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“Eu Estava em Minha Casa e

Esperava que a Chuva Chegasse”


Jean Luc Lagarce

Tradução Maria Clara Ferrer

Personagens: A Mais Velha de Todas


A Mãe
A Filha Mais Velha
A Segunda
A Mais Nova

A Filha Mais Velha

Eu estava na minha casa e esperava que a chuva chegasse.


Eu olhava o céu como eu faço sempre, como eu sempre fiz,
Olhava o céu e olhava o campo ainda que vai descendo devagarzinho,
deixando a nossa
casa para trás, e a estrada que desaparece ao desviar do bosque, lá longe.

Olhava, era de noite e é sempre de noite que eu fico olhando, sempre de


noite que eu
passo horas ao pé da porta, olhando.
Eu estava aqui, em pé, como eu sempre estou, como eu sempre estive,
imagino isso,
eu estava aqui, em pé, e esperava que a chuva chegasse, que ela caísse
sobre o campo, sobre as plantações, e sobre o bosque, e que ela nos
acalmasse,

Esperava.

Será que eu nunca deixei de esperar?

(E na minha cabeça, ainda, ficava pensando nisso: será que eu nunca


deixei de esperar? e isso me fez rir, rir de me ver assim.)

Olhava a estrada e pensava também, como eu penso sempre, à noite,


quando eu fico ao pé da porta esperando que a chuva chegue,
ainda pensava nesses anos que nós tínhamos vivido aqui, assim todos
esses anos,
nós, vocês e eu, nós cinco, como nós sempre estamos, e como nós sempre
estivemos,
estava pensando nisso,
todos esses anos que nós tínhamos vivido e que nós tínhamos perdido,
porque foram anos perdidos,
todos esses anos que nós tínhamos passado à espera dele, do caçula,
desde o dia em que ele partiu, fugiu, nos abandonou,
desde que o pai o expulsou daqui,

hoje, nesse dia preciso, eu estava pensando nisso, nesse dia preciso, eu
estava pensando nisso,

todos esses anos que nós perdemos sem sair daqui, só à espera

( e ainda aí, parece, comecei, mais uma vez, a sorrir de mim mesma, de me
ver assim,
de me imaginar assim, e sorrir assim de mim mesma à beira de lágrimas, e
tive medo de afundar)

Todos esses anos que nós tínhamos vivido à espera dele e perdidas sem
fazer outra coisa que não fosse esperar por ele, sem poder obter nada,
nunca, sem ter outro objetivo que não fosse esse,
e eu pensava, nesse dia preciso, no tempo que eu poderia ter passado
longe daqui, fugindo daqui, no tempo que eu poderia ter passado numa
outra vida, num outro mundo,
idéia minha,
sozinha, sem vocês, as outras aí, sem vocês outras, todas,
todo esse tempo que eu poderia ter vivido diferentemente, simplesmente,
sem esperar, sem esperar mais, ter me soltado de mim mesma.

Esperava a chuva, esperava que ela caísse,


esperava, como, de um certo modo eu sempre esperei, esperava e eu o vi,
eu esperava e foi aí que eu o vi, esse daí o caçula, fazendo a curva do
caminho e subindo em direção de casa, eu esperava sem esperar nada de
preciso
e eu o vi voltar, esperava como eu espero sempre, há tantos anos, sem
esperança de
nada, e foi nesse exato momento que ele apareceu, e que eu o vi.

Um carro vem deixá-lo e ele caminha os últimos cem metros, bolsa jogada
sobre o ombro, em minha direção.
Olho para ele vindo em minha direção, em minha direção, em direção de
casa.
Olho para ele.

Eu não me mexia, mas tinha certeza que seria ele, tinha certeza que era
ele, ele entrava na nossa casa depois de todos esses anos, assim mesmo,
nós sempre tínhamos imaginado que ele voltaria assim, sem prevenir, sem
festa de boas-vindas e ele fez o que nós sempre tínhamos imaginado que
ele faria.
Ele olhava pra frente e caminhava calmamente sem se apressar mas
parecia que não me via, esse daí, o caçula, por quem tanto esperei e perdi
a minha vida esperando
-perdi, sim, não tenho dúvida, e de uma maneira tão inútil, agora, a partir de
agora, eu sei, que eu a perdi-
esse daí, o caçula, voltando das suas guerras, eu o vi enfim e em mim nada
mudou, fiquei espantada com a minha própria calma, nenhum grito como eu
tinha imaginado que eu daria, que vocês dariam, nossa versão das coisas,
nenhum berro de surpresa ou de alegria,
nada.
Eu via, ele andando em minha direção e pensava que ele estava de volta e
que nada ia mudar na minha vida, que foi engano meu.
Solução nenhuma.

(...)

A Mãe

Ele está dormindo?

A Mais Velha de Todas

Levei-o para o quarto dele, esse daí, o mesmo de quando ele era criança.
As meninas me ajudaram, nós o carregamos até o andar de cima e ele está
dormindo.
Chegou exausto, eu acho, não podia mais andar, eu olhava para ele se
arrastando pelos últimos metros, avançava em nossa direção como um
rapaz bêbado, eu não entendia nada, estava exausto parecia prestes a cair
e desmoronar.
A Mãe

E ele não disse nada? Pra você, não lhe disse nada? Uma palavrinha antes
de dormir de novo, de apagar, nem uma palavra?
Queria tanto que ele falasse, que ele nos dissesse alguma coisa, uma
coisinha de nada, sempre a mesma história, que ele diga algo antes de se
esparramar pelo chão, antes de
cair,
queria o som da sua voz
-“Como é que sou, como é que eu sempre fui”-
ele me dava medo, que ele ficasse assim tão calado e que não nos dirigisse
maia a palavra, isso me dava medo e que ele se deitasse em seguida sem
pedir nada, que ele caísse no chão, não sei como dizer, doía em mim, o
início de um sufoco.

Engano meu, não era assim que eu tinha imaginado as coisas.

A Mais Velha de Todas

No quarto dele, nós deixamos as persianas fechadas como elas sempre


ficaram, deixando passar, de dia só um pouco de luz, e de noite, só um
pouco de brisa.
Ele lá na cama dele, nós que sempre guardamos essa cama, sem nunca
termos nem pensado em nos livrar dela.
-Eu tinha ou não tinha razão? Livrar-se dela seria como renunciar à volta
dele –
Esse quarto, era o quarto dele, nós não falávamos sobre isso, eu limpava-o,
arrumava-o até não poder mais e nós nunca nem pensamos em tirar os
móveis dele ou trocar a pintura.
De novo, ele está no quarto dele.

A Mãe

Ele estava ali na minha frente, eu olha para ele, há tantos e tantos anos que
eu o espero, e isso não é pouca coisa não, um filho, o único filho, meu filho
que volta para casa não é pouca coisa não,
e para você também não é pouca coisa não,
e para as meninas, essas daí, vai ver só, para as meninas também isso não
é pouca coisa não.
Ele ali na minha frente, todo esse tempo passado à espera desse momento,
e ele ali na minha frente,
ele mudou, seu rosto está acabado, um rosto mais cavado, mais duro, eu
olhava para ele, é como um rosto de um velho, um estranho rosto de velho
ou um corpo de rapaz que ficou velho cedo demais.
Será que eu sempre achei que ele fosse voltar exatamente, perfeitamente
como ele se foi?
Será que eu sempre imaginei isso?

A Mais Velha de Todas

Ele dorme como ele dormia quando era criança. Desmaiado aos meus pés
tive logo medo de que ele morresse.
Olhava para ele e foi isso que eu me disse: “Ele dorme como ele dormia
quando era criança”.
Engraçado. Nós o pegamos, uma debaixo dos braços, como a gente
sempre vê fazer, como a gente supõe que se deve carregar corpo de
desmaiado, não sei, gente caída no chão, fotografias, quadros,
Nós o pegamos, uma debaixo dos braços e a outra segurando os pés – fui
eu que segurei os pés – e nós subimos até o anadar de cima. Ele ficou leve,
com o corpo mais magro, mas pra gente ainda assim era pesado.
Uma trabalheira.
A pirralha pegou a bolsa, só isso mesmo que lhe interessava. A gente
deixou.

A Mãe

Temos que deixá-lo dormir muito tempo. Acho que ele vai dormir muito
tempo, e quando ele tiver dormido todo esse tempo, um dia, nós veremos o
seu despertar
E o que a gente não recebeu hoje, assim que, o que a gente não obteve,
aquilo que nós tanto esperamos, tanto esperamos todos esses anos que ele
voltasse e assim que ele atravessasse a porta ele nos falasse e nos amasse
e nos dissesse belas coisas, exatamente isso, que ele nos dissesse as
coisas que nós tanto esperamos ouvir, que ele nos reconhecesse, só isso,
que ele me reconhecesse e que ele reconhecesse vocês, e que contasse a
história da sua viagem, todo esse tempo perdido, aquilo que a gente
Não recebeu hoje, aqui, no momento em que ele atravessou a porta, um dia
finalmente nós vamos ouvir tudo isso, não tenho que me preocupar, ele vai
acordar, vai ter dormido muito tempo, ele vai acordar,
ele não vai nem saber onde ele está, o quarto dele, ele não vai nem
reconhecer, teremos que lhe dizer, vamos ter que lhe explicar,
ele vai acordar, exatamente assim, como ele acordava quando era criança e
nós vamos ficar vendo, ele contando o que viveu, o que foi a sua vida, a sua
viagem, todos esses anos perdidos, porque foram anos perdidos, todos
esses anos perdidos. Ele vai se espantar.
Ela ri.
E nós poderemos começar a nos lamentar e ele vai ter que ouvir nossas
belas e longas queixas.

A Mais Velha de Todas

E todo esse tempo, agora, a partir de agora, todo esse tempo, vamos ficar
perto dele, adormecido, vigiando os sinais, é isso que você está dizendo?
Nos revezar uma à outra do lado dele, vigiando os sinais ou do seu
despertar ou do seu assombro cada vez mais devagar, cada vez mais lento,
seu desaparecimento sem voltar pra gente, seu mergulhar num sono mais
que profundo? Sua morte?
Você quer que nunca mais a gente deixe dele?

A Mãe

Temos que esperá-lo, sempre a mesma história, temos que ficar ao lado
dele sim.
Como nós o esperamos desde o dia em que ele partiu, do dia em que nos
deixou para talvez nunca mais voltar, do dia em que o pai dele expulsou-o
de casa.

“O que é que eu podia fazer? Vocês sempre querndo me culpar por não ter
feito nada, por não ter impedido um ou outro, o que é que eu podia ter
feito?”

O tanto que nós o esperamos aqui,


e ainda mais tempo, talvez, depois que o pai dele morre, depois que o pai
dele morreu e que todas as razões de permanecer aqui, as secretas razões
de permanecer foram apagadas,
o tanto que nós esperamos sem nem mais acreditar, talvez, ninguém
confessasse, mas era isso que nós todas pensávamos, todas, até você, que
diz nunca ter mudado, que nada podia fazer você mudar de idéia, quem é
que acredita nisso?
Até você se deixava levar pela dúvida, ia imaginando, pouco a pouco ia
imaginando, ia imaginando que você não o veria mais antes que chegasse a
sua vez de morrer, até você, por mais que você finja, até você, ia
renunciando, aos poucos, quem é que não enxega isso?
E cada uma de nós pensava assim, todas, essas daí tanto quanto,
o tanto que nós esperamos, em vão, sem nem sequer acreditar que ele
voltaria um dia, e a partir de agora,
nós vamos ter que esperar ainda mais
-isso não vai ter fim, e vai ser a minha vez de ser velha, você já vai estar até
morta e eu ainda aqui esperando-
temos que esperar ainda que ele acorde e que ele volte para gente, e que
ele abra os olhos e fale com a gente, e conte a história da sua viagem, deve
ter sido uma viagem, foi assim que nós sempre imaginamos a vida dele, ele
não vai nos decepcionar, uma bela e longa viagem, não? Uma bela e longa
viagem, sempre tão desvairado, pelo mundo inteiro,
que ele acorde e volte para gente e ainda conte todos esses anos, a sua
história
-deve ter feito guerras, guerras e batalhas, não? Um vencedor, que mais?
Não? Que ele acorde e volte para gente e que nós,
cada uma de nós,
nós finalmente lhe contemos a nossa história, todas parecidas e todas
diferentes.

Temos que esperá-lo, ouvir os ruídos, esticar as orelhas e apenas tentar,


apenas isso, e tentar, apenas, vigiar, na cama dele, vigiar o seu fôlego,
E roubar os indícios, os mínimos indícios que o trariam de volta à vida,
o instante preciso,
aquele mesmo momento exato do tempo em que ele era criança, em que
ele acordava e logo já começava a comandar a casa, o meu filhinho, a fazer
com que ela girasse em torno dele, pois ela sempre girou em torno dele
ou uma vigília sem fim, aos poucos, se for necessário, é o que você está
dizendo, ou uma vigília sem fim, e a nossa destruição,
eu não acho isso, não imagino isso e você não vai fazer com que eu
imagine isso, não quero, um naufrágio, sua demissão, vigiar a sua morte,
vê-la chegar, nunca mais ver os seus olhos abertos e nunca mais uma
palavra sua, nenhum sinal seu depois de todos esses anos à sua espera,
todos esses anos perdidos à sua espera.
“Você acha?”

A Mais Velha de Todas

Depois de todos esses anos, mais anos, ainda, é o que você está dizendo?
Aqui em casa à espera dele ainda, no mesmo lugar,
sem nenhum movimento, na ponta dos pés,
esperando o despertar desse aí como se esperássemos o despertar de uma
criança doente no quarto do andar de cima, é nós aqui num revezar sem
fim?
É isso que você está dizendo?
A Mãe

Nós vamos fazer isso, sim, eu vou passar o meu tempo todo à espera de
que ele desperte.
Nós vamos fazer isso, e se vocês não fizerem, s vocês não quiserem, se
essas daí não quiserem, se até você, você me abandonar, se você não me
ajudar, vou fazer tudo sozinha sim, vou ficar aqui, e vou esperar sozinha,
qual é o problema?

(...)

A Segunda

No dia em que ele voltar, eu fico repetindo isso para mim mesma, todos
esses anos, eu fiquei repetindo isso para mim mesma, no dia em que ele
voltar – nunca duvidei que ele voltaria –
No dia em que ele voltar, eu vou colocar o meu vestido vermelho, aquele
que vocês detestam, sempre detestaram, meu vestido vermelho que me
deixa com um ar vulgar de garota de sábado à noite, eu corro e enfio o meu
vestido vermelho e ele me encontra tal como ele m e deixou.
É ótimo. Ele ri.

A Filha Mais Velha

Quando ele passou ao pé da porta, deixou a sua bolsa,


quando ele passa ao pé da porta, entra pela sombra da casa, se vê mal,
mal o vejo,
adivinho que é ele,
contra a luz, se vê mal, a luz atrás dele, tinha certeza que se veria mal, e
que os seus olhos, eu não poderia adivinhá-los, apenas a sua silhueta
ocupando a entrada da casa, e os seus olhos na escuridão,

Quando ele passa ao pé da porta e deixa deslizar a sua bolsa, uma bolsa
de marinheiro, uma bolsa como aquelas que os marinheiros usam,
-então eu pensei: “Será que eu já vi uma bolsa de marinheiro na minha
vida?” foi isso o que eu pensei-
bolsa de marinheiro ou então bolsa de militar, aquelas tipo um rolinho,
cumpridas, onde nunca, foi o que eu sempre pensei, onde nunca que as
roupas podem ficar arrumadas corretamente,
foi o que eu pensei, e ri de novo, acho que ri de novo por estar pensando
nesses detalhes,
(e sempre à beira das lágrimas, por um triz)

quando ele volta. Quando finalmente ele volta, e eu ri de mim mesma, da


importância dada aos detalhes, a importância imbecil, assustadora que eu
dou aos detalhes, quando o caçula, esse daí, depois de todos esses anos
perdidos à sua espera,
quando o caçula finalmente, quando o caçula volta, a coisa pela qual talvez
eu mais esperei a minha vida toda, todos esses anos, e quando finalmente
o caçula volta, ri comigo mesma, ficar pensando nessa bolsa, no uso dessa
bolsa, na forma da bolsa,
não ter nada melhor para pensar – será que é uma bolsa de marinheiro? Ou
então é uma bolsa de militar? - -isso me fez rir comigo mesma,

e eu lá ainda tentando afastar esse pensamento idiota, esse pensamento


indigno, pois eu achava indigno, foi o que eu pensei é um pensamento
indigno, indigno para um momento como esse, me veio assim, e ri, acho
que sim, ri talvez mais ainda disso tudo, e essa coisa que me vem na
cabeça:
-querer pensar em coisas nobres, essa expressão, coisas nobres e se
deixar levar por esses detalhes, esses detalhes imbecis bem no meio do
que a gente queria que fosse as horas mais importantes das nossas vidas-
me veio de novo na cabeça a coisa da bolsa, de saber se essa bolsa aí,
caída aos meus pés, se essa bolsa que nesse momento desliza do seu
ombro em direção ao chão, se essa bolsa, bolsa de marinheiro ou bolsa de
militar, se essa bolsa é a mesma bolsa que ele tinha quando nos deixou,
exatamente a mesma,
e eu não consigo me lembrar, não me lembro,
e eu fico preocupada com essa coisa,
esses detalhes imbecis, é bobagem minha, e fico rindo, acho que sim, fico
rindo da
minha bobagem
e de apesar disso não conseguir afastar essa idéia de mim.
Ele atravessa os últimos metros que levam até op pátio de casa, e sobe os
três degraus que dão diretamente na nossa sala.

Imóvel na entrada, ele não nos diz nada, olha a sala por dentro e fica
espantado.
Aquele olhar espantado dele,
Aquele olhar espantado que ele tinha quando era criança, o mesmo olhar
espantado que ele tinha quando ele partiu,
quando o pai dele o expulsou,
quando nosso pai o expulsou,
quando nosso pai o expulsou e que ele teve que nos deixar, quando ele nos
deixou, ele tinha esse olhar espantado já.

Nos momentos mais brutais, mais inesperados da vida, ele sempre parecia
surpreso,
Espantado, é não tenho outra palavra, espantado, no auge do seu espanto.
O espanto para ele era uma maneira de exprimir a injustiça, de exprimir a
descoberta da injustiça,
Seu rosto de criança ficava ainda mais de criança nessa horas, me lembro
bem,
Assim que ele entrou, ele ali, bem na nossa frente, me veio a lembrança
desse olhar e sorri sem saber por quê.
Era ele, exatamente, o caçula, com aquele seu olhar espantado.

Ele não nos disse nem uma palavra, reconheceu a sala. Sorriu apenas.
Sorriu e ficou espantado em nos ver, ver a casa por dentro e nos ver.
E só.

(...)

A Segunda

Eu com meu vestido vermelho sou a primeira que ele vê, a única que ele vê
e reconhece logo,
Com o meu vestido vermelho, fico pensando, sou a que ele reconhece
primeiro, ele ri,vejo que ele ri, se lembra desse vestido e dos ensaios de
dança, dos sofridos ensaios de dança pela tarde afora, a aprendizagem,
cada um queria levar o outro no seu ritmo, a preparação das nossas
entradas na pista do salão,
ele ri como se ele gozasse de mim e eu fico feliz de ouvir o riso dele assim.

A Mãe

Não ri nada.
Você nem teve tempo de se trocar, coitada,
a gente só imagina – você nunca vai mudar mesmo! – a gente só imagina,
você cavalgando por essas escadas procurando, com essa tua boca suja,
procurando esse seu vestido no armário.
Deve estar todo sujo enfiado num canto, amassado, aquele vestido
vermelho de aparato, tão vulgar, a gente só imagina,
ele mal põe o pé ma entrada de casa, e cai, e desmaia, e não nos diz nada,
nem uma palavra,
desmorona e eu mal o vejo, seu olhar eu mal o vejo, só vejo o corpo dele
desmoronado, ali,aos meus pés.
E você ali, como eu, como todas nós, essas daí, você do meu lado,
segurando a minha mão, não teve tempo de fazer foi nada, nem um gesto,
nada.
Só olha.

(...)

A Mais Nova

Quando o corpo dele demoronou lentamente, eu nem mexi, eu acho.


Vi seu corpo cair no chão, e pensei ele está caindo e só.
Cada uma ficou no seu lugar. Como se cada uma de nós não tivesse
realmente visto ele cair, ou como se todas nós tivéssemos visto ele cair com
aquela lentidão, com um certo atraso, como em câmera lenta, sem que se
pudesse fazer nada, sem que se pudesse imaginar que nenhuma de nós
não faria nada. Ele caiu com uma graça lenta, é a impressão que eu tenho
Ele caído no chão, e a gente olhando, eu não seguro a mão de ninguém.
Fico sozinha, meio que à distância. Bem ali.

A Segunda

Todos esses anos, porém, eu me lembrava do baile, e me dizia que quando


ele voltasse, eu voltaria ao baile, dá uma bela história, vai saber, irmão e
irmã indo juntos ao baile no vale, aqueles cafajestes que nos olham e que
não acreditam, nunca poderiam acreditar que ele voltaria, o herdeiro macho,
teriam até apostado!
tudo o que a gente ouviu, todos esses anos!
Que ele estava morto, e que nunca mais ele ia voltar ou que ele estava
fazendo a vida dele, refazendo a vida dele, do outro lado do Mundo e que
não queria nem saber da gente, as Desesperantes Idiotas, à sua espera!
Tanto insulto que a gente teve que ouvir!
Aqueles cafajestes que vêem a cena como se vissem um trem passar, de
boca aberta feito imbecil, o irmão e a irmã entrando juntos no salão de
festas municipal, as pessoas se empurram para dar risada, perguntam de
onde foi que ela tirou, esse daí, esse estranho, e a música começa, o globo
que brilha, adoro isso, esse meu jeito meio brega de ser, o globo que brilha,
a gente que dança,
dança que nunca me ensinaram mas que eu danço perfeitamente bem, só
dá a gente. Um casal sensacional. Todo mundo sempre gozava de mim,
diziam horrores sobre ele, eu lutei, lutei de verdade, tive que lutar,
todas essas mentiras, essas piadinhas sobre quando ele partiu, quando o
pai o botou pra fora de casa,
o desprezo do nosso orgulho, a miserável história do irmão que deveria
voltar um dia e que nunca mais botou os pés ali, e de cinco coitadas
perdidas que continuarão, apesar de tudo à espera dele.
Hoje, esse irmão está de volta, como um belo guerreiro – dá pra entender –
o mano está aqui e vai me levar para dançar, exatamente como na minha
história.

Olho pra ele, caído no chão, exausto, acabado e sonho em dançar com ele
e cuspir na cara daqueles imbecis, mas nada disso vai acontecer, é como
um cadáver com quem não se pode mais contar.

A Mais Nova

Nós iremos todas as duas, eu vou levar você pra dançar, não vai ser uma
maravilha, vai ser meio sem graça, duas coitadinhas feias no meio da pista,
mas iremos as duas juntas.

(...)

A Mãe

De agora em diante, todo o tempo em que ele estiver em seu quarto,


o tempo do seu desgaste, do seu desaparecer,
todos o tempo que ele levar para morrer,
o tempo da sua agonia,
todo esse tempo
-se isso vai durar semanas ou meses...-
todo esse tempo, as meninas, essas daí, as meninas poderão se afastar,
nos deixar tomando conta dele, cuidando dele, protegendo-o, nos
preocupando com a sua respiração, com seu fôlego, temendo por ele...

A Mais Velha de Todas

Bem que você queria, guardá-lo pra você, só pra você.

A Filha Mais Velha


Que a gente fosse embora?

A Filha Mais nova

Que a gente lhe abandonasse aqui com ele?

A Mãe

Eu nem sei. É, não sei se isso são coisas que se possa pedir, pedir àqueles
que também gostariam de estar assim tão perto do acontecimento da morte,
que se retirem e que me deixem um pouco de solidão?
Não sei.
Você entende, e essas daí também, será que vocês são capazes de
entender isso?

A Mais Velha de Todas

Cada uma delas, e eu também, cada uma delas deseja isso. É exatamente
o que cada uma aqui deseja.
Não dividir mais, sem se devorar, não, não ter mais que dividir.
É isso que você queria?

A Mãe

Era só isso sim. E eu sei que não é pouca coisa, que é pedir demais.
Só isso.
O instante preciso.

Elas vão se despedaçar, dançar essas danças delas, buscar amor, exigir,
querer que ele fale com elas, que ele saia do seu sono, elas não querem
entender.
Elas vão destruir as nossas vidas, ao longo dos dias, tentando obter toda e
qualquer forma de verdade.
Elas também querem saber se elas foram enganadas, se todos esses anos
foram perdidos em vão. Elas estão apavoradas, olha pra elas, apavoradas
com a idéia do sacrifício.

A Mais Velha de Todas

É só isso que você queria, que você está pedindo,


Voc~e só quer que a gente lhe deixe. Assim como cada uma de nós, mas
voc~e ainda mais que todas nós. Ficar sozinha e guardá-lo só pra você.
A Mãe

Não vai dar, eu acho.

A Mais Velha de Todas

Não, como era de se temer...

A Mais Nova

Começou mal.

(...)

A Segunda

Você já teve algum homem?

A Filha Mais Velha

Algum homem? Já. Ainda bem. Se eu já tive algum homem? É essa a sua
pergunta? Já, já tive alguns homens, sim. Alguns homens me tiveram. Não
me lembro muito bem da letra da música, mas era, alguma coisa assim, eu
tive homens e os homens me tiveram...
Dava pra supor eu acho? Por que você está me perguntando isso?
Eu fiquei aqui, com vocês, nessa terra, essa cidadezinha aí,
uma ou duas cidadezinhas, maiores, um pouco mais longe, eles me vêem
andando pela estrada, ando exatamente como eles querem que eu ande,
com aquele passo apertado de garça respeitosa,
a senhorita professora,
desprezo esse povo, o que eles repetem e até tem razão, ainda assim me
respeitam, são obrigados, pois sou eu que ensino às crianças imbecis deles
uns rudimentos de nada,
me desprezam e me cumprimentam.
Pego o ônibus, passo o dia na cidade escolhendo sapato para mim, o quê
que eu estou contando, e durmo num quarto de hotel escuro e sujo com um
sedutor barato que não sabe muito o que fazer comigo.
Conta, fala da mulher, dos filhos, sempre fazem isso, é vendedor de
enciclopédias médica por assinatura.
E às vezes, eles choram, modo de dizer.
Uma vez cada dois três meses, a gente se cruza de novo no Grande Bar do
Comércio e dos Viajantes, blefa um pouco, faz cara de quem nunca se viu
para recomeçar o amor, chamemos isso assim, recomeçar o amor no andar
de cima, sem dizer uma palavra. Homens, é, cada vez mais longe,
desconhecidos.
Era isso que você queria saber?

A Segunda

É bom? Era bom? De vez em quando, às vezes dava pra ser bom?

A Filha Mais Velha

Não. Não sei. Sei lá. Eu nem me perguntava isso.


Era como tinha que ser. Qualquer homem que fosse, era sempre mais ou
menos a mesma maneira de fazer a coisa, sempre meio ridículos, os
detalhes que é melhor nem olhar, as meias que dão medo, e aquela
vontade de rir.
E essa coisa chata de de repente se sentir comovida, às vezes.

A Filha Mais Velha

Arrependimento?

A Segunda

É, tem algum?

A Filha Mais Velha

Carinho pro mim mesma, esse tipo de coisa?...não, acho que não. É
higiênica...higienista?...Enfim
Nada mais, acho que não.
Eu só sempre desconfiei um pouco da tristeza, essa tristeza egoísta,
esse prazer em se queixar para si própria , em lamentar-se cheia de
emoção,
tornar-me uma coitada depois, é isso que eu sempre tentei evitar, contra
isso que a gente tem que se cuidar.

Existem regras e princípios necessários.


Me levantar enquanto o cara ainda estiver dormindo, ele ronca como todo
homem casado, esses que sabem que a outra, a Guerreira do Cotidiano, já
renunciou, levanto e coloco a minha meia-calça da véspera no canto da
banheira, ótimo, essa é a melhor hora quando a gente vai embora sem
dever nada a ninguém.
De manhã, cedo, no buffet rodoviário – só vendo, aqueles tímidos que se
acham no direito de! –
de manhã assim tão cedo, insidiosamente, acho que não me cairia bem,
Não me deixar levar durante toda a viagem de volta, mas nisso já sou
profissional, virei profissional, tenho uma verdadeira bela ausência de
sentimentos, treinei muito, fico rindo comigo e evito toda e qualquer
chateação, nostalgia, tudo isso, as contas e balanços.
Sei me cuidar muito bem.

A Segunda
O que eu queria dizer,
homem,mas homem, não sei,
homens mais envolventes, menos passageiros, homens que deixaram um
pouco de recordação. Não esses aí, uns homens diferentes dos meus, uma
vida diferente da minha.

A Filha Mais Velha

Histórias? Homens pra fazer história?

A Segunda

É isso. Histórias. Homens que dariam pra fazer história.

A Filha Mais Velha

Aquele que deixa a gente sofrendo para sempre? Que agente cruza e não
revê mais, e que fica procurando um rastro dele nos outros, aquele que, só,
mexeu com tudo sem nem se dar conta, e que ainda de vez em quando, eu
vou me pegar com ódio dele por ter me abandonado? O indiferente?

Segredo meu?

A Segunda

É, um homem desses.

A Filha Mais Velha

Não sei, não,


Tenho medo, não me lembro, ou prefiro não lembrar.
Se fui eu que decidi, ou se isso aconteceu assim, naturalmente, é não sei.
Pra que ficar falando disso, não é melhor renunciar de vez, não me
preocupar mais com isso? Num dia como hoje?

Eu nunca falo disso?

A Segunda

Não, nunca ouvi você falar disso.

Um tempo

A Filha Mais Velha

É.
Essa frase, eu sempre chateio os meus alunos, essa frase aqui, sempre:
“Ela tinha tido como uma outra a sua história de amor...”
É isso?

Um tempo

E você?

A Segunda

Eu?
Bem eu, eu, eu não respondo a esse tipo de pergunta.

Elas riem, talvez.

A Mais Nova

Quando ele foi embora, eu era pequena,


sempre fui meio pequena, meio criança, garota
criança sem importância no meu canto.
Eu não contava, é o que eu estou dizendo, é disso que eu me lembro, que
eu não contava. Nunca eu, de um certo modo, e não são vocês que vão
negar, eu devo isso a vocês, nunca eu contei de verdade.
Não sei.

Quando ele partiu, nos deixou, nos abandonou a nosso triste destino,
deixou a casa sem esperança, modo de falar, sem esperança de retorno,
quando ele foi embora, ninguém prestou atenção em mim, nunca tive uma
recordação de alguém prestando atenção em mim,
e naquele dia menos que nos outros dias,
e naquele dia ainda mais que nos outros dias,
quando ele partiu, me lembro muito bem, ninguém se importou comigo.

Quando o pai o expulsou, o botou na rua,


isso vocês nunca dizem, guardam segredo,
anos e anos e vocês cochichando para que eu não ouvisse, se calavam
quando eu entrava, o segredo de vocês...

Quando pai o expulsou, com aquela sua raiva, aquela raiva violenta,
uma daquelas raivas horríveis capaz de estremecer as paredes de casa,
essa expressão, só estou repetindo o que me dizem
uma daquelas raivas horríveis capaz de estremecer as paredes de casa
uma raiva ainda maior que todas as outras, uma raiva a mais, naquele dia
como em todos os outros dias

-pois eu nunca tive a lembrança, eu era pequena e não contava, vocês


sempre querem embelezar essa vida, essa época, mas eu não me lembro
de um único dia sem essa raiva, e sem esses gritos e sem essa violência,

pois isso se chama violência e nada mais,

e ainda todas aquelas frases berradas, esgoeladas, todos aqueles berros de


um contra o outro, pai e filho buscando briga e sempre se xingando e se
ameaçando,
pois isso se chama ameaça, e vocês guardando segredo,
negando,
mas eram ameaças sim, ameaças nas quais a gente crê, que a gente
imagina
a gente é criança, eu ali, no meu canto.

Ela mostra

ameaças que dão medo, e que a gente imagina, elas poderiam ser
executadas, a gente é pequena, a gente é criança e a gente imagina, não
eram só as palavras, mas e as ameaças e as pancadas, e as brigas, as
ameaças de briga, que mais?
O ódio e o nascer do crime, num instante

Eu era pequena e ninguém se importava comigo, mas eu já ouvia,


pai e filho que se odiavam,
era pequena, não contava, ninguém tomava conta de mim, me esqueciam
como sempre, mas eu não vou ter nenhuma outra lembrança dessa época,
eu acho, imagino que não,
nunca vou ter outra lembrança dessa época, só essa raiva, esses gritos, e
essa violência, não, e o ódio, e esse medo do crime que ficou em mim –

uma daquelas raivas horríveis capaz de estremecer as paredes de casa,


mas mais grave ainda, e mais definitiva ainda e mais dura ainda
que todas as outras raivas que nós tínhamos visto.

A Mãe

Você se lembra disso, é? Você se lembra de tudo isso, viu tudo é, não
estava dormindo, longe daqui, você viu e ainda se lembra?
Invenção sua.
Onde é que você estava?

A Mais Nova

E quando o pai o expulsou, naquele dia, eu também entendi que ele o


expulsava daqui pra sempre,
porque é que não teria entendido isso?
(Vocês todas, vocês entenderam muito bem, por mais que vocês queiram
mentir, vocês todas também, tinham entendido isso)
Quando o pai o expulsou e deu ordem de que ele nunca mais voltasse, que
ele deixasse a casa sem poder nunca, nunca mais, voltar aqui,
quando ele o expulsou, que ele o amaldiçoou.
aquelas frases, estranhas,
a Maldição,
aquelas frases que ditas por uma outra voz, num livro, num filme até
nos fariam rir, ou não teriam importância, e que, naquele dia,
fazem eco pela casa e me metem medo,
quando ele o amaldiçoou e eu acho que, a gente criança, eu acredito nessa
maldição,
coisa que nunca acontece, ou só com os outros, ou num outro país, ou
ainda, é incompreensível, num passado remoto, milhares de anos antes da
gente, frases definitivas para sempre, meio ridículas, e que me deixam
porém,
não entendo por quê,
e que me deixam porém, é a minha vez, como é mesmo que você diz? – à
beira de lágrimas,
quando o pai o expulsou, punho levantado – ou é imaginação minha? –
quando o pai expulsa, e ele berrando ainda,
e era berro mesmo de verdade,
quando o pai o expulsa, o amaldiçoa, e berra ainda mais do que nunca
que ele não o deixaria voltar aqui.

e eu vejo, esse daí, todo novinho, o caçula, a gente sempre diz isso, sempre
digo isso, e ele é mais velho do que eu, e eu também, falo feito vocês, o
caçula,

Isso, talvez, faz com que elas riam

quando ele o expulsa, o caçula, eu o vejo ir embora, de costas, ele parte,


desce a estrada e deixa a nossa casa pra trás, lá longe, perto da virada,
depois do bosquezinho onde, se desaparece, e nada o segura, nenhuma de
nós, nem uma nem outra teria sido capaz,
e nem eu, pequena demais, criança, garota, criança sem importância,
ninguém o segura.

E não o veremos mais.


Se me escutassem saberiam que nunca mais os veríamos, se me
escutassem, o teriam segurado aqui.

A Mais Velha de Todas

Ele não vai embora pra sempre.


É fácil, hoje, mas naquele dia, ele vai embora como ele ia sempre e voltava.

Eles brigavam sempre, todo dia, briga mesmo, sim, as brigas de sempre,
pensei que seria como todas as outras vezes, e não um crime maior do que
os outros crimes.

O pai dele urrava, é, sempre foi assim,


e o amaldiçoava, palavras sim, palavras,
mas quantas vezes ele já não o tinha expulsado de casa e mandado nunca
mais voltar e quantas vezes,
ainda, o outro, esse daí, o caçula
o outro voltou, horas ou dias mais tarde, e retomou o seu lugar
sem que nada mudasse?

Era ainda mais violento, hoje, é fácil, a gente só se lembra


daquele dia, e esquece todos os outros dias, só queremos guardar aquele
momento.
talvez tenha sido mais violento, não sei, fico perdida, é tão distante,
eles diziam coisas tão duras uma ao outro, tão odiosas sobre a vida deles,
que eu pensava que seria melhor que eles se separassem um dia ou dois
como acontecia de vez em quando. Desejei isso. Pouco tempo. Mas eu não
o vi partir como se ele partisse para sempre.
Você nos acusa, nós não fizemos nada, eu não fiz nada, por não termos
feito nada, você pode nos acusar, mas eu não imaginava isso, não, não
podia imaginar que seria o começo de todos esses anos perdidos.
Você nos acusa.
Eu não teria deixado, e essa daí, a sua mãe, essa daí também não, e as
outras, por mais fracas que elas sejam, as outras também não, ninguém,
nós não teríamos deixado.
Teríamos lutado com um ou com outro, lutado de verdade, você fica no
acusando, mas nós teríamos lutado sim.
Teríamos saído no pátio, na rua, teríamos nos comportado até muito mal,
arregaçado as mangas, essas coisas que se faz.

A Mãe

Ele sempre ia embora e ele sempre voltava. Como é que eu podia imaginar
isso? Como é que eu poderia ter imaginado isso. O começo de todos esses
anos de espera?

A Mais Velha de Todas

Gritavam criticavam a vida um do outro, era horrível, cada um destruindo o


outro, cada um querendo destruir o outro, esperando machucar, derrubar o
outro, cada um julgando o modo de ser do outro, cada um tentando ganhar
a luta, eu esperava que ele se afastasse. Esperei por isso.,

E ouvia e tinha medo também que eles não pudessem mais se encontrar e
se perdoar de novo, como eles sempre se perdoavam
- sempre quis imaginar que eles se perdoariam, e eles sempre acabavam se
perdoando -
tinha medo, mas não enxergava, acho que não, imaginei, dei um jeito
todos esses anos, tinha medo sim, sempre tive medo da violência entre eles
- o ódio? Ah não, isso não, não aceito, ódio não –
tinha medo, mas não podia enxergar que ele estava indo embora pra
sempre,
partindo para nunca mais colocar os pés nessa casa, não se importar mais
conosco, não ligar mais pra nós.
Isso eu nunca pensei.
A Mais Nova

E quando foi que você se deu conta? Deu conta, pra sempre?

A Mais Velha de Todas

Nós o esperamos.
Sem dizer nada ao pai dele, não se dizia nada e o pai dele nunca tocou no
assunto, da sua ida sem retorno,
da ausência,
nunca ele tocou no assunto do desaparecimento dele. Ia ficando velho,
pouco a pouco, se deixava levar pela velhice, era seu único desejo, agora,
não queria mais nada, só queria ser velho.
Caminhava em silêncio, quando ele tinha de vir aqui, o barulho de seu
passo pela escada, o abrir da porta, eu esticava a orelha,
a sua mãe, essa daí, a sua mãe também, ele não dizia nada sobre o
desaparecimento, acho que não, ela não fala sobre, acho que não, o
desaparecimento, a ausência, a sua mãe ele também não dizia nada, e o
resto do tempo, durante o dia, ele caminhava do lado de fora, no bosque, no
campo, imagino, saía de manhã, e voltava de noite e sempre, sem quase
nada, a semana inteira, sem nos dizer quase nada, não sentia a
necessidade.

A gente não perguntava nada, esperava esse menino,


revezando-nos ao pé da porta e olhando a estrada, essa estrada que vai
nos deixando pra trás e desaparece, lá longe, perto do bosque,
a gente tentava adivinhar, escutava os carros que passam lá embaixo na
costa e que podiam parar,
a gente escutava os indícios, o barulho de um passo no meio da noite.
Nós não falávamos sobre isso, ficávamos ali à espera, essa palavra, de
novo essa palavra, assim, meio ridícula, e nada mais.

Todos esses anos, foi assim que nós os passamos, foi assim que nós os
perdemos, sem imaginar que eles pudessem durar tanto tempo assim, isso
nós não sabíamos, não tínhamos como saber,
Se nós soubéssemos, você acha que? se nós soubéssemos nós teríamos
impedido, nós o teríamos segurado aqui,
seu pai e ele, nós os teríamos impedido de agir, nós não podíamos imaginar
a vida dessa maneira, quem é que pode imaginar isso.
Parece que você quer,
quero dizer,
parece que você quer nos culpar, nos acusar como se nós tivéssemos que
ser culpadas, como se nós não tivéssemos visto nada, parece que você
quer nos culpar por isso,
ousar nos culpar por isso, e isso não está certo não, não é justo, quero
dizer, não é uma coisa justa, porque ninguém pode imaginar que nunca
mais ele voltaria ou então que ele só voltaria o dia de hoje, na hora da sua
morte, porque ele está morrendo e nós sabemos que ele está morrendo,
ninguém podia imaginar que ele nos deixaria assim, que ele nos
abandonaria, pois ele nos abandonou
e que nunca daria notícia,
que nunca, quando o pai dele morreu, mas como é que ele podia saber?
- pode ser que alguém tenha lhe dito? que ele tenha ficado sabendo? -
mesmo quando o pai dele morre, nunca ele deu sinal, nós não podíamos
imaginar isso, não,
e que só, aqui, agora, no fim da estrada, no final, ele venha morrer, como se
ele quisesse nos mostrar alguma coisa, nos provar ainda alguma coisa que
pudesse nos machucar, pois isso vai no machucar,
ninguém nunca, nenhuma de nós, parece que você quer nos acusar, mas
ninguém, nenhuma de nós, podia imaginar isso e entender isso.

A Mãe

Deixa essa daí. Ela quer nos culpar. E ela nunca vai ter culpa de nada, vai
ser sempre inocente. Bem que ela queria.

(...)

A Mais Velha de Todas

Aquele não era um dia de adeus de verdade. Ele partiu tão brutalmente,
bate a porta, insultou o pai e o pai o insultou, e bateu a porta.
Nem me lembro se ele me beijou, se ele parou pra me dar um beijo, se ele
se importou comigo ou com ela, essa daí, a mãe dele, não me lembro,
mesmo com ela, não me lembro.
E nem sequer, não é essa a lembrança que eu tenho, e nem sequer uma
palavra, ou um sorriso, ele nem nos vê, nem se importa com a gente, e
nunca, foi o que nós sempre pensamos, desde então, e nunca pareceu se
importar conosco, nunca parece que nós tivemos importância, ou um
interesse qualquer para ele.
A Filha Mais Velha

Ele nos deixa, nos larga aqui, somos nós que sempre, aqui, todas as cinco,
somos todas nós, que vamos esperá-lo, todos esses anos perdidos,
bloqueadas, esgotadas, aqui,
mas foi o pai dele quem ele deixou, é a história deles dois, a separação e a
violência da separação deles, e nós não contávamos e nós nunca mais
contamos, nós esperávamos, todos esses anos, nós esperávamos mas nós
não contávamos.

A Segunda

Nunca teve nem aí pra gente, não queria nem saber da gente.

A Mais Nova

Descobre-se isso.

A Mãe

Calem a boca, não digam isso, deixem disso. Não quero ouvir isso.

A Segunda

Todo esse tempo, e nunca ele deu notícia, todo esses tempo e ele nem aí
pra gente,
não escreve, nem um alô, uma mensagem, será que a gente conta assim
tão pouco pra ele? Será que a gente não tem nenhum valor na vida dele?
nada,
será que todo esse tempo, ele nunca pensou na gente, no nosso
desconcerto? pois nós estávamos desconcertadas, estávamos
completamente desconcertadas, e ele não podia ignorar que nós estamos
perdidas, e que nós o esperávamos,

quando ele ia embora, quando ele era ainda mais novo,


as outras vezes,
quando ele ia embora, e que ele voltava algumas horas depois ou até
alguns dias depois, às vezes,
ele não podia ignorar, ele sabia, ele nos via, via os nossos rostos quando
finalmente, ele atravessava a porta de casa, via os nossos rostos, via que
nós o esperávamos,sabia do nosso desassossego.
A Filha mais Velha

Até o pai dele, apenas de um modo quase imperceptível, o pai dele também
lhe dizia isso, até o pai dele dava a entender isso, eu acho, não me lembro
muito bem, mas acho que até o pai dele se preocupava com os seus
desaparecimentos, lhe dizia que estava aliviado de vê-lo de volta, ele não
podia ignorar isso,
via a festa que nós fazíamos, a felicidade nossa quando ele voltava, ele
sabia disso, não podia ignorar a nossa angústia, não podia ignorar isso.
Sabia disso, sabe disso, sempre soube, da nossa grande preocupação com
ele.

A Segunda

E todo esse tempo, todos esses anos, até hoje, seu retorno, o tempo que
ele passou longe de nós, não tinha como ele ignorar o nosso desassossego,
não tem como ele não ligar, é, eu sei que não,
não podia ignorar o quanto nós ficamos perdidas, e paradas, aqui, em nós
mesmas, desesperadas de tanto esperar,
não tem como ele não saber
e nunca mais dar notícia, nem uma mensagem, nunca,
é um crime da sua parte, é o que eu digo, um tipo de crime, não ligar para
as vidas dos que o amam, é um tipo de crime, não sei, é o que eu acho,
de repente me aprece que é um tipo de crime, não tenho certeza, vocês
deviam me ajudar,
é sim, o meu desassossego, o meu desespero, todos esses anos perdidos,
o tempo que eu e que vocês todas aí – vocês deviam me ajudar – todo
tempo que eu destruí à espera dele e me preocupando com ele,
e ainda só o ver voltar, só no último instante, só nesse último instante, vê-lo
desabar, deixar cair a sua bolsa, essa bolsa de marinheiro ou bolsa de
militar,
-voltar e cair no chão e morrer sem ter justificado nada sobre a sua vida, é
um tipo de crime sim, e me deixar na ignorância, e não me dar nada! –

nos deixar todo esse tempo, é um tipo de crime , é o que eu acho, acho de
verdade, de repente, acho mesmo de verdade, é um tipo de crime sim, tão
grave quanto um crime.

A Filha Mais Velha

Ou só desprezo por nós, é o que eu digo, ou o desprezo, desprezo também


pelas nossas vidas, desprezo pelo que nós somos, desprezo pelo o que eu
sou, pelo o que vocês são, desprezo pelo o que nós somos todas, aqui,
todas, vocês não respondem, mas ouvem, o desprezo também pelo o que
nós somos.
Uma rejeição, uma aversão.

A Segunda

Nem aí pra gente é o que eu digo, vocês tem medo de ouvir isso, nós
nunca contamos pra ele, e isso é um grande crime de ter no ignorado esse
tempo todo, por isso ele é merecedor de culpa sim. E morrer, se ele morrer,
morrer não vai ser um perdão.

(...)

A Mais Velha de Todas

E nem sequer uma efusão, não, nem sequer por essas duas aí – a pirralha
escondida debaixo da escada, esse canto, só olha e ninguém nem se
importa com ela, ela não conta – nem sequer uma efusão nem por essas
duas aí, no meio da sala, nem sequer uma efusão por elas, um carinho.
Um adeus, não.

A Mãe

E elas estavam presentes, a gente não esquece, presentes e bem


presentes, e escandalosas, como elas já sabiam ser, e berrantes como elas
aprenderam a ser, e tentando segurar um e impedir o outro, e se enfiando
na briga...

A Filha Mais Velha

Me beija. Discretamente.

A Mais Velha de Todas

Nada disso. A gente teria visto.

A Filha Mais Velha

Me beija, apenas de raspão, um quase nada, me beija...

A Segunda
Me pega brutamente contra ele, apenas me aperta nos seus braços, apenas
me beija, e logo me empurra violentamente,
quis me afastar e me levar com ele, os dois de uma vez só, ao mesmo
tempo.

A Mais Velha de Todas

Nada disso. Tudo emenda. Vocês inventam cada vez um pouco mais.

A Mais Nova

Cada vez mais.

A Filha Mais Velha

Queria impedir que nós o seguíssemos.


Como a gente luta, o mesmo movimento, como a gente teria lutado, o
mesmo sentimento, a mesma violência, ele me pega pelo pulso, me puxa
em direção a ele e me empurra de novo.

A Segunda

A gente berra. A gente berrava. O pai nos dando tapas...

A Mãe

Ele não pôs a mão em vocês, nunca pôs a mão em ninguém.

A Mais Velha de Todas

Era isso o pior de tudo, ele falava alto, e era só.

A Mãe

Nunca saiu um tapa dali.

A Segunda

A gente berrava. Ele nos dava tapa, nos dava pancada, sacudia os braços
com toda força, e a gente só apanhando.
A Mais Nova

Hoje elas gostam disso: Recordações de guerras inventadas. Que bela


imaginação, fértil.

A Mãe

Ninguém nunca viu isso. Vocês só emendam. Essa daí sempre debaixo da
escada dela, esse canto, pode dizer a verdade, ela nunca viu nada disso.
A coisa foi feita com violência sim, não quero falar disso, violência, mas só
nas palavras, eram palavras violentas, só palavras e nada mais.
Ninguém aqui pode dizer que ele batia em vocês, não é verdade.

A Filha Mais Velha

Dá tapa, bate na gente sim e a gente não consegue segurar o caçula, ele
deixa essa casa, e a gente não pôde fazer nada.
E a gente se separa.

A Segunda

Através da porta, já não se vê mais nada, de novo, é o fim, só a estrada que


vai descendo em direção ao bosque, lá longe e desaparece com o desvio. A
gente deveria ter corrido atrás dele. Ter saído no pátio, na frente de casa e
segurado os dois, ao invés de ficar assim tão dignas, como nós sempre
queremos ser.

A Filha Mais Velha

A gente podia ter fugido com ele, teria sido a melhor coisa, todos esses
anos pelas estradas, eu bem que teria gostado.

As três mais novas riem disso.

A Segunda

Nem ligava pra gente, já tinha sua bolsa, e não ia carregar mais peso com
ele.

A Filha Mais Velha


A te você colocar o seu vestido vermelho, ele já estaria no trem.

A Mais Nova

Dessa vez, seria ele que teria nos dado uns tabefes, pra se livrar da gente!

(...)

A Filha Mais Velha

O que nós vamos fazer, o resto da noite, essa noite toda, hoje, noite do seu
retorno, o caçula, o que a gente vai fazer, não ir pra cama, ficar cantando a
nossa canção, dançando a nossa dança meio lenta, todas as cinco, todas
sempre como nós sempre fomos, como nós sempre aprendemos a fazer,
Todos esses anos perdidos,
Nossa pavana para o rapaz, essa história aí,
Nós não pegamos no sono, ficamos nesse nosso cômodo, esse quarto em
que passamos as nossas vidas, esse lugar aqui, vigiando os ruídos que
poderiam vir da sua cama, ele descansa, é o que dizemos, nós vigiamos
cada mínimo movimento seu, queríamos tanto que ele apenas, se mexesse,
se virasse dormindo, ou falasse nos seus sonhos.
A gente espera, a gente fica aqui.

A Mãe

Ouço, me aproximo, ouço, ouço por atrás da porta feito quando ele era
criança, e hoje a mesma coisa. Tento adivinhar alguma coisa, ninguém me
dá nada.

A Segunda

Muito tempo eu acreditei nisso, sei lá eu? Coisa que li, nesses livros que
você lê para mim ou me conta. Muito tempo eu acreditei nisso, idéia minha,
muito tempo eu pensei eu pensei não sobreviver e me deixar devorar pelo
desassossego, e pela dor,

Que eu ficarei velha, envelhecerei por culpa dele, à espera dele, muito
tempo eu acreditei nisso, que isso me destruirá, essa palavra, que isso me
destruirá,
Muito tempo, eu acreditei nisso, no que está acontecendo, hoje, esse
retorno, eu o temia e tinha tanto medo,
Muito tempo, e eu imaginei a morte desse aí, a morte do caçula,
Muito tempo acreditei e quis acreditar que a sua morte me levaria junto com
ele.

A Filha Mais Velha

Não?

A Segunda

Não.
Não é uma boa coisa, nem uma má coisa, nem uma segurança. Nem é
verdade, mas é assim, nem é verdade, é imaginação, emendas que eu
imagino, mas verdade não é.
Não sei, acho que não, não vou morrer de tristeza, nem me imagino mais,
bem capaz que não, nem me imagino mais morrendo de tristeza.
Por que é que eu mentiria?
A gente queria aquela tragédia, aquela bela família trágica, mas isso a
gente não vai ter, apenas a morte de um rapaz numa casa de moças.
Ri, pode rir. Vai ser só isso.

É meio exagerado, esse nosso sonho, bem que a gente queria, seria tão
bonito, tão doloroso e nobre além do quê e deixaria esses imbecis dessa
cidadezinha de língua pra fora:
- Ela não sobreviveu à morte do irmão, amava-o tanto que morreu junto a
ele, de desespero, assim mesmo, com a mandíbula que se desloca –
Mas eu nem acredito nisso, tudo mentira, por mais que eu lamente, é uma
mentira.

Eu nem sei, isso também é mentira, eu nem sei, sinceramente se eu vou


lamentar, nem sei seu eu vou lamentar sinceramente.
Sempre, ela que tem razão, essa daí, aquilo que ela diz sempre: as nossas
emendas.
Não acho que eu lamente não morrer,
ter vergonha de sobreviver aos que morrem, não acho que eu me culparia
por isso, ou só vergonha, só um pouquinho, nada mais.

Meu corpo não vai me abandonar,


A gente sempre acha isso, né, você também não achava?
A gente querendo imaginar, meu corpo não vai me abandonar, não vai se
deixar levar, a tristeza a dor de quando ele estiver morto definitivamente, a
tristeza vai ser imensa, e vai doer como se eu tivesse apanhado, não vou
gostar disso, de ter apanhado,
A tristeza me possuirá toda, devorará meu pensamento, me queimará, eu
sei disso e eu tenho medo disso, eu sei disso, vejo a coisa chegar e tenho
tento medo, medo, medo de que doa, e do tempo que vai doer, tenho medo,
Vocês ainda vão ter que me ajudar, vão ter que, mesmo com a tristeza de
vocês, vocês ainda vão ter que pensar na minha tristeza, porque a minha
tristeza vai ser ainda maior, estou dizendo, vão ter que me ajudar, vocês me
devem isso, minha tristeza será sempre mais triste que a de vocês, sempre
foi.
-quando eu era ainda criança, quando eu era criança, já sofria tanto com o
mínimo ressentimento, sofria tanto, queria morrer e não falar mais disso,
pensava mesmo sinceramente, desejava mesmo com sinceridade, queria
morrer,
Chamava pela morte dos meus sonhos, é assim, é?
E para minha surpresa, ela não vinha, nenhuma resposta, sofria e só,
embora isso pudesse ser tão fácil e tão límpido, desaparecer, a solução –

meu corpo não vai me abandonar, e não vou ter vergonha disso. Vou
continuar andando e tendo vontade de andar, comendo e tendo vontade de
comer, amanhã irei até a estrada, vou me preocupar com o tempo que faz
para saber como vou me vestir, você também, vai fazer a mesma coisa, vai
se preocupar se tem sol, se vem chuva, e semana que vem, vou voltar à
cidade, e arrumar um trabalho pra mim, e vou embora daqui.

Não ouso dizer e vocês todas, nós três, sobretudo, e quem sabe nós todas,
vocês não tem coragem de imaginar isso, eu não tinha coragem de dizer,
mas nós vamos ter que recomeçar as tarefas cotidianas, mais nada, esse
tipo de coisa que vem depois da morte, as tarefas cotidianas.

A Filha mais Velha

E depois, ainda mais tarde, nós nos sentiremos culpadas?


Vamos achar que não estávamos tão desesperadas assim, as cinco
compadecidas orgulhosas no alto da colina, nós nos culparemos por isso,
talvez, ficaremos decepcionadas com nós mesmas,
e os outros, esses daí, vão gozar da gente, meus brilhantes alunos vão
contar isso aos seus brilhantes pais,
vão me ver retomando o meu lugar, como se nada tivesse acontecido,
retomando o meu papel sem nunca deixar transparecer a mágoa, retendo-a
dentro de mim, sem demonstrar nada.
Não vou ser mais amável, é um sinal, não vai ser isso que vai acalmar o
meu gênio.
Vão nos acusar de termos gozado deles, esses anos todos, essa solidão,
enclausuradas uma vida, com as nossas belas caras de viúvas, por termos
vivido assim, só para evitá-los, tão metidas e tão orgulhosas, de termos
preferido ficar longe deles, os outros, essa gente, de não querer freqüentar
esses imbecis.
Vão nos acusar de mentira. De mentira e orgulho.

A Mais Nova

E de agora em diante, domingo, na praça municipal, essa daí, nossa mãe,


essa daí, irá na frente com a velha ao lado dela,
E nós três em tropa, como um bando de corvos, tão belas e tão
desgostosas com as nossas roupas de luto, e eles nos julgando,
cochichando.

A Filha Mais Velha

Se repõe, escapam dessa. (O que eles dizem)

A Mais Nova

Retomam gosto.

A Segunda

De agora em diante, eles vão vigiar as nossas viagens de ônibus, e logo no


primeiro retorno do meu vestido vermelho ao baile, o mais miserável que
tiver, nós vamos poder ouvir novamente as piadinhas caipiras.
Querendo sempre a mágoa definitiva, a destruição.
Essas daí, nem para morrerem de mágoa, ou nem pra cobrirem a cabeça
de cinzas, ou nem para irem às montanhas e se deixarem enterrar por
galhos, essas daí, imediatamente julgadas, julgadas e condenadas por eles,
pois afinal para que julgá-las se não for para encaminhá-las à condenação?

(...)

A Filha Mais Velha

Vai ser engraçado, meu primeiro verão sem fazer amor.


O ano passado ainda, eu devo ter tido alguns homens e depois nunca mais,
durante todo esse outono e esse inverno, nada, nada aconteceu, fiquei
sozinha e não estava triste por estar sozinha aos poucos, isso foi perdendo
a importância ou o interesse, não sei, e aos poucos, essa idéia nem me
passava mais pela cabeça, tive que renunciar – dá pra entender isso? –
renunciei.
E fiquei bem.

De agora em diante, desde que ele chegou, o caçula, eu devo ter pensado
nisso, desde que ele chegou, e enquanto ele viver, enquanto nós tivermos
que esperar,
de agora em diante, não vou me preocupar mais com ninguém, só com ele,
não vou atrás de mais nada na minha vida, eu acho.
Nós vamos cuidar dele, tomar conta dele e nos revezar ao pé da sua cama,
ficar com ele e nunca mais abandoná-lo,
estar a cada hora, dia e noite, estar a cada hora, a alguns passos apenas,
sempre, vigiando a vida e a morte, a luta que vai ser.
Só ter isso e mais nada.

Sempre aqui ao lado, tensas, o corpo inclinado, sem nenhuma outra


atenção que não seja ver chegar esse momento imperceptível, a hora
exata, só a respiração, e nós exaustas mesmo assim de não ver nada,
destruídas pelos mínimos detalhes, pela calmaria, todo esse silêncio,
espiando o seu fôlego,
esses dias inteiros andando a passos lentos com medo da nossa própria
violência e abatidas afinal, pela lentidão, abatidas afinal pela agonia.
Só ser isso, nada mais do que isso.

E ainda depois, ficar vazia.


Quando tudo estiver terminado, ficar vazia.
Ficar sem força, derrotada, não ter mais desejo de nada, nenhuma vontade,
só a velha boa idéia de ir até a auto-estrada, e ir para a cidade grande atrás
de um homem e voltar no dia seguinte,
acho que isso vai passar, nem vou mais pensar nisso,
e quando ele morrer, o caçula, quando ele estiver morto,
vou ficar de luto, imagino isso assim, todas nós derrotadas, sem nada,
vou ficar toda cinza e preta, de luto, é, exatamente isso.
de luto,
vou ter perdido todo e qualquer desejo – é isso que eu estou te contando –
vou ter perdido todo e qualquer desejo, até o desejo de sentir um início de
desejo.
Vou ter chegado ao fim.
Não vou mais acreditar em mais nada, sempre achei que isso aconteceria
comigo um dia sem que eu adivinhasse,
não acreditarei em mais nada, estarei definitivamente no meu luto,
aqui, esse luto bastará, bastará na minha vida, eu também vou estar morta,
e morta, vai ser um descanso, não vou lutar, e não vou sofrer, minha solidão
e meu esquecimento, bela e secreta, ar de orgulhosa, não vou querer mais
nada.

Vou ter recordações, isso bastará na minha vida, deve bastar na minha
vida,
vou ter minhas recordações e minhas recordações vão fazer com que eu
tenha uma vida em paz.

E ainda, mais tarde, vários anos mais tarde,


- na minha idade –
vários anos mais tarde alguns anos ainda depois da morte dele, o caçula,
depois que esse irmão estiver definitivamente fora das nossas vidas,
pois vocês não querem imaginar isso, ele ainda não está morto e vocês não
querem imaginar isso, medo demais da decadência,
as Belas Compadecidas,
preocupadas com a dor de vocês e com as qualidades dele,
vocês não querem imaginar isso, mas ele sairá definitivamente das nossas
vidas, a gente o esquecerá, você pode sonhar, a gente o esquecerá,até
você vai se esquecer dele,

e essas daí também, elas vão esquecer dele,


nós daremos um jeito, por mais que vocês resistam, lembrando dos
aniversários, pouco a pouco, cuidando bem do túmulo, lavando e relavando
o azulejo do quarto, não querendo tocar em nada, e nada, nunca, não
querendo mudar nada de lugar, nem jogar nada, nem dar nada, um museu,
o vosso mausoléu da roça, a gente vai dar um jeito, a gente o esquecerá.

Uma vai ter um filho, você, vai ter um filho, vai acabar fazendo um filho, ri,
você vai ver só, vai ter um filho, meu sobrinho querido,
um desses imbecis que lhe xingam na praça municipal, um desses imbecis
vai lhe engravidar, você vai ver só,
você vai voltar do baile com teu vestido vermelho todo torto e vai fazer um
filho,
e o quarto da criança vai ser esse quarto aí, o quarto, todo arrumadinho, do
caçula morto, depois de uma boa tarde de limpeza, as janelas bem abertas
e o ar que entra, o cheiro de sabão no chão e o cheiro de encáustica – você
lembra disso também, cheiro de encáustica? – e os últimos vestígios, a
bolsa de marinheiro, levados para o sótão...
Vocês não querem admitir, hoje, num dia como esses, vocês não querem
admitir, é cedo demais,
Ver o cadáver dele, pois já se trata de um cadáver, ver o cadáver dele
embarcar aqui na nossa frente, aqui, aos nossos pés,
ele caiu no chão assim que ele atravessou a porta, e não querer admitir,
você não quer ouvir isso, é impossível pra vocês, vocês não têm força pra
isso, vocês não querem admitir, mas nós vamos dar um jeito.
Vamos ter que.
Vamos dar um jeito.

E ainda, mais tarde


- na minha idade –
vários anos mais tarde, chegada a idade em que for a minha vez de ser
velha
quando for a minha vez de ficar parecida com essa daí, a Mãe, nossa mãe
tão sólida, quando eu tiver ganho o seu porte, a sua forma, quando for eu a
estátua da casa, aquela que não chora nunca e que nunca diz nada a
ninguém, do que ela sente, do que ela ressente, quando for eu quem tiver
que acertar as contas com os fornecedores, quando eu tiver no começo da
minha velhice, aqueles curtos meses, chegada a idade da renúncia, quando
tiver tudo acabado,
ainda, mais tarde
- na minha idade –
vários anos mais tarde, se o desejo tiver que me tomar de repente,
se a vontade de amor, vontade de amar e de ser amada me balançar,
desejo de que alguém venha, e finalmente, me leve daqui
- bem que eu vou ter merecido, não, você não acha? –

imaginaria isso como uma dor tão grande, uma cruel catástrofe, um drama
tão grande,
e, sobretudo, sobretudo, uma ironia tão má, uma piada da vida, não é?
que eu fugiria, acharia, espero, a força de fugir, de dar um grito de raiva e
de fugir, que eu conseguiria me afastar,

que eu mandaria embora o tal que viesse me levar, que dissesse que me
ama e que quisesse que eu o amasse também e que terá cometido o grave
crime de ter vindo assim tão tarde.

(...)

Você vai embora?


A Segunda

Não sei. Será que eu posso decidir?


Como dizia esse daí, o nosso lindo homenzinho, na sua caminha de
criança, o caçula, como é que ele dizia, da onde ele tirou essa frase, ela lhe
caía tão bem:
“ Quem nunca saiu da sua terra até trinta anos, não sairá nunca mais...”
Não sei.
Tendo quase atingido o limite de idade. Talvez, correndo ainda possa
escapar.
Ele morre hoje de noite e no auge da minha desolação, parto ao
amanhecer, no primeiro ônibus até a nova estação, sei lá, teria que ter
muita força.
E você?

A Filha Mais Velha

Eu, como foi que você disse, que número, uns bons trinta anos, limite de
idade, que grosseria, que menina grossa que você é.

Elas riem talvez uma e outra.

eu, eu vou ficar, você não acha? Vou ficar aqui definitivamente, guardando
o meu lugar, me preocupando com essas duas aí, as duas mais velhas, e
eu passando aos poucos para o time de lá, vamos levar as nossas vidas as
três, juntas,
vou passar, imagino, vou passar sem nunca poder impedir, vou passar
devagarinho, bem devagarinho, do time das moças ao time das velhas, não,
não sei
- eles têm que nos chamar de um modo ou de outro, os outros aí, essa
gente, de algum modo eles têm que nos chamar –
vou ficar velha, devagarinho, sem revolta, tranqüila, era isso que eu queria,

continuar dando as minhas aulas, de senhorita professora, vou desconfiar


da vida, das coisas em que a gente crê, das promessas que a gente se faz.

De agora em diante, essas duas daí, não vão ter mais vontade de nada, vão
renunciar,
Tenho até medo que elas sejam engolidas junto com ele, tenho medo e vou
me preocupar com elas. Tomar conta.
A Mais Nova

Eu não sei de nada, a mais nova, não sabe de nada, essa daí, a única, que
ainda pode ter alguma chance na vida, pra quem as coisas podem
finalmente começar,
não sei, vou embora daqui, bem capaz, imagino, vou embora daqui.
Vocês não me perguntaram?

A Segunda

Não, ninguém lhe perguntou nada.

A Mãe

Não, elas não lhe perguntaram nada, mas elas se preocupam com você,
sim.

A Mais Nova

Vou esperar a minha hora, e vou-me embora, bem capaz, é o que eu estava
dizendo, partirei quando for a minha vez e recomeçarei a minha vida,
começarei a minha vida, imagino que sim...

A Segunda

Ninguém lhe perguntou, imagina, isso mesmo, exatamente, imagina, a


gente não lhe perguntou nada e você vai embora, é isso mesmo, imagina,
mas ninguém lhe perguntou nada...

A Filha Mais Velha

Ou todas as três, ainda, na entrada de casa, esperando ainda, todas as


três, sem saber mais nada, sem nunca deixar...
Apoiadas uma na outra, e contando a nossa história.]Todas as três,
também.
Eu via isso, assim.

Ou todas as cinco, possível, e por que não? Todas as cinco também, é, é


uma boa...

(...)

A Mais Velha de Todas


O que é que você tem?

A Mãe

Nada, achei que tivesse ouvido um barulho.

FIM.

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