Você está na página 1de 4

A Psicologia Analítica se erigiu fundamentada em uma base ampla, sólida e

consistente. No entanto, a tormentosa travessia pelo século XX e início do século XXI,


com suas complexidades, transitoriedade e transformações culturais e históricas,
clamou por revisão e ampliação de alguns de seus constructos teóricos e intenso
diálogo com outros saberes. Revisões e desdobramentos ulteriores foram e vem
sendo alavancados por pensadores das novas gerações, o que nos fala de uma clínica
potencialmente viva e potente, que se empenha em conversar com a recente evolução
da análise social e histórica.
Mais do que nunca se faz necessário que busquemos ouvir e conhecer a pluralidade
dos substratos que permeiam as narrativas que chegam até nós,psicoterapeutas e
analistas, e levemos em consideração os preconceitos, estereótipos e anacronismos
que atuam e ferem nossa imaginação, desafiando-nos à mudança fundamental de
perspectiva para dentro da múltipla imaginação da alma. A clínica necessita ir ao
encontro dos muitos lugares e vozes que nos constituem e nos visitam . A atividade
imaginativa é um adentrar e ser adentrado, e à medida que as imagens ganham voz
e independência, a força e a autocracia da consciência egóica monolítica tendem a
se dissolver.
Jung nunca foi um pensador antropocêntrico. Sua teoria sempre levou em
conta inteligências outras oriundas do mundo que nos cerca. E pode-se dizer que,
de certa forma, também não era um universalista, na medida em que sempre foi
atravessado por ideias românticas da multiplicidade das culturas que não as
europeias.

A vitalidade de uma clínica junguiana da atualidade se alimentará também dessa


postura, do deslocamento da noção européia moderna e unilateral de um
autoconhecimento transcendente e encerrado na subjetividade dos sujeitos para um
alterconhecimento que se dirija a um mundo anímico que está em relação com o
sujeito o tempo todo produzindo modos de ser; onde a imanência da alma no mundo
e nas experiências do cotidiano possibilite nossa relação com os fenômenos e
conosco, encorajando a imaginação em múltiplas formas. As fronteiras da alma são
incertas, e o locus do trabalho psicológico diz respeito a essa relação entre nós e o
mundo, um conjunto de processos vivos, para além das nossas noções de
individualidade. A alma pede por sua comunidade, o que inclui, necessariamente,
levar para dentro dos nossos consultórios o mundo que nos rodeia.

Precisamos resgatar a importância do sentimento de comunidade formulado por


Alfred Adler, importante psicanalista da primeira geração, que reverberará na
concepção neoplatônica de anima mundi, resgatada por C. G. Jung e aprofundada
pela Psicologia Arquetípica de James Hillman, a partir dos anos 70. Precisamos
descobrir outras formas de nos relacionarmos com a sabedoria de Gaia. A própria
democracia depende de cidadãos intensamente implicados e ativos, o que começa
com a possibilidade de nos assombrarmos com o mundo.
Vejamos de que forma essa concepção tem se construído na Psicologia Anatica.
Joseph Henderson, médico e analista junguiano da primeira geração, introduz pela
primeira vez o conceito de Inconsciente Cultural em 1962. Ele formula o inconsciente
cultural como uma área da memória histórica que está situada no inconsciente coletivo
e expressa parte da cultura. Seriam como imagens arquetípicas que afloram dos
arquétipos do inconsciente coletivo e contribuem para promover o processo do
desenvolvimento individual. A memória histórica alimentaria o arquétipo e, a partir de
então, se dariam as representações simbólicas direcionadas ao substrato étnico.
Em 1995, as formulações de Michael Vannoy Adams no livro Multicultural
Imagination: Race, Color and the Unconcious, apontarão para a existência de uma
camada coletiva estereotípica, para além da camada arquetípica, no inconsciente,
que interferiria nas nossas concepções e percepções individuais e comunitárias. A
camada arquetípica seria natural, trans-histórica, transcultural e trans-étnica, já a
estereotípica, histórica, cultural e étnica. Nessa concepção, a construção psíquica da
realidade se daria através da mediação de categorias arquetípicas ou estereotípicas.
Em 2000, Thomas Singer e Samuel Kimbles, analistas junguianos contemporâneos,

introduzem o conceito de complexo cultural. Estes proviriam do inconsciente cultural,

que interage com as camadas arquetípicas e pessoais da psique e com a arena do

mundo externo compartilhado das escolas, comunidades, mídias e outras formas de

vida grupal e cultural. Os complexos culturais seriam baseados em experiências

grupais repetitivas e históricas que fincaram raízes no inconsciente cultural do grupo.

A qualquer momento podem ser ativados no inconsciente cultural e tomar a psique

coletiva do grupo e a psique individual ou coletiva de membros individuais do grupo.

A teoria dos complexos de Jung havia ficado restrita aos indivíduos, ele não a explorou

no sentido de compreender a psicopatologia e distúrbios emocionais dos grupos, tribos

e nações. A ideia de complexo cultural será o dispositivo teórico que irá legitimar a

importância da compreensão cultural e histórica, inclusive por parte de nós, analistas,

dos desdobramentos sociais a que estamos submetidos. Na medida em que tomamos

consciência e nos atentamos aos atravessamentos a que nós e nossos pacientes

estamos submetidos, somos convocados a rever nossa escuta, a escutar as narrativas

que chegam até nós de uma forma diferente, de outras perspectivas e outros lugares.

Uma escuta analítica que tem como base as múltiplas vozes que são ou passam a ser

genuínas em uma cultura em dado momento histórico.

À revelia das teorias psicológicas vigentes, o momento cultural que atravessamos e


que nos atravessa, vem reivindicando através de grupos até então colocados à
margem e minorizados e dos movimentos sociais, um lugar de fala, um lugar para
contar de si, de sua forma de estar no mundo, de como sentem a vida em sociedade
atravessando seus corpos, suas peles. Esses grupos nos chamam a fazermos uma
crítica honesta ao nosso modo de estar no mundo como único e universal e nos
abrirmos para uma pluralidade imaginativa, para além da lógica instituída. Nesse
sentido, fazem uma clínica social espontânea.
Nós, analistas, precisamos nos deixar atravessar por essa clínica social em status
nascendi, que clama por uma alma plural,múltipla e que chega até nós através das
narrativas trazidas por nossos pacientes individuais em nossos consultórios.
Necessitamos sair da hegemonia eurocêntrica. Romper a exclusividade com a lógica
colonialista é abrir o mundo para a alteridade, para a existência de outridades, como
afirmou em seu livro “Pele Negra, Máscaras Brancas” o psiquiatra Frantz
Fanon,influente pensador do século XX sobre os temas da descolonização e da
psicopatologia da colonização.

Alguns dos pacientes que adentram nossos consultório já não encontram satisfação

em um mundo regido pela lógica predominante. A acumulação de capital como

objetivo de vida não lhes faz sentido, a competitividade corporativa não lhes motiva.

Sentem-se errados ou culpados por sentirem-se desadaptados e mesmo

desidentificados e não pertencentes às suas comunidades, o que não lhes possibilita

um estar no mundo de uma forma mais autêntica e genuína. Se pudermos nos valer

de valores outros, que não exclusivamente a lógica de mercado, a fantasia do homem

empreendedor de si mesmo, talvez possamos ajudar esses pacientes a olhar para

sua vida de maneira mais digna, criando para si outras ficções e trajetórias. Talvez

seus feitos não produzam riqueza ou façam a roda do capitalismo girar, mas podem

ter significado para a comunidade, para a dignidade de alguém, para um destino

comunitário. Ao utilizarmos também esses valores como referenciais, estamos

retomando a pluralidade constitutiva da qual somos feitos, estamos dando escuta e

lugar para as vozes silenciadas no nosso entorno e dentro de nós.

Em seu livro “100 Anos de Psicoterapia e o Mundo Está Cada Vez Pior”, Hillman sugere

que os consultórios psicológicos podem ser vistos como pequenas células

revolucionárias, uma vez que entendemos que nossos corpos, nossas psiques e

nossas clínicas estão atravessados a todo momento pelos complexos culturais.

Somos seres políticos, a psique é política. Nesse sentido, precisamos trabalhar em

nossas clínicas com outras lógicas que não apenas a capitalista hegemônica de

funcionamento, remontando a pluralidade de uma ancestralidade fundante.

Necessitamos fazer um movimento constante de reconhecimento do privilégio que

damos às narrativas brancas européias para abrir lugares de escuta que nos

permitam dar voz ao que um dia foi julgado como subalterno e inferior e enfrentar o

desafio de facilitar a construção de narrativas necessariamente polifônicas.

Você também pode gostar