a salvação a outros,
enquanto eles mesmos a recusaram, e por dizerem a outros as verdades
que eles mesmos negligenciaram e das quais abusaram? Muito alfaiate que
confecciona custosos trajes para outros, veste-se de andrajos; e muito
cozinheiro mal lambe os dedos, apesar de ter preparado para outros os
pratos mais caros.
"Acreditem, irmãos, Deus nunca salvou ninguém por ser pregador, nem
por ter sido pregador capaz; mas porque foi um homem justificado,
santificado e, conseqüentemente, fiel no serviço do seu Mestre e Senhor.
Portanto, tenham cuidado consigo mesmos primeiro, para que sejam aquilo
que procuram persuadir outros a serem, creiam naquilo em que procuram
diariamente persuadir outros a crerem, e tenham acolhido no seu próprio
coração aquele Cristo e aquele Espírito Santo que oferecem a outros.
Aquele que lhes ordenou que amem o próximo como a si mesmos, ordenou
implicitamente que se amem a si próprios e não destruam nem a si mesmos
nem aos outros".
Meus irmãos, permitam que estas pesadas considerações produzam
o devido efeito em vocês. Certamente não há necessidade de acrescentar
nada mais. Deixem-me, porém, rogar-lhes que se examinem a si
mesmos, e assim façam bom uso daquilo que lhes foi dirigido.
Estabelecido o primeiro ponto da verdadeira religião, segue-se em
importância para o ministro, em segundo lugar, que a sua piedade seja
vigorosa.
O ministro não deve se contentar em estar no mesmo nível dos
soldados rasos das fileiras cristãs; tem que ser um crente amadurecido e
adiantado, pois o ministério de Cristo tem sido com acerto denominado
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 13
"Sua escolha mais seleta, o eleito da Sua eleição, uma igreja extraída da
Sua igreja". Se o ministro fosse chamado para uma posição comum e
para um trabalho comum, talvez a graça comum pudesse satisfazê-lo,
apesar de que mesmo então seria uma satisfação indolente. Sendo,
porém, eleito para trabalhos extraordinários, e chamado para um lugar
em que há perigos fora do comum, ele deve aspirar avidamente a posse
daquela força superior que é única e adequada ao seu oficio. O pulso da
sua religiosidade vital deve bater forte e com regularidade; os olhos da
sua fé devem ser brilhantes; os pés da sua resolução devém ser firmes; as
mãos da sua atividade devem ser ágeis; todo o seu ser interior deve estar
no mais alto grau de sanidade.
Dizem que os egípcios escolhiam os seus sacerdotes dentre os seus
filósofos mais doutos, e depois os tinham em tão alta estima que dentre
eles escolhiam os seus reis. Exigimos que os ministros de Deus sejam a
nata de todos os que formam nos exércitos de Cristo. Homens tais que,
se a nação quisesse reis, não poderia fazer melhor do que elevá-los ao
trono. Os nossos homens de pequeno poder mental, muito tímidos,
carnais e de personalidade mal equilibrada não prestam como candidatos
ao púlpito. Há alguns trabalhos que jamais devemos confiar a inválidos
ou deformados. Um homem pode não ser qualificado para trepar em
altos edifícios. Seu cérebro pode ser fraco demais, e o trabalho em
lugares altos pode colocá-lo em grande perigo. Faça-se tudo para mantê-
lo no chão e para achar-lhe uma ocupação em que um cérebro estável
seja menos importante.
Há irmãos que têm análogas deficiências espirituais. Não podem ser
chamados para um serviço proeminente e elevado porque têm cabeça
fraca. Se lhes fosse permitido obter um pouco de sucesso, ficariam
intoxicados com a vaidade – vício comum entre os ministros, e, de todas
as coisas, a que menos lhes convém, e a que com maior certeza lhes
assegura a queda. Se como nação fôssemos chamados a defender as
nossas casas e os nossos lares, não enviaríamos nossos meninos e
meninas com espadas e armas de fogo a enfrentar o inimigo, tampouco a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 14
igreja pode enviar todo noviço verboso ou zelote sem experiência a
batalhar pela fé. O temor do Senhor há de ensinar sabedoria ao jovem,
ou, do contrário, ser-lhe-á vedado o pastorado. A graça de Deus há de
amadurecer o seu espírito, ou seria melhor que esperasse até ser-lhe dado
poder do alto.
O mais elevado caráter moral deve ser mantido com a máxima
diligência. Muitos que são ótimos membros de igreja não são
qualificados para exercer ofício na igreja. Tenho opiniões rígidas quanto
a cristãos que caíram em pecado grosseiro. Regozijo-me de que possam
ter se convertido de verdade, e que, com uma mistura de esperança e
cautela, sejam recebidos à comunhão da igreja. Mas questiono, e
questiono com seriedade, se um homem que pecou escandalosamente
deve ser logo restaurado ao púlpito.
Como observa John Angell James:
"Quando um pregoeiro da justiça se detém no caminho dos pecadores,
nunca deverá tornar a abrir os lábios na grande congregação, enquanto o
seu arrependimento não for tão notório como o seu pecado".
Que os que foram tosquiados pelos filhos de Amom esperem em
Jericó até que as suas barbas cresçam. Muitas vezes isso tem sido usado
como um insulto a jovens imberbes, a quem evidentemente não se
aplica; é uma metáfora bem precisa referente a homens sem honra e sem
caráter, seja qual for a sua idade. Lastimável! A barba da reputação uma
vez raspada, dificilmente cresce de novo. A imoralidade praticada
abertamente, na maioria dos casos, por mais profundo que seja o
arrependimento, é um sinal fatal de que as graças ministeriais nunca
estiveram no caráter desse homem. A mulher de César deve estar fora de
qualquer suspeita, e é preciso que não corram fetos boatos sobre a
inconsistência ministerial do passado, se não, será débil a esperança de
uma valiosa prestação de serviço. Na igreja esses que caíram devem ser
recebidos como penitentes, e no ministério poderão ser recebidos se
Deus os colocar lá. Minha dúvida não é sobre isso, mas é se Deus
realmente os colocou lá. E minha convicção é que devemos ser muito
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 15
lentos em ajudar a voltarem para o púlpito homens que, tendo sido
provados uma vez, mostraram possuir pouquíssima graça para agüentar o
teste crucial da vida ministerial.
Para alguns serviços não escolhemos ninguém senão os fortes. E
quando Deus nos chama para o labor ministerial, devemos esforçar-nos
para obter graça para que sejamos fortalecidos com vistas a habilitar-nos
para a nossa posição, e não sejamos simples novatos arrastados pelas
tentações de Satanás, para prejuízo da igreja e para a nossa própria ruína.
Temos que manter-nos equipados com toda a armadura de Deus, prontos
para corajosas proezas não esperadas de outros. Para nós, a abnegação, a
renúncia, a paciência, a perseverança, a resignação, têm que ser virtudes
postas em prática todo dia, e quem é suficiente para estas coisas? Temos
necessidade de viver bem perto de Deus, se queremos ser aprovados em
nossa vocação.
Recordem-se, como ministros, de que toda a sua vida,
especialmente toda a sua vida pastoral, será afetada pelo vigor da sua
piedade. Se o seu zelo se amortecer, vocês não orarão bem no púlpito,
orarão pior no seio da família, e pior ainda a sós, no gabinete pastoral.
Quando a sua alma se empobrece, os seus ouvintes, sem que saibam
como e por que, acharão que as suas orações em público têm pouco
sabor para eles. Sentirão a sua aridez possivelmente antes de vocês a
perceberem. Em seguida, os seus discursos denunciarão o seu declínio.
Poderão pronunciar palavras tão bem escolhidas e sentenças tão bem
coordenadas como antes, mas haverá perceptível perda de poder
espiritual.
Poderão sacudir-se como noutros tempos, exatamente como
aconteceu com Sansão, mas verão que a sua grande força ter-se-á
retirado. Em sua comunhão diária com os da sua igreja, não se
demorarão a notar a crescente decadência dos seus dons e graças. Olhos
perspicazes verão antes de vocês os cabelos grisalhos aqui e ali. Basta
que um homem seja atacado de uma enfermidade do coração para que
todos os males o envolvam – o estômago, os pulmões, as entranhas, os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 16
músculos e os nervos padecerão todos. Assim, basta que um homem
fique com o coração enfraquecido nas coisas espirituais para que bem
depressa a sua vida toda sinta a influência debilitante.
Além disso, como resultado da sua decadência, cada um dos seus
ouvintes sofrerá em maior ou menor grau. Os vigorosos dentre eles
superarão a tendência depressiva, mas os mais fracos serão gravemente
prejudicados. Acontece conosco e com os nossos ouvintes o que
acontece com. os relógios de uso pessoal e com os relógios públicos. Se
o nosso relógio não estiver certo, muito pouca gente, além de nós
mesmos, sofrerá com o engano, mas se o do edifício dos Horse Guards,
de Londres, ou o do Observatório de Greenwich, estiver errado, a metade
de Londres ficará desorientada. Assim com o ministro. Ele é o relógio da
comunidade. Muitos conferem a sua hora com ele e, se ele for incorreto,
todos andarão erradamente, uns mais outros menos, e em grande medida
ele terá que responder por todos os pecados que ocasiona. Não podemos
agüentar sequer pensar nisso, meus irmãos. Não deve nos dar
confortadora consideração nem por um momento, e, contudo, temos que
dar-lhe atenção para proteger-nos contra esse mal.
Devemos lembrar-nos também de que precisamos ter piedade
deveras vigorosa porque o perigo que enfrentamos é muito maior do que
o que os outros enfrentam. De modo geral, nenhuma posição é tão
assaltada pelas tentações como o ministério da Palavra. A despeito da
idéia popular de que a nossa vocação é um refúgio abrigado da tentação,
a verdade é que os perigos que nos cercam são mais numerosos e mais
insidiosos dos que cercam os cristãos em geral. A nossa posição pode ser
um terreno vantajoso quanto à altura, mas essa altura é perigosa, e para
muitos o ministério revelou-se uma rocha tarpeiana.*
Se me perguntarem quais são essas tentações, talvez não dê tempo
para particularizá-las, mas entre elas há as mais grosseiras e as mais
refinadas. As mais grosseiras são tentações como a do desregramento à

*
Rochedo de onde eram precipitados os criminosos em Roma. Nota do tradutor.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 17
mesa, a da adulação dos que possuem superabundância de bens no seio
de um povo hospitaleiro, as tentações da carne, incessantes com os
jovens solteiros, que se vêem nas alturas no meio de uma multidão de
jovens admiradoras. Chega disto, porém. Sua observação logo lhes
revelará mil laços, a menos que os seus olhos sejam cegos de fato. Além
desses, há outros laços secretos, dos quais temos menos facilidade de
escapar. E o pior destes é a tentação do ministerialismo – tendência de
ler as nossas Bíblias como ministros, de orar como ministros, de aplicar-
nos a fazer tudo o que constitui a nossa religião, não como sendo nós
mesmos, pessoalmente, mas só relativamente interessados naquilo tudo.
Perder o caráter pessoal do arrependimento e da fé é sofrer uma perda
real. "Homem nenhum", diz John Owen, "prega bem o seu sermão a
outros se o não pregar primeiro ao seu próprio coração."
Irmãos, é eminentemente difícil ater-nos a isso. O nosso oficio, em
vez de ajudar a nossa vida piedosa, como alguns afirmam, torna-se um
dos seus mais sérios empecilhos, devido à maldade da nossa natureza;
pelo menos, eu penso assim. Como a gente esperneia e luta contra o
oficialismo! Todavia, com que facilidade ele nos bloqueia, como uma
vestimenta comprida que se enrosca nos pés do corredor e o impede de
correr. Acautelem-se, caros irmãos, contra isso e contra todas as outras
seduções que assediam a sua carreira; e, se vocês têm agido assim até
agora, continuem vigilantes até á última hora da vida.
Assinalamos apenas um dos perigos, mas, na verdade, são uma
legião. O grande inimigo das almas esmera-se em não deixar pedra sem
revirar no afã de arruinar o pregador.
"Cuidem-se", diz Baxter, "porque o tentador fará a sua primeira e mais
mordaz investida contra vocês. Se vocês forem os líderes contra ele, ele não
os poupará nem um pouco além da medida da restrição que Deus lhe impõe.
Ele sustenta contra vocês o máximo da sua maldade porque estão
empenhados em causar-lhe o maior dano. Assim como odeia a Cristo mais
que a qualquer de nós, porque Ele é o "comandante-em-chefe" e o "capitão
da nossa salvação", e faz muito mais que o mundo inteiro contra o reino das
trevas, assim põe mais atenção nos líderes subordinados a Cristo que aos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 18
soldados rasos, por semelhante motivo, guardadas as devidas proporções.
Ele sabe muito bem a derrota que poderá impor aos restantes, se os líderes
caírem à vista deles. Por longo tempo ele tem usado esta forma de pelejar,
"nem com pequenos, nem com grandes", relativamente falando mas dirige-
se especialmente aos grandes, conforme está escrito: 'Ferirei o pastor, e as
ovelhas do rebanho se dispersarão'. E por este meio tem conseguido tal
sucesso, que continuará a usá-lo enquanto puder.
"Tenham cuidado, pois, irmãos, porquanto o inimigo os fita com um
olhar especial. Vocês sofrerão as suas insinuações mais sutis, solicitações
incessantes e assaltos violentos. Por mais sábios e instruídos que sejam,
cuidem-se, para que ele não lhes sobrepuje o engenho. O diabo é mais
douto que vocês, e contendor mais esperto; pode transfigurar-se em "anjo
de luz" para enganar. Ele dominará vocês e levar-vos-á por onde quiser
antes que se dêem conta; bancará ilusionista com vocês, sem ser percebido,
e vos logrará, fazendo-vos perder a fé ou a inocência, e vocês nem saberão
que a perderam; pelo contrário, fará com que creiam que ela se multiplicou
ou cresceu, quando na verdade foi perdida. Vocês não enxergarão nem a
vara nem o anzol, e muito menos o pescador sutil, enquanto ele oferece a
sua isca. E as suas iscas serão tão adequadas ao temperamento e à
disposição de vocês, que terá certeza de colher vantagem no vosso íntimo,
fazendo com que os vossos princípios e inclinações vos traiam; e sempre
que vos arruinar, fará de vocês instrumentos da vossa própria ruína. Oh, que
vitória ele fica rememorando, se consegue tornar um ministro ocioso e infiel;
se pode fazer um ministro cair na tentação da cobiça ou de um escândalo!
Ele se ufanará contra a igreja. e dirá: 'Estes são os teus santos pregadores;
vês qual é a virtude deles, e para onde ela os levará'.
"Ele se ufanará contra o próprio Senhor Jesus Cristo, e dirá: 'São estes
os teus campeões! Posso fazer com que os Teus principais servos Te
desonrem; posso tornar infiéis os mordomos da Tua casa'. Se ele insultou
tanto a Deus baseado numa falsa suspeita, e Lhe disse que podia levar Jó a
blasfemar dEle na Sua lace (Jó 1:2), que faria se deveras prevalecesse
contra nós? E finalmente insultará o mais que puder, achando que poderá
levar vocês a serem falsos para com a sua grande incumbência, a desonrar
a sua santa profissão, e a prestar grande serviço àquele que foi seu inimigo.
Oh! não gratifiquem tanto a Satanás! Não deixem que faça tanta troça. Não
deixem que os use – como os filisteus usaram Sansão – primeiro privando-
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 19
os da sua força; depois, arrancando-lhes os olhos; e fazendo-os, assim,
objeto do triunfo e da zombaria dele".
Ainda uma palavra. Temos que cultivar o mais alto grau de
religiosidade autêntica porque o nosso trabalho exige isto
imperiosamente. O labor do ministério cristão é executado na exata
proporção do vigor da nossa natureza renovada. Nosso trabalho só é bem
feito quando nós estamos bem. Como o trabalhador é, assim será o seu
trabalho. Enfrentar os inimigos da verdade, defender os baluartes da fé,
governar bem a casa de Deus, consolar todos os que choram, edificar os
santos, orientar os que andam perplexos, tolerar os insolentes, conquistar
almas e nutri-las – todas estas obras e outras mil não são para um João
Fraco da Mente, nem para um José É Já Que Paro, mas estão reservadas
para o Cristiano Coração Grande, que o Senhor fez forte para Si mesmo.
Procurem, pois, obter forças daquele que é o Forte, e sabedoria daquele
que é o Sábio – sim, busquem tudo do Deus de todos.
Em terceiro lugar, que o ministro cuide para que o seu caráter
pessoal se harmonize em todos os aspectos com o seu ministério.
Já ouvimos todos a historia do homem que pregava tão bem e vivia
tão mal que, quando estava no púlpito, toda gente dizia que ele não devia
sair mais de lá, e quando estava fora dele, todos declaravam que ele não
devia voltar a ocupá-lo. Que o Senhor nos livre da imitação de tal Janes.
Que nunca sejamos sacerdotes de Deus junto ao altar e filhos de Belial
fora das portas do tabernáculo. Ao contrário, como diz Nazianzeno sobre
Basílio, "trovejemos em nossa doutrina e relampagueemos em nossa
conversação". Não confiamos nas pessoas de duas caras e ninguém dará
crédito àqueles cujos testemunhos verbais e práticos são contraditórios.
Segundo o provérbio, as ações falam mais alto do que as palavras, assim
uma vida má efetivamente abata a voz do mais eloqüente ministério.
Afinal de cantas, a nossa mais veraz obra de edificação deve ser
realizada com as nossas mãos; o nosso caráter tem que ser mais
persuasivo do que o nosso falar.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 20
Aqui vos advirto não somente sobre pecados de comissão, mas
também sobre pecados de omissão. Muitos pregadores esquecem-se de
servir a Deus quando estão fora do púlpito, sendo incoerentes em seu
modo de viver. Diletos irmãos, detestem pensar em ser ministros tipo
relógio, não vivendo pela graça presente no seu íntimo, mas agindo pela
corda dada por influências passageiras; homens que somente são
ministros quando têm que ser, quando são pressionados pelas horas de
ministração, mas deixam de ser ministros quando descem a escada do
púlpito. Os verdadeiros ministros são ministros sempre. Muitos
pregadores são como aqueles brinquedos de areia que compramos para
as nossas crianças; viramos a caixa de boca para baixo, e o pequeno
acrobata volve-se e revolve-se até esvair-se a areia toda, e então ele
pende imóvel. Assim há alguns que perseveram nas ministrações da
verdade enquanto há alguma necessidade oficial do seu trabalho, mas,
depois disso, sem pagamento, não há oração: se não há salário, não há
sermão.
É horrível ser ministro incoerente. De nosso Senhor se diz que foi
semelhante a Moisés por esta razão, por que foi "profeta poderoso em
obras e palavras". O homem de Deus deve imitar nisto o seu Mestre e
Senhor. Deve ser poderoso tanto na palavra da sua doutrina como nos
seus atos exemplares, e mais poderoso, se possível, no segundo caso. É
notável que a única história da igreja que temos é esta: "Atos dos
Apóstolos". O Espírito Santo não preservou todos os seus sermões. Eram
muito bons, melhores do que jamais pregaremos, mas, apesar disso, o
Espírito Santo Se interessou mais pelos "atos" dos apóstolos. Não temos
livros de atas com o registro das resoluções dos apostoles. Quando temos
nossas reuniões eclesiásticas, registramos as nossas atas e resoluções,
mas o Espírito Santo faz constar mais os "atos". Os nossos atos devem
ser tais que mereçam registro, pois registrados serão. Devemos viver
como estando sob o mais direto olhar de Deus, e como na luz do grande
dia da revelação de todas as coisas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 21
No ministro, a santidade é ao mesmo tempo a sua principal
necessidade e o seu mais excelente ornamento. A simples excelência
moral não basta; é preciso haver virtude mais elevada. Tem que haver
um caráter consistente, mas este precisa ser ungido com o óleo santo da
consagração, ou, do contrário, estará faltando aquilo que nos impregna
do melhor aroma para Deus e para os seres humanos. O velho John
Stoughton, em seu tratado intitulado The Preacher's Dignity and Duty (A
Dignidade e o Dever do Pregador), insiste na santidade do ministro com
declarações contundentes. "Se Uzá deve morrer por tocar na arca de
Deus, e isso para segurá-la por estar prestes a cair; se devem morrer os
homens de Bete-Semes porque olharam para dentro dela; se os próprios
animais são ameaçados somente por aproximar-se do monte santo –
então, que espécie de pessoas devem ser os que são aceitos para falar
com Deus familiarmente, para "estar de pé diante dele", como o fazem os
anjos, e "contemplar continuamente a sua face"? "Para levar a arca em
seus ombros"; "para levar o seu nome perante os gentios"; numa palavra
para ser Seus embaixadores? "A santidade convém à Tua casa, Senhor".
E não seria ridículo imaginar que os vasos devem ser santos, as vestes
devem ser santas, tudo deve ser santo, mas somente aquele sobre cujas
vestimentas precisa estar escrito "santidade ao Senhor" pode deixar de
ser santo? Não seria ridículo que as campainhas dos cavalos devem ter
em si uma inscrição de santidade (Zac. 14:20); e as campainhas dos
santos, isto é, as campainhas de Arão, fiquem sem santificar-se?
Não, eles devem ser "lâmpadas que ardem e brilham", ou então a
sua influência projetará alguma qualidade maligna; têm que "ser
ruminantes e ter o casco dividido", ou serão imundos; precisam "manejar
bem a palavra" e andar retamente na vida, juntando assim a vida ao
saber. Se faltar santidade, os embaixadores desonrarão o país do qual
procedem e o príncipe que os enviou. E este Amasa morto, esta doutrina
não vitalizada pela vida genuína, jazendo no caminho, detém o povo de
Deus, impedindo-o de prosseguir com entusiasmo em sua luta
espiritual."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 22
A vida do pregador deve ser um ímã para atrair homens a Cristo, e é
triste de fato quando os retém longe dEle. A santidade dos ministros é
um sonoro chamamento aos pecadores para que se arrependam, e,
quando aliada à santa alegria, torna-se maravilhosamente atraente.
Jeremy Taylor, em sua linguagem peculiar e rica, diz: "As pombas de
Herodes nunca poderiam ter convidado tantos estranhos para os seus
pombais, se estes não tivessem sido lambuzados com o bálsamo de
Gileade. Mas, dizia Didymus, "faça os seus pombos cheirarem
agradavelmente, e eles atrairão bandos completos"; e se a sua vida for
excelente, se as suas virtudes forem como um ungüento precioso, logo
você fará os que estão a seu cargo correrem "in odorem unguentorum",
atrás das suas precisas fragrâncias". Mas você precisa ser excelente, não
"tanquam unus de populo", mas "tanquam hamo Dei"; você deve ser um
homem de Deus, não segundo a maneira comum dos homens, mas
"segundo o coração de Deus". E os homens se empenharão para ser
semelhantes a você, se você for semelhante a Deus. Mas quando você
fica parado à porta da virtude, apenas para manter fora o pecado, não
introduzirá ninguém no aprisco de Cristo, exceto aqueles impelidos pelo
temor. "Ad majorem Dei gloriam", "Fazer o que mais glorifique a Deus",
esta é a linha pela qual você deve andar. Portanto, não ir além daquilo
que todos os homens fazem por obrigação, é servilismo, não atingindo a
afeição de filhos. Muito menos poderão ser país espirituais os que não
chegam a igualar-se aos filhos de Deus. Pois um farol obscuro,
conquanto haja fraca luz por um lado, mal iluminará a um, e muito
menos conduzirá uma multidão, nem atrairá muitos seguidores com o
brilho da sua chama".
Outro teólogo episcopal igualmente admirável disse com acerto e
com energia:
"A estrela que guiou os magos a Cristo, e a coluna de fogo que
conduziu os filhos de Israel a Canaã, não brilharam apenas, mas foram
adiante deles (Mt. 2:9; Êx. 13:21). A voz de Jacó fará pouca coisa boa, se as
mãos forem de Esaú. Na lei, ninguém que tivesse alguma mancha poderia
oferecer as oblações ao Senhor (Lv. 21:17-20); por meio dessas coisas, o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 23
Senhor nos ensina quais dons e graças devem existir em Seus ministros. O
sacerdote devia ter em suas vestes campainhas e romãs, umas figurando
doutrina sã, outras simbolizando vida frutífera (Êx. 28:33-34). O Senhor será
santificado naqueles que andam junto dEle (Is. 52:111; pois os pecados dos
sacerdotes levam o povo a aborrecer as ofertas ao Senhor (1 Sm. 2:17).
Suas vidas ímpias lançam vergonha sobre a sua doutrina. Passionem Christi
annunciant profitendo, male agendo exhonorant, como diz Agostinho – com
a sua doutrina edificam, e com as suas vidas destroem. Concluo este ponto
com a salutar passagem de Hierom ad Nepolianum. Não permitas, diz ele,
que as tuas obras envergonhem a tua doutrina, para que os que te ouvem
na igreja não te respondam tacitamente: Por que não praticas o que ensinas
a outros? É bom demais o mestre que persuade outros a jejuarem, estando
ele de barriga cheia. Um ladrão pode denunciar a cobiça. Sacerdotis Christi
os, mens, manusque concordent. A língua, o coração e a mão do sacerdote
de Cristo devem concordar entre si".
Muito apropriada também é a linguagem de Thomas Playfere em
sua obra: "Fale bem, Aja bem". "Havia um ridículo ator na cidade de
Esmirna que, quando pronunciava: Ó coelum! Ó céu! apontava com o
dedo para o chão; o que vendo Polemo, o principal vulto da localidade,
não pôde ficar ali por mais tempo e saiu muito irritado, dizendo: "Este
tolo cometeu solecismo com a mão, e falou falso latim com o dedo".
Assim são os que ensinam bem e agem mal. Esses, apesar de terem o céu
na ponta da língua, têm a terra na ponta do dedo. Os tais não só falam
falso latim com a língua, mas falam falsa teologia com as mãos. Esses
vivem em desacordo com o que pregam. Mas Aquele que tem o Seu
trono no céu rir-se-á deles com desdém, e os varará expulsando-os do
palco, se não corrigirem o seu procedimento. Mesmo nas pequenas
coisas o ministro deve cuidar que sua vida esteja em harmonia com o seu
ministério.
Deve ter especialmente o cuidado de nunca faltar com a palavra.
Isto deve ser levado ao escrúpulo extremo. Não conseguiremos exagerar
nisto. A verdade não somente deve estar em nós; deve também irradiar-
se de nós. Em Londres, um célebre doutor em teologia que agora está no
céu, não tenho dúvida – homem excelente e muito piedoso comunicou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 24
num domingo que tencionava visitar todos os membros da sua igreja, e
disse que, a fim de poder informá-los e visitá-los e suas famílias uma vez
por ano, deveria seguir a ordem na lista de "bancos cativos".
Uma pessoa que conheço bem, nesse tempo um homem pobre,
apreciou muito a idéia de que o ministro ia à sua casa para vê-lo, e, uma
ou duas semanas antes da ocasião que ele imaginava que seria a sua vez,
sua mulher esmerou-se muito em limpar a lareira e em manter a casa
bem arrumada, e o homem corria logo para casa ao sair do serviço todas
as tardes, esperando encontrar lá o doutor. Isto continuou acontecendo
durante considerável tempo. Ou o teólogo esqueceu a promessa, ou foi-
se cansando de levá-la a efeito, ou por alguma outra razão nunca foi à
casa daquele homem pobre. O resultado foi este: o homem perdeu a
confiança em todos os pregadores, e dizia: "Eles cuidam dos ricos, mas
não cuidam de nós, os pobres".
Por muitos anos aquele homem não se firmou em nenhum local de
culto, até que um dia caiu no Exeter Hall e durante anos foi meu ouvinte,
até que a Providência o removeu. Não foi tarefa pequena fazê-lo crer que
todo ministro podia ser sincero e amar imparcialmente ricos e pobres.
Tratemos de evitar esse mal, dando cuidadosa atenção à nossa palavra
pessoal. Devemos lembrar-nos de que somos muito observados.
Dificilmente os homens têm o descaramento de transgredir a leí à plena
vista dos seus semelhantes; todavia, nós vivemos e nos movemos nessa
publicidade. Milhares de olhos de águias nos vigiam. Procedamos de
modo que nunca precisemos ter preocupação sobre se todo o céu, terra e
inferno alongam a lista de espectadores. A nossa posição pública é
grande ganho, caso sejamos habilitados a mostrar os frutos do Espírito
Santo em nossas vidas. Tenham cuidado, irmãos, para não suceder que
joguem fora a vantagem.
Meus caros irmãos, quando lhes dizemos que cuidem bem da sua
vida, queremos dizer que sejam cuidadosos até com as minudências do
seu caráter. Evitem as pequenas dívidas, a impontualidade, fazer
mexericos, dar apelidos, contendas minúsculas, e todos aqueles pequenos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 25
males que enchem de moscas o ungüento. As auto-indulgências que têm
rebaixado a reputação de muitos, não podemos tolerar. As familiaridades
que têm lançado suspeita sobre outros, temos que evitar castamente. Da
grosseria que tem tornado alguns odiosos, e das futilidades que tornaram
muitos desprezíveis, temos que nos descartar. Não podemos permitir-nos
correr grandes riscos por causa de pequenas coisas. Tenhamos o cuidado
de conduzir-nos de acordo com a regra: "Não dando nós escândalo em
coisa alguma, para que o nosso ministério não seja censurado".
Com isto não se quer dizer que devemos manter-nos presos a
quaisquer caprichos da sociedade em que nos movemos. Em regra, odeio
as modas da sociedade e detesto os convencionalismos, e se eu achasse
que a melhor atitude seria pisar numa regra de etiqueta, sentir-me-ia
gratificado ao fazê-lo. Não; somos homens, não escravos; e não devemos
renunciar à nossa liberdade varonil para sermos lacaios dos que fingem
gentileza ou alardeiam polidez. Entretanto, irmãos, de tudo que se
aproxima da grosseria que cheira a pecado temos que fugir como
fugiríamos de uma víbora. Para nós as regras de Chesterfield são
ridículas; não, porém, o exemplo de Cristo. Ele nunca foi grosseiro,
baixo, descortês ou indelicado.
Mesmo em vossas recreações, lembrem-se de que são ministros.
Quando estão fora da mira, ainda continuam sendo oficiais do exército
de Cristo, e, como tais, não se rebaixem. Mas, se devemos observar com
cautela as coisas mínimas, quanto cuidado devemos ter nas grandes
questões da moralidade, da honestidade e da integridade! Nestas é
preciso que o ministro não falhe. Sua vida particular deve estar sempre
em harmonia com o seu ministério, ou, do contrário, o seu dia se porá
com ele, e quanto mais cedo se afastar, melhor, pois a sua permanência
nesse ofício servirá somente para desonrar a causa de Deus e ocasionar a
ruína de si mesmo,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 26
O CHAMADO PARA O MINISTÉRIO

Todo cristão capaz de disseminar o evangelho tem direito de fazê-


lo. Ainda mais, não só tem direito, mas é seu dever fazê-lo enquanto
viver (Ap. 22:17). A propagação do evangelho foi entregue, não a uns
poucos, mas a todos os discípulos do Senhor Jesus Cristo. Segundo a
medida da graça a ele confiada pelo Espírito Santo, cada discípulo tem a
obrigação de ministrar em seu tempo e geração, à igreja e entre os
incrédulos. Na verdade, esta questão vai além dos varões, incluindo
todos os elementos do outro sexo. Sejam os crentes homens ou mulheres,
quando capacitados pela graça divina, estão todos obrigados a esforçar-
se ao máximo para divulgar o conhecimento do Senhor Jesus Cristo.
Todavia, o nosso serviço não assume necessariamente a forma
particular da pregação. Seguramente, em alguns casos é preciso que não,
como por exemplo no caso das mulheres, cujo ensino público é
expressamente proibido: 1 Tm. 2:12; 1 Co. 14:34. Mas, se temos
capacidade para pregar, é mister exercitá-la. Contudo, nesta preleção não
me refiro a prédicas ocasionais, nem a quaisquer outras formas de
ministério comuns a todos os santos, mas ao trabalho e ofício do
episcopado, em que se incluem o ensino e o governo da igreja, exigindo
a dedicação da vida inteira do homem à obra espiritual, e que ele se
separe de todas as carreiras seculares (2 Tm. 2:4). Trabalho e oficio que
autorizam o obreiro a contar totalmente com a igreja de Deus para o
suprimento das suas necessidades temporais, visto que ele dá todo o seu
tempo, energia e esforços para o bem daqueles que estão sob a sua
direção (1 Co. 9:11; 1 Tm. 5:18).
A um homem assim Pedro se dirige com estas palavras:
"Apascentai o rebanho de Deus, que está entre vós, tendo cuidado dele"
(1 Ped. 5:2). Ora, nem todos de uma igreja podem superintender ou
governar; alguns têm que ser dirigidos ou governados. E cremos que o
Espírito Santo designa na igreja de Deus alguns para agirem como
superintendentes, e outros para se submeterem à vigilância de outros,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 27
para o seu próprio bem. Nem todos são chamados para trabalhar na
palavra e na doutrina, ou para serem presbíteros, ou para exercerem o
cargo de bispo. Tampouco devem todos aspirar a essas obras, uma vez
que em parte nenhuma os dons necessários são prometidos a todos. Mas
aqueles que, como o apóstolo, crêem que receberam "este ministério" (2
Co. 4:1), devem dedicar-se a essas importantes ocupações. Homem
nenhum deve intrometer-se no rebanho como pastor; deve ter os olhos
postos no Sumo Pastor, e esperar Seu sinal e Sua ordem. Antes que um
homem assuma a posição de embaixador de Deus, deve esperar pelo
chamamento do alto. Se não o fizer, mas se se lançar às pressas ao cargo
sagrado, o Senhor dirá dele e de outros semelhantes: "Eu não os enviei,
nem lhes dei ordem; e não trouxeram proveito nenhum a este povo diz o
Senhor" (Jr. 23:32).
Consultando o Velho Testamento, vocês verão os mensageiros de
Deus, da velha dispensação, reivindicando comissionamento da parte de
Jeová. Isaías conta-nos que um dos serafins tocou os seus lábios com
uma brasa viva tirada do altar, e que a voz do Senhor lhe disse: "A quem
enviarei, e quem há de ir por nós?" (Isa. 6:8). Então disse o profeta:
"Eis-me aqui, envia-me a mim". Não se apressou antes de ter sido
visitado dessa maneira tão especial pelo Senhor, e de ser por Ele
qualificado para a sua missão. "Como pregarão, se não forem
enviados?", são palavras que ainda não tinham sido enunciadas, mas o
seu solene significado era bem compreendido.
Jeremias narra em detalhe a sua vocação no primeiro capítulo do
seu livro:
"Assim veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Antes que te
formasse no ventre te conheci, e antes que saísses da madre, te santifiquei;
às nações te dei por profeta. Então disse eu: Ah Senhor Jeová! Eis que não
sei falar; porque sou uma criança. Mas o Senhor me disse: Não digas: eu
sou uma criança; porque aonde quer que eu te enviar, irás; e tudo quanto te
mandar dirás. Não temas diante deles, porque eu sou contigo para te livrar,
diz o Senhor. E estendeu o Senhor a sua mão, e tocou-me na boca; e disse-
me o Senhor: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Olha, ponho-te
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 28
neste dia sobre as nações, e sobre os reinos, para arrancares, e para
derribares, e para destruíres, e para arruinares; e também para edificares e
para plantares" (Jr. 1:4-10).
Diferindo em sua forma externa, mas com o mesmo propósito, foi a
comissão de Ezequiel. É como se segue, em suas palavras:
"E disse-me: Filho do homem, põe-te em pé, e falarei contigo. Então
entrou em mim o Espírito, quando falava comigo, e me pôs em pé, e ouvi o
que me falava. E disse-me: Filho do homem, eu te envio aos filhos de Israel,
às nações rebeldes que se rebelaram contra mim, até este mesmo dia" (Ez.
2:1.3). "Depois me disse: Filho do homem, come o que achares; come este
rolo, e vai, fala à casa de Israel. Então abri a minha boca, e me deu a comer
o rolo. E disse-me: Filho do homem, dá de comer ao teu ventre, e enche as
tuas entranhas deste rolo que eu te dou. Então o comi, e era na minha boca
doce como o mel. E disse-me: Filho do homem, vai, entra na casa de Israel,
e dize-lhes as minhas palavras" (Ez. 3:1-4).
A vocação de Daniel para profetizar, conquanto não registrada, é
fartamente atestada pelas visões a ele outorgadas, e pelo grandíssimo
favor que desfrutava da parte do Senhor, quer nas suas meditações
solitárias, quer nos atos públicos.
Não há necessidade de passar em revista todos os outros profetas,
pois todos se arrogavam falar com a autoridade do "assim diz o Senhor".
Na presente dispensação, o sacerdócio é comum a todos os santos. Mas,
profetizar, ou fazer aquilo que se lhe assemelha, a saber, ser movido pelo
Espírito Santo para entregar-se totalmente à proclamação do evangelho,
é, na verdade, dom e vocação de apenas um número relativamente
pequeno. E certamente estes precisam estar tão seguros da veracidade da
sua posição como os profetas estavam da sua. E mais, como podem
justificar o seu ministério, senão por um chamamento semelhante?
Tampouco ninguém imagine que essas vocações são simples ilusão,
e que em nossa época ninguém é separado para a peculiar obra de ensino
e direção da igreja, pois os próprios nomes dados no Novo Testamento
aos ministros implicam em uma prévia vocação para a sua obra. Diz o
apóstolo: "De sorte que somos embaixadores da parte de Cristo, como se
Deus por nós rogasse". Não é fato, porém, que a própria alma do oficio
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 29
de embaixador repousa na nomeação feita pelo governo representado?
Um embaixador não enviado seria objeto de riso. Homens que ousam
declarar-se embaixadores de Cristo precisam compreender mais
profundamente que o Senhor lhes "entregou" a palavra da reconciliação
(2 Co. 5:18-19). Se se disser que isto se restringiu aos apóstolos,
respondo que a epístola foi escrita, não só em nome de Paulo, mas
também de Timóteo, e daí incluí outros ministérios além do apostolado.
Na primeira epístola aos Coríntios lemos: "Que os homens nos (nos aqui
significando Paulo e Sóstenes, 1 Co. 1:1) considerem como ministros de
Cristo, e despenseiros dos mistérios de Deus" (1 Co. 4:1). Certamente o
despenseiro deve considerar o seu oficio como da parte do Senhor. Não
pode ser despenseiro simplesmente porque o decide ser, ou porque
outros o consideram tal. Se a nós mesmos nos elegêssemos despenseiros
do Marquês de Westminster e começássemos a tratar da propriedade
daquele nobre, imediatamente o erro ser-nos-ia lançado em rosto da
maneira mais convincente. É evidente que precisa haver autorização
antes de alguém poder tornar-se legítimo bispo, "despenseiro da casa de
Deus" (Tt. 1:7).
O título apocalíptico de anjo (Ap. 2:1) significa mensageiro; e
como os homens hão de ser arautos de Cristo, senão por Sua eleição e
ordenação? Se a referência da palavra anjo ao ministro for contestada,
gostaríamos, que fosse demonstrado que ela se relaciona com qualquer
outra pessoa. A quem da igreja o Espírito escreveria como representante
dela, senão a alguém que ocupava posição análogo à do oficial
presidente? Tito recebeu a incumbência de dar prova cabal do seu
ministério; havia certamente algo que provar. Há quem seja "vaso para
honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para toda a
boa obra" (2 Tm. 2:21). Não se deve recusar ao Senhor a escolha dos
vasos que usa; Ele sempre dirá de certos homens o que disse de Saulo de
Tarso: "Este é para mim um vaso escolhido, para levar o meu nome
diante dos gentios, e dos reis e dos filhos de Israel" (At. 9:15).
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 30
Quando o nosso Senhor subiu às alturas deu dons aos homens, e é
digno de nota que estes dons foram homens separados para obras
diversas. "E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e
outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores" (Ef. 4:11);
disso fica evidente que certos indivíduos são, como resultado da
ascensão do Senhor, dados às igrejas como pastores; dados por Deus, e,
conseqüentemente, não se elevam a si mesmos a essa posição. Irmãos,
espero em que um dia possam falar do "rebanho sobre que o Espírito
Santo" os constituiu bispos (At. 20:28), e oro no sentido de que cada um
de vocês possa dizer com o apóstolo dos gentios, que o seu ministério
não é da parte dos homens, nem por homem algum, mas o recebeu do
Senhor (Gl. l :1). Oxalá se cumpra em vocês aquela antiga promessa: "E
vos darei pastores segundo o meu coração" (Jr. 3:15). "E levantarei sobre
elas pastores que as apascentem" (Jr. 23:4) Que o Senhor mesmo cumpra
em suas pessoas a Sua declaração: "Ó Jerusalém! sobre os teus muros
pus guardas, que todo o dia e toda a noite de contínuo se não calarão".
Oxalá vocês possam apartar o precioso do vil e assim ser como a boca de
Deus (Jr. 15:19). Oxalá o Senhor manifeste por intermédio de vocês o
aroma do conhecimento de Jesus em todo lugar, e os faça "o bom cheiro
de Cristo, nos que se salvam e nos que se perdem" (2 Co. 2:15). Tendo
um inapreciável tesouro em vasos de barro, que a excelência do poder
divino pouse sobre vocês, e assim, glorifiquem a Deus e também se
livrem do sangue de todos os homens. Como o Senhor Jesus subiu ao
monte e chamou os que quis, e depois os mandou a pregar (Mc. 3:13),
assim também que Ele vos escolha – a vocês chamando-vos para cima,
para a comunhão com Ele, e vos envie como Seus servos escolhidos para
bênção da igreja e do mundo.
Como pode o jovem saber se é vocacionado ou não? É uma
indagação ponderável, e desejo tratá-la mui solenemente. Oh, a divina
orientação para fazê-lo! O fato de que centenas perderam o rumo e
tropeçaram num púlpito, está patenteado tristemente nos ministérios
infrutíferos e nas igrejas decadentes que nos cercam. Errar na vocação é
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 31
terrível calamidade para o homem, e, para a igreja sobre a qual ele se
impõe, seu erro envolve aflição das mais dolorosas. Seria um curioso e
penoso tema para reflexão – a freqüência com que homens dotados de
razão enganam-se quanto à finalidade da sua existência e miram coisas
que nunca deveriam ter buscado, O escritor que redigiu os seguintes
versos por certo estava com os olhos postos em muitos púlpitos
ocupados indevidamente:
Mostrai ó sábios, se podeis,
entre animais de toda espécie
e condição, tamanho e classe,
desde elefantes a mosquitos,
um ser que tanto erre nos planos,
e tantas vezes, como o homem.
Cada animal quer o bem próprio
– busca prazer, ração, repouso,
que a natureza indica e mostra,
sem nunca errar na escolha feita.
Só o homem falha, embora tenha razão acima dos demais.

Descei a exemplos e provai:


O boi jamais tenta voar,
não deixa os pastos na campina
nem com os peixes sonda as águas.
Dos animais, só o homem age oposto à sua natureza.

Quando penso no prejuízo, que por pouco não é infinito, que pode
resultar do erro quanto à nossa vocação para o pastorado cristão,
domina-me o temor de que algum de nós tenha sido negligente no exame
de suas credenciais. Preferiria que vivêssemos em dúvida e nos
examinássemos muitíssimas vezes, do que tornarmos empecilhos no
ministério. Não faltam numerosos métodos pelos quais o homem pode
testar sua vocação para o ministério, se ardorosamente o quiser fazer. É-
lhe imperativo que não entre no ministério enquanto não fizer profunda
sondagem e prova de si próprio quanto a este ponto. Estando seguro da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 32
sua salvação pessoal, deve investigar quanto à questão subseqüente da
sua vocação para o ofício; a primeira é-lhe vital como cristão, e a
segunda lhe é igualmente vital como pastor. Ser pastor sem vocação é
como ser membro professo e batizado sem conversão. Nos dois casos há
um nome, e nada mais.
1. O primeiro sinal da vocação celeste é um desejo intenso e
absorvente de realizar a obra. Para se constatar um verdadeiro
chamamento para o ministério é preciso que haja uma irresistível,
insopitável, ardente e violenta sede de contar aos outros o que Deus fez
por nossas almas. Que tal se eu apelidar isso de uma espécie de ternura,
como a que os pássaros têm pela criação dos seus filhotes quando chega
a estação própria; quando a ave mãe está disposta a morrer, antes de
abandonar o ninho.
Alguém que conheceu Alleine intimamente disse que ele tinha
infinita e insaciável avidez pela conversão de almas". Quando pôde ter
participação societária na universidade em que estava, preferiu uma
capelania, porque "o inspirava uma impaciência por ocupar-se
diretamente na obra ministerial". "Não entre no ministério se puder
passar sem ele", foi o conselho profundamente sábio de um teólogo a
alguém que procurou a sua opinião. Se alguém neste recinto puder ficar
satisfeito sendo redator de jornal, merceeiro, fazendeiro, médico,
advogado, senador ou reí, em nome do céu e da terra, siga o seu
caminho. Não é homem em quem habita o Espírito de Deus em Sua
plenitude, pois o homem assim revestido da plenitude de Deus ficaria
inteiramente enfadado com qualquer carreira que não aquela pela qual o
âmago da sua alma palpita.
Por outro lado, se você puder dizer que nem por toda a riqueza da
Índia poderia ou ousaria esposar qualquer outra carreira, a qual o
apartasse da pregação do evangelho de Jesus Cristo, fique certo então
que se noutras coisas o exame for igualmente satisfatório, você tem os
sinais do apostolado. Devemos estar convictos que a desonra virá sobre
nós se não pregarmos o evangelho. A Palavra de Deus deve ser como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 33
fogo em nossos ossos, do contrário, se nos aventurarmos no ministério,
seremos infelizes nisso, seremos incapazes de suportar as diversas
formas de abnegação que lhe são próprias, e prestaremos pouco serviço
aqueles aos quais ministramos. Falo de formas de abnegação, e digo
bem, pois o trabalho do verdadeiro pastor está repleto delas, e, se não
amar a sua vocação, logo sucumbirá ou desistirá da luta, ou prosseguirá
descontente, sob o peso de uma monotonia tão fastidiosa como a de um
cavalo cego girando um moinho.
"Na força do amor há consolação
que torna suportável uma coisa
que a qualquer outro rompe o coração."
Cingidos desse amor, vocês serão intrépidos; despidos desse cinto
mais que mágico da vocação irresistível, consumir-se-ão na desventura.
Este desejo deve resultar de reflexão. Não deve ser um impulso
repentino desajudado por uma ponderação ansiosa. Deve ser o resultado
do nosso coração em seus melhores momentos, o objeto de nossas
reverentes aspirações, o assunto de nossas mais ferventes orações. Deve
continuar conosco quando tentadoras ofertas de riqueza e comodidade
entrarem em conflito com ele, e deve permanecer como uma resolução
serena e bem pensada depois de tudo ter sido avaliado em suas
proporções certas, e o preço muito bem calculado.
Quando morava com meu avô no campo, na meninice, vi um grupo
de caçadores, com seus casacos vermelhos, cavalgando pelos campos
atrás de uma raposa. Foi uma delícia para mim! Meu pequeno coração
excitou-se; senti-me disposto a seguir os cães de caça, saltando barreiras
e cruzando valas. Sempre tive gosto natural por essa espécie de
atividade, e, na minha infância, quando me perguntavam o que eu queria
ser, costumava dizer que ia ser caçador. Bela profissão, na verdade!
Muitos jovens têm a mesma idéia de serem clérigos, como eu de ser
caçador – simples noção infantil, de que gostariam do casaco e do toque
das cornetas; da honra, do respeito e da tranqüilidade; e talvez sejam
bastante tolos para pensar – gostariam das riquezas do ministério (só
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 34
podem ser ignorantes, se buscam riqueza com relação ao ministério
evangélico). O fascínio exercido pelo ofício de pregador é muito grande
para as mentes fracas, razão por que energicamente advirto a todos os
jovens a não confundirem fantasia com inspiração, e preferência infantil
com vocação do Espírito Santo.
Notem bem, o desejo de que falei deve ser totalmente
desinteressado. Se um homem perceber, depois do mais severo exame de
si próprio, qualquer outro motivo que a glória de Deus e o bem das almas
em sua busca do episcopado, melhor será que se afaste dele de uma vez,
pois o Senhor aborrece a entrada de compradores e vendedores em Seu
templo. A introdução de qualquer coisa que cheire a mercenário, mesmo
no menor grau, será como um inseto no ungüento, estragando-o de todo.
Esse desejo deve ser tal que permaneça conosco, uma paixão que
agüente o teste da provação, um anelo "do qual nos seja completamente
impossível fugir, ainda que o tentemos; desejo, na verdade, que se torna
cada vez mais intenso conforme os anos passem, até tornar-se um anseio,
uma anelante aspiração, uma consumidora fome de proclamar a Palavra.
Esse desejo intenso é uma coisa tão nobre e tão bela que, toda vez que o
percebo inflamar-se no peito de algum jovem, sempre me contenho, não
me apressando a desanimá-lo, mesmo que tenha dúvidas quanto à sua
capacidade. Talvez seja necessário, por razões que lhes serão dadas mais
adiante, sufocar as chamas, mas isto deve ser feito com relutância e com
sabedoria. Tenho tão profundo respeito por este "fogo nos ossos" que, se
eu mesmo não o sentisse, teria que abandonar de uma vez o ministério.
Se vocês não sentem o calor sagrado, rogo-lhes que voltem para casa e
sirvam a Deus em suas respectivas esferas. Mas se com certeza, as brasas
de zimbro chamejam por dento, não as apaguem, a menos que, de fato,
outras considerações de grande importância lhes provem que o desejo
que têm não é fogo de origem celestial.

2. Em segundo lugar, em combinação com o desejo ardente de ser


pastor, é preciso que haja aptidão para ensinar e certa medida das
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 35
outras qualidades necessárias ao oficio de instrutor público. Para provar
sua vocação o homem precisa testá-la com êxito. Não pretendo que na
primeira vez que um homem se levantar para falar, pregue tão bem como
Robert Hall em seus últimos tempos. Se a sua pregação não for pior do
que o grande homem fez no início da sua careira, não deve ser
condenado.
Vocês sabem que Robert Hall fracassou completamente três vezes,
e clamava: "Se isto não me humilhar, nada mais me humilhará". Alguns
dos mais nobres oradores não foram dos mais fluentes nos seus primeiros
tempos. Mesmo Cícero no início padecia de voz fraca e dificuldade de
elocução. Contudo, ninguém deve considerar-se chamado para pregar
enquanto não provar que pode falar em público. Claro que Deus não
criou o hipopótamo para voar, e se o leviatã tivesse forte desejo de subir
aos ares com a calandra, evidentemente seria uma inspiração insensata,
visto que não é dotado de asas. Se um homem for vocacionado para
pregar, será dotado de capacidade em algum grau para falar, capacidade
que ele cultivará e desenvolverá. Se o dom de elocução não existir no
início em alguma medida, não é provável que venha a desenvolver-se.
Ouvi falar de um cavalheiro que tinha o mais intenso desejo de
pregar, e tanto insistiu com o seu pastor que, depois de múltiplas recusas,
conseguiu licença para pregar um sermão de prova. Essa oportunidade
foi o fim da sua importunação, pois, depois de anunciar o texto, viu-se
privado de todas as idéias menos uma, que ele transmitiu sentidamente, e
em seguida desceu da tribuna: "Meus irmãos", disse ele, "se algum de
vocês pensa que é fácil pregar, aconselho-o a vir até aqui para perder
toda a vaidade."
A prova a que submetem as suas capacidades revelará a sua
deficiência, se vocês não tiverem a aptidão necessária. Não conheço
nada melhor. Devemos dar-nos a nós próprios uma boa prova nesta
questão, ou não poderemos saber com certeza se Deus nos chamou ou
não; e durante a prova, devemos perguntar-nos a nós mesmos muitas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 36
vezes se, de modo geral, podemos alimentar a esperança de edificar
outros com os nossos discursos.
Contudo, devemos fazer mais do que submeter isso à nossa
consciência e ao nosso julgamento, pois somos juízes ineptos. Certa
classe de irmãos tem grande facilidade para descobrir que tem sido
maravilhosa e divinamente auxiliada em suas declamações. Eu invejaria
a gloriosa liberdade e a confiança própria desses irmãos, se houvesse
algum fundamento para isso. Pois, lastimavelmente, com muita
freqüência tenho que deplorar e lamentar minha falta de sucesso e meus
fiascos como orador. Não devemos confiar muito em nossa própria
opinião, mas se pode aprender muito de pessoas judiciosas e de índole
espiritual. De modo nenhum é isto uma leí que deva obrigar a todas as
pessoas, mas ainda assim é um bom e antigo costume em muitas das
nossas igrejas rurais, o jovem que aspira ao ministério pregar perante a
igreja. Dificilmente é um ensaio agradável ao jovem aspirante, e, em
muitos casos, mal chega a ser um exercício edificante para o povo;
todavia, pode dar provas de que é um recurso disciplinar dos mais
salutares, e poupa a exposição pública da ignorância excessiva. O livro
de atas da igreja de Arnsby contém o seguinte registro:
Breve relato do chamamento de Robert Hall Junior para a obra do
ministério, pela Igreja de Arnsby, 13 de agosto de 1780.
"O referido Robert Hall nasceu em Arnsby em 2 de maio de 1764;
desde pequeno foi, não somente sério e dado à oração em secreto antes
mesmo de poder falar com clareza, mas também foi sempre totalmente
inclinado à obra do ministério. Começou a compor hinos antes de completar
sete anos de idade e neles revelou sinais de piedade, de pensamento
profundo e de gênio. Entre oito e nove anos fez vários hinos, que foram
admirados por muitos, um dos quais foi publicado na Revista do Evangelho
(Gospel Magazine) aproximadamente na mesma época. Escreveu expondo
os seus pensamentos sobre vários assuntos religiosos e sobre porções
seletas da Escritura. Tinha também intensa propensão para os estudos, e
fez tanto progresso, que o mestre-escola provinciano de quem ele era aluno
não pode instruí-lo mais. Então foi enviado à escola-internato de
Northampton, ficando aos cuidados do Rev. John Ryland, onde passou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 37
cerca de um ano e meio, e alcançou grande progresso em latim e grego. Em
outubro de 1778, foi para a Academia de Bristol, sob os cuidados do Rev.
Evans; e, em 13 de agosto de 1780, foi comissionado ao ministério por esta
igreja, estando ele com dezesseis anos e três meses de idade. A maneira
pela qual a igreja chegou a ficar satisfeita com a capacidade dele para a
grande obra foi por ter ele pregado, quando lhe tocou a vez, nas reuniões de
conferências, sobre várias porções da Escritura; nas quais, e na oração,
havia participado por quase quatro anos antes; e, quando em casa, tendo
pregado a pedido dos irmãos muitas vezes nas manhãs do dia do senhor,
para grande satisfação deles. Portanto, eles pediram calorosamente e
unânimes que ele fosse solenemente separado para o serviço da
comunidade. Com efeito, no dia acima referido, ele foi examinado por seu
pai perante a igreja quanto à sua inclinação, seus motivos e seus fins em
vista, com referência ao ministério, sendo-lhe mostrado igualmente o desejo
de que ele fizesse uma declaração dos seus sentimentos religiosos. Tendo-
se feito tudo, para inteira satisfação da igreja, consagraram-no, pois,
levantando as mãos direitas e com oração solene. Depois o seu pai fez-lhe
um discurso baseado em 2 Tm. 2:1: "Tu, pois meu filho, fortifica-te na graça
que há em Cristo Jesus". Sendo-lhe assim confiada a obra ministerial,
pregou de tarde sobre 2 Ts. 1:7.8. "Que o Senhor o abençoe e lhe conceda
grande sucesso!!"

Considerável importância deve ser dada ao julgamento feito por


homens e mulheres que vivem perto de Deus, e, na maioria dos casos, o
seu veredicto não será errôneo. Contudo, este recurso não é final nem
infalível, e deve ser avaliado somente em proporção à inteligência e à
piedade das pessoas consultadas. Lembro-me bem do empenho com que
uma certa piedosa matrona cristã me dissuadiu de pregar. Esforcei-me
para avaliar a importância da opinião dela com simplicidade e paciência
– opinião essa sobrepujada, porém, pelo julgamento emitido por pessoas
de maior experiência. Os jovens em dúvida devem fazer-se acompanhar
dos seus mais sábios amigos quando vão à igreja rural ou ao salão de
cultos da vila e tentam transmitir a Palavra.
Já notei – e o meu amigo Rogers observou a mesma coisa – que
vocês, cavalheiros, estudantes, como corpo estudantil, no julgamento que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 38
fazem uns dos outros raramente erram, se é que erram alguma vez.
Raramente houve um caso, tomada a instituição de modo global, em que
a opinião geral da escola toda sobre um irmão foi errada. Os homens não
são tão incapazes de formar opinião uns dos outros, como às vezes se
pensa. Reunindo-se como o fazem em classe, nas reuniões de oração, nas
conversas e nas várias atividades religiosas, vocês se avaliam uns aos
outros; e o prudente não se apressará a desprezar o veredicto da casa.
Este ponto não estará completo se eu não acrescentar que a simples
capacidade para edificar e a aptidão para ensinar não bastam. São
necessários outros talentos para completar a personalidade do pastor.
Critério sadio e sólida experiência devem instruí-lo; maneiras gentis e
qualidades amáveis devem governá-lo; firmeza e coragem devem ser
manifestas; e não devem faltar ternura e simpatia. Os dons
administrativos para governar bem são condições tão necessárias como
os dons instrutivos para ensinar bem. Vocês devem ser aptos para dirigir,
devem estar preparados para agüentar, e devem ser capazes de
perseverar. Quanto à graça, vocês devem estar cabeça e ombros acima do
restante do povo, capazes de ser seu pai e seu conselheiro. Leiam
cuidadosamente as qualificações do bispo, registradas em 1 Tm. 3:2-7 e
Tt. 1:6-9. Se esses dons e graças não estiverem em vocês, e com
abundância, é possível que tenham bom êxito como evangelistas, mas
como pastores não terão nenhum valor.

3. Ainda para provar a vocação de alguém, depois de exercitar um


pouco os seus dons, como já lhes falei, é preciso que o aspirante veja
realizar-se certo número de conversões sob os seus esforços, ou poderá
concluir que cometeu um engano e, daí, poderá retornar pelo melhor
caminho que puder encontrar. Não se espera que no primeiro, e mesmo
no vigésimo esforço em público, sejamos premiados com o sucesso; e
pode ocorrer que um homem tenha uma vida inteira de provação, se se
sentir chamado para tanto, mas a mim me parece que quando alguém for
separado para o ministério, seu comissionamento estará sem selos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 39
enquanto almas não forem ganhas por sua instrumentalidade para o
conhecimento de Jesus. Como obreiro, deve continuar trabalhando, quer
tenha sucesso ou não, mas como ministro, não pode ter certeza da sua
vocação enquanto não houver resultados patentes.
Como o meu coração pulou de alegria quando ouvi as novas da
primeira conversão que se deu por meu intermédio! Nunca pude ficar
satisfeito com o templo cheio, e com as bondosas expressões dos
amigos; ansiava por ouvir de corações quebrantados, de lágrimas
correndo dos olhos dos penitentes. Muito me regozijei, como alguém que
acha grande presa, devido a uma pobre mulher de operário ter
confessado que sentira a culpa do seu pecado e encontrara o Salvador
com a minha dissertação de domingo à tarde.
Tenho agora na retina a cabana em que ela morava; creiam-me,
sempre me parece pitoresca. Lembro-me bem da sua recepção na igreja,
da sua morte e da sua partida para o lar celestial. Ela foi o primeiro selo
do meu ministério, e, posso garantir-lhes, selo na verdade muito
precioso. Mãe nenhuma jamais ficou mais cheia de felicidade com o
nascimento do seu primogênito. Na ocasião eu poderia ter entoado o
cântico de Maria, pois minha alma engrandeceu o Senhor por ter Se
lembrado de mim em minha baixeza, e ter-me dado a grande honra de
fazer um trabalho pelo qual todas as gerações me chamariam bem-
aventurado, pois assim avaliei a conversão de uma alma.
É preciso que haja certo número de conversões em seus trabalhos
ocasionais antes de poderem acreditar que a pregação deve constituir a
carreira da sua existência toda. Recordem as palavras do Senhor
mediante o profeta Jeremias; são muito pertinentes ao ponto de que
estamos tratando, e deveriam alarmar todos os pregadores infrutíferos.
"Não mandei os profetas, e todavia eles foram correndo: não lhes falei a
eles, e todavia eles profetizaram. Mas se estivessem no meu conselho,
então fariam ouvir as minhas palavras ao meu povo, e os fariam voltar
do seu mau caminho, e da maldade das suas ações" (Jr. 23:21-22). Para
mim é uma maravilha ver como há homens que continuam tranqüilos a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 40
obra da pregação ano após ano, sem conversões. Não têm eles entranhas
de compaixão pelos outros? Não têm senso de responsabilidade por si
mesmos? Ousam eles, por uma falsa representação da soberania divina,
lançar a culpa sobre o seu Senhor? Ou acreditam eles que Paulo planta,
Apolo rega, e Deus não dá o crescimento? Inúteis são os seus talentos, a
sua filosofia, a sua retórica, e até a sua ortodoxia, sem os sinais que
devem seguir-se.
Como são enviados de Deus os que não trazem homens a Deus?
Profetas cujas palavras são vazias de poder, semeadores cujas sementes
fenecem todas, pescadores que não pescam peixes, soldados que não
ferem – são homens de Deus, estes? Certamente melhor seria trabalhar
como lixeiro ou limpador de chaminé, do que ficar no ministério como
uma árvore completamente estéril. A ocupação mais simples confere
algum beneficio à humanidade, mas o infeliz que ocupa um púlpito e
nunca glorifica o seu Deus com conversões, é um vazio, uma nódoa, uma
feiúra, uma injúria. Não vale o sal que come, muito menos o pão. E se
escreve aos jornais para queixar-se da pequenez do seu salário, sua
consciência, se é que tem alguma, bem poderia replicar: "E o que você
ganha, não merece". Tempos de seca podem ocorrer; sim, e anos de
escassez podem consumir os prévios anos de produtividade. Mas ainda
haverá fruto em geral e fruto para a glória de Deus. Nesse meio tempo, a
esterilidade transitória encherá a alma de indizível angústia.
Irmãos, se o Senhor não lhes de zelo pelas almas, agarrem-se à
pedra de bater sola, ou à colher de pedreiro, mas evitem o púlpito com a
mesma resolução com que valorizam a sua paz de coração e a sua
salvação futura.

4. Contudo, é preciso ir um passo além disso tudo em nossa


pesquisa. A vontade do Senhor referente aos pastores é conhecida
mediante o piedoso julgamento da Sua Igreja. É necessário, como prova
da sua vocação, que a sua pregação seja aceitável ao povo de Deus.
Deus normalmente abre as portas da elocução para aqueles que Ele
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 41
chama para falarem em Seu nome. A impaciência forçaria a abertura da
porta, ou a porta abaixo, mas a fé espera no Senhor, e na ocasião devida
ela recebe o prêmio da oportunidade. Quando esta chega, vem o nosso
julgamento. Levantando-nos para pregar, o nosso espírito será julgado
pela assembléia e, se formos condenados, ou se, como regra geral, a
igreja não for edificada, não se pode contestar a conclusão de que não
fomos enviados por Deus.
Os sinais e marcas do verdadeiro bispo estão registrados na Palavra
para orientação da igreja; e se ao seguir essa orientação os irmãos não
virem em nós as qualidades requeridas, e não nos elegerem para o ofício,
ficará bastante claro que por melhor que possamos evangelizar, o ofício
de pastor não é para nós.
Nem todas as igrejas são sábias, e nem todas julgam no poder do
Espírito Santo, mas muitas julgam segundo a carne. Apesar disso, estaria
mais pronto para aceitar a opinião de um grupo do povo do Senhor do
que a minha própria opinião sobre um assunto tão pessoal como o dos
meus dons e graças.
De qualquer forma, quer valorizem o veredicto da igreja quer não,
uma coisa é certa: nenhum de vocês pode ser pastor sem o amoroso
consentimento do rebanho. Portanto, este lhes servirá de indicador
prático, senão correto. Se o seu chamamento da parte do Senhor for real,
vocês não ficarão quietos por muito tempo. Tão certo como o homem
quer a sua hora, a hora quer o seu homem. A Igreja de Deus está sempre
com urgente necessidade de ministros vigorosos. Para ela, um homem é
sempre mais precioso do que o ouro de Ofir. Oficiais formais passam
fome e necessidade, mas os ungidos do Senhor nunca terão por que ficar
sem um cargo pastoral, pois existem ouvidos aguçados que os
conhecerão, só de ouvi-los, e há corações prontos para dar-lhes boas
vindas ao lugar que lhes for destinado. Mantenham-se em forma para o
seu trabalho, e nunca ficarão fora dele. Não corram por todo lado,
pedindo para pregar aqui e ali. Preocupem-se mais com a sua capacidade
do que com a sua oportunidade, e sejam mais zelosos quanto a andar
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 42
com Deus do que com qualquer outra corsa. As ovelhas conhecerão o
pastor enviado por Deus, o porteiro do aprisco abrirá a porta para ele, e o
rebanho conhecerá a sua voz.
Na época em que transmiti esta preleção pela primeira vez, não
tinha lido a admirável carta que John Newton escreveu a um amigo sobre
este assunto. Corresponde tão de perto aos meus pensamentos que, com
o risco de ser julgado imitador, o que certamente não sou no presente
caso, vou ler a carta para vocês.
"O seu caso lembra o meu próprio; os meus primeiros desejos com
vistas ao ministério foram acompanhados de grandes incertezas e
dificuldades, e a perplexidade da minha mente piorou com os vários e
antagônicos julgamentos dos meus amigos. O conselho que tenho para
oferecer-lhe é resultado de experiência e exames penosos, e, por esta
razão, talvez não lhe seja inaceitável. Rogo a Deus que, por Sua graça,
torne-o útil.

"Fiquei muito tempo angustiado, como você está, sobre a que era ou
não era uma verdadeira vocação para o ministério. Agora me parece ponto
fácil de resolver, mas, talvez não o seja para você, até que o senhor lho
esclareça em seu caso particular. O tempo não dá para eu dizer tudo que
poderia dizer-lhe. Em resumo, creio que a questão inclui principalmente três
coisas:
"1. Um ardente e intenso desejo de empregar-se neste serviço.
Entendo que o homem que uma vez foi movido pelo Espírito de Deus para
este trabalho, irá preferi-lo, se lhe for acessível, a tesouros em ouro e prata.
Assim é que, embora às vezes intimidado pelo senso da importância e das
dificuldades do trabalho, comparadas com a sua grande insuficiência
pessoal (pois é de presumir-se que um chamamento desta natureza, se
realmente provém de Deus, será acompanhado de humildade e de auto-
humilhação), ele não poderá abandoná-lo. Afirmo que uma boa regra é
indagar, neste ponto, se o desejo de pregar é o mais fervente nos centros
vitais da estrutura do nosso ser, e quando estamos mais prostrados no pó
perante o Senhor. Se é assim, é bom sinal. Mas se, como às vezes se dá, a
pessoa está muito ansiosa por ser um pregador para outros, embora não
exista em sua própria alma uma fome e uma sede da graça de Deus, então,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 43
é de temer que o seu zelo promana de um principio egoístico, e não do
Espírito de Deus.
2. Além desse apaixonado desejo e prontidão para pregar, é preciso
que, no devido tempo, apareça alguma competente aptidão quanto a dons,
conhecimento e elocução. Seguramente, se o Senhor envia alguém para
ensinar outros, supri-lo-á dos meios necessários. Creio que muitos que se
fizeram pregadores, o fizeram com boa intenção; todavia, foram antes de
receber ou ultrapassaram a vocação deles ao agirem assim. A principal
diferença entre um ministro e um cristão sem vocação especial, parece
consistir naqueles dons ministeriais comunicados àquele, não para o seu
próprio interesse, mas para a edificação de outros. Mas digo que estes dons
devem aparecer no devido tempo. Não se deve esperar que surjam
instantaneamente, mas de forma gradual, no uso próprio dos meros. São
necessários para desempenhar o ministério, mas não são necessários como
requisitos que assegurem os nossos desejos quanto a ele. No seu caso,
você é jovem e dispõe de tempo. Daí, penso que não precisa perturbar-se
querendo saber se já tem esses dons. Se o seu desejo é firme e se quiser,
basta esperar no Senhor por eles, por meio da oração e da diligência, pois
você ainda não precisa deles.
"3. O que finalmente evidencia um chamamento genuíno é uma
correspondente abertura na providência, mediante uma série gradativa de
circunstâncias que apontam para os meios, a ocasião, o lugar de entrar de
fato no trabalho. E até que chegue esse ponto de coincidência, não espere
estar sempre livre de hesitação em sua mente. Nesta parte do assunto, a
principal cautela consiste em não ser apressado em agarrar os primeiros
indícios que aparecem. Se for da vontade do Senhor introduzi-lo no Seu
ministério, Ele já designou o seu lugar e o seu serviço, e embora não o saiba
no presente, sabê-lo-á no devido tempo. Se você tivesse talentos de anjo,
não poderia fazer muita corsa boa com eles enquanto não chegasse a hora
de Deus e Ele não o levasse às pessoas que determinou a abençoar por seu
intermédio. É muito difícil restringir-nos aos limites da prudência neste ponto,
quando o nosso zelo é ardoroso. O sentir o amor de Cristo em nossos
corações e a terna compaixão pelos pobres pecadores propendem para
fazer-nos irromper cedo demais; mas quem crê não se precipita. Fiquei cinco
anos sob esta compulsão. Às vezes achava que devia pregar, mesmo que
fosse nas ruas. Dava ouvidos a tudo que me parecia plausível, e a muitas
coisas que não o eram. Mas o Senhor, misericordiosamente, e como que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 44
insensivelmente, cobria de espinhos o meu caminho. Da contrário, se eu
fosse deixado entregue ao meu próprio espírito, eu teria me colocado fora da
possibilidade de ser introduzido numa esfera de serviço proveitoso como
esta, à qual aprouve a Deus guiar-me no Seu tempo certo e bom. E agora
posso ver claramente que, na época que queria sair a campo pela primeira
vez – embora a minha intenção fosse boa, acredito – eu me superestimei,
pois não possuía aquele discernimento e experiência espiritual indispensável
para tão grande serviço".

O que foi dito acima seria suficiente, mas o mesmo assunto estará
diante de vocês, se eu lhes der em pormenores um pouco da minha
experiência pessoal no trato com aspirantes ao ministério.
Constantemente me cabe cumprir o dever que coube aos juízes de
Cromwell. Tenho que formar minha opinião sobre se é aconselhável
ajudar certos homens em suas tentativas para tornar-se pastores. É um
dever da maior responsabilidade, dever que requer cuidado nada comum.
É claro que não me meto a julgar se um homem vai entrar no ministério
ou não, mas o meu exame visa simplesmente a responder a questão se
esta instituição o ajudará ou o deixará entregue aos seus próprios
recursos. Alguns dos nossos caridosos amigos nos acusam de termos
"uma fábrica de clérigos" aqui, mas a acusação não contém um pingo de
verdade. Jamais tentamos fazer um ministro, e se o tentássemos
fracassaríamos. Não recebemos ninguém nesta escola senão os que já se
declaram ministros. Estariam mais perto da verdade se me chamassem
matador de clérigos, pois bom número de principiantes receberam de
mim o seu despacho final; e sinto a mais completa paz de consciência
quando reflito no que tenho feito neste sentido.
É sempre uma tarefa difícil para mim, desanimar um jovem e
esperançoso irmão que solicita matrícula nesta escola. Meu coração
sempre se inclina para o lado mais bondoso, mas o dever para com as
igrejas impele-me a julgar com severa discriminação. Depois de ouvir o
candidato, após ler as recomendações que traz, e de avaliar as suas
respostas às perguntas feitas, quando me convenço de que o Senhor não
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 45
o chamou, sinto-me obrigado a dizer-lhe isso. Alguns casos tipificam os
demais. Jovens irmãos há que desejam com ardor entrar no ministério,
mas é dolorosamente patente que o seu motivo principal é o ambicioso
desejo de luzir entre os homens. De um ponto de vista comum, estes
homens devem ser recomendados por sua aspiração, mas, então, o
púlpito jamais deve ser a escada pela qual a ambição suba. Se tais
homens entrassem no exército; não ficariam satisfeitos enquanto não
chegassem ao mais elevado grau, pois estão determinados a forçar
caminho para o alto – tudo muito louvável e próprio até aí; mas eles
abraçaram a idéia de que, se entrassem no ministério seriam
grandemente distinguidos. Sentiram irromper os rebentos do gênio, e se
consideraram maiores do que as pessoas comuns. Daí, olharam para o
ministério, vendo-o como uma plataforma onde poderiam exibir as suas
pretensas habilidades. Sempre que isto é visível, sinto-me obrigado a
deixar o aspirante "to gang his ain gate", como dizem os escoceses; ou
seja, sair por onde entrou, certo de que gente com esse espírito sempre dá
em nada, se entra no serviço do Senhor. Vemos que não temos nada do
que nos gloriar, e se tivéssemos, o pior lugar para ostentá-lo seria o
púlpito; país todo dia somos levados a sentir a nossa insignificância e
nulidade.
A homens que desde a conversão têm deixado transparecer grande
fraqueza mental, que são prontamente levados a abraçar doutrinas
estranhas, ou a meter-se em má companhia e cair em pecado grosseiro,
nunca posso encontrar em meu coração nada para encorajá-los a
entrarem no ministério, seja qual for a maneira como professam a sua fé.
Se se arrependerem realmente, que fiquem nas últimas fileiras.
Inconstantes como a água, jamais vencerão.
Assim também os que não suportam dureza, porque pertencem à
ordem dos enluvados de pelica, mando-os para qualquer outra parte.
Queremos soldados. não janotas; trabalhadores zelosos, não vadios
gentis. A homens que nada fizeram até o dia do seu pedido de matricula
na escola, dizemos que tratem de obter as suas esporas, antes de serem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 46
publicamente armados cavaleiros. Os que têm fervorosa paixão pelas
almas não ficam à espera até que recebam treinamento; servem
imediatamente ao seu Senhor.
Chamam-me a atenção alguns bons homens famosos por sua
enorme veemência e zelo, e por uma notável ausência de cérebro. Irmãos
capazes de falar sem parar sobre coisa nenhuma – capazes de sapatear na
Bíblia e de espancá-la, sem extrair dela nada. Zelosos, terrivelmente
zelosos, exageraram-se em montanhas de trabalhos da mais penosa
espécie; mas nada resulta disso tudo, nem sequer o ridiculus mus
(ridículo rato). Existem por aí zelotes que não são capazes de conceber
ou transmitir cinco pensamentos consecutivos, cuja capacidade é em
extremo estreita e cuja presunção é extremamente larga. Estes podem
martelar, vociferar, bramar, arrebatar-se, enfurecer-se, mas o barulho
todo sai da cavidade oca do tambor. Entendo que esses irmãos terão a
mesma atuação com instrução ou sem ela, razão por que geralmente
declino os seus pedidos de matrícula.
Outra classe demasiadamente numerosa de homens procura o
púlpito sem saber por quê. Incapazes de ensinar, não conseguirão
aprender, todavia, de bom grado serão ministros. Como o homem que
dormiu no Parnaso e depois disso sempre se imaginava poeta, eles
tiveram atrevimento suficiente para jogar uma vez um sermão por cima
de um auditório, e agora não querem fazer mais nada, senão pregar.
Ficam tão ansiosos para pôr de lado o traje operário, que farão uma cisão
na igreja da qual são membros para realizar o seu intento. O balcão
comercial porém é desagradável, a almofada do púlpito é cobiçada.
Estão cansados dos pratos e dos pesos da balança; sentem-se compelidos
a experimentar a balança do santuário. Homens assim, como enfurecidas
ondas do mar, geralmente fazem espumar a sua própria vergonha, e nos
alegramos quando lhes dizemos adeus.
As fraquezas físicas levantam uma questão acerca da vocação de
alguns excelentes homens. Eu não julgaria, como Eustenes, os homens
por suas feições, mas a sua compleição física não é pequeno critério.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 47
Aquele tórax estreito não indica um homem formado para falar em
público. Vocês podem achar ridículo, mas ainda estou bem certo de que
quando um homem tem peito encolhido, sem distância entre os ombros,
o Sapientíssimo não teve a intenção de que ele pregasse habitualmente.
Se fosse este o Seu propósito, ter-lhe-ia dado, em alguma medida,
amplitude de peito suficiente para produzir razoável porção de energia
pulmonar. Quando o Senhor planeja que uma criatura corra, dá-lhe
pernas velozes, e se planeja que outra pessoa pregue, dá-lhe pulmões
adequados. O irmão que tem de fazer uma pausa no meio de uma frase e
acionar a sua bomba de ar, deve perguntar a si mesmo se não há alguma
outra ocupação para a qual esteja mais bem adaptado. O homem que mal
chega ao fim de uma frase sem se afligir, dificilmente pode ser chamado
para cumprir a ordem: "Clama, e não te cales". Talvez haja exceções,
mas a regra geral não tem valor? Irmãos com deformação na boca e com
articulação defeituosa, geralmente não são chamados para pregar o
evangelho. O mesmo se aplica a irmãos destituídos de palato ou com
palato imperfeito.
Recebeu-se há pouco tempo o pedido de admissão de um jovem que
tinha uma espécie de movimento giratório de seu maxilar, movimento do
tipo mais penoso para quem o vê. Seu pastor o recomendou como um
jovem muito santo, que fora instrumento para levar alguns a Cristo, e
expressou a esperança de que eu o receberia, mas não pude ver a
conveniência disso. Eu não poderia olhar para ele, sem rir, enquanto ele
pregasse, ainda que tivesse por prêmio todo o ouro de Társis, e, com toda
a probabilidade, dentre dez dos seus ouvinte, nove seriam mais sensíveis
do que eu. Um homem com língua grande que enchia toda a cavidade
bucal e causava confusão, outro sem dentes, outro que gaguejava, outro
que não conseguia pronunciar todo o alfabeto – a todos, pesarosamente,
tive de rejeitar baseando-me no fato de que Deus não lhes dera aqueles
meios físicos que, nos termos do livro de oração da igreja anglicana, são
"geralmente necessários".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 48
Encontrei um irmão – eu disse um? Encontrei dez, vinte, cem
irmãos que alegavam estar seguros, completamente seguros de que
foram chamados para o ministério – estavam completamente certos disso
porque tinham falhado em tudo mais. Eis aqui uma espécie de história
modelo:
"Sr. Spurgeon", colocaram-me num escritório de advocacia, mas
nunca pude agüentar a clausura, e não me sentia à vontade estudando
direito; evidentemente a Providência obstruiu o meu caminho, pois perdi
o emprego". "Que é que você fez então?" "Ora, senhor, fui induzido a
abrir uma mercearia." "E você prosperou?" "Bem, senhor, não creio que
eu jamais pretendesse o comércio, e Deus pareceu-me vedar inteiramente
o caminho ali, pois fracassei e me vi em grandes dificuldades. Desde
essa ocasião, tive uma pequena agencia de seguros de vida, e tentei
organizar uma escola, além de vender chá. Mas o meu caminho está
fechado, e algo dentro de mim leva-me a achar que devo ser ministro."
Em geral a minha resposta é: "É, entendo. Você fracassou em tudo
mais, e daí acha que o Senhor o dotou especialmente para o Seu serviço;
mas receio que você se esqueceu de que o ministério precisa dos
melhores homens, e não dos que não conseguem fazer nenhuma outra
coisa". O homem que teria sucesso como pregador, provavelmente se
sairia bem como merceeiro, advogado ou qualquer outra profissão. Um
ministro realmente de valor seria ótimo em qualquer outra ocupação.
Dificilmente haverá alguma coisa impossível para o homem que mantém
unida uma igreja durante anos, e que é capaz de edificá-la através de
centenas de domingos consecutivos. Tem que possuir algumas
habilidades, e de modo nenhum pode ser um tolo ou um imprestável.
Jesus Cristo merece os melhores homens para pregarem a Sua cruz, e
não os cabeças ocas e os desvalidos.
Um jovem cavalheiro com cuja presença fui honrado uma vez,
deixou-me na mente a fotografia do seu extraordinário ser. O seu rosto
mesmo parecia o frontispício de um volume completo sobre presunção e
tapeação. Mandou-me um recado ao gabinete pastoral um domingo de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 49
manhã dizendo-me que queria ver-me imediatamente. Sua audácia o fez
entrar. Quando se viu diante de mim, disse: "Sr.Spurgeon, quero entrar
em sua escola, e gastaria de entrar imediatamente". "Bem, senhor", disse
eu, "receio que não temos lugar no momento, mas o seu caso será
considerado." "Mas o meu caso é deveras notável, Sr. Spurgeon;
provavelmente o senhor nunca recebeu um pedido de admissão
semelhante ao meu." "Muito bem, veremos isso; o secretário lhe dará o
formulário de inscrição, e o senhor poderá ver-me amanhã."
Na segunda-feira veio ele, trazendo as questões respondidas da
maneira mais extraordinária. Quanto a livros, alegou ter lido toda a
literatura antiga e moderna e, depois de dar uma lista imensa,
acrescentou: "Isto é apenas uma seleção; li extensamente em todas as
áreas". Quanto às suas pregações, ele poderia conseguir as mais altas
recomendações, mas nem o julgou necessário, pois uma entrevista
pessoal me convenceria logo de sua capacidade. Sua surpresa foi grande
quando eu lhe disse: "Meu amigo, sou obrigado a dizer que não posso
admiti-lo". "Por que não, Sr. Spurgeon?" "Falarei com franqueza. O
senhor é tão tremendamente inteligente que não posso insultá-lo
recebendo-o em nossa escola, onde não temos mais que homens comuns;
o diretor, os professores e os estudantes, somos todos homens de
realizações modestas, e o senhor teria que ser muito condescendente,
estando entre nós."
Ele me olhou severamente e disse com dignidade: "O senhor quer
dizer que, porque eu possuo gênio incomum, e engendrei em mim uma
gigantesca mente, raramente vista igual, é-me recusada admissão na sua
escola?" "Sim", respondi tão calmamente como pude, considerando-se o
opressivo temor que o seu gênio inspirava, "exatamente por essa razão."
"Então o senhor devia permitir-me um exame dos meus talentos como
pregador. Escolha o texto que quiser, ou sugira o assunto que lhe
agradar, e, aqui mesmo nesta sala, discorrerei ou pregarei sobre ele, sem
tomar tempo para reflexão, e o senhor ficará surpreso." "Não, obrigado.
Prefiro não ter o dissabor de ouvi-lo." "Dissabor, senhor?! Garanto que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 50
lhe seria o maior prazer possível." Eu disse que podia ser, mas me
achava indigno do privilégio, e assim lhe disse adeus. O cavalheiro era-
me desconhecido na ocasião, mas daquele tempo em diante tem figurado
na delegacia de polícia como muito inteligente, em parte.
Ocasionalmente recebemos solicitações de matrícula que talvez os
deixassem admirados, pois provém de homens por certo bastante
fluentes, e que respondem muito bem a todas as perguntas, exceto
aquelas que se referem às suas opiniões doutrinárias, para as quais
obtemos repetidamente esta resposta: "O Sr. Fulano de Tal está disposto
a acatar as doutrinas da escola, sejam quais forem"! Em todos esses
casos, não discutimos nem um momento; é dada a negativa
instantaneamente. Menciono o fato porque ilustra a nossa convicção de
que não são chamados para o ministério homens que não têm
conhecimento nem crença definida. Quando pessoas jovens dizem que
ainda não têm opinião teológica formada, devem voltar para a Escola
Dominical até que a tenham. Ora, um homem entrar na escola
procurando dar a impressão de que mantém a mente aberta para qualquer
forma da verdade, e de que é eminentemente receptivo, mas não tem
firmadas em sua mente coisas como, se Deus faz eleição com base na
graça, ou se Ele ama o Seu povo até o fim, parece-me uma perfeita
monstruosidade. "Não neófito", diz o apóstolo. Entretanto, o homem que
não firmou posição sobre pontos como estes é, confessada e
egregiamente, um "neófito", e deve ser relegado à classe de catecúmenos
até aprender as primeiras verdades do evangelho.
Depois de tudo, cavalheiros, teremos que comprovar a nossa
vocação mediante a prova prática do nosso ministério na vida ativa
posterior, e será para nós uma coisa lamentável iniciar o curso sem o
devido exame, pois, em fazendo assim, poderá acontecer que tenhamos
que abandoná-lo com desonra. De modo geral, a experiência é o nosso
melhor teste, e se Deus nos sustenta ano após ano, e nos dá Sua bênção,
não precisamos submeter a nossa vocação a nenhuma outra prova. As
nossas aptidões morais e espirituais, serão provadas pelo labor do nosso
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 51
ministério, e este é o mais fidedigno de todos os testes. Alguém me falou
de um plano adotado por Matthew Wilks para o exame de um jovem que
queria ser missionário; a orientação – se não os pormenores do teste –
recomenda-se ao meu juízo, embora não ao meu gosto.
O moço desejava ir para a Índia como missionário, ligado à
Sociedade Missionária de Londres. O Sr. Wilks foi nomeado para avaliar
a aptidão do rapaz para aquele encargo. Escreveu ao jovem pedindo-lhe
que o visitasse às seis da manhã do dia seguinte. O irmão morava a
muitos quilômetros de distância, mas estava na casa às seis horas em
ponto. Contudo, o Sr. Wilks não apareceu na sala senão horas mais tarde.
O irmão esperou com estranheza, mas com paciência. Afinal o Sr: Wilks
chegou e se dirigiu ao candidato nestes termos, com a sua entonação
nasal de sempre: "Bem, jovem; assim é que você quer ser missionário?"
"Sim, senhor." "Você ama o Senhor Jesus Cristo?" "Sim, senhor; estou
certo que sim." "Você tem alguma instrução?" "Sim, senhor, um pouco."
"Bem, agora vamos testá-lo. Você pode soletrar "gato"?" O moço
pareceu ficar confuso, e nem sabia responder a tão despropositada
pergunta. Sua mente por certo vacilava entre a indignação e a submissão,
mas de pronto respondeu com firmeza: "G, a, t, o, gato". "Muito bem",
disse o Sr. Wilks"; "agora você pode soletrar "cão"?" O nosso jovem
mártir hesitou, mas o Sr. Wilks disse da maneira mais fria: "Ora, não faz
mal; não se acanhe; você soletrou tão bem a outra palavra que eu pensei
que seria capaz de soletrar esta; por alto que seja o feito, não é tão
elevado que não o pudesse fazer sem corar". O jovem Jó replicou: "C, a
com til, o, cão". "Bem, está certo. Vejo que você sabe soletrar; agora,
quanto à sua aritmética, quanto são duas vezes dois?" É de espantar que
o Sr. Wilks não tenha recebido "duas vezes dois" à moda do cristianismo
muscular, mas o paciente jovem deu a resposta correta e foi dispensado.
Na reunião da comissão, Matthew Wilks disse: "Recomendo de
coração aquele moço. Examinei devidamente as recomendações em seu
favor e o caráter dele. Além disso, passei-lhe um estranho exame pessoal
de tal natureza que poucos poderiam suportar. Provei sua abnegação – e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 52
ele pulou bem cedo da cama; provei seu temperamento e sua humildade;
ele é capaz de soletrar "gato" e "cão", e de dizer que "duas vezes dois são
quatro" – e se sairá muitíssimo bem como missionário".
Ora, o que se diz que o velho cavalheiro fez com tanto mau gosto,
devemos fazer conosco mesmos com muita propriedade. Devemos
provar-nos a nós mesmos para ver se podemos agüentar intimidações,
fadigas, calúnias, zombarias, privações, e se somos capazes de suportar
que façam de nós a escória de todos e que nos tratem como nada por
amor a Cristo. Se podemos suportar todas estas coisas, temos alguns
daqueles pontos que indicam a posse das raras qualidades que se devem
encontrar num verdadeiro serviço do Senhor Jesus Cristo. Questiono
com seriedade se alguns de nós encontraremos os nossos navios, quando
lançados ao mar, tão completamente aptos para navegar como pensamos.
Ah meus irmãos, certifiquem-se laboriosamente disto enquanto
estiverem neste abrigo; e trabalhem diligentemente para habilitar-se para
a sua elevada vocação.
Vocês vão ter inúmeras provações, e ai de vocês, se não partirem
armados dos pés à cabeça com a armadura da experiência. Terão que
correr competindo com cavalheiros; não deixem que a infantaria os
canse enquanto estiverem em seus estudos preliminares. O diabo está ao
largo, e com ele estão muitos. Submetam-se vocês mesmos a provas, e
queira Deus prepará-los para o crisol e o forno que certamente os
esperam. Talvez a sua tribulação não seja tão grave como a de Paulo e
seus companheiros, mas vocês devem estar prontos para provações
semelhantes. Permitam-me ler as memoráveis palavras que o apóstolo
escreveu, e rogar-lhes que orem enquanto as ouvem, suplicando ao
Espírito Santo que os fortaleça para tudo que os aguarda.
"Não dando nós nenhum motivo de escândalo em coisa alguma, para
que o ministério não seja censurado. Pelo contrário, em tudo recomendando-
nos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas
aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos
tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, no saber, na
longanimidade, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 53
palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, quer
ofensivas, quer defensivas; por honra e por desonra, por infâmia e por boa
fama, como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e,
entretanto, bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo e, contudo,
eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; entristecidos, mas
sempre alegres; pobres, mas enriquecendo a muitos; nada tendo, mas
possuindo tudo." (2 Cor. 6:3-10)
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 54
ORAÇÃO PARTICULAR DO PREGADOR

Naturalmente o pregador se distingue acima de todos os demais


como homem de oração. Ele ora como um cristão comum, ou de outra
forma seria hipócrita. Ora mais que os cristãos comuns, ou de outra
forma estaria desqualificado para o cargo que assumiu. "Seria totalmente
monstruoso", diz Bernard, "um homem estar no ofício mais elevado, e
ser o mais baixo de alma; o primeiro na posição e o último no viver."
Todas as suas outras formas de relacionamento são aureoladas pela
preeminência da responsabilidade pastoral, e se ele for fiel a seu Senhor,
tornar-se-á distinguido em todas elas por sua prática da oração. Como
cidadão, seu país goza a vantagem da sua intercessão; como vizinho, os
que estão à sombra dele são lembrados em suas súplicas. Ora como
marido e como pai; luta para fazer das devoções domésticas um modelo
para o seu rebanho; e se o fogo do altar de Deus há de bruxulear em
algum outro lugar, é bem mantido na casa do servo escolhido do Senhor
– pois ele vela para que os sacrifícios da manhã e da tarde santifiquem a
sua habitação. Mas há algumas das suas orações que concernem ao seu
ofício, e o nosso plano nestas preleções nos induz a falar mais destas. Ele
eleva súplicas peculiares como ministro, e se aproxima de Deus nesta
função além e acima de todas as suas outras abordagens em todos os seus
outros relacionamentos.
Tomo por suposto que, como ministro, ele está sempre orando.
Toda vez que a sua mente se volta para o seu trabalho, quer esteja
efetuando-o, quer não, lança uma petição, disparando os seus santos
desejos como flechas bem dirigidas para o céu. Não está sempre no ato
de orar, mas vive no espírito de oração. Se o seu coração está posto no
trabalho, ele não consegue comer ou beber ou recrear-se ou dormir ou
levantar-se de manhã, sem sentir sempre um ardor de desejo, um peso de
ansiedade e uma simplicidade da sua dependência de Deus; assim, de um
modo ou de outro, continua em oração. Se há algum homem debaixo do
céu compelido a cumprir o preceito – "Orai sem cessar", certamente é o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 55
ministro cristão. Cabem-lhe tentações peculiares, provações especiais,
dificuldades singulares e deveres extraordinários; ele tem que se
entender com Deus em formidáveis relacionamentos, e com os homens
em misteriosos interesses; por isso ele tem muito mais necessidade da
graça divina do que os homens comuns, e, sabedor disto, é levado a
rogar constantemente ao Forte por força, e a dizer: "Elevo os meus olhos
para os montes, de onde me virá o socorro".
Certa vez Alleine escreveu a um amigo: "Embora eu seja propenso
à agitação e a sair rapidamente dos eixos, considero-me, porém, como
um pássaro fora do ninho, e não me tranqüilizo, enquanto não retomo a
minha antiga maneira de manter comunhão com Deus, como a agulha da
bússola, inquieta enquanto não se volta para o pólo. Posso dizer, pela
graça, com a igreja: "De alma te desejei de noite, e com meu espírito
dentro em mim te busquei de manhã". Cedo e de noite o meu coração
está com Deus; a ocupação e o prazer da minha vida é buscá-Lo."
Do mesmo teor deve ser o seu modo de ser e de agir, ó homens de
Deus! Se vocês, na qualidade de ministros, não são de muita oração, são
dignos de muito dó. Se futuramente, chamados para exercer pastorados,
pequenos ou grandes, relaxarem nas devoções secretas, não só vocês
merecerão dó; os seus rebanhos também o merecerão; em acréscimo,
vocês serão censurados, e chegará o dia em que ficarão envergonhados e
confusos.
Dificilmente seria necessário recomendar-lhes os agradáveis usos
da devoção particular, e, contudo, não posso abster-me de fazê-lo. Para
vocês, como embaixadores de Deus, o propiciatório tem valor que
ultrapassa todas as estimativas. Quanto mais familiarizados estiverem
com a corte do céu, melhor se desincumbirão do seu encargo celeste.
Dentre todas as influências estruturadoras que formam um honrado
homem de Deus no ministério, não ser de nenhuma outra que seja mais
poderosa que a sua familiaridade com o propiciatório. Tudo que o curso
da faculdade pode fazer por um estudante é tosco e superficial,
comparado com o refinamento espiritual excelente obtido pela
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 56
comunhão com Deus. Enquanto o ministro que ainda não tomou forma
gira sobre o eixo da preparação, a oração é a ferramenta do grande oleiro
com a qual molda o vaso. Todas as nossas bibliotecas e escritórios são
uma simples vacuidade, comparados com os nossos quartos. Crescemos,
ficamos cada vez mais poderosos, prevalecemos na oração secreta.
As suas orações serão os seus assessores mais competentes,
enquanto os seus discursos estão ainda na bigorna. Enquanto outros, do
tipo de Esaú, andam à caça da sua porção, vocês, com o auxílio da
oração, encontrarão saborosa refeição aí mesmo, em casa, e poderão
dizer de verdade o que Jacó disse com tanta falsidade: "O Senhor, teu
Deus, a mandou ao meu encontro". Se vocês puderem afundar suas
canetas em seus corações, recorrendo ardorosamente ao Senhor,
escreverão bem; e se puderem juntar o seu material de joelhos às portas
do céu, não deixarão de falar bem. A oração, como exercício mental,
trar-lhes-á à mente muitos assuntos, e assim os ajudará na seleção de um
tópico, enquanto que, como elevada ocupação espiritual, limpará a sua
visão interior para poderem ver a verdade à luz de Deus.
Muitas vezes os textos se negarão a revelar os seus tesouros,
enquanto não os abrirem com a chave da oração. De que maneira
maravilhosa se abriram os livros para Daniel quando elevou súplicas a
Deus! Quanta coisa Pedro aprendeu no eirado! O quarto é o melhor
gabinete de trabalho. Os comentadores são bons instrutores, mas o
próprio Autor é muito melhor, e a oração faz um apelo direto a Ele e O
alista em nossa causa. É coisa grandiosa a gente orar compenetrado do
espírito e da essência de um texto; penetrá-lo alimentando-se
sagradamente dele, exatamente como o verme perfura o seu trajeto rumo
ao miolo da noz.
A oração fornece força à alavanca para levantar verdades de peso.
Causa espanto pensar em como as pedras de Stonehenge [nome do
monumento pré-histórico mais importante da Grã-bretanha] puderam ser
colocadas em seus lugares. Causa mais espanto ainda pensar de onde
alguns homens obtiveram tão admirável conhecimento de doutrinas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 57
misteriosas. Acaso não foi a oração o potente maquinismo que operou a
maravilha? Esperar em Deus muitas vezes transforma as trevas em luz.
A perseverante perquirição no oráculo sagrado (oração) levanta o véu, e
dá-nos graça sondar as profundas realidades de Deus. Observou-se
muitas vezes que certo teólogo puritano, durante um debate, escrevia
algo num papel que tinha diante de si. Outros, procurando curiosamente
ler as suas anotações, nada viram na página, senão as palavras, "Mais
luz, Senhor", "Mais luz, Senhor", repetidas muitas vezes; oração
sumamente própria para o estudante da Palavra quando está preparando
o seu sermão.
Com freqüência vocês encontrarão novas correntes de pensamento
saltando da passagem à sua frente, como rocha batida pela vara de
Moisés. Novos veios de minério precioso se descortinarão ao seu olhar
admirado quando vocês escavarem a Palavra de Deus e usarem
diligentemente o martelo da oração. Às vezes vocês se sentirão como se
estivessem inteiramente bloqueados, e de repente uma nova estrada se
abrirá à sua frente. Aquele que tem a chave de Davi abre, e ninguém
fecha. Se vocês viajaram alguma vez descendo o Reno. o cenário
aquático daquele majestoso rio os terá surpreendido, lembrando muito o
efeito de uma série de laços. Adiante e atrás o barco parece encerrado
por maciças muralhas de rocha, ou ladeado de terraços de parreirais, até
que num súbito virar de uma curva, eis em sua frente o rio, jubiloso e
abundante, a fluir, avançando com todo o seu vigor.
Assim, o laborioso estudante muitas vezes vê isso no texto; parece
estar fortemente cerrado contra vocês, mas a oração impele o barco e
dirige a proa para águas vigorosas, e vocês contemplam a larga e
profunda torrente da verdade sagrada a fluir em sua plenitude, e levando-
os com ela. Não é esta razão convincente para perseverar nas súplicas ao
Senhor? Usem a oração como vara de sondagem, e as fontes de águas
vivas saltarão das entranhas da Palavra de Deus. Quem vai contentar-se
em ficar com sede, quando as águas vivas aí estão, prontas para quem
quiser obtê-las?!
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 58
Os melhores e mais santos homens sempre fizeram da oração a
parte mais importante do preparo para o púlpito. De McCheyne se diz:
"Desejoso de dar a seu povo no dia do Senhor o que lhe tivesse custado
algo, jamais sem motivo urgente, se apresentava diante dele sem antes
meditar e orar muito. Seu princípio sobre esta questão foi incluído numa
observação que fez a alguns de nós quando conversávamos sobre o
assunto. Quando alguém lhe perguntou qual o seu conceito do diligente
preparo para o púlpito, lembrou-nos Êxodo 27:20 – "Azeite batido –
azeite batido para as lâmpadas do santuário". Entretanto, sua vida de
oração foi maior ainda. Ele realmente não conseguia negligenciar a
comunhão com Deus antes de comparecer perante a igreja reunida. Tinha
necessidade de banhar-se no amor de Deus. Seu ministério era em tão
grande parte a exposição de noções que primeiro santificaram a sua
própria alma, que a saúde da sua alma era absolutamente necessária para
o vigor e o poder das suas ministrações". "Para ele o começo de todo
trabalho invariavelmente consistia no preparo da sua alma. As paredes
do seu quarto eram testemunhas da sua vida de oração e de suas
lágrimas, como também dos seus clamores."
A oração lhes prestará singular assistência na transmissão do
sermão. De fato, nenhuma outra coisa pode qualificar-vos tão
gloriosamente para pregar como alguém que desce do monte da
comunhão com Deus a fim de falar com os homens. Ninguém é tão
capaz de pleitear com os homens como quem esteve pelejando com Deus
em favor deles. Dizem de Alleine que "Ele derramava o coração quando
orava e pregava. Suas súplicas e suas exortações eram tão afetuosas, tão
cheias de zelo, vida e vigor, que conquistavam os seus ouvintes; ele se
fundia sobre eles, de modo que amolecia, derretia, e às vezes dissolvia os
mais duros corações". Jamais dissolveria coração nenhum se antes a sua
mente não ficasse exposta aos raios tropicais do Sol da Justiça pela
secreta comunhão com o Senhor ressurreto. Uma pregação deveras
comovente, em que não há afetação, mas muita afeição, só pode brotar
da oração. Não há retórica igual à do coração, e nenhuma escola onde
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 59
aprendê-la, senão aos pés da cruz. Seria melhor que vocês nunca
aprendessem uma só regra de oratória humana, porém estivessem cheios
de poder do amor oriundo do céu; isto seria melhor do que dominar
Quintiliano, Cícero e Aristóteles, e ficar sem a unção apostólica.
A oração não poderá torná-los eloqüentes à moda humana, mas os
tornará verdadeiramente eloqüentes, pois falarão de coração; e não é este
o sentido da palavra eloqüência? Ela trará rogo do céu sobre o seu
sacrifício, e assim provará que é aceito pelo Senhor.
Assim como vigorosas fontes de pensamento muitas vezes
irromperão em resposta à oração, enquanto se preparam, também será na
entrega do sermão. Muitos pregadores que se põem na dependência do
Espírito de Deus lhes dirão que os seus pensamentos mais vívidos e
melhores não são os que foram premeditados, mas as idéias que lhes
vêm, voando como que em asas de anjos; inesperados tesouros trazidos
de repente por mãos celestiais, sementes das flores do paraíso que vêm
flutuando dos montes de mirra. Muitíssimas vezes, quando me sinto
embaraçado no pensamento e na expressão, o meu secreto gemido de
coração me tem trazido alívio; e passo a desfrutar liberdade maior do que
a costumeira. Mas, como ousarei orar na batalha se nunca clamei ao
Senhor enquanto afivelo a armadura?! A lembrança das suas lutas em
casa fortalece o pregador agrilhoado quando no púlpito. Deus não nos
abandonará, a menos que O abandonemos. Vocês verão, irmãos, que a
oração lhes assegurará força suficiente para o seu dia.
Como as línguas de fogo vieram sobre os apóstolos quando ficaram
vigiando e orando, assim também virão sobre vocês. Ver-se-ão a si
próprios, talvez quando poderiam ter desfalecido, subitamente
revivificados, como que pelo poder de um anjo. Rodas de fogo serão
ajustadas à sua carruagem. que começara a arrastar-se dificultosamente,
e corcéis angélicos serão num instante atrelados em seu carro chamejante
até você galgar os céus, como Elias, numa arrebatamento de inflamada
inspiração.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 60
Depois do sermão, como poderia o pregador consciencioso dar livre
curso aos seus sentimentos e achar consolo para a sua alma se lhe fosse
negado acesso à sede da misericórdia? Elevados ao mais alto grau de
comoção, como podemos aliviar a nossa alma, senão com intercessões
importunas? Ou, deprimidos pelo medo de fracassar, como seremos
confortados senão chorando nossas mágoas diante do nosso Deus?
Quantas vezes alguns de nós ficamos virando para um lado e para outro
na cama a metade da noite por causa dos nossos conscientes defeitos no
testemunho! Com que freqüência ansiamos por correr de volta ao púlpito
para dizer outra vez, com maior veemência, o que tínhamos dito de
maneira tão fria! Onde poderíamos achar descanso para o nosso espírito,
senão na confissão do pecado, e nos ardentes rogos para que a nossa
fraqueza ou estultícia de modo nenhum estorve o Espírito de Deus?
Numa assembléia pública não é possível derramar todo o amor do nosso
coração pelo rebanho que está a nosso cargo. Como José, o ministro
afetuoso procurará onde chorar; suas emoções, por mais livremente que
possa ele expressar-se, ficarão enjauladas quando ele estiver no púlpito,
e somente pela oração secreta poderá abrir as comportas e fazê-las fluir
para fora.
Se não podemos persuadir os homens a favor de Deus, havemos de,
pelo menos, esforçar-nos para persuadir a Deus a favor dos homens. Não
podemos salvá-los; nem sequer podemos induzi-los a serem salvos, mas
ao menos podemos deplorar a loucura deles e suplicar a intervenção de
Deus. Como Jeremias, podemos tomar nossa a resolução: "E, se isto não
ouvirdes, a minha alma chorará em lugares ocultos, por causa da vossa
soberba; e amargamente chorarão os meus olhos, e se desfarão em
lágrimas". A esses apelos tão comoventes o coração do Senhor nunca
pode ser indiferente; no devido tempo, o lacrimoso intercessor se tornará
jubiloso ganhador de almas. Existe clara conexão entre a agonia
importuna e o verdadeiro sucesso, semelhante à que existe entre as dores
de parto e o nascimento, entre semear em lágrimas e colher com alegria.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 61
"Como é que a semente que você planta brota depressa assim?",
perguntou um jardineiro a outro. "É porque a rego", foi a resposta.
Temos que regar com lágrimas todos os nossos ensinamentos "quando
ninguém está perto, exceto Deus", e o crescimento deles nos causará
surpresa e deleite. Poderia alguém admirar-se com o sucesso de
Brainerd, quando o seu diário contém anotações tais como a seguinte? -
"Dia do Senhor, 25 de abril – Esta manhã passei cerca de duas horas
ocupado com deveres sagrados e, extraordinariamente, pude agonizar
pelas almas imortais; embora fosse bem cedo, e o sol mal começasse a
brilhar, meu corpo ficou molhado de suor". O segredo do poder de
Lutero esteve nessa mesma direção. Teodoro disse ele: "Escutei-o em
oração, mas, bom Deus, com que vida e com que espírito ele orava! Era
com tanta reverência, como se estivesse falando com Deus, mas com tão
confiante liberdade, como se estivesse falando com um amigo".
Meus irmãos, permitam-me rogar-lhes que sejam homens de
oração. Pode ser que nunca venham a ter grandes talentos, mas se
desempenharão satisfatoriamente sem eles, se forem abundantes na
intercessão. Se não orarem sobre aquilo que semearam, Deus, na Sua
soberania, talvez decida conceder uma bênção, mas vocês não terão
direito de esperá-la, e se ela vier, não lhes trará conforto ao coração.
Estive lendo ontem um livro do Padre Faber, finado religioso da
Ordem do Oratório, em Brompton, maravilhosa composição de verdade
e erro. Relata nele uma lenda do seguinte teor: Certo pregador, cujos
sermões convertia homens aos montes, recebeu uma revelação do céu de
que nenhuma das suas conversões se devia aos seus talentos ou à sua
eloqüência, mas todas se deviam às orações de um irmão leigo iletrado,
que ficava sentado nos degraus do púlpito, orando o tempo todo pelo
sucesso do sermão. Poderá dar-se isso conosco no dia da revelação de
todas as coisas. Talvez descubramos, depois de termos trabalhado
demorada e cansativamente na pregação, que a honra toda pertence a
outro construtor, cujas orações foram ouro, prata e pedras preciosas, ao
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 62
passo que os nossos sermões, sendo apregoados sem oração, não
passaram de feno e palha.
Quando tivermos terminado de pregar, não teremos terminado ainda
de orar, se formos fiéis ministros de Deus, porque a igreja inteira, com
muitas bocas, estará clamando, na expressão do macedônio: "Passa à
Macedônia, e ajuda-nos" com oração. Se vocês estiverem habilitados a
prevalecer em oração, terão muitas súplicas para fazer por outros que se
juntarão ao seu redor e pedirão participação em suas intercessões, e
assim vocês se verão comissionados com mensagens enviados ao trono
da misericórdia a favor de amigos e ouvintes. Essa é sempre a cota que
me cabe, e para mim é uma satisfação ter tais súplicas para apresentar ao
meu Senhor. Vocês nunca podem ficar sem temas para oração, mesmo
que ninguém lhos sugira. Observem as pessoas da sua igreja. Há sempre
doentes entre elas, e muitas outras que são doentes da alma. Algumas
não são salvas; outras estão procurando e não conseguem achar. Muitas
vivem desanimadas, e não poucos crentes são infiéis ou lamurientos. Há
lágrimas de viúvas e suspiros de órfãos para pôr no seu frasco e derramar
perante o Senhor.
Se você é um autêntico ministro de Deus, manter-se-á diante do
Senhor como um sacerdote, usando espiritualmente o peitoral em que
você porta os nomes dos filhos de Israel, intercedendo por eles, detrás do
véu. Conheci irmãos que mantinham uma lista de pessoas pelas quais se
sentiam especialmente incumbidos a orar, e não tenho dúvida de que
aquele registro muitas vezes os lembrava de algo que de outra maneira
teria fugido da sua memória. No entanto seu rebanho não o absorverá
totalmente; a nação e o mundo requererão sua parte. O homem que for
poderoso na oração poderá ser uma muralha de fogo ao redor do seu
país, seu "anjo da guarda" e seu escudo. Todos já ouvimos sobre como
os inimigos da causa do protestantismo temiam as orações de Knox mais
que a exércitos de dez mil homens. O famoso Welch também foi um
grande intercessor por seu país. Ele costumava dizer que "se admirava de
como um cristão podia ficar no leito a noite inteira sem se levantar para
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 63
orar". Quando sua esposa, temendo que ele ficasse resfriado, foi até o
quarto ao qual se havia retirado, ouviu-o clamar em frases entrecortadas:
"Senhor, não me concederás a Escócia?"
Ah! se ficássemos lutando assim a desoras clamando: "Senhor, não
nos concederás as almas dos nossos ouvintes?"
O ministro que não ora fervorosamente pela obra que realiza, só
pode ser um homem fútil e vaidoso. Age como que se considerando
auto-suficiente, e, portanto, como se não precisasse apelar para Deus.
Todavia, que orgulho mais sem fundamento, conceber que a nossa
pregação seja em si mesma tão poderosa que pode converter os homens
dos seus pecados, e trazê-los para Deus sem a ação do Espírito Santo! Se
formos verdadeiramente humildes de coração, não nos aventuraremos a
meter-nos no combate enquanto o Senhor dos Exércitos não nos revestir
de todo o poder, e nos disser: "Vai nesta tua força".
O pregador que negligencia orar só pode ser muito desleixado
quanto ao seu ministério. Não é possível que tenha compreendido a sua
vocação. Não pode ter computado o valor de uma alma, nem avaliado o
sentido da eternidade. Certamente não passa de um oficial, tentado ao
púlpito porque o pedaço de pão que pertence ao ofício ministerial é-lhe
muito necessário; ou não passa de um detestável hipócrita que gosta do
louvor dos homens e não se preocupa com o louvor de Deus. Será por
certo um simples palrador superficial, mais bem aprovado onde a graça é
menos apreciada, e onde uma exibição vã é grandemente admirada. Ele
não pode ser um daqueles que aram bem e colhem messes abundantes. É
um reles vadio, não um trabalhador. Como pregador, tem nome de que
vive, e está morto. Manqueja em sua vida como o coxo de Provérbios,
cujas pernas eram desiguais, pois a sua oração é mais curta que a sua
pregação.
Temo que, uns mais, outros menos, a maioria de nós necessita de
um auto-exame quanto a este assunto. Se alguém aqui se aventurasse a
dizer que ora quanto deve, como estudante, eu questionaria seriamente a
sua afirmação; e se estiver presente algum ministro, diácono ou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 64
presbítero capaz de dizer que se dedica a Deus em oração em toda a
extensão da sua possibilidade, eu gostaria de conhecê-lo. Só posso dizer
que, se ele pode arrogar-se este grau de excelência, deixa-me bem para
trás, pois eu não posso alegar isso em meu favor. Gostaria que fosse
possível. E faço a confissão com grande medida de vergonha e confusão,
mas sou obrigado a fazê-la. Se não somos mais negligentes do que os
outros, isto não nos serve de consolo; as falhas de outros não nos
inocentam.
Quão poucos de nós poderíamos comparar-nos com o Sr. Joseph
Alleine, cujo caráter mencionei anteriormente! "Quando estava bem de
saúde", escreve sua esposa, "levantava-se constantemente às quatro
horas, ou antes, e ficava aborrecido quando ouvia ferreiros ou outros
artesãos em suas atividades antes de ele estar em comunhão com Deus,
dizendo-me muitas vezes: "Como este ruído me envergonha! O meu
Senhor não merece mais que o deles?" Das quatro às oito ficava em
oração, em santa contemplação e cantando salmos, com que se deleitava
muito, e o que praticava diariamente, a sós e com a família. Às vezes ele
suspendia a rotina dos seus compromissos paroquiais e dedicava dias
completos a esses exercícios secretos, para o que dava um jeito de ficar
sozinho numa casa desocupada, ou senão em algum ponto isolado, em
pleno vale. Ali fazia muita oração e meditação sobre Deus e o céu."
Poderíamos ler, sem ruborizar-nos, a discrição que Jonathan
Edwards faz de Davi Brainerd? "Sua vida", diz Edwards, "mostra o
modo certo de se obter sucesso nos labores ministeriais. Ele o buscava
como um soldado resoluto busca a vitória num assédio ou numa batalha;
ou como um homem que disputa numa corrida um grande prêmio.
Animado pelo amor a Cristo e às almas, como trabalhava sempre com
fervor, não só na palavra e na doutrina, em público e em particular, mas
também em orações dia e noite, "lutando com Deus" em secreto, e "com
dores de parto", com gemidos e agonias inexprimíveis, "até ser Cristo
formado" nos corações das pessoas às quais ele foi enviado! Como era
sedento por uma bênção a seu ministério, e velava pelas almas "como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 65
quem deve prestar contas"! Como ele ia "na força do Senhor" Deus,
procurando e se pondo na dependência da influência especial do Espírito
para assisti-lo e prosperá-lo! E que feliz fruto, afinal, depois de longa
espera e de muitos aspectos tenebrosos e desanimadores; como um
verdadeiro filho de Jacó, perseverava lutando através de toda a escuridão
da noite, até romper o dia."
Por certo nos causaria vergonha o diário de Henry Martyn, em que
achamos assentamentos como estes: "24 de setembro – A determinação
com que fui para a cama a noite passada, de devotar o dia de hoje à
oração e ao jejum, pude pôr em execução. Em minha primeira oração por
libertação de pensamentos mundanos, confiando no poder e nas
promessas de Deus, firmando a minha alma enquanto orava, tive ajuda
para desfrutar muita abstinência do mundo por quase uma hora: Li
depois a história de Abraão, para ver com que familiaridade Deus Se
revelara a mortais da antigüidade. Em seguida, orando por minha
santificação pessoal, minha alma aspirou livre e ardentemente a
santidade de Deus, e este foi o melhor período do dia". Talvez
pudéssemos juntar-nos mais sinceramente a ele em seus lamentos após o
primeiro ano do seu ministério, em que julgou "ter dedicado demasiado
tempo às ministrações públicas, e pouquíssimo à comunhão a sós com
Deus".
Quanta bênção perdemos por sermos remissos nas súplicas, mal
podemos imaginar, e nenhum de nós pode saber como somos pobres em
comparação com o que poderíamos ser se vivêssemos habitualmente
mais perto de Deus em oração. Vãos pesares e conjeturas são inúteis,
mas uma vigorosa determinação a corrigir-nos será muito mais útil. Não
só devemos orar mais, mas precisamos. O fato é que o segredo de todo o
sucesso ministerial está em prevalecer na sede da misericórdia – no
propiciatório.
Uma fulgente dádiva do céu que a oração particular traz ao
ministério é algo indescritível e inimitável, melhor para se experimentar
do que para se contar; é um orvalho do Senhor, uma presença divina que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 66
vocês reconhecerão de imediato quando lhes disser que é "a unção do
Santo". Que será isto? Pergunto-me quanto tempo haveríamos de ficar
espremendo o cérebro até podermos colocar claramente em palavras o
que se quer dizer com pregar com unção. Contudo, quem prega sabe da
sua presença, e quem ouve logo detecta a sua ausência. Samaria, em
crise de fome, tipifica um discurso sem ela; Jerusalém, com suas testas
repletas de substâncias gordas e de tutano, pode representar um sermão
enriquecido por ela.
Toda gente sabe o que é o frescor da manhã quando pérolas
brilhantes recobrem cada folha da grama, mas quem pode descrevê-lo e,
quanto mais, produzi-lo por si mesmo? Assim é o mistério da unção
espiritual; sabemos o que é, mas não a podemos explicar a outros. É tão
fácil como insensato falsificá-la, como fazem alguns que usam
expressões que pretendem demonstrar fervente amor, mas, com mais
freqüência indicam sentimentalismo piegas ou mera gíria. "Querido
Senhor!" "Doce Jesus!" "Cristo precioso!" são expressões despejadas por
atacado por eles, a ponto de deixar a gente com náuseas. Estas
familiaridades podem ter sido não somente toleráveis, mas até belas,
quando caíram pela primeira vez dos lábios de um santo de Deus, falando
como que da glória excelsa, mas quando repetidas petulantemente, não só
são intoleráveis, como também indecentes, senão profanas.
Alguns têm tentado imitar a unção por meio de entonação e
gemidos inaturais; virando os olhos pondo à mostra só o branco do globo
ocular; e levantando as mãos de modo sumamente ridículo. Ouvem-se a
entonação e o ritmo de McCheyne repetidos constantemente pelos
escoceses; preferimos o seu espírito a seu maneirismo; e todo mero
maneirismo sem poder é como repugnante carniça de toda forma de vida
desolada, odiosa e nociva. Certos irmãos pretendem obter inspiração
mediante esforços e altos gritos; mas ela não vem. Sabemos que alguns
interrompem o sermão, e exclamam: "Deus os abençoe" , e que outros
gesticulam de maneira selvagem, e metem as unhas nas palmas das mãos
como se estivessem tendo convulsões de febre celestial. Bolas! Essa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 67
coisa toda cheira a camarim e palco. Instilar fervor nos ouvinte mediante
simulação dele pelo pregador, é uma abominável fraude que deve ser
desprezada pelos honestos.
"Simular sentimento", diz Richard Cecil, "é repugnante e logo
percebido mas sentir verdadeiramente é o caminho para o coração dos
outros." Unção é uma coisa que não se pode fabricar, e suas imitações
são piores do que indignas; entretanto, seu valor é inestimável, e ela é
necessária além de toda medida, se é que vocês desejam edificar os
crentes e levar pecadores a Jesus. Àquele que pleiteia secretamente com
Deus é entregue este segredo; sobre ele pousa o orvalho do Senhor, e o
cerca o perfume que alegra o coração. Se a unção que levamos não
provém do Senhor dos Exércitos, somos enganadores, e desde que só
com oração podemos obtê-la, perseveremos em súplicas insistentes e
constantes. Deixem o seu velo na eira dos rogos até umedecer-se com o
orvalho do céu. Não ministrem no templo enquanto não se lavarem na
pia perto do altar. Não se considerem mensageiros da graça a outros
enquanto vocês mesmos não tiverem visto o Deus da graça, e enquanto
não tiverem recebido a Palavra da Sua boca.
O tempo passado em quieta prostração da alma perante o Senhor é
extremamente revigorante. Davi fez isso diante do Senhor (2 Sm. 7:18);
é uma grande coisa manter esses "aconchegos sagrados", com a mente
receptiva, como uma flor aberta abeberando-se dos raios solares, ou
como a sensível chapa fotográfica captando a imagem diante de si. A
quietude, que alguns não conseguem suportar porque revela a sua
pobreza interior, é como um palácio de cedro para o sábio, pois ao longo
dos seus pátios sagrados o Reí em Sua formosura condescende em
passear.
"Ó sagrado silêncio! tu és represa
do coração, sim, do âmago da gente;
produto de celeste natureza;
gelo da boca e degelo da mente."
(Flecknoe)
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 68
Inestimável como o dom da elocução possa ser, a prática do silêncio
em alguns aspectos o sobrepuja em muito. Acham que sou quacre? Bem,
que o seja. Nisto eu sigo George Fox com o maior afeto, pois estou
persuadido. de que a maioria de nós pensa bem demais da linguagem
falada que, afinal, é apenas o invólucro do pensamento. A contemplação
em silêncio, o culto silente, o arrebatamento sem articulação de palavras,
são meus, quando tenho diante de mim as minhas melhores jóias.
Irmãos, não neguem ao seu coração as alegrias do alto mar; não deixem
de lado a vida de maior profundidade, ficando sempre a tagarelar entre as
conchas quebradas e as ondas espumosas da praia.
Recomendo-lhes seriamente que, quando estiverem estabelecidos
no ministério, celebrem períodos especiais de devoção. Se as orações
feitas ordinariamente não estiverem mantendo a vida e o vigor das suas
almas, e notarem que se enfraquecem, fiquem sozinhos por uma semana,
ou até por um mês, se possível. Ocasionalmente temos feriados
nacionais; por que não termos com freqüência dias santos? Sabemos de
irmãos mais ricos que acham tempo para uma viagem a Jerusalém; não
poderíamos dispensar tempo para uma viagem menos difícil e muito
mais proveitosa à cidade celestial?
Isaac Ambrose, que foi pastor em Preston, autor do famoso livro,
Looking to Jesus (Olhando para Jesus), sempre reservava um mês por
ano para reclusão numa cabana em uma floresta de Garstang. Não
admira que fosse um teólogo tão cheio de poder, desde que passava com
regularidade tanto tempo no monte com Deus. Noto que os romanistas
estão acostumados a manter o que chamam de "Retiros", aonde certo
número de sacerdotes se acolhe por um tempo, procurando a quietude
completa, para passar o tempo todo em jejum e oração, com o fim de
inflamar de ardor as suas almas.
Podemos aprender dos nossos adversários. Seria uma grande coisa
de vez em quando um grupo de irmãos verdadeiramente espirituais
passar juntos um dia ou dois em real e consumidora agonia de oração.
Num retiro só de pastores, estes poderiam ter muito mais liberdade do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 69
que num grupo misto. Períodos de humilhação e de súplicas para a igreja
toda também nos beneficiarão, se nos dedicarmos a isso de coração.
Os nossos períodos de jejum e oração no Tabernáculo têm sido de
fato dias de grande elevação. Nunca os portais do céu estiveram mais
amplamente abertos; nunca os nossos corações estiveram mais perto do
centro da glória. Aguardo sequioso o nosso mês de devoção especial,
como os marinheiros quando calculam que se aproximam de terra.
Mesmo que o nosso trabalho público fosse posto de lado para dar-nos
lugar à oração especial, poderia ser grande ganho para as nossas igrejas.
Uma viagem pelos rios da comunhão e da meditação seria bem
recompensada por um frete de sentimento santificado e de pensamento
elevado. O nosso silêncio poderia ser melhor do que as nossas vozes, se
passássemos com Deus a nossa solidão.
Foi uma atitude grandiosa a que o velho Jerônimo tomou quando
pôs de lado todas as suas prementes ocupações para realizar um
propósito que ele entendia ser um chamamento do céu. Tinha a seu cargo
uma grande igreja, tão grande que qualquer de nós gostaria de ter igual.
Mas ele disse a seu povo: "Agora há necessidade de que o Novo
Testamento seja traduzido; vocês precisam encontrar outro pregador. A
tradução precisa ser feita. Vejo-me forçado a partir para o deserto, e não
voltarei enquanto não concluir a minha tarefa". Lá se foi com os seus
manuscritos, e orou e trabalhou, e produziu uma obra – a Vulgata Latina
– que durará enquanto o mundo existir; de modo geral, a mais
maravilhosa tradução da Escritura Sagrada. Como num retiro, estudo e
oração igualmente e juntamente puderam produzir uma obra imortal, se
às vezes disséssemos aos nossos ouvintes, quando nos sentíssemos
impulsionados a fazê-lo: "Diletos amigos, precisamos realmente sair um
pouco para renovar a nossa alma na solidão"; o nosso aproveitamento
logo se tornaria patente, e embora não escrevêssemos Vulgatas Latinas,
ainda assim realizaríamos uma obra imortal, capaz de resistir ao fogo.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 70
ORAÇÃO EM PÚBLICO

Às vezes a vanglória dos episcopais é que os membros da igreja


oficial vão aos seus templos para orar e prestar culto a Deus, mas os
dissidentes (os das igrejas livres) simplesmente se reúnem para ouvir
sermões. Nossa réplica a isso é que, conquanto possam existir alguns
crentes professos culpados deste mal, não é verdade quanto aos filhos de
Deus que nos cercam, e pessoas desta estirpe espiritual são as únicas que
realmente apreciam a devoção, em qualquer igreja. Os crentes de nossas
igrejas se reúnem para prestar culto a Deus, e nós afirmamos, e não
hesitamos em afirmá-lo, que se eleva tanta oração verdadeira e aceitável
em nossas reuniões não-conformistas regulares, como nas melhores e
mais pomposas realizações da Igreja da Inglaterra.
Além disso, se aquela observação tiver o propósito de fazer supor
que ouvir sermões não é cultuar a Deus, funda-se em grosseiro engano,
porquanto ouvir corretamente o evangelho é uma das partes mais nobres
da adoração ao Altíssimo. É um exercício mental em que, quando
corretamente praticado, todas as faculdades do homem espiritual são
chamadas à realização de atos de devoção. Ouvir reverentemente a
Palavra exercita a nossa humildade, instrui a nossa fé, engolfa-nos em
raios de fulgente alegria, inflama-nos de amor, inspira-nos zelo, e nos
eleva até o céu.
Muitas vezes um sermão tem sido uma espécie de escada de Jacó na
qual vimos os anjos de Deus subindo e descendo, e a aliança de Deus no
alto dela. Temos sentido com freqüência quando Deus fala através dos
Seus servos ao íntimo das nossas almas. "Este não é outro lugar senão a
casa de Deus; e esta é a porta dos céus." Temos engrandecido o nome do
Senhor e O temos louvado de todo o coração, enquanto Ele nos tem
falado mediante o Seu Espírito, que Ele deu aos homens. Daí, não existe
aquela larga diferença entre a pregação e a oração, que alguns querem
que admitamos; pois a primeira parte da reunião funde-se brandamente
com a outra, e freqüentemente o sermão inspira a oração e o hino. A
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 71
verdadeira pregação é uma aceitável adoração a Deus pela manifestação
dos Seus atributos graciosos. O testemunho do Seu evangelho, que O
glorifica preeminentemente, e ouvir com obediência a verdade revelada,
são uma forma aceitável de culto ao Altíssimo, e talvez uma das mais
espirituais de que se pode ocupar a mente humana.
Não obstante, como nos diz o velho poeta romano, é certo aprender
dos nossos inimigos, e, portanto, talvez seja possível que os nossos
oponentes litúrgicos nos tenham indicado o que em alguns casos ocupa
má colocação em nossos cultos públicos. É de temer que os nossos
exercícios espirituais não sejam, em todos os casos, modelados da
melhor forma, ou apresentados da maneira mais recomendável. Há
salões de culto em que as súplicas não são nem tão devotas, nem tão
fervorosas como desejamos; noutros locais o fervor vem tão aliado à
ignorância, e a devoção tão desfigurada pelo linguajar bombástico, que
nenhum crente inteligente pode entrar para partilhar do culto com prazer.
Orar no Espírito não é praticado universalmente entre nós, como também
nem todos oram com o entendimento e com o coração. Há lugar para
melhoramento, e em algumas partes há imperiosa exigência disso.
Permitam-me, pois, amados irmãos, acautelar-vos contra o perigo de
estragarem os cultos com as suas orações. Tomem solenemente a
resolução de que todas as atividades do santuário haverão de ser da
melhor qualidade.
Fiquem certos de que a oração espontânea é a mais bíblica, e deve
ser a mais excelente forma de prece pública. Se perderem a fé no que
fazem, nunca o farão bem. Portanto, ponham na cabeça que perante o
Senhor vocês estão prestando um culto de maneira autorizada pela
Palavra de Deus e aceita pelo Senhor. A expressão "orações para ler" a
que estamos acostumados, não se acha na Escritura Sagrada, rica de
palavras como ela é para a transmissão de pensamento religioso; e a
frase não está lá porque a coisa de que trata nunca teve existência. Onde,
nos escritos dos apóstolos se acha a idéia pura e simples de uma liturgia?
Nas assembléias dos primeiros cristãos a oração não se restringia a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 72
nenhuma fórmula de palavras. Tertuliano escreve: "Oramos sem ponto
porque do coração". Justino Mártir descreve o ministro dirigente fazendo
oração "de acordo com sua capacidade".
Seria difícil descobrir quando e onde começaram as liturgias. Sua
introdução foi gradativa e, segundo cremos, em paralelo com o declínio
da pureza da igreja. A introdução delas entre os não-conformistas – isto
é, entre as igrejas livres, não oficiais – assinalaria a era do nosso declínio
e queda. O assunto me tenta a dilatar-me, mas não é o ponto em foco, e,
portanto, passo adiante, anotando apenas que vocês encontrarão a
matéria referente às liturgias habilmente tratada pelo Dr. John Owen, a
quem farão bem em consultar.*
Compete-nos provar a superioridade da oração improvisada,
fazendo-a mais espiritual e mais fervorosa do que a devoção litúrgica
formal. É uma lástima quando o ouvinte é levado a observar: "O nosso
ministro prega muito melhor do que ora". Isto não está de acordo com o
modelo de nosso Senhor. Ele falava como nenhum homem jamais falou;
e quanto às Suas orações, tanto impressionaram os Seus discípulos que
eles disseram: "Senhor, ensina-nos a orar". Todas as nossas faculdades
devem concentrar as suas energias, e o homem completo deve elevar-se
ao ponto máximo do seu vigor, quando estiver orando em público, sendo
nesse ínterim batizado na alma e no espírito com a Sua sagrada
influência. Mas a fala desalinhada, negligente e sem vida à guisa de
oração, feita para encher certo espaço de tempo durante o culto, é tédio
para o homem e abominação para Deus.
Se a oração espontânea tivesse sido universalmente de categoria
mais elevada, nunca se teria pensado numa liturgia, e as fórmulas de
orações atuais não têm melhor desculpa do que a debilidade das
devoções improvisadas. O segredo está em que não somos realmente
devotos de coração, como deveríamos ser. A habitual comunhão com

*
A Discourse Concerning Liturgies and their Imposition (Discurso Sobre Liturgia e sua Imposição),
Vol. XV, Owen's Works, Goold's Edition.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 73
Deus deve ser mantida, ou senão as nossas orações públicas serão
insípidas ou formalistas. Se não houver degelo das geleiras nas escarpas
da montanha, não haverá arroios descendo para animar a planície. A
oração em secreto é o terreno amanhado para as nossas ministrações
públicas. E não podemos negligenciá-la por muito tempo sem ficarmos
desajeitados quando estivermos diante do povo.
As nossas orações nunca devem rastejar; devem alçar vôo e subir.
Temos necessidade de uma estrutura mental celeste. As nossas petições
dirigidas ao trono da graça devem ser solenes e humildes, não petulantes
e ostensivas, nem formalistas e negligentes. A maneira coloquial de falar
está deslocada, diante do Senhor; devemos inclinar-nos reverentemente e
com o mais profundo temor. Podemos falar sem embaraço com Deus,
mas Ele ainda está no céu e nós na terra, e devemos evitar toda
presunção. Na súplica nos colocamos peculiarmente diante do trono do
Infinito, e, como o cortesão assume no palácio real outros ares e outros
modos, diferentes dos que exibe a seus colegas da corte, assim deve ser
conosco.
Nas igrejas da Holanda observamos que, tão logo o ministro
começa a pregar, todos os homens põem o chapéu, mas no instante em
que passa a orar, todos tiram o chapéu. Este era o costume nas igrejas
puritanas mais antigas da Inglaterra, e perdurou com os batistas. Usavam
seus gorros durante as partes do culto que entendiam que não eram
propriamente atos de adoração, mas os tiravam lago que havia uma
direta aproximação a Deus, no hino ou na oração. Considero imprópria a
prática, e errôneo o seu motivo. Tenho insistido em que a distinção entre
orar e ouvir a Palavra não é grande, e estou certo de que ninguém iria
propor retorno ao velho costume ou à opinião da qual ele é indicativo.
Contudo, há uma diferença, e, considerando que na oração estamos
falando diretamente com Deus, mais do que procurando a edificação dos
nossos semelhantes, temos que tirar os sapatos dos pés, pois o lugar em
que estamos pisando é terra santa.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 74
Que somente o Senhor seja o objeto das nossas orações. Cuidado
para não ficarem com um olho posto nos ouvintes; cuidado para não se
tornarem retóricos a fim de agradarem as suas audiências. A oração não
deve ser transformada num "sermão indireto". É pouco menos que
blasfêmia fazer da devoção uma oportunidade para exibição. As belas
orações geralmente são muito ímpias. Na presença do Senhor dos
Exércitos não fica bem o pecador fazer desfilar a plumagem e os atavios
de um linguajar extravagante, tendo em vista receber aplauso dos seus
semelhantes, como ele mortais. Os hipócritas que se atrevem a fazer isso
têm sua recompensa, mas esta é de causar pavor. Uma pesada sentença
de condenação foi imposta a um ministro quando se disse
lisonjeiramente que a sua oração foi a mais eloqüente de todas as orações
já apresentada a uma igreja de Boston. Podemos ter o objetivo de
estimular os anseios e aspirações dos que nos ouvem orar; mas cada
palavra e cada pensamento devem ser dirigidos a Deus, devendo tocar
nas pessoas presentes só o bastante para levá-las e suas necessidades à
presença do Senhor. Lembrem-se das pessoas em suas orações, mas não
modelem as suas súplicas com vistas a obter a sua estima. Olhem para o
alto; olhem para o alto com os dois olhos. .
Evitem todas as vulgaridades na oração. Admito que ouvi algumas
delas, mas não seria proveitoso repeti-las; especialmente quando se
tornam cada dia menos freqüentes. Raramente topamos agora com as
vulgaridades na oração que outrora eram muito comuns nas reuniões de
oração dos metodistas, provavelmente muito mais comuns nos boatos do
que na realidade. As pessoas sem instrução têm que orar do seu jeito,
quando têm fervor, e a sua linguagem muitas vezes choca os exigentes,
senão os devotos; mas essa permissão tem que ser dada, e se o espírito
for evidentemente sincero, podemos perdoar as expressões toscas.
Uma vez, numa reunião de oração, ouvi um pobre homem orando
assim: "Senhor, toma conta destes jovens nos dias de festa, pois sabes,
Senhor, como os inimigos deles os espreitam como o gato espreita os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 75
ratos". Alguns zombaram da expressão, mas a mim me pareceu natural e
significativa, considerando a pessoa que a empregou.
Um pouco de instrução com delicadeza, e uma ou duas sugestões
geralmente impedem a repetição de coisas objetáveis em casos assim,
mas nós, que ocupamos o púlpito, precisamos ter o cuidado de ser bem
claros. O biógrafo daquele notável pregador metodista americano, Jacob
Gruber, menciona como exemplo da sua presença de espírito, que,
depois de ter ouvido um jovem ministro calvinista atacar o seu credo,
foi-lhe solicitado concluir com oração, e, entre outras petições, orou que
o Senhor abençoasse o jovem que estivera pregando, e lhe concedesse
muita graça, "para que o seu coração ficasse mole como a sua cabeça".
Deixando de lado o mau gosto de tal animadversão pública contra
um colega, qualquer pessoa cuja mente funcione bem verá que o trono
do Altíssimo não é lugar para a emissão desses gracejos vulgares. Muito
provavelmente o jovem orador mereceu castigo por sua ofensa ao amor
cristão, mas o mais velho pecou dez vezes mais com sua falta de
reverência. Ao Rei dos reis é cabível dirigir palavras seletas, não as que
foram poluídas por línguas grosseiras.
Outro defeito que se deve evitar na oração é a irreverente e
repugnante superabundância de palavras afetuosas. Quando expressões
como "Querido Senhor", "Bendito Senhor" e "Doce Senhor" aparecem e
tornam a aparecer como vãs repetições, estão entre as piores nódoas.
Devo confessar que não causariam repulsa à minha mente as palavras
"Querido Jesus", se saíssem dos lábios de um Rutherford, ou de um
Hawker, ou de um Herbert; mas quando ouço expressões amigáveis e
afetuosas desgastadas por pessoas nada notáveis por sua espiritualidade,
inclino-me a desejar que possam, de uma forma ou de outra, chegar a ter
melhor entendimento da verdadeira relação existente entre o homem e
Deus. A palavra "querido", dado o seu uso habitual, veio a ser tão
comum, tão fraca e, em alguns casos, tão afetada e tola, que misturar
com ela as orações não produz edificação.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 76
Existe a mais forte objeção à constante repetição da palavra
"Senhor", que ocorre nas primeiras orações dos jovens conversos, e
mesmo entre os estudantes. As palavras "Ó Senhor! Ó Senhor! Ó
Senhor!" nos afligem quando as ouvimos tão perpetuamente repetidas.
"Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão", é um grande
mandamento, e, embora se possa quebrar a leí inconscientemente,
quebrá-la ainda é pecado, e grave. O nome de Deus não deve ser um
tapa-buracos, para suprir a nossa pobreza de vocabulário. Tomem
cuidado para empregar com a máxima reverência a nome do infinito
Jeová. Em seus escritos sagrados, os judeus, ou deixam espaço em
branco no lugar da palavra "Jeová", ou então escrevem a palavra
"Adonai", porque na concepção deles aquele nome santo é demasiado
sagrado para ser usado de modo comum. Não precisamos ser
supersticiosos assim, mas seria bom sermos escrupulosamente
reverentes. A profusão de "Ohs!" e de outras interjeições bem pode ser
dispensada; os jovens pregadores freqüentemente estão em falta aqui.
Evitem aquele tipo de oração que pode ser denominada – embora o
assunto seja tal que sobre ele a língua não nos deu muitos termos – uma
espécie de peremptória exigência feita a Deus. É deleitável ouvir um
homem lutar com Deus e dizer: "Não te deixarei ir, se me não
abençoares", mas isso tem que ser dito suavemente, e não com espírito
de bravata, como se pudéssemos mandar no Senhor de tudo quanto há, e
exigir-Lhe bênçãos. Lembrem-se, ainda se trata de um homem que está
lutando, conquanto tenha a permissão de lutar com o eterno EU SOU.
Jacó "manquejava da coxa" depois daquele santo conflito noturno, para
fazê-lo ver que Deus é terrível, e que o poder com o qual prevalecera não
jazia nele próprio. Somos ensinados a dizer, "Pai nosso", mas ainda é
"Pai nosso, que estás nos céus".
Familiaridade pode haver, mas familiaridade santa; intrepidez, mas
a intrepidez que brota da graça e que é obra do Espírito Santo; não a
intrepidez do rebelde que anda com fronte de bronze na presença do seu
rei ofendido, mas a intrepidez da criança que teme porque ama, e ama
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 77
porque teme. Jamais caiam no inglório modo de dirigir-se a Deus com
impertinência. Ele não deve ser assaltado como se fosse um adversário,
mas deve ser invocado como nosso Senhor e Deus. Sejamos humildes e
submissos de espírito, e assim oremos.
Orem quando anunciam que oram, e não falem disso, apenas. Os
homens de negócio dizem: "Um lugar para cada coisa, e cada coisa em
seu lugar". Preguem no sermão e orem na oração. Fazer dissertações
sobre a nossa necessidade de recorrer à oração não é orar. Por que os
homens não se põem a orar de uma vez? – por que ficam procurando
evasivas? Em lugar de dizer o que deveriam e gostariam de fazer, por
que não põem mãos à obra, em nome de Deus, e o fazem? Com decidido
fervor, dedique-se cada um à intercessão, e volte o rosto para o Senhor.
Rogue a Deus que supra as grandes e constantes necessidades da igreja, e
não deixe de instar, com devoto fervor, pelas necessidades especiais da
hora e do público presentes. Mencione os enfermos, os pobres, os
moribundos, o gentio, o judeu, e toda classe de pessoas esquecidas, à
medida que constranjam o seu coração.
Ore pelas pessoas da sua igreja como sendo santas e pecadoras –
não como se fossem todas santas. Mencione os jovens e os idosos, os
cuidadosos e os negligentes; os consagrados e os infiéis. Nunca vire para
a direita ou para a esquerda, mas continue arando, seguindo os sulcos da
oração veraz. Sejam as suas confissões de pecado e as suas ações de
graça sinceras e específicas; e sejam as suas petições apresentadas como
se você de fato cresse em Deus e não duvidasse da eficácia da oração.
Digo isto porque muitos oram de maneira tão formal que levam os
observadores a concluírem que os que as fazem acham que orar é uma
coisa muito decente, mas é, afinal, uma atividade bem pobre e duvidosa,
quanto a quaisquer resultados práticos. Ore como alguém que
experimentou e provou o seu Deus, e portanto vem renovar as suas
petições com indubitável confiança. E lembre-se de orar a Deus durante
a oração toda, e jamais passe a fazer discurso ou pregação enquanto ora –
e muito menos, como fazem alguns – a ministrar censura e a fazer queixas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 78
Como regra geral, se for convidado a pregar, dirija você mesmo a
oração. E se você gozar de alta estima no ministério, como espero que
aconteça, determine-se, com grande cortesia, mas com igual firmeza, a
resistir à prática da escolha de homens para orarem, com a idéia de
honrá-los dando-lhes algo para fazer. As nossas devoções públicas nunca
devem ser rebaixadas a oportunidades para atenções sociais. De vez em
quando ouço chamar a oração e o cântico de hinos de "serviços
preliminares", como se fossem apenas um prefácio do sermão. Espero
que isso seja raro entre nós – se fosse comum, seria para nossa maior
vergonha. Esforço-me invariavelmente para encarregar-me eu mesmo de
toda a ordem do culto, para o meu bem, e creio que também para o bem
do povo. Não acredito que "qualquer pessoa serve para fazer oração".
Não, senhores, é minha solene convicção que a oração é uma das
mais importantes, úteis e honoráveis partes do culto, e que deve até
merece maior consideração do que o sermão. Não devemos chamar para
orar pessoas de todo e qualquer tipo e, depois, fazer dentre elas a seleção
do mais capaz para pregar. Pode suceder que, ou por fraqueza, ou por se
tratar de ocasião especial, seja um alívio para o ministro ter alguém que
tome o seu lugar para elevar a oração. Mas se o Senhor lhe deu
capacidade para amar o seu trabalho, não muitas vezes, nem
prontamente, você fará essa parte por meio de procurador. Se delegar
todo o culto a outro, que o faça a alguém em cuja espiritualidade e
adequado preparo você tenha a mais plena confiança. Mas, pegar de
improviso um irmão menos dotado, e empurrá-lo para que realize
pessoalmente os atos de devoção, é vergonhoso.
"Ao céu nós serviremos com menor respeito
do que o fazemos com nossas toscas pessoas?"
Designe o mais competente para orar, e se houver falha, antes seja
no sermão do que na visita ao céu. Que o infinito Senhor seja servido
com o que temos de melhor; que a oração dirigida à Majestade divina
seja cuidadosamente avaliada, e então apresentada com todos os poderes
de um coração desperto e de um entendimento espiritual. Aquele que,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 79
pela comunhão com Deus, foi preparado para ministrar ao povo, é
normalmente de todos os presentes o mais idôneo para aplicar-se à
oração. Elaborar um programa que coloca outro irmão em seu lugar, é
macular a harmonia do culto, privar ao pregador uma função que o
encorajaria para o sermão, e em muitos casos sugere comparações entre
uma parte do culto e outra, coisa que não se deve tolerar. Se irmãos
despreparados hão de ser mandados ao púlpito para fazer a minha oração
no meu lugar quando me compete pregar, não vejo por que não me
permitir que ore e depois me retire para deixar que aqueles irmãos
preguem. Não consigo ver nenhuma razão para privar-me do mais santo,
mais doce e mais proveitoso serviço de que o meu Senhor me incumbiu.
Se eu puder fazer a escolha, preferirei dispensar o sermão a dispensar a
oração. Irmãos, falei tanto assim para fazê-los fixar o fato de que
necessitam ter em alta estima a oração pública, e busquem do Senhor os
dons e graças necessárias para efetuá-la bem.
Os que desprezam toda oração improvisada, provavelmente
apanharão estas observações e as usarão contra ela, mas posso assegurar-
lhes que os defeitos contra os quais vos adverti não são comuns entre
nós, e na verdade estão quase extintos. Também é fato que o tropeço
causado por eles, mesmo no pior dos casos, nunca foi tão grande como o
causado, muitas vezes, pela maneira de realizar o culto, usando a liturgia
formal. Com muitíssima freqüência o culto na igreja é desenvolvido
apressadamente, com tanta falta de devoção como se fosse uma canção
de um cantor de baladas. As palavras são papagueadas sem a mínima
apreciação do seu significado; não às vezes, mas, muito freqüentemente,
nos lugares reservados para o culto episcopal, podem-se ver os olhos do
povo, os olhos dos coristas e os olhos do próprio clérigo, vagando por
todas as direções, uma vez que, evidentemente, pelo próprio tom da
leitura, não há sentimento algum em sintonia com o que está sendo lido.
Estive em funerais em que o ofício fúnebre da Igreja da Inglaterra
foi conduzido a galope, de maneira tão indecorosa, que me foi necessário
empregar todo o cavalheirismo que tinha para impedir-me de atirar um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 80
capacho na cabeça da criatura. Fiquei tão indignado que não soube o que
fazer ao ouvir, na presença dos parentes do falecido, que estavam com o
coração sangrando, um homem a matraquear o ritual como se fosse pago
por peça e tivesse mais trabalho para fazer logo depois e, portanto,
quisesse chegar ao fim o mais depressa possível. Que efeito ele poderia
pensar que estava produzindo, ou que bom resultado poderia provir de
palavras arrancadas e arremessadas com força e violência, nem posso
imaginar. É realmente chocante pensar como aquele maravilhoso
cerimonial de enterro é assassinado e transformado numa abominação
pelo modo como freqüentemente o ofício é lido. Menciono isto
simplesmente porque, se eles criticarem as nossas orações com
demasiada severidade, podemos fazer um formidável contra-ataque para
silenciá-los. Todavia, muito melhor será corrigir as nossas tolices do que
achar defeito nos outros.
A fim de transformar a nossa oração pública naquilo que ela deve
ser, a primeira coisa necessária é, que tem que ser uma coisa do coração.
O homem tem que estar de fato com fervor quando ora. É preciso que
seja oração verdadeira e, se for, cobrirá multidão de pecados, como o
amor. Podem-se perdoar as familiaridades e vulgaridades de uma pessoa,
quando se vê claramente que o âmago do seu coração está falando com o
seu Criador, e que somente a sua educação defeituosa é que ocasiona os
seus defeitos na oração, e não quaisquer males morais ou espirituais do
seu coração.
Aquele que eleva súplicas a Deus em público deve ter ardor, pois,
que pode ser pior preparo para o sermão do que uma oração sonolenta?
Que é que pode levar mais o povo a não querer ir à casa de Deus do que
uma oração sonolenta? Ponha toda a alma no ato da oração. Se alguma
vez todo o seu ser se envolveu com alguma coisa, que o faça no sentido
de chegar perto de Deus em público. Ore, pois, para que, mediante uma
divina atração, você leve consigo todos os ouvintes até o trono de Deus.
Ore, pois, para que, mediante o poder do Espírito Santo pousando sobre
você, expresse os desejos e pensamentos de cada um dos presentes, e se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 81
erga como a única voz falando por centenas de corações frementes, que
estão inflamados de fervor perante o trono de Deus.
Logo a seguir, as nossas orações devem ser pertinentes. Não digo
que se entre em todas e em cada uma das minúcias das circunstâncias
dos membros da igreja. Como já disse, não há necessidade de
transformar a oração pública numa gazeta dos acontecimentos da
semana, ou num registro de nascimentos, mortes e casamentos do
pessoal da igreja, mas os movimentos gerais que se deram entre os
irmãos devem ser notados pelo diligente coração do ministro. Ele deve
apresentar igualmente as alegrias e as tristezas do seu povo ao trono da
graça, e pedir que a bênção divina repouse sobre o seu rebanho em todos
os seus movimentos, atividades espirituais, serviços e santos
empreendimentos, e que Deus estenda o Seu perdão a todas as falhas e
inumeráveis pecados dos irmãos.
Depois, por meio de uma regra dada em termos negativos, devo
dizer, não alongue a sua oração. Acho que era John Macdonald que
costumava dizer: "Se você estiver com espírito de oração, não se
alongue, porque as outras pessoas não conseguirão manter o passo com
você nessa incomum espiritualidade; e se você não estiver com espírito
de oração, não se alongue, porque esteja certo de que aborrecerá os
ouvintes".
A respeito de Robert Bruce, de Edimburgo, o famoso
contemporâneo de Andrew Melville, diz Livingstone: "Ninguém em seu
tempo falava com tal evidência e poder do Espírito. Ninguém possuía
tantos selos da conversão; sim, muitos dos seus ouvintes achavam que
homem nenhum, desde os apóstolos, falara com tal poder. ... Ele era
muito breve na oração quando havia outros presentes, mas cada frase era
como um poderoso dardo disparado para o céu. Ouvi-o dizer que se
cansava quando outros faziam oração comprida; mas, estando a sós,
passava muito tempo em luta espiritual e oração".
Em ocasiões especiais, uma pessoa pode, se se sentir
extraordinariamente movida e arrebatada, orar durante vinte minutos no
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 82
culto matutino mais longo, mas isto não deve suceder com freqüência. O
meu amigo, Dr. Charles Brown, de Edimburgo, estabelece, como
resultado do seu ponderado julgamento, que dez minutos é o limite a que
deve estender-se a oração pública.
Os nossos antepassados puritanos costumavam orar por três quartos
de hora, ou mais, mas aí você precisa lembrar-se de que eles não sabiam
se teriam outra oportunidade de orar de novo diante de uma assembléia
e, portanto, faziam-no até saciar-se. Além disso, naquele tempo as
pessoas não eram propensas a contender pela extensão das orações ou
dos sermões como hoje em dia. Nunca será demasiado longa a sua
oração em particular. Não a limitaremos a dez minutos ali, nem a dez
horas, nem a dez semanas, se quiser. Quanto mais tempo estiver de
joelhos a sós, melhor. Agora estamos falando daquelas orações que vêm
antes ou depois do sermão, e para essas orações, dez minutos é melhor
limite do que quinze. Apenas um em mil se queixaria de você por ser
breve demais, ao passo que dezenas murmurarão por você ser enfadonho
por alongar-se muito. "Ele orou de modo que me colocou em bom estado
de espírito", disse uma vez George Whitefield sobre certo pregador, "e se
tivesse parado ali, estaria tudo muito bem; mas, continuando a orar,
tirou-me de novo dele".
A imensa longanimidade de Deus exemplifica-se no fato de ter Ele
poupado alguns pregadores que neste sentido têm cometido grave
pecado; eles têm lesado a piedade do povo de Deus com suas orações de
longo fôlego e, apesar disso, Deus, em Sua misericórdia, permite que
continuem a ministrar no santuário. Ah! pobres daqueles que têm que
ouvir pastores que fazem orações de quase meia hora e depois pedem
perdão a Deus por suas "omissões"! Não se alongue, por diversos
motivos. Primeiro, porque você e o povo se cansarão; segundo, porque
fazer oração muito comprida indispõe o coração das pessoas para o
sermão.
Toda aquela árida, fastidiosa e prolixa tagarelice na oração serve
apenas para embotar a atenção, e assim, os ouvidos se fecham como se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 83
estivessem entupidos. Ninguém que pretenda tomar de assalto a "porta
da audição" pensará em bloqueá-la com barro ou pedras. Não; trate de
deixar limpo o portal, para que o aríete do evangelho produza efeito
quando chegar o tempo de usá-lo. As orações longas consistem, ou de
repetições, ou de explicações desnecessárias que Deus não requer; ou
então degeneram, transformando-se em pregações indiretas, de sorte que
deixa de haver diferença entre a oração e a pregação, exceto que na
primeira o ministro mantém os olhos fechados, e na segunda os mantém
abertos.
Na oração não é preciso recitar o Catecismo da Assembléia de
Westminster. Na oração não é preciso relatar a experiência de todos os
presentes, e nem mesmo a sua própria. Na oração não é preciso enfileirar
uma seleção de textos da Escritura, e citar Davi, Daniel, Jó, Paulo,
Pedro, e todos os demais, sob o título de "Teu servo do passado". Na
oração é preciso aproximar-se de Deus, mas não se requer que você
prolongue tanto o seu falar, que toda gente fique ansiosa por ouvir a
palavra "Amém".
Não posso deixar de fazer uma breve sugestão: Nunca faça parecer
que está concluindo, recomeçando então a falar mais uns cinco minutos.
Quando os amigos ficam com a idéia de que você está prestes a terminar,
não podem com um tranco retomar o espírito devoto e prosseguir.
Conheci homens que nos impunham o suplício de Tântalo, dando-nos a
esperança de que se aproximavam do fim, e depois se impunham por
novos períodos, duas ou três vezes. Isso é sumamente insensato e
desagradável.
Outra norma é – não empregue frases bombásticas. Irmãos,
acabemos de uma vez com essas coisas desprezíveis. Tiveram os seus
dias; deixemos que morram. Não há como exagerar na crítica a essas
peças de gritante pompa espiritual. Algumas delas são puras invenções;
outras são passagens tiradas dos apócrifos; outras são textos que se
originaram na Escritura, mas que têm sido horrivelmente deformados
desde quando foram produzidos pelo Autor da Bíblia.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 84
Na Revista Batista de 1861 eu fiz as seguintes observações sobre as
vulgaridades que ocorrem comumente nas reuniões de oração:
"As frases bombásticas são um grande mal. Quem poderia justificar
expressões como as de que tratarei a seguir? "Não deveríamos correr para
a presença do Senhor como o cavalo, incapaz de pensar, corre para a
batalha". Como se os cavalos alguma vez pensassem, e como se não fosse
melhor exibir a elegância e a energia do cavalo do que a lentidão e a
estupidez do asno! Como a estrofe da qual imaginamos que essa fina
citação foi extraída relaciona-se mais com pecados do que com orações,
alegramo-nos com o fato de que a frase está em plena decadência. "Vá de
coração em coração, como o óleo vai de vaso em vaso" é provavelmente
citação do conto infantil de Ali Babá e os Quarenta Ladrões, mas destituída
de sentido, de Escritura e de poesia, como qualquer frase que se poderia
conceber. Não nos consta que o óleo corra de um vaso a outro de algum
modo misterioso ou maravilhoso. É certo que ao ser despejado escorre
lentamente e, portanto, é adequado símbolo do fervor de algumas pessoas.
Mas, certamente seria melhor receber a graça diretamente do céu do que de
outro vaso – idéia papista que a metáfora parece insinuar, se é que de fato
tem algum significado. "Teu pobre e indigno pó", epíteto que geralmente os
homens mais orgulhosos da igreja se aplicam a si próprios, e não raro os
mais presos ao dinheiro e mais ordinários, caso em que as duas últimas
palavras da frase não são muito impróprias.
"Ouvimos falar de um bom homem que, intercedendo por seus filhos e
netos, ficou tão obscurecido pela alucinante influência da sua expressão,
que exclamou: "Ó Senhor, salva o Teu pó, e o pó do Teu pó, e o pó do pó do
Teu pó". Quando Abraão disse, "Eis que agora me atrevi a falar ao Senhor,
ainda que sou pó e cinza", a sua declaração foi vívida e expressiva; mas em
sua forma mal citada, pervertida e exagerada, quanto mais depressa for
reduzida a pó, melhor. Um miserável aglomerado de perversões da
Escritura, rudes símiles e ridículas metáforas constituem uma espécie de
gíria espiritual, fruto de ignorância ímpia, de imitação desfibrada ou de
hipocrisia decorrente de ausência da graça; são ao mesmo tempo uma
desonra para os que estão sempre repetindo essas coisas, e um
aborrecimento intolerável para aqueles cujos ouvidos são atormentados por
elas."
O Dr. Charles Brown, de Edimburgo, em admirável discurso numa
reunião da New College Missionary Association, dá exemplos de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 85
citações truncadas peculiares à Escócia que, todavia, às vezes atravessa o
rio Tweed. Com sua permissão, farei citação completa.
"Há aquilo que se poderia denominar mescla infeliz, às vezes
inteiramente grotesca, de textos da Escritura. Quem não conhece as
seguintes palavras dirigidas a Deus em oração: "Tu és o alto e sublime, que
habitas a eternidade e seus louvores"?, confusão de dois textos gloriosos,
cada um deles glorioso se tomado isoladamente – ambos maculados, e um
deles na verdade irremediavelmente perdido, quando assim combinados e
misturados. Um é Isaías 57:15: "Porque assim diz o alto e sublime, que
habita na eternidade, e cujo nome é santo". O outro é o Salmo 22:3: "Porém
tu és Santo, o que habitas entre os louvores de Israel'. A referência à
habitação entre louvores da eternidade é, para dizer o mínimo, pobre. Não
havia louvores na eternidade passada para serem habitados. Mas, que glória
há em condescender Deus em habitar, em fazer Seu domicílio, entre os
louvores de Israel, da igreja resgatada!
"Depois há um exemplo nada menos que grotesco sob este título e,
contudo, em tão freqüente uso que suspeito que geralmente se considera
que tem a sanção da Escritura. Ei-lo: "Poríamos a nossa mão em nossa
boca, e a nossa boca no pó, e clamaríamos: Imundos, imundos; ó Deus, tem
misericórdia de nós, pecadores!" Trata-se de não menos de quatro textos
reunidos, cada um deles belo, isoladamente. O primeiro é o de Jó 40:4: "Eis
que sou vil; que te responderia eu? A minha mão ponho na minha boca". O
segundo é o de Lamentações 3:29: "Ponha a sua boca no pó; talvez assim
haja esperança". O terceiro é o de Levítico 13:45, onde se diz ao leproso
que cubra o lábio superior, e grite: "Imundo, imundo". E o quarto é a oração
do publicano. Mas como é incongruente pôr alguém primeiro a mão na boca,
depois a boca no pó, e, por último, clamar, etc.!
"O único outro exemplo que dou é uma expressão quase universal
entre nós, e, desconfio, considerada quase universalmente como registrada
na Escritura: "Em teu favor há vida, e tua benignidade é melhor do que a
vida". O fato é que isso também não passa de uma infeliz junção de duas
passagens, em que o termo vida é empregado em sentidos completamente
diversos, e mesmo incompatíveis, a saber, o Salmo 63:3, "Porque a tua
benignidade é melhor do que a vida", onde evidentemente, vida significa a
presente vida temporal. A outra passagem é o Salmo 30:5b - "no seu favor
está a vida".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 86
"Uma segunda classe pode ser descrita como infelizes alterações da
linguagem da Escritura. Terei necessidade de dizer que o Salmo 130, "Das
profundezas", etc., é um dos mais preciosos de todo o livro de Salmos? Por
que havemos de ter as palavras de Davi e do Espírito Santo dadas assim na
oração pública, e com tanta freqüência, que os piedosos crentes de nossas
igrejas vieram a adotá-las em suas orações comunitárias e domésticas: "Mas
contigo está o perdão, para que sejas temido, e abundante redenção para
que sejas procurado"? Como são preciosas as singelas palavras registradas
no salmo citado [versículo 4): "Mas contigo está o perdão, para que sejas
temido"; versículos 7.8: "no Senhor há misericórdia, e nele há abundante
redenção. E ele remirá a Israel de todas as suas iniqüidades"!
"Outra vez, nesse abençoado salmo, as palavras do versículo 3, "Se tu,
Senhor, observares as iniqüidades, Senhor, quem subsistirá?", muito
raramente nos são deixadas com sua manifesta simplicidade, mas têm que
sofrer a seguinte mudança: "Se tu fores estrito em observar as iniqüidades",
etc. Lembro-me de que nos meus tempos de estudante, costumávamos dar-
lhe forma muito mais ofensiva: "Se tu fores estrito para observar e rigoroso
para punir"! Outra mudança favorita é a seguinte: "Tu estás nos céus, e nós
sobre a terra; pelo que sejam poucas e bem ordenadas as nossas palavras".
O pronunciamento simples e sublime de Salomão (certamente cheio de
instrução sobre o tema de que estou tratando) é: "Deus está nos céus, e tu
estás sobre a terra; pelo que sejam poucas as tuas palavras" (Eclesiastes
5:2). Para outro exemplo desta classe, veja-se como são torturadas as
sublimes palavras de Habacuque: "Tu és tão puro de olhos, que não podes
ver o mal, e não podes contemplar o pecado sem te aborreceres". As
palavras do Espírito Santo são (Habacuque 1:13): "Tu és tão puro de olhos,
que não podes ver o mal, e a vexação não podes contemplar". Precisaria
dizer que a força da figura, "e a vexação não podes contemplar", quase se
perde quando você acrescenta que Deus pode contemplá-la, só que não
sem se aborrecer?
"Uma terceira classe consiste de pleonasmos inexpressivos, de
vulgares e banais redundâncias de expressão, na citação das Escrituras. Um
desses casos tornou-se tão universal, que me aventuro a dizer que
raramente você o omite quando a passagem em foco entra em cena. "Fica
no meio de nós" (ou, como alguns preferem expressá-lo, de modo um tanto
infeliz segundo penso, "em nosso meio"), "para abençoar-nos, e fazer-nos
bem". Que idéia adicional há na última expressão, "e fazer-nos bem"? A
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 87
passagem aludida é Êxodo 20:24: "em todo o lugar onde eu fizer celebrar a
memória do meu nome, virei a ti, e te abençoarei". Esta é a simplicidade da
Escritura. O nosso acréscimo é: "para abençoar-nos, e fazer-nos bem". Em
Daniel 4:35 lemos as nobres palavras: "não há quem possa estorvar a sua
mão, e lhe diga: Que fazes?" A mudança favorita é: "Ninguém pode impedir
a tua mão de agir". "As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e
não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que
o amam." Isto sofre a seguinte alteração: "e não subiu ao coração do homem
conceber as coisas". Constantemente ouvimos referência a Deus como
Aquele "que ouve e responde a oração", mero pleonasmo vulgar e inútil, pois
a idéia que a Escritura contém é de que se Deus ouve a oração, Ele
responde – "Ó tu que ouves as orações! a ti virá toda a carne." "Ouve,
Senhor, a minha oração". "Amo ao Senhor, porque ele ouviu a minha voz e a
minha súplica."
"Por que, outra vez, aquele chavão da oração pública, "As tuas
consolações não são nem poucas nem pequenas"? Suponho que a
referência seja às palavras de Jó: "Porventura as consolações de Deus te
são pequenas?" Assim também raramente se ouve aquela oração do Salmo
74, "Atenta para o teu concerto; pois os lugares tenebrosos da terra estão
cheios de moradas de crueldade", sem o acréscimo, "horrenda crueldade";
nem o chamamento à oração, em Isaías, "ó vós, os que fazeis menção do
Senhor, não haja silêncio em vós, nem estejais em silêncio, até que
confirme, e até que ponha a Jerusalém por louvor na terra", sem o
acréscimo, "em toda a terra"; nem o apelo do salmista: "Quem tenho eu no
céu senão a ti? e na terra não há quem eu deseje além de ti", sem o
acréscimo: "em toda a terra".
"Estes últimos exemplos parecem coisas na verdade insignificantes. E
são. Nem valeria a pena achar-lhes defeito, se ocorressem apenas
ocasionalmente. Mas examinados como lugares comuns estereotipados,
bem fracos em si mesmos, mas ocorrendo com tanta freqüência que dão a
impressão de terem autoridade bíblica, humildemente acho que deviam ser
desaprovados e descartados – banidos totalmente do culto presbiteriano.
Talvez vocês se surpreendam ao saberem que a única autorização dada
pela Escritura àquela expressão favorita e algo peculiar sobre o "perverso
pecado que rola como doce manjar sob as suas línguas", está nas seguintes
palavras do livro de Jó (20:12): "Ainda que o mal lhe seja doce na boca, e
ele o esconda debaixo da sua língua"."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 88
Basta disto, porém. Só lamento ser forçado a estender-me tanto
sobre um assunto infeliz como esse. Todavia, não posso deixar a matéria
sem insistir com vocês que façam com exatidão literal todas as citações
da Palavra de Deus.
Deveria ser uma questão de honra entre os ministros citar sempre
corretamente a Escritura. É difícil sempre fazê-lo com exatidão, e,
porque é difícil, deveria constituir objeto do nosso maior cuidado. Nos
salões de Oxford ou Cambridge seria considerado quase traição ou crime
um membro proeminente da universidade citar erroneamente Homero,
Virgílio ou Tácito; mas um pregador citar erradamente Davi, Moisés ou
Paulo é coisa muito mais séria, e bem merecedora da mais severa
censura. Notem que eu me referi a um membro proeminente da
universidade, não a um principiante; e de um pastor esperamos pelo
menos igual precisão em seu próprio departamento à daquele que faz
parte de um corpo universitário. Vocês que sem vacilar crêem na teoria
da inspiração verbal (para minha intensa satisfação), nunca deveriam
fazer uma citação enquanto não puderem usar as palavras precisas,
porque, de acordo com a explicação que vocês mesmos dão, pela
alteração de uma única palavra pode-se perder por completo o sentido
que Deus deu à passagem. Se não conseguem citar a Escritura
corretamente, por que citá-la de qualquer modo em suas petições? Façam
uso de uma expressão nova, oriunda da sua própria mente, e será tão
aceitável para Deus como uma frase bíblica desfigurada ou mutilada.
Lutem com todo o vigor contra as mutilações e perversões da Escritura, e
renunciem para sempre a todas as frases bombásticas, pois constituem
deformações da oração improvisada.
Notei um hábito entre alguns – espero que vocês não tenham caído
nisso – de orar com os olhos abertos. É inatural, inconveniente e de mau
gosto. Ocasionalmente, os olhos abertos e elevados ao céu podem ser
adequados e causar impressão, mas correr o olhar pelo ambiente
enquanto se declara que se está falando com o Deus invisível, é
detestável. Nos primeiros tempos da igreja os chamados pais
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 89
denunciaram esta prática imprópria. Deve-se fazer o mínimo de
movimentos, se tanto, durante a oração. Raramente é bom levantar e
mover o braço, como se se estivesse pregando. Contudo, os braços
estendidos e as mãos cerradas são naturais e sugestivos, quando se está
sob forte e santa comoção. A voz deve harmonizar-se com o assunto, e
jamais deve ser tempestuosa ou arrogante. Ao falar com Deus, usem-se
entonações reverentes e humildes. Não é verdade que até a natureza lhes
ensina isto? Se a graça não o fizer, perco a esperança.
Com especial atenção às suas orações nos cultos do dia do Senhor,
talvez sejam úteis algumas observações. Para impedir que o mero
costume e a rotina se entronizem entre nós, será bom variar quanto
possível a ordem do culto. O que quer que o Espírito nos mova a fazer,
façamos de uma vez. Até pouco tempo atrás eu não tinha ciência da
extensão em que permitiram que se intrometesse o controle dos diáconos
sobre os ministros em certas igrejas desafortunadas. Estou acostumado a
dirigir sempre os cultos da maneira que considero mais adequada e
edificante, e nunca ouvi sequer uma palavra de objeção, e creio que
posso dizer que vivo nas mais amáveis relações de amizade com os meus
cooperadores. Mas um irmão e colega de ministério me contou esta
manhã que certa ocasião orou no início do culto matutino, em vez de
mandar cantar um hino, e quando se retirou para o gabinete pastoral
depois do culto, os oficiais lhe disseram que não queriam saber de
inovações.
Até aqui entendíamos que as igrejas batistas não estão sob a
escravidão de tradições e de regras fixas quanto às maneiras de prestar
culto, e, contudo, essas pobres criaturas, esses pretensos senhores, que
bradam contra a liturgia formal, querem prender os seus ministros com
indicações limitadoras produzidas pelo costume. É tempo de silenciar
para sempre esse absurdo. Pretendemos dirigir o culto conforme nos
mova o Espírito Santo, e como nos pareça melhor. Não queremos ser
obrigados a cantar aqui e orar ali, mas queremos variar a ordem do culto
para evitar a monotonia.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 90
Ouvi dizer que o sr. Hinton uma vez pregou o sermão no começo do
culto, de modo que os retardatários puderam ter oportunidade de orar. E
por que não? Alterações da regularidade fazem bem; a monotonia
aborrece. Muitas vezes será uma coisa sumamente proveitosa deixar o
povo serenamente sentado no mais profundo silêncio uns dois a cinco
minutos. O silêncio solene dá nobreza ao culto.
Verdadeira oração não é barulho imenso
de lábios habituados ao clamor;
mas é o silêncio d'alma, sim, profundo e intenso,
d'alma que abraça os pés do seu Senhor.
Variem, pois, a ordem das suas orações, para manter a atenção e
impedir que as pessoas passem pelo programa todo do mesmo modo
como anda o relógio até os pesos irem até o chão.
Variem a extensão das suas orações públicas. Não acham que às
vezes seria muito melhor que, em vez de dar três minutos à primeira
oração e quinze à segunda, dessem nove minutos a cada uma delas? Não
seria melhor, às vezes, estender-se mais na primeira oração, e menos na
segunda? Não seria melhor fazer duas orações de durarão tolerável, do
que uma extremamente longa e outra extremamente curta? Não seria
bom também ter um hino depois da leitura do capítulo, ou um versículo
ou dois antes da oração? Por que não cantar quatro vezes,
ocasionalmente? Por que não se contentar com dois hinos, ou só um,
ocasionalmente? Por que cantar depois do sermão? Por outro lado, por
que alguns jamais cantam no fim do culto? É aconselhável fazer sempre,
ou mesmo freqüentemente, uma oração depois da pregação? Não
causaria maior impressão se fosse feita de vez em quando? A direção do
Espírito Santo não nos propiciaria uma variedade desconhecida no
presente? Tratemos de ter algo de maneira que o nosso povo não venha a
considerar qualquer forma do culto como determinada, e assim torne a
cair na superstição da qual escapou.
Variem os temas comuns das suas orações na intercessão. Há
muitos tópicos que requerem a sua atenção: a igreja com suas fraquezas,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 91
suas infidelidades, suas tristezas e suas consolações; o mundo exterior, a
vizinhança, os ouvintes não convertidos, os jovens, a nação. Não orem
por tudo isso todas as vezes, ou senão as suas orações serão longas e
provavelmente desinteressantes. Qualquer que seja o tópico
predominante em seu coração, façam-no predominar em suas súplicas.
Há um modo de seguir um curso na oração, se o Espírito Santo os guiar
por ele, o que dará coesão ao culto, e se harmonizará com os hinos e com
a prédica.
É muito proveitoso manter unidade no culto, onde possível; não
servilmente, mas com sabedoria, de sorte que o efeito seja unificante.
Certos irmãos nem sequer procuram manter unidade no sermão, mas
vagueiam da Inglaterra ao Japão e introduzem todos os assuntos
imagináveis. Mas vocês, que já atingiram a preservação da unidade no
sermão, poderiam ir um pouco além, e demonstrar algum grau de
unidade no culto, sendo cuidadosos quanto ao hino, à oração e à leitura
bíblica, para manter em proeminência o mesmo assunto. Pouco
recomendável é a prática, comum em alguns pregadores, de reiterar o
sermão na última oração. Pode ser instrutivo para os ouvintes, mas é um
objetivo totalmente alheio à oração. É uma prática bombástica,
escolástica e inconveniente; não a imitem.
Como fugiriam de uma víbora, evitem todas as tentativas para
conseguir fervor espúrio na devoção pública. Não se esforcem para
parecer fervorosos. Orem segundo os ditames do seu coração, sob a
direção Espírito de Deus, e se vocês estiverem embotados e tediosos,
falem disso ao Senhor. Não será ruim confessar a sua falta de vida,
deplorá-la e clamar por vivificação. Será uma oração real e aceitável.
Mas o ardor fingido é uma vergonhosa forma de mentir. Nunca imitem
os fervorosos. Vocês conhecem um bom homem que geme, e outro cuja
voz vira grito estridente quando ele é arrebatado pelo ardor, mas, nem
por isso vocês deverão gemer ou chiar para parecerem fervorosos como
eles. Simplesmente sejam naturais do começo ao fim, e peçam a Deus
que os guie nisso tudo.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 92
Finalmente – esta palavra lhes digo confidencialmente – preparem
a sua oração. Vocês dirão com espanto: "Que será que o senhor poderá
querer dizer com isso?" Bem, quero dizer o que alguns não querem. Uma
vez foi discutida numa sociedade de ministros a questão: "É certo o
ministro preparar a sua oração com antecedência?" Alguns afirmaram
vigorosamente que não é certo; e agiram bem. Outros com igual vigor
sustentaram que é certo. E não deveriam ser contraditados. Creio que
ambas as partes tinham razão. Os irmãos do primeiro grupo entendiam
por preparo da oração o estudo de expressões, e a colocação ordenada de
uma linha de pensamento, o que todos eles diziam ser completamente
oposto ao culto espiritual, no qual devemos deixar-nos nas mãos do
Espírito de Deus para que Ele nos ensine tanto o assunto como as
palavras.
Com essas observações concordamos plenamente, pois, se um
homem escreve as suas orações e estuda as suas petições, que use logo
uma fórmula litúrgica. Mas os irmãos oponentes queriam dizer por
preparo uma coisa completamente diversa. Não o preparo da cabeça, mas
do coração, preparo que consiste em ponderar previamente na
importância da oração, em meditar nas necessidades espirituais dos
homens, e em recordar as promessas que havemos de pleitear – indo,
desta forma, à presença do Senhor com uma petição escrita nas tábuas de
carne do coração. Segura-mente isso é melhor do que ir a Deus à esmo,
correr para o trono divino ao acaso, sem mensagem ou desejo definido.
"Nunca me canso de orar", disse alguém, "porque sempre tenho uma
mensagem definida quando oro."
Irmãos, as suas orações são desta espécie? Vocês lutam para estar
numa adequada disposição de espírito para dirigir as súplicas do seu
povo? Vocês põem em ordem a sua causa quando vão comparecer
perante o Senhor? Creio, meus irmãos, que devemos preparar-nos pela
oração particular para a oração pública. Por uma vida vivida perto de
Deus, devemos manter espírito de oração, e então não falharemos em
nossas súplicas elevadas vocalmente. Se se deve tolerar alguma coisa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 93
além disso, deveria ser a dedicação à memorização dos Salmos e de
porções da Escritura que contém promessas, súplicas, louvores e
confissões, os quais possam ser de utilidade no ato de oração. De
Crisóstomo se diz que aprendeu a Bíblia de cor, de modo que podia
repeti-la a seu bel-prazer. Não admira que se chamasse boca de ouro.
Agora, em nossa conversação com Deus, nenhuma linguagem pode
ser mais apropriada do que as palavras do Espírito Santo – "Faze como
disseste" sempre prevalecerá junto ao Altíssimo. Aconselhamos, pois, a
memorização dos inspirados exercícios de devoção presentes na Palavra
da Verdade. Depois, a contínua leitura das Escrituras os manterá sempre
supridos de renovadas preces, que serão como ungüento derramado,
impregnando toda a casa de Deus com a sua fragrância, quando
apresentarem as suas petições em público perante o Senhor. Sementes de
oração semeadas assim na memória, constantemente produzirão
excelentes colheitas, quando o Espírito lhes aquecer a alma com fogo
santo na hora da oração congregacional. Como Davi usou a espada de
Golias para vitórias futuras, assim podemos empregar às vezes uma
petição já respondida, e capacitar-nos a dizer com o filho de Jessé: "Não
há outra semelhante; dá-ma", pois Deus tornará a cumpri-la em nossa
experiência pessoal.
Oxalá as vossas orações sejam fervorosas, cheias de fogo,
veemência e poder. Rogo ao Espírito Santo que ensine todos os
estudantes desta Escola a fazer oração pública, de modo que Deus seja
servido sempre do melhor de cada um. Oxalá as suas petições sejam
singelas e brotem do coração. E, ao passo que às vezes o povo de sua
igreja pode achar que o sermão esteve abaixo do normal, possa também
achar que a oração compensou tudo,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 94
O CONTEÚDO DO SERMÃO

Os sermões devem conter ensino valioso, e sua doutrina deve ser


sólida, substanciosa e abundante. Não subimos ao púlpito para falar por
falar. Temos para transmitir instruções em extremo importantes, e não
podemos dar-nos ao luxo de pronunciar belas nulidades. A nossa galeria
de assuntos é quase ilimitada e, portanto, não poderemos escusar-nos se
as nossas pregações forem vulgares e vazias de substância. Se falamos
como embaixadores de Deus, nunca precisaremos queixar-nos de falta de
assunto, pois a nossa mensagem chega a transbordar de tão cheia.
O evangelho inteiro deve ser apresentado do púlpito; toda a fé uma
vez entregue aos santos deve ser proclamada por nós. A verdade como se
apresenta em Jesus deve ser declarada instrutivamente, de sorte que o
povo não apenas escute, mas conheça o jubiloso som. Não servimos aos
pés do altar do "Deus desconhecido", mas falamos aos cultuadores
daquEle de quem está escrito: "em ti confiarão os que conhecem o teu
nome". Dividir bem um sermão pode ser uma arte muito útil, mas, como
fazê-lo se não houver nada para dividir? Um homem que só sabe dividir
sermão é como um excelente trinchador diante de uma travessa vazia.
Ser capaz de fazer um preâmbulo apropriado e atrativo, ter facilidade de
falar com propriedade durante o tempo designado para o sermão, e de
concluir com uma respeitável peroração, talvez pareça aos meros atores
que é tudo que se requer. Mas o verdadeiro ministro de Cristo sabe que o
verdadeiro valor de um sermão está, não em seu molde ou modo, mas na
verdade que ele contém.
Nada pode compensar a ausência de ensino; toda a retórica do
mundo é apenas o que a palha é para o trigo, em contraste com o
evangelho da nossa salvação. Por mais belo que seja o cesto do
semeador, é uma miserável zombaria, se estiver sem sementes. O maior
sermão já pronunciado é um ostentoso fracasso, se a doutrina da graça de
Deus está ausente dele; passa rapidamente por cima das cabeças dos
homens como uma nuvem, mas não distribui chuva alguma sobre a terra
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 95
sedenta. E daí, para as almas anelantes por sabedoria pela experiência de
premente necessidade, a lembrança dele é de desapontamento, ou pior.
O estilo de um homem pode ser fascinante como o da autoria da
qual alguém disse que costumava escrever com pena de cristal molhada
em orvalho, em papel de prata, e para secá-lo usava pó de asa de
borboleta. Mas para um auditório cujas almas estão em perigo iminente,
o que será a mera elegância, senão "muito mais leve que a vaidade"?
Não se julgam cavalos por suas campainhas e por seus arreios, e
sim, por suas pernas, sua estrutura óssea e por seu sangue; e os sermões,
quando criticados por ouvintes judiciosos, em grande parte são avaliados
pela proporção de verdade do evangelho e pelo poder do espírito do
evangelho que eles contém. Irmãos, ponderem os seus sermões. Não os
avaliem por retalhos, mas por peças. Não façam as contas pela
quantidade de palavras que pronunciam, mas lutem para serem avaliados
pela qualidade da substância que apresentam. É loucura ser pródigo em
palavras e avarento quanto à verdade. Seria destituído de juízo àquele
que gostasse de se ouvir descrito à moda de um dos grandes poetas do
mundo, que diz: "Graciano fala uma quantidade infinita de nada, mais
que qualquer outro homem de Veneza. Suas razões são como dois grãos
de trigo escondidos em duas arrobas de palha; você leva o dia todo para
achá-los, e quando os acha, não valem a busca".
Dirigir apelos aos sentimentos afetivos é excelente, mas se não vão
acompanhados de instrução, são apenas um lampejo no panorama, é
pólvora gasta, sem acertar o alvo. Estejam certos de que o mais
fervoroso avivalismo se fará fumaça, se não for mantido pelo
combustível do ensino. O método divino é pôr a lei na mente, e depois
escrevê-la no coração; o julgamento é iluminado, e então as paixões são
subjugadas.
Leiam Hebreus 8:10, e sigam o modelo da aliança da graça. O
comentário que Gouge faz sobre esse passo bíblico pode ser citado aqui
com propriedade: "Nisto os ministros devem imitar a Deus e, com o
máximo do seu esforço, devem instruir o povo sobre os mistérios da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 96
piedade, e ensinar-lhe o que crer e praticar, e depois concitá-lo a mover-
se e a agir, a fazer o que foi ensinado a fazer. De outra forma, o seu
trabalho teria a probabilidade de ser em vão. Negligenciar esta linha de
ação é uma das principais causas pelas quais os homens caem em tantos
erros como acontece hoje em dia". Podemos acrescentar que esta última
observação ganhou mais força em nossos tempos; é entre os rebanhos
sem instrução que os lobos do papado fazem estragos. O ensino saudável
é a melhor proteção contra as heresias que assolam à direita e à esquerda
entre nós.
É sadia informação sobre os assuntos bíblicos que os seus ouvintes
desejam ardentemente, e precisam tê-la. Eles têm direito a explicações
precisas da Escritura Sagrada, e se cada um de vocês for "um intérprete,
um de mil", um verdadeiro mensageiro, dá-las-á com abundância.
Qualquer coisa mais que esteja presente, a ausência da verdade
instrutiva, edificante, à semelhança da ausência de farinha no pão, será
fatal. Avaliados pelo seu sólido conteúdo em vez de pela sua área de
superfície, muitos sermões são bem pobres exemplares do discurso
sacro. Creio que tem fundamento a observação de que, se vocês ouvirem
um prelecionador de astronomia ou geologia, durante um breve curso
obterão uma visão razoavelmente clara do seu sistema. Mas, se ouvirem,
não por doze meses apenas, mas por doze anos, a um pregador do tipo
comum, não chegarão a nada que se pareça com uma idéia do seu
sistema de teologia. Se é assim, é um grave mal, que não conseguiremos
deplorar demais.
Ah! as indistintas declarações de muitos sobre as mais grandiosas
realidades eternas, e a obscuridade de pensamento de outros quanto a
verdades fundamentais, têm dado muita ocasião à critica! Irmãos, se
vocês não forem teólogos, não serão absolutamente nada nos seus
pastorados. Poderão ser ótimos retóricos, profusos em expressões
polidas; mas sem o conhecimento do evangelho, e sem aptidão para
ensiná-lo, não passarão de metal que soa ou de sino que retine.
Muitíssimas vezes a verbosidade é a folha de figueira que funciona como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 97
cobertura para a ignorância teológica. Ressonantes períodos são
oferecidos em lugar de boa doutrina, e a retórica floresce em lugar de
pensamento robusto. Essas coisas não deviam acontecer. A abundância
de declamações vazias, e a falta de alimento para a alma transformarão o
púlpito num estofo de enchimento, e inspirarão desprezo em vez de
reverência. Se não formos pregadores instrutivos, e não alimentarmos de
fato o povo, poderemos ser grandes recitadores de poesia elegante, e
poderosos varejistas de foles de segunda mão, mas seremos como o
antigo Nero, que tocava violino enquanto Roma ardia em chamas, e
enviava navios a Alexandria em busca de areia para a arena, enquanto a
população morria de fome por falta de trigo.
Insistimos nisso – em que é preciso haver abundância de substância
nos sermões – e, em seguida, em que essa substância deve ser coerente
com o texto. Em regra, o sermão deve brotar do texto, e quanto mais
evidente assim for, tanto melhor. Todas as vezes, porém, para dizer o
mínimo, deve ter a mais estreita relação com ele. Deve se permitir larga
amplitude no que se refere à espiritualização e à acomodação; mas a
liberdade não deve degenerar em abuso, e sempre deve existir uma
conexão, e algo mais que uma remota conexão – uma verdadeira relação
entre o sermão e o seu texto.
Outro dia me falaram de um extraordinário texto, que seria próprio
ou impróprio conforme o pensamento da gente. Um rústico proprietário,
membro da igreja, dera certo número de flamantes mantos escarlates às
mais idosas senhoras da comunidade. Solicitou-se que estes seres
resplendentes fossem à igreja no domingo seguinte, e se sentassem em
frente do púlpito, do qual um dos pretensos sucessores dos apóstolos os
edificou usando as palavras: "Nem mesmo Salomão, em toda a sua
glória, se vestiu como qualquer deles". Consta que, numa reunião
subseqüente, quando o mesmo benfeitor da paróquia dera meio saco de
batatas a cada pai de família, o tópico do domingo seguinte foi: "E
disseram: isto é maná". Não posso dizer se a matéria desse caso e o texto
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 98
escolhido são congruentes. Suponho que sim, pois as probabilidades são
de que toda a realização em foco era completamente doida.
Alguns irmãos não querem mais saber do texto, logo depois de o
terem lido. Havendo prestado toda a devida honra a essa passagem
particular ao anunciá-la, não vêem mais necessidade alguma de referir-se
a ela. Tiram o chapéu, por assim dizer, cumprimentando aquela parte da
Escritura, e passam adiante a verdes campos e novas pastagens. Afinal
de contas, por que esses homens tomam um texto? Por que limitam sua
gloriosa liberdade pessoal? Por que fazem da Escritura uma plataforma
só para que possam montar seu Pégaso sem freios? Certamente as
palavras do Livro inspirado nunca se destinaram a ser fivelas de sapatos
para ajudarem o tagarela firmar as suas botas de sete léguas com as quais
possa saltar de um pólo a outro.
O modo mais seguro de manter variações é obedecer à mente do
Espírito Santo na passagem particular que se esteja considerando. Não
existem dois textos exatamente iguais; alguma coisa na conexão ou na
tendência de cada um dos textos aparentemente idênticos dá-lhes um
sombreado diferente. Sigam as pegadas do Espírito e nunca serão
repetitivos nem ficarão sem material; Suas veredas destilam gordura.
Além disso, o sermão chega com muito maior poder às consciências dos
ouvintes quando é pura e simplesmente a própria Palavra de Deus – não
uma preleção sobre a Escritura, mas a Escritura mesma, exposta e
imposta. É devido à majestade da inspiração que, quando você declara
estar pregando sobre um versículo, não o tira da vista para dar lugar aos
seus pensamentos pessoais.
Irmãos, se vocês têm o hábito de manter diante de si o sentido
preciso da Escritura, recomendo-lhes que se atenham à ipsissima verba,
às palavras do Espírito Santo propriamente ditas; pois, embora em
muitos casos os sermões tópicos sejam, não só permissíveis mas também
muito apropriados, aqueles sermões que expõem as exatas palavras do
Espírito Santo são os mais úteis e os mais convenientes para a maioria
das nossas igrejas. Elas gostam de receber as palavras mesmas da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 99
Escritura explicadas e expostas. Muitos não são capazes de captar o
sentido isolado da linguagem – de enxergar, por assim dizer, a verdade
desencarnada. Mas quando ouvem as palavras precisas reiteradas muitas
vezes, e cada expressão comunicada demoradamente, ao estilo de
pregadores do tipo do Sr. Jay (de Bath) são sobremaneira edificados, e a
verdade se fixa mais firmemente na memória deles. Sejam, pois,
copiosamente substanciais os seus sermões, e que a matéria deles evolva
da Palavra inspirada, como as violetas e as prímulas brotam naturalmente
do solo fértil, ou como o mel virgem destila do favo.
Cuidem para que as suas mensagens sejam valiosas e prenhes de
ensinamentos realmente importantes. Não edifiquem com madeira, feno
e palha, mas com ouro, prata e pedras preciosas. Dificilmente será
necessário adverti-los contra as degradações mais grosseiras da
eloqüência do púlpito, ou, senão, poderíamos citar o exemplo do notório
orador Henley. Aquele aventureiro loquaz que Alexandre Pope
imortalizou em sua obra satírica, Dunciad, costumava fazer dos
acontecimentos sucedidos durante a semana os temas das suas
chocarrices nos dias úteis, e os tópicos teológicos sofriam o mesmo
destino aos domingos. Seu ponto forte consistia em sua graça vulgar, nas
modulações da sua voz e no balanceio das mãos. O satirista diz dele:
"Que absurdidade fluente escorre da sua língua." Cavalheiros, melhor
nos fora nunca ter nascido do que dizerem com veracidade algo
semelhante de nós. Com risco de nossas almas, temos que lidar com os
fatos solenes da eternidade e com tópicos não gerados na terra.
Todavia, existem outros métodos mais convidativos de edificar com
madeira e feno, e convém que não se deixem ludibriar por eles. Esta
observação é necessária, especialmente para aqueles cavalheiros que
confundem declarações extravagantes com eloqüência, e expressões
latinizadas com grande profundidade de pensamento. Certos instrutores
de homilética, por seu exemplo – senão por seus preceitos – estimulam o
emprego de grandiosas palavras fanfarronas e enfunadas, e, portanto, são
os elementos mais perigosos para os pregadores jovens. Pensem num
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 100
discurso iniciado com uma asserção assombrosa e estupenda como a
seguinte que, por sua grandiosidade original, os impressionará de
imediato, com um sentimento do sublime e do belo: "O HOMEM É UM
SER MORAL". Este gênio poderia ter acrescentado: "O gato tem quatro
patas".
Haveria tanta novidade naquela informação como nesta. Lembro-
me de um sermão pregado por um suposto profundo escritor que
atordoava por completo o leitor com bombardeio de palavras de dois
metros de comprimento, mas que, quando postas a cozer do modo certo,
o suco de carne que sobrava era como este – O homem tem uma alma,
sua alma viverá noutro mundo, e, portanto, deve cuidar-se para que
venha a ocupar um lugar feliz. Ora, não se pode fazer objeção ao ensino,
mas este não é tão novel que precise do toque de trombetas e de uma
procissão de frases cheias de enfeites para apresentá-lo à atenção
pública. A arte de dizer chavões elegantemente, pomposamente,
grandiloqüentemente, bombasticamente, não se perdeu entre nós, embora
a sua total extinção devesse "ser uma consumação a desejar-se
devotadamente".
Sermões desse tipo têm sido apresentados como modelos, e,
todavia, são simples fragmentos de bexiga que caberiam na unha do
dedo, soprados até lembrarem aqueles balões coloridos que os
vendedores ambulantes levam pelas ruas para vendê-los por algumas
moedas, para a delícia dos extremamente juvenis. O paralelo, lamento
dizê-lo, está sendo benévolo, pois, em alguns casos, essas pregações só
contém um matiz de veneno, a modo de coloração, que alguns do tipo
mais fraco descobriram à sua própria custa.
É infame subir ao púlpito e despejar sobre os ouvintes rios de
oratória, cataratas de palavras, em que se dissolvem puras trivialidades
quais pílulas infinitesimais, de medicina homeopática num atlântico de
proclamação verbosa. Muito melhor dar ao povo massas de verdade em
casca, não burilada, como pedaços de carne do cepo do açougue,
retalhados de qualquer jeito, com osso e tudo, e até caídos no meio da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 101
serragem – sim, muito melhor dar isso do que, com ostentação e finura,
apresentar-lhe num prato de porcelana uma deliciosa fatia de coisa
nenhuma, decorada com salsa de poesia e temperada com molho de
pedantismo.
Será uma feliz circunstância se vocês forem de tal modo guiados
pelo Espírito Santo que dêem claro testemunho de todas as doutrinas
que constituem o evangelho ou que o circunscrevem. Não se deve reter
nenhuma verdade. A doutrina retida, tão detestável na boca dos jesuítas,
não é nem um pouco menos abjeta quando adotada por protestantes. Não
é verdade que algumas doutrinas sejam somente para os iniciados; não
há nada na Bíblia que se envergonhe da luz. Os mais sublimes conceitos
da soberania divina têm um enquadramento prático, e não são, como
alguns pensam, meras sutilezas metafísicas. Os pronunciamentos
característicos do calvinismo têm sua aplicação na vida diária e na
experiência comum, e se vocês sustentarem essas idéias, ou as que lhes
são opostas, não têm licença para ocultar as suas crenças. Em nove de
dez casos, a reticência cautelosa é traição covarde. A melhor política é
não ser político nunca, mas proclamar cada átomo da verdade na medida
em que Deus lhe tenha ensinado. A harmonia requer que a voz de uma
doutrina não sufoque as restantes, e também exige que as notas mais
suaves não sejam omitidas por causa do volume maior dos outros sons.
Todas as notas assinaladas pelo grande menestrel devem soar, cada nota
tendo a sua intensidade e a sua ênfase proporcionais. A passagem
marcada com forte não deve ser suavizada, e as passagens assinaladas
com piano não devem retumbar como trovão, mas cada uma deve ter a
sua devida intensidade de vibração sonora. Toda a verdade revelada em
proporção harmônica, deve constituir o seu tema.
Irmãos, se vocês desenvolverem no púlpito proposições que tratam
de realidades importantes, é preciso que nunca jamais fiquem pairando
em torno dos simples ângulos da verdade. As doutrinas não vitais à
salvação da alma, nem essenciais ao cristianismo prático, não devem ser
consideradas em todas as ocasiões de culto. Apresentem todos os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 102
aspectos da verdade na devida proporção, pois todas as partes da
Escritura são proveitosas, e a vocês compete pregar não somente a
verdade, mas toda a verdade. Não insistam perpetuamente numa só
verdade. O nariz é uma parte importante da fisionomia humana, mas
pintar somente o nariz não é método satisfatório de retratar a sua
imagem; uma doutrina pode ser muito importante, mas uma exagerada
estimativa dela pode ser de fatais conseqüências para um ministério
harmonioso e completo. Não transformem doutrinas secundárias em
pontos da maior importância. Não pintem as minúcias do pano de fundo
do evangelho com o grosso pincel usado para os grandes objetos do
primeiro plano.
Por exemplo, os grandes problemas do sublapsarianismo e do
supralapsarianismo, os mordazes debates sobre a filiação eterna, a zelosa
discussão concernente à dupla procedência, e os esquemas pré e pós-
milenários, por mais importantes que alguns possam julgá-los, são
praticamente sem interesse para aquela piedosa viúva com sete filhos
para sustentar com a sua agulha, que tem muito maior necessidade de
ouvir da benignidade do Deus da providência do que desses mistérios
profundos. Se vocês lhe pregarem sobre a fidelidade de Deus a Seu
povo, ela ficará animada e se sentirá ajudada na batalha da vida; mas as
questões difíceis a deixarão perplexa ou a farão dormir. Entretanto, ela é
o tipo representativo de centenas daqueles que mais precisam do cuidado
pastoral. O nosso tema principal são as boas novas do céu; as notícias da
misericórdia mediante a morte expiatória de Jesus, misericórdia para o
maior pecador que crê em Jesus.
Devemos empenhar todo o nosso poder de julgamento, memória,
imaginação e eloqüência na transmissão do evangelho; e não
dediquemos à pregação da cruz os nossos pensamentos casuais enquanto
assuntos de pequena importância monopolizam as nossas mais profundas
meditações. Estejam certos de que, se trouxermos o intelecto de um
Locke ou de um Newton, e a eloqüência de um Cícero, para sobrepor à
simples doutrina de "crê e viverás", não encontraremos poder em
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 103
excesso. Irmãos, primeiramente e acima de todas as coisas, mantenham-
se nas simples doutrinas evangélicas. Tudo mais que preguem ou deixem
de pregar, certifiquem-se de apresentar incessantemente a salvadora
verdade de Cristo, e Ele crucificado.
Conheço um ministro cujos sapatos sou indigno de desamarrar e
cuja pregação muitas vezes é pouco melhor do que uma pintura sagrada
em miniatura – quase que poderia dizer, uma santa ninharia. É grandioso
sobre os dez dedos da besta, os quatro rostos dos querubins, o
significado místico da pele de texugo, os suportes típicos das varas da
arca, e as janelas do templo de Salomão. Mas quase nunca toca nos
pecados dos homens de negócio, nas tentações atuais e nas necessidades
da época. Esse tipo de pregação lembra-me um leão empenhado em
cagar ratinhos, ou um guerreiro metido numa cruzada por uma pipa
d'água. Tópicos que mal se igualam em importância àquilo que Paulo
chama de "fábulas profanas e de velhas" são transformados em grandes
temas por aqueles teólogos microscópicos para os quais a sutileza
refinada de um ponto é mais atraente do que a salvação de pecadores.
Decerto vocês terão lido no Student's Manual (Manual do
Estudante), de Todd, que Harcácio, rei da Pérsia, era perito caçador de
toupeiras, e que Briantes, rei da Lídia, era igualmente au fait – com
efeito – hábil no manejo da agulha. Mas essas trivialidades de modo
nenhum provam que foram grandes reis. É bem parecido com isso o que
acontece no ministério. Existe disso – mediocridade na atividade mental
rebaixando a dignidade do embaixador do céu.
Em certa classe e mentalidade desta época, o desejo ateniense de
falar ou de ouvir alguma novidade parece predominar. Tais homens
jactam-se de que têm nova luz, e se arrogam uma espécie de inspiração
que os autoriza a condenarem todos os que estão fora da sua irmandade.
Entretanto, a sua grande revelação se relaciona com algum simples ponto
circunstancial do culto, ou com alguma obscura interpretação de
profecia. Desta forma, à vista do grande estardalhaço e dos altos brados
por tão pouca coisa, ocorre-nos:
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 104
"Enfurecer o oceano
pra fazer uma folha flutuar
ou simples mosca tragar"
São piores ainda aqueles que desperdiçam tempo insinuando
dúvidas sobre a autenticidade de textos, ou sobre a correção de
afirmações bíblicas acerca de fenômenos naturais. Com pesar recordo ter
ouvido numa noite de domingo um palavreado com nome de sermão
cujo tema era uma arguta pesquisa quanto a se um anjo realmente descia
e agitava as águas do tanque de Betesda, ou se era uma fonte
intermitente a respeito da qual a superstição judaica tinha inventado uma
lenda. Homens e mulheres sujeitos a perecer se reuniram para aprender o
caminho da salvação, e lhes largaram uma frivolidade como esta! Foram
em busca de pão, e receberam pedra; as ovelhas recorreram ao pastor, e
não foram alimentadas. Raramente ouço um sermão, e quando ouço, sou
lamentavelmente desafortunado, pois um dos últimos com que fui
obsequiado levava a intenção de justificar Josué por destruir os
cananeus, e outro, a de provar que não é bom que o homem esteja só.
Quantas almas se converteram em resposta às orações feitas antes desses
sermões, nunca pude verificar, mas a perspicácia me faz suspeitar que
nenhuma ação de regozijo incomum perturbou a serenidade das ruas de
ouro da Jerusalém celeste.
Acreditando que minha próxima observarão é quase universalmente
desnecessária, ponho-a em tela com modéstia – não sobrecarreguem o
sermão com material demais. Não se deve tentar comprimir a verdade
toda num discurso. Os sermões não devem ser sistemas completos de
teologia. Sói acontecer existir muitas coisas para dizer, e dizê-las a ponto
de fazer que os ouvintes voltem para casa nauseados em vez de
esperançosos. Andando com um jovem pregador, um velho ministro
apontou para uma lavoura de trigo e fez esta observação: "O seu último
sermão tinha demasiado conteúdo, mas não bastante clareza, nem
suficiente boa ordem; foi como aquela plantação de trigo – continha
muito alimento cru, mas nenhum pronto para ser servido. Você deve
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 105
fazer os seus sermões parecidos com pães – prontos para a gente comer,
e na forma conveniente".
É de temer-se que as cabeças humanas (frenologicamente falando)
não são tão capazes para a teologia agora como outrora, pois os nossos
antepassados regozijavam-se com cinco quilos de teologia não dissolvida
e sem enfeites, e podiam continuar a recebê-la durante três ou quatro
horas numa tirada, mas a nossa geração mais degenerada, ou quem sabe
mais ocupada, exige apenas uns trinta gramas de doutrina por vez, e essa
tem que ser extrato concentrado ou essência, e não a substância integral
da teologia. Nestes tempos precisamos falar muita coisa com poucas
palavras, mas não demais, nem com demasiada ampliação. Um
pensamento fixo na mente valerá mais do que cinqüenta pensamentos
que entram por um ouvido e saem pelo outro. Um prego de alguns
centavos levado para casa e pregado será mais útil do que uma porção de
tachinhas frouxamente fincadas e que se soltarão em uma hora.
O material do nosso sermão deverá ser bem ordenado, segundo as
legitimas normas da arquitetura mental. Nada de inferências práticas no
pedestal e de doutrinas no alto das paredes; nada de metáforas no
alicerce e de proposições na cumeeira; nada de apresentar primeiro as
verdades mais importantes e no fim os ensinamentos de valor
secundário, a modo de anticlímax; ao contrário, o pensamento deve
elevar-se, ascender, um degrau de ensino levando a outro, uma porta de
argumentação conduzindo a outra, e o conjunto elevando o ouvinte até
uma recâmara de cujos vitrais se vê a verdade resplandecente, engolfada
na luz de Deus. Na prédica há lugar para tudo, e cada coisa tem o seu
lugar. Nunca permitam que as verdades descambem em confusão. Não
deixem que os seus pensamentos corram qual multidão em tropel, mas
façam-nos marchar como uma tropa de infantaria. A ordem, que é a
primeira lei do céu, não deve ser negligenciada pelos embaixadores do
céu.
Os seus ensinamentos doutrinários devem ser claros e
inconfundíveis. Para isto, é preciso que primeiramente estejam claros
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 106
para você, meu irmão. Alguns pensam envoltos em fumaça e pregam
metidos numa nuvem. O povo da sua igreja não quer névoas fulgentes,
mas, sim, a sólida terra firme da verdade. As especulações filosóficas
levam certas mentes a um estado de semi-intoxicação em que, ou vêem
tudo em dobro, ou não vêm coisíssima nenhuma.
Anos atrás, um estrangeiro perguntou ao diretor de certa faculdade
de Oxford qual era o moto do brasão daquela universidade. Respondeu-
lhe que era "Dominus illuminatio mea" (O Senhor é a minha luz) E
também informou candidamente ao estrangeiro que, em sua opinião
particular, um moto mais apropriado poderia ser "Aristoteles meae
tenebrae" (Aristóteles das minhas trevas). Escritores sensacionalistas há
que quase enlouquecem muitos homens íntegros que conscienciosamente
lêem as suas lucubrações com a idéia de que devem manter-se
atualizados com a nossa época, como se esta necessidade não exigisse
também do nós que fôssemos aos teatros a fim de capacitar-nos para
julgar as novas peças, ou que freqüentássemos os hipódromos para não
sermos estreitos demais em nossas opiniões sobre as corridas e o jogo.
De minha parte, creio que os principais leitores de livros heterodoxos são
ministros, e que se estes não lhes dessem atenção, ficariam sem
divulgação como natimortos. Livre-se o ministro de mistificar-se, e
estará a caminho de tornar-se inteligível para a sua congregação.
Ninguém que seja incapaz de fazer-se entender pode esperar ser levado
em conta. Se dermos ao nosso povo a verdade pura, a sã doutrina bíblica,
e tudo de tal modo verbalizado que nenhuma obscuridade o cerque,
seremos verdadeiros pastores das ovelhas, e o proveito colhido por
nossos ouvintes logo se fará patente.
Esforcem-se para manter o conteúdo dos seus sermões com
novíssimo vigor quanto lhes for possível. Não fiquem martelando cinco
ou seis doutrinas com a invariável monotonia da repetição. Comprem um
realejo teológico, irmãos, com cinco melodias ajustadas com esmero, e
estarão habilitados para praticar como pregadores hiper-calvinistas em
Zoar e Jiré, se também comprarem em alguma fábrica de vinagre um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 107
bom suprimento de amargo abuso contra arminianos e contra outros com
os quais não concordem. O cérebro e a graça são optativos, mas o realejo
e a losna são indispensáveis. Nós entendemos e nos alegramos que a
gama da verdade é mais ampla. Tudo que esses bons homens sustentam
sobre a graça e a soberania nós também mantemos tão firme e
intrepidamente como eles, mas não ousamos fechar os olhos para outros
ensinamentos da Palavra, e nos sentimos obrigados a dar plena prova do
nosso ministério declarando todo o conselho de Deus. Com temas
abundantes, diligentemente ilustrados por vivas metáforas e
experiências, não seremos cansativos, mas, nas mãos de Deus,
ganharemos os ouvidos e os corações dos nossos ouvintes.
Ampliem e desenvolvam os seus ensinos; que eles sejam
aprofundados com a sua experiência, e elevados com o seu progresso
espiritual. Não pretendo dizer que preguem novas verdades, pois, ao
contrário, afirmo que é feliz o homem que foi tão bem instruído desde o
início que, depois de cinqüenta anos de ministério, nunca teve que se
retratar de uma doutrina ou que lamentar uma omissão importante; mas o
que quero dizer é que tratemos de aumentar constantemente a nossa
profundidade e o nosso discernimento, e que isto acontecerá onde houver
progresso espiritual. Timóteo não podia pregar como Paulo. As nossas
primeiras produções têm que ser sobrepujadas pelas dos nossos anos de
maior maturidade; não devemos usar aquelas como nossos modelos. É
melhor queimá-las, ou preservá-las. só para lamentar o seu caráter
superficial. Seria mau, de fato, se não soubéssemos mais depois de
estarmos muitos anos na escola de Cristo. O nosso progresso pode ser
lento, mas progresso tem que haver, ou se não, haverá motivo para
suspeitar que falta vida interior ou que esta é tristemente doentia. Fixem
definidamente nas suas mentes que ainda não alcançaram, e oxalá lhes
seja dado graça que os impulsione para a frente, rumo àquilo que está
além. Oxalá todos vocês venham a ser competentes ministros do Novo
Testamento, e nem um pouco atrás dos mais notáveis pregadores,
embora em si mesmos vocês continuem sendo nada.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 108
Diz-se que a palavra "sermão" significa "arremetida", e, portanto,
quando fazemos e pregamos sermões, devemos ter em vista empregar o
assunto em mão com energia e eficácia, e o assunto deve ser apto para
tal emprego. Escolher apenas temas morais será usar um punhal de
madeira; mas as grandes verdades da revelação são agudas como
espadas. Apeguem-se a doutrinas que mexam com a consciência e com o
coração. Permaneçam como inabaláveis campeões do evangelho que
conquista almas. A verdade de Deus é adaptada ao homem, e a graça de
Deus adapta o homem à verdade. Há uma chave que, na mão de Deus,
pode dar corda na caixa de música da natureza humana; peguem-na e
usem-na diariamente. Portanto, eu os concito a ficarem com o antiquado
evangelho, e somente com ele, pois certamente é o poder de Deus para
salvação.
De tudo que eu gostaria de dizer-lhes, o resumo é este: Meus
irmãos, preguem a CRISTO, sempre e para sempre. Ele é todo o
evangelho. Sua pessoa, Seus ofícios e Sua obra devem constituir o nosso
grande e todo-abrangente tema. O mundo continua precisando ouvir falar
de Seu Salvador e do caminho para chegar a Ele. A justificação pela fé
deve ser muito mais do que aquilo que tem sido o testemunho diário dos
púlpitos protestantes. E se a essa verdade dominante se associarem mais
geralmente as outras grandes doutrinas da graça, melhor para as nossas
igrejas e para a nossa era. Se com o fervor dos metodistas pudermos
pregar a doutrina dos puritanos, um grande futuro nos espera. O fogo de
Wesley e a lenha de Whitefield causarão um incêndio que queimará as
florestas de erro e aquecerão a própria alma desta frígida terra.
Não somos chamados para proclamar filosofia e metafísica, mas o
simples evangelho. A queda do homem, sua necessidade de novo
nascimento, o perdão mediante a expiação, e a salvação como resultado
da fé, são estes os nossos machados de combate e as nossas armas de
guerra. Temos bastante que fazer para aprender e ensinar estas grandes
verdades, e anátema sejam aqueles aprendizados que nos desviam da
nossa missão, ou aquela caprichosa ignorância que nos faz coxear
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 109
quando procuramos cumpri-la. Mais e mais estou zelando para que
nenhuma teoria sobre profecia, governo da igreja, política, e mesmo
sobre teologia sistemática, leve algum de nós a deixar de gloriar-se na
cruz de Cristo. A salvação é um tema para o qual eu de bom grado
alistaria todas as línguas santas. Sou ávido por testemunhas do glorioso
evangelho do Deus bendito. Oxalá o Cristo crucificado fosse o fardo
universal dos homens de Deus!
As suas imaginações sobre o número da besta, as suas especulações
napoleônicas, as suas conjeturas concernentes a um anticristo pessoal -
perdoem-me, considero-as todas apenas como ossos para cães. Enquanto
os homens estão morrendo e o inferno vai ficando cheio, parece-me que
é a máxima tolice ficar resmungando acerca de um Armagedom em
Sebastopol ou em Sadowa ou em Sedan, e ficar espreitando por entre as
cerradas folhas do destino para descobrir a sorte da Alemanha.
Benditos os que lêem e ouvem as palavras da profecia do
Apocalipse, mas é evidente que a mesma bênção não tem caído sobre os
que simulam expô-las, pois o simples passar do tempo tem demonstrado
que geração após geração deles erraram, e a raça atual os seguirá para o
mesmo sepulcro inglório. Preferiria tirar um tição do fogo a explicar
todos os mistérios. Ganhar uma alma, livrando-a de descer ao abismo, é
um feito mais glorioso do que ser premiado como Doctor
Sufficientíssímus na arena da controvérsia teológica. Trazer fielmente à
luz o conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo será
considerado no juízo final como serviço mais valioso do que o de
solucionar os problemas da esfinge religiosa, ou de desfazer o nó górdio
das dificuldades apocalípticas. Bem-aventurado o ministério do qual
CRISTO É TUDO.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 110
A ESCOLHA DO TEXTO

Espero, meus irmãos, que todos nós estejamos sentindo


profundamente a importância de dirigir todas as partes do serviço divino
com a máxima eficiência possível. Ao lembrar-nos de que a salvação de
uma alma pode depender, instrumentalmente, da escolha de um hino, não
deveríamos considerar fútil a pequenina questão da seleção de salmos e
hinos.
Um forasteiro incrédulo, entrando durante um dos nossos cultos no
Exeter Hall, foi levado à cruz pelas palavras do verso de Wesley, "Jesus,
amante de minha alma". "Jesus me ama?", perguntou ele. "Então, por
que deveria eu viver em inimizade contra Ele?"
Ao refletirmos, também, que Deus pode dar uma bênção muito
especial a uma frase da nossa oração para a conversão de algum errante,
e que orar sob a unção do Espírito Santo pode contribuir grandemente
para a edificação do povo de Deus e trazer-lhe inumeráveis bênçãos, nós
nos esforçaremos para orar exercitando o melhor dom e a máxima graça
ao nosso alcance. Considerando ainda que na leitura da Bíblia podem ser
distribuídos consolo e instrução copiosamente, deter-nos-emos sobre as
nossas Bíblias abertas, e, devotamente procuraremos ser guiados àquela
porção da Escritura que tenha maior probabilidade de fazer-se útil.
A respeito do sermão, a nossa ansiosa preocupação é primeiramente
quanto à seleção de um texto. Nenhum de nós olha o sermão sob uma luz
tão negligente que chegue a conceber que um texto apanhado ao acaso
será apropriado para toda e qualquer ocasião. Não somos da opinião de
Sydney Smith, expressa quando recomendou a um irmão indeciso sobre
um texto, que pregasse sobre, "Partos e medas, elamitas e os que habitam
na Mesopotâmia", como se qualquer coisa servisse para um sermão.
Espero que, semanalmente, todos nós tenhamos como coisa da mais
zelosa e séria consideração, quais serão os assuntos de que falaremos ao
nosso povo no dia do Senhor, de manhã e de noite, pois, conquanto toda
a Escritura seja boa e proveitosa, não é toda ela igualmente apropriada
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 111
para todas as ocasiões. Há tempo para tudo, e tudo é melhor quando é
oportuno.
Um sábio pai trabalha para dar a cada membro da sua família a sua
porção de alimento na devida ocasião; não serve todas as rações
indiscriminadamente, mas ajusta as refeições às necessidades dos
comensais. Só um mero oficial, escravo da rotina, autômato inanimado
do formalismo se contentará em agarrar o primeiro tópico que venha à
mão. Aquele que cata assuntos como as crianças colhem botões-de-ouro
e margaridas nas campinas, simplesmente como se oferecem, talvez
esteja agindo de acordo com a sua posição de homem colocado por um
protetor numa igreja, da qual o povo não o pode expulsar. Mas os que se
proclamam chamados por Deus, e que foram escolhidos para as suas
posições pela livre eleição dos crentes, precisam dar maior prova do seu
ministério do que aquele que se acha nessa negligência. Dentre as muitas
gemas temos que selecionar a jóia mais adequada à circunstância do
momento. Não ousamos correr para o salão do banquete do Rei com uma
confusão de provisões como se o festim devesse ser uma vulgar refeição
de ovos fritos, mas, como servidores corteses, paramos para perguntar ao
grande Dono da festa: "Senhor, que queres que sirvamos à Tua mesa
hoje?"
Alguns textos nos chocam por terem sido escolhidos com extrema
infelicidade. Ficamos a indagar o que o pastor do célebre Disraeli disse
acerca das palavras: "Em minha carne verei a Deus", quando pregou
recentemente numa casa de uma aldeia por ocasião da colheita!
Excessivamente infeliz também foi o texto usado no funeral de um
clérigo assassinado (o Sr. Plow): "Assim dá ele aos seus amados o sono".
Manifestamente tolo, e muito, foi ainda aquele que escolheu "Não
julgueis, para que não sejais julgados", para um sermão pregado perante
os jurados numa sessão do tribunal do júri.
Não se deixem enganar pela sonoridade e pela aparente aptidão de
palavras bíblicas. M. Athanese Coquerel confessa ter pregado numa
terceira visita a Amsterdã baseado nas palavras: "É esta a terceira vez
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 112
que vou ter convosco" 2 Coríntios 13:1 – e bem pôde acrescentar que
"teve grande dificuldade depois, em colocar no discurso algo que fosse
próprio para a ocasião". Um caso paralelo foi o de um dos sermões pela
morte da princesa Charlotte, sobre o texto: "Enfermando ela, morreu".
Pior ainda é selecionar palavras miseravelmente engraçadas, como no
caso de um recente sermão sobre a morte de Abraão Lincoln, baseado na
sentença "E Abraão expirou e morreu".
Conta-se que um estudante, o qual é de esperar-se nunca tenha
saído de casa, pregou um sermão em público, diante do seu tutor, o Dr.
Filipe Doddridge. Ora, o bom homem estava acostumado a postar-se
justamente em frente do estudante e fitar-lhe diretamente o rosto.
Avaliem, pois, a sua surpresa, senão indignação, quando o texto
enunciado desfilou com estas palavras: "Estou há tanto tempo convosco,
e não me tendes conhecido, Filipe?"
Cavalheiros, às vezes loucos viram estudantes. Esperemos que
nenhum desse tipo desonre a nossa Alma Mater. Perdôo o homem que
pregou perante aquele Salomão bêbedo, Tiago I da Inglaterra e VI da
Escócia, baseando em Tiago 2:6; a tentação foi grande demais para que
se lhe pudesse resistir. Outrossim, seja o infame execrado para todo o
sempre, se existiu realmente o homem que celebrou a morte de um
diácono com a tirada: "E aconteceu que o mendigo morreu". Perdôo o
mentiroso que atribuiu a mim esse ultraje, mas espero que não tente
aplicar as suas manhas infames a ninguém mais.
Assim como devemos evitar a aplicação descuidada e acidental de
tópicos, também devemos evitar uma regularidade monótona. Ouvi falar
de um clérigo que tinha cinqüenta e dois sermões, e uns poucos
sobressalentes para datas especiais do calendário litúrgico; pregava-os
em ordem regular, ano após ano. No caso referido, o povo da igreja dele
não tinha necessidade de rogar-lhe que lhe falasse as mesmas coisas no
domingo seguinte, nem seria muito de admirar que fossem encontrados
imitadores de Êutico em outros lugares além do terceiro andar!
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 113
Não faz muito tempo que um clérigo disse a um fazendeiro amigo
meu: "Sabe, Sr. D., outro dia eu estava folheando os meus sermões e a
verdade é que a casa pastoral é tão úmida, principalmente o meu
gabinete, que os meus sermões ficaram todos mofados". O meu amigo,
embora zelador da igreja, freqüentava um local de culto mantido por
dissidentes, não foi rude a ponto de dizer: "bem feito!" Mas para os
respeitáveis cidadãos do povoado que tinham ouvido muitas vezes os
citados discursos, é possível que eles estivessem mofados em mais de
um sentido.
No ministério há pessoas que, tendo acumulado um pequeno
estoque de sermões, repetem-nos ad nauseam (até à náusea), com
horrível regularidade. Os irmãos itinerantes devem estar muito mais
sujeitos a essa tentarão do que os que permanecem no mesmo lugar
durante alguns anos. Se forem vítimas do hábito, isto será por certo o fim
da sua utilidade, e enviará um intolerável calafrio de morte aos seus
corações, de que depressa o seu povo tomará consciência quando os
ouvirem papaguear as suas produções gastas pelo tempo. A melhor
invenção para promover a preguiça espiritual deve ser o plano de
conseguir um estoque de sermões para dois ou três anos, e repeti-los em
ordem vezes sem conta. Se nós, meus irmãos, esperamos viver por
muitos anos, senão a vida inteira, num só lugar, arraigados ali pelo afeto
mútuo que se desenvolva entre nós e o nosso povo, temos necessidade de
um método bem diferente daquele que serve para um mandrião ou para
um evangelista itinerante.
Imagino que para uns deve ser um fardo pesado, e para outros deve
ser muito fácil achar assunto, como acontece com aqueles cuja sorte foi
lançada com a instituição episcopal, em que o pregador geralmente se
refere ao evangelho ou epístola ou lição para o dia, e se sente obrigado –
não por lei, mas por uma espécie de precedente – a pregar com base num
versículo tirado de uma dessas fontes. Seguindo o seu ciclo rotativo
estereotipado o Advento, a Epifania, a Quaresma e o Pentecoste,
ninguém precisa angustiar-se no coração com a pergunta: "Que direi a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 114
esta gente?" A voz da igreja é clara e definida: "Mestre, vá falando; aí
está o seu trabalho; dedique-se totalmente a ele".
Pode ser que haja algumas vantagens nesse arranjo prévio, mas o
povo episcopal não parece partilhar muito delas, pois os seus escritores
seculares estão sempre reclamando da aridez dos sermões, e lamentando
a triste condição dos leigos resignados que são compelidos a ouvi-los. O
hábito servil de seguir o curso do sol e a revolução dos meses, em vez de
seguir o Espírito Santo, é, em minha opinião, suficiente para explicar o
fato de que em muitas igrejas, sendo os seus próprios escritores os que
julgam, os sermões não são nada melhores do que espécimes daquela
"decente debilidade que protege os seus autores de erros grotescos e ao
mesmo tempo lhes veda admiráveis belezas".
Tenha-se, pois, por concedido que para nós é da máxima
importância, não só pregar a verdade, mas pregar a verdade condizente
com cada ocasião particular. O nosso esforço há de ser o de dissertar
sobre assuntos que melhor se adaptem às necessidades do nosso povo, e
que tenham maior probabilidade de evidenciar-se como canal da graça
para os seus corações.
Há alguma dificuldade na obtenção de textos? Lembro-me de que,
em meus primeiros tempos, li em alguma parte de um volume de
preleções sobre homilética, uma afirmativa que na ocasião me alarmou
consideravelmente; tinha mais ou menos este sentido: "Se alguém tiver
dificuldade para achar um texto, é melhor que volte de uma vez para a
mercearia ou para o arado, pois evidentemente não tem a capacidade que
se requer de um ministro". Ora, como essa fora muitas vezes a minha
cruz e o meu fardo, indaguei-me a mim próprio se deveria recorrer a
alguma forma de trabalho secular e deixar o ministério. No entanto, não
o fiz, pois sempre tive a convicção de que, embora condenado pelo
radical julgamento do preletor, sigo uma vocação à qual Deus
manifestamente apôs o Seu selo.
Fiquei com tal conflito de consciência pela severa observação
referida, que perguntei a meu avô, que estivera no ministério uns
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 115
cinqüenta anos, se alguma vez tinha ficado embaraçado na escolha do
seu tema. Disse-me francamente que esse fora sempre o seu maior
problema, comparada com o qual, a pregação propriamente dita não era
nenhuma preocupação. Lembro-me desta observação do venerando
senhor: "A dificuldade não é porque não há bastantes textos, mas porque
há tantos que fico em apuros entre eles".
Irmãos, às vezes somos como o apaixonado por flores seletas que se
vê rodeado de todas as belezas do jardim, com a permissão de escolher
apenas uma. Quanto tempo hesita entre a rosa e o lírio, e com que
dificuldade dá preferência a um dentre dez mil encantos floridos! Para
mim, devo confessá-lo, a escolha de um texto ainda é um enorme
embaraço – embarras de richesses, como dizem os franceses – embaraço
de riquezas, bem diferente do aturdimento da pobreza; a inquietação por
atentar para a mais premente dentre tantas verdades, todas clamando por
ser ouvidas, tantos deveres necessitando todos de se fazerem cumprir, e
tantas necessidades do povo, todas exigindo suprimento. Confesso que
fico muitas vezes horas e horas orando e esperando por um assunto, e
que esta é a maior parte do meu estudo. Tenho tido muito trabalho
manipulando tópicos, ruminando pontos de doutrina, esquematizando
versículos e, depois, enterrando cada um dos ossos deles nas catacumbas
do esquecimento, saindo a navegar através de léguas de águas
encapeladas, até ver as luzes vermelhas e conduzir o barco ao porto
desejado.
Creio que em quase cada sábado da minha vida fago sermões
suficientes para um mês, se me sentisse em liberdade para pregá-los, mas
não me atrevo a usá-los mais que um marujo honesto a levar para a praia
uma carga de artigos de contrabando. Os temas deslizam diante da mente
um após outro como as imagens passam pela lente do fotógrafo, mas
enquanto a mente não for como a chapa sensível que retém o retrato, os
assuntos não terão valor para nós.
Qual é o texto certo? Como sabê-lo? Sabemo-lo mediante sinais de
amigo. Quando um versículo der à sua mente um saudável espasmo, do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 116
qual não possa livrar-se, não precisará de outra orientação quanto ao
tema certo. Semelhante ao peixe, você espicaça muitas iscas, mas
quando o anzol o fisga bem, não vagará mais. Quando um texto nos
pega, podemos estar certos de que o pegamos, e podemos com segurança
entregá-lo com a alma.
Para empregar outro símile, você toma na mão certo número de
textos, e tenta esmiuçá-los; martela-os com força e empenho, mas o seu
trabalho é inútil. Por fim acha um que se esmigalha ao primeiro golpe, e
cintila ao cair em pedaços, e você percebe que dele refulgem jóias do
mais raro esplendor. Ele cresce diante dos seus olhos como a semente da
fábula que se desenvolveu e virou árvore enquanto o observador a
olhava. Encanta-o e o fascina, ou o força a ajoelhar-se e põe sobre você o
fardo do Senhor. Saiba então que esta é a mensagem que o Senhor quer
que você entregue. E, com este sentimento, você ficará tão preso àquela
passagem da Escritura, que não terá mais descanso enquanto não
submeter toda a sua mente ao poder dela, e enquanto não a tiver
transmitido conforme o poder que Deus lhe dá para fazê-lo. Espere por
aquela palavra eleita, mesmo que tenha que esperá-la até quase à hora do
culto. Isto não pode ser compreendido pelos homens frios e calculistas,
que não se deixam mover por impulsos como nós, mas, para alguns de
nós estas coisas são uma lei em nossos corações, lei que não nos
atrevemos a transgredir. Permanecemos em Jerusalém até que nos seja
dado poder.
"Creio no Espírito Santo." É um artigo do credo, mas raramente os
que o professam crêem no Espírito a ponto de se deixar mover por Ele.
Muitos ministros parecem pensar que são eles que devem escolher o
texto, que são eles que devem descobrir o sentido dele, que são eles que
devem encontrar um discurso nele. Nós não pensamos assim.
Naturalmente nos compete empregar as nossas volições, bem como o
nosso entendimento e os nossos sentimentos, pois não acreditamos que o
Espírito Santo nos compelirá a pregar sobre um texto contra a nossa
vontade. Ele não nos trata como se fossemos caixas de música, dando-
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 117
nos corda e ligando-nos em certa melodia. Antes, aquele glorioso
Inspirador de toda a verdade trata-nos como inteligências racionais,
influenciadas por forças espirituais coerentes com a nossa natureza; além
disso, as mentes devotas sempre desejam que a escolha do texto fique
com o sapientíssimo Espírito de Deus, e não com seus entendimentos
falíveis, e, portanto, colocam-se humildemente em Suas mãos, pedindo-
lhe que condescenda em conduzi-las à porção de alimento na ocasião
própria que Ele determinou para o Seu povo. Diz Gurnal:
"Os ministros não possuem capacidade própria para a execução do
seu trabalho. Ah! quanto tempo podem ficar virando e revirando os seus
livros e enredando os seus miolos, até vir Deus em seu socorro, e então –
como a caça de Jacó – a coisa é trazida à sua mão. Se Deus não nos
trouxer a Sua assistência, escreveremos com caneta sem tinta. Se há
alguém que mais que qualquer outro precisa andar na confiante
dependência de Deus, esse alguém é o ministro do evangelho".
Se alguém me perguntasse, "Como conseguirei o texto mais
apropriado?" eu responderia: "Clame a Deus por ele".
Harrington Evans, em sua obra, Rules for Sermons (Regras para
Sermões), lança como primeira delas a seguinte: "Busque a Deus em
oração para a escolha de uma passagem. Indague os motivos pelos quais
se decide por uma passagem. Veja que a pergunta seja bem respondida.
Às vezes a resposta pode ser tal que deveria levar a mente a decidir-se
contra a escolha feita".
Se somente a orarão não o guiar ao desejado tesouro, será em todo
caso um exercício proveitoso orar. Se a dificuldade em localizar um
tópico o fizer orar mais que de costume, será uma grande bênção para
você. Orar é o melhor estudo. Já no passado Lutero dizia: "Bene orasse
est bene studuisse" (Orar bem é estudar bem), e o repisado provérbio
agüenta repetição. Ore com meditativamente sobre a Escritura; é
espremer uvas no tonel, é trilhar trigo no terreiro, junto ao celeiro, é
fundir ouro extraindo-o do minério. A oração é bênção dupla: abençoa o
pregador em seus apelos, e abençoa as pessoas por ele servidas. Quando
o texto lhe vem em resposta à oração, ser-lhe-á o mais caro. Virá com
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 118
aroma e unção divinos, completamente desconhecidos do orador
formalista para quem não importa se o tema é este ou aquele.
Depois da oração, somos obrigados a empregar com muito
empenho os meios próprios para concentrar os nossos pensamentos e
conduzi-los pelo melhor canal. Considere a condição dos seus ouvintes.
Reflita no estado espiritual deles como um todo e como indivíduos, e
prescreva o remédio adequado à sua moléstia, ou prepare o alimento
próprio para a necessidade prevalecente. Contudo, permita-me acautelá-
lo contra a consideração dada aos caprichos dos seus ouvintes, ou às
peculiaridades dos ricos e influentes. Não dê muito valor ao cavalheiro e
à dama que ocupam o banco verde, se é que você é tão infeliz que tem
esse abominável lugar de distinção numa casa onde todos são do mesmo
nível. Veja que o grande contribuinte seja por todas as formas
considerado como os demais, e não permita que sejam negligenciadas as
fraquezas espirituais dele; mas ele não é a congregação toda, e você
entristecerá o Espírito Santo se pensar que é.
Olhe com igual interesse para os pobres nas alas da igreja, e escolha
tópicos que estejam dentro das suas categorias de pensamento e que
possam encorajá-los em suas muitas tristezas. Não permita que sua
cabeça se volte por respeito àqueles membros parciais da igreja que têm
sorrisos doces para uma porção do evangelho, e se fazem surdos para
outras partes da verdade. Nunca use de subterfúgio, quer para fazer-lhes
festa, quer para censurá-los. Pode dar-nos satisfação pensar que estão
contentes, se são boas pessoas, e respeitamos as suas predileções, mas a
fidelidade requer que não sejamos simples flautistas para os nossos
ouvintes, só tocando as músicas que eles exigem, e sim, que sejamos
como que a boca do Senhor para declarar todos os Seus conselhos.
Retorno à observação: pense bem no que o seu povo realmente
necessita para a sua edificação, e seja esse o seu tema. O famoso
apóstolo do norte da Escócia, o Dr. Macdonald, dá um exemplo
pertinente em seu Diary of Work in St. Kilda (Diário da Obra em Santa
Kilda): "Sexta-feira, 27 de maio. Em nosso culto matutino de hoje, li
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 119
Romanos 12 e dei algumas explicações, o que me deu oportunidade para
expor a relação entre a fé e a prática e para afirmar que as doutrinas da
graça se harmonizam com a vida consagrada e levam à santidade do
coração e da vida. Julguei necessário isto, pois do ponto elevado que eu
tinha ocupado por alguns dias, temi que o povo se desviasse para o
antinomismo, extremo tão perigoso como o arminianismo, se não mais".
Tome em consideração os pecados que parecem predominantes na
igreja e na sua congregação – Mundanismo, cobiça, negligência na
oração, ira, orgulho, falta de amor fraternal, calúnia e outros males
semelhantes. Leve em conta, afetuosamente, as provações do seu povo, e
busque um bálsamo para as suas feridas. Não é necessário descer a
minúcias, quer na oração, quer no sermão, quanto a essas provações dos
freqüentadores da sua igreja, embora fosse esse o costume de um
respeitável ministro que foi bispo nestas cercanias, e já foi para o céu.
Em seu abundante amor por seu povo, costumava fazer tantas alusões a
nascimentos, mortes e casamentos ocorridos com o seu rebanho, que um
dos prazeres dos seus ouvintes assíduos deve ter consistido em descobrir
a quem o ministro se referia nas várias partes da sua oração e do seu
sermão. Vindo dele, isso era tolerado, e até admirado – mas, de nós seria
ridículo. Um patriarca pode fazer com propriedade o que um jovem deve
evitar escrupulosamente. O venerando clérigo que acabo de mencionar
tinha aprendido essa arte de particularizar do seu pai, pois era de uma
família em que os filhos, tendo notado alguma coisa particular ocorrida
durante o dia, diziam uns aos outros: "Temos que esperar até o culto
doméstico da noite, quando ficaremos sabendo tudo sobre isso". Mas
estou fazendo digressão; este caso mostra como um excelente hábito
pode degenerar em defeito, mas a regra que registrei não é afetada por
ele. Em conjunturas particulares, ocorrerão certas provações a muitos
dos freqüentadores dos cultos, e visto que essas aflições atrairão a sua
mente para novos campos de pensamento, você agirá mal se for surdo ao
seu chamamento.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 120
Repito, devemos observar o estado espiritual de nossos ouvintes, e,
se notarmos que eles estão caindo numa condição de infidelidade; se
temermos que eles correm o perigo de serem contaminados por alguma
heresia perniciosa ou alguma imaginação perversa; se de fato alguma
coisa, no caráter fisiológico da igreja como um todo, chocar a nossa
mente – devemos apressar-nos a preparar um sermão que, pela graça de
Deus, possa sustar a praga. Essas coisas são indicações, entre os
ouvintes, que o Espírito de Deus dá ao pastor cuidadoso e cumpridor
quanto ao seu curso de ação.
O pastor cuidadoso examina com freqüência o seu rebanho, e
orienta o seu modo de tratá-lo de acordo com o estado em que o
encontra. Estará apto para fornecer com parcimônia um tipo de alimento,
outro tipo com maior abundância, e remédio na devida quantidade,
conforme o seu juízo experimentado achar necessário ou um ou outro.
Estaremos bem orientados, se simplesmente nos associarmos ao "grande
Pastor das ovelhas".
Todavia, não permitamos que a nossa pregação feita de modo bem
adaptado ao nosso povo degenere, assumindo a forma de pura
reprimenda. Chamam o púlpito de "Cidadela dos Covardes", e este nome
lhe vai bem em alguns aspectos, especialmente quando estultos sobem à
plataforma e injuriosamente insultam os ouvintes expondo as suas faltas
ou fraquezas à irrisão pública. Há uma personalidade – uma
personalidade ultrajante. frívola e injustificável – que deve ser
zelosamente evitada. É terrena, grosseira, e deve ser condenada sem
limitação de palavras. Ao passo que há outra personalidade sábia,
espiritual, celeste, que deve ser almejada incessantemente.
A Palavra de Deus é mais aguda que qualquer espada de dois
gumes, e, portanto, irmãos, é preciso deixar que a Palavra de Deus fira e
mate, não havendo necessidade de que vocês mesmos cortem com
palavras e atitudes. A verdade de Deus é penetrante. Deixem que ela
penetre os corações dos homens sem acréscimos ofensivos da parte de
vocês. É retratista de mau gosto aquele que precisa escrever o nome
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 121
embaixo do retrato quando este é pendurado na sala de visitas da família
onde a própria pessoa retratada tem o seu lugar para sentar-se. Levem os
seus ouvintes a perceberem que estão falando deles, sem contudo referir-
se aos seus nomes nem mesmo no mais remoto grau, e sem apontar para
eles.
Talvez ocorram ocasiões em que vocês podem ser forçados a ir ao
ponto a que chegou Hugh Latimer quando, falando sobre suborno, disse:
"Aquele que aceitou uma bacia e um jarro de prata como suborno pensa
que isto nunca virá à luz. Mas ele pode saber que eu sei disso, e não só
eu; há outros mais que o sabem. Oh, subornador! Oh, suborno! Quem
assim recebe peitas nunca foi boa gente; e nem posso acreditar que o
subornador possa vir a ser bom juiz". Aí há tanta reticência prudente
como revelação ousada. Se vocês não forem além disso, ninguém se
atreverá, em nome do decoro, a acusá-lo de personalidade severa demais.
A seguir, observando o texto, o ministro deve considerar quais
foram os seus tópicos anteriores. Seria insensato insistir perpetuamente
numa doutrina em detrimento das outras. Alguns dos nossos irmãos mais
profundos podem ser capazes de tratar do mesmo assunto numa série de
pregações, e, com um giro do caleidoscópio, podem ser capazes de
apresentar novas formas de beleza sem nenhuma alteração do assunto,
mas a maioria de nós, dotada de habilidades menos férteis, achará
melhor fazer estudos variados, e aplicar-se a mais ampla gama de
verdades. Freqüentemente eu olho a lista dos meus sermões para ver se
alguma doutrina escapou à minha atenção, ou se alguma graça cristã foi
negligenciada em minhas ministrações.
É bom averiguar se não temos sido demasiado doutrinários
ultimamente, ou insuficientemente práticos, ou exclusivamente
experimentais. Não desejamos degenerar até sermos antinomistas, nem,
por outro lado, queremos rebaixar-nos à condição de simples mestres de
fria moralidade, mas a nossa ambição é dar prova cabal do nosso
ministério. Gostaríamos de dar a cada porção da Escritura aquela
participação do nosso coração e da nossa cabeça que ela merece.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 122
Doutrina, preceitos, história, tipologia, salmos, provérbios, experiências,
exortações, promessas, convites, ameaças, repreensão – gostaríamos de
incluir o conjunto completo da verdade inspirada no âmbito dos nossos
ensinos. Aborreçamos toda unilateralidade, todo exagero de uma verdade
e menosprezo de outra, e esforcemo-nos para pintar o retrato da verdade
com traços balanceados e cores mescladas, para que não a desonremos
apresentando distorção em vez de simetria, e uma caricatura em lugar de
uma cópia fiel.
Supondo, contudo, irmão, que você orou naquele seu pequeno
quarto, lutou muito e suplicou demoradamente, pensou no povo e nas
suas necessidades, e ainda não pôde encontrar o texto – bem, não se
perturbe com isso, nem dê lugar ao desespero. Se você tivesse que ir à
guerra às suas expensas, ser-lhe-ia uma desgraça ficar sem pólvora,
estando tão perto a batalha, mas como compete a seu Comandante prover
o necessário, não há dúvida de que oportunamente distribuirá a munição.
Se você confiar em Deus, Ele não falhará com você; não pode falhar.
Continue clamando e velando, pois ao estudante industrioso o auxílio
celestial é certo. Se você tivesse ficado andando para cima e para baixo
ociosamente a semana inteira, e não tivesse se preocupado em preparar-
se bem, não poderia esperar a ajuda divina; mas, se fez o melhor que
pôde, e agora está esperando saber a mensagem do seu Senhor, o seu
rosto jamais sofrerá vexame.
Irmãos, ocorreram-me dois ou três incidentes que talvez lhes
pareçam estranhos, mas, então, eu sou estranho. Quando eu residia em
Cambridge, tive que pregar certa noite, como de costume, num povoado
próximo aonde eu tinha que ir a pé. Depois de ler e meditar o dia todo,
não pude dar com o texto certo. Fizesse o que fizesse, nenhuma resposta
vinha do oráculo sagrado, nenhuma luz raiava do Urim e Tumim; eu
orava, meditava, ia de um versículo a outro, mas a mente não pegava
nada, ou eu estava, como Bunyan diria, "muito virado e revirado em
meus pensamentos". Em dado momento fui até a janela e olhei para fora.
No outro lado da rua estreita em que eu morava, vi um pobre canário
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 123
solitário no telhado, cercado por um bando de pardais que o bicavam
como se o quisessem despedaçar.
Naquele momento o versículo me veio à mente – "A minha herança
é para mim ave de várias cores; andam as aves de rapina contra ela em
redor". Saí dali com a maior serenidade possível, ponderei a passagem
durante minha longa e solitária caminhada, e preguei acerca do povo
peculiar, e sobre as perseguições movidas por seus inimigos, e o fiz com
liberdade e tranqüilidade para mim, e creio que para conforto dos meus
rústicos ouvintes. O texto foi-me enviado, se não pelos corvos,
certamente pelos pardais.
Noutra ocasião, quando estava trabalhando em Waterbeach, tinha
pregado domingo de manhã, e tinha ido para casa, para almoçar com um
membro da igreja, como costumava. Ocorre, porém, que havia três
cultos, e, infelizmente, o sermão da tarde vinha tão em cima do da
manhã, que era difícil preparar a alma, especialmente quando o almoço é
uma necessidade, mas séria inconveniência, quando se requer cérebro
claro. Que pena! Aqueles cultos à tarde em nossas aldeias inglesas eram
geralmente um melancólico desperdício de esforço. O rosbife e o pudim
pesam na alma dos ouvintes, e o próprio pregador fica amortecido em
seus processos mentais, enquanto a digestão reclama o domínio da hora.
Graças a uma cuidadosa medida de dieta, mantive-me naquela
ocasião bem animado e vigoroso, mas, para minha consternação, vi que
se me fora a linha de pensamento elaborada previamente. Não consegui
achar a pista do sermão que tinha preparado, e espremi a testa quanto
pude, mas o tópico perdido não me vinha. O tempo era curto, a hora
chegava, e um tanto alarmado eu disse ao honesto lavrador que, por
minha vida, eu não conseguia lembrar o que tencionara pregar. "Ah!,
exclamou ele, '"não tem importância; esteja certo de que terá uma boa
palavra para nós". Justo naquele momento, um tição em brasa caiu fora
do fogo da lareira a meus pés, enchendo de fumaça os olhos e o nariz da
gente. "Aí", disse o lavrador, "aí está o texto para o senhor. Não é um
tição arrebatado do incêndio'?" Não, pensei, não foi tirado, pois saltou
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 124
fora sozinho. Ali estava um texto, uma ilustração, e um pensamento
dominante, como um indez no ninho, chamariz de mais ovos. Veio-me
maior luz, e certamente o sermão não foi pior do que as minhas efusões
bem preparadas; foi melhor no melhor sentido, pois mais tarde vieram
um ou dois declarar que se despertaram e se converteram com o sermão
daquela tarde. Sempre considerei feliz circunstância ter esquecido o
texto sobre o qual planejara pregar.
Na rua New Park uma vez passei por uma experiência singular, da
qual há testemunhas presentes nesta sala. Eu tinha passado com
felicidade por todas as partes iniciais do culto de domingo à noite, e
estava anunciando o hino anterior ao sermão. Abri a Bíblia para achar o
texto que eu tinha estudado cuidadosamente como o tópico do discurso,
quando na página oposta outra passagem da Escritura saltou sobre mim
como um leão de uma moita, com muitíssimo mais poder do que eu
sentira ao considerar o texto que havia escolhido. O povo cantava e eu
suspirava. Eu estava espremido de ambos os lados, e minha mente
pendia como em pratos de balança. Naturalmente eu estava desejoso de
seguir a trilha que tinha planejado cuidadosamente, mas o outro texto
não queria aceitar recusa, e parecia puxar-me pela orla do casaco,
gritando: "Não, não! Você tem que pregar sobre mim. Deus quer que
você me siga". Eu deliberava dentro de mim quanto ao meu dever, pois
não queria ser nem fanático nem incrédulo, e por fim pensei comigo
mesmo: "Bem, eu gostaria de pregar o sermão que preparei, e é grande
risco meter-me a tragar nova linha de pensamento, mas como esse texto
insiste em constranger-me, talvez seja do Senhor, e portanto me
aventurarei com ele, venha o que possa vir".
Quase sempre anuncio as minhas divisões logo depois do exórdio,
mas nessa ocasião, contrariamente ao meu costume, não o fiz, pela razão
que talvez alguns de vocês adivinhem. Passei pelo primeiro subtítulo
com considerável liberdade, falando perfeitamente, de modo
improvisado, quanto ao pensamento e à palavra. O segundo ponto foi
tratado com a consciência de um poder incomum, tranqüilo e eficaz, mas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 125
eu não tinha idéia do que seria ou poderia ser o terceiro, pois o texto já
não oferecia mais conteúdo, e eu nem poderia dizer agora o que teria
feito, se não ocorresse um fato que eu nunca teria imaginado. Tinha-me
metido em grande dificuldade obedecendo ao que julgava ser um
impulso divino, e me sentia relativamente sossegado sobre isso, crendo
que Deus me socorreria, e sabendo que ao menos poderia encerrar a
reunião se não houvesse mais nada que dizer.
Não tive que ficar deliberando, pois de repente ficamos em
completa escuridão – o gás se acabara, e como os corredores da igreja
estavam repletos de gente, e o lugar todo estava superlotado; havia
grande perigo, mas também houve grande bênção. Que deveria fazer eu
então? Os presentes assustaram-se um pouco, mas eu os tranqüilizei na
hora dizendo-lhes que não se alarmassem por faltar a luz, pois logo seria
reacendida, e quanto a mim, como não tinha manuscrito, podia falar com
luz ou sem luz, desde que eles tivessem a bondade de sentar-se e ouvir.
Se o meu discurso fosse muito elaborado, seria absurdo continuá-lo, e
assim, no aperto em que eu estava, fiquei livre do embaraço. Voltei-me
mentalmente para o bem conhecido texto que fala do filho da luz
andando nas trevas, e do filho das trevas andando na luz, e vi que se me
derramavam observações e ilustrações apropriadas, e quando as luzes se
acenderam, vi diante de mim um auditório tão arrebatado e subjugado
como nenhum homem jamais viu em sua vida.
O estranho nisso tudo foi que, passadas algumas reuniões da igreja,
duas pessoas foram à frente para fazer a sua confissão de fé, e
declararam que foram convertidas naquela noite. A primeira deveu a sua
conversão à primeira parte da pregação, sobre o novo texto que me viera,
e a outra atribuiu o seu despertamento à última parte, ocasionada pela
súbita escuridão. Assim, vocês vêem, a Providência favoreceu-me.
Deixei-me aos cuidados de Deus, e os arranjos que Ele fez apagaram a
luz na hora certa para mim. Alguns podem ridicularizar-me, mas eu
adoro o Senhor; outros podem criticar-me, mas eu me regozijo.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 126
Qualquer coisa é melhor do que a mecânica produção e pregação de
sermões, em que a direção do Espírito é praticamente ignorada. Todos os
pregadores usados pelo Espírito Santo, não tenho dúvida, terão dessas
recordações agrupando-se em torno do seu ministério. Portanto, digo:
observem o curso da Providência; entreguem-se à orientação e ao auxílio
do Senhor. Se tiverem feito solenemente o melhor que puderam para
conseguir um texto, e o assunto não lhes vem, subam ao púlpito
firmemente convictos de que receberão uma mensagem quando chegar a
hora, mesmo que não tenham uma palavra naquele momento.
Na biografia de Samuel Drew, famoso pregador metodista, lemos:
"Detendo-se na casa de um amigo em Cornwall, depois da pregação,
uma pessoa que assistira o culto, fazendo-lhe a observação de que,
naquela ocasião, ele sobrepujara a sua capacidade habitual, confirmando-
lhe outros a mesma opinião, disse o Sr. Drew: "Se é verdade, é a coisa
mais singular, porque o meu sermão foi pregado sem qualquer meditação
prévia. Fui para o púlpito com a intenção de falar-lhes baseado noutro
texto, mas, olhando a Bíblia que estava aberta, a passagem sobre a qual
acabam de me ouvir, "Prepara-te, ó Israel, para te encontrares com o teu
Deus", prendeu a minha atenção com tanta força que pôs em fuga as
minhas idéias anteriores; e, conquanto eu nunca antes tivesse
considerado aquela passagem, resolvi de imediato fazê-la o assunto do
meu discurso. O Sr. Drew fez bem em ser obediente à direção celestial.
Meus irmãos, em certas circunstâncias vocês se sentirão
absolutamente compelidos a porem de lado o discurso bem estudado, e a
confiarem no presente socorro do Espírito Santo, empregando alocução
puramente improvisada. Talvez se vejam na situação do finado Kingman
Nott, quando pregava no Teatro Nacional de Nova York. Numa de suas
cartas ele diz: "O edifício estava abarrotado de gente, mormente de
jovens e meninos do tipo mais grosseiro. Fui com o sermão em mente,
mas logo que cheguei no palco, saudado com "Eh! eh!", e vendo a
heterogênea e ruidosa multidão com que tinha que lidar, deixei de lado
todos os pensamentos do sermão, e tomando a parábola do filho pródigo,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 127
tentei interessar nela os presentes, e consegui manter a maior parte deles
dentro da casa e toleravelmente atentos". Que simplório teria sido ele se
tivesse perseverado em sua inadequada preleção! Irmãos, rogo-lhes,
creiam no Espírito Santo, e levem à prática a sua fé.
Como adicional assistência prestada a um pobre pregador
encalhado, incapaz de fazer sua mente navegar por falta de uma ou duas
ondas de pensamento, recomendo-lhe, em tal caso, voltar insistentemente
à Palavra de Deus, lendo um capítulo e ponderando seus versículos um
por um; ou escolher um versículo, e exercitar bem a sua mente nele.
Talvez não encontre o texto do seu sermão no versículo ou no capítulo
que está lendo, mas a palavra certa lhe virá mediante o engajamento
ativo da sua mente em assuntos santos. Conforme a relação dos
pensamentos uns com os outros, um pensamento induzirá outro, e outro,
até passar uma longa procissão deles diante da sua mente, dos quais um
ou outro será o tema predestinado.
Leia também bons e sugestivos livros, e eleve a sua alma através
deles. Se os homens querem bombear água com uma bomba não usada
recentemente, primeiro despejam água nele, e a bomba funciona.
Mergulhe num dos puritanos, e estude completamente a obra, e logo se
verá como um pássaro em vôo, mentalmente ativo e cheio de
movimento.
Deixe-me observar, porém, a modo de precaução, que devemos
estar treinando sempre a busca de textos e o preparo de sermões.
Devemos constantemente preservar a santa atividade das nossas mentes.
Ai do ministro que ouse desperdiçar uma hora sequer. Leia o Essay on
the Improvement of Time (Ensaio sobre o aproveitamento do tempo), de
John Foster, e tome a decisão de nunca perder um segundo. O homem
que perambula para cima e para baixo, de segunda-feira de manhã até
sábado de noite, e sonha indolentemente que o texto do seu sermão lhe
será enviado por um mensageiro angélico na última ou na penúltima hora
da semana, está tentando a Deus, e merece ficar emudecido no dia do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 128
Senhor. Como ministros, não temos lazer; nunca estamos de folga, mas
permanecemos em nossas torres de vigia dia e noite.
Estudantes, digo-lhes solenemente, nada os escusará da mais rígida
economia de tempo; desperdiçá-lo é um perigo para vocês. A folha do
seu ministério logo fenecerá, a menos que, como o varão bem-
aventurado do Salmo primeiro, vocês meditem na lei do Senhor de dia e
de noite. Desejo ansiosamente que vocês não joguem fora tempo em
dissipação religiosa, ou em mexericos e em conversa frívola. Cuidado
para não ficarem correndo desta reunião para aquela, escutando meras
parolices, colaborando assim na indústria de inflar tagarelas. O homem
que é grande nos salões de chá, nas festas noturnas e nas excursões da
Escola Dominical, geralmente é pequeno em todos os demais lugares. O
preparo para o púlpito é a primeira ocupação de vocês, e se
negligenciarem nisso, não inspirarão confiança em si, nem no seu
ministério. As abelhas produzem mel de manhã à noite, e nós temos que
estar sempre armazenando provisões para o nosso povo. Não confio no
ministério que ignora a laboriosa preparação.
Quando viajávamos pelo norte da Itália, o nosso cocheiro dormiu na
carruagem, e quando o chamamos de manhã, ergueu-se desperto, estalou
o chicote três vezes, e disse que estava pronto. Não gostei muito de tão
rápidos aprestos pessoais, e preferia que ele tivesse dormido noutro
lugar, ou que eu ocupasse outro assento. Vocês que estão prontos para
pregar em três tempos, perdoem-me se me sentar num banco em
qualquer outra parte. O exercício mental costumeiro com vistas ao nosso
trabalho é aconselhável. Os ministros devem ser sempre diligentes,
principalmente no bom aproveitamento das oportunidades.
Vocês, irmãos, às vezes não se acham maravilhosamente
preparados para pregar? O Sr. Jay disse que quando se sentia nessas
condições, costumava pegar papel e anotar textos e divisões de sermões,
e guardá-los acumulados para lhe prestarem serviço nas ocasiões em que
a sua mente não estivesse tão bem disposta assim. O chorado Thomas
Spencer escreveu: "Conservo um pequeno livro em que anoto cada texto
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 129
da Escritura que me vem à mente com poder e dulçor. Se sonhasse com
uma passagem da Escritura, eu também a anotaria, e quando me ponho à
escrever, examino o livro, e nunca me acho em dificuldade quanto a um
assunto". Estejam atentos em busca de assuntos quando andarem pela
cidade ou pelo campo.
Reflitam sobre este exemplo: "Fui induzido a um proveitoso
impulso de meditação, sobre a maneira como o nosso bom Pastor cuida
do Seu rebanho, ao ver alguns cordeiros expostos ao frio e uma pobre
ovelha perecer por não receber os devidos cuidados." – Andrew Fuller's
Diary (Diário de A. Fuller).
Mantenham sempre os olhos e os ouvidos abertos, e ouvirão e verão
anjos. O mundo está repleto de sermões – peguem-nos no vôo. O
escultor crê, sempre que vê um rude bloco de mármore, que nele se
esconde uma nobre estátua, e que basta desbastar as superfluidades para
revelá-la. Assim também creiam vocês que dentro de cada vagem de
todas as coisas há a amêndoa de um sermão para quem for sábio. Sejam
sábios, e vejam o celeste em seu molde terreno. Ouçam as vozes dos
céus, e as traduzam para a língua dos homens. Sejam sempre, ó homens
de Deus, pregadores que fazem provisões para o púlpito, em todas as
províncias da natureza e da arte, armazenando e preparando material
toda hora e em todas as estações.
Perguntam-me se é boa coisa anunciar os temas preparados e
publicar listas de sermões previamente planejados. Respondo: Cada
homem em sua ordem. Não sou juiz dos outros. Mas não me atrevo a
tentar tal coisa, pois incorreria em memorável fracasso se me aventurasse
a fazê-lo. Os precedentes vão muito contra a minha opinião,
sobressaindo-se as séries de discursos de Matthew Henry, John Newton,
e de um batalhão de outros mais. Contudo, só posso falar das minhas
impressões pessoais, e deixo que cada qual seja a sua própria lei. Muitos
teólogos eminentes deram valiosos cursos de sermões sobre tópicos
ordenados previamente, mas nós não somos eminentes, e devemos
aconselhar a outros que são como nós a serem cautelosos sobre como
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 130
agir. Não ouso anunciar sobre o que pregarei amanhã, e muito menos
sobre o que pregarei daqui a seis semanas ou seis meses, sendo que em
parte a razão é esta – que tenho consciência de que não possuo aqueles
dons peculiares que são necessários para interessar uma assembléia num
assunto ou numa série de assuntos durante qualquer extensão de tempo.
Irmãos de extraordinária capacidade de pesquisa e de profunda cultura
podem fazê-lo, e irmãos que não possuem nada disso, e sem bom senso,
podem ter a pretensão de fazê-lo, mas eu não posso. Sou obrigado a fazer
grande parte da minha força depender da variedade, antes que da
profundidade.
É questionável se a grande maioria dos pregadores de temas em
série não faria melhor queimando os seus programas, se quisessem ter
êxito. Tenho nítida recordação, aliás, fúnebre recordação, de certa série
de conferências sobre Hebreus que causaram profunda impressão em
minha mente, mas da mais indesejável espécie. Muitas vezes tenho
desejado que os hebreus tivessem guardado para si mesmos a Epístola
aos Hebreus, pois ela deixou enfarado um pobre rapaz gentio. Quando se
tinham apresentado sete ou oito conferências da série, só as pessoas
muito bondosas podiam agüentá-las; estas naturalmente declaravam que
nunca tinham ouvido exposições mais valiosas, mas aos de julgamento
mais carnal parecia que cada sermão ficava mais enfadonho. O escritor,
naquela epístola, exorta-nos a suportar a palavra de exortação, e foi o
que fizemos. Serão como aquele todos os cursos de sermões? Talvez
não, mas temo que as exceções são poucas, pois até se diz daquele
maravilhoso expositor, Joseph Caryl, que começou as suas famosas
preleções sobre Jó com oitocentos ouvintes, e terminou o livro com
apenas oito! Um pregador profético alongou-se tanto sobre "a ponta
pequena" de que fala Daniel, que certo domingo de manhã só lhe
restaram sete ouvintes. Sem dúvida achavam
"Estranho que uma harpa de mil cordas
tocasse no mesmo tom por tanto tempo".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 131
Comumente, e para homens comuns, parece-me que discursos
previamente organizados em série são um erro, nunca passam de
benefício aparente, e geralmente são um verdadeiro mal. Certamente
percorrer uma longa epístola requer muitíssimo gênio do pregador, e um
mundo de paciência da parte dos ouvintes. Sinto-me impulsionado a
fazer uma consideração mais profunda daquilo que acabo de dizer:
Tenho a impressão de que muitos pregadores vigorosos e ardentes
achariam que temas programados são grilhões. Se o pregador anuncia
para o próximo dia do Senhor um tópico cheio de alegria, que requer
vivacidade e exaltação de espírito, pode bem acontecer que, por várias
causas, se sinta num tristonho e sobrecarregado estado mental; apesar
disso, tem que pôr vinho novo no seu velho cantil e ir para a festa de
casamento usando roupa de pano de saco e cinzas, e pior que tudo, pode
ser obrigado a repetir isso um mês inteiro. É assim que deve ser? É
importante que o orador esteja em sintonia com o seu tema; como,
porém, assegurar-se isto, a não ser deixando a escolha do tópico às
influências que operem na ocasião? O homem não é uma máquina a
vapor correndo sobre trilhos de metal, e é insensato fixá-lo num encaixe.
Grande parte do poder do pregador consiste em sua alma estar em
harmonia com o assunto, e eu teria receio de determinar um assunto para
uma certa data, pois, ao chegar a ocasião, poderia não estar na mesma
clave. Além disso, não é fácil ver como um homem pode demonstrar
dependência da direção do Espírito de Deus, se já prescreveu sua própria
rota. Talvez vocês digam: "Que singular objeção, pois, por que não
confiar nEle por vinte semanas se confia por uma?" Certo, mas nunca
tivemos uma promessa para garantir-nos essa fé. Deus promete dar-nos
graça conforme os nossos dias, mas nada diz de dotar-nos de um fundo
de reserva para o futuro.
"Dia a dia o maná forrava o chão;
oh, tratem de aprender bem a lição!"
Exatamente assim nos virão nossos sermões, vigorosos, vindos do
céu, quando necessário. Tenho zelo quanto a qualquer coisa que lhes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 132
impeça a dependência diária do Espírito Santo, e portanto registro a
opinião já dada. A vocês, meus jovens irmãos, sinto-me seguro ao dizer-
lhes com autoridade: Deixem as ambiciosas tentativas de elaboradas
séries de discursos aos mais velhos e mais capazes. Temos apenas uma
pequena porção de ouro e prata mental; invistamos o nosso pequeno
capital em mercadorias úteis, que alcancem mercado à disposição, e
deixemos que os negociantes mais ricos comerciem com artigos mais
caros e mais difíceis de sair. Não sabemos o que o dia trará – esperemos
pelo ensinamento diário, e não façamos nada que nos impeça a utilização
dos materiais que a providência pode lançar em nosso caminho hoje ou
amanhã.
Talvez vocês indaguem se deveriam pregar sobre textos que outras
pessoas escolhem e pedem que preguem sobre eles! Minha resposta
seria: como regra geral, nunca; e se houver exceções, que sejam poucas.
Permitam-me lembrar-lhes que vocês não cuidam de uma loja à qual os
fregueses podem vir e fazer os seus pedidos. Quando um amigo sugere
um tópico, pensem bem, e considerem se é apropriado, e vejam se ele
lhes vem com poder. Recebam o pedido com cortesia, pois é seu dever
agir como cavalheiros e cristãos. Mas, se o Senhor a quem vocês servem
não lançar a Sua luz sobre o texto, não preguem sobre ele, seja quem for
que queira persuadi-los.
Estou absolutamente certo de que, se esperarmos do Senhor os
nossos assuntos, e fizermos disso objeto de oração, para sermos guiados
retamente, seremos conduzidos pelo caminho certo. Mas se nos
inflarmos com a idéia de que nós mesmos podemos fazer facilmente a
escolha, veremos que até mesmo na seleção de um assunto, sem Cristo
nada podemos fazer. Esperem no Senhor, irmãos, ouçam o que Ele quer
falar, recebam a palavra diretamente da boca de Deus, e então partam
como embaixadores recém-enviados pela corte celestial. "Esperai, pois,
no Senhor."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 133
A ARTE DE ESPIRITUALIZAR

Muitos que escrevem sobre homilética condenam em termos sem


limites até a ocasional espiritualização de um texto. * "Escolha textos",
dizem eles, "que dêem um sentido claro, literal; jamais viaje além do
sentido óbvio da passagem; nunca se permita acomodar ou adaptar; isso
é artifício de homens de cultura artificial, um estratagema de charlatães,
miserável exibição de mau gosto e de atrevimento." A quem honra,
honra, mas humildemente peço licença para discordar dessa opinião
erudita, entendendo que é mais fastidiosa do que correta, mais plausível
do que verdadeira. Grandes porções de verdadeiro bem podem ser feitas
tomando-se ocasionalmente textos esquecidos, singulares, notáveis,
incomuns; e estou persuadido de que, se apelarmos para um júri de
pregadores práticos e de sucesso, não teóricos, mas homens da luta,
teremos a maioria a nosso favor.
Pode ser que os doutos rabis desta geração sejam demasiado
sublimes e celestiais para condescender com homens de baixa condição;
mas nós, que não temos cultura de alto nível, ou profundo saber, ou
encantadora eloqüência de que nos jactar, julgamos prudente usar o
mesmo método que os poderosos proscreveram, pois vemos nele um dos
melhores modos de ficar fora da rotina da formalidade insípida, e ele nos
fornece uma espécie de sal com que podemos dar sabor a verdades
desagradáveis. Muitos grandes conquistadores de almas acharam bom
para dar estímulo ao seu ministério, e para prender a atenção dos seus
ouvintes, uma vez ou outra irromper por um caminho até então não
palmilhado. A experiência não lhes ensinou que laboravam em erro, mas
o contrário.
Dentro de certos limites, irmãos, não tenham medo de espiritualizar,
ou de tomar textos singulares. Continuem tratando das passagens da
*
"A pregação alegórica avilta o gosto e agrilhoa o entendimento, tanto do pregador como dos
ouvintes." – Adam Clarke.
A regra de Wesley é melhor: "Seja parcimonioso nas alegorizações ou espiritualizações".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 134
Escritura, e não dêem apenas o seu significado manifesto, como estão
obrigados a fazer, mas também extraiam delas os sentidos que talvez não
estejam na superfície. Aceitem o conselho se tem valor, mas lhes
recomendo que mostrem aos seus críticos superfinos que nem todos
prestam culto à imagem de ouro erigida por eles. Aconselho-vos a
empregarem a espiritualização dentro de certos limites e fronteiras, mas
lhes rogo que não se precipitem, sob a capa deste conselho, lançando-se
a incessantes e irrefletidas "imaginações", como George Fox lhes
chamaria. Não se afoguem porque foram recomendados a se banharem,
nem se enforquem num carvalho porque se diz que o tanino dele extraído
é valioso adstringente. Uma coisa permissível levada ao excesso é vício,
exatamente como o fogo é bom servo sob a chapa do fogão, porém mau
mestre quando furioso numa casa incendiada. O exagero, mesmo numa
coisa boa, causa indigestão e desagrado e em nenhum outro caso este
fato é mais patente do que neste diante de nós.
A primeira regra a ser observada é esta – não force violentamente
um texto com uma espiritualização ilegítima. É pecar contra o bom
senso. Quão terrivelmente a Palavra de Deus tem sido malhada e
mutilada por certo bando de pregadores que torturam textos, fazendo-os
revelar o que doutro modo jamais teriam falado. O Sr. "precipitado", de
que nos fala Rowland Hill em sua obra Village Dialogues (Diálogos de
Aldeia), é apenas um caso típico de um cardume numeroso. Aquela
sumidade é descrita como desincumbindo-se de um discurso baseado
em, "Eis que três cestos brancos estavam sobre a minha cabeça", do
sonho do padeiro de Faraó. Fundado nisso, o "chocho malho triplamente
consagrado", como lhe chamaria um amigo meu, discursou sobre a
doutrina da Trindade!
Um estimado ministro de Cristo, venerado e excelente irmão, um
dos mais instrutivos ministros no seu condado, contou-me que um dia
deu pela ausência de um trabalhador e sua esposa das reuniões da sua
igreja. Notou a ausência deles seguidamente, domingo após domingo, e
certa segunda-feira, encontrando na rua o homem, disse-lhe: "Ora, João,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 135
não o tenho visto ultimamente". "Pois é", foi a resposta; "não estávamos
tirando proveito do seu ministério como antes". "Verdade João? Lamento
muito ouvir isso." "Bem, eu e minha mulher gostamos das doutrinas da
graça, e daí ultimamente temos ido ouvir o Sr. Bawler." "Ah! você se
refere ao bom homem da High Calvinist Meeting (União Hiper
Calvinista)?" "Sim, senhor; e estamos tão contentes! Recebemos muito
boi alimento ali, numa medida transbordante. Estávamos quase
morrendo de fome sob o seu ministério – mas, sempre o respeitamos
como homem, senhor." "Está bem, meu amigo; naturalmente vocês
devem ir aonde possam obter bom proveito para sua alma; só espero que
seja bom. Mas, como lhes foi domingo passado?" "Ah! foi um dia
extremamente animador para nós, senhor. De manhã tivemos – não me
parece bem contar-lhe isto – contudo, tivemos momentos realmente
preciosos."
"Sim, mas, que foi, João?" "Bem, senhor, o Sr. Bawler nos fez
penetrar abençoadamente naquela passagem: "Quando te assentares a
comer com um governador, ... põe uma faca à tua garganta, se és homem
glutão". "Que foi que ele tirou dessa passagem?" "'Bem, senhor, posso
dizer-lhe o que ele tirou dela, mas, primeiro eu gostaria de saber o que o
senhor teria dito sobre ela." "Não sei, João; creio que dificilmente
escolheria esse texto, mas se tivesse que falar sobre ele, diria que uma
pessoa dada a comidas e bebidas deve ter cuidado com o que vai fazer
quando estiver na presença de grandes homens, se não se arruinará.
Mesmo nesta vida a glutonaria é danosa." "Ah!", disse o homem, "esta é
a sua maneira de interpretá-la segundo a letra morta. Como eu disse à
minha mulher outro dia, desde que começamos a ouvir o Sr. Bawler, a
Bíblia abriu-se para nós, de modo que podemos ver nela muito mais do
que víamos." "Sim, mas, que disse o sr. Bawler sobre aquela passagem?"
"Bem, ele disse que o glutão é o recém-convertido que por certo tem
tremenda fome de pregação, e sempre está querendo comida, mas nem
sempre tem o devido cuidado quanto à qualidade da comida." "E depois,
João?" "Ele disse que se o recém-convertido se sentasse diante de um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 136
governador – isto é, de um pregador legalista ou de outro homem de
convicção semelhante – seria a pior coisa para ele." "Mas, e quanto à
faca, João?" "Bem, o Sr. Bawler disse que é uma coisa muito perigosa
ouvir pregadores legalistas, pois isto certamente ia arruinar a vida do
ouvinte, e tanto faz cortar a sua garganta agora como depois!"
O assunto era, suponho, acerca dos efeitos prejudiciais sobre os
cristãos novatos que ouvem a outros pregadores, e não os da corrente
hipercalvinista. E eis a moral dele deduzida: Seria melhor que o irmão
em foco cortasse a garganta do seu ex-pastor do que ir ouvi-lo! Isto sim é
notável acomodação do texto.
Ó vós, críticos, entregamos esses cavalos mortos aos vossos dentes
brutais! Estraçalhai-os e devorai-os como quiserdes; não vos
censuraremos.
Ouvimos falar de outro "ator" que interpretou assim "Provérbios
21.17: "Necessidade padecerá o que ama os prazeres; o que ama o vinho
e o azeite nunca enriquecerá". O livro de Provérbios é um dos campos
favoritos dos espiritualizadores, que com os provérbios se divertem. O
nosso grande homem utilizou-se do provérbio desta maneira: "O que
ama os prazeres", isto é, o cristão que usufrui os meios da graça,
"necessidade padecerá", quer dizer, será pobre, mas pobre de espírito; "o
que ama o vinho e o azeite", a saber, o que se alegra com as provisões da
aliança, e desfruta o óleo e o vinho do evangelho, "nunca enriquecerá",
isto é, não será rico em sua própria opinião", mostrando a excelência dos
pobres de espírito, e como estes, gozarão os prazeres do evangelho –
sentimento muito bom, mas os meus olhos carnais não conseguem vê-lo
no texto.
Todos vocês já sabem da famosa explicação que William
Huntingdon deu de Isaías 11:8: "E brincará a criança de peito sobre a
toca do áspide, e o já desmamado meterá a sua mão na cova do
basilisco". "A criança de peito", isto é, o bebê na graça, "brincará sobre a
toca do áspide", "o áspide" quer dizer o arminiano; "a toca do áspide"
quer dizer a boca do arminiano." Segue-se então uma descrição do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 137
esporte em que as mentes simples são mais que um trunfo sobre a
sabedoria arminiana. Os elementos que professam a outra escola
teológica em geral tiveram o bom senso de não devolver o cumprimento,
caso em que os antinomianos ver-se-iam competindo com os basiliscos,
e veriam os seus opositores desafiá-los zombeteiramente à boca da cova
deles. Tal abuso só serve para prejudicar os que o praticam. Há melhores
modos de expor e salientar as diferenças teológicas do que essa
palhaçada.
Da estupidez estufada de orgulho surgem resultados ridículos.
Talvez baste um exemplo. Um respeitável ministro disse-me outro dia
que fazia pouco tempo estivera pregando à sua congregação sobre as
"vinte e nove facas" de Esdras. Estou certo de que ele sabia manejar com
discrição esses agudos instrumentos, mas não pude abster-me de dizer-
lhe que esperava que ele não tivesse imitado o sapiente intérprete que via
naquele curioso número de facas uma referência aos "vinte e quatro
anciãos" de Apocalipse.
Diz uma passagem de Provérbios: "Por três coisas se alvoroça a
terra, e a quarta não a pode suportar: Pelo servo, quando reina; e pelo
tolo, quando anda farto de pão; pela mulher aborrecida, quando se casa;
e pela serva, quando fica herdeira da sua senhora". Um enlevado
espiritualizador declara que isso é um lindo quadro descritivo da obra da
graça na alma, e mostra o que alvoroça os arminianos, e os põe em pé de
guerra. "O servo, quando reina", isto é, pobres servos como nós, quando
feitos reinantes com Cristo; o "tolo, quando está farto de pão", pobres
tolos como nós, quando somos alimentados com o trigo mais excelente
da verdade do evangelho; a "mulher aborrecida, quando se casa", isto é,
o pecador, quando se une a Cristo: e a "serva quando fica herdeira da sua
senhora", isto é, quando nós, pobres criadas que estávamos sob a lei,
escravas, fomos acolhidas aos privilégios de Sara, e nos tornamos
herdeiras da nossa senhora."
Eis aí alguns espécimes de excentricidades eclesiásticas, as quais
são tão numerosas e valiosas como as relíquias que todo dia,se juntam
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 138
com tanta abundância no campo de batalha de Waterloo, aceitas pelos
mais ingênuos como inestimáveis tesouros. Mas já vos enfarei, e não
quero desperdiçar mais o nosso tempo. É preciso admoestar-vos a
repudiarem todo esse abominável absurdo! Esses devaneios desonram a
Bíblia, são um insulto ao bom senso dos ouvintes e um aviltamento
deplorável do ministro. Contudo, esta não é a espiritualização que lhes
recomendamos, como igualmente o cardo que se ache no Líbano não é o
cedro do Líbano. Evitem, irmãos, a infantil perda de tempo e a ultrajante
torção de textos que farão de vocês sábios entre tolos, ou tolos entre
sábios.
A segunda norma é: nunca espiritualizem assuntos indecorosos. É
preciso dizer isto, pois a família "Precipitado" nunca se sente mais em
casa do que quando fala de maneira que faz ruborizar a face da modéstia.
Os escaravelhos são espécies de besouros que procriam na imundícia, e
esse tipo de criatura tem o seu protótipo entre os homens. Não é que me
vem à memória neste momento um teólogo cheio de sabor, que se
estendeu com maravilhoso gosto e com patética unção a respeito da
concubina cortada em dez pedaços? Azedo como é, não poderia tê-lo
feito melhor. Que coisas abomináveis têm sido ditas sobre alguns dos
mais rudes e horripilantes símiles de Jeremias e Ezequiel! Onde o
Espírito Santo é velado e repassado de pudor, estes homens tiram o véu e
falam como só as línguas perversas se aventurariam a falar.
Não sou melindroso, longe disso, mas as explicações do novo
nascimento com analogias sugeridas por um pré-natal, exposições do rito
da circuncisão, e minuciosas descrições da vida conjugal, causam-me
indignação e fazem com que me sinta inclinado a ordenar como fez Jeú,
que os desavergonhados sejam lançados abaixo desde a sua alta posição
infelicitada por seu descarado despundonor. Sei que se diz, "A vergonha
domina a quem o mal imagina", mas assevero que as mentes puras não
devem ser expostas sequer ao mais leve sopro de indelicadeza
proveniente do púlpito. A mulher de César tem que estar livre de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 139
suspeita, e os ministros de Cristo têm que estar sem nódoa em seu viver e
sem mácula em seu falar.
Cavalheiros, os beijos e abraços em que alguns pregadores se
deleitam são repugnantes. É melhor deixar em paz consigo o livro de
Cantares de Salomão, do que arrastá-lo à lama como se faz muitas vezes.
Especialmente os jovens devem ser escrupulosa e zelosamente sóbrios e
puros em suas palavras. A um idoso se perdoa, não sei bem por que, mas
um jovem ficará completamente sem desculpa, se ultrapassar a linha
estreita da delicadeza.
Em seguida, em terceiro lugar, nunca espiritualizem uma passagem
com o fim de mostrar que são extraordinariamente inteligentes. Tal
intenção é iníqua, e o método empregado será uma tolice. Somente um
egrégio simplório procurará ser notado fazendo o que nove entre dez
poderiam fazer muito bem feito. Certo candidato uma vez pregou um
sermão sobre a palavra "mas", esperando com isso captar a simpatia dos
congregados que, pensou ele, seriam arrebatados pelos poderes de um
irmão capaz de alargar-se tão maravilhosamente sobre uma simples
conjunção. Seu assunto parece ter consistido no fato de que, não importa
o que haja de bom no caráter de um homem, ou de admirável em sua
posição, o certo é que existe alguma dificuldade, algum sofrimento com
relação a todos nós. "Naamã era um grande homem diante do seu senhor,
mas – ". Quando o orador desceu do púlpito, os oficiais disseram: "Bem,
senhor, seu sermão foi deveras singular, mas – o senhor não é o homem
para o lugar; podemos ver isto com clareza". Ai da inventiva quando é
tão comum, e com ela põe uma arma nas mãos do próprio adversário!
Lembre-se de que a espiritualização não é uma esplêndida exibição
de talento, mesmo que você tenha competência para fazê-la bem, e de
que, sem discrição, é o método que mais se presta para revelar a sua
egrégia insensatez.
Cavalheiros, se aspiram a emular Orígenes em suas interpretações
extravagantes e ousadas, talvez seria bom ler antes a sua biografia e
observar as tolices às quais a sua maravilhosa mente foi arrastada por
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 140
permitir que uma desenfreada fantasia usurpasse a autoridade absoluta
do seu critério de julgamento. E se se meterem a competir com os
vulgares declamadores de uma geração passada, deixem-me lembrar-lhes
que hoje em dia o gorro e os sinos já não desfrutam o mesmo patrocínio
de poucos anos atrás.
Prosseguindo, a quarta advertência é – nunca pervertam a Escritura
para dar-lhe um sentido inusitado, pretensamente espiritual, para que não
seja achado culpado face àquela solene maldição que resguarda e fecha o
rol dos livros divinamente inspirados. O Sr. Cook, de Maidenhead,
sentiu-se obrigado a separar-se de William Huntingdon porque este
interpretou o sétimo mandamento como palavras ditas pelo Senhor ao
Seu Filho dizendo: "Não cobiçarás a mulher do diabo, isto é, do não
eleito". Só se pode dizer – horrível! Talvez fosse um insulto à sua razão
e à sua religião dizer, detestem pensar em tal profanação. Instintivamente
vocês o evitam.
Outra coisa mais – em nenhum caso permitam que os seus ouvintes
esqueçam que as narrativas que vocês espiritualizam são fatos, e não
apenas mitos ou parábolas. O sentido primário da passagem não deve
afogar-se na torrente da sua imaginação; deve ser declarado
definidamente e ter preeminência. A acomodação que fizer do texto
nunca deverá eliminar o sentido original e próprio, nem mesmo empurrá-
lo para um plano secundário. A Bíblia não é uma compilação de hábeis
alegorias ou de instrutivas tradições poéticas; ensina fatos concretos e
revela tremendas realidades. Faça com que a sua plena convicção desta
verdade se manifeste a todos quantos acompanham o seu ministério.
Serão péssimos dias para a igreja, se o púlpito vier a endossar a cética
hipótese de que a Escritura Sagrada é apenas o registro de refinada
mitologia, em que glóbulos da verdade se dissolvem em oceanos de
pormenores poéticos e imaginários.
Contudo, há um terreno legítimo para a espiritualização, ou seja,
para o dom particular que leva os homens a espiritualizarem fatos. Por
exemplo, muitas vezes tem sido demonstrado a vocês, irmãos, que os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 141
tipos oferecem amplo escopo ao exercício do talento santificado. Por que
precisam andar por aí para encontrar "mulheres aborrecidas" sobre quem
pregar, quando têm diante de si o tabernáculo no deserto, com todo o seu
aparelhamento sagrado, as ofertas queimadas, as ofertas pacificas, e
todos os diferentes sacrifícios que eram oferecidos perante o Senhor? Por
que lutar por novidades. quando o templo e todas as suas glórias estão
diante de vocês? A maior capacidade para a interpretação tipológica
achará abundante emprego nos indubitáveis símbolos da Palavra de
Deus, e será seguro praticar esse exercício, porque os símbolos foram
ordenados por Deus.
Quando tiverem exaurido todos os tipos do Velho Testamento, terão
deixado ainda à sua disposição uma herança de mil metáforas. Benjamim
Keach, em seu laborioso tratado, prova de maneira sumamente prática,
que minas de verdades se ocultam nas metáforas da Escritura! A
propósito, sua obra abre os flancos a muita crítica por fazer as metáforas,
não só correrem com quatro, mas com muitas pernas, como um
centípede; mas não merece a condenação que lhe imputa o Dr. Adam
Clarke, quando diz que o livro de Keach fez mais que qualquer obra
dessa natureza para rebaixar o gosto dos pregadores e do povo. Uma
discreta explanação das alusões poéticas da Escritura Sagrada será muito
aceitável aos seus ouvintes, e, com a bênção de Deus, não pouco
proveitosa.
Mas, supondo que tenham exposto todos os tipos geralmente
aceitos, e que tenham esclarecido os emblemas e as expressões
figuradas, o seu gosto por símiles e o seu prazer neles terão que ir
dormir? De modo nenhum. Quando o autor sagrado vê mistério em
Melquisedeque, e Paulo fala de Hagar e Sara desta forma: "O que se
entende por alegoria", dão-nos precedente para a descoberta de alegorias
bíblicas noutros lugares além dos dois mencionados. Na verdade, os
livros históricos não somente nos dão aqui e ali uma alegoria, mas
parecem em seu conjunto global arranjados com vistas ao ensino
simbólico.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 142
O Sr. Andrew Juke, no prefácio da sua obra sobre os tipos em
Gênesis, mostra como, sem violência, uma pessoa devota pode construir
uma teoria extremamente elaborada:
"Como base ou fundamento do que vem a seguir, primeiro se nos
mostra o que provém do homem, e todas as formas de vida que, pela
natureza ou pela graça, podem desenvolver-se da raiz do velho Adão. Este é
o livro de Gênesis. Então vemos que, seja bom ou mau que veio de Adão,
tem que haver redenção; assim um povo eleito pelo sangue do Cordeiro é
salvo do Egito. Disso trata Êxodo. Conhecida a redenção, chegamos à
experiência dos eleitos como tendo necessidade de acesso a Deus o
Redentor no santuário, e o aprendizado do caminho para ele. Obtemos isto
em Levítico. Depois, no deserto deste mundo, como peregrinos egressos do
Egito, da casa da servidão, rumo à terra prometida além do Jordão, ficamos
sabendo das provações da viagem, desde aquela terra de maravilhas e do
saber humano até à terra que mana leite e mel. Este é o livro de Números.
Em seguida vem o desejo de trocar o deserto pela terra melhor; a entrada na
qual se sabe que, por algum tempo depois da redenção, os eleitos ainda
evitam; respondendo ao desejo dos eleitos, em certo estágio, de conhecer o
poder da ressurreição, para viverem, mesmo no presente, como nos lugares
celestiais. Seguem-se as regras e os preceitos que devem ser obedecidos,
se isso há de se fazer. Deuteronômio, reiteração da lei, segunda purificação,
fala do modo de progredir.
"Depois disso chega-se de fato a Canaã. Atravessamos o Jordão;
experimentamos na prática a morte da carne, e o que significa sermos
circuncidados, e desfazer-nos do opróbrio do Egito. Sabemos agora o que é
ressuscitar com Cristo e lutar, não contra carne e sangue, mas contra os
principados e as potestades nos lugares celestiais. Este é o livro de Josué.
Então vem o fracasso dos eleitos nos lugares celestiais, fracasso resultante
das alianças feitas com os cananeus, em vez de se sobreporem a eles.
Juízes no-lo mostra. Depois, as diferentes formas de governo, que a igreja
pode conhecer, passam em revista nos livros de Reis, desde o primeiro
estabelecimento de governo em Israel até a sua extinção, quando, devido
seu pecado, o governo da Babilônia sobrepuja o dos eleitos.
"Conhecido isto, com toda a sua vergonha, vemos os remanescentes
dos eleitos, cada qual de acordo com a sua capacidade, fazendo o que está
a seu alcance para, se possível, restaurar Israel: uns, como Esdras, voltando
para construir o templo, isto é, para restaurar as formas do culto verdadeiro;
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 143
alguns vindo, como Neemias, para construir os muros, isto é, para
restabelecer, com a permissão dos gentios, uma débil imitação da antiga
comunidade política; enquanto em Ester um terceiro remanescente se vê
cativo, mas fiel, salvo providencialmente, embora o nome de Deus (e isto é
uma característica da sua condição) nunca apareça em parte alguma do
registro todo".
Longe de mim recomendar-lhes que sejam fantasiosos como às
vezes é, o engenhoso autor que acabo de citar, mercê da sua tendência
para o misticismo, todavia, lerão a Palavra com interesse cada vez maior
se forem leitores bastante atentos para notar o curso geral dos livros da
Bíblia, e a sua subseqüência como sistema de tipos.
Outrossim, a faculdade que possibilita o bom emprego da
espiritualização consiste em generalizar os grandes princípios universais
desdobrados em fatos diminutos e isolados. Esta é uma busca engenhosa,
instrutiva e legítima. Talvez vocês não se decidissem a pregar sobre
"pega-lhe pela cauda", mas a observação que disso nos vem é muito
natural: "há um jeito certo de pegar cada coisa". Moisés pegou a serpente
pela cauda, e assim há um modo de agarrar as nossas aflições e vê-las
enrijecer-se em nossas mãos, transformando-se numa vara prodigiosa; há
um modo de sustentar as doutrinas da graça, um modo de confrontar-nos
com os ímpios, e assim por diante. Em centenas de incidentes
escriturísticos podemos achar grandes princípios gerais que talvez em
nenhum lugar estejam expressos com tantas palavras.
Tomem os seguintes exemplos, fornecidos pelo Sr. Jay. Do Salmo
74:14, "Fizeste em pedaços as cabeças do leviatã, e o deste por
mantimento aos habitantes do deserto", ele ensina que os maiores
inimigos do povo de Deus, povo peregrino, serão mortos, e de que a
lembrança da misericórdia revigorará os santos. De Gênesis 35:8, "E
morreu Débora, a ama de Rebeca, e foi sepultada ao pé de Betel, debaixo
do carvalho cujo nome chamou "Alom-Bacute", ele discursa sobre bons
servidores e sobre a certeza da morte. Com base em 2 Samuel 15:15,
"Então os servos do rei disseram ao rei: Eis aqui os teus servos, para
tudo quanto determinar o rei, nosso senhor", mostra ele que essa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 144
linguagem pode com propriedade ser adotada pelos cristãos, e dirigida a
Cristo. Se alguém fizer objeção à forma de espiritualização que o Sr. Jay
tão eficiente e judiciosamente se permitiu fazer, só pode ser uma pessoa
cuja opinião não tem por que influir em vocês nem um pouco. Dentro da
minha capacidade pessoal, tenho tomado a liberdade de fazer a mesma
coisa, e os esboços dos meus sermões desse tipo podem ser encontrados
em meu opúsculo Evening by Evening (Noite a Noite), e uma irrigação
menos liberal em seu companheiro, Morning by Morning (Manhã a
Manhã).
Um notável exemplo de um bom sermão firmado numa base
forçada e injustificável, é o de Everard, em seu Gospel Treasury
(Tesouro do Evangelho). No discurso sobre Josué 15:16-17, onde as
palavras são estas: "E disse Calebe: Quem ferir a Quiriate-Séfer, e a
tomar, lhe darei a minha filha Acsa por mulher. Tomou-a pois Otniel,
filho de Quenaz, irmão de Calebe; e deu-lhe a sua filha por mulher"; aqui
o curso da elocução do pregador se baseia na tradução dos nomes
próprios hebraicos, de maneira que ele propicia esta leitura: "Um bom
coração disse: Quem ferir a cidade das letras, e a tomar, lhe darei a
ruptura do véu. E Otniel viu nisso o tempo próprio ou a oportunidade de
Deus, e se casou com Acsa, isto é, desfrutou a ruptura do véu, pelo que
teve a bênção das fontes superiores e das fontes inferiores". Não haveria
outro método para mostrar que devemos procurar o sentido interno da
Escritura, e não ficar nas meras palavras, ou na letra do Livro?
As parábolas do nosso Senhor, em sua apresentação e em seu
vigor, fornecem o mais amplo escopo para a imaginação amadurecida e
disciplinada, e se todas elas já passaram por vocês, ficam ainda os
milagres, ricos de ensinos simbólicos. Não pode haver dúvida de que os
milagres são sermões por meio de ações de nosso Senhor Jesus Cristo.
Vocês têm Seus "sermões em palavras" em Seu ensino incomparável, e
os Seus "sermões em atos" em Seus feitos sem par. Apesar de defeitos
doutrinários, verão que Trench, sobre os milagres, é extremamente útil
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 145
nesta direção. Todas as poderosas obras de nosso Senhor estão repletas
de ensinamentos.
Tomem a história da cura do surdo-mudo. Os males que a pobre
criatura padecia são eminentemente sugestivos quanto ao estado de
perdigão do homem, e o modo de agir de nosso Senhor ilustra muito
instrutivamente o plano da salvação. "Tirando-o à parte de entre a
multidão" – é preciso fazer a alma dar-se conta da sua personalidade e
individualidade, e deve ser levada a estar a sós. "Meteu-lhe os dedos nos
ouvidos", indicando assim a fonte do defeito; os pecadores são
convencidos do seu estado. "E, cuspindo" – o evangelho é um meio
simples e desprezado, e o pecador, quanto à salvação, tem que se
humilhar para recebê-la. "Tocou-lhe na língua", indicando também onde
reside o defeito – o nosso senso de necessidade cresce em nós. "E,
levantando os olhos ao céu" – Jesus lembrou a Seu paciente que todo o
poder vem de cima – lição que todo suplicante deve aprender.
"Suspirou", mostrando que as tristezas do Médico são os meios da nossa
cura. Depois disse, "Efatá; isto é, abre-te" – eis aí a palavra eficaz da
graça, que produz uma cura imediata, perfeita e duradoura. Tratem de
aprender todas as lições desta única exposição, e sempre acreditem que
os milagres de Cristo são uma grande galeria de quadros que ilustram a
Sua obra entre os filhos dos homens.
No entanto, seja isto uma instrução a todos quantos manuseiam
parábolas ou metáforas, para que sejam discretos. O Dr. Gill é um
personagem cujo nome deve ser sempre mencionado com honra e
respeito nesta casa, em que seu púlpito ainda permanece, mas a sua
exposição da parábola do filho pródigo parece-me ser absurda em alguns
pontos. O douto comentador diz-nos que "o bezerro cevado" é o Senhor
Jesus Cristo! A gente estremece ao ver a espiritualização chegar a isto.
Depois há também a sua exposição da parábola do bom samaritano. O
animal sobre o qual foi colocado o homem ferido é de novo o nosso
Senhor, e os "dois dinheiros" que o bom samaritano deu ao hospedeiro
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 146
são o Velho e o Novo Testamentos, ou as ordenanças do batismo e da
ceia do Senhor.
A despeito desta precaução, vocês podem permitir grande
amplitude na espiritualização a homens de raro temperamento poético,
entre os quais João Bunyan. Cavalheiros, já leram alguma vez a
espiritualização que João Bunyan fez do templo de Salomão? É uma
realização sumamente notável, e mesmo sendo um pouco forçada, é
repassada de santíssima ingenuidade. Tomem, como um espécime em
particular, uma das suas mais rebuscadas explanações, e vejam se pode
ser melhorada. É sobre "as folhas da porta do templo".
"As folhas desta porta ou portal eram dobradiças, como já lhes disse, e
assim, como foi sugerido, trazem consigo alguma significação. Por causa
disto a pessoa, principalmente um novo discípulo, pode equivocar-se
facilmente, pensando estar aberta toda a passagem, quando apenas uma
parte o está, permanecendo três partes dela ainda sem se lhe revelar. Pois
essas portas, como já disse, nunca antes foram abertas completamente,
quero dizer, no antítipo; nunca o homem tinha visto todas as riquezas e a
plenitude que há em Cristo. Assim digo que o recém-vindo, caso julgasse
pela visão presente, especialmente se tivesse pequena capacidade de ver,
poderia enganar-se facilmente; por conseguinte os novos discípulos ficam,
na maioria, com um medo terrível de que nunca entrarão lá.
"Que dizes, recém-vindo? Não é este o caso que se dá com a tua
alma? Pois te parece que és muito grande, sendo na verdade tão grande,
exageradamente inchado pecador! Mas, ó tu, pecador, não temas; as portas
são dobradiças, e podem abrir-se mais, e depois abrir-se mais ainda.
Portanto, ao chegares a esse portal, e imaginares que não há espaço
suficiente para que entres, bate, e ela se te abrirá mais amplamente, e serás
recebido (Lucas 11:9; João 6:37). Assim, pois, sejas quem fores, chegado à
porta da qual o templo era um tipo, não te fies em tuas primeiras concepções
das coisas, mas crê que há graça abundante. Ainda não sabes o que Cristo
pode fazer; as portas são dobradiças. "Ele é poderoso para fazer tudo muito
mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos" (Efésios
3:20). Os gonzos sobre os quais essas portas giram, eram, como lhes falei,
de ouro; quer dizer que ambas giravam sobre motivos e impulsos de amor, e
também suas aberturas eram ricas. Gonzos de ouro na porta, para Deus
girar em torno deles. As ombreiras em que essas portas se fixavam eram de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 147
oliveira, dessa árvore gorda e oleosa, para mostrar que nunca se abrem com
relutância ou com lentidão, como portas a cujos gonzos falta óleo. Elas estão
sempre oleosas, e assim se abrem com facilidade e rapidez aos que batem.
Daí se lê que Aquele que habita nessa casa faz dádivas e ama por Sua livre
graça, e nos faz o bem de todo o coração. Sim, diz Ele, "alegrar-me-ei por
causa deles, fazendo-lhes bem; e os plantarei nesta terra certamente, com
todo o meu coração e com toda a minha alma" (Jer. 3:12,14,22; 32:41; Apoc.
21:6; 22:17). Portanto, o óleo da graça, simbolizada por esta oliveira, ou
essas ombreiras de oliveira, em que estão fixas estas portas, fazem que elas
se abram soltas ou francas para a alma."
Quando Bunyan revela o significado de serem as portas de faia,
quem senão ele diria: "A faia é também a casa da cegonha, ave imunda,
como Cristo é abrigo e amparo dos pecadores"? "Pois quanto à cegonha,
diz o texto, a faia é sua casa; e Cristo diz aos pecadores que percebem
sua necessidade de amparo: "Vinde a mim, e encontrareis descanso". Ele
é um refúgio para os oprimidos, refúgio em tempo de aflição (Deut.
14:18; Lev. 11:19; Sal. 104:17 e 74:2-3; Mat. 11:27-28; Heb. 6:17-20)".
Em sua "Casa da Floresta do Líbano" Bunyan é ainda mais
enigmático, mas leva adiante a sua empreitada como nenhum outro
homem poderia tê-lo feito. Ele acha que as três filas de colunas, de
quinze colunas cada uma, são um enigma demasiado difícil para ele, e
desiste, não porém antes de fazer algumas bravias tentativas sobre isso.
O Sr. Bunyan é o principal, o maior, o chefe de todos os alegoristas, e
não deve ser seguido por nós às profundezas da comunicação típica e
simbólica. Ele era um mergulhador, nós não passamos de vadeadores;
não devemos ir além dos nossos níveis de profundidade.
Sinto-me tentado, antes de encerrar esta palestra, a dar um ou dois
esboços de espiritualizações que conheci nos meus primeiros tempos.
Nunca esquecerei um sermão pregado por um homem sem instrução,
mas notável, que foi meu vizinho próximo no campo. Obtive dos seus
próprios lábios as anotações do discurso, e eu esperava que
permanecessem como puras notas, e nunca mais fossem usadas para
pregação neste mundo. O texto era: "O avestruz, o mocho e o cuco".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 148
Talvez o texto não lhes dê a impressão de ter conteúdo muito rico; foi a
impressão que me deu, e, portanto, perguntei inocentemente: "E as
cabeças (i. é, divisões do sermão) como eram?" Ele respondeu
astutamente: "Cabeças? Ora, torça os pescoços das aves, e terá três pura
e simplesmente: o avestruz, o mocho e o cuco". Mostrou que essas aves
eram imundas sob a lei, e claros tipos dos pecadores impuros. Os
avestruzes são pessoas que roubam sorrateiramente, e também pessoas
que adulteram as suas mercadorias e trapaceiam, enganando o próximo
às escondidas, sem que este suspeite que elas são uns patifes. Quanto aos
mochos, tipificam os ébrios, ativos de noite, mas de dia quase dão com a
cabeça num poste, de tão sonolentos. Há mochos entre os cristãos
professos também. O mocho depenado é uma ave muito pequena. Só
parece grande porque tem muitas penas. Assim, muitos crentes professos
são só penas, e se você pudesse arrancar as suas jactanciosas profissões
de fé, bem pouca coisa sobraria deles. A seguir, os cucos são os
membros do clero da igreja, que dão sempre a mesma nota, toda vez que
abrem a boca na igreja, e vivem à custa dos ovos de outros pássaros, com
as suas taxas eclesiásticas e com os dízimo. Os cucos são também, penso
eu, os crentes no livre arbítrio, no poder da vontade, que estão sempre
dizendo: "cum-pra-tu-do-tu-do".
Não é isso na verdade uma coisa muito boa? Contudo, vindo do
homem que pregou o sermão, não pareceu nem notável nem
extraordinário. O mesmo venerável irmão pregou um sermão igualmente
singular, mas muito mais original e útil. Os que o ouviram lembrá-lo-ão
até o dia da sua morte. Baseou-se no texto: "O preguiçoso não assará a
sua caça". O bom ancião inclinou-se no alto do púlpito, e disse: "Então,
meus irmãos, ele era mesmo um mandrião!" Esse foi o exórdio. Depois
prosseguiu dizendo: "Ele foi a uma caçada e, depois de muita
dificuldade, pegou uma lebre, e foi preguiçoso demais para assá-la. Era
um sujeito preguiçoso mesmo!"
O homem nos fez sentir quão ridícula é uma preguiça assim, e
depois disse: "Mas vocês não têm autoridade para acusar esse homem,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 149
pois fazem justamente a mesma coisa. Ouvem falar da vinda de um
pregador popular de Londres, atrelam o cavalo à carroça, viajam vinte ou
trinta quilômetros para ouvi-lo e, depois de terem ouvido o sermão,
esquecem-se de tirar proveito dele. Cagam a lebre e não a assam; vão
cagar a verdade e depois não a recebem".
Daí continuou, para mostrar que, assim como a carne precisa de
cozimento para ficar boa para ser assimilada pelo organismo – não creio
que fosse esta a sua terminologia – assim a verdade precisa passar por
certo processo antes de poder ser recebida pela mente, a fim de que
sejamos alimentados com ela e cresçamos. Disse que ia mostrar como se
cozinha um sermão, e o fez da maneira mais instrutiva. Começou como
começam as receitas dos livros de culinária – "Primeiro pegue a lebre."
"Assim", disse ele, "primeiro pegue um sermão baseado no evangelho."
Aí declarou que havia muitos sermões que não valia a pena caçar, e que,
lamentavelmente, eram muito raros os bons sermões, e valia a pena
vencer qualquer distância para ouvir um discurso calvinista, sólido e no
velho estilo. Portanto, depois de pego o sermão, poderia ser necessário
fazer muita coisa acerca dele, pois, dada a deficiência do pregador,
poderia haver boa parte não aproveitável, que teria que ser lançada fora.
Aqui se alongou sobre discernir e julgar o que ouvimos, e sobre não
acreditar em todas as palavras de qualquer pregador. Seguiram-se depois
instruções sobre como assar um sermão: atravessem-no de ponta a ponta
com o espeto da memória, girem-no no cavalete da meditação, ao fogo
do coração realmente cálido e fervoroso, e deste modo o sermão ficará
bem assado e pronto para dar verdadeira nutrição espiritual.
Dou-lhes apenas o esboço, e embora possa parecer-lhes algo risível,
não foi considerado assim pelos ouvintes. Estava repleto de alegorias, e
prendeu a atenção do auditório do começo ao fim.
"Olá, caro senhor, como vai?", foi como o saudei certa manhã.
"Alegra-me vê-lo tão bem em sua idade." "Sim", disse ele, "estou em boa
forma para um velho, e praticamente não sinto fraqueza nenhuma."
"Espero que o seu bom estado de saúde continue durante anos ainda, e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 150
que, como Moisés, desça ao túmulo sem se escurecerem os seus olhos e
sem perder o seu vigor." "Ótimo tudo isso!", disse o velho cavalheiro,
"mas, em primeiro lugar, Moisés nunca desceu ao túmulo, mas subiu a
ele; e, em segundo lugar, qual é o significado de tudo isso que está
falando? Por que os olhos de Moisés não se escureceram?" "Suponho,
senhor", disse eu com muita brandura, "que o seu modo natural de viver
e o espírito tranqüilo o ajudaram a conservar as suas faculdades e a fazer
dele um vigoroso ancião." "Muito provável", disse ele, "mas não era
nisso que eu estava pensando; qual o sentido, o ensinamento espiritual da
coisa toda? Não será este? – Moisés é a lei, e que glorioso fim o Senhor
deu à lei no monte em que consumou a Sua obra!Com que dulçor os
Seus terrores foram postos a dormir com um beijo da boca de Deus! E,
note bem, a razão pela qual a lei não nos condena mais, não é que os
seus olhos se escureceram, como se ela não pudesse ver o nosso pecado,
ou porque perdeu o seu vigor com o qual pudesse amaldiçoar e punir;
mas Cristo a levou ao alto do monte, e gloriosamente lhe deu fim."
Era essa a sua maneira comum de falar, e assim era o seu
ministério. Paz para as suas cinzas! Apascentou ovelhas nos primeiros
anos da sua vida, e foi pastor de homens depois disso, e, como
costumava dizer-me, "achava os homens muito mais dóceis do que
aqueles tímidos animais". Os conversos que acharam o caminho do céu
sob o seu trabalho foram tantos que, quando os lembramos, ficamos
como aqueles que viram o coxo saltando pela palavra de Pedro e João;
estavam dispostos a criticar, mas, vendo o homem que fora curado, de pé
junto de Pedro e João, nada puderam dizer contra.
Com isto encerro, reafirmando a opinião de que, guiados pela
discrição e pelo bom siso, podemos empregar ocasionalmente a
espiritualização com bom efeito para os nossos ouvintes; certamente os
interessaremos e os manteremos despertos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 151
A VOZ

Nossa primeira regra quanto à voz seria – não pensem muito nisso,
pois, conseguir a voz mais agradável nada é, se não houver algo que
dizer, e por melhor que seja a utilização dela, será como uma carruagem
bem dirigida, vazia no seu interior, a menos que vocês transmitam por
meio dela verdades importantes e oportunas a seu povo. Sem dúvida
Demóstenes estava certo atribuindo um primeiro, segundo e um terceiro
lugar à boa transmissão; mas que valor terá, se o homem não tiver nada
para transmitir?
O homem dotado de voz inexcedivelmente excelente, mas
destituído de cabeça bem informada e de coração fervoroso, será "uma
voz que clama no deserto", ou, para usar a expressão de Plutarco, "Vox et
praeterea nihil" (Voz, e nada mais). Tal homem pode brilhar no coro,
mas é inútil no púlpito. A voz de Whitefield, sem o poder do coração,
não teria deixado sobre os seus ouvintes efeitos mais duradouros do que
os do violino de Paganini. Irmãos, vocês não são cantores, mas
pregadores; sua voz é de secundária importância; não se envaideçam
com ela, nem se lamentem como se fossem inválidos por causa dela,
como tantos o fazem. Uma trombeta não precisa ser feita de prata; um
chifre de carneiro basta. É preciso, porém, que agüente rude uso, pois as
trombetas são para os conflitos bélicos, não para os salões de recepção
da moda.
Por outro lado, não subestimem demais as suas vozes, pois a
qualidade excelente delas contribui grandemente para conduzir ao
resultado que vocês esperam produzir. Confessando o poder da
eloqüência, Platão menciona o tom de voz do orador. "Tão
poderosamente", diz ele, "a elocução e o tom do orador repercutem em
meus ouvidos, que dificilmente lá pelo terceiro ou quarto dia caio em
mim, percebendo em que ponto da terra estou; e por algum tempo fico
querendo acreditar que estou vivendo nas ilhas dos bem-aventurados."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 152
Verdades sumamente preciosas podem ser grandemente maculadas
por serem transmitidas em tom monótono. Uma vez ouvi um ministro
muito estimado, mas que zumbia tristemente, como "uma humilde
abelha num jarro" – metáfora vulgar, sem dúvida, mas que oferece
descrição tão exata que traz à minha mente neste instante, e de modo
bem destacado, o som do zunido, e me faz lembrar a paródia da Elegia,
de Gray:
"Da vista o tênue tema já se esvai,
e dormente quietude o ar retém,
salvo onde o cura voa e a zumbir vai
fazendo o seu rebanho dormir bem".
Que lástima, um homem transmitir do coração doutrinas de
indubitável valor, em linguagem a mais apropriada, e cometer suicídio
harpejando numa corda só, quando o Senhor lhe deu um instrumento de
muitas cordas para tocar! Ah! aquela voz enfadonha! Zumbia e zumbia,
como uma roda de moinho, sempre no mesmo tom nada musical, quer
seu dono falasse do céu quer falasse do inferno, da vida eterna ou da ira
perpétua. Podia ficar, por acidente, um pouco mais alta ou mais suave,
conforme o comprimento da frase, mas o tom era sempre o mesmo, uma
cansativa vastidão de som, um uivante deserto de linguagem falada em
que não havia alívio possível, nem variação, nem musicalidade nada,
senão uma horrível mesmice.
Quando o vento sopra através da harpa eólia, ele ondula em suas
vibrações através de todas as cordas, mas o vento celestial, passando por
alguns homens, desgasta-se numa corda só, e isso, na maior parte,
tremendamente fora da harmonia do todo. Somente a graça poderia
capacitar os ouvintes a edificar-se debaixo do tantã de alguns ministros.
Creio que um júri imparcial daria um veredicto de sono justificável em
muitos casos em que o som proveniente do pregador acalenta os
ouvintes, fazendo-os dormir com a sua nota sempre repetida. O Dr.
Guthrie caridosamente atribui o sono dos dorminhocos de certa igreja
escocesa à má ventilação do local de reuniões; este fator tem algo que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 153
ver com isso, mas a má condição das válvulas da garganta do pregador
talvez seja uma causa mais poderosa ainda. Irmãos, em nome de tudo
que é sagrado, toquem todo o carrilhão do seu campanário, e não
importunem o seu público com o blim-blem-blom de um pobre sino
rachado.
Quando derem atenção à voz, tenham o cuidado de não caírem nos
maneirismos habituais e comuns dos dias atuais. Raramente um homem
em doze no púlpito, fala como homem varonil. Estes maneirismos
enfatuados não se restringem aos protestantes, pois o abade Mullois
observa, "em todos os demais lugares, os homens falam; falam no balcão
e na tribuna. Já no púlpito, porém, não falam, pois ali só encontramos
linguagem fictícia e artificial, e tons falsos. Este estilo de falar só se
tolera na igreja porque, infelizmente, está por demais generalizado ali;
em nenhum outro lugar seria tolerado. Que se pensaria de um homem
que conversasse daquela maneira numa sala de visitas? Certamente
provocaria muitos sorrisos.
Há algum tempo havia um guarda do Panteão – bom sujeito a seu
modo – que, ao enumerar as belezas do monumento, adotava
precisamente o tom de muitos de nossos pregadores, pelo que nunca
deixou de provocar a hilaridade dos visitantes, que tanto se divertiam
com o seu modo de falar, como com os objetos de interesse que ele lhes
mostrava. O homem que não faz transmissão natural e genuína, não
deveria ter a permissão de ocupar o púlpito. Pelo menos dali, tudo que é
falso deveria ser banido sumariamente.
Nestes tempos de desconfiança, tudo que é falso deveria ser posto
de lado; e o melhor modo pelo qual a gente pode corrigir-se nesse
aspecto, quanto à pregação, é ouvir muitas vezes a certos pregadores
monótonos ou apaixonados. Sairemos com tanto desgosto e com tanto
horror da sua apresentação, que preferiremos reduzir-nos ao silêncio, a
imitá-los. No momento em que você abandona o natural e o genuíno,
perde o direito de ser crido, bem como o direito de ser ouvido.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 154
Irmãos, vocês podem andar por aí, visitando igrejas e congregações,
e verão que a imensa maioria dos nossos pregadores tem um tom de voz
santo para os domingos. Tem uma voz para a sala de visitas e para o
quarto de dormir, e outro tom completamente diverso para o púlpito, de
sorte que, se não são dúplices, de língua pecaminosamente, são-no por
certo literalmente. No momento em que alguns homens cerram a porta
do púlpito, deixam para trás a sua varonilidade pessoal, e se tornam tão
formais quanto o porteiro da comunidade. Quase que poderiam gabar-se
com o fariseu de que não são como os demais homens, conquanto seria
blasfêmia dar graças a Deus por isso. Deixam de ser carne e osso, já não
falam como homens, mas adotam um ganido, um roto gaguejar, um ore
rotundo (boca redonda) ou algum outro modo desgracioso de fazer
barulho, tudo isso para impedir toda suspeita de que não estão sendo
naturais e não estão falando do que está cheio o seu coração. Quando é
posta a veste sacral, quantas vezes fica patente que ela é a mortalha do
verdadeiro homem, e o efeminado emblema do formalismo!
Há dois ou três modos de falar que ouso dizer que vocês
reconhecerão tê-los ouvido muitas vezes. Aquele estilo engrandecido,
doutoral, inflado, bombástico, que há pouco chamei de ore rotundo, não
é tão comum agora como costumava ser, mas ainda é admirado por
alguns. (Desafortunadamente, não se pode representar o preletor aqui
com nenhuma forma de letra de imprensa conhecida, quando se pôs a ler
um hino com voz grandiosa, ondulante e empolada.)
Quando um respeitável cavalheiro estava certa vez soprando vapor
desse jeito, um homem no corredor da igreja disse que pensava que o
pregador "tinha engolido um bolinho quente", mas outro cochichou:
"Não, Jack, não foi isso: ele tragou um diabinho". Posso imaginar o Dr.
Johnson falando desse modo em Bolt Court; e de homens aos quais esse
estilo é natural, sai com grandiosidade olímpica; mas no púlpito, fora
com toda imitação dele, para sempre! Se vem naturalmente, muito bem e
muito bom, mas imitá-lo é trair a decência comum. Na verdade, no
púlpito, toda imitação é parente chegado de um pecado imperdoável.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 155
Há outro estilo do qual lhes rogo que não achem engraçado. É o
método de enunciação que se diz ser muito feminilmente elegante,
adocicado, delicado, tipo criadinha de salão, fútil. Opaco e enfadonho,
não sei como descrevê-lo melhor. A maioria de nós já teve a infelicidade
de ouvir estas ou algumas outras espécies do amplo gênero de falsetes,
maneirismos e altos vôos bombásticos. Ouvi-as nas mais diversas
variedades, desde as formas recheadas à Johnson, até a rala magreza do
frágil e gentil sussurro; desde o urro dos touros de Basã até o tip, tip, tip
do tentilhão. Pude seguir a pista de alguns deles até os seus antepassados
(refiro-me aos seus antepassados ministeriais) de quem recolheram
originalmente estes modos seráficos de falar, melodiosos, santificados,
belos em todos os aspectos – mas, devo acrescentar honestamente,
detestáveis! A indubitável ordem do registro genealógico da sua oratória
é como se segue: Soquinho, que era filho de Gaguejo, que era filho de
Sorrisinho, que era filho de Dândi, que era filho de Maneirismo; ou
Rebolante, que era filho de Pomposa, que era filho de Ostentação – de
muitos filhos o pai era o mesmo.
Entendam, até onde esses horrores de som sejam naturais, não os
condeno – fale cada criatura em sua própria língua. Mas o fato é que em
nove de cada dez casos, estes dialetos sagrados, que espero logo hão de
ser línguas mortas, são inaturais e forçados. Estou persuadido de que
esses tons, semitons e "monotons" são babilônicos, e absolutamente não
pertencem ao dialeto de Jerusalém, pois o dialeto de Jerusalém tem a sua
característica distintiva, que é o modo de falar próprio do homem, e esse
modo é o mesmo, fora do púlpito e dentro dele. O nosso amigo da
sofisticada escola do ore rotundo nunca foi visto falando fora do púlpito
como o faz estando nele, ou falando na sala de visitas no mesmo tom que
emprega no púlpito: "Você terá a bondade de me servir outra chávena de
chá? Usarei açúcar, se isto lhe aprouver". Far-se-ia ridículo se agisse
assim, mas o púlpito há de ser favorecido com a escória da sua voz, que
a sala de visitas não toleraria.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 156
Sustento que as melhores notas de que a voz de um homem é capaz
deveriam ser dedicadas à proclamação do evangelho, e são precisamente
as que a natureza lhe ensina a usar numa conversação séria. Ezequiel
servia a seu Senhor com as suas faculdades mais musicais e melodiosos,
de modo que Deus lhe disse: "E eis que tu és para eles como uma canção
de amores, canção de quem tem voz suave, e que bem tange". Ah! isso
de nada valeu, porém, para o duro coração de Israel, pois nada lhe valerá
exceto o Espírito de Deus; todavia, assentou bem ao profeta proclamar a
Palavra do Senhor no melhor estilo de voz e de modos.
Prosseguindo, se vocês têm quaisquer idiossincrasias no falar,
desagradáveis ao ouvido, corrijam-nas, se possível. 1 Admite-se que é
mais fácil ao professor sugerir-lhes isto do que a vocês praticá-lo.
Entretanto, para os jovens que se acham no alvor do seu ministério, a
dificuldade não é insuperável. Irmãos oriundos da zona rural têm na boca
o sabor do seu rústico regime de vida, lembrando-nos irresistivelmente
os novilhos de Essex, os leitões de Berkshire ou os animais anões de
Suffolk. Quem poderá deixar de reconhecer os dialetos de Yorkshire e
Somersetshire, que não são apenas pronúncias regionais, mas entonações
regionais também? Seria difícil descobrir a causa, mas o fato bastante
claro é que em alguns condados da Inglaterra as gargantas dos homens
parecem cobertas de pigarro, como chaleiras usadas durante muito
tempo, e noutros elas soam como música de um instrumento de latão,
com defeituoso som metálico. Estas variações da natureza podem ser
belas em sua ocasião e lugar, mas o meu gosto nunca pode apreciá-las.
Do agudo e dissonante chiado, como o de uma tesoura enferrujada,
livremo-nos a todo risco.
A mesma coisa a fala inarticulada e densa em que nenhuma palavra
é pronunciada completamente, mas os substantivos, os adjetivos e os
verbos viram uma espécie de picadinho. Igualmente objetável é aquela

1
"Cuidado com qualquer coisa que seja grosseira ou sofisticada, na gesticulação, nas frases ou na
pronúncia." – João Wesley.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 157
maneira fantasmagórica de falar em que a pessoa fala sem mover os
lábios, no mais horrível ventriloqüismo; tons sepulcrais podem servir
para levar alguém a tornar-se agente funerário, mas não se chama Lázaro
para fora do túmulo com gemidos surdos. Um dos meios mais seguros de
você matar-se é falar da garganta, e não da boca. Este uso errôneo da
natureza será vingado terrivelmente por ela; fujam da pena evitando a
ofensa.
Talvez seja bom neste ponto concitá-los a que, tão logo se dêem
conta de que estão gaguejando muito durante um discurso, tratem de
expurgar de uma vez o insinuante, mas ruinoso hábito. Não há nenhuma
necessidade dele e, embora os que agora são suas vítimas talvez nunca
possam romper as cadeias, vocês, principiantes na oratória, podem
desprezar esse exasperante jugo. É até preciso dizer, abram a boca
quando falam, pois muito resmungo desarticulado resulta de se manter a
boca meio fechada. Não é à toa que os evangelistas escreveram a
respeito de nosso Senhor: "E, abrindo a sua boca, os ensinava". Abram
bem as portas pelas quais há de sair marchando tão benéfica verdade!
Além disso, irmãos, evitem o emprego do nariz como órgão da expressão
oral, pois as melhores autoridades concordam que a função que lhe cabe
é a de cheirar. Tempo houve em que era correto falar fanhoso, mas nesta
era degenerada farão melhor em obedecer à evidente sugestão da
natureza, deixando que a boca faça o seu trabalho sem interferência do
aparelho olfativo. Se estiver presente um estudante americano, terá que
me escusar por salientar esse ponto para chamar-lhe a atenção.
Detestem também a prática de alguns que não pronunciam a letra
"r". Esse hábito é "deveuas uinoso e uidículo, deveuas uepugnante e
uepuensível". Ocasionalmente um irmão tem a ventura de possuir um
cativante e delicioso balbucio. Talvez esteja entre os menores males,
quando o próprio pregador é franzino e simpático, mas arruinaria a todo
aquele que visasse à virilidade e ao poder. Mal posso imaginar Elias
gaguejando a Acabe, ou Paulo graciosamente entrecortando as suas
palavras na Colina de Marte.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 158
Pode haver algo peculiarmente patético em olhos fracos e
lacrimejantes, bem como num estilo titubeante; iremos mais longe,
admitindo que, quando essas coisas decorrem de intensa paixão, são
sublimes. Alguns, porém, as possuem de nascimento, e as utilizam com
excessiva liberdade. Para dizer o mínimo, vocês não têm por que imitá-
los. Falem como a natureza educada lhes sugerir, e farão bem; mas que
seja a natureza educada, não a crua, rude e sem cultivo.
Como sabem, Demóstenes trabalhava a duras penas com a sua voz,
e Cícero, fraco por natureza, fez longa viagem à Grécia para corrigir o
seu modo de falar. Tendo nós temas muito mais nobres, não tenhamos
menor ambição pela excelência. "Privem-se de tudo mais", diz Gregório
de Nazianzeno, "mas, deixem-me a eloqüência, e nunca deplorarei as
viagens que fiz para estudá-la." .
Falem sempre de maneira que sejam ouvidos. Conheço um homem
de peso enorme, e que deveria poder ser ouvido a quase um quilômetro,
mas é tão insipidamente indolente que em seu pequeno local de culto
você mal pode ouvi-lo da parte da frente da galeria. Que utilidade tem
um pregador que os homens não conseguem ouvir? A modéstia deveria
levar o homem sem voz a dar seu lugar a outros mais bem dotados para a
obra de proclamar as mensagens do Rei. Alguns falam bastante alto, mas
sem clareza; suas palavras se sobrepõem umas às outras, ou brincam de
pular sela, ou passam rasteira umas nas outras.
Falar de maneira clara e definida é mais importante do que ter
muito fôlego. Dê boa oportunidade a uma palavra; não quebre as costas
dela com a sua veemência, nem lhe arranque as pernas em sua pressa. É
odioso ouvir um grandalhão murmurar e sussurrar quando os seus
pulmões são bastante fortes para possibilitar-lhe falar bem alto. Mas, ao
mesmo tempo, ainda que o pregador sempre grite vigorosamente, não
será bem ouvido se não aprender a lançar para frente as suas palavras
com o devido espaço entre elas.
Falar muito devagar é serviço miserável, e sujeita os ouvintes
mentalmente ágeis à doença chamada "horrores". É impossível ouvir um
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 159
homem que rasteja a um quilômetro por hora. Uma palavra hoje, outra
amanhã, é uma espécie de fogo lento de que somente os mártires
poderiam gostar. Falar depressa demais, com violência e furor que
resultam numa linguagem completamente bombástica, não tem desculpa
alguma. Não tem, nem nunca poderá ter poder, exceto para os idiotas,
pois transforma numa turbamulta o que deveria ser um exército de
palavras, e terá a máxima eficiência em afogar os sentidos em torrentes
de som. Ocasionalmente se ouve um enfurecido orador de fala indistinta,
cuja impetuosidade o precipita a uma tal confusão de sons, que logo a
gente se lembra dos versos de Lucan:
"Sua língua mole um tom murmurante confunde,
dissonante e diverso dos humanos sons;
lembra o latir dos cães ou o uivar dos lobos,
o soturno piar do mocho á meia-noite;
das cobras o silvar, do leão o "rugir,
das ondas o entrechoque, a esbater-se na praia;
o gemido do vento na frondosa mata
e o espocar do trovão na lacerada nuvem.
Todas estas coisas numa só".
É castigo que não dá para agüentar duas vezes, ouvir quem
confunde transpiração com inspiração, e dispara como um cavalo
selvagem como um vespão no ouvido, até perder o fôlego, só fazendo
pausa para encher de novo os pulmões. A repetição desta indecência
várias vezes num sermão não é incomum, mas é muito penosa; pausa
feita a cada passo, para impedir aquele "ufa, ufa" que produz mais
piedade pelo orador ofegante do que simpatia pelo assunto tratado.
Nossos ouvintes nem devem perceber que respiramos. O processo de
respiração deve passar tão despercebido como a circulação do sangue.
Não fica bem deixar que a simples função animal de inspirar e expirar
ocasione algum hiato em nosso discurso.
Não forcem a voz ao máximo na pregação comum. Dois ou três
varões fervorosos aqui presentes andam fazendo-se em pedaços com
seus berros desnecessários; os seus pobres pulmões estão irritados, e suas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 160
laringes estão inflamadas, por causa dos seus furiosos gritos, que
parecem incapazes de reprimir. Ora, está muito bem atender à exortação:
"Clama em alta voz, não te detenhas", mas o conselho apostólico é: "Não
te faças nenhum mal." Quando as pessoas podem ouvi-lo com a metade
da voz, é bom economizar a força excedente para as ocasiões em que
seja necessária. "Não gastes demais; falta não terás", pode aplicar-se aqui
como em qualquer outra parte. Sejam econômicos com esse enorme
volume de som. Não dêem aos seus ouvintes dor de cabeça, quando o
desejo é dar-lhes dor de coração. A intenção é impedir que durmam nos
bancos, mas, lembrem-se de que não é preciso estourar os tímpanos
deles. "O Senhor não estava no vento." Trovão não é raio. Os homens
não ouvem na proporção do barulho produzido; na verdade, barulho
demais ensurdece a gente, cria repercussões e ecos, e efetivamente
prejudica o poder dos seus sermões. Adaptem suas vozes ao auditório;
quando vinte mil estão diante de vocês, abram os registros e estrondem
com todo o vigor, mas não num recinto em que cabem apenas uma
vintena ou duas.
Sempre que entro num lugar para pregar, inconscientemente calculo
quanto som é necessário para enchê-lo, e depois de uma poucas frases, a
minha tonalidade já está ajustada. Se puderem fazer o homem que está
no outro extremo do templo ouvir, se puderem ver que ele está captando
o seu pensamento, poderão estar seguros de que os que estão mais perto
podem ouvi-los, e não será necessário pôr mais força – talvez seja bom
diminuí-la um pouco. Experimentem e vejam. Por que falar de modo que
seja ouvido na rua, quando lá não há ninguém para ouvir? Seja um
recinto fechado, seja ao ar livre, vejam que os mais distantes ouvintes
possam acompanhá-los, e isto será suficiente.
A propósito, devo observar que os irmãos deveriam, por
misericórdia dos enfermos, atentar sempre com muito cuidado para a
força das suas vozes nos quartos de doentes e nas igrejas em que se sabe
que alguns estão muito fracos. É cruel sentar-se ao pés do leito de um
enfermo e gritar: "O SENHOR É O MEU PASTOR: NADA ME FALTARÁ". Se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 161
vocês agirem impensadamente assim, o pobre homem dirá logo que
tiverem descido as escadas: "Ai !Ai! Como me dói a cabeça! Alegra-me
que o homem tenha ido embora, Mary; esse salmo é muito precioso e
parece tão tranqüilo, mas ele o leu como raios e trovões, e quase me
deixou surdo!" Lembrem-se vocês, irmãos mais jovens e solteiros, que
suaves sussurros servirão melhor ao desvalido do que o rufar de
tambores e o estampido de trabucos.
Observem cuidadosamente a regra que manda variar a intensidade
da voz. A velha regra era: comece de modo bem suave, vá subindo o tom
gradativamente, e no fim produza as suas notas mais altas. Que esses
regulamentos sejam estourados à boca do canhão; são inoportunos e
enganosos. Falem baixo ou alto, conforme a emoção do momento lhes
sugira, e não observem normas artificiais e fantasiosas. Regras artificiais
são uma abominação total. Como M. de Cormorin satiricamente o
coloca: "Seja apaixonado, troveje, entusiasme-se, chore, até à quinta
palavra da terceira frase do décimo parágrafo da folha dez. Como seria
fácil! Sobretudo, quão espontâneo!"
Imitando um pregador popular, a quem isto era inevitável, certo
ministro se acostumou a falar em tão baixa tonalidade, que ninguém
conseguia ouvi-lo. Todos se inclinavam para diante, temendo que algo
importante se estivesse perdendo no ar, mas o esforço era vão; um santo
sussurro era tudo que podiam discernir. Se o irmão não fosse capaz de
falar, ninguém o teria acusado, mas era a coisa mais absurda fazer o que
fazia quando em curto lapso de tempo provava o poder dos seus pulmões
enchendo o edifício de sonoras frases. Se a primeira parte do seu
discurso não era importante, por que não omiti-la? Se tinha algum valor,
por que não apresentá-la audivelmente?
Efeito, cavalheiros, era o fim que tinha em vista. Ele sabia que
alguém que falava daquele modo tinha produzido efeitos grandiosos, e
esperava rivalizar com ele. Se algum de vocês ousar cometer tal loucura
com o mesmo objetivo detestável, de coração eu preferiria que essa
pessoa nunca tivesse entrado nesta instituição. Digo-lhes com a maior
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 162
seriedade que essa coisa chamada "efeito" é odiosa porque é falsa,
artificial e ardilosa manha, e, portanto, é desprezível. Nunca façam nada
para obter efeito, mas desprezem os estratagemas das mentes estreitas
que andam em busca da aprovação dos peritos em pregação que
constituem uma raça tão odiosa para o verdadeiro ministro como os
gafanhotos para o lavrador oriental. Mas estou fazendo digressão; sejam
claros e definidamente audíveis logo no início.
Os seus exórdios são bons demais para serem cochichados para o
espaço. Apresentem-nos com ousadia e conquistem a atenção desde o
começo com a sua entonação máscula. Não partam do ponto mais alto,
como regra geral, pois não conseguirá mais quando estiver aquecido com
o trabalho; todavia, falem com clareza desde as primeiras palavras.
Abaixem a voz, quando isso for pertinente, reduzindo-a até a um
sussurro, pois as expressões orais suaves, deliberadas e solenes não
somente dão alívio aos ouvidos, mas também são grandemente aptas
para atingir o coração. Não tenham medo de tonalidades baixas, pois, se
lhes imprimirem força, serão tão ouvidas como os gritos. Vocês não
precisam falar em alta voz a fim de serem ouvidos bem.
De William Pitt diz Macaulay: "Sua voz, mesmo quando afundava
até tornar-se um sussurro, era ouvida até nos mais distantes bancos da
Casa dos Comuns". Tem-se dito que não é a arma de fogo mais ruidosa
que atira mais longe a bala; o estampido de um rifle é tudo, menos
barulhento. Não é a altura da sua voz que é eficiente, mas a força que
você lhe dá. Estou certo de que poderia sussurrar e ser ouvido em todos
os cantos do nosso grande Tabernáculo, e, igualmente, estou certo de que
poderia gritar e berrar de um jeito que ninguém poderia compreender-
me. A coisa poderia ser feita aqui, mas talvez seja desnecessário o
exemplo, pois receio que alguns de vocês são capazes de fazer isso com
notável sucesso. As ondas de ar podem chocar-se com os ouvidos em tão
rápida sucessão que nenhuma impressão compreensível causam ao nervo
auditivo. A tinta é necessária para a escrita, mas se você derramar o
tinteiro numa folha de papel, não transmitirá com isso nada que tenha
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 163
algum significado. Assim é com o som. O som é a tinta, mas, requer-se
manejo – não quantidade – para produzir uma escrita inteligível para o
ouvido. Se a sua única ambição for competir com –
"Estentor o forte,
com pulmões de bronze,
sobrepuja, e longe,
o poder enorme de cinqüenta línguas",
então, berre para o Elísio tão rapidamente quanto possível, mas se quiser
ser compreendido e, assim, ser útil, evite a crítica de que é "fraco e
barulhento".
Vocês sabem, irmãos, que os sons estridentes vão longe; o singular
grito usado pelos viajores nas regiões agrestes da Austrália deve o seu
extraordinário poder à sua estridência. Ouve-se de muito mais longe um
sino do que um tambor; e, muito singularmente, quanto mais musical for
um som, maior será o seu raio de alcance. Não é preciso dar murros no
piano, mas extrair o judicioso som, dos melhores registros. Portanto,
vocês se sentirão em liberdade para abrandar o tom muitas vezes quanto
ao volume, e estarão dando grande alívio, tanto aos ouvidos dos ouvintes
como aos seus próprios pulmões. Experimentem todos os métodos, desde
o do malho até o do suave veludo. Irmãos, sejam gentis como o zéfiro e
furiosos como um furacão. Sejam, na verdade, justamente o que toda
pessoa de bom senso é em seu falar quando conversa naturalmente,
intercede veementemente, sussurra confidencial, apela sentidamente, ou
proclama com clareza.
Depois da moderação da força dos pulmões, eu coloria a regra –
modulem os tons da voz. Alterem a tonalidade com freqüência e variem a
intensidade do som constantemente. Dêem oportunidade ao baixo, ao
soprano e ao tenor. Rogo-lhes que façam isso por piedade de si mesmos
e dos que os ouvem. Deus tem pena de nós e arranja as coisas de modo
que satisfaçam ao anseio por variação; tenhamos pena dos nossos
semelhantes, e não os importunemos com o tédio da mesmice. É uma
grande barbaridade infligir aos tímpanos de uma pobre criatura humana a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 164
angústia de ser como perfurados por broca ou verruma do mesmo som
durante meia hora. Que meio mais rápido de tornar a mente idiota ou
lunática poder-se-ia conceber do que o perpétuo zumbido de uma abelha,
ou o zunido de uma mosca varejeira no órgão da audição? Que desculpa
teríamos pela qual deveríamos ser tolerados em tanta crueldade para com
as desamparadas vítimas que se assentam sob as ministrações do tantã do
nosso tambor?
Muitas vezes a bondosa natureza poupa as infelizes vítimas do
zunido do pleno efeito das nossas torturas, fazendo-as mergulhar num
suave repouso. Contudo, não é isto que vocês querem; então falem com
variações na voz. Quão poucos ministros se lembram de que a
monotonia dá sono. Receio que a denúncia feita por um escritor na
Review Imperial seja literalmente válida quanto a numerosos irmãos
meus.
"Sabemos todos como o ruído de água corrente, ou o murmúrio do
mar, ou os suspiros do vento sul entre os pinheiros, ou os queixumes dos
pombos do mato induzem a um delicioso e sonolento langor. Longe de nós
dizer que a voz de um clérigo moderno se parece, no mínimo grau, com
qualquer desses suaves sons; todavia, o efeito é o mesmo, e poucos podem
resistir às letárgicas influências de uma longa dissertação feita sem a mais
ligeira variação de tom ou alteração da expressão."
De fato, o uso muito excepcional da frase, "um discurso que
desperta", mesmo por aqueles que mais conhecem do assunto, traz
consigo a implicação de que a grande maioria das arengas de púlpito é de
tendência decididamente soporífera. É um grave mal quando o pregador
"Deixa os ouvintes perplexos –
entre os dois, que decidir:
"Vigiai e orai" diz o texto,
e o sermão diz, "a dormir!"
Por mais musical que uma voz possa ser em si mesma, se vocês
continuarem tocando perpetuamente na mesma corda, os seus ouvintes
irão sentir que as suas notas, pela distância que percorrem, vão ficando
mais suaves. Em nome da humanidade, parem de entoar assim e passem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 165
a falar racionalmente. Se este conselho não conseguir mudá-los, tenho
tanto zelo neste ponto que, se vocês não seguirem o meu conselho por dó
dos seus ouvintes, fá-lo-ão por dó de si próprios, pois, como a Deus em
Sua infinita sabedoria sempre aprouve aplicar uma penalidade a todo
pecado contra as Suas leis naturais, bem como contra as morais, assim o
mal da monotonia é freqüentemente vingado mediante aquela perigosa
doença chamada dysphonia clericorum, ou seja, "disfonia dos clérigos".
Quando certos irmãos nossos são tão amados por seus ouvintes que
não se opõem a pagar uma bela soma para livrar-se deles por alguns
meses, quando uma viagem a Jerusalém é recomendada e providenciada,
a bronquite de diferente ordem é tão extraordinariamente dirigida para o
bem, que o meu presente argumento não perturbará a sua equanimidade.
Mas não é a sorte que nos cabe; bronquite para nós significa miséria de
verdade e, portanto, para evitá-la deveríamos seguir quaisquer sugestões
sensatas. Se vocês quiserem estragar as suas gargantas, poderão fazê-lo
depressa, mas, se quiserem conservá-las, notem bem o que terão agora
diante de si.
Muitas vezes nesta sala comparei a voz com um tambor. Se o
tamborileiro bater sempre no mesmo lugar, a pele se gastará logo e se
abrirá um buraco ali; mas, quanto mais tempo duraria se tivesse variado
os golpes e tivesse usado a superfície inteira da pele de percussão do
tambor! Assim, é com a voz humana. Se usarem sempre o mesmo tom,
acabarão abrindo um buraco na parte da garganta mais exercitada na
produção daquela monotonia, e em pouco tempo estarão sofrendo de
bronquite. Tenho ouvido cirurgiões afirmarem que a bronquite dos
dissidentes difere da que a Igreja da Inglaterra apresenta. Existe uma fala
eclesiástica fanhosa muito admirada na igreja oficial, uma espécie de
grandeza de campanário na garganta, um linguajar declamatório e um
retumbar de palavras aristocrático, teológico, clerical, supranatural, sub-
humano.
Pode-se ilustrar com os seguintes espécimes: "A lei nos serviu de
aio", descrevendo comparativamente o pregador as virtudes do alho
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 166
aplicadas à lei. Notável, senão impressionante, compreensão e aplicação
de um texto da Escritura! Quem não conhece aquela santa maneira de
pronunciar – "Caríssimamente amados irmãos, a Escritura nos comove
em diversos lugares"? Repica em meus ouvidos como o Big Ben – a par
com juvenis lembranças de monótonos repiques de "O príncipe Albert,
Albert, príncipe de Gales, e toda a família Real. ... Amém". Ora, se o
homem que fala com tanta falta de naturalidade não pegar bronquite ou
alguma outra doença, só posso dizer que as doenças de garganta devem
ser soberanamente distribuídas. Nas manias de linguagem dos não-
conformistas já dei um golpe, e acredito que é por causa delas que
laringe e pulmões se debilitam, e os homens sucumbem, reduzindo-se ao
silêncio e indo parar no túmulo.
Irmãos, se vocês quiserem saber no que me baseio para apoiar a
ameaça que lhes fiz, passo-lhes a opinião do Sr. Macready, o eminente
autor trágico, que merece ser ouvido respeitosamente porquanto olha a
questão de um ponto de vista não parcial, mas experimental.
"Garganta distensa em geral não resulta tanto de exercitar o órgão
como da qualidade do exercício; isto é, não é tanto por falar muito tempo ou
por falar alto, como por falar com voz simulada. Receio não ser
compreendido nesta afirmação, mas suponho que não há uma pessoa em
dez mil que, ao dirigir-se a um grupo de ouvintes, empregue a sua voz
natural; e este hábito é mais especialmente observável no púlpito. Creio que
a distensão da garganta é causada por violentos esforços feitos naqueles
tons artificiais, e que a irritação grave, e muitas vezes a ulceração, é a
conseqüência.
"O trabalho requerido pelos deveres de uma igreja num dia inteiro não
é nada, no que diz respeito ao trabalho propriamente dito, comparado com a
realização artística de um dos principais personagens de Shakespeare, e
suponho que também nada é, comparado com qualquer das grandes
exibições feitas pelos nossos principais estadistas nas Casas do
Parlamento. E me sinto seguro de que o desarranjo que chamam de "mal de
garganta de pregador" geralmente se pode atribuir ao modo de falar, e não à
extensão do tempo ou à violência do esforço que se empregue. Vi vários
veteranos contemporâneos de palco ficarem sofrendo da garganta, mas não
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 167
creio que se pudesse considerar essa doença como predominante entre os
elementos eminentes dessa arte."
Os atores e os jurisconsultos têm muita ocasião para forçar as suas
energias vocais. Contudo, não existe uma coisa chamada mal de garganta
de tribunal, ou bronquite de ator trágico; simplesmente porque esses
homens não se atrevem a servir o público da maneira tão desmazelada
como alguns pregadores servem a seu Deus. O excelentíssimo senhor
doutor Samuel Fenwick, num tratado popular sobre "Doenças da
Garganta e dos Pulmões", diz com a maior sabedoria:
"Do que se afirmou a respeito da fisiologia das cordas vocais, ficará
evidente que falar continuadamente no mesmo tom é muito mais fatigante do
que se fazerem freqüentes alterações na intensidade da voz, porque, no
primeiro caso, força-se um só músculo ou um só conjunto de músculos, ao
passo que no segundo, diferentes músculos são postos em ação, e assim
dão-se descanso uns aos outros. Do mesmo modo, levantar o braço em
ângulo reto em relação ao corpo cansa-nos em cinco ou dez minutos,
porque somente um conjunto de músculos tem que agüentar o peso; mas
estes mesmos músculos podem trabalhar o dia inteiro se a sua ação for
alternada com a de outros. Portanto, sempre que ouvimos um clérigo
zunindo durante o culto, e do mesmo jeito e no mesmo tom lendo, orando e
exortando, podemos estar perfeitamente certos de que ele está dando às
suas cordas vocais dez vezes mais trabalho do que o absolutamente
necessário."
Talvez seja este o ponto próprio para reiterar uma opinião que
várias vezes expressei neste recinto, que o autor que citei me faz
lembrar. Se os ministros falassem com maior freqüência, as suas
gargantas e os seus pulmões estariam menos sujeitos à doença. Disto
estou bem seguro; é questão de experiência pessoal e de ampla
observação, e minha confiança é que não estou enganado. Cavalheiros,
pregar duas vezes por semana é muito perigoso, mas descobri que cinco
ou seis vezes é saudável, e que até doze ou quatorze vezes não é
excessivo. Um verdureiro veria que anunciar aos gritos couve-flor e
batatas um dia por semana seria esforço mais laborioso, mas quando em
seis dias sucessivos enche as ruas, avenidas e becos com o seu sonoro
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 168
estrépito, não achará nenhuma dysphonia pomariorum (disfonia dos
fruteiros) ou "mal de garganta de verdureiro" afastando-o dos seus
modestos trabalhos. Agradou-me ver a minha opinião – de que pregar
poucas vezes é a raiz de muitos males, declarada explicitamente assim
pelo Dr. Fenwick.
"Todas as indicações que aqui registrei serão ineficazes, creio eu, sem
a sistemática e diária prática da voz. Nada parece ter tanta tendência para
produzir esta doença como falar prolongadamente, alternando-se isto com
longos intervalos de repouso, coisa à qual os clérigos estão particularmente
sujeitos. Qualquer pessoa que der um momento de consideração ao assunto
entenderá prontamente isto. Se um homem ou qualquer outro animal for
destinado a qualquer esforço muscular incomum,e treinado nisso
regularmente todos os dias, tornará fácil o trabalho que de outra forma seria
quase impossível realizar. Mas a maioria dos que exercem a carreira
eclesiástica se submete a grande intensidade de esforço muscular falando
apenas um dia por semana, ao passo que nos restantes seis dias raramente
eles elevam a voz acima do diapasão normal. Se um ferreiro ou um
carpinteiro passasse desse modo pela fadiga ligada ao exercício da sua
ocupação profissional, não só ficaria despreparado para ela, mas também
perderia a aptidão que tivesse adquirido. O exemplo dos mais célebres
oradores que o mundo já viu prova as vantagens da regular e constante
prática da alocução; e em razão disto recomendo com a máxima ênfase a
todas as pessoas sujeitas a esta questão que leiam em voz alta uma ou
duas vezes por dia, empregando o mesmo grau de voz que emprega no
púlpito, e dando especial atenção à postura do peito e da garganta, e à clara
e adequada articulação das palavras."
O Sr. Beecher é da mesma opinião, pois observa:
"Os jornaleiros mostram aquilo que o pregão ao ar livre faz com os
pulmões do pregador. Que faria o orador de fala apagada e fraca, que mal
consegue alcançar duzentos ouvintes com a sua voz, se tivesse que gritar
anunciando a venda de jornais? Os jornaleiros de Nova York ficam de pé no
início de uma rua, e mandam as suas vozes rua abaixo, por toda a extensão
dela, como um atleta faria rolar uma bola por uma pista. Aconselhamos os
homens que se estão preparando para profissões que exigem oratória a que
se dediquem por algum tempo ao trabalho de vendedor ambulante. Os
novos ministros poderiam compartilhar do serviço dos camelôs durante
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 169
algum tempo, até que soubessem abrir a boca e tivessem á laringe vigorosa
e resistente".
Cavalheiros, uma regra necessária é – adaptem sempre a sua voz ao
seu assunto. Não mostrem júbilo quando o assunto é melancólico e, por
outro lado, não se arrastem pesadamente quando os tons deveriam
saltitar ágeis e alegres, como se estivessem dançando ao som das
melodias dos anjos do céu. Não me alongarei sobre esta regra, mas
fiquem certos de que é da maior importância e, se for seguida
obedientemente, sempre assegurará atenção, desde que a sua exposição a
mereça. Adaptem sempre a voz ao assunto e, acima de tudo, sejam
naturais em todas as coisas. Fora para sempre com a servidão a regras e
modelos. Não imitem as vozes de outrem, mas se por uma invencível
propensão as reproduzem, então imitem as melhores qualidades de cada
orador, e o mal estará diminuído. Eu mesmo, por uma espécie de
influência irresistível, sinto-me arrastado a ser um imitador, de sorte que
uma viagem pela Escócia ou Gales afetará substancialmente a minha
pronúncia e a minha entonação por uma semana ou duas. Lutar contra
isso eu luto, mas aí está, e o único remédio que conheço para curá-lo é
deixar que o defeito morra de morte natural.
Cavalheiros, volto à minha regra – usem as suas vozes naturais.
Não sejam macacos, mas homens; não papagaios, mas homens capazes
de originalidade em todas as coisas. Diz-se que a maneira mais
conveniente de um homem usar a barba é aquela em que a barba cresce
ajustando-se ao rosto, na cor e na forma. Os seus próprios modos de falar
deverão estar ao máximo em harmonia com os seus métodos de
pensamento e com a sua personalidade. A mímica é para o teatro; o
homem ilustrado em sua personalidade santificada é para o santuário. Eu
repetiria até ao cansaço esta regra, se pensasse que vocês poderiam
esquecê-la; sejam naturais, sejam naturais, sejam perpetuamente
naturais. Uma simulação da voz ou uma imitação da maneira do Dr.
Silvertongue (Língua de Prata), o eminente teólogo, ou mesmo de um
estimadíssimo preceptor ou diretor, inevitavelmente os arruinará. Dou-
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 170
lhes a incumbência de lançar fora o servilismo da imitação e de elevar-se
à originalidade viril.
Diletos irmãos, somos obrigados a acrescentar – esforcem-se para
educar a voz. Não lamentem as penas e os trabalhos requeridos para
realizar isso, pois, como já se observou bem, "Por mais prodigiosos que
sejam os dons da natureza a seus eleitos, só podem ser desenvolvidos e
levados à sua extrema perfeição pelo trabalho e pelo estudo". Pensem em
Miguel Ângelo trabalhando uma semana sem trocar de roupa, e em
Handel deixando côncava como uma colher cada tecla do seu cravo pela
prática incessante. Cavalheiros, depois disso, nunca falem de dificuldade
ou cansaço. É quase impossível ver a utilidade do método de falar de
Demóstenes, com pedras na boca, mas qualquer um pode perceber como
é útil argumentar com as ruidosas e encapeladas ondas, para que fosse
capaz de fazer-se ouvir nas tumultuadas assembléias dos seus patrícios; e
por que falava enquanto subia correndo morro acima para que os seus
pulmões acumulassem força, graças ao seu uso laborioso, a razão é tão
óbvia como recomendável é a abnegação.
Cabe-nos usar todos os meios possíveis para aperfeiçoar a voz, com
a qual havemos de expor o glorioso evangelho do Deus bendito. Tenham
grande cuidado com as consoantes, enunciando com clareza cada uma
delas; são as feições e as expressões das palavras. Pratiquem
infatigavelmente, até darem a cada uma das consoantes o que lhe é
devido; as vogais têm a voz que lhes é própria, e portanto podem falar
por si mesmas. Em todas as outras questões exerçam uma disciplina
rígida até dominarem a sua voz e tê-la à mão como um corcel bem
treinado. Os cavalheiros de peito estreito são aconselhados a exercitar-se
com halteres todas as manhãs, ou melhor ainda, com aqueles peitorais
que esta escola providenciou para vocês.
Irmãos, vocês precisam ter ampla caixa torácica e devem fazer o
melhor que puderem para consegui-la. Não falem com as mãos metidas
nos bolsos do colete, contraindo deste modo os pulmões, mas lancem
para trás os ombros, como fazem os cantores públicos. Não se inclinem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 171
sobre uma escrivaninha enquanto falam e nunca abaixem a cabeça sobre
o peito enquanto pregam. Para cima, e não para baixo, façam curvar-se o
corpo. Fora com todas as gravatas apertadas e com coletes fechados até
em cima; dêem lugar ao pleno desempenho dos foles e tubos sonoros.
Observem as estátuas dos oradores gregos e romanos, olhem um quadro
de Paulo feito por Rafael, e, sem artificialismo pedante, adotem com
naturalidade as atitudes elegantes e convenientes ali retratadas, pois são
as melhores para a voz.
Peçam a um amigo que lhe diga quais são as suas falhas, ou melhor
ainda, acolham bem um inimigo que os vigie com rigor e os aguilhoe
com selvageria. Que bênção será para o sábio um crítico irritante assim,
mas quão intolerável para o tolo! Corrijam-se a si mesmos, com
diligência e com freqüência, ou cairão inadvertidamente em erros, os
tons falsos se desenvolverão, ou hábitos desordenados se formarão
insensivelmente; portanto, façam autocríticas com incessante vigilância.
Não considerem pouco aquilo pelo que vocês possam vir a ser um pouco
mais útil. Mas, cavalheiros, jamais degenerem nesta atividade,
transformando-se em janotas do púlpito, que pensam que a gesticulação
e a voz são tudo. Meu coração padece quando ouço falar de homens que
tomam a semana toda para fazer um sermão, sendo que o preparo todo
consiste em repetir as suas preciosas produções diante do espelho!
Ai desta era, se corações destituídos da graça hão de ser perdoados
por amor à graça das suas maneiras. Oxalá nos dêem todas as
vulgaridades do mais rude pregador itinerante dos rincões mais
afastados, antes que a perfumada lindeza do donaire efeminado. Como
eu não os aconselharia a serem fastidiosos com suas vozes, tampouco os
recomendaria que imitassem o Sr. Taplash (amigo de Rowland Hill) com
o seu anel de diamante, seu lenço repassado de fino perfume, e seu
monóculo. Os elementos refinados estão deslocados no púlpito;
deveriam ser colocados numa vitrina, com uma etiqueta: "Este artigo
elegante completo, com o Dr. Fulano incluído, 10 libras e 10 xelins".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 172
Talvez seja este o momento para observar que seria bom se todos os
pais dessem mais atenção aos dentes dos seus filhos, desde que dentes
defeituosos podem causar sério prejuízo a um orador. Há homens de
articulação defeituosa que deveriam procurar logo um dentista (refiro-
me, é claro, a um dentista cientificamente perito e experimentado), pois
alguns dentes postigos ou algum outro acerto simples seriam uma bênção
permanente para eles. O meu dentista anota mui sensatamente em sua
circular:
"Quando se perdem alguns ou todos os dentes, segue-se uma
contração dos músculos do rosto e da garganta, os outros órgãos da voz
que estavam habituados aos dentes ficam prejudicados e são deslocados da
sua função normal, produzindo uma falha, um entorpecimento ou uma
depressão, como num instrumento musical deficiente numa nota. Em vão se
esperará sinfonia perfeita e inflexão proporcional e harmoniosa com a nota,
a tonalidade e o volume da voz, se os órgãos forem deficientes e,
naturalmente, a articulação ficará defeituosa. Esse defeito aumenta muito o
esforço para falar, para dizer o mínimo, e em muitíssimos casos, o resultado
é gaguejo, ou uma queda rápida ou brusca da fluência, ou uma transmissão
fraca. De deficiências mais sérias, quase certamente resultarão chiados e
estalos".
Quando o mal for este e a cura estiver ao nosso alcance, temos a
obrigação de utilizar-nos dela, por amor do nosso trabalho. Os dentes
podem parecer coisa sem importância, mas convém lembrar que nada é
pequeno numa Vocação tão grande como a nossa. Nas observações
subseqüentes mencionarei questões menores ainda, mas o faço com a
profunda impressão de que sugestões sobre coisas insignificantes podem
ser de valor incalculável para livrar-lhes de graves omissões ou erros
grosseiros.
Finalmente, com relação às suas gargantas, eu gostaria de dizer –
cuidem delas. Tenham o cuidado de limpá-las bem quando estiverem
perto da hora de falar, mas não fiquem a limpá-las constantemente
enquanto estiverem pregando. Um irmão muito estimado, meu
conhecido, fala sempre deste jeito – "Prezados amigos – hem, hem – é
um assunto – hem – muito importante o que agora – hem, hem – lhes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 173
apresento, e – hem, hem – lhes peço que me dêem – hem, hem – a sua
mais cuidadosa – hem atenção". Evitem isto com o máximo empenho.
Outros, por falta de limpeza da garganta, falam como se estivessem
entupidos e a ponto de expectorar; seria melhor que o fizessem de uma
vez, em lugar de deixar enjoado o ouvinte com repetidos sons
desagradáveis. Fungar e aspirar pelo nariz são desculpáveis quando o
pregador está resfriado, mas são extremamente desagradáveis, no entanto
se se tornam habituais, deveriam ser indiciados como infrações contra o
"decreto dos aborrecimentos". Rogo escusas, pois pode parecer vulgar
mencionar essas coisas, mas se derem atenção às claras e francas
observações feitas nesta sala de aulas poderão livrar-se de muitos
motejos feitos ás suas custas mais tarde.
Depois de terem pregado, cuidem das suas gargantas, não as
envolvendo com agasalhos exagerados. Com base em experiência
pessoal, aventuro-me a dar-lhes este conselho de maneira um tanto
confidencial. Se alguns de vocês possuem cachecóis de lã deliciosamente
quentes, com os quais talvez estejam associadas as mais ternas
recordações da mãe ou da irmã, estimem-nos – mas entesourem-nos no
fundo do baú; não os exponham a nenhum uso vulgar envolvendo com
eles os seus pescoços. Se algum colega quiser morrer de gripe, basta usar
uma cálida manta estreita ao redor do pescoço; depois, numa noite
qualquer a esquecerá e pegará um resfriado daqueles, que durará pelo
resto da sua vida. Raramente se vê um marinheiro com o pescoço
agasalhado. Não. Ele sempre o mantém nu e exposto, com colarinho
aberto e baixo, e se chega a usar gravata, é das pequenas e de laço solto,
de modo que o vento possa soprar em torno do seu pescoço. Sou firme
seguidor desta filosofia, e nunca me desviei dela nestes últimos quatorze
anos, tendo sofrido resfriado muitas vezes antes disso, e raramente
depois. Se acham que lhes falta algo, deixem crescer a barba, ora! Hábito
muito natural, bíblico, másculo e benéfico. Um dos nossos irmãos, aqui
presente, já faz anos que acha isso muito útil. Foi compelido a sair da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 174
Inglaterra por perder a voz, mas ficou forte como Sansão, agora que as
suas melenas ficam sem tosquiar.
Se suas gargantas ficarem afetadas, consultem um médico, ou, se
não puderem fazer isso, dêem a atenção que lhes aprouver à seguinte
idéia: Jamais comprem nenhum dos dez mil emolientes compostos –
xaropes, pastilhas, descongestionantes – que a propaganda popular exalta.
Podem servir-lhes por uma vez, removendo o incômodo do momento,
mas arruínam a garganta com as suas qualidades relaxantes. Se quiserem
melhorar as suas gargantas, tomem uma boa porção de pimenta – da boa
pimenta de Caiena, e outras substâncias adstringentes, na quantidade que
o seu estômago puder agüentar. Não vão além dessa medida, porque
precisam lembrar-se de que devem cuidar do estômago, bem como da
garganta, e se o aparelho digestivo sofrer desarranjo, nada poderá
funcionar bem. O bom senso ensina que os adstringentes só podem ser
úteis.
Alguma vez vocês ouviram falar que o curtidor transforma pele
crua em bom couro deixando-a embebida em açúcar? Tampouco servirão
ao propósito dele o bálsamo-de-tolu, a ipecacuanha e o melado, mas
justamente o contrário; se ele quer enrijecer e fortalece a pele, coloca-a
numa solução de casca de carvalho ou tanino, ou de alguma substância
adstringente capaz de fazer contrair-se o material e de fortalecê-lo.
Quando comecei a pregar no Exeter Hall, a minha voz era fraca
para aquele local – tão fraca como as vozes em seu curso normal, e
muitas vezes me faltava completamente quando pregava na rua. Mas no
Exeter Hall (lugar geralmente difícil para ser usado para pregação, por
sua excessiva largura, desproporcional ao seu comprimento), eu sempre
tinha bem perto de mim um vidrinho de vinagre com pimenta e água.
Um gole daquilo parecia dar novas forças à garganta, sempre que esta ia
ficando cansada e a voz parecia sucumbir. Quando a minha garganta se
enfraquece um pouco, normalmente peço ao cozinheiro que me prepare
uma tigela de caldo de carne, com tanta pimenta quanta se pode
agüentar, e até aqui isso tem sido um soberbo remédio.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 175
Todavia, como não estou qualificado para a prática da medicina,
vocês não me darão mais atenção nas questões médicas do que a
qualquer outro charlatão. Minha convicção é que metade das
dificuldades relacionadas com a voz nos nossos primeiros tempos
desaparecerá com o passar dos anos e, com a prática, desenvolverá uma
segunda natureza.
Quero encorajar os que de fato são zelosos, a perseverarem. Se
sentem a Palavra do Senhor arder como fogo nos seus ossos, até a
gagueira poderá ser vencida, e o medo, com os seus resultados
paralisantes, poderá ser banido. Coragem, jovens irmãos! Perseverem, e
Deus, a natureza e a prática os ajudarão.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 176
ATENÇÃO

Praticamente nunca notei a presença do assunto de que vamos tratar


em nenhum livro de homilética – fato deveras curioso, pois é matéria de
suma importância, fazendo jus a mais de um capítulo. Suponho que os
sábios em homilética acham que os seus volumes estão inteiramente
temperados com este assunto, e que não têm por que no-lo dar em
pedaços, uma vez que, como o açúcar no chá, ele impregna todo o
conjunto do seu sabor. O tópico omitido é: COMO OBTER E RETER A
ATENÇÃO DOS NOSSOS OUVINTES. A atenção deles tem que ser
conquistada, ou nada se poderá fazer com eles; e tem que ser retida, ou
poderemos continuar levando as palavras a passear, sem colher benefício
algum.
Acima do cabeçalho das proclamações militares os nossos oficiais
ingleses sempre apõem a palavra "ATENÇÃO!", com enormes letras, e
precisamos de uma palavra como essa para colocar no alto de todos os
nossos sermões. Precisamos da fervorosa, singela, desperta e continuada
atenção dos que compõem a congregação. Se a mente dos homens
estiver vagando longe, não poderá receber a verdade, e é como se
estivesse inativa. O pecado não pode ser arrancado dos homens enquanto
estiverem dormindo, como Eva foi arrancada do lado de Adão. Precisam
estar acordados, compreendendo o que dizemos e sentindo a sua força,
ou então podemos ir dormir também.
Há pregadores que pouco se importam se estão sendo ouvidos ou
não, desde que preencham o tempo determinado. É-lhes de somenos
importância se o público ouve para a eternidade ou se ouve em vão.
Quanto mais depressa esses ministros dormirem no cemitério e pregarem
por meio do epitáfio gravado nos seus túmulos, tanto melhor.
Alguns irmãos falam para o alto, dirigindo-se ao ventilador, como
se buscassem a atenção dos anjos; outros olham para baixo, para o seu
livro, como se estivessem absortos a pensar, ou tivessem a si próprios
como ouvintes e se sentissem muito honrados com isso. Por que esses
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 177
irmãos não pregam nos prados, edificando as estrelas do firmamento? Se
a sua prédica não tem relação com os seus ouvintes, bem que poderiam
fazer isso com evidente propriedade. Se o sermão for um solilóquio,
quanto mais sozinho estiver o executante, melhor. A um pregador
racional (e nem todos são racionais) só pode parecer essencial interessar
todos os seus ouvintes, do mais velho ao mais novo. Nem mesmo as
crianças devemos fazer com que fiquem desatentas. "Fazer com que
fiquem desatentas", o senhor diz, "quem faz isso?" Afirmo que a maioria
dos pregadores o faz. E quando as crianças não ficam quietas numa
reunião, a culpa é tanto nossa como delas.
Você não poderia introduzir uma breve estória ou parábola de
propósito para os pequeninos? Você não pode captar o olhar do menino
que está na galeria e o da garota embaixo, agitados, e com um sorriso
trazê-los à ordem? Muitas vezes eu falo com os olhos aos rapazes órfãos
que ficam aos pés do meu púlpito. Queremos todos os olhos fitos em nós
e todos os ouvidos abertos para nós. Para mim é um aborrecimento se
mesmo um cego não me olha com o seu rosto. Se vejo alguém virando-
se para os lados, cochilando, cochichando ou olhando o relógio, julgo
que não estou atingindo o alvo e que de algum modo devo conquistar
aquelas mentes. Muito raramente tenho de queixar-me, e quando o faço,
meu plano geral é queixar-me de mim mesmo, e reconhecer que não
tenho direito à atenção se não sei captá-la.
Agora, há algumas congregações cuja atenção você não consegue
prontamente; não se preocupam em interessar-se. É inútil repreendê-las;
seria como atirar um penacho numa ave para apanhá-la. O fato é que na
maior parte dos casos há outra pessoa que você deve repreender, e essa
pessoa é você mesmo. Pode ser dever dos ouvintes dar atenção, mas é
muito mais dever seu fazê-los prestar atenção. Você tem que atrair os
peixes para o seu anzol, e se eles não vêm, você deve culpar o pescador,
e não os peixes. Constrange-os a ficarem quietos por um pouco, e a
ouvirem o que Deus, o Senhor, quer falar às suas almas. O ministro que
recomendou à velha senhora a tomar rapé para evitar o sono, foi
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 178
censurado pela resposta que recebeu – que se ele pusesse mais rapé no
sermão, ela ficaria bem desperta. Devemos lançar bastante rapé no
sermão, ou algo mais forte ainda para despertar os ouvintes. Lembre-se
de que para alguns elementos da audiência não é fácil manter-se atentos;
muitos deles não estão interessados no assunto, e não há qualquer
operação da graça nos seus corações que os leve a confessar que o
evangelho tem algum valor especial para eles. A respeito do Salvador
que você apregoa, pode dizer-lhes:
"Nada vos significa contemplar a cruz?
Nada vos significa a morte de Jesus?"
Muitos deles sucumbiram durante a semana sob o peso das
preocupações com os seus negócios. Deviam transferir o seu fardo para o
Senhor; mas você age sempre assim? Você acha sempre fácil escapar das
inquietações? Você é capaz de esquecer em casa a esposa exausta e os
filhos doentes? Não há dúvida nenhuma de que muitos entram na casa de
Deus sobrecarregados de preocupações com as suas atividades diárias. O
agricultor lembra-se dos campos que precisam ser arados ou semeados; é
um domingo chuvoso, e ele fica refletindo sobre o dourado panorama
dos trigais novos. O mercador vê aquela fatura desonrada ondulando
diante dos seus olhos, e o comerciante calcula as suas perdas por alheias
dívidas irrecuperáveis. Não me espantaria se as cores dos adornos das
senhoras e o ranger das botinas dos cavalheiros perturbassem a muitos.
Há molestos insetos ao redor, você sabe: Belzebu, o deus dos insetos,
cuida para que onde houver uma festa do evangelho, os convidados
sejam atormentados com pequenas contrariedades.
Muitas vezes mosquitos mentais picam o homem enquanto você lhe
está pregando, e ele fica pensando mais em distrações fúteis do que no
seu discurso; é de admirar muito que ele aja assim? Você tem que
mandar embora os mosquitos e conseguir que os ouvintes não fiquem
distraídos com outros pensamentos, retirando-os do canal em que
estiveram rodando seis dias e colocando.os num canal próprio para o dia
do Senhor. Você precisa ter força de alavanca suficiente em seu discurso
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 179
e em seu assunto para erguê-los acima da terra à qual estão apegados, e
elevá-los para mais perto do céu.
Com os ouvintes acontece freqüentemente que é muito difícil
prestar atenção por causa do lugar e da atmosfera. Por exemplo, se o
lugar é como esta sala neste momento, selada contra o ar puro. com todas
as janelas fechadas, eles têm trabalho bastante para respirar, e não podem
pensar em mais nada. Quando as pessoas inalam repetidamente o ar que
já esteve nos pulmões dos outros, toda a maquinaria da vida se
desengrena, e elas ficam mais propensas a ter dor de cabeça do que dor
de coração. A segunda melhor coisa depois da graça de Deus para o
pregador é o oxigênio. Ore para que se abram as janelas do céu, mas
comece abrindo as janelas do seu salão de cultos. Verifique muitos dos
nossos templos rurais, e receio que também as nossas capelas urbanas, e
verá que as janelas não foram feitas para serem abertas. O bárbaro estilo
moderno de construção não nos dá mais teto do que um celeiro, nem
mais aberturas para ventilação do que encontraríamos num calabouço
oriental onde o tirano esperava que o seu prisioneiro morresse pouco a
pouco.
Que pensaríamos de uma casa em que as janelas não pudessem ser
abertas? Algum de vocês alugaria uma moradia dessas? Entretanto, a
arquitetura gótica e o orgulho tolo levam muitas pessoas a renunciarem à
salutar janela de caixilhos por pequeninos buracos no teto, ou por
alçapões para pássaros no lugar das janelas, e assim os locais se tornam
menos confortáveis do que a fornalha de Nabucodonosor para Sadraque,
Mesaque e Abede-Nego. Sob a condição de que tais capelas fossem
convenientemente postas no seguro, eu não poderia orar por sua
preservação do fogo. Mesmo onde as janelas podem ser abertas, muitas
vezes ficam fechadas meses inteiros, e de domingo a domingo a
atmosfera impura não é renovada. Não se deveria tolerar isto.
Conheço algumas pessoas que não ligam para essas coisas, e já ouvi
a observação de que as raposas não morrem pelo mau cheiro das suas
covas. Mas eu não sou raposa, e o ar viciado nos deixa lerdos, a mim e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 180
aos meus ouvintes. A sensação do ar fresco percorrendo o edifício
poderia ser para o público a melhor coisa depois do evangelho; pelo
menos o colocaria em adequada disposição mental para receber a
verdade. Durante os dias da semana, dê-se ao trabalho de retirar o
empecilho causado pelo ar poluído.
Na capela em que eu pregava anteriormente, na Park Street,
mencionei várias vezes aos oficiais a minha opinião de que seria melhor
tirar as vidraças superiores das janelas de estrutura de ferro, pois as
janelas não eram de abrir. Falei disso diversas vezes, e nada consegui.
Providencialmente, porém, aconteceu que numa segunda-feira alguém
tirou a maior parte daquelas vidraças, e de maneira magistral, quase tão
bem como se os vidros tivessem sido retirados por um vidraceiro. Houve
considerável consternação e muita conjetura quanto a quem teria
cometido o crime, e propus que se oferecesse uma recompensa de cinco
libras pela descoberta do ofensor que, quando encontrado, deveria
receber a quantia de presente. Não se concretizou a recompensa e,
portanto, não me senti na obrigação de delatar o indivíduo. Espero que
ninguém desconfie de mim, pois, se vocês desconfiarem, terei que
confessar que ando com a bengala que fez o oxigênio entrar naquele
sufocante edifício.
Às vezes os modos do nosso público são avessos à atenção. Não
têm o hábito de prestar atenção. Prestam serviço freqüentando a capela,
mas não prestam atenção ao pregador. Estão acostumados a olhar em
torno cada vez que alguém entra no recinto, e chegam a qualquer hora, e
às vezes com muito sapateado, ranger de botas e bater de portas.
Uma vez eu estava pregando a pessoas que continuamente olhavam
para os lados, e adotei o expediente de dizer: "Agora, amigos, como
vocês estão muito interessados em saber quem chega, e como o muito
olhar em volta de vocês me perturba muitíssimo, se quiserem, eu
descreverei cada pessoa que entrar, de modo que podem ficar sentados e
olhando para mim, e façam pelo menos uma demonstração de decência".
Descrevi um cavalheiro que entrou, que sucedeu ser um amigo que, sem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 181
ofensa, pude retratar como "um cavalheiro muito respeitável que acabou
de tirar o chapéu", e assim por diante; e depois dessa única tentativa,
achei que não era necessário descrever mais ninguém, porque ficaram
chocados com o que eu estava fazendo, e lhes afirmei que eu tinha ficado
muito chocado por tornarem necessário que eu reduzisse a conduta deles
àquele absurdo. Curei-os na ocasião, dando – espero que para sempre –
muita alegria a seu pastor.
Suponhamos agora que tudo isso foi acertado. Você pôs para fora
do recinto o ar viciado e corrigiu os modos do povo. O que vem em
seguida? Para conseguir a atenção, a primeira regra de ouro é, sempre
diga algo que valha a pena ouvir. Na maioria, as pessoas possuem um
instinto que as leva a desejar ouvir coisa boa. Têm também um instinto
similar, que seria melhor você anotar, a saber, um instinto que as impede
de ver benefício em ouvir atentamente meras palavras. Não é crítica
severa dizer que há ministros cujas palavras são grandemente
proporcionais aos seus pensamentos. De fato, as suas palavras escondem
os seus pensamentos, se é que eles têm algum. Despejam montões de
palha, e, talvez haja em algum lugar um ou dois feixes de aveia, mas
seria difícil dizer onde. As igrejas não ficarão muito tempo escutando
palavras, palavras, palavras e nada mais. Não me ocorre que entre os
mandamentos exista um que diga: "Não serás verboso", mas talvez esteja
compreendido neste mandamento: "Não furtarás"; pois é defraudar os
ouvintes dar-lhes palavras em vez de alimento espiritual.
"Na multidão de palavras não falta transgressão", mesmo no melhor
pregador. Dê aos seus ouvintes algo que eles possam entesourar e
recordar; algo que tenha a probabilidade de ser-lhes útil, a melhor
matéria do melhor de todos os lugares, sólida doutrina da Palavra de
Deus. Dê-lhes o maná repassado do frescor dos céus; não a mesma coisa
repetida o tempo todo, sempre da mesma forma, ad nauseam (até causar
náusea), como pão de cadeia fornecido da mesma forma o ano inteiro.
Dê-lhes algo notável, algo que possa levar um homem a levantar-se no
meio da noite para ouvir, e que valha uma caminhada de oitenta
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 182
quilômetros para ouvi-lo. Irmãos, vocês são capazes de fazer isso.
Façam-no continuamente, e terão toda a atenção que possam desejar.
Disponham com bastante clareza a boa matéria que vocês lhes
querem dar. Há muita coisa incluída nisto. É possível amontoar uma
imensa massa de coisas boas, tudo em desordem. Desde o dia em que fui
à venda com uma cesta e comprei meio quilo de chá, duzentos gramas de
mostarda e dois quilos de arroz, e, de caminho para casa vi uma matilha
de cães e achei necessário segui-los através de cercas e valados (como
sempre fazia quando menino), e ao chegar em casa vi que os artigos
estavam amalgamados – o chá, a mostarda e o arroz – numa terrível
confusão, compreendi a necessidade de embalar os meus assuntos em
porções bem firmes, amarradas com o cordão do meu discurso. E isto me
faz manter-me no estilo "primeiro, segundo e terceiro", por mais fora da
moda que esteja este método na atualidade. O povo não tomará vosso
chá misturado com mostarda, nem gostará dos vossos sermões
desordenados, nos quais vocês não podem saber qual é a cabeça e qual a
cauda, porque não têm nem uma nem outra, mas são como o cãozinho
peludo do Sr. Bright, cuja cabeça e cauda são iguais. Coloquem diante
dos homens a verdade de maneira lógica e ordenada, de modo que
possam lembrá-la com facilidade, e eles a receberão mais prontamente.
Além disso, certifiquem-se de que falam com clareza, porque, por
mais excelente que seja o argumento, se o ouvinte não o entende, não lhe
é útil. Se é para usar frases que estejam completamente fora do
conhecimento dele, e todos de expressão não ajustados à sua mente,
tanto faz vocês falarem na sua língua ou na de Kamchatka. * Subam ao
nível dele, se se tratar de homem simples; desçam à sua capacidade de
compreensão, se for uma pessoa instruída. Vocês dão risada por eu torcer
os termos desta maneira, mas acho que ser claro para os iletrados é mais
"subir" do que ser refinado para os polidos. De qualquer forma, é o mais
difícil dos dois, e mais parecido com o modo de falar do Salvador. É

*
Península asiática, outrora parte da Sibéria. Nota do Tradutor.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 183
sábio andar num passo em que os seus ouvintes podem acompanhá-lo,
em vez de dar-se ares de importância e ir por cima das cabeças deles. O
nosso Senhor e Mestre foi o Rei dos pregadores e, contudo, nunca esteve
acima da compreensão de ninguém, salvo naquilo que se refere à
grandiosidade e glória do Seu assunto. Suas palavras e declarações eram
tais que Ele falava como "o santo menino Jesus". Cogitem os seus
corações boa matéria, arrumada com clareza e simplicidade, e é mais que
certo que vocês ganharão o ouvido, como também o coração.
Atentem também para o modo de apresentar a mensagem; visem
com ela a incentivar a atenção dos ouvintes. E aqui devo dizer – como
regra geral, não leiam os seus sermões. Tem havido uns poucos leitores
de sermões que exercem grande poder, como, por exemplo, o Dr.
Chalmers, que não poderia ter tido audiência mais atenta se falasse
improvisadamente. Mas o caso é que não suponho que somos iguais ao
Dr. Chalmers. Homens eminentes assim podem ler, se o preferirem, mas
para nós "há um caminho ainda mais excelente". A melhor leitura que já
ouvi tinha gosto de papel, e ficou entalada na minha garganta. Não me
agradou, porque minha digestão não é tão boa que possa dissolver folhas
de papel. É melhor dispensar o manuscrito, mesmo que vocês sejam
obrigados a recitar. Melhor ainda se vocês não precisarem nem de recitar
nem de ler. Se tiverem que ler, tratem de fazê-lo com perfeição. Sejam
dos melhores leitores, e terão que o ser, se quiserem garantir atenção.
Deixem-me dizer aqui – se quiserem ser ouvidos, não exagerem na
alocução improvisada, pois isso é tão ruim como a leitura, e talvez pior,
a menos que o manuscrito tenha sido redigido improvisadamente, quero
dizer, sem estudo prévio. Não vá para o púlpito para dizer a primeira
coisa que venha à mão, pois na maioria dos homens a coisa impensada é
mera espuma. Os seus ouvintes precisam de discursos preparados com
muita oração e muito trabalho. O povo não quer alimento cru; deverá
recebê-lo cozido e pronto para ser servido. Devemos dar do íntimo das
nossas almas, com as palavras que surgirem naturalmente, o assunto
preparado tão completamente tal qual o pudesse fazer o escritor de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 184
sermões; de fato, deve ser mais bem preparado ainda, se é que queremos
falar bem. O melhor método é, em meu juízo, aquele em que o homem
não apresenta improvisadamente a matéria, mas, as suas palavras são
improvisadas. A linguagem lhe vem de improviso, mas o tema foi objeto
de muito pensamento, e, como mestre em Israel, fala do que sabe, e
testifica do que viu.
A fim de conseguirem a atenção, ajam de maneira tão agradável
quanto possível. Por exemplo, não cedam ao uso do mesmo tom de voz.
Variem continuamente a voz. Variem também a velocidade no falar –
lancem-se rápidos como o fulgor do relâmpago, e, daí a pouco,
prossigam com serena majestade. Mudem a tônica, alterem a ênfase e
evitem o falar cantante. Variem a tonalidade; usem às vezes o baixo,
deixando os trovões rolarem nele; outras vezes falem como deveriam
fazê-lo geralmente – com os lábios, e dêem tom coloquial à pregação.
Faça tudo para haver mudança. A natureza humana tem fome de
variações, e Deus no-las provê na natureza, na providência e na graça;
tenhamo-las nos sermões também. Contudo, não me delongarei muito
nisto, pois os pregadores têm fama de despertar e manter a atenção
somente com o assunto que apresentam, sendo muito imperfeito o seu
modo de falar.
Se Richard Sibbes, o puritano, estivesse aqui esta tarde, garanto que
a atenção estaria firmemente posta em qualquer coisa que dissesse, e,
entretanto, ele gaguejava horrivelmente. Um dos seus contemporâneos
diz que ele gaguejava e sibilava demais. Não é necessário muita procura
de exemplos em nossos púlpitos modernos, pois há muitos deles.
Devemos lembrar, porém, que Moisés era pesado de boca e de língua, e,
apesar disso, todos os ouvidos ficavam atentos às suas palavras. Paulo
provavelmente labutou com a mesma fraqueza, pois diziam que o seu
falar era desprezível; todavia, não temos certeza disso, porque era só
crítica dos seus inimigos. O poder de Paulo era grande nas igrejas, mas
nem sempre era capaz de manter a atenção quando o seu sermão era
comprido, pois pelo menos um ouvinte dormiu enquanto ele pregava, e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 185
com séria conseqüência. O modo de falar não é tudo. Entretanto, se
tiverem ajuntado bom material, será uma lástima transmiti-lo mal.
Um rei não andaria numa carruagem empoeirada; as gloriosas
doutrinas da graça não devem ser anunciadas com desalinho. As retas e
reais verdades devem viajar num carro de ouro. Apresentem os mais
nobres dos seus brancos corcéis, e façam que a música soe
melodiosamente das trombetas de prata, enquanto a verdade percorre as
ruas. Se as pessoas não prestarem atenção, não lhes demos motivo para
acharem desculpa em nossa comunicação defeituosa. Contudo, se não
conseguirmos corrigir-nos neste aspecto, sejamos diligentes ao máximo
para compensar isso com a riqueza do nosso assunto, e em todas as
ocasiões façamos o melhor que pudermos.
Como regra geral, não façam introdução muito longa. É sempre
uma pena construir um grande pórtico para uma casa pequena. Uma
excelente senhora cristã ouviu uma vez a John Howe, e, como ele gastou
cerca de uma hora no prefácio, a observação dela foi que o bom e
querido servo de Deus demorou tanto tempo pondo a mesa, que ela
perdeu o apetite; não podia esperar que houvesse algum jantar depois de
tudo. Arrume a mesa depressa, sem fazer barulho com os pratos e
talheres.
Talvez vocês tenham visto certa edição da obra, Rise and Progress
of Religion in the Soul (Surgimento e Progresso da Religião na Alma), da
autoria de Doddridge, com um ensaio introdutório de John Foster. O
ensaio é maior e melhor do que o livro, e priva Doddridge da
oportunidade de ser lido. Não é um absurdo? Evitem este erro em suas
produções pessoais. Eu prefiro fazer a introdução do meu sermão bem à
maneira do pregoeiro público, que toca a sua sineta e grita: "Ó, sim! Ó,
sim! Isto é para dar notícia", apenas para fazer o público saber que ele
tem notícias para dar-lhe e quer ser ouvido. Para conseguir isso, a
introdução deve conter algo extraordinário. É bom disparar uma
estrondosa carga com canhoneio como alerta para a ação. Não comecem
com todo o impulso e tensão da mente, mas, não obstante, façam-no de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 186
modo que todos sejam levados a esperar bons momentos. Não façam do
seu exórdio uma pomposa introdução de coisa nenhuma, mas, façam
dele um passo para algo ainda melhor. Sejam vívidos já bem no início.
Irmãos, na prédica não se repitam a si próprios. Eu costumava
ouvir um pregador que tinha o hábito de, depois de ter pronunciado cerca
de uma dúzia de frases, dizer: "Como já observei", ou, "Repito o que
antes fiz notar". Bem, alma bondosa, como não havia nada de especial
no que ele tinha dito, a repetição só servia para revelar com maior
clareza a nudez da terra. Se foi muito bom, e vocês o disseram com
ênfase, por que retornar àquilo? Se foi algo fraco, por que exibi-lo
segunda vez? Ocasionalmente, é claro, a repetição de umas poucas frases
pode ser muito expressiva; qualquer coisa povo ser boa ocasionalmente,
e, contudo, pode ser péssima como hábito. Quem se espanta porque o
povo não o ouve da primeira vez, quando sabe que tudo tornará a vir?
Ademais, não repitam a mesma idéia vez após vez, empregando
outras palavras. Façam surgir algo novo em cada frase. Não fiquem a
vida toda martelando o mesmo prego; a Bíblia é grande; permitam que o
povo desfrute o comprimento e a largura da Palavra de Deus. E, irmãos,
não pensem que é necessário ou importante dar, toda vez que pregam,
um sumário completo de teologia, ou uma compilação formal de
doutrinas, à moda do Dr. Gill – não que eu queira desacreditar o Dr. Gill
ou falar uma palavra contra ele – seu método é admirável para um corpo
de teologia, ou para um comentário, mas não se presta bem para a
pregação. Conheço um teólogo cujos sermões, sempre que impressos,
parecem compêndios teológicos, mais próprios para uma sala de aulas do
que para o púlpito. Soam insípidos nos ouvidos do público.
Os nossos ouvintes não querem os puros ossos da definição técnica,
mas carne e sabor. As definições e diferenciações são boa coisa, mas,
quando constituem o artigo principal do sermão, lembram-nos o jovem
cujo discurso se compunha de várias distinções importantes. Sobre essa
apresentação um velho oficial observou que havia uma distinção que o
pregador omitira, a saber, a distinção entre carne e ossos. Se os
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 187
pregadores não fizerem esta distinção, todas as suas outras distinções não
lhes trarão muita distinção.
Para manter a atenção, evitem alongar-se muito. Um velho pregador
costumava dizer a um jovem que pregava uma hora: "Meu caro amigo,
não me importa acerca do que você pregue, mas gostaria que sempre
pregasse cerca de quarenta minutos". Raramente devemos ir muito além
disso – quarenta minutos, ou, digamos, três quartos de hora. Se um
sujeito não puder dizer tudo que tem para dizer nesse tempo, quando o
dirá? Mas houve alguém que disse que gostava de "fazer justiça ao seu
tema". Muito bem, mas, não deveria fazer justiça aos seus ouvintes, ou,
pelo menos, ter um pouco de misericórdia deles, e não os reter
demasiado tempo? O tema não se queixará de vocês, mas o povo sim.
Em alguns lugares da zona rural, principalmente à tarde, os sitiantes
têm que ordenhar as vacas, e um deles queixou-se amargamente comigo
de um jovem – creio que desta escola – "Sr. Spurgeon, ele devia ter
terminado às quatro horas, mas continuou por mais meia hora, e lá
estavam todas as minhas vacas esperando pela ordenha! Como se
sentiria ele se fosse uma vaca?" Havia muito sentido nessa interrogação.
A Sociedade Protetora de Animais devia ter processado aquele jovem
declamador. Como podem os criadores de gado ouvir com proveito
quando suas cabeças estão cheias de vacas?
A mãe acha moralmente certo, durante os dez minutos extras do
sermão, que a criança esteja chorando, ou que o fogo se apague, e ela
nem pode pôr, e nem põe mesmo, o coração nas suas ministrações.
Vocês a estão retendo dez minutos além do trato que ela aceitara, e vê
isso como uma injustiça da parte de vocês. Existe uma espécie de pacto
moral entre vocês e a congregação, de que não haverão de cansá-la por
mais de uma hora e meia, e se a retiverem por mais tempo, isto
equivalerá a uma infração de um tratado e a um ato de desonestidade
prática da qual não deveriam fazer-se culpados.
A brevidade é uma virtude que está ao alcance de todos nós; não
percamos a oportunidade de ganhar o crédito que ela traz. Se me
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 188
perguntarem como fazer para encurtar os sermões, dir-lhes-ei, estudem-
nos melhor. Passem mais tempo no gabinete, para que necessitem menos
tempo no púlpito. Geralmente nos alongamos mais quando temos menos
a dizer. O homem com muito material bem preparado provavelmente não
excederá quarenta minutos; quando tem menos que dizer, irá aos
cinqüenta minutos, e quando não tem absolutamente nada, precisará de
uma hora para dizê-lo. Dêem atenção a estas pequeninas coisas, e elas os
ajudarão a reter a atenção dos ouvintes.
Irmãos, se vocês quiserem ter a atenção dos seus ouvintes – tê-la
completa e constantemente, isto só se pode realizar se eles forem
conduzidos pelo Espírito de Deus a um elevado e devoto estado mental.
Se os seus ouvintes forem suscetíveis de ensino, gente de oração, ativos,
fervorosos, devotas, virão à casa de Deus com o propósito de receber
uma bênção. Tomarão os seus lugares com atitude piedosa, pedindo a
Deus que lhes falem por intermédio de vocês; ficarão atentos a cada
palavra, e não se cansarão. Terão apetite pelo evangelho, pois conhecem
o dulçor do maná celestial, e estarão ávidos por recolher as porções que
lhes cabem. Ninguém jamais terá uma igreja á qual pregar que supere a
minha neste aspecto. Na verdade, os melhores ouvintes, para o pregador,
são geralmente aqueles com quem ele está mais familiarizado. É-me
relativamente fácil pregar no Tabernáculo; o meu povo vem com o
propósito de ouvir alguma coisa, e a sua expectativa ajuda o seu
cumprimento. Se fosse ouvir outro pregador com a mesma expectação,
creio que em geral ficaria satisfeito, conquanto haja exceções.
Quando o pregador está iniciando o seu pastorado; não pode esperar
que os seus ouvintes lhe dêem aquela fervente atenção obtida por aqueles
que são como pais entre os próprios filhos, amado pelo seu povo por mil
lembranças, e estimado por sua idade e experiência. A nossa vida, na
integra, deve ser tal que acrescente peso às nossas palavras, de sorte que
nos anos da maturidade sejamos capazes de brandir a invencível
eloqüência de um caráter mantido através de muito tempo, e possamos
obter, não somente a atenção, mas também a afetuosa veneração do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 189
nosso rebanho. Se com as nossas orações, lágrimas e labutas o nosso
povo se tornar espiritualmente sadio, não precisaremos ter medo de
perder a sua atenção. Um povo com fome de justiça, e um ministro
ansioso por alimentar as suas almas, agirão na mais suave harmonia
entre si, quando o vínculo comum a ambos for a Palavra de Deus.
Se vocês tiverem necessidade de outra orientação para obter a
atenção, devo dizer-lhes, estejam vocês mesmos interessados, e
interessarão outros. Há mais nessas palavras do que parece, e, portanto,
seguirei aqui um costume que condenei agora há pouco, repetindo a frase
– estejam vocês mesmos interessados, e interessarão outras pessoas. O
assunto que vão apresentar deve pesar tanto sobre suas mentes, que
vocês dedicarão todas as suas faculdades, no que elas têm de melhor, à
entrega de suas almas quanto ao referido tema; então, quando os seus
ouvintes virem que o tópico os absorveu, aos poucos se absorverão
também.
Vocês se admiram se o povo não presta atenção a um homem que
acha que não tem algo importante para dizer? Espantam-se porque o
povo não é todo ouvidos quando o pregador não fala de todo o coração?
Maravilham-se de que os pensamentos dos ouvintes vagueiem por entre
assuntos reais para eles quando vêem que o pregador está perdendo
tempo com matérias de que trata como se fossem ficção? Romaine
costumava dizer que era bom entender a arte de pregar, mas
infinitamente melhor conhecer o coração da pregação; e nesta afirmativa
não há pouco peso. O coração da prédica, o lançamento da alma nela, o
fervor que clama como pela própria vida, é metade da batalha pela
conquista da atenção.
Ao mesmo tempo, vocês não poderão manter a mente dos homens
em total atenção só com o fervor, se não tiverem nada para dizer. As
pessoas não ficarão às suas portas para sempre a ouvir um sujeito tocar
bumbo; sairão para fora a fim de ver o que está acontecendo, mas
quando virem que é muita bulha por nada, baterão a porta e entrarão em
casa de novo, como que dizendo: "Você nos logrou, e não gostamos".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 190
Tenham alguma coisa para dizer, digam-na com fervor, e a congregação
se porá a seus pés.
Talvez seja supérfluo notar que para grande parte do nosso público
é bom que haja bom número de ilustrações em nossos discursos. Temos
o exemplo de nosso Senhor para isso; e a maioria dos maiores
pregadores têm sido abundantes em símiles, metáforas, alegorias e
historietas. Cuidado para não exagerar nisso. Outro dia li o diário de uma
dama alemã que se converteu do luteranismo à nossa fé, e fala de certo
povoado onde ela mora:
"Existe aqui um posto missionário, e jovens descem para pregar-nos.
Não quero incriminar esses jovens cavalheiros, mas eles nos contam muitas
estorinhas bonitas, e não vejo muita outra coisa no que eles dizem. Também
ouvi algumas das suas pequenas estórias antes, e daí, eles não me
despertam muito interesse como o fariam se nos falassem de alguma boa
doutrina das Escrituras".
Sem dúvida a mesma coisa passou pela mente de muitos outros.
"Estórias bonitas" são muito boas, mas nunca funciona confiar nelas
como sendo a grande atração de um sermão. Além disso, estejam alertas
quanto a certas "belas estorinhas" dessas, pois a sua época chegou e
passou; essas pobres coisas estão surradas de tanto uso, e deviam ir para
o baú de trapos. Ouvi algumas delas tantas vezes que eu mesmo poderia
contá-las, mas não há por quê. Do estoque de historietas bem que
poderíamos nos livrar, tanto a nós como aos nossos ouvintes. Anedotas
antigas nos deixam doentes, quando os engraçadinhos as reeditam como
suas idéias próprias, e historietas que os nossos bisavós ouviam fazem o
mesmo efeito na mente.
Cuidado com aquelas compilações de ilustrações extremamente
populares, que se acham nas mãos de todos os professores da Escola
Dominical, pois ninguém lhes agradecerá a repetição daquilo que toda
gente já sabe de cor. Se vocês contarem historietas, cuidem para que
tenham algum grau de novidade e originalidade. Mantenham os olhos
abertos, e colhem com as suas mãos flores do jardim e do campo. Serão
muito mais aceitáveis do que exemplares murchos tirados de ramalhetes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 191
alheios, por mais belos que estes possam ter sido outrora. Ilustrem rica e
pertinentemente, porém, não tanto com parábolas importadas de fontes
estrangeiras, como com símiles apropriados que brotem do próprio tema.
Todavia, não pensem que a ilustração é tudo; é a janela, mas de que
serve a luz que passa por ela, se vocês não têm nada para a luz revelar?
Enfeitem os seus pratos, mas, lembrem-se de que o assado é o principal
ponto a considerar, não o enfeite. É preciso dar instrução real e ensinar
sólida doutrina, se não as suas figuras darão desalento aos seus ouvintes,
e eles ansiarão por carne espiritual.
Em seus sermões cultivem o que o padre Taylor chama de "o poder
da surpresa". Há grande porção de força nisso para obter-se atenção.
Não digam o que todos esperam que digam. Mantenham as suas frases
fora dos sulcos rotineiros. Se vocês já disseram, "A salvação é só pela
graça", não acrescentem sempre, "e não por méritos humanos" mas
variem e digam, "A salvação é só pela graça; a justiça própria não tem
nenhum canto para esconder a cabeça".
Receio não poder recordar uma frase do Sr. Taylor de maneira que
lhe faça justiça, mas é mais ou menos assim: "Alguns de vocês não
progridem muito na vida ministerial porque vão para frente um trecho da
rota, e logo vogam de volta, como um barco num rio de regime de marés,
que avança com a correnteza só para ser trazido de volta com o refluxo
da maré. Assim vocês fazem bom progresso por um pouco, e depois, de
repente" – que disse ele? – "ficam encalhados em alguma enseada
lamacenta". Também não repetiu ele para nós dizeres com este sentido:
"Ele estava certo de que se eles fossem convertidos, andariam retamente
e manteriam os seus bois fora da lavoura do vizinho"?
Recorrer ocasionalmente a este sistema de surpresa manterá uma
audiência em estado de adequada expectativa. No ano passado, mais ou
menos nesta época do ano, sentei-me na praia de Mantone, no Mar
Mediterrâneo. As ondas iam e vinham mansamente, pois ali existe pouca
maré, ou nenhuma, e o vento era brando. As ondas se arrastavam
languidamente uma após outra, e eu lhes dava pouca atenção, embora
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 192
estivessem bem aos meus pés. De súbito, como se tomado de nova
paixão, o mar arremessou uma enorme vaga que me ensopou
completamente. Tranqüilo como eu estava, vocês podem compreender
prontamente com que rapidez me pus de pé, e com que velocidade se
desfez o meu devaneio.
Observei a um colega de ministério que estava ao meu lado: "Isto
nos mostra como pregar; para despertar os ouvintes precisamos assustá-
los com alguma coisa que eles não esperavam".
Irmãos, peguem-nos de surpresa. Façam cair raios de um céu
límpido. Quando tudo estiver calmo e brilhante, façam irromper a
tempestade e, por contraste, aumentem os seus terrores. Lembrem-se,
porém, que nada terá valor se vocês dormirem enquanto estiverem
pregando. Será possível isso? Oh, possível! Faz-se todo domingo.
Muitos ministros estão mais que meio dormindo durante o sermão
inteiro; na verdade, nunca estiveram acordados em tempo nenhum, e
provavelmente nunca estarão, a menos que estoure um tiro de canhão
perto das suas orelhas. Frases mansas, expressões gastas pelo uso, e
enfadonhas monotonias dominam os seus discursos, e se admiram de que
o público fique tão sonolento; eu confesso que não me admiro.
A pausa ajuda muito a garantir a atenção. Retesem as rédeas de
repente uma vez ou outra, e os passageiros da sua carruagem se
despertarão. O moleiro vai dormir enquanto as rodas do moinho giram;
mas, se por qualquer motivo a moagem pára, o bom homem dá um salto
e grita: "Que é que foi?" Num sufocante dia de verão, se nada eliminar a
sensação de sono, sejam muito breve, cantem mais vezes que de
costume, ou convidem um ou dois irmãos para orarem. Um ministro que
viu que o público ia dormir, sentou-se, dizendo: "Vi que todos vocês
estavam repousando, e pensei em repousar eu também".
Andrew Fuller mal começara um sermão, quando viu que o povo ia
dormir. Disse ele: "Amigos, amigos, amigos, isto não pode ser. Algumas
vezes pensei que quando vocês dormiam, a culpa era minha, mas agora
vocês estão dormindo antes de eu começar, e a culpa só pode ser de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 193
vocês. Rogo-lhes que acordem e me dêem oportunidade de fazer-lhes
algum benefício". É isso mesmo. Saibam fazer pausa. Façam paradas de
quietude que despertem. Falar é prata, mas o silêncio é ouro quando os
ouvintes estão desatentos. Continuem, mais, mais, mais e mais, com
assuntos que são lugares comuns e com voz monótona, e estará
embalando o berço, e sono mais profundo será o resultado; dêem um
puxão no berço, e o sono fugirá.
Sugiro ainda que, a fim de assegurar a atenção durante todo um
discurso, devemos fazer que o povo sinta que tem interesse naquilo que
lhe estamos falando. Este é, de fato, um ponto extremamente essencial,
porque ninguém dorme enquanto espera ouvir algo que lhe convém.
Tenho ouvido falar de algumas coisas muito estranhas, mas nunca ouvi
dizer que uma pessoa dormiu enquanto se lia um testamento no qual
esperava uma herança, nem ouvi dizer que algum prisioneiro dormiu
quando o juiz estava fazendo o sumário para a sentença, e sua vida
estava em perigo. O interesse próprio estimula atenção. Preguem sobre
temas práticos, atuais e de interesse pessoal, e garantirão que os ouçam
fervorosamente.
Será bom impedir que os assistentes atravessem os corredores da
nave para lidar com o gás ou com as lâmpadas, ou para passar os pratos
da coleta, ou para abrir janelas. Diáconos e auxiliares trotando pelo
recinto são uma tortura que jamais deve ser suportada com paciência, e
se deve pedir bondosa mas decididamente que suspendam as suas
perambulações.
Os retardatários também precisam ser corrigidos, e nesse sentido
devemos fazer gentis arrazoados e admoestações. Tenho certeza que o
diabo dá a mão a muitos distúrbios ocorridos na igreja reunida, irritando
os nossos nervos e distraindo os nossos pensamentos. O bater de uma
porta, a queda seca de uma bengala no piso, ou o choro de uma criança,
todas estas coisas são instrumentos nas mãos do maligno para estorvar o
nosso trabalho; podemos, pois, muito justificadamente, pedir aos nossos
ouvintes que protejam o nosso serviço útil dessa classe de agressões.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 194
Dei-lhes uma regra de ouro para obter a atenção no começo, a
saber, sempre digam alguma coisa que valha a pena ouvir; agora lhes
vou dar uma regra de diamante, e concluirei. Irmãos, revistam-se do
Espírito de Deus, e depois não questionem acerca do surgimento ou não
da atenção. Venham revigorados do gabinete pastoral e da comunhão
com Deus, para falar de todo o coração e de toda a alma aos homens por
Deus, e haverão de ter poder sobre eles.
Vocês possuem cadeias de ouro na boca que os prenderão com
segurança. Quando Deus fala os homens devem ouvir, e embora Ele fale
por meio de um pobre e frágil homem como eles mesmos, a majestade
da verdade os compelirá a acatar a Sua voz. O poder sobrenatural deverá
ser a sua confiança.
Dizemos-lhes, irmãos, aperfeiçoem-se na oratória, cultivem todos
os campos do conhecimento, façam que o seu sermão seja tudo o que
deve ser intelectual e retoricamente (vocês não devem deixar por menos
esse serviço), mas ao mesmo tempo lembrem que não é "por força nem
por poder" que os homens são regenerados ou santificados, mas "por
meu Espírito, diz o Senhor". Às vezes vocês não se sentem vestidos de
zelo como de um manto, e plenamente cheios do Espírito de Deus?
Nessas ocasiões vocês tiveram um público ouvindo atentamente, e, em
pouco tempo, um público crente; mas se vocês não forem assim dotados
de poder do Alto, não serão para os ouvintes nada mais que um músico
que toca um belo instrumento, ou que canta uma agradável canção com
clara voz, alcançando os ouvidos, mas não o coração. Se vocês não
atingirem o coração, logo os ouvidos se cansarão.
Revistam-se, pois, irmãos, do poder do Espírito de Deus, e preguem
aos homens como os que têm que dar logo um relatório, e desejam que o
mesmo não seja doloroso para os seus ouvintes, nem mortificante para si
próprios, mas que seja para a glória de Deus.
Irmãos, que o Senhor seja com vocês, enquanto avançam em nome
dEle e bradam: "Quem tem ouvidos, ouça".
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 195
A CAPACIDADE DE FALAR DE IMPROVISO

Não vamos discutir aqui a questão se os sermões devem ser escritos


e lidos, ou escritos, decorados e repetidos, ou ainda se se devem
empregar copiosas anotações ou nenhuma. Nenhum desses itens
constitui o assunto agora em consideração, embora possamos aludir
incidentalmente a cada um deles; mas nesta oportunidade vamos falar da
alocução improvisada em sua mais autêntica e completa forma – o
discurso de improviso, sem preparação especial, sem notas ou
premeditação.
Nossa primeira observação será que não recomendamos a ninguém
que tente pregar desde modo como regra geral. Se o tentasse,
certamente conseguiria, cremos nós, produzir um vácuo no seu local de
reuniões. Os seus dons de dispersão se manifestariam claramente.
Pensamentos não estudados provenientes do intelecto sem prévia
pesquisa, sem que os temas em mãos tenham sido investigados nem um
pouco, só podem ser de qualidade muito inferior, mesmo que sejam de
homens talentosos. E como nenhum de nós teria a afrontosa ousadia de
glorificar-nos como homens de gênio ou como maravilhas de erudição,
temo que os nossos pensamentos não premeditados sobre a maioria dos
assuntos não seriam dignos de atenção.
As igrejas não haverão de ser mantidas unidas senão por um
ministro capaz de instruir; encher simplesmente o tempo com oratória
não basta. Em toda parte os homens pedem que os alimentem, que os
alimentem realmente. Aqueles religionários novidadeiros, cujo culto
público em geral consiste de preleções feitas por qualquer irmão que
queira apresentar-se de momento e falar, não obstante o seu lisonjeiro
incitamento aos ignorantes e tagarelas, quase sempre definham e
desaparecem; porque, mesmo os homens que adotam as idéias
caracterizadas pela mais contundente excentricidade, concebendo que o
Espírito quer que cada membro do corpo seja uma testemunha, logo se
impacientam ao ouvirem os absurdos de outra gente, embora contentes
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 196
por dispensar os seus próprios. Enquanto isso, a maior parte do bondoso
público se cansa da ignorância prosaica, e volta para as igrejas das quais
se deixara levar, ou voltaria se os seus púlpitos fossem supridos de
ensino sólido. Mesmo o movimento dos quacres, com todas as suas
excelentes virtudes, mal pode sobreviver à pobreza de pensamento e de
doutrina, demonstrada em muitas das suas assembléias por oradores que
falam de improviso. O método de realizar ministrações despreparadas é
um fracasso na prática, e teoricamente defeituoso.
O Espírito Santo não fez promessa de fornecer alimento espiritual
aos santos por intermédio de um ministério improvisado. Ele jamais fará
para nós o que nós mesmos podemos fazer. Se podemos estudar e não o
fazemos, se podemos ter um ministério estudioso e não o exercitamos,
não temos direito de apelar para a intervenção divina para cobrir os
déficits da nossa ociosidade ou da nossa excentricidade. O Deus da
providência prometeu alimentar o Seu povo com alimento temporal; mas
se nos reuníssemos para um banquete e ninguém tivesse preparado nem
um só prato porque todos tinham fé no Senhor de que a comida seria
dada na hora exata, o festival não seria muito satisfatório, pois a
estultícia seria repreendida pela fome; como, na verdade, se dá no caso
dos banquetes espirituais do tipo improvisado. Contudo os receptáculos
espirituais dos homens raramente são "oradores" tão poderosos como os
seus estômagos.
Cavalheiros, conto regra, não tentem seguir um sistema de coisas
que geralmente é tão sem proveito que as poucas exceções só confirmam
a regra. Todos os sermões devem ser bem ponderados e preparados pelo
pregador; e, quanto possível, todo ministro deve, com muita oração por
direção divina, penetrar plenamente no seu tema, exercitar todas as suas
faculdades mentais com originalidade, e reunir todas as informações que
estejam ao seu alcance. Examinando de todos os ângulos a matéria toda,
o pregador deve refletir nela, mastigá-la e digeri-la; e, tendo-se ele
próprio alimentado com a Palavra, deve depois preparar a mesma
nutrição para outros. Os nossos sermões devem ser o nosso sangue vital
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 197
mental – o fluxo do nosso vigor espiritual e intelectual; ou, para mudar a
figura, devem ser diamantes bem lapidados e bem guarnecidos –
intrinsecamente preciosos, e trazendo as marcas do labor. Não permita
Deus que ofereçamos ao Senhor algo que não nos custe nada.
Com muito empenho advirto-os a todos contra a leitura dos seus
sermões, mas lhes recomendo, como exercício sumamente saudável, e
como grande auxílio com vistas à consecução de poder na pregação
improvisada, que freqüentemente os escrevam. Aqueles de nós que
escrevem muito noutras modalidades, para a imprensa etc., talvez não
precisem tanto desse exercício; mas, se vocês não usam a caneta de
outros modos, será prudente escreverem ao menos alguns dos seus
sermões, e revisá-los com grande esmero. Deixem-nos em casa depois,
mas continuem a escrevê-los, para que fiquem livres de um estilo
desmazelado.
M. Bautain, em sua admirável obra sobre a alocução improvisada,
observa:
"Você nunca será capaz de falar bem em público se não adquirir tal
domínio do seu próprio pensamento que o capacite a decompô-lo em suas
partes, analisá-lo em seus elementos, e depois, quando necessário
recompô-lo, reuni-lo e concentrá-lo de novo por um processo de síntese.
Pois bem, esta análise da idéia, que a expõe, por assim dizer, diante dos
olhos da mente, só se executa bem escrevendo. A caneta é o escalpelo que
disseca os pensamentos, e nunca você poderá conseguir discernir
claramente tudo que se contém numa concepção, ou atingir o seu escopo
bem determinado, a não ser quando escreve o que contempla interiormente.
Então você se compreende a si próprio, e faz com que outros o
compreendam".
Não recomendamos o plano de aprender de cor os sermões,
repetindo-os depois de memória. Isso é ao mesmo tempo um cansativo
exercício de uma capacidade inferior da mente, e uma indolente
negligência de faculdades outras e superiores. O plano mais árduo e mais
recomendável é suprir a mente de material sobre o assunto do discurso, e
depois transmiti-lo com palavras apropriadas que se sugiram a si mesmas
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 198
na hora. Isto não é prédica improvisada; as palavras são improvisadas,
como creio que sempre devem ser, mas os pensamentos resultam de
pesquisa e estudo. Só pessoas negligentes pensam que isso é fácil. É a
um só tempo o mais trabalhoso e o mais eficiente modo de pregar, e tem
suas virtudes próprias, das quais não posso falar particularmente agora,
visto que isto nos levaria para longe do ponto em questão.
Nosso assunto trata da alocução pura, casta e genuinamente
improvisada, e a ele voltamos. Esse poder é extremamente útil e, na
maioria dos casos, pode ser adquirido com um pouco de diligência.
Muitos o possuem, mas não tantos que eu seja incorreto se disser que o
dom é raro. Os improvisatori da Itália possuíam em tal extensão o poder
de falar de improviso, que as suas poesias sobre assuntos sugeridos no
palco pelos espectadores chegavam muitas vezes a centenas e até
milhares de versos. Produziam tragédias completas tão espontaneamente
como nas fontes a água borbulha, e rimavam meia hora ou uma hora
inteira ao estímulo do momento, e talvez também ao estímulo de um
pouco de vinho italiano. Suas obras impressas raramente vão acima da
mediocridade e, todavia, um deles, Perfetti, obteve a coroa de louros com
que somente Petrarca e Tasso tinham sido premiados. Muitos deles
nestes dias produzem na hora versos ao nível das capacidades dos seus
ouvintes, e os prendem fascinados. Por que nós não adquirimos esse
poder para a prosa? Não seremos capazes, suponho, de produzir poesias,
nem precisamos desejar essa faculdade. Sem dúvida, muitos de vocês
têm versificado um pouco (pois, qual de nós, num momento de fraqueza,
não o fez?), mas deixamos as coisas de meninos, agora que a sóbria
prosa de vida e morte, céu e inferno, e pecadores que perecem, requer
todo o nosso pensamento.
Muitos advogados possuem em alto grau o dom de falar de
improviso. Haveriam de ter algumas virtudes! Algumas semanas atrás
uma infeliz criatura foi processada pelo horrível crime de caluniar um
advogado. Foi bom para ele que eu não fui o seu juiz, pois se eu fosse
levado a cuidar razoavelmente de um crime tão difícil e atroz, eu o teria
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 199
entregue para ser interrogado durante a duração da sua vida natural,
esperando, por amor à misericórdia, que fosse curta. Mas muitos dos
cavalheiros do tribunal são oradores sempre preparados para falar, e
como vocês vêem claramente, eles devem ser também, em considerável
grau, improvisadores, porque lhes seria impossível prever sempre a linha
de argumentação que as provas, ou o temperamento do juiz, ou as
alegações da parte contrária poderiam exigir. Por melhor que se prepare
um caso, terão que surgir e surgirão pontos que requererão mente viva e
língua fluente para lidar com eles.
De fato, tenho ficado admirado ao observar as réplicas espirituosas,
agudas e em todos os aspectos apropriadas que o causídico arremessa,
sem meditação prévia, em nossos tribunais. O que um advogado pode
fazer defendendo a causa do seu cliente, certamente eu e você devemos
ser capazes de fazer pela causa de Deus. Não se deve permitir que a
tribuna forense sobrepuje o púlpito em excelência. Com a ajuda de Deus,
seremos tão competentes no uso das armas intelectuais como quaisquer
outros homens, sejam eles quem forem.
Certos membros da Casa dos Comuns exercitaram a capacidade de
falar improvisadamente com grandes resultados. Normalmente, de todas
as tarefas que nos obrigam a ouvir, a mais miserável é a de escutar a
casta comum de oradores da Casa dos Lordes e dos Comuns. Oxalá se
proponha que, quando for abolida a pena de morte, os que forem achados
culpados de homicídio, sejam obrigados a ouvir uma seleção dos mais
áridos oradores do parlamento. Que a Sociedade Real pelos Direitos
Humanos o impeça. Todavia, alguns membros da Casa são capazes de
falar de improviso, e de falar bem. Imagino que algumas das coisas mais
belas que foram ditas por John Bright, Gladstone e Disraeli, foram muito
bem o que Southey chamaria de jatos do grande gêiser quando a fonte
está em plena atividade.
Naturalmente os seus longos discursos sobre orçamento, sobre o
decreto de reforma, etc., foram elaborados ao máximo mediante
manipulações prévias; mas muitos dos seus discursos mais curtos foram,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 200
sem dúvida, produtos da hora, e contudo estão cercados por espantoso
volume de poder. Atingirão os representantes da nação uma perícia no
falar maior do que a dos representantes da corte celestial?
Irmãos, ambicionem fervorosamente este valioso dom, e partam
para conquistá-lo.
Todos vocês estão convencidos de que a capacidade que estamos
considerando é por certo uma inapreciável possessão para o ministro.
Será que ouvimos um coração solitário cochichar: "Eu gostaria de tê-la,
pois daí não teria necessidade de estudar tão arduamente"? Ah! Neste
caso você não deve tê-la; é indigno desta dádiva, e não está apto para que
lhe seja confiada. Se você procura o dom para usá-lo como travesseiro
para uma cabeça preguiçosa, está muito enganado, pois a posse desse
poder o envolverá numa soma imensa de trabalho para aumentá-lo ou
mesmo conservá-lo. É como a lâmpada mágica da fábula, que não
acendia se não fosse bem esfregada, e se tornava um simples globo
opaco quando cessava a fricção. O que o ocioso deseja para sua
comodidade, podemos, contudo, cobiçar pelo melhor de todos os
motivos.
Ocasionalmente se ouve ou se lê sobre homens que concordam, por
bravata, em pregar sobre textos dados a eles na hora no púlpito, ou no
gabinete pastoral; essas exibições de vanglória são repulsivas e tocam as
raias da profanação. Também poderíamos fazer exibições ilusionistas no
dia do Senhor, como saltimbancos da oratória. Recebemos os nossos
talentos para fins bem diferentes. Confio em que vocês nunca se
permitirão essa prostituição do dom. Proezas de alocução ficam bem
numa agremiação de debates, mas no ministério são abomináveis,
mesmo quando um Bossuet se preste para isso.
A capacidade de falar de improviso é inapreciável, porque
possibilita ao homem, ao estímulo do momento, numa emergência,
comunicar-se com propriedade. Estas emergências surgem. Acidentes
ocorrem nas mais ordeiras assembléias. Eventos singulares podem alterar
completamente o curso dos seus pensamentos. Você percebe claramente
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 201
que o assunto escolhido seria inoportuno, e, como homem prudente,
muda sem demora para alguma outra coisa. Quando se fecha a velha
estrada e não há outro recurso senão o de abrir novo caminho para a
carruagem, se você não estiver qualificado para dirigir os cavalos por um
campo arado bem como pela estrada empedrada pela qual esperava
viajar, você se verá lançado fora da boléia, e os companheiros sofrerão o
prejuízo. É grande aquisição poder, numa reunião pública, depois de
ouvir os discursos dos seus irmãos e achar que foram muito frívolos, ou
talvez, por outro lado, muito enfadonhos, serenamente, sem aludir a eles,
neutralizar o mal e levar a assembléia a uma linha de pensamento mais
proveitosa.
Este dom pode ser da máxima importância na reunião eclesiástica,
na qual podem surgir questões que seria difícil prever. Nem todos os
perturbadores de Israel já morreram. Acã foi apedrejado, com sua mulher
e seus filhos, mas outros da sua família devem ter escapado, pois o certo
é que a raça se perpetuou, e deve ser tratada com prudência e vigor. Em
algumas igrejas, certos homens turbulentos se levantam e falam, e
quando fazem isso, é de grande importância que o pastor replique
prontamente e de modo convincente, para que não permaneçam más
impressões. O pastor que vai à reunião eclesiástica no espírito do Mestre,
sentindo-se seguro de que, confiando no Espírito Santo, será
perfeitamente capaz de responder a qualquer espírito amolante, senta-se
tranqüilo, mantém a calma, sobe no conceito geral a cada lance, e
consegue uma igreja pacífica.
Mas o irmão despreparado fica agitado, provavelmente se acalora,
compromete-se, e herda um mundo de aborrecimentos. Além disso, um
homem pode ser convidado para pregar à última hora, por não ter
chegado o ministro esperado, ou por ter adoecido de repente; numa
reunião pública pode sentir-se impelido a pregar embora tivesse decidido
ficar em silêncio; e em qualquer forma de exercício religioso podem
ocorrer emergências que tornarão a alocução feita de improviso preciosa
como o ouro de Ofir.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 202
O dom é valioso. Como obtê-lo? A indagação leva-nos a observar
que alguns jamais o obterão. Tem que haver uma adaptabilidade natural,
para a alocução improvisada. É como no caso da arte poética: um poeta
nasce, não se faz. "A arte pode desenvolver e aperfeiçoar o talento do
orador, mas não pode produzi-lo." Todas as regras de retórica e todos os
artifícios da oratória não conseguem tornar eloqüente um homem; é dom
do céu, e onde inexiste, não pode ser adquirido. Este "dom de
comunicação", como lhe chamamos, nasce com algumas pessoas,
provavelmente herdado do lado materno.1 Para outras o dom é negado; o
fato de que têm boca, e ainda mais o fato de que têm cérebro, nunca lhes
concederão que se tornem oradores fluentes e expeditos. Talvez possam
fazer desses homens tartamudos moderados, e vagarosos transmissores
de verdades sóbrias, mas eles nunca serão oradores capazes de
improvisar. Se não forem rivais de Matusalém na idade, e tampouco da
teoria darwiniana, que extrai um arcebispo da Cantuária de uma ostra,
poderão desenvolver-se e transformar-se em oradores. Se não houver um
dom natural de oratória, um irmão pode chegar a uma posição
respeitável noutras profissões, mas não é provável que brilhe como um
astro de particular esplendor na alocução improvisada.
Se um homem quiser falar desprovido de qualquer estudo,
normalmente precisará estudar muito. Talvez seja um paradoxo, mas a
sua explicação está na superfície. Se sou moleiro, e me trazem um saco à
porta para que o encha de farinha de primeira em cinco minutos, o único
modo pelo qual posso fazê-lo é mantendo o celeiro do meu moinho
sempre cheio, para que possa logo abrir a boca do saco, enchê-lo de
farinha e entregá-lo. Não estou moendo na ocasião, de modo que a
entrega é improvisada; mas estive moendo antes, e assim tenho farinha
para servir o freguês.

1
"Há homens estruturados para falar bem, como há pássaros estruturados para cantar bem, abelhas
para produzir mel, e o castor para construir." M. Bautain.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 203
Assim, irmãos, é preciso que tenham estado moendo, ou não terão
farinha. Vocês não serão capazes de transmitir de improviso bom
pensamento se não tiverem o hábito de pensar e alimentar as suas mentes
com alimento abundante e nutritivo. Trabalhem arduamente em todos os
momentos disponíveis. Aprovisionem as suas mentes ricamente, e então,
como negociantes com os seus armazéns atulhados, terão mercadorias
prontas para os seus fregueses, e, tendo arrumado as suas boas coisas nas
prateleiras das suas mentes, poderão fazê-las descer a qualquer hora sem
o trabalhoso processo de ir ao mercado, classificar, embrulhar e preparar.
Não acredito que algum homem seja capaz de manter continuamente
com sucesso o dom da alocução improvisada, exceto empregando
ordinariamente mais afã do que normalmente acontece com os que
escrevem os seus discursos e os confiam à memória. Tomem isto como
uma regra sem exceções, que para poderem transbordar
espontaneamente, precisam estar abastecidos até às bordas.
Coletar um fundo de idéias e expressões é extremamente útil. Há
riqueza e pobreza em cada um desses aspectos. Aquele que possui muita
informação, bem ordenada e compreendida inteiramente, com a qual está
intimamente familiarizado, será capaz de, como algum príncipe de
fabulosa riqueza, espalhar ouro à direita e à esquerda por entre a
multidão. Para vocês, cavalheiros, uma íntima familiaridade com a
Palavra de Deus, com a vida espiritual interior, com os grandes
problemas do tempo e da eternidade, será indispensável. A boca fala do
que está cheio o coração. Acostumem-se a meditações celestiais,
examinem as Escrituras, deleitem-se na lei do Senhor, e não precisarão
ter receio de falar das coisas que já experimentaram e apalparam da boa
Palavra de Deus.
Os homens bem podem ser lerdos de língua ao discutirem temas
fora do alcance da sua experiência. Mas vocês, aquecidos pelo amor ao
Rei, e desfrutando comunhão com Ele, verão os seus corações compondo
boa matéria, e suas línguas serão como penas de hábeis escritores.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 204
Cheguem às raízes das verdades espirituais mediante conhecimento
experimental delas, e assim estarão aptos para expô-las a outros.
A ignorância da teologia não é rara em nossos púlpitos, e o que
causa espanto não é que haja tão poucos oradores capazes de improvisar,
mas que haja tantos quando são tão raros os teólogos. Jamais teremos
grandes pregadores, enquanto não tivermos grandes teólogos. Vocês não
podem construir um navio de guerra de um ramo de parreira, nem se
podem formar de estudantes superficiais grandes pregadores, capazes de
comover as almas. Se quiserem ser fluentes, quer dizer, capazes de fluir.
encham-se de todo o conhecimento, e principalmente do conhecimento
de Cristo Jesus o seu Senhor. Mas nós observamos que um fundo de
expressões também seria de muita ajuda ao orador que improvisa; e,
realmente, um vocabulário rico somente se torna secundário ante um
depósito de idéias. As belezas de linguagem, as elegâncias no falar, e
acima de tudo as frases vigorosas devem ser selecionadas, rememoradas
e imitadas.
Não devem levar consigo aquela caneta tinteiro de ouro e anotar
cada palavra polissílaba que encontrarem em sua leitura para introduzi-la
no seu próximo sermão, mas devem saber o que as palavras significam
para que possam avaliar o poder de um sinônimo, julgar o ritmo de uma
frase e medir a força de um expletivo. Vocês têm que dominar as
palavras; estas devem ser os gênios a seu serviço, os seus anjos, os seus
raios trovejantes, ou as suas gotas de mel. Os simples ajuntadores de
palavras são colecionadores de conchas de ostras, vagens de feijão e
bagaço de maçã; mas, para o homem que tem ampla informação e
pensamento profundo, as palavras são salvas de prata nas quais se
servem maçãs de outro. Atentem para que tenham uma boa equipe de
palavras para puxar o carro dos seus pensamentos.
Também creio que o homem que quiser falar bem,
improvisadamente, deve ter todo o cuidado de escolher um tópico que
ele mesmo compreenda. Este é o ponto principal. Desde que vim para
Londres, para habituar-me a falar improvisadamente eu nunca estudei
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 205
nem preparei nada para a reunião de oração de segunda-feira à noite. De
há muito escolhi essa ocasião como a oportunidade para uma exortação
de improviso. Mas vocês notarão que nessas ocasiões não escolho
difíceis tópicos expositivos ou temas abstrusos, mas me restrinjo a
simples fala caseira sobre os elementos da nossa fé. Ao pôr-me de pé
nessas ocasiões minha mente faz uma revisão, e indaga: "Que assunto já
ocupou o meu pensamento durante o dia? Que encontrei nas leituras que
fiz durante a semana passada? Que é que se impõe mais ao meu coração
nesta hora? Que me sugerem os hinos ou as orações?"
É inútil levantar-se diante de uma assembléia e esperar ser inspirado
para assuntos sobre os quais você não sabe nada; se for insensato a esse
ponto o resultado será que, como você não sabe nada, provavelmente
nada dirá, e o povo não será edificado. Mas não vejo por que um homem
não pode falar improvisadamente sobre um assunto de que ele entende
plenamente. Qualquer comerciante, bem versado em sua linha de
negócios, pode explicá-la a você sem precisar retirar-se para meditação;
e certamente devemos estar de igual modo familiarizados com os
princípios básicos da nossa fé santa; não devemos ficar embaraçados
quando chamados para falar sobre tópicos que constituem o pão
cotidiano das nossas almas. Não vejo que benefício se ganha nesse caso
com o mero trabalho manual de escrever antes de falar; porque, ao fazê-
lo, o homem escreveria improvisadamente, e é provável que a escrita
improvisada fosse coisa ainda mais fraca do que a elocução improvisada.
O lucro de escrever está na oportunidade de cuidadosa revisão; mas
como os escritores talentosos são capazes de expressar corretamente já
de início os seus pensamentos, da mesma forma se dá com os oradores
capazes.
O pensamento do homem que se acha firme sobre os seus pés,
dilatando-se sobre um tema que conhece bem, pode estar muito longe de
ser pensamento que lhe ocorreu pela primeira vez; pode ser a nata das
suas meditações aquecidas pelo calor do seu coração. Tendo antes
estudado bem o assunto, embora não no momento, pode comunicar-se
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 206
muito poderosamente; ao passo que outro homem, sentando-se para
escrever, pode escrever somente as suas primeiras idéias, provavelmente
vagas e insípidas. Neste caso, não tentem falar de improviso, a menos
que tenham estudado bem o tema – paradoxo que é conselho da
prudência.
Lembro-me de ter sido provado duramente certa ocasião, e se não
fosse versado na prática de falar de improviso, não sei como me teria
saído. Esperavam-me para pregar em certa capela que estava apinhada de
gente, mas não cheguei na hora, pois fui atrasado por uma obstrução na
estrada de ferro. Assim, outro ministro dirigiu o culto e, quando cheguei
ao local, esbaforido pela pressa, ele já estava pregando. Vendo-me
aparecer e entrar por entre as fileiras de bancos, parou e disse: "Aí está
ele", e, olhando-me, acrescentou: "Vou dar-lhe o lugar; venha terminar o
sermão". Perguntei-lhe qual era o texto e até que ponto havia chegado
com ele. Disse-me qual era o texto e que tinha acabado de passar pela
primeira divisão. Sem hesitação, tomei o discurso a partir daquele ponto
e concluí o sermão; e me envergonharia de qualquer homem aqui
presente que não pudesse fazer a mesma coisa, sendo as circunstâncias
tais que me tornaram a tarefa notavelmente fácil.
Em primeiro lugar, o outro ministro era meu avó, e, em segundo
lugar, o texto era – "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto
não vem de vós; é dom de Deus". O indivíduo teria que ser um animal
mais bronco do que aquele que Balaão montou se, em tal conjuntura, não
tivesse achado algo que falar. "Pela graça sois salvos" fora comentado
como indicando a fonte da salvação.. Quem não poderia continuar,
descrevendo a cláusula seguinte, "por meio da fé", como o canal?
Ninguém teria necessidade de estudar muito para demonstrar que
recebemos a salvação por meio da fé. Contudo, naquela ocasião, tive
uma provação adicional pois, quando tinha avançado um pouco e estava
ficando aquecido para o meu trabalho, a mão de alguém bateu-me
aprovadoramente, e uma voz disse: "Está bem, está bem; diga-lhes isso
de novo, para que não o esqueçam". Imediatamente repeti a verdade e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 207
pouco depois, quando me estava tornando mais profundamente
experimental, puxaram-me gentilmente pela ponta do casaco, e o velho
cavalheiro ficou em pé na frente e disse: "Ora, o meu neto pode falar-
lhes isto em termos de uma teoria, mas eu estou aqui para dar-lhes
testemunho disto como matéria de experiência prática; sou mais velho
que ele, e devo dar-lhes meu testemunho como velho".
Daí, depois de nos dar a sua experiência pessoal, disse: "Aí, pois,
meu neto pode pregar o evangelho muito melhor do que eu, mas ele não
pode pregar um evangelho melhor, não é?" Bem, cavalheiros, facilmente
posso imaginar que se eu não possuísse um pouco de capacidade de falar
de improviso naquela ocasião, poderia ter ficado um tanto perturbado;
mas do modo como foi, o sermão me veio tão naturalmente como se
tivesse sido preparado.
A aquisição de outro idioma fornece um bom exercício para a
prática da alocução improvisada. Levado a relacionar-se com as raízes
das palavras e com as regras de oratória, e sendo compelido a notar as
diferenças das duas línguas, o homem se desenvolve gradativamente até
conhecer bem as partes do discurso, os modos, tempos e inflexões; como
um operário, familiariza-se com as suas ferramentas e as manipula como
companheiros cotidianos. Não sei de exercício melhor do que o de
traduzir tão depressa quanto possível um trecho de Virgílio ou Tácito e
depois, com reflexão, corrigir os erros. Pessoas que não conhecem coisa
melhor acham que é jogar fora todo o tempo passado sobre os clássicos,
mas se esses estudos fossem postos ao serviço do orador sacro, deveriam
ser mantidos em todas as nossas instituições colegiais.
Quem não vê que a constante comparação dos termos e expressões
idiomáticas das duas línguas só pode favorecer a facilidade de
expressão? Ademais, quem não vê que com esse exercício a mente se
capacita para apreciar refinamentos e sutilezas de significado, e assim
adquire o poder de distinguir entre coisas que diferem? – poder essencial
para um expositor da Palavra de Deus, e para um arauto da Sua verdade.
Cavalheiros, aprendam a montar e desmontar toda a maquinaria da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 208
linguagem, marquem cada dente de roda e cada roda, cada cavilha, cada
raio, e se sentirão mais seguros para dirigir a máquina, mesmo em
velocidade de expresso, se as emergências o exigirem.
Todo o que quiser adquirir esta arte precisa praticá-la. Foi
mediante lentos passos, como diz Burke, que Charles Fox tornou-se o
mais brilhante e poderoso mestre do debate que já viveu. Ele atribuía o
seu sucesso à resolução tomada quando ainda era bem jovem, de falar
bem ou mal pelo menos uma vez por noite. "Durante cinco períodos
letivos completos", costumava dizer, "eu falei todas as noites menos
uma, e apenas lamento não ter falado naquela noite também". A
princípio não podia fazê-lo para outro auditório senão às cadeiras e livros
do seu escritório, imitando o exemplo de um cavalheiro que, solicitando
admissão nesta escola, garantiu-me que durante dois anos tinha se
exercitado na pregação improvisada no seu próprio quarto. Os estudantes
que moram juntos poderiam ser de grande ajuda mútua, desempenhando
alternadamente as partes de audiência e orador, com pequena e amigável
crítica no fim de cada tentativa. A conversação também pode ser de
essencial utilidade, se for questão de princípio fazê-la sólida e edificante.
O pensamento deve estar ligado á linguagem oral, esse é o
problema; e pode ajudar um homem a solucioná-lo, se ele se esforçar
para pensar em voz alta em suas meditações privadas. Isto se me tornou
tão habitual, que acho muito útil poder, na devoção particular, orar
ouvindo a minha voz; ler em voz alta é mais benéfico para mim do que o
processo silencioso; e quando estou elaborando mentalmente um sermão,
é um alívio para mim o falar comigo mesmo conforme vão fluindo os
pensamentos. É evidente que isto só resolve a metade da dificuldade, e
vocês têm que praticar em público para dominarem a tremedeira
ocasionada pela visão dos ouvintes; mas, meio caminho é grande parte
da jornada. O bom discurso de improviso é exatamente a comunicação
de um pensador prático – homem bem informado, que medita por sua
conta e deixa que os seus pensamentos marchem através de sua boca
para o ar livre.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 209
Pensem alto quanto puderem quando estiverem sozinhos, e logo
estarão na via principal para o sucesso nesta questão. A discussão e os
debates na sala de aulas são de vital importância como um passo a mais,
e eu gostaria de exortar os irmãos mais retraídos a participarem deles. A
prática de convocá-los para falarem sobre um tópico sorteado ao acaso
de um vaso com ampla escala de temas escolhidos foi introduzida entre
vocês, e devemos recorrer a ela com mais freqüência. O que condenei
como parte do culto podemos usar livremente como exercício escolar
entre nós. Isso foi planejado para experimentar a prontidão e o domínio
próprio do indivíduo, e os que falham nisso provavelmente são tão
beneficiados como os que se saem bem, pois o conhecimento de si
mesmo pode ser tão útil para uns como a prática para outros. Irmãos, se a
descoberta de que vocês são toscos ainda na oratória os levar a estudos
mais afinados e a esforços mais resolutos, talvez seja o verdadeiro
caminho à eminência última.
Em acréscimo à prática recomendada, devo exortar cada irmão
quanto à necessidade de ser calmo e confiante. Como diz Sydney Smith,
"Muito talento é desperdiçado por falta de um pouco de coragem". Esta
não é fácil de ser adquirida pelo orador novato. Vocês, oradores
principiantes, não simpatizam com Blondin, o equilibrista? Irmãos,
vocês não se sentem às vezes, quando estão pregando, como se
estivessem andando numa corda em pleno ar, e não tremem e se
perguntam se chegarão com segurança à outra extremidade?
Às vezes, quando vocês estão fazendo floreios com aquela vara
balançante, e contemplando aquelas lantejoulas metafóricas que
esplendem de poesia sobre suas audiências, não ficam temerosos de
sempre se exporem a esses riscos de uma queda súbita, ou, deixando de
lado a figura, não se perguntam se serão capazes de concluírem a frase,
ou se acharem um verbo para o nominativo, ou um acusativo para o
verbo? Tudo depende de estarem calmos e imperturbáveis. Presságios de
fracasso e medo dos homens os arruinarão. Prossigam, confiando em
Deus, e tudo estará bem.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 210
Se vocês cometerem um erro gramatical e estiverem meio
inclinados a retroceder para corrigi-lo, logo cometerão outro, e a
hesitação os envolverá como numa rede. Deixem-me cochichar – pois
isto se destina somente aos seus ouvidos – é sempre ruim ir para trás. Se
cometerem um erro verbal, prossigam, e não lhe dêem atenção.
Quando eu estava aprendendo a escrever, meu pai me deu uma boa
regra que acredito que é igualmente útil quando se aprende a falar. Ele
costumava dizer: "Quando estiver escrevendo, se cometer um erro na
ortografia de uma palavra, ou redigir uma palavra errada, não a risque,
fazendo um borrão, mas veja como pode sem demora alterar o que ia
dizer, de maneira que se enquadre no que escreveu e não deixe vestígios
do erro". Assim, na oratória, se a frase não terminar da melhor maneira,
encerre-a doutro modo. É de bem pouco valia retroceder para corrigir,
pois assim você chama a atenção para a falha que talvez poucos tenham
notado, e você desvia a mente do assunto para a linguagem, que é a
última coisa que o pregador deve fazer.
Contudo, se o seu lapsus linguae (deslize no linguajar) for notado,
todas as pessoas de bom senso perdoarão o jovem principiante, e terão
maior admiração por você do que se agisse diferentemente, por dar
pouca importância a esses escorregões, e por impulsionar-se de todo o
coração rumo ao seu objetivo principal. Um novato na oratória pública é
como um cavaleiro não acostumado a montar; se o cavalo tropeça, ele
fica com medo de cair ou de ser lançado por cima da cabeça do animal,
ou, se este for impetuoso, fica certo de que ele fugirá. E o olhar de um
amigo, ou a observação feita por um rapazinho o fará angustiado como
se estivesse amarrado ao lombo do grande dragão vermelho.
Mas quando o homem está bem acostumado a montar, não conhece
perigos e não encontra nenhum, porque a sua coragem os impede.
Quando um orador crê, "Sou senhor da situação", normalmente o é. A
sua confiança afasta os desastres que a tremedeira com certeza
produziria. Meus irmãos, se de fato o Senhor os ordenou ao ministério,
vocês têm as melhores razões para serem ousados e calmos, pois a quem
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 211
terão que temer? Terão que entregar a mensagem do Senhor conforme
Ele os capacite e, se isso for feito, não serão responsáveis perante
ninguém mais, senão seu Mestre celestial, que não é juiz intratável.
Irmãos, vocês não entram no púlpito para luzir como oradores, ou
para gratificar as predileções dos seus ouvintes; são mensageiros do céu
e não escravos dos homens.2 Lembrem-se das palavras do Senhor a
Jeremias, e receiem temer. "Tu, pois, cinge os teus lombos, e levanta-te,
e dize-lhes tudo quanto eu te mandar; não desanimes diante deles,
porque eu farei com que não temas na sua presença." (Jeremias 1:17).
Confiem no presente socorro do Espírito Santo, e o temor do homem que
traz uma armadilha os abandonará. Quando vocês forem capazes de
sentir-se em casa no púlpito, e puderem olhar em torno e falar ao público
como irmãos falando a irmãos, então serão capazes de improvisar; não,
porém, antes disso. O acanhamento e a timidez, que têm tanta beleza em
nossos irmãos mais jovens, serão sucedidas pela verdadeira modéstia que
se esquece de si, e não se preocupa tanto com a sua reputação como com
que Cristo seja pregado da maneira mais enérgica possível.
Para chegar ao santo e benéfico exercício da alocução improvisada,
o ministro cristão precisa cultivar uma confiança singela como de
criança na assistência imediata do Espírito Santo. "Creio no Espírito
Santo", diz o Credo. É de temer-se que muitos não fazem deste um
verdadeiro artigo de fé. Ir para cima e para baixo a semana inteira
perdendo tempo, e depois lançar-se ao amparo do Espírito, é presunção
ímpia, é tentativa de fazer do Senhor um ministro da nossa preguiça e
auto-complacência; mas numa emergência o caso é muito diferente.
Quando um homem se vê inevitavelmente chamado para falar sem
nenhum preparo, pode com a mais plena confiança entregar-se ao
2
"A princípio a minha maior solicitude costumava ser quanto àquilo que eu acharia para dizer; espero
que agora seja mais quanto a que não fale em vão. Pois o senhor não me enviou para cá para eu
conseguir caracterizar-me como orador sempre pronto, mas para ganhar almas para cristo e edificar
o Seu povo. Muitas vezes quando começo fico indeciso sobre como prosseguir, mas insensivelmente
uma após outra as coisas se oferecem, e, em geral, as partes melhores e mais úteis do meu sermão
ocorrem como algo novo enquanto prego." – John Newton, Letters to a Student in Divinity.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 212
Espírito de Deus. Está fora de dúvida que a mente divina entra em
contato com o intelecto, ergue-o para cima da sua fraqueza e confusão,
dá-lhe elevação e força, e o capacita a compreender e expressar a
verdade divina de maneira muito superior às suas capacidades
desassistidas.
À semelhança dos milagres, essas intervenções não se destinam a
substituir os nossos esforços, nem a afrouxar a nossa diligência, mas
constituem a assistência do Senhor com que podemos contar numa
emergência. Seu Espírito estará sempre conosco, mas especialmente
quando estivermos sob rigorosa pressão de serviço. Por zelosamente que
os admoeste a não falarem puramente de improviso mais do que se lhes
imponha a obrigação, enquanto não estiverem um tanto amadurecidos no
ministério, contudo os exorto a falar desse modo sempre que compelidos
a fazê-lo, crendo que naquele exato momento ser-lhes-á dado o que
haverão de falar.
Se vocês forem bastante felizes para adquirir a capacidade de falar
de improviso, rogo que se lembrem de que poderão perdê-la em pouco
tempo. Levei este golpe em minha própria experiência, e me refiro a isto
porque é a melhor demonstração que lhes posso fazer. Se por dois
domingos sucessivos fago o meu esboço um pouco mais longo e mais
completo que de costume, vejo na terceira ocasião que preciso dele mais
longo ainda; e também observo que, se ocasionalmente me apóio um
pouco mais na recordação dos meus pensamentos e não sou tão
improvisador como costumava ser, há um desejo direto e mesmo uma
crescente necessidade de composição prévia.
Se um homem começa a andar com uma bengala só por capricho,
logo virá a depender duma bengala; se vocês concedem óculos aos seus
olhos, depressa estes os exigirão como acessório permanente; e se vocês
andassem de muletas durante um mês, no fim desse período elas seriam
quase necessárias para os seus movimentos, embora naturalmente as suas
pernas fossem firmes e sadias como as de qualquer pessoa. Maus usos
criam natureza má. Vocês têm que praticar continuamente a alocução
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 213
improvisada, e se para conseguir oportunidades convenientes tiverem
que usar muitas vezes da palavra em choupanas, nas salas de aulas das
nossas aldeias, ou a dois ou três à beira do caminho, o seu proveito será
conhecido de todos os homens.
Podem poupar-se de muita surpresa e desgosto se forem prevenidos
de que haverá muitas variações em seu poder de comunicação. Hoje a
sua língua pode ser a caneta de um ágil escritor, e amanhã os seus
pensamentos e as suas palavras podem estar igualmente congelados. Os
seres vivos são sensíveis, e são afetados por uma variedade enorme de
forças; só sobre as coisas puramente mecânicas se podem fazer cálculos
com absoluta certeza. Não estranhem, irmãos, se freqüentemente
acharem que fracassaram, nem se admirem se finalmente evidenciar-se
que nessas ocasiões obtiveram o melhor sucesso. Não esperem tornarem-
se auto-suficientes; nenhum hábito ou exercício poderá torná-los
independentes da assistência divina; e se pregarem bem quarenta e nove
vezes quando solicitado à última hora, isto não escusa a auto-confiança
na qüinquagésima vez, pois se o Senhor os abandonar, vocês estarão em
apuros. Suas variáveis disposições de fluência e de dificuldade tenderão,
com a graça de Deus, a mantê-los humildemente elevando o olhar ao
Forte em busca de forças.
Acima de todas as coisas, que cada um cuide para que a sua língua
não ultrapasse o seu cérebro. Guardem-se contra uma fluência débil, uma
prosa fanfarrona, uma facilidade para dizer coisa nenhuma. Que prazer
ouvir falar do tombo de um irmão que tinha a presunção de poder
manter-se com a sua própria capacidade quando na realidade não tinha
nada para dizer! Oxalá essa consumação sobrevenha a todos os que
erram naquela direção. Meus irmãos, é um dom horrível de se possuir, o
de poder dizer coisa nenhuma numa extensão extrema. Absurdo
alongado, sensaboria parafrástica, banalidade e fanfarronada, são
bastante comuns e são o escândalo e a vergonha da improvisação.
Mesmo quando sentimentos sem valor são expressos lindamente e
verbalizados com primor, de que valem? Do nada, nada provém. A
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 214
alocução improvisada sem estudo é nuvem sem chuva, poço sem água,
dom fatal, que ofende igualmente ao que o possui e ao seu rebanho.
Certos homens têm-me solicitado admissão nesta Escola, admissão que
lhes tenho negado porque, sendo completamente destituídos de instrução
e de senso da sua ignorância, a sua limitada vaidade e a sua volubilidade
enorme fizeram deles sujeitos perigosos para o treinamento. Alguns até
me fizeram lembrar a serpente do Apocalipse que lançou água pela boca
numa torrente a tal ponto abundante que a mulher por pouco não foi
arrastada por ela.
Recebendo corda como relógios, vão falando, falando, falando, até
acabar a corda, e bem-aventurado aquele que menos relações mantém
com eles. Os sermões desses pregadores são como Snug, na parte do
marceneiro quando fez o papel do leão. "Você pode fazer isso
improvisadamente, pois nada fará senão rugir." É melhor perder, ou
antes nunca possuir, o dom da comunicação improvisada, do que
degradar-nos reduzindo-nos a simples produtores de ruído,
representações vivas do que Paulo chama de metal que soa ou sino que
retine.
Eu poderia ter dito muito mais se estivesse estendido o assunto
àquilo que é geralmente denominado pregação improvisada, isto é, o
preparo do sermão à medida que os pensamentos fluem e deixando para
encontrar as palavras durante a comunicação da mensagem; mas este é
outro assunto e, embora vista como grande conquista por alguns, é, creio
eu, um requisito indispensável para o púlpito, e de modo nenhum
constitui um luxo dos gênios apenas; mas disto falaremos noutra ocasião.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 215
AS CRISES DE DESÂNIMO DO MINISTRO

Como está registrado que Davi, no calor da batalha, abateu-se,


assim se pode escrever de todos os servos do Senhor. Crises de
depressão acometem a maioria de nós. Animados como possamos ser
normalmente, a intervalos temos que ser derrubados. O forte nem sempre
está vigoroso, o sábio nem sempre é expedito, o bravo nem sempre é
corajoso, e o alegre nem sempre está feliz. Pode ser que existam aqui e
ali homens de aço a quem o ralar e o rasgar não causam nenhum dano
perceptível, mas por certo a inércia desgasta mesmo a estes; e quanto aos
homens comuns, o Senhor sabe e os faz saber que não passam de pó.
Sabendo pela mais penosa experiência o que significa uma
profunda depressão de espírito, sendo visitado por ela freqüentemente e a
intervalos não demorados, achei que poderia ser consolador para alguns
dos meus irmãos se partilhasse meus pensamentos sobre isso para que os
mais jovens não imaginem que algo estranho lhes acontece quando
tomados em alguma ocasião pela melancolia; e para que os mais
deprimidos saibam que a pessoa sobre quem o sol está brilhando
jubilosamente nem sempre andou na luz.
Não é necessário provar com citações de biografias de ministros
eminentes que a maioria deles, senão todos, passou por períodos de
terrível prostração. A vida de Lutero poderia ser suficiente para dar mil
exemplos, e ele não era de modo nenhum do tipo mais fraco. Seu espírito
grandioso esteve muitas vezes no sétimo céu da exultação, e com igual
freqüência às bordas do desespero. Nem mesmo seu leito de morte ficou
livre de temporais, e ele soluçou no seu último sono como um fatigado
menino grande. Em vez de multiplicar casos, demoremos nas razões
pelas quais estas coisas são permitidas. Por que será que os filhos da luz
andam às vezes em trevas espessas? Por que será que os arautos da
alvorada às vezes se acham numa noite que vale por dez?
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 216
Não será primeiro porque são homens? Sendo homens, estão
enquadrados na fraqueza e são herdeiros da tristeza. Com acerto disse o
sábio nos textos apócrifos de Eclesiástico 40:1-5,8:
"Grande fardo foi imposto a todos os homens, e um pesado jugo posto
sobre os filhos de Adão, desde o dia em que eles saem do ventre da mãe
até ao dia da sua sepultura (em que eles entram) no seio da mãe comum de
todos. Os seus cuidados, os sobressaltos do coração, a apreensão do que
esperam, e o dia em que tudo acaba (perturbam-nos a todos), desde o que
está sentado sobre um trono de glória, até àquele que jaz abatido na terra e
na cinza; desde aquele que está vestido de púrpura e traz coroa, até ao que
se cobre de linho cru. Tudo é furor, inveja, inquietação, perplexidade, temor
da morte, rancor obstinado e contendas. Isto acontece a todos os viventes,
desde os homens até aos animais, mas para os ímpios é sete vezes pior".
A graça nos protege de grande parte disso, mas devido não termos
maior porção da graça, continuamos sofrendo até males que poderiam
ser evitados. Mesmo sob a economia da redenção, é mais que evidente
que temos que suportar debilidades; de outra forma não haveria
necessidade do prometido socorro do Espírito nessas circunstâncias. É
preciso que às vezes enfrentemos durezas. Aos homens de bem foram
prometidas tribulações neste mundo, e os ministros podem esperar maior
parte do que outros, para aprenderem a simpatizar com o sofredor povo
do Senhor, e assim possam ser aptos pastores de um rebanho enfermo.
Poderiam ter sido enviados espíritos desencarnados para
proclamarem a Palavra, mas não teriam penetrado os sentimentos dos
que, estando neste corpo, gemem deveras, sobrecarregados que estão; os
anjos poderiam ter sido ordenados evangelistas, mas os seus atributos
celestiais os teriam incapacitados para terem compaixão dos ignorantes;
poderiam ter sido modelados homens de mármore, mas a sua natureza
impassível seria um sarcasmo para a nossa fragilidade e uma zombaria
das nossas necessidades. Foi a homens, e homens sujeitos às paixões
humanas, que o sapientíssimo Deus escolheu para serem os Seus vasos
de bênçãos; daí estas lágrimas, estas perplexidades, estas quedas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 217
Além disso, na maioria somos, de um modo ou de outro,
fisicamente defeituosos. Aqui e ali encontramos um ancião que não se
lembra de que alguma vez tenha sido posto de lado. Mas a grande
maioria de nós trabalha com uma ou outra forma de deficiência do corpo
ou da mente. Certas doenças do corpo, principalmente as relacionadas
com os órgãos do aparelho digestivo, o fígado e o baço, são tremendas
fontes de desânimo, e, lute o homem quanto puder contra tais
influências, haverá momentos e circunstâncias em que por algum tempo
o vencerão. Quanto às doenças mentais, haverá alguém que seja
inteiramente são? Não estamos todos um pouco fora do equilíbrio?
Mentes há que parecem ter um matiz sombrio essencial á sua própria
individualidade. Pode se dizer deles:
"A melancolia os marcou para si"; mentes finas aliás, e governadas
pelos princípios mais nobres, mas muito inclinadas a olvidar o alvor da
prata e a lembrar somente a nuvem. Homens assim podem cantar com o
poeta:
"Partido o coração, harpas desafinadas,
por música, suspiros e gemidos,
são nossas canções para a melodia das lachrymae,
que a pele e ossos estamos reduzidos"
Thomas Washbourne.

Estas enfermidades podem não ser infensas à carreira do homem de


especial valor; pode até ser que lhe sejam impostas pela sabedoria divina
como necessária habilitação para o seu peculiar curso de serviço.
Algumas plantas devem as suas qualidades medicinais ao pântano em
que crescem; outras ás sombras de que dependem para florescer. Há
frutos preciosos que vicejam graças à lua, bem como graças ao sol. Os
barcos precisam de vela e também de lastro; puxar uma carreta não é
difícil quando a estrada desce morro abaixo. Provavelmente em muitos
casos foi a dor que desenvolveu o gênio, dando caga à alma que de outra
forma poderia ter ficado a dormir como um leão em sua cova. Não fosse
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 218
por sua asa quebrada, alguns poderiam ter-se perdido nas nuvens, até
mesmo alguns daqueles pombos seletos que agora trazem nas suas bocas
o ramo de oliveira e mostram o caminho para a arca.
Mas quando no corpo e na mente há causas que predispõem ao
abatimento do espírito, não é para espantar-nos se em momentos
tenebrosos o coração sucumba a elas; o que causa espanto em muitos
casos é – e se se pudesse pôr por escrito a vida interior, os homens
poderiam ver que é assim – como alguns ministros não largam do seu
trabalho de jeito nenhum, e ainda trazem um sorriso no rosto. A graça
continua tendo os seus triunfos, e a paciência os seus mártires; mártires
em nada menos dignos de honra porque as chamas atingem os seus
espíritos mais do que os seus corpos, e a sua fogueira é invisível aos
olhos humanos. Os serviços ministeriais de Jeremias são tão aceitáveis
como os de Isaías, e mesmo o rabugento Jonas é um verdadeiro profeta
do Senhor, como Nínive pôde bem perceber.
Não desprezem os coxos, pois está escrito que eles pegam a presa;
honrem, porém, aqueles que, em seu desalento, prosseguem ainda. Lia,
de olhos tenros ou baços, foi mais frutífera do que a formosa Raquel, e
as aflições de Ana foram mais divinas do que a vanglória de Penina.
"Bem-aventurados os que choram", disse o Varão de Dores, e que
ninguém os repute diferentemente quando as suas lágrimas vêm
temperadas pela graça. Temos o tesouro do evangelho em vasos de
barro, e se no vaso houver um defeito aqui e ali, que ninguém se espante.
Quando empreendemos a nossa obra fervorosamente, tomamo-nos
vulneráveis à depressão. Quem pode agüentar o peso das almas sem às
vezes afundar no pó? As entranhadas aspirações pela conversão dos
homens, se não plenamente satisfeitas (e quando são?), consomem de
angústia e desapontamento a alma. Ver os interessados irem por água
abaixo, os piedosos se esfriarem, os crentes professos abusarem dos seus
privilégios, e os pecadores ficarem mais descarados – ver estas coisas
não é suficiente para esmagar-nos contra o solo? O Reino não vem como
queremos, o venerável Nome não é santificado como desejamos, e por
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 219
isso temos que chorar. Como podemos sentir-nos doutro modo se não
entristecidos, enquanto os homens não crêem em nossa mensagem, e não
se revela o braço do Senhor? Todo trabalho mental tende a cansar-nos e
a deprimir-nos, pois o muito estudo enfado é da carne; mas o nosso
trabalho é mais que mental – é do coração, é labuta do íntimo da nossa
alma.
Quantas vezes, nas noites do dia do Senhor, nós nos sentimos como
se a vida se nos esvaísse por completo! Depois de despejar as nossas
almas sobre os nossos ouvintes, sentimo-nos como um jarro vazio que
uma criança poderia quebrar. Provavelmente, se fôssemos mais
semelhantes a Paulo, e velássemos pelas almas numa proporção mais
nobre, saberiam.os melhor o que é ser consumido pelo zelo da casa do
Senhor. É nosso dever e nosso privilégio esgotar as nossas vidas por
Jesus. Não nos compete sermos espécimes vivos de homens em fina
conservação, mas, sim, sacrifícios vivos, destinados a serem
consumidos; cabe-nos gastar e gastar-nos, e não banhar-nos em alfazema
e mimar a nossa carne. Esse trabalho de alma que um fiel ministro
realiza produz ocasionais períodos de exaustão, quando o coração e
carne falham. As mãos de Moisés ficaram pesadas na intercessão, e
Paulo clamou: "E para estas coisas quem é idôneo?" Mesmo João Batista
parece ter sofrido suas crises de desânimo. e os apóstolos ficaram cheios
de assombro e tiveram angustioso medo.
A nossa posição na igreja também conduz a isto. Um ministro
plenamente habilitado para o seu trabalho normalmente será em si
mesmo um espírito que está acima, além e à parte dos demais. O mais
afeiçoado dentre o seu povo não pode penetrar os seus pensamentos,
cuidados e tentações peculiares. Nas fileiras militares os homens andam
ombro a ombro, com muitos companheiros, mas conforme o oficial sobe
na hierarquia, os homens da sua posição vão sendo cada vez em menor
número. Há muitos soldados, poucos capitães, menos coronéis, mas
somente um comandante-em-chefe. Assim, em nossas igrejas, o homem
que o Senhor eleva como líder vem a ser, no mesmo grau em que é
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 220
homem superior, homem solitário. Os picos de montanhas ficam
solenemente isolados e falam a sós com Deus quando Ele visita as suas
terríveis soledades. Os homens de Deus que se elevam acima dos seus
semelhantes mantendo mais íntima comunhão com as realidades
celestiais, em seus momentos de maior fraqueza acham falta da simpatia
humana. Como seu Senhor no Getsêmani, buscam em vão receber
conforto dos discípulos que dormem ao seu redor; choca-os a apatia do
seu pequeno grupo de irmãos, e voltam para a sua agonia secreta com
uma carga muito mais pesada a premi-los, porque encontram dormindo
os seus mais caros companheiros.
Ninguém senão quem a suportou conhece a solidão de uma alma
que ultrapassou os seus irmãos, em dedicação ao Senhor dos Exércitos;
ela não se atreve revelar-se, temendo que os homens chamem-na de
loucura; não consegue ocultar-se, pois um fogo queima seus ossos.
Somente diante do Senhor ela acha repouso. A comissão do Senhor
enviando os Seus discípulos dois a dois põe de manifesto que Ele sabia o
que havia nos homens; mas, para um homem como Paulo parece que não
se achou parceiro. Barnabé, Silas, Lucas eram montes baixos demais
para poderem conversar com uma sumidade tipo Himalaia como o
apóstolo dos gentios. Esta solidão que, se não me engano muitos dos
meus colegas experimentam, é fértil fonte de depressão; e os nossos
encontros fraternais de ministros, e o cultivo de santo intercâmbio com
as mentes afins, com a bênção de Deus nos ajudarão grandemente a
escapar do lago.
Pouca dúvida pode haver de que os hábitos sedentários tendem a
produzir desânimo em alguns temperamentos. Burton, em sua Anatomy
of Melancholy (Anatomia da Melancolia), tem um capítulo sobre esta
causa do abatimento; e, citando um dentre miríades de autores de cuja
contribuição se serve, diz:
"Os estudantes negligenciam os seus corpos. Os outros homens olham
por suas ferramentas: o pintor lava os seus pincéis; o ferreiro cuida do
malho, da bigorna e da forja; o lavrador conserta os ferros do seu arado e
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 221
afia o seu machado, se estiver cego: o falcoeiro ou caçador terá especial
cuidado dos seus falcões, cães, cavalos etc.; o músico aperta e desaperta
as cordas do seu alaúde, afinando-o – somente os estudiosos negligenciam
o instrumento (quero dizer, os seus cérebros e os seus espíritos) que usam
diariamente."
Disse bem Lucan: "Não torça demais o cordão para que não
arrebente". Ficar sentado muito tempo numa só posição, com os olhos
fitos num livro, ou movendo uma caneta, é, em si mesma, fatigante à
natureza; mas, acrescentem-se a isto um quarto mal ventilado, um corpo
que passou muito tempo sem exercício muscular, e um coração
sobrecarregado de preocupações, e teremos todos os elementos
necessários para arranjar um fervente caldeirão de desespero,
principalmente nos sombrios meses de cerração:
"Quando o dia é envolto num manto,
quando a mata insalubre goteja,
e a folha se incrusta na lama".
Se um homem for de natureza alegre como um pássaro, dificilmente
poderá manter-se assim ano após ano contra esse processo suicida. Fará
do seu escritório uma prisão e de seus livros carcereiros de um presídio,
enquanto do lado de fora da sua janela a natureza acena-lhe com a vida
saudável e chama-o para a alegria. Aquele que esquece o zumbir das
abelhas na urze, o arrulho dos pombos selvagens na floresta, o canto dos
pássaros no arvoredo, o ondular do regato por entre o junco, e os
lamentos do vento entre os pinheiros, não tem por que se espantar caso o
seu coração olvide cantar e sua alma fique pesarosa. Passar um dia
respirando o ar fresco das montanhas, ou fazer uma excursão na umbrosa
tranqüilidade das copadas faias, servirá para varrer as teias de aranha das
cabeças cheias de vincos dos nossos fatigados ministros que já andam
meio mortos. Uma tragada de ar marinho, ou uma firme caminhada
contra o vento, não dará graça à alma, que é o que há de melhor, mas
dará oxigênio ao corpo, coisa que vem em segundo lugar.
"Coração pesaroso em ar pesado está;
todo vento que sobe, a angústia expulsará."
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 222
As samambaias e os coelhos, os ribeiros, as trutas, os abetos e os
esquilos, as primaveras e as violetas, o terreiro da fazenda, o feno recém-
colhido, e os lúpulos fragrantes – todas essas coisas são o melhor
remédio para os hipocondríacos, os mais seguros tônicos para os
decadentes, a melhor restaurarão dos que sofrem estafa. Por falta de
oportunidade, ou de inclinação, estes grandes remédios são
negligenciados, e o estudante vai se tornando uma vítima auto-imolada.
As ocasiões mais propícias para as crises de desânimo, na medida
em que eu as tenho experimentado, podem ser resumidas num breve
catálogo. Dentre elas devo mencionar em primeiro lugar a hora de
grande sucesso. Quando um desejo há muito tempo acalentado
finalmente se cumpre, tendo Deus sido grandemente glorificado por
nosso intermédio, havendo-se alcançado grande triunfo, então estamos
sujeitos a desfalecer. Talvez se pudesse imaginar que, em meio a favores
especiais, a nossa alma pairaria nas alturas do êxtase e se regozijaria com
júbilo indescritível, mas o que se dá geralmente é o inverso. Raramente o
Senhor expõe os Seus guerreiros aos perigos da exultação pela vitória.
Ele sabe que poucos deles podem suportar um teste desses e, portanto,
quebra-lhes a taça com rigor. Vejam Elias depois de ter caído fogo do
céu, depois de terem sido mortos os sacerdotes de Baal, depois que a
chuva alagou a terra árida! Para ele nada de notas de música de
autocomplacência, nada de pavonear-se como um conquistador em
roupagens de vitorioso. Ele foge de Jezabel, e, sentindo a repulsão do seu
distúrbio intenso, suplica pedindo para morrer. Aquele que nunca haveria
de ver a morte anseia pelo repouso do sepulcro, como César, o monarca
do mundo, em seus momentos de pesar chorava como uma menina
doente.
A pobre natureza humana não pode agüentar tensões como as que
advém das vitórias celestiais; tem que sobrevir uma reação. O excesso de
alegria ou de emoção tem que ser pago com depressões subseqüentes.
Enquanto uma provação dura, a força é igual à emergência; mas quando
passa, a fraqueza natural reivindica o direito de mostrar-se. Sustentado
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 223
secretamente, Jacó pode lutar a noite inteira, mas tem que coxear de
manhã, depois de concluída a peleja, para que não se gabe além da
medida. Paulo pode ser arrebatado ao terceiro céu e ouvir coisas
indizíveis, mas um espinho na carne, um mensageiro de Satanás para
esbofeteá-lo, tem que ser a seqüela inevitável. Os homens não podem
suportar felicidade sem mistura; mesmo os bons homens não estão
habilitados ainda para terem "suas frontes cingidas de lauréis e murta",
sem que sofra secreta humilhação para mantê-los no lugar próprio.
Arrancados do solo em turbilhão por um avivamento, levados para as
alturas pela popularidade, exaltados pelo sucesso na conquista de almas,
seríamos como a palha que o vento dispersa, se a disciplina da graça e da
misericórdia não quebrasse as naves da nossa vanglória com poderoso
vento oriental, e não nos fizesse ir a pique, desnudos e desamparados,
lançando-nos na Rocha dos Séculos.
Antes de alguma grande realização, certa medida da mesma
depressão geralmente ocorre. Divisando as dificuldades que se nos
antepõem, os nossos corações sucumbem dentro de nós. Os filhos de
Enaque se agigantam diante de nós, e somos como gafanhotos aos
nossos próprios olhos na presença deles. As cidades de Canaã são
muradas até aos céus, e quem somos nós para esperar capturá-las?
Estamos dispostos a largar as armas e a fugir o mais depressa possível.
Nínive é uma grande cidade, e deveríamos fugir para Társis, e não ir ao
encontro das suas ruidosas multidões. Já procuramos um navio que nos
leve tranqüilamente para longe do terrível cenário, e só o medo do
temporal refreia os nossos covardes passos. Foi esta a minha experiência
quando no começo me tornei pastor em Londres.
O meu sucesso me aterrorizou; e a idéia da carreira que parecia
abrir-se, muito longe de entusiasmar-me, lançou-me às maiores
profundezas, das quais pronunciei o meu miserere e não achei lugar para
cantar gloria in excelsis. Quem era eu para continuar liderando tão
grande multidão? Queria ir para a minha obscuridade aldeã, ou emigrar
para a América e encontrar um ninho no ermo onde fosse idôneo para as
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 224
coisas que se exigissem de mim. Mas precisamente aí a cortina estava se
levantando sobre a obra da minha vida, e temi o que poderia sobrevir. Eu
espero que não tenha sido falta de fé, mas eu estava temeroso e
completamente tomado pelo senso da minha inépcia. Estava com medo
de uma obra que a Providência repassada da graça divina preparava para
mim. Senti-me como simples criança, e tremi quando ouvi a voz que
dizia: "Levanta-te, malha as montanhas, e faz delas palha".
Esta depressão me sobrevém sempre que o Senhor está preparando
maior bênção para o meu ministério; a nuvem é negra antes de romper-
se, e produz escuridão antes de entregar o seu dilúvio de misericórdia. A
depressão passou a ser para mim como um profeta rusticamente vestido,
um João Batista, anunciando a próxima vinda de bênçãos mais ricas do
meu Senhor. Assim pensaram homens muito melhores. O brunimento do
vaso aparelha-o para uso do Senhor. A imersão no sofrimento precede o
batismo do Espírito Santo. O jejum abre o apetite para o banquete. O
Senhor se revela no interior do deserto, enquanto o Seu servo cuida das
ovelhas e o aguarda em solitário temor. O deserto é o caminho para
Canaã. O fundo vale leva para a montanha altaneira. A derrota é
preparativo para a vitória. O corvo é enviado antes da pomba. A hora
mais escura da noite precede o raiar do dia. Os marinheiros descem às
profundezas, mas a onda seguinte os faz subir aos céus; suas almas se
derretem de angústia antes de serem trazidos por Ele ao porto desejado.
Em meio a uma longa tirada de trabalho ininterrupto, pode-se
achar a mesma aflição. Não se pode dobrar o arco o tempo todo sem
temer quebrá-lo. O repouso é necessário à mente tanto quanto o sono ao
corpo. Nossos sabbaths – nossos domingos – são os nossos dias de
trabalho, e se não descansarmos nalgum outro dia, ficaremos prostrados.
Mesmo a terra precisa ficar sem lavradio e ter os seus períodos sabáticos;
assim conosco. Daí a sabedoria e compaixão do nosso Senhor, quando
disse aos Seus discípulos: "Vinde vós aqui à parte, a um lugar deserto, e
repousai um pouco". O quê?! Quando o povo está desfalecido? Quando
as multidões estão como ovelhas nas montanhas sem pastor? E Jesus fala
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 225
de descanso? Quando os escribas e fariseus, quais lobos vorazes, rondam
o rebanho, leva Ele os Seus discípulos para um tranqüilo lugar de
repouso? Algum zelote queimando como ferro em brasa denuncia esse
atroz esquecimento das presentes e prementes necessidades? Deixe-o
enfurecer em sua estultícia!
O Mestre sabe de algo melhor do que esgotar os Seus servos e
extinguir a luz de Israel. O tempo de repouso não é tempo perdido. É
economia juntar novas forças. Vejam o ceifeiro no dia de verão, com
tanto que ceifar antes de pôr-se o sol. Faz pausa em seu labor. É
preguiçoso? Busca a sua pedra e começa a esfregá-la para cima e para
baixo em sua foice, soando "roque-froque, roque-froque, roque-froque".
Essa música é ociosa? Estará ele desperdiçando preciosos momentos?
Quanto poderia colher durante o tempo que passa tocando aquelas notas
na lâmina da foice!
Mas ele está afiando a ferramenta, e conseguirá muito mais quando
tornar a por força naqueles longos movimentos que fazem a erva cair
prostrada em fiadas diante dele. Exatamente assim uma pequena pausa
prepara a mente para prestação de maior serviço à boa causa. Os
pescadores têm que consertar as suas redes, e de vez em quando nós
temos que reparar o nosso desgaste mental e pôr o nosso maquinismo em
ordem para serviços futuros. Mover o remo dia a dia, como o escravo das
galés que não conhece dia de descanso, não presta para os mortais. A
corrente que toca o moinho corre, e corre sempre, sem parar, mas nós
necessitamos ter nossas pausas e nossos intervalos.
A quem pode ajudar ficar sem fôlego quando se continua a corrida
sem interrupção? Mesmo os animais de carga devem ser deixados no
pasto ocasionalmente; o próprio mar faz pausa na baixa-mar e na
preamar; o solo guarda o sábado dos meses hibernais; e o homem, ainda
quando elevado à posição de embaixador de Deus, ou descansa ou
desfalecerá; ou limpa a sua lâmpada, ou terá luz fraca; ou reabastece a
sua energia, ou ficará velho prematuramente. É sábio tirar férias
ocasionais. Na contagem final, faremos mais, fazendo menos de vez em
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 226
quando. Seguir no trabalho mais e mais, para sempre, sem recreação,
pode servir para os espíritos emancipados deste "barro pesado", mas
enquanto estivermos neste tabernáculo, temos que uma vez ou outra
gritar, alto!! e servir ao Senhor mediante santa inação e consagrado lazer.
Que nenhuma tenra consciência duvide da legitimidade de deixar o
serviço ativo por algum tempo, mas aprenda com a experiência de outros
a necessidade e o dever de fazer oportuno repouso.
Um golpe esmagador às vezes deixa o ministro muito abatido. O
irmão em que mais se confiava torna-se um traidor. Judas levanta o
calcanhar contra o homem que confiava nele, e o coração do pregador
lhe falha na hora. Todos nós estamos prontos demais para ver uma arma
carnal, e dessa propensão surgem muitas das nossas tristezas. O golpe é
igualmente demolidor quando um honrado e estimado irmão se rende a
alguma tentação, e leva à desgraça o santo nome pelo qual era chamado.
Qualquer coisa é melhor do que isto. Isto leva o ministro a ansiar por
uma cabana em algum vasto deserto onde possa ocultar a cabeça para
sempre, e não ouvir mais as zombarias blasfemas dos ímpios. Dez anos
de trabalho não tiram tanto da vida como o que perdemos em poucas
horas por causa de Aitofel, o traidor, ou de Demas, o apóstata. As
contendas, também, e as divisões, as calúnias e as críticas tolas, muitas
vezes prostram santos homens e os fazem ir "como com uma espada nos
ossos". As palavras duras ferem profundamente certas mentes delicadas.
Muitos dos melhores ministros, pela própria espiritualidade do seu
caráter, são excessivamente sensíveis – sensíveis demais para um mundo
como este. "Um coice que mal move um cavalo, mata um bom teólogo."
Pela experiência a alma enrijece-se para os rudes golpes que são
inevitáveis em nossa guerra; mas, no início, essas coisas nos abalam
completamente e nos mandam para casa envoltos no horror de grandes
trevas. As provações de um verdadeiro ministro não são poucas, e as que
são causadas por crentes professos ingratos são mais duras de agüentar
do que os mais grosseiros ataques de inimigos confessos. Oxalá nenhum
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 227
homem que anda em busca de tranqüilidade mental e de quietude na vida
entre no ministério; se o fizer, fugirá dele desgostoso.
A poucos toca passar pelo horror de densas trevas como o que me
coube experimentar depois do deplorável incêndio ocorrido no Teatro
Musical de Surrey. Senti-me oprimido além da conta e fora dos limites
por um enorme fardo de miséria. O tumulto, o pânico, as mortes,
estiveram dia e noite diante de mim e tornaram minha vida uma carga.
Então cantei em meu pesar:
"O tumulto dos meus pensamentos
apenas aumentou minha aflição;
fana-se o espírito, e fica desolado
e débil o meu pobre coração".
Desse pesadelo de terror fui despertado num momento pela
abençoada aplicação à minha alma do texto: "Deus com a sua destra o
elevou". O fato de que Jesus continua sendo grandioso, sofram os Seus
servos o que sofrerem, conduziu-me de volta à razão calma e à paz. Se
tão terrível calamidade sobrevier a um dos meus irmãos, oxalá tenha
paciente esperança e aguarde pela salvação de Deus.
Quando as aflições se multiplicam, e os desencorajamentos se
seguem uns aos outros em longa sucessão, como mensageiros de Jó, daí,
também, em meio à perturbação da alma ocasionada pelas más notícias,
o desânimo despoja o coração de toda a sua paz. O constante gotejar
dissolve pedras, e as mentes mais bravias sentem-se corroídas pelas
repetidas aflições. Se um guarda-comida escassamente suprido é
provação agravada pela doença da esposa ou pela perda de um filho, e se
as observações nada generosas dos ouvintes vêm seguidas pela oposição
dos presbíteros e pela frieza dos membros da igreja, então, como Jacó,
somos capazes de lamentar: "Todas estas coisas vieram sobre mim".
Quando Davi retornou a Ziclague e viu que a cidade fora queimada, os
seus bens foram saqueados, suas esposas foram raptadas, e as suas
próprias tropas estavam prontas para apedrejá-lo, lemos: "Davi se
reanimou no Senhor seu Deus". E foi bom para ele agir assim pois, do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 228
contrário, teria desfalecido se não cresse que veria a bondade do Senhor
na terra dos viventes.
Angústias acumuladas aumentam o peso umas das outras; dão-se as
mãos e, como bandos de salteadores, destroem brutalmente o nosso
conforto. Onda após onda é trabalho duro para o nadador mais vigoroso.
O lugar em que dois mares se encontram força demais a quilha mais
navegável. Se houvesse uma pausa sistemática entre as bofetadas da
adversidade, o espírito ficaria prevenido; mas quando vêm súbita e
pesadamente, como pancadas de saraiva grossa, bem pode acontecer que
o peregrino fique aterrorizado. O último grama da carga quebranta o
lombo do camelo, e quando esse último grão é lançado sobre os nossos
lombos, por que espantar-nos se por um pouco de tempo ficamos prontos
para render o espírito?!
Este mal também nos atinge sem que saibamos a razão, caso em
que é a coisa mais difícil eliminá-lo. Não se pode arrazoar com
depressão desmotivada. Tampouco pode a harpa de Davi encantá-la e
expulsá-la com os seus suaves argumentos. É como lutar com o
nevoeiro, enfrentar esta situação informe, indefinível e trevosa de
desamparo. Nem a gente mesmo tem dó de si neste caso, porque parece
irrazoável, e até pecaminoso, ficar angustiado sem causa evidente; e,
todavia, o homem está deveras angustiado, no mais profundo do seu
espírito. Se os que se riem dessa melancolia apenas sentissem por uma
hora a sua dor, o riso deles seria silenciado pela compaixão. Uma
disposição resoluta poderia talvez sacudi-la de nós, mas onde
poderíamos achar resolução quando todo o ser está frouxo?
O médico e o pastor podem unir as suas habilidades nesses casos, e
ambos se vêem de mãos ocupadas, e mais que ocupadas. O ferrolho de
metal que tão misteriosamente tranca a porta da esperança e mantém os
nossos espíritos em tétrica prisão, requer mão celestial que o force a
abrir-se; e quando se vê essa mão, clamamos com o apóstolo: "Bendito
seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e
o Deus de toda a consolação; que nos consola em toda a nossa
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 229
tribulação, para que também possamos consolar os que estiverem em
alguma tribulação, com a consolação com que nós mesmos somos
consolados de Deus" (2 Coríntios 1.3-4). É o Deus de toda a consolação
que pode:
"Com doce e esquecido antídoto varrer do
pobre peito o perigoso entulho
que pesa no coração".
Simão afunda enquanto Jesus não o toma pela mão. O demônio no
interior do ser rasga e fere a pobre criança enquanto a palavra de
autoridade não lhe ordena que saia dela. Quando nos dominam horríveis
temores, e nos vemos prostrados por intoleráveis demônios da noite, só
precisamos que surja o Sol da Justiça, e os males gerados em nossas
trevas serão expulsos; entretanto, nada menos que isto porá em fuga o
pesadelo da alma. Timothy Rogers, autor de um tratado sobre a
melancolia, e Simon Browne, escritor de alguns hinos notavelmente
belos, experimentaram em seus próprios casos como é vão o socorro do
homem, se o Senhor retirar a luz da sua alma.
Se se perguntar por que tantas vezes os servos do Rei Jesus têm que
atravessar o Vale da Sombra da Morte, a resposta não está longe. Tudo
isso promove o modo de agir do Senhor, que se resume nestas palavras:
"Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor".
Os instrumentos serão empregados, mas a sua fraqueza intrínseca se
manifestará claramente; não se fará nenhuma divisão da glória, nenhuma
diminuição da honra devida ao Grande Trabalhador. O homem será
esvaziado de si, e depois será enchido do Espírito Santo. Em sua própria
apreensão do fato, ele será como uma folha seca levada pela tempestade,
e depois será fortalecida transformando-se num muro de bronze contra
os inimigos da verdade. Encobrir ao obreiro o orgulho é a grande
dificuldade. O sucesso ininterrupto e a alegria inapagável por ele iriam
além do que as nossas cabeças podem suportar. Nosso vinho tem que ser
misturado com água, se não, transtorna os nossos miolos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 230
Meu testemunho é que os que são honrados pelo Senhor em
público, geralmente têm que sofrer castigo secreto, ou têm que carregar
uma cruz peculiar, a fim de que de algum modo não se exaltem a caiam
no lago do diabo. Com que freqüência o Senhor chama Ezequiel de
"Filho do homem"! Em meio aos seus vôos penetrando esplendores
superlativos, exatamente quando, com os olhos límpidos, é capacitado a
contemplar a glória sublime, a expressão "Filho do homem" cai em seus
ouvidos, serenando o coração que, de outra forma, poderia intoxicar-se
com a honra a ele conferida. Tais mensagens humilhantes mas salutares
murmuram aos nossos ouvidos as nossas depressões; falam-nos de
maneira inequívoca que somos apenas homens, frágeis, débeis, sujeitos a
desfalecer.
Mediante todos os tombos dos Seus servos, Deus é glorificado, pois
eles são levados a engrandecê-lo quando Ele os coloca a Seus pés, e
precisamente quando prostrados no pó, sua fé lhe rende louvor. Falam
com o maior dulçor da Sua fidelidade, e ficam firmados com a maior
solidez em Seu amor. Homens amadurecidos assim, como são alguns
idosos pregadores, dificilmente ter-se-iam produzido se não tivessem
sido esvaziados vaso a vaso, e não tivessem sido levados a ver a sua
própria vacuidade e a vaidade de todas as coisas que os cercam. Glória
seja dada a Deus pela fornalha, pelo malho e pela lima. O céu estará todo
cheio de bem-aventurança porque nos enchemos de angústia cá embaixo,
e a terra será mais bem cultivada por causa do nosso treinamento na
escola da adversidade.
A lição da sabedoria é: não desfaleçam pela aflição de alma. Não a
considerem coisa estranha, mas parte da experiência ministerial comum.
Se o poder da depressão for extraordinário, não pensem que toda a sua
utilidade está perdida. Não repudiem a sua confiança, pois terá por
prêmio grande recompensa. Mesmo que o pé do inimigo esteja sobre os
vossos pescoços, tenham esperança de levantar-se e dominá-lo. Lancem
o fardo do presente, o pecado do passado e o medo do futuro, todos
juntos, aos cuidados do Senhor, que não abandona os Seus santos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 231
Vivam o dia presente – sim, a hora. Não ponham confiança em
disposições de espírito e em sentimentos. Atentem mais para um grão de
fé que para uma tonelada de agitação emocional. Confiem em Deus
somente, e não se inclinem a ceder às necessidades de ajuda humana.
Não se surpreendam quando os amigos falharem com vocês: este é
um mundo falho. Jamais contem com a imutabilidade dos homens; com
a inconstância vocês podem contar sem temer decepção. Os discípulos
de Jesus O abandonaram; não se espantem, então, se os vossos adeptos
se apartarem indo atrás de outros mestres: como não eram tudo o que
vocês tinham quando eles estavam em vossa companhia, nem tudo vos
deixou quando partiram.
Sirvam a Deus com todas as suas forças enquanto arde a candeia, e
depois, quando se apagar por algum tempo, terão o mínimo para
lamentar. Contentem-se em nada ser, pois é o que são. Quando a
vacuidade oprimir dolorosamente a consciência, ralhem consigo
mesmos, lembrando-se de que nunca sonharam estar cheios, exceto no
Senhor. Dêem pouco valor às recompensas atuais; sejam agradecidos
pelos pequenos prêmios recebidos durante o percurso, mas busquem a
recompensadora alegria vindoura.
Continuem servindo ao Senhor com redobrado fervor quando não
se lhes apresentar nenhum resultado visível. Qualquer simplório pode
seguir pelo caminho estreito na luz; a rara sabedoria da fé nos capacita a
prosseguir no escuro com precisão infalível, visto que ela põe a mão na
do Grande Guia. Entre este ponto e o céu ainda poderá ocorrer mau
tempo, mas o Senhor da aliança tomou providências para tudo. Em nada
saiamos do caminho que a vocação divina induziu-nos a seguir. Bom ou
ruim, o púlpito é nossa torre de vigia, e o ministério é a nossa guerra;
compete-nos, quando não pudermos ver o rosto de Deus, confiar à
sombra das Suas asas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 232
A CONVERSAÇÃO COMUM DO MINISTRO

Nosso tema agora será a conversação comum que o ministro


mantém quando se mistura com os homens em geral e se supõe que
esteja bem descontraído. Como deverá ordenar o seu falar entre os seus
semelhantes.
Primeiramente e acima de tudo, permitam-me dizer, que ele trate de
não se dar ares ministeriais, mas que evite tudo que seja bombástico,
oficial, vaidoso e pretensioso. "Filho do homem" é um nobre título; foi
dado a Ezequiel, e a Alguém que foi maior do que ele. Não deixem que o
embaixador do céu seja outra coisa que filho do homem. Na verdade, é
bom que se lembre de que quanto mais simples e despretensioso ele for,
mais intensamente se assemelhará àquele menino-homem, o santo
menino Jesus.
É possível fazer esforço demais para ser grande ministro, e isso
resulta em tornar-se homem bastante pequeno; mas, quanto mais
verdadeiro homem você for, mais verdadeiramente será o que um servo
do Senhor deve ser. Os mestres e os ministros geralmente têm uma
aparência que lhes é peculiar; num sentido errôneo, eles "não são como
os demais homens". Como demasiada freqüência eles são pássaros
mosqueados, dando a impressão de que não se sentem à vontade entre os
outros habitantes da região, mas, sim, sem jeito e fora do comum.
Sempre que vejo um flamingo com o seu andar altivo e grave, uma
coruja piscando na sombra, ou uma cegonha seriamente perdida em seus
pensamentos, sou irresistivelmente levado a lembrar-me de alguns dos
meus dignos irmãos, colegas de magistério e de ministério, que são tão
maravilhosamente extraordinários em todas as ocasiões, que mal chegam
a ser divertidos. É fácil adquirir o modo respeitável, imponente, nobre,
importante, austero; mas vale a pena adquiri-lo?
Theodore Hook uma vez marchou até um cavalheiro que desfilava
na rua com grande pompa, e lhe perguntou: "O senhor não é uma
personalidade de grande importância?" – e às vezes a gente se sente
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 233
inclinado a fazer a mesma coisa com certos irmãos de traje clerical.
Conheço irmãos que, dos pés à cabeça, no traje, no tom, nos modos, na
gravata e nas botinas, são tão completamente clericais que nenhuma
partícula de virilidade é visível. Um recente rebento da teologia precisa
andar pelas ruas de batina, e outro da Igreja Anglo-Católica publicou nos
jornais com muita satisfação que atravessara a Suíça e a Itália usando em
toda parte o seu barrete de clérigo; poucos rapazes teriam tido tanto
orgulho de um abominável gorro.
Nenhum de nós corre perigo de ir tão longe assim em nosso modo
de vestir-nos; mas podemos assemelhar-nos àquilo em nosso
maneirismo. Alguns parecem ter um colarinho branco apertando as suas
almas; a sua masculinidade é sufocada por aquele trapo engomado.
Certos irmãos mantêm um ar de superioridade que eles julgam
impressionante, mas que é simplesmente ofensivo, e eminentemente
oposto ás suas pretensões como seguidores do humilde Jesus. O
orgulhoso duque de Somerset dava ordens a seus criados por meio de
sinais, não condescendendo em falar com seres tão baixos; os filhos dele
nunca ficavam sentados em sua presença, e quando dormia de tarde, suas
filhas ficavam, uma de cada lado dele, durante o seu augusto repouso.
Quando elementos vaidosos como Somerset entram no ministério,
assumem dignidade de outras maneiras quase igualmente absurdas.
"Parado aí; sou mais santo do que tu", é o que está escrito na testa deles.
Uma vez, um bem conhecido ministro foi censurado por um
sublime irmão por sua indulgência para com algum luxo, e o grande
argumento foi a despesa. "Bem, bem", replicou ele, "pode haver algo
nisso. Mas, lembre-se, não gasto com a minha fraqueza a metade do que
você gasta com goma". Este é o artigo que estou criticando, a terrível
goma ministerial. Se algum de vocês cedeu nisso, vigorosamente o
exorto a ir lavar-se "sete vezes no Jordão", e tire-a de si, sem deixar
nenhuma partícula dela. Estou persuadido de que uma razão pela qual os
nossos operários tão universalmente querem distância dos ministros é
porque detestam as suas maneiras artificiais e antimasculinas. Se nos
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 234
vissem, no púlpito e fora dele, agindo como homens de verdade, e
falando com naturalidade, como homens sinceros, eles nos rodeariam.
Ainda vale a observação de Baxter: "A falta de tom e de expressão
familiares é um grande defeito da maioria das nossas prédicas, coisa que
devemos ter todo o cuidado de corrigir". O erro do ministério é que os
ministros querem clericalizar o evangelho. Temos que ter humanidade
junto com a nossa "divindade" (teologia), se é que desejamos ganhar as
massas. Toda gente é capaz de perceber afetações e provavelmente o
povo não se deixa levar por elas. Irmãos, joguem fora as suas pernas-de-
pau, e andem firmados em seus pés; dispam-se do seu eclesiasticismo e
vistam-se da verdade.
Contudo, um ministro é um ministro, esteja onde estiver, e deve
lembrar-se de que está sempre em serviço. Um policial ou soldado pode
ficar de folga, mas o ministro nunca. Mesmo em nossas recreações
devemos continuar perseguindo o grande objetivo das nossas vidas, pois
somos chamados para sermos diligentes "a tempo e fora de tempo". Não
há situação em que possamos achar-nos fora do alcance da pergunta do
Senhor: "Que fazes aqui, Elias?", e devemos ser capazes de responder
logo: "Tenho algo para fazer por Ti neste lugar, e estou tentando fazê-
lo". É claro que de vez em quando o arco tem que ficar solto, frouxo, ou
se não perderá a sua elasticidade, mas não há necessidade de cortar-lhe a
corda. Estou falando por ora do ministro em suas ocasiões de
descontração, e mesmo então digo que ele deve conduzir-se como
embaixador de Deus, e apegar-se ás oportunidades de fazer o bem. Isto
não estragará o seu repouso, e, sim, o santificará.
O ministro deve ser como certa câmara que vi em Beaulieu, em
New Forest, onde jamais se vê uma teia de aranha. É um grande quarto
de despejo, e nunca é varrido. Apesar disso, nenhuma aranha o mancha
com os emblemas da negligência. O teto é de castanheiro e, por alguma
razão, não sei qual, as aranhas não se aproximam dessa madeira em
nenhuma época do ano. A mesma coisa me foi mencionada nos
corredores da Winchester School. Disseram-me: "Nunca vem nenhuma
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 235
aranha aqui". As nossas mentes devem de igual forma estar livres de
hábitos ociosos.
Nos nossos lugares públicos de descanso para os carregadores da
cidade de Londres podemos ler as palavras, "Descanse, mas não
vagabundeie"; e contém conselho digno de atenção. Não chamo de
indolência o dolce far niente. Há um doce não fazer nada que é
justamente o melhor remédio do mundo para a mente exausta. Quando a
mente fica fatigada e em desordem, repousar não é mais ociosidade do
que o sono; e ninguém diria que dormir no tempo próprio é preguiça. É
muito melhor estar dormindo industriosamente do que ficar
preguiçosamente acordado. Irmão, esteja pronto para fazer o bem,
mesmo em seus períodos de repouso e em suas horas de lazer, e assim
será de fato um ministro, e não lhe será preciso proclamar que o é.
Fora do púlpito, o ministro cristão deve ser sociável. Ele não é
enviado ao mundo para ser um eremita, ou um monge de La Trappe – da
ordem dos trapistas. Sua vocação não consiste em postar-se no alto de
uma coluna o dia todo, acima dos seus semelhantes, como aquele
desatinado Simão Estilita dos velhos tempos. Não lhe cabe ficar
pipilando no alto de uma árvore, como um rouxinol invisível, mas ser
homem entre os homens, a dizer-lhes: "Sou como vocês, em tudo quanto
se relaciona com o homem". De nada vale o sal no saleiro; tem que ser
posto na comida; e a nossa influência precisa penetrar e temperar a
sociedade. Afastando-se dos outros, como poderá beneficiá-los? O nosso
Mestre foi a uma festa de casamento, comia com publicanos e pecadores,
e contudo era mais puro do que aqueles beatos fariseus cuja glória estava
em manter-se separados dos seus semelhantes.
É preciso dizer a alguns ministros que eles são da mesma espécie
dos seus ouvintes. É um fato notório mas bem o podemos declarar, que
os bispos, os cônegos, os arcedíagos, os prebendados, os deãos rurais, os
párocos, os vigários, e até os arcebispos, não passam de homens afinal de
contas; e Deus não cercou um recanto sagrado da terra para lhes servir de
câmara clerical, para ficarem sozinhos.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 236
Não seria uma coisa má se houvesse um ressurgimento da santa
conversação no pátio da igreja e no pátio de reuniões. Gosto de ver o
arvoredo de grandes teixos com assentos ao redor. Parecem dizer:
"Sente-se aqui, amigo, e fale sobre o sermão. Aí vem o pastor. Ele se
juntará a nós, e teremos um bate-papo santo e agradável". Não é com
todos os pregadores que nos interessaríamos em manter conversa; mas
há alguns que, para conversar uma hora com eles, a gente daria uma
fortuna. Gosto de um ministro cujo rosto me convida para fazê-lo meu
amigo – um homem em cujo limiar de porta se lê: "Salve", "Bem-vindo",
e se sente que não há necessidade daquela advertência encontradiça:
"Cuidado com o cão".
Dêem-me um homem que as crianças rodeiam, como os insetos
rodeiam um jarro de mel; elas são juízes de primeira classe de um bom
homem. Quando Salomão foi testado pela rainha de Sabá quanto à sua
sabedoria, dizem os rabinos que ela levou consigo algumas flores
artificiais, lindamente confeccionadas e delicadamente aromatizadas,
como fac-símiles de flores verdadeiras. Ela pediu a Salomão que
descobrisse quais eram artificiais e quais eram naturais. O sábio mandou
os seus servos abrirem a janela, e quando as abelhas entraram, voaram
imediatamente para as flores naturais, e não deram a mínima atenção às
artificiais. Assim vocês verão que as crianças têm os seus instintos, e
descobrem depressa quem é amigo delas, e acreditem que o amigo das
crianças é alguém que vale a pena conhecer.
Tenham uma boa palavra para dizer a todos e a cada membro da
família – aos moços, às moças, às menininhas, a todos. Não se sabe o
que um sorriso e uma frase cordial podem fazer. Quem tem o dever de
fazer muito com os homens precisa amá-los e sentir-se à vontade com
eles. O indivíduo destituído de cordialidade, melhor seria que fosse
agente funerário e enterrasse os mortos, porque nunca terá sucesso
quanto a influenciar os vivos.
Encontrei algures a observação de que para ser pregador popular é
preciso ter entranhas. Receio que a intenção desta observação seja
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 237
criticar suavemente certos irmãos pela tremenda corpulência que vieram
a ter; mas há verdade nela. O homem deve ter grande coração, se quiser
ter uma grande congregação. O seu coração deve ter tão ampla
capacidade como aqueles nobres portos ao longo da nossa costa
marítima, que têm largueza suficiente para abrigar toda uma frota.
Quando um homem tem coração grande e amoroso, os homens vão a ele
como os navios a um porto, e sentem paz quando ancorados a sota-vento
da sua amizade. Tal homem é cordial, tanto em particular como em
público; seu sangue não é frio, não é sangue de peixe, mas é cálido como
a lareira a que vocês se aquecem. Nenhum orgulho e egoísmo lhes causa
calafrios quando vocês se aproximam dele; ele mantém abertas todas as
suas portas para recebê-lo, e num instante vocês ficam à vontade junto
dele. Gostaria de persuadir vocês, cada um de vocês, a serem homens
desse tipo.
O ministro cristão deve ser alegre também. Não creio em andar por
aí como certos monges que vi em Roma, que se saúdam uns aos outros
em tons sepulcrais, e transmitem a prazenteira informação: "Irmão,
temos que morrer", e a essa vívida saudação, cada um dos vívidos irmãos
da ordem responde: "Sim, irmão, temos que morrer". Alegrou-me ser
certificado, com base nessa boa autoridade, de que todos esses sujeitos
indolentes estão prestes a morrer; de modo geral, é quase a melhor coisa
que eles podem fazer. Mas, enquanto não se dá esse acontecimento, eles
poderiam usar uma forma de saudação mais confortante.
Sem dúvida há algumas pessoas que se impressionam com a
aparência muito solene dos ministros. Ouvi falar de alguém que se
convenceu de que tem que haver algo na religião católica romana, por
causa da aparência extremamente faminta e chupada de certo
eclesiástico. "Olhem", disse aquele, "como o homem está que é quase
esqueleto por seus jejuns diários e suas vigílias noturnas! Como ele
mortifica a sua carne!" Ora, as probabilidades são de que o emaciado
sacerdote estivesse labutando com alguma doença interna, da qual se
alegraria de coração se pudesse livrar-se, e não fosse o domínio do
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 238
apetite, mas a falta de digestão, que o tivesse reduzido tanto; ou talvez
uma consciência atribulada, que o tivesse desgastado, reduzindo-lhe
assim o peso.
Certamente nunca achei um texto que mencione a proeminência dos
ossos como evidência da graça. Se fosse assim, "O Esqueleto Vivo"
deveria ser exibido, não apenas como uma curiosidade da natureza, mas
como padrão de virtude. Alguns dos maiores velhacos do mundo têm
sido na aparência tão mortificados como se vivessem de gafanhotos e
mel silvestre. É erro vulgar supor que um semblante melancólico seja
índice de coração agraciado. Recomendo jovialidade a todos os que
desejam ganhar almas para Cristo; não leviandade e ostentação fútil, mas
espírito cordial e feliz. Pegam-se mais moscas com mel do que com
vinagre, e haverá mais almas levadas para o céu pelo homem que usa o
céu no rosto, do que pelo que traz o tártaro no semblante.
Os jovens ministros, e, na verdade, todos os demais, quando na
companhia de outras pessoas, devem ter o cuidado de não monopolizar
toda a conversação. Estão bem qualificados para fazê-lo, sem dúvida.
Digo isso por sua capacidade para ensinar e por sua facilidade de
expressão. Mas devem lembrar-se de que as pessoas não estão
interessadas em receber instrução perpetuamente; gostam de ter a sua
vez na conversa. Nada agrada tanto a algumas pessoas, como deixá-las
falar, e talvez lhes seja benéfico agradá-las.
Certa noite passei uma hora com um personagem que me honrou
dizendo que achava que eu era uma companhia encantadora, com
conversa muitíssimo instrutiva; contudo, não hesito em confessar que eu
não disse quase nada, mas deixei que só ele falasse. Pelo exercício da
paciência, ganhei a sua boa opinião e a oportunidade de lhe falar noutras
ocasiões. À mesa não se tem mais direito de falar tudo, do que de comer
tudo. Não devemos considerar-nos o Senhor Oráculo, diante de quem
nenhum cão deve abrir a boca. Não. Permita-se que todos os membros
do grupo contribuam dos seus depósitos, e terão os melhores
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 239
pensamentos sobre as palavras piedosos com as quais vocês procuram
temperar o discurso.
Haverá algumas ocasiões nas quais vocês estarão presentes,
especialmente no início do seu ministério, quando todos ficarão
atemorizados pela majestade da sua presença, e o povo será convidado
porque o novo ministro estará ali. Tal posição faz-me lembrar a mais fina
estatuária do Vaticano. Abre-se uma pequena sala, corre-se uma cortina,
e, eis aí! diante de você ergue-se o grande Apolo! Se lhe couber a penosa
sorte de ser o Apolo do grupo, dê fim ao absurdo! Se eu fosse o Apolo,
gostaria de sair do pedestal e apertar a mão de toda gente, e melhor seria
que você fizesse a mesma coisa, pois, mais cedo ou mais tarde, o
alvoroço que fazem em torno de você terá fim, e o procedimento mais
sábio será dar-lhe cabo você mesmo.
O culto do herói é uma espécie de idolatria, e não deve ser
estimulado. Os heróis agem bem quando, fazendo como os apóstolos em
Listra, ficam horrorizados com as honras que lhes prestam, e correm pelo
meio do povo, gritando: "Varões, por que fazeis essas coisas? Nós
também somos homens como vós, sujeitos às mesmas paixões". Os
ministros não precisarão fazer isso por muito tempo, pois, os seus
estultos admiradores são bem capazes de virar-se contra eles e, se não os
apedrejarem quase até à morte, irão até onde sua ousadia lhes permitir,
em sua grosseria e menosprezo.
Conquanto eu diga, "Não exagere no falar, e não assuma
importância que não passa de impostura", digo porém, não seja mudo.
As pessoas formarão uma estimativa a respeito de você e do seu
ministério por aqui que notam em seu falar particular tanto como em
seus discursos em público. Muitos jovens se arruinaram no púlpito por
serem indiscretos na sala de visitas, e perderam toda a possibilidade de
serem úteis por causa da sua insensatez ou frivolidade em meio a outras
pessoas. Não seja um pedaço de pau inanimado. Na Feira de Antuérpia,
entre muitas curiosidades anunciadas com enormes quadros e grandes
alardes, avistei uma barraca em que havia "uma grande maravilha" que
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 240
se podia ver por apenas uns níqueis; era um homem petrificado. Não
gastei a quantia exigida para a entrada, pois eu tinha visto de graça
muitíssimos homens petrificados, no púlpito e fora dele – sem vida,
negligentes, destituídos de bom senso, e completamente inertes, apesar
de se ocuparem da atividade mais importante que o homem poderia
exercer.
Procure mudar a conversa, dando-lhe uso proveitoso. Seja
comunicativo, alegre etc., mas labute para realizar alguma coisa. Por que
você deveria semear vento ou arar pedra? Considere-se, depois de tudo, a
si próprio como muito responsável pela conversação que é mantida onde
você se encontra, pois é esta a estima em que normalmente será tido –
que você será o timoneiro da conversação. Portanto, conduza-a para um
bom rumo. Faça isso sem ser rude e sem forçar. Mantenha em boa ordem
os pontos da linha, e o trem correrá pelos trilhos sem um solavanco.
Esteja preparado para agarrar com destreza as oportunidades, e conduzir
imperceptivelmente as coisas pela trilha desejada. Se o seu coração
estiver posto nisto, e se o seu espírito estiver desperto, isto será bastante
fácil, especialmente se você elevar uma oração pedindo direção.
Nunca me esqueço da maneira como um indivíduo sedento apelou
para mim em Clapham Common. Eu o vi num enorme carro no qual
levava um pacote extremamente pequeno, e lhe perguntei por que não
punha o pacote no bolso e deixava o veículo em casa. Disse-lhe eu: "É
esquisito ver um carro tão grande para uma carga tão pequena". Ele
parou e, olhando-me seriamente no rosto, disse: "Sim, senhor, é
esquisito; mas, você sabe, hoje mesmo vi uma coisa mais esquisita ainda.
Andei por aí trabalhando e suando todo este bendito dia, e até agora não
encontrei nem um só cavalheiro que me parecesse disposto a dar-me uma
garrafa de cerveja, até que encontrei você".
Achei que ele manobrou com muita habilidade aquela virada na
conversação, e nós, com muito melhor assunto em nossas mentes,
devemos ser igualmente capazes de apresentar o tópico em que o nosso
coração está posto. O homem agiu com tanta facilidade, que tive inveja
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 241
dele, pois eu não achei coisa simples assim apresentar o meu próprio
tópico à sua consideração. Entretanto, se eu tivesse pensado tanto em
como fazer-lhe bem quanto ele em como obter uma bebida, estou certo
de que teria tido sucesso em atingir o meu objetivo. Se por todos os
modos havemos de salvar alguns, devemos, como o nosso Senhor fez,
falar à mesa com bom propósito em mente – sim, e à beira do poço, pelo
caminho, na praia do mar, em casa e no campo. Ser um santo palestrante
em prol de Jesus pode ser um ofício tão frutífero como ser um pregador
fiel. Tenha em mira um alto grau de excelência em ambos os exercícios,
e se for pedido o auxílio do Espírito Santo; você realizará o seu desejo.
Aqui talvez eu deva inserir uma regra que, não obstante, creio que é
completamente desnecessária com referência a cada um dos honoráveis
irmãos a quem me dirijo nesta oportunidade. Não freqüentem as mesas
dos ricos para obter o apoio deles, e nunca se façam uma espécie de
parasita das recepções e dos banquetes. Quem é você que deva ser um
bajulador deste ou daquele ricaço, quando os pobres do Senhor, os Seus
enfermos, e as Suas ovelhas errantes precisam de você? Sacrificar o
gabinete pastoral pela sala de visitas é um crime. Ser um agenciador da
sua igreja, e surpreender as pessoas nas suas casas para atraí-las de modo
que lotem os bancos da sua igreja, é uma degradação a que homem
nenhum deve submeter-se. Ver ministros de diferentes denominações
alvoroçando-se em volta de um homem rico, como abutres rodeando um
camelo morto, deixa a gente enojado.
Foi deliciosamente sarcástica aquela carta "de um velho e amado
ministro a seu querido filho", por ocasião de sua entrada no ministério,
da qual o seguinte extrato fere o ponto em questão. Dizem que ela foi
transcrita da Smellfungus Gazette, mas desconfio que o nosso amigo
Paxton Hood sabe tudo sobre a sua autoria.
"Mantenha também um olho vigilante posto em todas as pessoas,
especialmente as ricas ou influentes, que provavelmente venham para a sua
cidade. Visite-as, e procure ganhá-las por meio de ato de devoção
realizados na sala de visitas. Assim você poderá servir aos interesses do
Mestre de maneira extremamente eficiente. É preciso tratar bem as pessoas,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 242
e o resultado de longa experiência confirmará a minha convicção, de há
muito acariciada, de que o poder do púlpito é uma ninharia, comparado com
o poder da sala de visitas. Precisamos imitar e santificar, mediante a Palavra
de Deus e oração, os exercício dos jesuítas. Estes obtinham sucesso, não
tanto com o púlpito como o que tinham com o locutório. Neste você pode
sussurrar – pode conhecer as pessoas em todas as suas pequenas idéias
pessoais.
"O púlpito é um lugar muito desagradável; é claro que é o grande poder
de Deus, e assim por diante, mas é a sala de visitas que conta, e o ministro,
mesmo que for bom pregador, não terá a mesma possibilidade de sucesso
que terá aquele que for um perfeito cavalheiro. Tampouco homem nenhum
terá qualquer perspectiva de êxito numa sociedade culta, se não for, não
obstante tudo o que seja, um cavalheiro. Sempre admirei a caracterização
do apóstolo Paulo feita por Lorde Shaftesbury em sua obra, Characteristics
(características), de que ele era um fino cavalheiro. E eu lhe digo: seja um
cavalheiro. Não que eu tenha necessidade de dizê-lo, mas estou persuadido
de que somente desta maneira podemos esperar a conversão da nossa
crescente classe média. Temos que mostrar que a nossa religião é a religião
do bom senso e do bom gosto; que desaprovamos as emoções fortes e os
fortes estimulantes; e, ah, meu caro rapaz, se você quiser ser útil, ore
fervorosamente muitas vezes em seu quarto, para que você seja um
cavalheiro. Se me perguntassem qual é o seu primeiro dever, eu diria, seja
cavalheiro; e o segundo, seja cavalheiro; e o terceiro, seja cavalheiro".
Os que recordam certa classe de pregadores que floresceram há
cinqüenta anos, verão a agudeza da sátira deste extrato. O mal acha-se
grandemente mitigado agora. Na verdade, receio que estejamos indo para
o outro extremo.
Com toda a probabilidade, uma conversação sensata às vezes pende
para a controvérsia, e aqui muito bom homem topa com um tropeço. O
ministro sensato será particularmente gentil na argumentação. Acima de
todos os demais homens, ele não deve cometer o erro de imaginar que há
força no mau gênio e poder no falar zangado. Um pagão que estava no
meio de uma multidão em Calcutá, ouvindo um missionário discutir com
um brâmane, sabia quem estava certo apesar de não entender a língua
sabia que estava errado aquele que perdera a calma primeiro.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 243
Na maioria dos casos, este é um modo muito precioso de julgar.
Procure evitar discutir com as pessoas. Dê sua opinião, e permita que
elas dêem as suas. Se você vê que uma vara é torta, e quer que o povo
veja como ela é torta, ponha um bastão reto ao lado dela, e bastará. Mas
se você for levado a uma controvérsia, empregue argumentos bem duros
e palavras bem suaves. Muitas vezes não conseguimos convencer um
homem dando puxões na sua razão, mas você pode persuadi-lo
conquistando o seu afeto.
Outro dia eu tive a desgraça de precisar de um par de botinas novas,
e embora tenha pedido ao camarada que as fizesse grandes como canoas,
tive que fazer um esforço terrível para calçá-las. Com um par de
calçadeiras labutei como os homens que estavam a bordo do navio de
Jonas, mas tudo em vão. Foi nesse instante que o meu amigo pôs na
minha frente um pequeno pedaço de giz francês, e o trabalho foi feito
num momento. Maravilhosa e gentilmente persuasivo era aquele giz
francês. Cavalheiros, levem sempre consigo um pequeno giz francês à
sociedade, um belo pacote de persuasão cristã, e logo descobrirão as
virtudes dele.
E finalmente, com toda a sua amabilidade, o ministro deve ser firme
em seus princípios, e destemido para proclamá-los e defendê-los em
todos os agrupamentos sociais. Quando ocorre uma boa oportunidade,
ou se ele tiver produzido uma, não se demore a aproveitá-la. Forte em
seus princípios, fervoroso na entonação e afetuoso de coração, fale como
homem, e agradeça a Deus o privilégio. Não há necessidade de reticência
– ela é desnecessária. As mais doidas fábulas dos espíritas, os mais
rústicos sonhos dos reformadores utópicos, a mais tola tagarelice da
cidade, e a mais fútil absurdidade do mundo frívolo, exigem quem os
ouça, e os conseguem. E Cristo, não será ouvido? Sua mensagem de
amor ficará sem ser proferida, por temer-se acusação de intrusão ou de
hipocrisia? Far-se-á da religião um tabu – proibido o melhor e o mais
nobre de todos os temas? Se esta for a regra de alguma sociedade, não
concordaremos com ela. Se não a pudermos pôr fora de ação,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 244
deixaremos a sociedade entregue a si mesma, como os homens
abandonam uma casa contagiada pela lepra. Não podemos consentir que
nos amordacem. Não há razão por que devamos ser amordaçados. Não
iremos a nenhum lugar aonde não podemos levar conosco o nosso
Mestre. Enquanto outros tomam a liberdade de pecar, nós nos
renunciaremos à nossa liberdade de repreendê-los e adverti-los.
Utilizada com sabedoria, a nossa conversação comum pode ser um
poderoso instrumento para o bem. Encadeamentos de conceitos podem
ser iniciados com uma só frase que talvez leve á conversão pessoas
jamais alcançadas por nossos sermões. O método de segurar as pessoas
pela lapela, ou de levar-lhes a verdade individualmente, tem obtido
grande sucesso. Este é outro assunto, e dificilmente ficará bem sob o
título de conversação comum.
Mas concluiremos dizendo que é de esperar-se que nós, em nosso
falar comum, não mais do que no púlpito, nunca sejamos vistos como
uma refinada espécie de pessoas, cuja ocupação é tornar agradáveis as
coisas para todos, e que nunca, por qualquer motivo ou circunstância
possível, causam inquietação a quem quer que seja, por mais ímpias que
suas vidas sejam. Tais pessoas vão e vêm entre as famílias dos seus
ouvintes, e se divertem com elas, quando deviam chorar sobre elas.
Sentam-se às suas mesas e se banqueteiam em sua comodidade, quando
deviam exortá-las a fugirem da ira vindoura. São como o alarme
americano de que ouvi falar, que era garantido que não o despertaria, se
você não quisesse que o despertasse.
Quanto a nós, cabe-nos semear, não somente no terreno plano e
bom, mas também nas rochas e nos caminhos pisados, e no último e
grande dia ter uma feliz colheita. Que o pão lançado por nós às águas em
horas extraordinárias e em ocasiões estranhas, seja encontrado de novo
depois de muitos dias!
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 245
AOS OBREIROS MAL EQUIPADOS

Que hão de fazer os ministros mal equipados? Por mal equipados


quero dizer que têm poucos livros, e escasso ou nenhum recurso com que
comprar mais. Este estado de coisas não devia existir em caso nenhum;
as igrejas deviam cuidar que isto se tornasse impossível. Na medida
máxima da sua capacidade, deviam suprir o seu ministro, não só de
alimento necessário para o sustento da vida física, mas de nutrição
mental, para que sua alma não morra de fome.
Uma boa biblioteca deve ser considerada como parte indispensável
da equipagem da igreja; e os diáconos, cuja atividade consiste em "servir
às mesas", serão sábios se, sem negligenciarem a mesa do Senhor, ou
dos pobres, e sem diminuírem os suprimentos da mesa de jantar do
ministro, derem uma olhada na mesa do seu gabinete, e a mantiverem
suprida de novas obras e de livros básicos com razoável abundância.
Seria bom investimento de dinheiro, e seria produtivo muito além do que
se poderia esperar. Em vez de se fazerem eloqüentes sobre o poder
decrescente do púlpito, os líderes da igreja deveriam empregar os meios
legítimos para melhorar-lhe o poder, suprindo o pregador de alimento
que o faça pensar. Coloquem de lado o chicote, é o meu conselho a todos
os resmungões.
Há alguns anos procurei induzir as nossas igrejas a terem
bibliotecas para os ministros como coisa natural, e algumas poucas
pessoas dotadas de raciocínio viram o valor da sugestão e começaram a
executá-la. Com muita satisfação tenho visto aqui e ali estantes supridas
de uns quantos volumes. Gostaria imensamente que esse começo tivesse
sido dado em toda parte, mas, ah! temo que somente uma longa sucessão
de ministros famintos levará os avarentos à convicção de que a
parcimônia com um ministro é falsa economia. As igrejas que não
podem oferecer um generoso estipêndio, devem fazer algumas emendas
fundando uma biblioteca como parte permanente do seu patrimônio; e,
fazendo-lhe acréscimos freqüentemente, ela logo se tornará valiosa.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 246
O gabinete pastoral do meu venerável avó tinha uma coleção de
muitos volumes antigos e valiosos dos puritanos, que passavam de
ministro a ministro. Bem me lembro de certos tomos de peso, cujo
principal interesse para mim estava em suas curiosas letras iniciais
adornadas com pelicanos, grifos mitológicos, meninos brincando, ou
patriarcas trabalhando. Pode se objetar que os livros se perderiam pela
mudança dos usuários, mas eu correria esse risco. E, como um pouco de
atenção aos catálogos, os administradores poderiam manter as
bibliotecas com a mesma segurança com que mantêm os bancos do
templo e o púlpito.
Se não se adotar este esquema, experimente-se outro mais simples.
Que todos os subscritores comprometidos com o sustento do pregador
acrescentem dez por cento ou mais às suas contribuições, com o fim
expresso de dar sustento ao cérebro dele. Receberão de volta a
recompensa através dos melhores sermões que ouvirão. Se se garantisse
uma pequena renda anual aos ministros pobres para ser sagradamente
gasta em livros, ser-lhes-ia uma dádiva do céu, e uma incalculável
bênção para a comunidade. As pessoas sensatas não esperam que uma
horta lhes dê legumes ano após ano, a menos que enriqueçam o solo; não
esperam que uma locomotiva funcione sem combustível, ou que um boi
ou um asno trabalhe sem receber alimento. Que não esperem, pois,
receber sermões instrutivos de homens a quem se veda o armazém de
conhecimentos por não poderem comprar livros.
Mas a questão é, que farão os homens que não têm recursos, que
não contam com uma biblioteca da igreja, e que não recebem verba para
prover-se de livros? Observemos de imediato que, se tais homens
tiverem êxito, deve-se-lhes maior honra do que aos que têm abundantes
meios.
Conta-se que os seus companheiros de trabalho tiraram de Quintin
Matsys todas as suas ferramentas, menos o seu martelo e a sua lima, e
que ele produziu sem elas a sua famosa cobertura de poço; tanto maior
honra para ele! Grande crédito se deve àqueles que, trabalhando para
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 247
Deus, fizeram grandes coisas sem ferramentas utilizáveis. Seu labor teria
sido aliviado grandemente, se as possuíssem; mas o que realizaram é por
demais maravilhoso.
Na atual Exposição Internacional de Kensington, a Escola de
Culinária do Sr. Buckmaster é admirada, principalmente porque produz
pratos saborosos com ingredientes inferiores. Com uma mancheia de
ossos e um pouco de macarrão, ele serve iguarias palacianas. Se ele
dispusesse de todos os ingredientes empregados na culinária francesa, e
os empregasse todos, toda gente diria: "Bem, qualquer um faria isso";
mas quando ele lhes mostra sobras de carne e ossos, e lhes diz que os
comprou no açougue por uma ninharia, e que com isso pode preparar um
prato para uma família de cinco ou seis membros, todas as boas senhoras
arregalam os olhos e se maravilham que alguém possa fazer tal prodígio;
e quando passa a uns e outros o seu prato, e eles o provam e vêem quão
delicioso é, enchem-se de admiração.
Ao trabalho, então, irmão pobre, pois você pode ter sucesso em
fazer grandes coisas no seu ministério, e as boas vindas com, "Bem está,
servo bom e fiel", serão tanto mais enfáticas porque você trabalhou
debaixo de sérias dificuldades.
Se um homem somente pode adquirir uns poucos livros, o meu
primeiro conselho a ele será: compre os melhores. Se não puder gastar
muito, gaste bem. Os melhores sempre serão os mais baratos. Deixe as
meras diluições e atenuações aos que podem arcar com tais luxos. Não
compre leite com água, mas consiga leite condensado, e ponha você
mesmo quanta água quiser. Esta época está cheia de fiandeiros de
palavras – compiladores profissionais que pilam um grão de tema
pulverizando-o tão fino que chega a cobrir uma folha de papel de cinco
acres; estes homens têm a sua utilidade, como a têm os artífices em ouro,
mas para você não têm utilidade nenhuma.
Outrora os fazendeiros do nosso litoral costumavam carrear cargas
de algas e colocá-las em seus terrenos; a parte mais pesada era a água;
agora secam as algas e poupam um mundo de trabalho e de despesas.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 248
Não compre sopa rala; adquira essência de carne. Obtenha muito do
pouco. Dê preferência a livros que abundem naquilo que James Hamilton
costumava chamar de "sulco bíblico", ou a essência dos livros. Você
precisa de livros modelares exatos, condensados, confiáveis, e deve
providenciar para que os tenha.
Ao preparar as suas Horae Biblicae Quotidianae (Horas Bíblicas
Cotidianas), admirável comentário da Bíblia, o Dr. Chalmers usou
somente a Concordance (Concordância), a Pictorial Bible (Bíblia
Ilustrada), a Synopsis (Sinopse), de Poole, o Comentário de Mathew
Henry, e a Researches in Palestine (Pesquisas na Palestina), de
Robinson. "São estes os livros que uso", disse ele a um amigo;
"harmonizam-se com a. Bíblia; não preciso fazer nada mais que isso, no
meu estudo da Bíblia". Isto mostra que os que têm provisões ilimitadas
às suas ordens acham, apesar disso, suficientes uns poucos livros
básicos. Se o Dr. Chalmers vivesse agora, provavelmente pegaria The
Land and the Book (A Terra e o Livro), de Thomson, em lugar de
Pesquisas, de Robinson, e trocaria a Bíblia Ilustrada por Daily Bible
Illustrations (Ilustrações Bíblicas Diárias), de Kitto; pelo menos eu
recomendaria esta alteração à maior parte dos homens. Isto prova
claramente que alguns pregadores dos mais eminentes achavam que
podiam fazer coisa melhor com poucos livros do que com muitos, ao
estudarem as Escrituras, e, conforme eu entendo, esta é a nossa principal
ocupação.
Desista, pois, sem queixas, dos muitos livros, os quais são como as
navalhas do popular Hodge, livros feitos "só para serem mercadejados".
Tais livros nada valem, no entanto sempre acham compradores. Quanto
ao Comentário de Matthew Henry, já mencionado, aventuro-me a dizer
que nenhum ministro fará investimento melhor do que comprar aquela
exposição sem par. Consiga-o, ainda que tenha que vender o casaco para
adquiri-lo.
A regra que em seguida firmo é, domine os seus livros. Leia-os
completamente. Banhe-se neles até ficar saturado. Leia-os e releia-os,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 249
mastigue-os, e digira-os. Faça que penetrem o íntimo do seu ser.
Examine minuciosamente um bom livro várias vezes, e faça anotações e
análises dele. O estudante verá que a sua constituição mental é mais
influenciada por um livro dominado completamente do que por vinte
livros que só leu por alto, dando-lhe lambidas, como diz o provérbio
clássico, "Como os cães bebem no Nilo". Pouco saber e muito orgulho
vêm da leitura apressada. É possível empilhar livros no cérebro, até que
este não consegue funcionar. Alguns homens perdem a capacidade de
pensar por eliminarem a meditação por amor a demasiada leitura.
Empanturram-se do conteúdo de livros, e se tornam dispépticos mentais.
Livros em cima do cérebro causam doença. Meta o livro dentro do
cérebro, e você crescerá. Na obra Curiosities of Literature (Curiosidades
da Literatura), de D'Israeli, há uma invectiva de Luciano sobre os que se
jactam de possuírem grandes bibliotecas, das quais nunca lêem nem um
volume nem tiram proveito. Começa comparando uma pessoa dessas
com um piloto que nunca aprendeu a arte da navegação, ou com um
aleijado que usa chinelos bordados mas não consegue firmar-se neles.
Depois ele exclama: "Por que você compra tantas livros? Você não tem
cabelo, e compra um pente; é cego, e tem que comprar um fino espelho;
é surdo, e quer possuir o melhor instrumento musical!" – censura muito
bem merecida pelos que pensam que apenas a posse de livros lhes
garantirá cultura.
Certa medida dessa tentação nos ocorrerá a todos; pois não é que
nos achamos mais sábios depois de termos passado uma hora ou duas
numa livraria? Um homem poderia muito bem sentir-se mais rico por ter
inspecionado os depósito do Banco da Inglaterra. Na leitura de livros,
oxalá o seu lema seja: "Muito, não muitos". Além de ler, pense, e sempre
mantenha o pensamento proporcional à leitura, e a sua pequena
biblioteca não será grande infortúnio.
Há muito bom senso na observação de um escritor na Quarterly
Review (Revista Trimestral) há muitos anos. "Dê-nos aquele querido
livro, conseguido barato na banca, ao preço de um jantar, manuseado,
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 250
com as orelhas arrancadas, rachado na lombada, e arrebentado nos
cantos, com anotações nas folhas em branco, rabiscado nas margens,
manchado e chamuscado, rasgado e desgastado, alisado no bolso,
enodoado pela fuligem, umedecido na relva e empoeirado entre as
cinzas, sobre o qual você sonhou no bosque e cochilou em frente das
brasas, mas leu, releu e tornou a ler, de capa a capa. É por meio desse
livro em particular, e seus três ou quatro sucedâneos singulares, que se
transmite mais cultura verdadeira do que por todas as miríades de livros
que pesam e entortam as estantes de uma milha de extensão da biblioteca
universitária de Oxford – a Bodleian Library".
Mas, se você acha que deve ter mais livros, recomendo-lhes
empréstimos parcimoniosos e judiciosos. É bem provável que você tenha
alguns amigos que possuem livros e que sejam suficientemente bondosos
para permitir-lhe que os use por algum tempo; e o advirto especialmente
a devolver tudo que lhe seja emprestado, a devolvê-lo a tempo e em bom
estado, para que lho emprestem de novo. Espero que não me seja
necessário falar muito sobre a devolução de livros, como teria sido há
alguns meses, pois recentemente deparei com uma afirmação feita por
um clérigo, que fez muito pela elevação da minha opinião sobre a
natureza humana, pois ele declara que conhece pessoalmente três
cavalheiros que de fato devolveram guarda-chuvas emprestados!
Lamento dizer que ele se move num círculo muito mais favorável do que
eu, pois conheço pessoalmente vários jovens que tomaram livros
emprestados e nunca os devolveram.
Outro dia, certo ministro, que me emprestara cinco livros, que usei
por dois anos ou mais, escreveu-me um bilhete pedindo-me a devolução
de três. Para sua surpresa, recebeu-os de volta por encomenda postal, e
os outros dois que ele tinha esquecido. Eu tinha mantido cuidadosamente
uma lista dos livros que me foram emprestados e, portanto, pude fazer a
devolução completa ao dono. Estou certo de que ele não esperava a
pronta chegada deles, pois me escreveu uma carta com um misto de
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 251
espanto e de gratidão, e quando eu tornar a visitar o escritório dele, estou
certo de que receberá bem um novo pedido de empréstimo.
Creio que todos vocês conhecem os versos escritos nos livros de
muita gente:
"Se um amigo pedir-te por empréstimo,
certamente atendido ele será,
para ler-te, estudar-te, não emprestar-te,
mas devolver-te a mim.
Não que o conhecimento transmitido
reduza as provisões da erudição,
mas descobri que os livros emprestados
não me voltam jamais".

Walter Scott costumava dizer que os seus amigos podiam ser


contadores medíocres, mas estava convicto de que eram bons "guarda-
livros". Alguns até tiveram que fazer como certo estudioso que, ao lhe
pedirem que emprestasse um livro, mandou o recado pelo criado de que
não deixaria o livro sair da sua sala, mas que o cavalheiro que pedira o
empréstimo podia vir e sentar-se ali, e ler quanto tempo quisesse. A
réplica foi inesperada mas completa quando, estando a apagar-se-lhe o
fogo, mandou pedir à mesma pessoa que emprestasse um fole, e recebeu
como resposta que o dono não o emprestaria fora da sua sala, mas o
cavalheiro podia vir e soprar com o fole quanto tempo quisesse. Os
empréstimos judiciosos podem fornecer-lhe muita leitura, mas lembre-se
do machado emprestado (2 Reis 6:5) e tenha cuidado com o que tomar
emprestado. "O ímpio toma emprestado, e não paga."
Caso a fome de livros aflija a terra, há um livro que todos vocês
têm, e esse é a sua Bíblia. E o ministro com a sua Bíblia é como Davi
com a sua funda e pedra, plenamente equipado para a peleja. Ninguém
poderá dizer que não tem poço donde tirar, enquanto as Escrituras
estiverem a seu alcance. Na Bíblia temos uma perfeita biblioteca, e quem
a estudar completamente, será um erudito melhor do que se tivesse
devorado a biblioteca de Alexandria inteira. Compreender a Bíblia deve
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 252
ser a nossa ambição; devemos estar familiarizados com ela, tão
familiarizados como a dona de casa o está com a sua agulha, o
comerciante com o seu livro-razão, o marinheiro com o seu navio.
Devemos conhecer o seu roteiro geral, o conteúdo de cada livro, as
minúcias das suas histórias, doutrinas e preceitos, e tudo que lhe diz
respeito.
Falando de Jerônimo, pergunta Erasmo: "Quem senão ele jamais
aprendeu de cor toda a Escritura? ou a absorveu, ou meditou nela com
ele?" Diz-se de Witsius, culto holandês, autor da famosa obra sobre The
Covenants ("As Alianças"), que também era capaz, não somente de
repetir cada palavra da Escritura nas línguas originais, mas também de
dar o contexto e as críticas dos melhores autores. E ouvi falar que um
velho ministro de Lancashire era "uma concordância ambulante", e que
podia dar o capítulo e o versículo de qualquer passagem citada, ou vice-
versa, podia dizer corretamente as palavras quando se mencionava o
lugar onde ocorrem. Isso pode ter sido uma proeza da memória, mas o
estudo requerido só pode ter sido altamente proveitoso. Não digo que
vocês precisam aspirar a isso; mas se o fizessem, o lucro valeria a pena.
Foi este um dos pontos fortes daquele gênio singular, William
Huntington (que agora não condeno nem recomendo), que, quando
pregava, citava incessantemente a Escritura Sagrada, e costumava, cada
vez que o fazia, dar o capítulo e o versículo. E para mostrar a sua
independência do livro impresso, tinha o deselegante hábito de tirar a
Bíblia de cima do púlpito.
O homem que aprendeu, não apenas a letra da Bíblia, mas o seu
espírito interior, não será um tipo inferior, quaisquer que sejam as
deficiências com que ele trabalhe. Vocês conhecem o antigo provérbio,
"Cave ab homine unius libri" – Cuidado com o homem de um só livro.
Este é um terrível antagonista. O homem que tem a Bíblia na ponta da
língua e no fundo do coração é um campeão em Israel. Você não pode
competir com ele. Você pode ter um verdadeiro arsenal, mas o
conhecimento que ele tem da Escritura o sobrepujará, pois é uma espada
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 253
como a de Golias, da qual disse Davi: "Não há outra semelhante". O
amável William Romaine, creio eu, na última parte da sua vida, pôs fora
todos os seus livros, não lendo outra coisa senão a Bíblia. Era erudito,
mas foi monopolizado pelo Livro, e este o fez poderoso.
Se formos levados a fazer a mesma coisa por necessidade,
lembremos que alguns a fizeram por escolha, e não lamentemos a nossa
sorte, pois as Escrituras serão mais doces que o mel ao nosso paladar, e
nos farão "mais sábios do que os antigos". Jamais nos faltarão temas
santos se estudarmos continuamente o volume inspirado; ao contrário,
não só acharemos temas ali, mas também ilustrações, pois a Bíblia é a
melhor ilustradora de si mesma. Se você quiser historieta, símile,
alegoria ou parábola, dirija-se ás páginas sagradas. A verdade
escriturística nunca parece mais atraente do que quando é adornada com
jóias tiradas do seu próprio tesouro.
Tenho lido ultimamente os livros de Reis e de Crônicas, e me
enamorei deles. Estão repletos de instruções divinas, como os Salmos ou
os profetas, se os lermos com os olhos abertos. Acho que era Ambrósio
que costumava dizer: "Adoro a infinidade da Escritura". Ouço a mesma
voz que soou nos ouvidos de Agostinho, concernente ao Livro de Deus:
"Tolle, lege" – Toma, lá. Talvez você venha a viver isolado em alguma
aldeia, onde não encontrará alguém que esteja acima do seu nível com
quem conversar, e onde encontrará bem poucos livros que valha a pena
ler. Então, leia e medite na lei do Senhor de dia e de noite, e será "como
a árvore plantada junto a ribeiros de águas". Faça da Bíblia o seu braço
direito, o companheiro da todas as horas, e terá poucos motivos para
lamentar o seu equipamento deficiente em coisas inferiores.
Irmãos, gostaria imensamente de inculcar-lhes a verdade de que um
homem pobremente equipado pode compensar isso com farto
pensamento. Pensar é melhor do que possuir livros. Pensar é um
exercício da alma que tanto desenvolve as suas faculdades como as
educa. Alguém perguntou a uma menina se ela sabia o que era a alma e,
para surpresa de todos, ela disse: "Senhor, a minha alma é o meu
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 254
pensar". Se isto estiver correto, algumas pessoas têm muito pouca alma.
Sem pensamento, a leitura não pode beneficiar a mente, mas pode iludir
o homem com a idéia de que está ficando mais sábio. Os livros são uma
espécie de ídolos para alguns homens. Como a imagem para o católico
romano visa a fazê-lo pensar em Cristo, e com efeito o mantém longe de
Cristo, assim os livros visam a fazer os homens pensarem, mas muitas
vezes são um empecilho para o pensamento.
Quando George Fox pegou uma aguda faca e cortou um par de
calções de couro para si próprio e, desligando-se das modas da
sociedade, ocultou-se numa árvore oca para ficar ali meses a pensar,
estava se tornando um homem de pensamento diante de quem os homens
de livros rapidamente batiam em retirada. Que alvoroço ele causou, não
só entre papismos, episcopados e presbitérios do seu tempo, mas também
entre os mui versados dignitários dos dissidentes. Ele varreu totalmente
as teias de aranha dos céus, e fez os cupins de livros passarem maus
bocados.
O pensamento é a espinha dorsal do estudo, e se mais ministros
pensassem, que bênção seria! Somente queremos homens que pensem na
verdade revelada de Deus, e não sonhadores que façam desenvolver-se
religiões dos seus próprios sentidos. Hoje em dia estamos praguejados
com um bando de sujeitos que acham de firmar-se sobre a cabeça e de
pensar com os pés. A sua noção de meditação consiste em romancear.
Em vez de considerar a verdade revelada, excogitam um prato de sua
invenção pessoal em que o erro, o absurdo e a presunção aparecem em
partes quase iguais; e a esse caldo chamam "pensamento moderno".
Precisamos de homens que procurem pensar direito, e ainda pensar com
profundidade, porque estarão pensando os pensamentos de Deus.
Longe de mim concitá-los a imitar os jactanciosos pensadores desta
época, que esvaziam os seus salões de culto, e depois se ufanam de que
pregam a ouvintes cultos e intelectuais. Miserável hipocrisia! Pensar
fervorosamente nas coisas em que cremos firmemente é coisa
inteiramente diversa, e a isto os incito. Pessoalmente devo muito a
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 255
muitas horas, e mesmo dias, passados a sós, debaixo de um velho
carvalho, às margens do rio Medway. Por motivo de estar um tanto mal
de saúde na época em que eu estava deixando a escola, foi-me permitido
considerável lazer, e, armado de excelente vara de pescar, peguei alguns
peixinhos, e me deleitei com muitos sonhos fagueiros, de mistura com
sondagens do coração, e muito ruminar conhecimentos adquiridos. Se os
meninos pensassem, seria bom dar-lhes menos trabalho em salas de aula
e mais oportunidade para pensarem. Só empanturrar-se, sem nenhuma
digestão, deixa a carne destituída de músculos, e isto é ainda mais
deplorável mentalmente do que fisicamente. Se a sua igreja não for
suficientemente numerosa para dar-lhe uma biblioteca, irmão, exigirá
menos do seu tempo e, tendo tempo para meditar, você se sairá até
melhor do que os seus colegas que dispõem de muitos livros e de pouco
espaço de tempo para serena contemplação.
Sem livros, o homem pode aprender muito mantendo os olhos
abertos. Da história atual, dos incidentes que transpiram debaixo do seu
nariz, dos fatos registrados no jornal, dos assuntos da conversação
comum – disso tudo ele pode aprender. A diferença entre ter e não ter
olhos é maravilhosa. Se você não tem livros, experimente os olhos.
Mantenha-os abertos por onde andar, e encontrará algo que vale a pena
ver. Você não é capaz de aprender da natureza? Cada flor está à sua
espera, para ensiná-lo. Olhe "os lírios" e aprenda das rosas. Não é só à
formiga que você pode ir, mas todos os seres vivos se oferecem para dar-
lhe instrução. Há uma voz em cada rajada de vento, e uma lição em cada
grão de pó que ela arrasta. Sermões cintilam de manhã em cada folha de
relva, e homilias adejam ao seu redor ao cair das folhas secas. Uma
floresta é uma biblioteca, uma lavoura é um tomo de filosofia, a rocha é
história, e o rio em seu leito é um poema.
Vá, você que tem os olhos abertos, e descubra lições de sabedoria
por toda parte, em cima no céu, embaixo na terra, e nas águas debaixo da
terra. Comparados com estas riquezas, os livros são coisas pobres.
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 256
Além disso, por limitadas que sejam as suas bibliotecas, você pode
estudar-se a si próprio. Este é um misterioso volume, a maior parte do
qual você não leu. Se alguém pensa que se conhece completamente,
engana-se, pois o 'livro mais difícil que você jamais leu é o seu próprio
coração. Outro dia eu disse a uma pessoa cheia de dúvidas, que parecia
estar vagando num labirinto: "Pois bem, não posso compreendÊ-lo, mas
isto não me dá vexame, porque nunca pude compreender-me a mim" – e
realmente eu quis dizer isso mesmo. Observe os rodeios e giros e
singularidades da sua mente, e as estranhas peculiaridades da sua
experiência pessoal; a depravação do seu coração e a obra da graça
divina; a sua tendência para pecar e a sua capacidade para santificar-se;
quanta afinidade você tem com o diabo e, todavia, quão unido está a
Deus!
Note com que sabedoria você pode agir quando ensinado por Deus,
e como se comporta estultamente quando entregue a si próprio. Verá que
o estudo do seu coração é de imensa importância para você, como vigia
das almas dos outros. A experiência pessoal de um homem deve servir-
lhe de laboratório em que ele testa os remédios que prescreve para
outros. Até mesmo os seus erros e fracassos lhe instruirão, se os levar ao
Senhor. Homens absolutamente sem pecado seriam incapazes de
compadecer-se de homens e mulheres imperfeitos. Estude os tratamentos
que o Senhor dá à sua alma, e você saberá mais das maneiras como Ele
age com os outros.
Leia outros homens. São tão instrutivos como os livros.
Suponhamos que chegasse a um dos nossos grandes hospitais um
estudante jovem e tão pobre que não pudesse comprar livros de cirurgia.
Ser-lhe-ia por certo grande prejuízo. Mas, se ele conhecesse o programa
do hospital, se assistisse às operações realizadas, e observasse as
ocorrências clínicas dia após dia, não me espantaria se ele se tornasse um
cirurgião tão habilitado como os seus colegas mais favorecidos. A sua
observação lhe mostraria o que, sozinhos, os livros não poderiam
mostrar. E, ficando por perto para ver a amputação de uma perna, o
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 257
curativo de uma ferida, a ligação de uma artéria rota, ele poderia, no
mínimo, pegar cirurgia prática o bastante para prestar-lhe serviço
imenso. Pois bem, muita coisa que o ministro precisa saber ele tem que
aprender pela observação dos fatos.
Todos os pastores sábios têm andado pelos hospitais,
espiritualmente falando, e lidado com perguntadores, hipócritas,
extraviados, aflitos e presunçosos. O homem que teve sólida experiência
prática nas coisas de Deus, e que observou os corações dos seus
semelhantes – não tendo nada a impedir-lhe os passos – será um homem
muito mais útil do que aquele que só sabe o que leu. É uma lástima, um
homem ser um estudante janota, que sai da sala de aulas como de uma
caixa de embalagem. para um mundo que jamais viu, para lidar com
pessoas que nunca tinha observado, e para manipular fatos com os quais
nunca tivera contato pessoal. "Não seja neófito", diz o apóstolo. E é
possível ser um neófito, e, contudo, ser um erudito consumado, um
clássico, um matemático, e um teólogo teórico. Devemos ter
conhecimento prático das almas humanas, e, se tivermos abundância
desse conhecimento, a escassez de nossos livros será uma aflição leve.
"Mas", indaga um irmão inquiridor, "como se pode ler um
homem?" Ouvi falar de um cavalheiro de quem se dizia que você nunca
poderia deter-se com ele por cinco minutos sob uma arcada qualquer sem
que ele lhe ensinasse alguma coisa. Esse era um sábio. Mas seria mais
sábio ainda aquele que nunca parasse debaixo de uma arcada sem
aprender alguma coisa de outrem. Os sábios tanto podem aprender de um
tolo como de um filósofo. O tolo é um esplêndido livro em que ler,
porque todas as folhas estão abertas diante de você. Há uma pitada de
comicidade nesse gênero, que o incita a prosseguir na leitura, e, se você
não colher mais nada, fica advertido a não publicar a sua própria tolice.
Aprenda dos santos experimentados. Que coisas profundas alguns
deles podem ensinar-nos, a nós, mais jovens! Que casos exemplares os
pobres de Deus podem narrar, das intervenções providenciais do Senhor
a favor deles! Como se gloriam na divina graça que os sustenta e na
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 258
fidelidade de Deus para com a Sua aliança! Que novas luzes eles
derramam muitas vezes sobre as promessas, revelando significados
ocultos aos carnalmente sábios, mas tornados claros aos corações
simples! Você não sabe que muitas promessas estão escritas com tinta
invisível, e têm que ser expostas ao fogo da aflição para que se vejam as
letras? Santos provados são grandes instrutores de ministros.
Em relação ao perguntador, quanto se pode obter dele! Tenho
enxergado muita asneira minha enquanto converso com almas
inquiridoras. Fui ludibriado por um pobre rapaz quando tentava levá-lo
ao Salvador. Eu pensava que o tinha seguro, mas ele se esquivava vez
após vez, com o perverso engenho da incredulidade. Às vezes os
perguntadores realmente inquietos me surpreendem com a sua singular
habilidade para combater a esperança; os seus argumentos são
intermináveis, e incontáveis os seus problemas. Eles nos colocam
repetidamente num beco sem saída. Afinal a graça de Deus nos capacita
a trazê-los à luz, no entanto, não antes de vermos a nossa própria
ineficiência. Nas inusitadas perversidades da descrença, as singulares
interpretações ou falsas proposições que os desalentados dão aos seus
sentimentos e às declarações bíblicas, muitas vezes você achará um
mundo de instruções. Eu preferiria que um jovem passasse uma hora
com os perguntadores ou com os mentalmente deprimidos do que uma
semana em nossas melhores aulas, no que diz respeito ao treinamento
prático para o pastorado.
Um ponto mais – esteja muitas vezes ao lado dos leitos de morte.
São livros iluminados. Ali você lerá a porta autêntica da nossa religião e
aprenderá os seus segredos. Que gemas esplêndidas são levadas à praia
pelas ondas do Jordão! Que lindas flores crescem em suas ribanceiras!
Os mananciais sempiternos do país da glória lançam para o alto os seus
jatos, e as gotas do orvalho gotejam deste lado da estreita corrente!
Tenho ouvido humildes homens e mulheres na hora da sua partida
falarem como inspirados, proferindo estranhas palavras, resplandecentes
de suprema glória. Não as aprenderam dos lábios de ninguém debaixo da
Lições aos Meus Alunos – Vol. 2 259
lua; só podem tê-las ouvido quando estavam sentados nos subúrbios da
Nova Jerusalém. Deus sussurra em seus ouvidos em meio às suas dores e
fraquezas, e depois eles nos contam um pouco do que o Espírito lhes
revelou. Largarei todos os meus livros, se puder ver os Elias do Senhor
subirem em seus carros de fogo.

Você também pode gostar