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Christie
Um crime no
Expresso
do Oriente
ÍNDICE
PARTE I Os Factos
PARTE II Depoimentos
OS FACTOS
Capítulo 1
UM PASSAGEIRO IMPORTANTE
NO EXPRESSO TAURO
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sempre em casos assim. O temperamento do general –
do seu general – piorara cada vez mais. E depois apare-
cera este estrangeiro belga – diretamente de Inglaterra,
segundo o que se dizia. Foi uma semana... uma semana
de inusitada tensão. E depois aconteceram certas coisas.
Um oficial notável suicidara-se, outro demitira-se – os
rostos ansiosos perderam subitamente a ansiedade, cer-
tas precauções militares afrouxaram. E o general – o
general a quem o tenente Dubosc reportava – pareceu
rejuvenescer dez anos.
Dubosc chegara mesmo a ouvir acidentalmente uma
conversa entre ele e o belga: «Salvou-nos, mon cher»,
dissera o general com emoção, o grande bigode branco
tremendo-lhe enquanto falava. «Salvou a honra do
exército francês – evitou uma grande carnificina! Como
posso agradecer-lhe por ter acedido ao meu pedido? Vir
de tão longe...»
O estrangeiro (que dava pelo nome de M. Hercule
Poirot) fornecera então uma resposta oportuna que
incluía a frase: «E eu esqueceria por acaso que já me
salvou a vida uma vez?» E o general dera também uma
resposta oportuna, negando qualquer mérito por esse
serviço passado, e, por entre mais menções à França, à
Bélgica, à glória, à honra e coisas afins, tinham-se abra-
çado efusivamente e a conversa terminara.
O tenente Dubosc continuava ainda às escuras sobre
o que é que se tinha passado, só sabia que o tinham
encarregado de acompanhar M. Poirot ao Expresso
Tauro, tarefa que estava a desempenhar com todo o zelo
e entusiasmo próprios de um oficial jovem com uma
auspiciosa carreira diante de si.
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– Hoje é domingo – disse o tenente Dubosc. – Ama-
nhã à tarde, já estará em Istambul.
Não era a primeira vez que fazia aquela observação.
As conversações numa plataforma de embarque, antes
de o comboio partir, tendem a ser algo repetitivas.
– Assim é.
– E, segundo creio, pretende demorar-se por lá
alguns dias?
– Mais oui. Istambul, uma cidade que nunca visitei.
Seria uma pena passar apenas por lá, comme ça. – E
estalou os dedos de modo expressivo. – Não há pressas,
vou demorar-me por lá uns dias, como turista.
– Santa Sofia, uma maravilha – disse o tenente
Dubosc, que nunca vira esse templo.
– Um vento frio silvou pela plataforma. Ambos tiri-
taram. O tenente Dubosc conseguiu deitar um olhar
sub-reptício ao relógio. Cinco para as cinco só faltavam
mais cinco minutos!
Pensando que o outro notara aquele olhar sub-rep-
tício, apressou-se a entabular conversa novamente.
– Pouca gente viaja nesta época do ano – disse,
olhando de relance para as janelas da carruagem-cama
acima deles.
– Assim é – concordou Poirot.
– Esperemos que o Tauro não fique preso na neve!
– Pode acontecer isso?
– Já aconteceu, já. Não este ano, pelo menos até
agora.
– Esperemos então que não – disse M. Poirot. – As
previsões meteorológicas para a Europa são más.
– Muito más. Nos Balcãs há muita neve.
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– Na Alemanha também, pelo que ouvi dizer.
– Eh bien! – disse o tenente Dubosc, apressadamente,
quando parecia que ia haver nova pausa. – Amanhã à
tarde, às sete e quarenta, estará em Constantinopla.
– Sim – disse Poirot, e prosseguiu com algum deses-
pero: – Santa Sofia, ouvi dizer que é maravilhosa.
– Magnífica, segundo creio.
A cortina de um dos compartimentos da carrua-
gem-cama acima deles foi levantada e uma mulher
jovem olhou para fora.
Mary Debenham tinha dormido pouco desde que
deixara Bagdade, na quinta-feira anterior. Não conse-
guira dormir bem, nem no comboio para Kirkuk, nem
na hospedaria em Mossul, nem na noite anterior no
comboio. E agora, esgotada por ter permanecido acor-
dada na cama naquele ar quente e pesado do comparti-
mento sobreaquecido, decidiu levantar-se e espreitar lá
para fora.
Devia estar em Alepo. Nada digno de se ver, claro.
Apenas uma comprida plataforma pobremente ilumi-
nada e o ruído de furiosas altercações em árabe algures
por ali. Dois homens estavam a falar em francês por
baixo da sua janela. Um era oficial, o outro um homen-
zinho com uns bigodes enormes. Sorriu tenuemente.
Nunca vira ninguém assim tão agasalhado. Devia estar
muito frio lá fora. Era por isso que o calor no comboio
era tão terrível. Tentou forçar a janela um pouco mais
para baixo, mas em vão.
O revisor da carruagem-cama acercara-se dos dois
homens. Disse que o comboio estava prestes a partir;
que era melhor Monsieur embarcar. O homenzinho tirou
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o chapéu. Mas que cabeça em forma de ovo ele tinha!
Apesar das suas preocupações, Mary Debenham sorriu.
Que homenzinho de aspeto mais ridículo! O género de
homenzinho que ninguém levaria a sério.
O tenente Dubosc estava a proferir o seu discurso
de despedida. Tinha-o preparado de antemão e guarda-
ra-o até ao último minuto. Era um discurso admirável
e cortês.
Para não ficar atrás, M. Poirot respondeu-lhe na
mesma moeda.
– En voiture, Monsieur – disse o revisor.
M. Poirot subiu a bordo do comboio com um ar
de infinita relutância. O revisor subiu atrás dele. Poi-
rot acenou com a mão. O tenente Dubosc correspondeu
à saudação. O comboio avançou lentamente com um
enorme solavanco.
– Enfin! – murmurou M. Hercule Poirot.
– Brrrrr – disse o tenente Dubosc, tomando plena
consciência de como se sentia enregelado...
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M. Poirot assentiu.
– Não há muita gente a viajar, imagino? – disse ele.
– Não, Monsieur. Tenho apenas mais dois passagei-
ros, ambos ingleses. Um coronel da Índia e uma jovem
senhora inglesa de Bagdade. Monsieur deseja alguma
coisa?
Monsieur pediu uma garrafa de Perrier.
Cinco da manhã é uma hora estranha para se embar-
car num comboio. Ainda faltavam duas horas para o
dia nascer. Consciente de uma noite mal dormida e de
uma delicada missão cumprida com êxito, M. Poirot
encolheu-se num canto e adormeceu.
Quando acordou já passava das nove e meia e diri-
giu-se energicamente para a carruagem-restaurante à
procura de café quente.
Nesse momento só estava lá uma pessoa, obviamente
a jovem senhora inglesa que o revisor mencionara. Era
alta, esguia e morena – talvez vinte e oito anos. Mos-
trava uma atitude segura e fria no modo como tomava o
pequeno-almoço e chamava o empregado para lhe trazer
mais café, o que revelava um conhecimento do mundo e
de quem estava habituado a viajar. Vestia roupa própria
para viajar de um tecido escuro e leve, visivelmente ade-
quado à atmosfera aquecida do comboio.
Sem nada melhor para fazer, M. Hercule Poirot dis-
pôs-se a passar o tempo a observá-la sem aparentemente
estar a fazê-lo.
Segundo julgava, era o género de jovem que sabia
tomar conta de si com perfeito à-vontade para onde quer
que fosse. Havia nela elegância e segurança. Gostou
bastante daquela severa regularidade das feições e da
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delicada palidez da pele. Gostou do seu cabelo escuro,
brilhante e ondulado, e dos olhos, frios, impessoais e
acinzentados. Mas era, concluiu, demasiado altiva para
ser aquilo a que chamava uma jolie femme.
Outra pessoa entrou então na carruagem-restau-
rante. Um homem alto, entre os quarenta e os cinquenta
anos, magro, pele morena, cabelo ligeiramente grisalho
nas fontes.
O coronel da Índia, disse Poirot para si próprio.
O recém-chegado fez uma ligeira vénia à jovem.
– Bom dia, Miss Debenham.
– Bom dia, coronel Arbuthnot.
O coronel tinha a mão pousada na cadeira em frente
à da jovem.
– Permite-me? – perguntou.
– Certamente. Sente-se.
– Bem, como sabe, o pequeno-almoço nem sempre é
uma refeição para conversas.
– Espero bem que não. Mas eu não mordo.
O coronel sentou-se.
– Rapaz! – chamou ele com modos perentórios.
Pediu ovos e café.
Pousou os olhos por um momento em Hercule Poi-
rot, mas desviou-os logo com indiferença. Interpretando
corretamente a mentalidade inglesa, Poirot sabia que ele
dissera para si mesmo: «O raio de um estrangeiro qual-
quer»
Fiéis à sua nacionalidade, os dois ingleses não eram
muito conversadores. Trocaram uns breves comentários
e pouco depois a rapariga levantou-se e voltou para o
seu compartimento.
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Partilharam novamente a mesa ao almoço, e de novo
ambos ignoraram por completo o terceiro passageiro.
A conversa foi mais animada do que ao pequeno-
-almoço. O coronel Arbuthnot falou do Punjab e oca-
sionalmente fazia algumas perguntas sobre Bagdade,
depreendendo-se que ela tinha desempenhado um cargo
de precetora. No decurso da conversa descobriram
alguns amigos comuns, o que teve o efeito imediato
de os tornar mais amigáveis e menos rígidos. Falaram
então do velho Tommy Fulano e Jerry Sicrano. O coro-
nel perguntou-lhe se ia diretamente para Inglaterra ou
se se demoraria em Istambul.
– Não, vou diretamente.
– E não tem pena?
– Fiz este percurso há dois anos e passei então três
dias em Istambul.
– Oh, compreendo. Bem, devo dizer que fico con-
tente por seguir diretamente, pois o mesmo acontece
comigo.
Fez uma espécie de pequena vénia desajeitada,
corando um pouco.
É suscetível o nosso coronel, pensou Hercule Poirot,
algo divertido. Viajar de comboio é tão perigoso como
uma viagem por mar.
Miss Debenham disse, impassível, que isso seria
muito agradável. Mas a sua atitude era ligeiramente
reservada.
Poirot reparou que o coronel a acompanhou ao
compartimento. Mais tarde atravessavam o magnífico
cenário do Tauro. A rapariga deu subitamente um sus-
piro quando estavam no corredor ao lado um do outro
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a observarem os Portões da Cilícia lá em baixo. Poirot
estava perto deles e ouviu-a murmurar:
– É tão bonito! Quem me dera... quem me dera...
– Sim?
– Quem me dera poder desfrutar disto!
Arbuthnot não disse nada. A linha quadrada do maxi-
lar pareceu tornar-se um pouco mais austera e severa.
– Deus sabe como eu gostaria que estivesse fora de
tudo isto – disse ele.
– Cale-se, por favor. Cale-se.
– Oh!, não há problema. – Lançou um olhar ligei-
ramente aborrecido na direção de Poirot. E prosseguiu:
– Mas não me agrada a ideia de a ver como precetora,
sempre às ordens de mães tiranas e dos seus fedelhos
cansativos.
Ela riu com uma entoação que sugeria alguma perda
de controlo.
– Oh!, não deve pensar assim. A precetora oprimida
não passa de um mito bastante gasto. Asseguro-o de que
os pais é que têm medo de serem maltratados por mim.
Não disseram mais nada. Arbuthnot sentia-se talvez
envergonhado da sua explosão de sentimentos.
Mas que comediazinha mais estranha observo eu
daqui, disse Poirot para si próprio, pensativo.
Iria lembrar-se posteriormente daquele pensamento.
Chegaram a Konia nessa noite, cerca das onze e
meia. Os dois ingleses saíram para distender as pernas,
caminhando para cá e para lá na plataforma cheia de
neve.
M. Poirot sentia-se feliz por estar a observar a ati-
vidade fervilhante da estação através de uma vidraça
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fechada. No entanto, cerca de dez minutos depois,
resolveu que uma lufada de ar fresco não seria afinal má
ideia. Fez preparativos cuidadosos, embrulhando-se em
vários casacos e abafos e enfiando as botas impecáveis
em galochas. Assim ataviado, desceu cautelosamente
para a plataforma e começou a percorrê-la. Caminhou
para lá da locomotiva.
Foram as vozes que lhe chamaram a atenção para
os dois vultos indistintos na sombra de um vagão de
mercadorias. Arbuthnot estava a dizer:
– Mary...
A rapariga interrompeu-o.
– Agora não. Agora não. Quando tudo tiver pas-
sado. Quando tivermos deixado isto para trás... e então...
M. Poirot afastou-se discretamente, pensativo.
Quase não teria reconhecido a voz fria e segura de
Miss Debenham. Curioso, disse para consigo.
No dia seguinte interrogou-se se os dois não teriam
talvez discutido. Falavam pouco um com o outro. A
rapariga pareceu-lhe ansiosa. Tinha olheiras.
Eram cerca das duas e meia da tarde quando o com-
boio se deteve. As cabeças espreitaram para fora das
janelas. Um pequeno grupo de homens amontoava-se
junto da linha, a olhar e a apontar para algo debaixo da
carruagem-restaurante.
Poirot debruçou-se e falou para o revisor que pas-
sava todo apressado.
O homem respondeu e Poirot recuou, e ao voltar-se
quase colidiu com Mary Debenham, que estava mesmo
atrás dele.
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– O que é que aconteceu? – perguntou ela em fran-
cês e quase sem fôlego. – Por que é que parámos?
– Não é nada, Mademoiselle. Foi algo que se incen-
diou debaixo da carruagem-restaurante. Nada de grave.
Já apagaram o fogo. Estão agora a reparar os estragos.
Não há qualquer perigo, asseguro-lhe.
Ela esboçou um pequeno gesto abrupto, como se a
ideia de perigo fosse algo completamente sem impor-
tância.
– Sim, sim, compreendo. Mas o tempo!
– O tempo?
– Sim, isto vai atrasar-nos.
– É possível... sim – concordou Poirot.
– Mas não nos podemos dar ao luxo de atrasos!
Está previsto o comboio chegar às 6.55 e temos de atra-
vessar o Bósforo e apanhar o Expresso do Oriente-Sim-
plon na outra margem às nove horas. Se houver uma ou
duas horas de atraso, vamos perder a ligação.
– É possível, sim – admitiu ele.
Olhou para ela com curiosidade. A mão agarrada à
barra da janela não estava bem firme, e os lábios tam-
bém lhe tremiam.
– Isso tem muita importância para si, Mademoi-
selle? – perguntou-lhe.
– Sim. Sim, tem. Eu... eu tenho de apanhar esse
comboio.
Afastou-se e avançou pelo corredor para se juntar
ao coronel Arbuthnot. Mas aquela ansiedade era porém
desnecessária. O comboio retomou a marcha dez minu-
tos depois. Chegou a Haydapassar apenas com cinco
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minutos de atraso, tinha conseguido recuperar durante
a viagem.
O Bósforo estava agitado e M. Poirot não apreciou
a travessia. Tinha-se separado dos companheiros de via-
gem no barco e não tornou a vê-los.
Ao chegar à ponte de Gálata, dirigiu-se diretamente
para o Hotel Tokatlian.
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Capítulo 2
O HOTEL TOKATLIAN
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– Com certeza, Monsieur. Nesta altura do ano não
haverá dificuldade. Os comboios estão quase vazios.
Primeira ou segunda classe?
– Primeira.
– Très bien, Monsieur. Vai viajar para onde?
– Para Londres.
– Bien, Monsieur. Vou arranjar-lhe passagem para
Londres e reservar-lhe um compartimento na carrua-
gem-cama Istambul-Calais.
Poirot voltou a dar uma olhadela ao relógio. Eram
dez para as oito.
– Tenho tempo para jantar?
Mas com certeza, Monsieur.
O homenzinho belga acenou com a cabeça. Voltou à
receção para cancelar a reserva do quarto e atravessou o
vestíbulo para o restaurante.
Uma mão pousou-lhe no ombro quando fazia o seu
pedido ao empregado.
– Ah!, mon vieux, mas que prazer inesperado! –
disse uma voz atrás de si.
Era um homem de idade, baixo, robusto, de cabelo
cortado en brosse. Sorria com deleite.
Poirot levantou-se de um salto.
– M. Bouc!
– M. Poirot!
M. Bouc era belga, diretor da Compagnie Interna-
tionale des Wagons Lits, e a sua amizade com a velha
celebridade da Força Policial belga datava de há muitos
anos.
– Está longe de casa, mon cher – disse M. Bouc.
– Um pequeno compromisso na Síria.
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– Ah! E quando volta para casa?
– Esta noite.
– Esplêndido! Eu também. Isto é, vou até Lausana,
onde tenho uns compromissos. Presumo que viajará no
Oriente-Simplon?
– Sim. Acabei de pedir que me arranjassem uma
passagem. Era minha intenção permanecer aqui por
uns dias, mas recebi um telegrama solicitando o meu
regresso a Inglaterra para um assunto importante.
– Ah! – suspirou M. Bouc. – Les affaires... les affaires!
Mas você... você agora está bem no topo da carreira,
mon vieux!
– Algum pequeno êxito que tive, talvez. – Hercule
Poirot tentou parecer modesto mas falhou rotunda-
mente.
M. Bouc riu.
– Encontramo-nos mais tarde – disse.
Hercule Poirot concentrou-se na operação de man-
ter os bigodes fora da sopa.
Terminada aquela complicada operação, olhou em
redor enquanto aguardava o prato seguinte. Havia ape-
nas cerca de meia dúzia de pessoas no restaurante, e
dessa meia dúzia só dois lhe interessavam.
Esses dois estavam sentados a uma mesa não muito
distante. O mais novo era um homem bem-parecido de
trinta anos, assumidamente americano. Não foi ele, no
entanto, mas o companheiro que atraiu a atenção do
detetive.
Era um homem entre os sessenta e os setenta anos.
Assim àquela distância, tinha a aparência gentil de
um filantropo. A cabeça ligeiramente calva, a testa
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abaulada, a boca sorridente exibia uma série de dentes
falsos muito brancos, tudo parecia revelar uma perso-
nalidade benevolente. Apenas os olhos contradiziam
esta conjetura. Eram pequenos, encovados e astuciosos.
Mas não se tratava apenas disso, pois enquanto comen-
tava qualquer coisa com o seu jovem companheiro, o
homem relanceou o olhar pela sala e fixou-o em Poi-
rot por um momento, e durante aquele segundo houve
naquele olhar uma estranha malevolência, uma tensão
pouco natural.
O homem levantou-se então.
– Pague a conta, Hector – disse.
O tom da voz era ligeiramente rouco. Tinha uma
característica algo bizarra, suave, perigosa.
Quando Poirot se reuniu ao amigo no vestíbulo, os
outros dois homens estavam prestes a deixar o hotel.
Estavam a trazer-lhes a bagagem para baixo. O mais
novo supervisionava aquela tarefa. Pouco depois abriu
a porta envidraçada e disse:
– Já está tudo pronto, Mr. Ratchett.
O homem mais velho resmungou em jeito de con-
cordância e desapareceu.
– Eh bien – disse Poirot. – O que acha daqueles dois?
– São americanos – disse M. Bouc.
– Certamente que são americanos. O que eu quis
dizer foi o que pensa deles como pessoas?
– O homem mais jovem pareceu-me bastante agra-
dável.
– E o outro?
– Para lhe ser franco, meu amigo, não quis saber
dele. Causou-me uma impressão desagradável. E você?
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Hercule Poirot ficou um momento sem responder.
– Quando ele passou por mim no restaurante – disse
por fim –, tive uma sensação estranha. Foi como se um
animal bravio... um animal selvagem, mas bem selva-
gem!, percebe... tivesse passado por mim.
– E no entanto, todo ele parecia do mais respeitável
que há.
– Précisément! O corpo... a jaula... é tudo do mais res-
peitável que há... mas o animal selvagem espreita através
das grades.
– Está a ser fantasioso, mon vieux – disse M. Bouc.
– Talvez esteja. Mas não consegui libertar-me da
impressão de que o diabo passou bem perto de mim.
– Aquele respeitável cavalheiro americano?
– Aquele respeitável cavalheiro americano.
– Bem – disse M. Bouc, animadamente. – Pode ser
que sim. Há muita maldade no mundo.
A porta abriu-se naquele momento e o porteiro
encaminhou-se para eles. Tinha um ar preocupado e
ansioso.
– Que coisa extraordinária, Monsieur – disse ele a
Poirot. – Não há no comboio nenhum compartimento
de primeira classe livre.
– Comment? – exclamou M. Bouc. – Nesta altura
do ano? Sem dúvida há algum grupo de jornalistas... de
políticos...?
– Não sei, sir – disse o porteiro, dirigindo-se-lhe res-
peitosamente. – Mas o facto é que é esta a situação.
– Bem, bem – M. Bouc voltou-se para Poirot. – Não
se preocupe, meu amigo. Havemos de arranjar alguma
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coisa. Há sempre um compartimento livre, o número
16. O revisor trata disso tudo! – Sorriu e depois olhou
para o relógio. – Venha. Está na hora de tratarmos disso.
M. Bouc foi cumprimentado na estação com res-
peitosa efusividade pelo revisor da carruagem-cama de
farda acastanhada.
– Boa noite, Monsieur. O seu compartimento é o
número 1.
Chamou os carregadores que levaram aquela carga
até a meio da carruagem, onde as placas de metal pro-
clamavam o destino:
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M. Bouc deu um pequeno estalido de enfado.
– Em Belgrado – disse – chega a carruagem-cama
que vem de Atenas. E chega também a de Bucareste-Pa-
ris... mas só vamos chegar a Belgrado amanhã à noite.
O problema é para hoje à noite. Não há nenhum com-
partimento de segunda classe livre?
– Há um compartimento de segunda classe, Mon-
sieur...
– Bem, nesse caso...
– Mas é um compartimento para senhoras. E já está
ocupado por uma alemã... a dama de companhia de
uma senhora.
– Là, là, mas que situação! – disse M. Bouc.
– Não se preocupe, meu amigo – disse Poirot. – Vou
ter de viajar numa carruagem comum.
– Nem pense nisso! Nem pense nisso! – Voltou-se
novamente para o revisor. – Já chegaram todos?
– Bem, a verdade – disse o homem – é que um dos
passageiros ainda não chegou.
Falava devagar, com hesitação.
– Mas diga lá então!
– Compartimento número 7... segunda classe. O
cavalheiro ainda não chegou, e faltam quatro minutos
para as nove.
– Quem é ele?
– Um inglês. – O revisor consultou a lista. – Um tal
M. Harris.
– Um nome de bom agoiro – disse Poirot. – Conheço
bem o meu Dickens. Esse M. Harris não virá.
– Coloque as bagagens de Monsieur no número 7 –
disse M. Bouc. – Se este M. Harris vier, dir-lhe-emos que
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chegou demasiado tarde... que os compartimentos não
podem ficar retidos por tanto tempo... De uma maneira
ou de outra arranjaremos as coisas. Que me importa a
mim um tal M. Harris?
– Como Monsieur desejar – disse o revisor.
Falou com o carregador de Poirot, indicando-lhe
para onde devia ir.
Depois afastou-se dos degraus para deixar Poirot
embarcar. – Tout à fait au bout, Monsieur – disse. – O
penúltimo compartimento.
Poirot percorreu o corredor num movimento lento,
já que a maior parte dos passageiros estava no exterior
dos seus compartimentos.
Os seus corteses «Pardons» eram proferidos com
uma regularidade de relógio. Alcançou por fim o com-
partimento indicado. Lá dentro estava o jovem ameri-
cano do Tokatlian a arrumar uma mala.
Franziu o sobrolho quando Poirot entrou.
– Desculpe – disse ele. – Creio que se enganou. –
E depois, laboriosamente em francês: – Je crois que vous
avez un erreur.
Poirot replicou em inglês.
– É Mr. Harris?
– Não, chamo-me MacQueen. Eu...
Mas nesse momento ouviu-se a voz do revisor que
falava por detrás de Poirot. Uma voz num tom de des-
culpa e quase sem fôlego.
– Não há mais nenhum compartimento no comboio,
Monsieur. Este cavalheiro terá de ficar aqui.
Estava a subir a janela do corredor enquanto falava
e começou a içar para dentro as bagagens de Poirot.
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Poirot reparou no seu tom de voz com algum diver-
timento. Certamente que lhe tinham prometido uma
boa gorjeta se conseguisse conservar o compartimento
só para o uso do outro passageiro. Contudo, até a gor-
jeta mais generosa perde o seu efeito quando um diretor
da companhia está presente a bordo dando ordens.
O revisor saiu do compartimento após ter colocado
as malas nas prateleiras de cima.
– Voilà, Monsieur – disse. – Está tudo em ordem.
O seu beliche é o de cima, o número 7. Partimos dentro
de um minuto.
Apressou-se pelo corredor fora. Poirot voltou a
entrar no compartimento.
– Um fenómeno a que raramente assisti – disse ele,
de bom humor. – O próprio revisor a arrumar ele mesmo
as bagagens! Nunca se viu!
O seu companheiro de viagem sorriu. Já tinha evi-
dentemente recuperado daquele aborrecimento – prova-
velmente decidira que não valia a pena encarar aquele
assunto a não ser de um modo filosófico.
– O comboio está extraordinariamente cheio – disse
ele.
Soou um apito e a locomotiva deu um longo e
melancólico silvo. Ambos saíram para o corredor.
Lá fora uma voz gritou.
– En voiture.
– Vamos partir – disse MacQueen.
Mas não partiram de imediato. O apito voltou a soar.
– Sir – disse o jovem, de repente –, se preferir o beli-
che de baixo... mais cómodo e tudo isso... bem, por mim
não há problema.
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MacQueen era evidentemente um rapaz muito amá-
vel.
– Não, não – protestou Poirot. – Não quero privá-lo...
– Não há problema...
– É demasiado gentil...
Protestos corteses de ambas as partes.
– É só por uma noite – explicou Poirot. – Em Bel-
grado...
– Oh, compreendo. Vai sair em Belgrado...
– Não exatamente. Sabe...
Um súbito solavanco. Ambos foram à janela e olha-
ram para a longa plataforma iluminada que deslizava
lentamente.
O Expresso do Oriente iniciava a sua viagem de três
dias através da Europa.
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