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Esperava.
hoje, nesse dia preciso, eu estava pensando nisso, nesse dia preciso, eu
estava pensando nisso,
todos esses anos que nós perdemos sem sair daqui, só à espera
( e ainda aí, parece, comecei, mais uma vez, a sorrir de mim mesma, de me
ver assim,
de me imaginar assim, e sorrir assim de mim mesma à beira de lágrimas, e
tive medo de afundar)
Todos esses anos que nós tínhamos vivido à espera dele e perdidas sem
fazer outra coisa que não fosse esperar por ele, sem poder obter nada,
nunca, sem ter outro objetivo que não fosse esse,
e eu pensava, nesse dia preciso, no tempo que eu poderia ter passado
longe daqui, fugindo daqui, no tempo que eu poderia ter passado numa
outra vida, num outro mundo,
idéia minha,
sozinha, sem vocês, as outras aí, sem vocês outras, todas,
todo esse tempo que eu poderia ter vivido diferentemente, simplesmente,
sem esperar, sem esperar mais, ter me soltado de mim mesma.
Um carro vem deixá-lo e ele caminha os últimos cem metros, bolsa jogada
sobre o ombro, em minha direção.
Olho para ele vindo em minha direção, em minha direção, em direção de
casa.
Olho para ele.
Eu não me mexia, mas tinha certeza que seria ele, tinha certeza que era
ele, ele entrava na nossa casa depois de todos esses anos, assim mesmo,
nós sempre tínhamos imaginado que ele voltaria assim, sem prevenir, sem
festa de boas-vindas e ele fez o que nós sempre tínhamos imaginado que
ele faria.
Ele olhava pra frente e caminhava calmamente sem se apressar mas
parecia que não me via, esse daí, o caçula, por quem tanto esperei e perdi
a minha vida esperando
-perdi, sim, não tenho dúvida, e de uma maneira tão inútil, agora, a partir de
agora, eu sei, que eu a perdi-
esse daí, o caçula, voltando das suas guerras, eu o vi enfim e em mim nada
mudou, fiquei espantada com a minha própria calma, nenhum grito como eu
tinha imaginado que eu daria, que vocês dariam, nossa versão das coisas,
nenhum berro de surpresa ou de alegria,
nada.
Eu via, ele andando em minha direção e pensava que ele estava de volta e
que nada ia mudar na minha vida, que foi engano meu.
Solução nenhuma.
(...)
A Mãe
Levei-o para o quarto dele, esse daí, o mesmo de quando ele era criança.
As meninas me ajudaram, nós o carregamos até o andar de cima e ele está
dormindo.
Chegou exausto, eu acho, não podia mais andar, eu olhava para ele se
arrastando pelos últimos metros, avançava em nossa direção como um
rapaz bêbado, eu não entendia nada, estava exausto parecia prestes a cair
e desmoronar.
A Mãe
E ele não disse nada? Pra você, não lhe disse nada? Uma palavrinha antes
de dormir de novo, de apagar, nem uma palavra?
Queria tanto que ele falasse, que ele nos dissesse alguma coisa, uma
coisinha de nada, sempre a mesma história, que ele diga algo antes de se
esparramar pelo chão, antes de
cair,
queria o som da sua voz
-“Como é que sou, como é que eu sempre fui”-
ele me dava medo, que ele ficasse assim tão calado e que não nos dirigisse
maia a palavra, isso me dava medo e que ele se deitasse em seguida sem
pedir nada, que ele caísse no chão, não sei como dizer, doía em mim, o
início de um sufoco.
A Mãe
Ele estava ali na minha frente, eu olha para ele, há tantos e tantos anos que
eu o espero, e isso não é pouca coisa não, um filho, o único filho, meu filho
que volta para casa não é pouca coisa não,
e para você também não é pouca coisa não,
e para as meninas, essas daí, vai ver só, para as meninas também isso não
é pouca coisa não.
Ele ali na minha frente, todo esse tempo passado à espera desse momento,
e ele ali na minha frente,
ele mudou, seu rosto está acabado, um rosto mais cavado, mais duro, eu
olhava para ele, é como um rosto de um velho, um estranho rosto de velho
ou um corpo de rapaz que ficou velho cedo demais.
Será que eu sempre achei que ele fosse voltar exatamente, perfeitamente
como ele se foi?
Será que eu sempre imaginei isso?
Ele dorme como ele dormia quando era criança. Desmaiado aos meus pés
tive logo medo de que ele morresse.
Olhava para ele e foi isso que eu me disse: “Ele dorme como ele dormia
quando era criança”.
Engraçado. Nós o pegamos, uma debaixo dos braços, como a gente
sempre vê fazer, como a gente supõe que se deve carregar corpo de
desmaiado, não sei, gente caída no chão, fotografias, quadros,
Nós o pegamos, uma debaixo dos braços e a outra segurando os pés – fui
eu que segurei os pés – e nós subimos até o anadar de cima. Ele ficou leve,
com o corpo mais magro, mas pra gente ainda assim era pesado.
Uma trabalheira.
A pirralha pegou a bolsa, só isso mesmo que lhe interessava. A gente
deixou.
A Mãe
Temos que deixá-lo dormir muito tempo. Acho que ele vai dormir muito
tempo, e quando ele tiver dormido todo esse tempo, um dia, nós veremos o
seu despertar
E o que a gente não recebeu hoje, assim que, o que a gente não obteve,
aquilo que nós tanto esperamos, tanto esperamos todos esses anos que ele
voltasse e assim que ele atravessasse a porta ele nos falasse e nos amasse
e nos dissesse belas coisas, exatamente isso, que ele nos dissesse as
coisas que nós tanto esperamos ouvir, que ele nos reconhecesse, só isso,
que ele me reconhecesse e que ele reconhecesse vocês, e que contasse a
história da sua viagem, todo esse tempo perdido, aquilo que a gente
Não recebeu hoje, aqui, no momento em que ele atravessou a porta, um dia
finalmente nós vamos ouvir tudo isso, não tenho que me preocupar, ele vai
acordar, vai ter dormido muito tempo, ele vai acordar,
ele não vai nem saber onde ele está, o quarto dele, ele não vai nem
reconhecer, teremos que lhe dizer, vamos ter que lhe explicar,
ele vai acordar, exatamente assim, como ele acordava quando era criança e
nós vamos ficar vendo, ele contando o que viveu, o que foi a sua vida, a sua
viagem, todos esses anos perdidos, porque foram anos perdidos, todos
esses anos perdidos. Ele vai se espantar.
Ela ri.
E nós poderemos começar a nos lamentar e ele vai ter que ouvir nossas
belas e longas queixas.
E todo esse tempo, agora, a partir de agora, todo esse tempo, vamos ficar
perto dele, adormecido, vigiando os sinais, é isso que você está dizendo?
Nos revezar uma à outra do lado dele, vigiando os sinais ou do seu
despertar ou do seu assombro cada vez mais devagar, cada vez mais lento,
seu desaparecimento sem voltar pra gente, seu mergulhar num sono mais
que profundo? Sua morte?
Você quer que nunca mais a gente deixe dele?
A Mãe
Temos que esperá-lo, sempre a mesma história, temos que ficar ao lado
dele sim.
Como nós o esperamos desde o dia em que ele partiu, do dia em que nos
deixou para talvez nunca mais voltar, do dia em que o pai dele expulsou-o
de casa.
“O que é que eu podia fazer? Vocês sempre querndo me culpar por não ter
feito nada, por não ter impedido um ou outro, o que é que eu podia ter
feito?”
Depois de todos esses anos, mais anos, ainda, é o que você está dizendo?
Aqui em casa à espera dele ainda, no mesmo lugar,
sem nenhum movimento, na ponta dos pés,
esperando o despertar desse aí como se esperássemos o despertar de uma
criança doente no quarto do andar de cima, é nós aqui num revezar sem
fim?
É isso que você está dizendo?
A Mãe
Nós vamos fazer isso, sim, eu vou passar o meu tempo todo à espera de
que ele desperte.
Nós vamos fazer isso, e se vocês não fizerem, s vocês não quiserem, se
essas daí não quiserem, se até você, você me abandonar, se você não me
ajudar, vou fazer tudo sozinha sim, vou ficar aqui, e vou esperar sozinha,
qual é o problema?
(...)
A Segunda
No dia em que ele voltar, eu fico repetindo isso para mim mesma, todos
esses anos, eu fiquei repetindo isso para mim mesma, no dia em que ele
voltar – nunca duvidei que ele voltaria –
No dia em que ele voltar, eu vou colocar o meu vestido vermelho, aquele
que vocês detestam, sempre detestaram, meu vestido vermelho que me
deixa com um ar vulgar de garota de sábado à noite, eu corro e enfio o meu
vestido vermelho e ele me encontra tal como ele m e deixou.
É ótimo. Ele ri.
Quando ele passa ao pé da porta e deixa deslizar a sua bolsa, uma bolsa
de marinheiro, uma bolsa como aquelas que os marinheiros usam,
-então eu pensei: “Será que eu já vi uma bolsa de marinheiro na minha
vida?” foi isso o que eu pensei-
bolsa de marinheiro ou então bolsa de militar, aquelas tipo um rolinho,
cumpridas, onde nunca, foi o que eu sempre pensei, onde nunca que as
roupas podem ficar arrumadas corretamente,
foi o que eu pensei, e ri de novo, acho que ri de novo por estar pensando
nesses detalhes,
(e sempre à beira das lágrimas, por um triz)
Imóvel na entrada, ele não nos diz nada, olha a sala por dentro e fica
espantado.
Aquele olhar espantado dele,
Aquele olhar espantado que ele tinha quando era criança, o mesmo olhar
espantado que ele tinha quando ele partiu,
quando o pai dele o expulsou,
quando nosso pai o expulsou,
quando nosso pai o expulsou e que ele teve que nos deixar, quando ele nos
deixou, ele tinha esse olhar espantado já.
Nos momentos mais brutais, mais inesperados da vida, ele sempre parecia
surpreso,
Espantado, é não tenho outra palavra, espantado, no auge do seu espanto.
O espanto para ele era uma maneira de exprimir a injustiça, de exprimir a
descoberta da injustiça,
Seu rosto de criança ficava ainda mais de criança nessa horas, me lembro
bem,
Assim que ele entrou, ele ali, bem na nossa frente, me veio a lembrança
desse olhar e sorri sem saber por quê.
Era ele, exatamente, o caçula, com aquele seu olhar espantado.
Ele não nos disse nem uma palavra, reconheceu a sala. Sorriu apenas.
Sorriu e ficou espantado em nos ver, ver a casa por dentro e nos ver.
E só.
(...)
A Segunda
Eu com meu vestido vermelho sou a primeira que ele vê, a única que ele vê
e reconhece logo,
Com o meu vestido vermelho, fico pensando, sou a que ele reconhece
primeiro, ele ri,vejo que ele ri, se lembra desse vestido e dos ensaios de
dança, dos sofridos ensaios de dança pela tarde afora, a aprendizagem,
cada um queria levar o outro no seu ritmo, a preparação das nossas
entradas na pista do salão,
ele ri como se ele gozasse de mim e eu fico feliz de ouvir o riso dele assim.
A Mãe
Não ri nada.
Você nem teve tempo de se trocar, coitada,
a gente só imagina – você nunca vai mudar mesmo! – a gente só imagina,
você cavalgando por essas escadas procurando, com essa tua boca suja,
procurando esse seu vestido no armário.
Deve estar todo sujo enfiado num canto, amassado, aquele vestido
vermelho de aparato, tão vulgar, a gente só imagina,
ele mal põe o pé ma entrada de casa, e cai, e desmaia, e não nos diz nada,
nem uma palavra,
desmorona e eu mal o vejo, seu olhar eu mal o vejo, só vejo o corpo dele
desmoronado, ali,aos meus pés.
E você ali, como eu, como todas nós, essas daí, você do meu lado,
segurando a minha mão, não teve tempo de fazer foi nada, nem um gesto,
nada.
Só olha.
(...)
A Mais Nova
A Segunda
Olho pra ele, caído no chão, exausto, acabado e sonho em dançar com ele
e cuspir na cara daqueles imbecis, mas nada disso vai acontecer, é como
um cadáver com quem não se pode mais contar.
A Mais Nova
Nós iremos todas as duas, eu vou levar você pra dançar, não vai ser uma
maravilha, vai ser meio sem graça, duas coitadinhas feias no meio da pista,
mas iremos as duas juntas.
(...)
A Mãe
A Mãe
Eu nem sei. É, não sei se isso são coisas que se possa pedir, pedir àqueles
que também gostariam de estar assim tão perto do acontecimento da morte,
que se retirem e que me deixem um pouco de solidão?
Não sei.
Você entende, e essas daí também, será que vocês são capazes de
entender isso?
Cada uma delas, e eu também, cada uma delas deseja isso. É exatamente
o que cada uma aqui deseja.
Não dividir mais, sem se devorar, não, não ter mais que dividir.
É isso que você queria?
A Mãe
Era só isso sim. E eu sei que não é pouca coisa, que é pedir demais.
Só isso.
O instante preciso.
Elas vão se despedaçar, dançar essas danças delas, buscar amor, exigir,
querer que ele fale com elas, que ele saia do seu sono, elas não querem
entender.
Elas vão destruir as nossas vidas, ao longo dos dias, tentando obter toda e
qualquer forma de verdade.
Elas também querem saber se elas foram enganadas, se todos esses anos
foram perdidos em vão. Elas estão apavoradas, olha pra elas, apavoradas
com a idéia do sacrifício.
A Mais Nova
Começou mal.
(...)
A Segunda
Algum homem? Já. Ainda bem. Se eu já tive algum homem? É essa a sua
pergunta? Já, já tive alguns homens, sim. Alguns homens me tiveram. Não
me lembro muito bem da letra da música, mas era, alguma coisa assim, eu
tive homens e os homens me tiveram...
Dava pra supor eu acho? Por que você está me perguntando isso?
Eu fiquei aqui, com vocês, nessa terra, essa cidadezinha aí,
uma ou duas cidadezinhas, maiores, um pouco mais longe, eles me vêem
andando pela estrada, ando exatamente como eles querem que eu ande,
com aquele passo apertado de garça respeitosa,
a senhorita professora,
desprezo esse povo, o que eles repetem e até tem razão, ainda assim me
respeitam, são obrigados, pois sou eu que ensino às crianças imbecis deles
uns rudimentos de nada,
me desprezam e me cumprimentam.
Pego o ônibus, passo o dia na cidade escolhendo sapato para mim, o quê
que eu estou contando, e durmo num quarto de hotel escuro e sujo com um
sedutor barato que não sabe muito o que fazer comigo.
Conta, fala da mulher, dos filhos, sempre fazem isso, é vendedor de
enciclopédias médica por assinatura.
E às vezes, eles choram, modo de dizer.
Uma vez cada dois três meses, a gente se cruza de novo no Grande Bar do
Comércio e dos Viajantes, blefa um pouco, faz cara de quem nunca se viu
para recomeçar o amor, chamemos isso assim, recomeçar o amor no andar
de cima, sem dizer uma palavra. Homens, é, cada vez mais longe,
desconhecidos.
Era isso que você queria saber?
A Segunda
É bom? Era bom? De vez em quando, às vezes dava pra ser bom?
Arrependimento?
A Segunda
É, tem algum?
Carinho pro mim mesma, esse tipo de coisa?...não, acho que não. É
higiênica...higienista?...Enfim
Nada mais, acho que não.
Eu só sempre desconfiei um pouco da tristeza, essa tristeza egoísta,
esse prazer em se queixar para si própria , em lamentar-se cheia de
emoção,
tornar-me uma coitada depois, é isso que eu sempre tentei evitar, contra
isso que a gente tem que se cuidar.
A Segunda
O que eu queria dizer,
homem,mas homem, não sei,
homens mais envolventes, menos passageiros, homens que deixaram um
pouco de recordação. Não esses aí, uns homens diferentes dos meus, uma
vida diferente da minha.
A Segunda
Aquele que deixa a gente sofrendo para sempre? Que agente cruza e não
revê mais, e que fica procurando um rastro dele nos outros, aquele que, só,
mexeu com tudo sem nem se dar conta, e que ainda de vez em quando, eu
vou me pegar com ódio dele por ter me abandonado? O indiferente?
Segredo meu?
A Segunda
É, um homem desses.
A Segunda
Um tempo
É.
Essa frase, eu sempre chateio os meus alunos, essa frase aqui, sempre:
“Ela tinha tido como uma outra a sua história de amor...”
É isso?
Um tempo
E você?
A Segunda
Eu?
Bem eu, eu, eu não respondo a esse tipo de pergunta.
A Mais Nova
Quando ele partiu, nos deixou, nos abandonou a nosso triste destino,
deixou a casa sem esperança, modo de falar, sem esperança de retorno,
quando ele foi embora, ninguém prestou atenção em mim, nunca tive uma
recordação de alguém prestando atenção em mim,
e naquele dia menos que nos outros dias,
e naquele dia ainda mais que nos outros dias,
quando ele partiu, me lembro muito bem, ninguém se importou comigo.
Quando pai o expulsou, com aquela sua raiva, aquela raiva violenta,
uma daquelas raivas horríveis capaz de estremecer as paredes de casa,
essa expressão, só estou repetindo o que me dizem
uma daquelas raivas horríveis capaz de estremecer as paredes de casa
uma raiva ainda maior que todas as outras, uma raiva a mais, naquele dia
como em todos os outros dias
Ela mostra
ameaças que dão medo, e que a gente imagina, elas poderiam ser
executadas, a gente é pequena, a gente é criança e a gente imagina, não
eram só as palavras, mas e as ameaças e as pancadas, e as brigas, as
ameaças de briga, que mais?
O ódio e o nascer do crime, num instante
A Mãe
Você se lembra disso, é? Você se lembra de tudo isso, viu tudo é, não
estava dormindo, longe daqui, você viu e ainda se lembra?
Invenção sua.
Onde é que você estava?
A Mais Nova
e eu vejo, esse daí, todo novinho, o caçula, a gente sempre diz isso, sempre
digo isso, e ele é mais velho do que eu, e eu também, falo feito vocês, o
caçula,
Eles brigavam sempre, todo dia, briga mesmo, sim, as brigas de sempre,
pensei que seria como todas as outras vezes, e não um crime maior do que
os outros crimes.
A Mãe
Ele sempre ia embora e ele sempre voltava. Como é que eu podia imaginar
isso? Como é que eu poderia ter imaginado isso. O começo de todos esses
anos de espera?
E ouvia e tinha medo também que eles não pudessem mais se encontrar e
se perdoar de novo, como eles sempre se perdoavam
- sempre quis imaginar que eles se perdoariam, e eles sempre acabavam se
perdoando -
tinha medo, mas não enxergava, acho que não, imaginei, dei um jeito
todos esses anos, tinha medo sim, sempre tive medo da violência entre eles
- o ódio? Ah não, isso não, não aceito, ódio não –
tinha medo, mas não podia enxergar que ele estava indo embora pra
sempre,
partindo para nunca mais colocar os pés nessa casa, não se importar mais
conosco, não ligar mais pra nós.
Isso eu nunca pensei.
A Mais Nova
E quando foi que você se deu conta? Deu conta, pra sempre?
Nós o esperamos.
Sem dizer nada ao pai dele, não se dizia nada e o pai dele nunca tocou no
assunto, da sua ida sem retorno,
da ausência,
nunca ele tocou no assunto do desaparecimento dele. Ia ficando velho,
pouco a pouco, se deixava levar pela velhice, era seu único desejo, agora,
não queria mais nada, só queria ser velho.
Caminhava em silêncio, quando ele tinha de vir aqui, o barulho de seu
passo pela escada, o abrir da porta, eu esticava a orelha,
a sua mãe, essa daí, a sua mãe também, ele não dizia nada sobre o
desaparecimento, acho que não, ela não fala sobre, acho que não, o
desaparecimento, a ausência, a sua mãe ele também não dizia nada, e o
resto do tempo, durante o dia, ele caminhava do lado de fora, no bosque, no
campo, imagino, saía de manhã, e voltava de noite e sempre, sem quase
nada, a semana inteira, sem nos dizer quase nada, não sentia a
necessidade.
Todos esses anos, foi assim que nós os passamos, foi assim que nós os
perdemos, sem imaginar que eles pudessem durar tanto tempo assim, isso
nós não sabíamos, não tínhamos como saber,
Se nós soubéssemos, você acha que? se nós soubéssemos nós teríamos
impedido, nós o teríamos segurado aqui,
seu pai e ele, nós os teríamos impedido de agir, nós não podíamos imaginar
a vida dessa maneira, quem é que pode imaginar isso.
Parece que você quer,
quero dizer,
parece que você quer nos culpar, nos acusar como se nós tivéssemos que
ser culpadas, como se nós não tivéssemos visto nada, parece que você
quer nos culpar por isso,
ousar nos culpar por isso, e isso não está certo não, não é justo, quero
dizer, não é uma coisa justa, porque ninguém pode imaginar que nunca
mais ele voltaria ou então que ele só voltaria o dia de hoje, na hora da sua
morte, porque ele está morrendo e nós sabemos que ele está morrendo,
ninguém podia imaginar que ele nos deixaria assim, que ele nos
abandonaria, pois ele nos abandonou
e que nunca daria notícia,
que nunca, quando o pai dele morreu, mas como é que ele podia saber?
- pode ser que alguém tenha lhe dito? que ele tenha ficado sabendo? -
mesmo quando o pai dele morre, nunca ele deu sinal, nós não podíamos
imaginar isso, não,
e que só, aqui, agora, no fim da estrada, no final, ele venha morrer, como se
ele quisesse nos mostrar alguma coisa, nos provar ainda alguma coisa que
pudesse nos machucar, pois isso vai no machucar,
ninguém nunca, nenhuma de nós, parece que você quer nos acusar, mas
ninguém, nenhuma de nós, podia imaginar isso e entender isso.
A Mãe
Deixa essa daí. Ela quer nos culpar. E ela nunca vai ter culpa de nada, vai
ser sempre inocente. Bem que ela queria.
(...)
Aquele não era um dia de adeus de verdade. Ele partiu tão brutalmente,
bate a porta, insultou o pai e o pai o insultou, e bateu a porta.
Nem me lembro se ele me beijou, se ele parou pra me dar um beijo, se ele
se importou comigo ou com ela, essa daí, a mãe dele, não me lembro,
mesmo com ela, não me lembro.
E nem sequer, não é essa a lembrança que eu tenho, e nem sequer uma
palavra, ou um sorriso, ele nem nos vê, nem se importa com a gente, e
nunca, foi o que nós sempre pensamos, desde então, e nunca pareceu se
importar conosco, nunca parece que nós tivemos importância, ou um
interesse qualquer para ele.
A Filha Mais Velha
Ele nos deixa, nos larga aqui, somos nós que sempre, aqui, todas as cinco,
somos todas nós, que vamos esperá-lo, todos esses anos perdidos,
bloqueadas, esgotadas, aqui,
mas foi o pai dele quem ele deixou, é a história deles dois, a separação e a
violência da separação deles, e nós não contávamos e nós nunca mais
contamos, nós esperávamos, todos esses anos, nós esperávamos mas nós
não contávamos.
A Segunda
Nunca teve nem aí pra gente, não queria nem saber da gente.
A Mais Nova
Descobre-se isso.
A Mãe
Calem a boca, não digam isso, deixem disso. Não quero ouvir isso.
A Segunda
Todo esse tempo, e nunca ele deu notícia, todo esses tempo e ele nem aí
pra gente,
não escreve, nem um alô, uma mensagem, será que a gente conta assim
tão pouco pra ele? Será que a gente não tem nenhum valor na vida dele?
nada,
será que todo esse tempo, ele nunca pensou na gente, no nosso
desconcerto? pois nós estávamos desconcertadas, estávamos
completamente desconcertadas, e ele não podia ignorar que nós estamos
perdidas, e que nós o esperávamos,
Até o pai dele, apenas de um modo quase imperceptível, o pai dele também
lhe dizia isso, até o pai dele dava a entender isso, eu acho, não me lembro
muito bem, mas acho que até o pai dele se preocupava com os seus
desaparecimentos, lhe dizia que estava aliviado de vê-lo de volta, ele não
podia ignorar isso,
via a festa que nós fazíamos, a felicidade nossa quando ele voltava, ele
sabia disso, não podia ignorar a nossa angústia, não podia ignorar isso.
Sabia disso, sabe disso, sempre soube, da nossa grande preocupação com
ele.
A Segunda
E todo esse tempo, todos esses anos, até hoje, seu retorno, o tempo que
ele passou longe de nós, não tinha como ele ignorar o nosso desassossego,
não tem como ele não ligar, é, eu sei que não,
não podia ignorar o quanto nós ficamos perdidas, e paradas, aqui, em nós
mesmas, desesperadas de tanto esperar,
não tem como ele não saber
e nunca mais dar notícia, nem uma mensagem, nunca,
é um crime da sua parte, é o que eu digo, um tipo de crime, não ligar para
as vidas dos que o amam, é um tipo de crime, não sei, é o que eu acho,
de repente me aprece que é um tipo de crime, não tenho certeza, vocês
deviam me ajudar,
é sim, o meu desassossego, o meu desespero, todos esses anos perdidos,
o tempo que eu e que vocês todas aí – vocês deviam me ajudar – todo
tempo que eu destruí à espera dele e me preocupando com ele,
e ainda só o ver voltar, só no último instante, só nesse último instante, vê-lo
desabar, deixar cair a sua bolsa, essa bolsa de marinheiro ou bolsa de
militar,
-voltar e cair no chão e morrer sem ter justificado nada sobre a sua vida, é
um tipo de crime sim, e me deixar na ignorância, e não me dar nada! –
nos deixar todo esse tempo, é um tipo de crime , é o que eu acho, acho de
verdade, de repente, acho mesmo de verdade, é um tipo de crime sim, tão
grave quanto um crime.
A Segunda
Nem aí pra gente é o que eu digo, vocês tem medo de ouvir isso, nós
nunca contamos pra ele, e isso é um grande crime de ter no ignorado esse
tempo todo, por isso ele é merecedor de culpa sim. E morrer, se ele morrer,
morrer não vai ser um perdão.
(...)
E nem sequer uma efusão, não, nem sequer por essas duas aí – a pirralha
escondida debaixo da escada, esse canto, só olha e ninguém nem se
importa com ela, ela não conta – nem sequer uma efusão nem por essas
duas aí, no meio da sala, nem sequer uma efusão por elas, um carinho.
Um adeus, não.
A Mãe
Me beija. Discretamente.
A Segunda
Me pega brutamente contra ele, apenas me aperta nos seus braços, apenas
me beija, e logo me empurra violentamente,
quis me afastar e me levar com ele, os dois de uma vez só, ao mesmo
tempo.
Nada disso. Tudo emenda. Vocês inventam cada vez um pouco mais.
A Mais Nova
A Segunda
A Mãe
A Mãe
A Segunda
A gente berrava. Ele nos dava tapa, nos dava pancada, sacudia os braços
com toda força, e a gente só apanhando.
A Mais Nova
A Mãe
Ninguém nunca viu isso. Vocês só emendam. Essa daí sempre debaixo da
escada dela, esse canto, pode dizer a verdade, ela nunca viu nada disso.
A coisa foi feita com violência sim, não quero falar disso, violência, mas só
nas palavras, eram palavras violentas, só palavras e nada mais.
Ninguém aqui pode dizer que ele batia em vocês, não é verdade.
Dá tapa, bate na gente sim e a gente não consegue segurar o caçula, ele
deixa essa casa, e a gente não pôde fazer nada.
E a gente se separa.
A Segunda
A gente podia ter fugido com ele, teria sido a melhor coisa, todos esses
anos pelas estradas, eu bem que teria gostado.
A Segunda
Nem ligava pra gente, já tinha sua bolsa, e não ia carregar mais peso com
ele.
A Mais Nova
Dessa vez, seria ele que teria nos dado uns tabefes, pra se livrar da gente!
(...)
O que nós vamos fazer, o resto da noite, essa noite toda, hoje, noite do seu
retorno, o caçula, o que a gente vai fazer, não ir pra cama, ficar cantando a
nossa canção, dançando a nossa dança meio lenta, todas as cinco, todas
sempre como nós sempre fomos, como nós sempre aprendemos a fazer,
Todos esses anos perdidos,
Nossa pavana para o rapaz, essa história aí,
Nós não pegamos no sono, ficamos nesse nosso cômodo, esse quarto em
que passamos as nossas vidas, esse lugar aqui, vigiando os ruídos que
poderiam vir da sua cama, ele descansa, é o que dizemos, nós vigiamos
cada mínimo movimento seu, queríamos tanto que ele apenas, se mexesse,
se virasse dormindo, ou falasse nos seus sonhos.
A gente espera, a gente fica aqui.
A Mãe
Ouço, me aproximo, ouço, ouço por atrás da porta feito quando ele era
criança, e hoje a mesma coisa. Tento adivinhar alguma coisa, ninguém me
dá nada.
A Segunda
Muito tempo eu acreditei nisso, sei lá eu? Coisa que li, nesses livros que
você lê para mim ou me conta. Muito tempo eu acreditei nisso, idéia minha,
muito tempo eu pensei eu pensei não sobreviver e me deixar devorar pelo
desassossego, e pela dor,
Que eu ficarei velha, envelhecerei por culpa dele, à espera dele, muito
tempo eu acreditei nisso, que isso me destruirá, essa palavra, que isso me
destruirá,
Muito tempo, eu acreditei nisso, no que está acontecendo, hoje, esse
retorno, eu o temia e tinha tanto medo,
Muito tempo, e eu imaginei a morte desse aí, a morte do caçula,
Muito tempo acreditei e quis acreditar que a sua morte me levaria junto com
ele.
Não?
A Segunda
Não.
Não é uma boa coisa, nem uma má coisa, nem uma segurança. Nem é
verdade, mas é assim, nem é verdade, é imaginação, emendas que eu
imagino, mas verdade não é.
Não sei, acho que não, não vou morrer de tristeza, nem me imagino mais,
bem capaz que não, nem me imagino mais morrendo de tristeza.
Por que é que eu mentiria?
A gente queria aquela tragédia, aquela bela família trágica, mas isso a
gente não vai ter, apenas a morte de um rapaz numa casa de moças.
Ri, pode rir. Vai ser só isso.
É meio exagerado, esse nosso sonho, bem que a gente queria, seria tão
bonito, tão doloroso e nobre além do quê e deixaria esses imbecis dessa
cidadezinha de língua pra fora:
- Ela não sobreviveu à morte do irmão, amava-o tanto que morreu junto a
ele, de desespero, assim mesmo, com a mandíbula que se desloca –
Mas eu nem acredito nisso, tudo mentira, por mais que eu lamente, é uma
mentira.
meu corpo não vai me abandonar, e não vou ter vergonha disso. Vou
continuar andando e tendo vontade de andar, comendo e tendo vontade de
comer, amanhã irei até a estrada, vou me preocupar com o tempo que faz
para saber como vou me vestir, você também, vai fazer a mesma coisa, vai
se preocupar se tem sol, se vem chuva, e semana que vem, vou voltar à
cidade, e arrumar um trabalho pra mim, e vou embora daqui.
Não ouso dizer e vocês todas, nós três, sobretudo, e quem sabe nós todas,
vocês não tem coragem de imaginar isso, eu não tinha coragem de dizer,
mas nós vamos ter que recomeçar as tarefas cotidianas, mais nada, esse
tipo de coisa que vem depois da morte, as tarefas cotidianas.
A Mais Nova
A Mais Nova
Retomam gosto.
A Segunda
(...)
De agora em diante, desde que ele chegou, o caçula, eu devo ter pensado
nisso, desde que ele chegou, e enquanto ele viver, enquanto nós tivermos
que esperar,
de agora em diante, não vou me preocupar mais com ninguém, só com ele,
não vou atrás de mais nada na minha vida, eu acho.
Nós vamos cuidar dele, tomar conta dele e nos revezar ao pé da sua cama,
ficar com ele e nunca mais abandoná-lo,
estar a cada hora, dia e noite, estar a cada hora, a alguns passos apenas,
sempre, vigiando a vida e a morte, a luta que vai ser.
Só ter isso e mais nada.
Vou ter recordações, isso bastará na minha vida, deve bastar na minha
vida,
vou ter minhas recordações e minhas recordações vão fazer com que eu
tenha uma vida em paz.
Uma vai ter um filho, você, vai ter um filho, vai acabar fazendo um filho, ri,
você vai ver só, vai ter um filho, meu sobrinho querido,
um desses imbecis que lhe xingam na praça municipal, um desses imbecis
vai lhe engravidar, você vai ver só,
você vai voltar do baile com teu vestido vermelho todo torto e vai fazer um
filho,
e o quarto da criança vai ser esse quarto aí, o quarto, todo arrumadinho, do
caçula morto, depois de uma boa tarde de limpeza, as janelas bem abertas
e o ar que entra, o cheiro de sabão no chão e o cheiro de encáustica – você
lembra disso também, cheiro de encáustica? – e os últimos vestígios, a
bolsa de marinheiro, levados para o sótão...
Vocês não querem admitir, hoje, num dia como esses, vocês não querem
admitir, é cedo demais,
Ver o cadáver dele, pois já se trata de um cadáver, ver o cadáver dele
embarcar aqui na nossa frente, aqui, aos nossos pés,
ele caiu no chão assim que ele atravessou a porta, e não querer admitir,
você não quer ouvir isso, é impossível pra vocês, vocês não têm força pra
isso, vocês não querem admitir, mas nós vamos dar um jeito.
Vamos ter que.
Vamos dar um jeito.
imaginaria isso como uma dor tão grande, uma cruel catástrofe, um drama
tão grande,
e, sobretudo, sobretudo, uma ironia tão má, uma piada da vida, não é?
que eu fugiria, acharia, espero, a força de fugir, de dar um grito de raiva e
de fugir, que eu conseguiria me afastar,
que eu mandaria embora o tal que viesse me levar, que dissesse que me
ama e que quisesse que eu o amasse também e que terá cometido o grave
crime de ter vindo assim tão tarde.
(...)
Eu, como foi que você disse, que número, uns bons trinta anos, limite de
idade, que grosseria, que menina grossa que você é.
eu, eu vou ficar, você não acha? Vou ficar aqui definitivamente, guardando
o meu lugar, me preocupando com essas duas aí, as duas mais velhas, e
eu passando aos poucos para o time de lá, vamos levar as nossas vidas as
três, juntas,
vou passar, imagino, vou passar sem nunca poder impedir, vou passar
devagarinho, bem devagarinho, do time das moças ao time das velhas, não,
não sei
- eles têm que nos chamar de um modo ou de outro, os outros aí, essa
gente, de algum modo eles têm que nos chamar –
vou ficar velha, devagarinho, sem revolta, tranqüila, era isso que eu queria,
De agora em diante, essas duas daí, não vão ter mais vontade de nada, vão
renunciar,
Tenho até medo que elas sejam engolidas junto com ele, tenho medo e vou
me preocupar com elas. Tomar conta.
A Mais Nova
Eu não sei de nada, a mais nova, não sabe de nada, essa daí, a única, que
ainda pode ter alguma chance na vida, pra quem as coisas podem
finalmente começar,
não sei, vou embora daqui, bem capaz, imagino, vou embora daqui.
Vocês não me perguntaram?
A Segunda
A Mãe
Não, elas não lhe perguntaram nada, mas elas se preocupam com você,
sim.
A Mais Nova
Vou esperar a minha hora, e vou-me embora, bem capaz, é o que eu estava
dizendo, partirei quando for a minha vez e recomeçarei a minha vida,
começarei a minha vida, imagino que sim...
A Segunda
(...)
A Mãe
FIM.