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Junho de 2020

Volume 11 No 15
ISBN: 2317 4765

i
iii
ENDEREÇO Equipe Editorial
Departamento de Letras
Editor responsável Fátima Bianchi, Universidade de São Paulo.
Orientais, Faculdade de
Assistência editorial Jéssica de Souza Farjado e Rafael Bonavina,
Filosofia, Letras e Ciências
Universidade de São Paulo.
Humanas, Universidade de
Projeto Gráfico e diagramação Ana Novi, Universidade de São Paulo.
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Conselho Científico
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Aurora Fornoni Bernardini, Universidade de São Paulo, Brasil
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David Mandel, Université du Québec a Montréal, Canadá
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Universitiét im. Lomonossova, Rússia
Yuri Nikolaievitch Guirin, IMLI Rossískaia Akadiémia Nauk, Rússia

Editores Honorários
Boris Schnaiderman, Universidade de São Paulo
Jerusa Pires Ferreira, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

ISSN: 2317-4765

iv
Junho de 2020
Volume 11 Número 15
Índice

1. Editorial Fatima Bianchi 1


2. La fotografía rusa durante la NEP. Un 5
artigos
campo experimental y revolucionario
(1921-1929) Renata Carla Finelli
3. Pelo prisma de violência: percurso pelo 40
universo artístico de Ivan Búnin Márcia
Vinha e Elena Vássina
4. Monteiro Lobato e Samuel Marchak 63
através de seus ilustradores Daniela
Mountian
5. Púchkin e Machado, o ser negro, formas 90
de ouvir o outro Susana Fuentes
6. Ironia e seriedade no romance russo: 119
anotações para ler Dostoiévski sob o
ponto de vista de Kierkegaard Jimmy
Sudário Cabral
7. Retratos da vida: Uma visada sobre o 144
Impressionismo do dramaturgo Anton
Tchekhov Hugo Lenes Menezes
8. Um Tchékhov tal, que nunca havíamos 173
visto antes!”: ecos tchekhovianos pós-
soviéticos Cássia Regina Marconi
Marcançoli
tradução
9. Textos de Velimir Khlébnikov em 190
tradução anotada Tradução de Ludmila
Menezes Zwick.
10.Epos e lírica na Rússia contemporânea. 217
ensaios

Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak


Marina Tsvetáeva / Tradução de Aurora
Bernardini
11. Boris Eikhenbaum, uma (auto)biografia 235
Tradução de Raquel Abuin
Siphone
12. Recordações sobre L.A. Sulerjítski. 244
Mikhail Tchekhov / Tradução de Daniela
Simone Terehoff

13. Ele e Ela Anton Pávlovitch Tchékhov 259


/ Tradução de Melissa Teixeira Siqueira
conto

Barbosa

14. “Meu caminho” Serguei Iessiênin / 271


poema

Tradução de André Nogueira

15. A Homero Freitas de Andrade Aurora 281


Bernardini
homenagem
Editorial

É um prazer apresentar ao nosso leitor esta edição N. 15 da


RUS – Revista de Literatura e Cultura Russa, que reúne tra-
balhos desenvolvidos por docentes e pesquisadores de várias
regiões do Brasil e do exterior dedicados aos estudos russos.
A edição apresenta sete artigos, com uma certa confluência
para o campo comparatista e para os estudos tchekhovianos,
e traduções de quatro ensaios, um conto e um poema.

Abre este número o artigo “La fotografía rusa durante la NEP.


Un campo experimental y revolucionario (1921-1929)”, no qual
Renata Carla Finelli procura mostrar o papel da fotografia no
contexto da Nova Política Econômica, implementada por Vla-
dímir Ilitch Lênin em 1921, em termos dos distintos usos e for-
mas de circulação desta arte no referido período.

Em seguida, no artigo “Pelo prisma de violência: percurso


pelo universo artístico de Ivan Búnin”, Marcia Vinha e Elena
Vássina, apoiadas nas perspectivas de G. Bataille, H. Arendt,
J. Derrida, I. Tyniánov e I. Lotman com relação à violência e
à criação da imagem da violência no texto artístico, buscam
compreender a relação entre a mesma e a escritura, bem como
sua imagem artística tal como construída por Búnin.

Na sequência, dando início a uma série de artigos voltados


para o campo comparatista, em “Monteiro Lobato e Samuel
Marchak através de seus ilustradores”, Daniela Mountian
aponta os anos de 1920, início da revolução global da arte do
livro, como o momento em que começaram a atuar estas duas
figuras-chave para o desenvolvimento da literatura infantil
moderna de seus respectivos países: Marchak na Rússia, Lo-
bato no Brasil, que, além de escritores e tradutores, foram im-
portantes editores e reuniram em torno de si artistas gráficos
e pintores de escolas variadas.

A contribuição de Susana Fuentes para este número, o arti-


go “Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro”,

1
procura abordar, numa perspectiva comparada, o lugar de visi-
bilidade da herança afrodescendente em A. Púchkin na litera-
tura russa e Machado de Assis na literatura brasileira.

Em sua contribuição para este número da RUS, o artigo “Iro-


nia e seriedade no romance russo: anotações para ler Dos-
toiévski sob o ponto de vista de Kierkegaard”, Jimmy Sudário
Cabral propõe que o conceito kierkegaardiano de “ironia domi-
nada” pode ser utilizado como uma chave de interpretação da
estética de Dostoiévski, bem como de seu diagnóstico e de sua
tentativa de superação do niilismo estético dos românticos.

Em seguida, ainda numa perspectiva comparada, mas já


abrindo uma série de materiais que focalizam a obra de A.
Tchékhov, no artigo “Retratos da vida: uma visada sobre o Im-
pressionismo do dramaturgo Anton Tchekhov”, Hugo Lenes
Menezes procura abordar o gênero dramático, sobretudo na
Modernidade, em relação à pintura impressionista, por meio
da leitura de criações tchekhovianas para representação no
palco, detendo-se numa abordagem da peça As três irmãs.

No artigo “‘Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto an-


tes!’: ecos tchekhovianos pós-soviéticos”, Cássia Regina Mar-
coni Marcançoli busca refletir sobre releituras dramatúrgicas
de peças do autor, surgidas principalmente na época da Peres-
troika, após a queda da URSS, por dramaturgos russos contem-
porâneos, como Alekséi Slapóvski, Liudmila Petruchévskaia e
Viktor Slávkin.

Na seção Traduções, os “Textos de Velimir Khlébnikov em


tradução anotada”, traduzido por Ludmila Menezes Zwick, ex-
pressam a reverência do autor à natureza e à inventividade,
suas querelas com as gerações passadas, com vozes de auto-
ridades de sua época, e clamam pela liberdade dos povos, pela
extirpação do conservadorismo instituído e pelo advento do
Futurismo.

Em seguida apresentamos a parte I do ensaio “Epos e lírica


na Rússia contemporânea. Vladímir Maiakóvski e Boris Pas-
ternak”, de Marina Tsvetáeva, traduzido por Aurora Bernardini
(A parte II será publicada no próximo número da RUS), em que

2
Tzvetáeva pontua a razão pela qual, na poesia russa contem-
porânea, ambos os poetas devem ser colocados lado a lado.

No ensaio “Boris Eikhenbaum, uma (auto)biografia”, tradu-


zido por Raquel Abuin Siphone, o autor russo fala sobre sua
infância provinciana, a mudança para Petersburgo e sua for-
mação acadêmica.

Em “Recordações sobre L. A. Sulerjítski”, de Mikhail


Tchékhov, traduzido por Daniela Simone Terehof, o autor traz
à tona algumas das principais experiências vividas por ele
dentro do pequeno espaço experimental conhecido como Pri-
meiro Estúdio do Teatro de Arte de Moscou (TAM).

No conto “Ele e Ela”, de Anton Pávlovitch Tchékhov, tradu-


zido por Melissa Teixeira Siqueira Barbosa, acompanhamos o
relacionamento conflituoso entre uma cantora famosa e seu
marido em meio ao ritmo agitado de banquetes e de figuras do
meio teatral.

Para fechar a seção Traduções, apresentamos o poema “Meu


caminho”, de Serguei Iessiênin, traduzido por André Nogueira,
uma espécie de pequena autobiografia em verso do poeta que,
em seu poema de despedida, “escrito com o sangue das veias
abertas”, causou grande comoção na sociedade soviética de
então.

E, por fim, apresentamos uma homenagem da Professora


Aurora Bernardini ao Professor Homero Freitas de Andrade,
falecido em 07 de março de 2020, a quem dedicamos este nú-
mero da RUS.

Fátima Bianchi

3
4
La fotografía rusa
durante la NEP.
Un campo experimental y
revolucionario (1921-1928)
Renata Carla Finelli*

Resumen: La Nueva Política Económica Abstract: The New Economic Policy (NEP)
(NEP), implementada por Vladímir implemented by Vladimir Illich Lenin in
Illich Lenin en 1921, produjo nuevas 1921produced new concerns in the artistic
preocupaciones dentro del campo artístico. field. The soviet’s opinions as for the
Las opiniones de los soviets en cuanto a la NEP were been divided for and against
NEP estuvieron divididas a favor y en contra it. For many of them, the NEP threatened
de ésta. Para muchos de ellos, la NEP their work due to the promotion of the
amenazaba su trabajo debido al fomento production of private companies and the
de la producción de las empresas privadas introduction of new technology; as long
y la introducción de nuevas tecnologías; as, for others, it meant the starting point
mientras que, para otros, significaba of the economic resumption would allow
el punto de partida de la reanudación the entry of artistic products of little scope
económica que permitiría la entrada de until then. The importation of technological
bienes de poco alcance hasta entonces. products opened a new artistic outlook
La importación de productos tecnológicos that stimulated and placed photography in
abrió un nuevo panorama artístico que the center of the scene. The present work
estimuló y colocó a la fotografía en el intends to tell the different uses and forms
centro de la escena. El presente trabajo se of circulation that photography had during
propone contar los distintos usos y formas the revolutionary years of the NEP.
de circulación que tuvo la fotografía durante
los años revolucionarios de la NEP.

Palabras clave: Fotografía; Nueva Política Económica; Arte ruso


Keywords: Photography; New Economic Policy; Russian Art

5
Renata Carla Finelli

Introducción

*
Profesora y Licenciada en Una vez que los bolcheviques llegaron al poder en 1917, co-
Filosofía por la Universidad menzó en Rusia un período de Guerra Civil de cuatro años,
Nacional de Córdoba, Argentina.
Doctoranda en Filosofía por la aproximadamente, que sumó más pobreza a la que ya traía
Universidad Nacional de San el pueblo ruso con las políticas del zarismo. La hambruna en
Martin, Argentina. Miembro in-
vestigador y becaria del proyecto
las ciudades y en los pueblos había avanzado notablemente,
de investigación “Historia de las había decaído la siembra, se produjeron muertes por epide-
ideas estéticas en Argentina” mias y el Ejército Rojo, constituido principalmente por prole-
(PICT- 2016-0204), radicado en
el Centro de Investigaciones Fi- tarios –olumna vertebral del Partido bolchevique−, había su-
losóficas (CIF/CONICET). E-mail: frido numerosas bajas.1 La mayoría de la población se había
renofinelli@hotmail.com
concentrado en ámbitos rurales –el 84% vivía en el campo− y
éstos habían regresado a un modo de vida precario, con un
bajo nivel de producción que sólo lograba cubrir el consumo
doméstico y “dejaba poco para las ciudades y el Estado”.2 Es-
tos hechos fueron determinantes a la hora de tomar medidas
económicas.
Como sostienen distintos intelectuales tanto del campo de
las humanidades como de las ciencias económicas,3 cuando
los bolcheviques llegaron al poder no sólo tomaron el apara-
to administrativo, sino que también comenzaron una tarea de
construcción del Estado socialista tanto a nivel económico y
administrativo como social y cultural. Sin embargo, como afir-
ma Stephen Cohen, “los bolcheviques no tenían una política
económica definida al llegar al poder en 1917. Existían unos
objetivos y preceptos generales (…) pero se expresaban de una
forma muy imprecisa y con interpretaciones de lo más dispar
dentro del partido”.4 De este modo, la ejecución de la Nueva
Política Económica (Nóvaya Ekonomícheskaya Polítika: NEP)
que se inició luego de la Guerra Civil, en 1921, hasta 1928 fue

1
FITZPATRICK, 2005.
2
LEWIN, 1990, p. 117.
3
Puede consultarse en el campo de las ciencias humanas el estudio de Buck- Morss, 2004 y
en ciencias económicas la investigación de Dohan, 1991.
4
COHEN, 1990, p.105.

6
La fotografía rusa durante la NEP

una “respuesta improvisada a circunstancias económicas de-


sesperadas”,5 pero también tuvo como fin la continuación de
ese proceso de construcción que se había iniciado en 1917.
Como sostiene Sheila Fitzpatrick, las revueltas de Krondstadt
y de Tambov alimentaron los reclamos de los trabajadores en
contra de los bolcheviques e “hicieron patente la necesidad de
una nueva política económica para reemplazar el comunismo
de guerra”.6
Al interior del Partido, la NEP provocó opiniones a favor y
en contra, dando lugar a uno de los debates más fervorosos de
los años veinte conocido como la disputa entre bujarinistas y
troskistas. Los primeros estaban a favor de la política evoluti-
va y moderada propuesta por Nikolai Bujarín (1888-1938) −teó-
rico principal de la NEP–, basada en la planificación y en la
vinculación, mediante el mercado, en un sector industrial es-
tatal y un sector agrícola privado. Los segundos –seguidores
de León Trotsky (1879-1940)−, como los bujarinistas, también
prestaban atención a la industria pesada y a la planificación,
pero estaban más preocupados por los kulaks o propietarios
rurales. Según Stephen Cohen, contaban con éstos para un
“futuro previsible”7 y discutían desde la planificación gene-
ral hasta los impuestos agrícolas. Pese a las diferencias en el
campo político y social, ya en 1924, la NEP había sido aceptada
por la mayoría de los líderes del Partido bolchevique y hasta
finales de los años veinte la NEP contó con la aprobación de
la mayoría de los bolcheviques. “Ni siquiera Stalin se atrevió a
desafiar dicha legitimidad, en su contienda final con los buja-
rinistas en 1928-1929”.8

5
FITZPATRICK, Op. cit., p.124.
6
Ibidem, p. 123.
Entre 1920 y 1921 se produjeron levantamientos campesinos en contra del Ejército Rojo
y del gobierno bolchevique. El epicentro de estos levantamientos se produjo en la ciudad
de Tambov. En 1921, los marineros de la fuerza naval de Kronstadt se enfrentaron con las
fuerzas del Ejército Rojo. Ambas revueltas pusieron al descubierto las disputas al interior
de la población revolucionaria y mostraron las inestabilidades del nuevo Estado. Ver Avrich,
1991 y Landis, 2004.
7
COHEN, Op. cit., p.106.
8
Ibidem, p. 108.

7
Renata Carla Finelli

La NEP consistió en una serie de medidas que relajaban al-


gunos controles en la importación y permitían ciertas liber-
tades a algunos grupos del mercado. Significó la reactivación
de las industrias −privadas y públicas− y de las economías fa-
miliares, pero también fue un estímulo para la vuelta de una
visión capitalista de la vida, en contra de los ideales comu-
nistas. En este sentido, el clima social de los años veinte fue
confuso y hubo una actitud ambivalente respecto a la NEP, ya
que, por un lado, parecía necesaria para restaurar la econo-
mía y continuar hacia el socialismo, pero, por otro, significaba
una vuelta parcial a antiguos hábitos capitalistas. El resultado
fue un clima de desconcierto e insatisfacción por el miedo a
la pérdida de las conquistas hasta aquí obtenidas, sobre todo
para los jóvenes revolucionarios.9
En el campo de la cultura, los años anteriores a la NEP
habían provocado el exilio de dos millones de personas per-
tenecientes a la “elite educada”10 de Rusia, dada la difícil si-
tuación económica. Luego de 1921, junto con la economía, co-
menzó a reanudarse la vida cultural del país y se reabrieron
algunas editoriales que habían caído en la ruina, surgieron
editoriales nuevas (públicas y privadas), exposiciones de di-
ferentes tipos, talleres privados de pintura y arte en general.11
Sin embargo, como señala Anatoly Strigaliov (1990), estos
nuevos acontecimientos reanudaron también un nuevo culto
al objeto poniendo al descubierto el gusto por el arte burgués,
el conservadurismo y el carácter consumista que todavía con-
servaba la sociedad rusa. Ante esta situación, los artistas más
avanzados y comprometidos con los ideales revolucionarios
−como Alexander Ródchenko (1891-1956), Vladímir Maya-
kovsky (1893-1930) y Boris Arvatov (1896-1940), entre otros− se
levantaron en contra de estas nuevas prácticas capitalistas,
señalando el rebrote de los gustos burgueses −burlándose del
“pequeñoburguesus vulgaris”12–, defendiendo la propuesta
9
FITZPATRICK, Op. cit.
10
Ibidem, p.121.
11
DOBRENKO, 2011.
12
FAUCHEREAU, 1990, p.9.

8
La fotografía rusa durante la NEP

de un nuevo arte revolucionario e impulsando a la sociedad


a nuevas formas de relacionarse con los objetos13 mediante
obras artísticas, exposiciones o la publicación de posters cal-
lejeros o revistas.
La NEP modificó el escenario cultural al permitir la reanu-
dación de la importación de artefactos e insumos artísticos,
entre ellos los cinematográficos y fotográficos.14 Si bien a fina-
les del siglo XIX la fotografía ya contaba con prestigio entre los
rusos y se habían creado la Sociedad Rusa de Fotografía (RFO)
y la Sociedad Rusa de la Técnica −ambas instituciones oficia-
les y de gran estima por su contribución en el arte fotográfi-
co− los años revolucionarios le dieron un nuevo empuje a esta
disciplina, ya que el Partido bolchevique había manifestado
su apoyo a la actividad desde el inicio de su mandato. El 27 de
agosto de 1919, por medio de un decreto, Vladimir Ilich Lenin
(1870-1924) declaró la transferencia del comercio del cine y la
fotografía al Comisariado Popular para la Educación (Narkom-
prós) dirigido en ese momento por Anatoly Lunacharsky (1875-
1933),15 y apoyó la actividad fotográfica mediante distintas or-
ganizaciones durante la Guerra Civil.16 Pese a esto, el campo
fotográfico también sufrió el empobrecimiento económico y
productivo de los años de la guerra, recuperándose en los años
veinte con las condiciones comerciales de la NEP.
En 1926, Anatoly Lunacharsky encargado de dirigir el Nar-
komprós −institución donde nacían y se debatían las nuevas
políticas culturales de Rusia−, dijo: “cada ciudadano progre-
sista ha de tener no sólo un reloj, sino también una máquina
fotográfica. Con el mismo derecho que la educación general,
tendremos en la Unión Soviética una educación fotográfica”.17
Como explica Wolf, el Partido bolchevique dio un lugar sobre-
saliente a la fotografía frente a los demás formatos de repre-

13
Ver ARVATOV, [1925] 1997.
14
WOLF, 2010.
15
TSCHUDAKOW, 1990.
16
WOLF, Op. cit.
17
Citado en LEGMANY Y ROUILLÉ, 1988, p.129.

9
Renata Carla Finelli

sentación y “mostró un interés activo en el potencial de la fo-


tografía como herramienta para la persuasión de las masas”.18
La fotografía, junto a la radio y el cine, fue una de las acti-
vidades que se ofrecían a los obreros en los sindicatos para
elevar el nivel cultural. La fotografía “encajaba a la perfección
en el programa de los clubes puesto que se encargaba de una
actividad cultural positiva con una gran relevancia social”.19
El impacto que tuvo en toda la sociedad rusa fue significativo,
no sólo se formaron círculos de aprendizaje en los sindicatos y
fábricas, sino también como formación académica, ya que en
1923 se abrió la sección de Fotografía en la Academia Estatal
de Bellas Artes. 20
La actividad fotográfica rusa surgida durante los años de la
NEP fue, sin duda, uno de los capítulos más importantes de la
historia de la fotografía. A partir de 1921 hasta 1928, no sólo se
reactivaron las actividades que ya se venían llevando a cabo
a fines del siglo XIX, se crearon revistas exclusivas y creció
la fotografía liubitel −o de aficionado− y de prensa, sino que
también se renovó el arte a través de las obras de importan-
tes fotógrafos como Alexander Ródchenko, Mikhail Kaufman
(1897 – 1980) y Dziga Vertov (1896 – 1954). El periodo ha sido
poco estudiado por historiadores del arte y estetas; sin embar-
go, resulta significativo volver sobre éste por la influencia que
ejerció en la imagen de prensa de los años treinta21 y también
por el aporte que significó para la fotografía como disciplina
artística. El objetivo de este artículo es explorar el campo foto-
gráfico de los años veinte y los diferentes usos que se hicieron
de la fotografía. La hipótesis principal sostiene que los fotó-
grafos de estos años, en medio de un clima revolucionario y
de resurgimiento económico provocado por la NEP, volvieron
la mirada hacia su propia actividad para ampliar las fronteras
compositivas, técnicas y discursivas de la imagen fotográfica.

18
WOLF, Op. cit., p. 33.
19
Ibidem, p.33.
20
LEGMANY Y ROUILLÉ, 1988.
21
Cf. GLEBOVA, 2019.

10
La fotografía rusa durante la NEP

Niva, n. 8, 1901.
Fotografías de Karl Bulla. El campo fotográfico
revolucionario
de los años veinte

La fotografía llegó a Rusia el mismo año en que fue presen-


tada en la Academia Francesa de las Ciencias. “En octubre de
1839, el coronel ruso Theremín fotografiaba la Catedral de San
Isaac en San Petersburgo. En ese mismo año aparecían dos
pequeños volúmenes en lengua rusa en los que se describían
los principios básicos de esta técnica de reproducción”.22 A co-
mienzos del siglo XX, ya existía la Sociedad Rusa de Fotogra-
fía (ROF) –una institución de gran prestigio que en ocasiones
prestaba servicios a la corte zarista−, a la que pertenecían re-
conocidos fotógrafos como Alexander Grinberg (1885–1979) y
Moisei Nappelbaum (1863-1958).
La fotografía de prensa se conoció en Rusia a comienzos
del siglo XX en las publicaciones de la revista ilustrada Niva

22
TSCHUDAKOW, Op. cit., p. 75.

11
Renata Carla Finelli

(1870-1918) y Ogoniok (1899-1918, 1923-). Las imágenes fotográ-


ficas eran un elemento novedoso y moderno que llamaba la
atención de la burguesía ilustrada. El retrato y las imágenes
de plazas, calles, salones e instituciones eran las más comu-
nes. El eje de la producción fotográfica de prensa fue San Pe-
tersburgo. Los estudios fotográficos más importantes de esta
ciudad como el de Karl Bulla (1855-1929), Alexandr O. Drankov
(1886-1949) y Adolf Denier (1859- ¿?) −hijo de uno de los prime-
ros daguerrotipistas de San Petersburgo, Andrey Denier (1820-
1892)– solían colaborar con la prensa durante los primeros
años del siglo XX.23

Ogoniok, n. 1, 1902.

23
STOLARSKI, 2013.

12
La fotografía rusa durante la NEP

Pyotr Otsup (1883-1963) fue uno de los pri-


meros fotorreporteros de Rusia. Su carrera co-
menzó a comienzos del siglo XX, trabajó junto
a sus hermanos Joseph y Alexander realizan-
do fotografías de estudio para la aristocracia;
sin embargo, no encontró satisfacción en este
tipo de imágenes y se dedicó al fotorreporta-
je. Fotografió la guerra ruso-japonesa para la
revista Crónica de la Guerra con Japón (Ilus-
trirovanaia khrinika Russo-Iaponskoi voiny)24
y colaboró en las revistas Niva y Ogoniok. En-
tre 1904 y 1917 realizó una importante carrera
como fotorreportero participando de nume-
rosos momentos relevantes de la historia de
Rusia protagonizados tanto por la corte zaris-
ta como por revolucionarios. En 1911, tuvo su
primera exposición solista.25
Durante la Guerra Civil, realizó numerosas
fotografías y alcanzó fama por los retratos que
realizó a los personajes más importantes de la
Revolución, entre ellos, las imágenes tomadas
a Lenin en su despacho durante el primer año
de su gobierno. Así contó Otsup la anécdota
de las imágenes:

El camarada Lenin me recibió en su despacho… Le ase-


Otsup, P. Demostración frente a la
Duma, febrero, 1917.
guré que no iba a necesitar más que diez minutos. Mien-
Otsup, P. “Demostración de fuer- tras yo preparaba la cámara, él cogió el Pravda y comenzó a
zas”, junio, 1917. leer. Como yo no quería molestarle y tampoco quería perder
el tiempo, hice tres fotografías una detrás de otra. Cuando
Vladimir Ilich (Ulianov) acabó la lectura, se disculpó por ha-
berme hecho perder el tiempo y me rogó que comenzara a
hacer las fotografías, de modo que hice nueve instantáneas.
Se trata de esos retratos tan famosos: Lenin en su escritorio
y junto a su biblioteca. 26

24
SHNEER, 2011, p.17.
25
Idem.
26
Citado en Tschudakow, 1990, p. 76.

13
Renata Carla Finelli

Otsup, P. “Fiesta en honor a


San Jorge. Zar Nicolas II y su
hijo”, 1915.

14
La fotografía rusa durante la NEP

Otsup. P., “Lenin en el Kremlin”, 1918.


15
Renata Carla Finelli

Otsup, P. “Mijail Kalinin


toma un empleado”, 1924.
Otsup, P. “Plaza Roja, 1 de mayo”, 1925.
Otsup, P. “Partisanos en el desfile de
atletas en la Plaza Roja”, 1928.

Durante los años de la NEP, Otsup continuó su trabajo como


fotorreportero, publicando en revistas nacionales e interna-
cionales.27 En 1926, fue reconocido por la Asociación de Fotor-
reporteros de Moscú por su trabajo durante más de veinticin-
co años.28

27
Idem.
28
STOLARSKI, Op. cit.

16
La fotografía rusa durante la NEP

Bulla, V., “Guerra ruso-japonesa”,


Victor Bulla (1883-1944) fue también un reconocido fotorre-
1904.
portero durante los años veinte. Como Otsup, su carrera había
comenzado antes de los años revolucionarios. Su padre fue
Karl Bulla, uno de los fotógrafos más importantes de San Pe-
tersburgo y uno de los primeros fotógrafos en publicar en la
prensa; de este modo, tuvo la oportunidad de formarse desde
temprano en el campo de la fotografía. Participó en la revista
Niva, fotografió la guerra ruso-japonesa y los episodios revo-
lucionarios de febrero y octubre de 1917. Junto a su hermano
Alexander y su padre Karl, sacó más de 150.000 negativos so-
bre la Guerra Civil y la vida revolucionaria rusa.29
Durante los años veinte, Bulla se radicó principalmente en
San Petersburgo −Leningrado− y, en 1928, fue homenajeado
por su trayectoria en la exposición “Diez años de la Fotografía
Soviética”. 30

29
TSCHUDAKOW, Op. cit.
30
La exposición “Diez años de Fotografía Soviética” tuvo como objetivo reunir la producción
fotográfica del momento, conmemorar a los principales fotógrafos e impulsar el campo
fotográfico desarrollado durante los años veinte. Se realizó en Moscú durante el mes de
marzo de 1928 e incluyó más de ocho mil obras, entre ellas, fotografías de artistas cons-
tructivistas, fotorreporteros y fotografías de cubes de obreros.

17
Renata Carla Finelli

Bulla, V., “Reunión de soldados en el


Palacio Tarvichesky”, 1917.
Bulla, V.., “Artistas de circo”, 1924
Bulla, V., “Arribo de Mijaíl Frunze a la
conferencia en Leningrado”, 1925.

18
La fotografía rusa durante la NEP

La vida profesional de los fotorreporteros que se habían for-


mado previo a la Revolución –como Pyotr Otsup, Victor Bulla,
Jacob Steinberg (1880-1942) y Pavel Shukov (1870-1942)– al-
canzó distinción durante los años de la NEP. Estos fotógrafos
fueron tomados como referentes por su larga trayectoria por
aquellos jóvenes que comenzaban a desarrollarse en el campo
de la fotografía. Los trabajos de sus años más avanzados mos-
traban el aprendizaje en el campo fotográfico. Como explica
Grigori Tschudakow, estos fotógrafos a lo largo de su trayecto-
ria “habían llegado a la conclusión de que la forma artística de
un reportaje influye en las emociones del observador, despier-
ta su interés y estimula su capacidad de participación en la
imagen”.31 Trabajaban junto con editores de revistas para crear
grandes historias. Las notas podían tener una o varias imáge-
nes desde diferentes ángulos según el tema.32 A diferencia de
las primeras imágenes de prensa del siglo XX, las fotografías
que realizaron estos fotorreporteros durante los años veinte
contaban con un fuerte poder retórico resultado del dominio
de la síntesis y del equilibrio compositivo.
El retrato fotográfico también tuvo un nuevo resurgimien-
to con la NEP. Su máximo exponente fue Moisei Nappelbaum,
quien había comenzado su carrera fotográfica a fines del siglo
XIX, en el estudio de fotografía de Osip Boretti en Minsk. Pu-
blicó en la revista Solneste Rossii y, junto a Victor Bulla, en
Fotograf, la revista de la Sociedad Rusa de Fotografía que ha-
bía sido creada a finales del siglo XIX en San Petersburgo.33
Después de 1917, se convirtió en el fotógrafo de los retratos
oficiales del Partido, retratando a artistas, científicos y polí-
ticos, como Lenin, Lunacharsky, Maxim Gorky (1868-1936) o
Vladímir Mayakovsky.34 Durante los años veinte, Nappelbaum
participó como fotógrafo de las actividades organizadas por
el Partido y dictó cursos sobre fotografía organizados por el
Soviet Municipal de Sindicatos de Moscú (MGSPS).35
31
Ibidem, p. 77.
32
STOLARSKI, Op. cit.
33
LEGMANY Y ROUILLÉ, Op. cit.
34
SNHEER, Op. cit.
35
WOLF, Op. cit.

19
Renata Carla Finelli

Nappelbaum, M.,
“Retrato pequeña joven”, 1899.

Nappelbaum apreció la imagen fotográfica por sobre las de-


más formas de representación artística. Para el fotógrafo, la
imagen fotográfica no debía imitar la composición ni la ilu-
minación de la pintura ni tampoco debía reproducirse mecá-
nicamente.36 En toda su obra incorporó la mirada, la pose y el
gesto fotográfico −propio del retrato− como elementos compo-
sitivos de las imágenes, sin embargo, en las fotografías de los
años veinte, utilizó encuadres más cerrados, menor distancia
del personaje y, en ocasiones, ligeros movimientos de cámara,
logrando situaciones de mayor intimidad. Su estilo y forma de
composición fotográfica fue determinante en la Rusia revolu-
cionaria, “ejerció gran influencia en la evolución del retrato fo-
tográfico en la Unión Soviética; no sólo en aquellos fotógrafos
que realizaban toda su labor en el estudio, sino también en los
fotógrafos de prensa”. 37

36
TSCHUDAKOW, Op. cit.
37
Ibidem, p.80.

20
La fotografía rusa durante la NEP

Nappelbaum, M., “Alexandra Dashquevich”, 1910.


Nappelbaum, M, “Actor Igor Ilyinsky”, 1924.
Nappelbaum, M., “Boris Petersnak”, 1926.

21
Renata Carla Finelli

Además de quienes se habían formado previamente a la Re-


volución, en los años veinte, surgieron nuevos fotorreporteros
que siguieron la tradición de Otsup, Bulla,Steinberg y Shukov
como Seymon Fridliand (1905-1964), Max Alpert (1899-1980)
y Arkady Shaiket (1898-1959). Al mismo tiempo, se formaron
nuevos espacios y revistas para la publicación de imágenes
que se sumaron a las ya conocidas Plamia, en Petrogrado, y
Chronika, en Moscú.38 En 1923, Mijaíl Kolstov (1898-1940), un
periodista apasionado por la fotografía, restableció la célebre
revista de prensa Ogoniok que se había suspendido en 1918.

Ogoniok. n. 22. 1912.

38
Ibidem, p.75.

22
La fotografía rusa durante la NEP

Ogoniok. n. 1. 1914.

23
Renata Carla Finelli

Su lema principal fue “ningún material sin una imagen o fo-


tografía”.39 Bajo esta premisa, Kolstov creó también agencias
nacionales e internacionales de fotógrafos corresponsales
que captaban la Rusia de entonces desde cualquier lugar del
país. Ogoniok se volvió una de las más importantes del campo
del fotorreportaje, compitiendo con Prozhektor (1923-1935) −
suplemento ilustrado del diario Pravda (1918-1981)− y Krasnaia
Niva (1923-1931), revista de prensa también creadas durante la
NEP.
Desde el punto de vista fotográfico, las imágenes de los nue-
vos fotorreporteros mantuvieron los planos de la fotografía
pre-revolucionaria y conservaron la buena nitidez en las imá-
genes. No se hicieron grandes innovaciones en la técnica del
fotorreportaje, pero si en las composiciones de las imágenes.
Los nuevos fotorreporteros contaban con las
enseñanzas fotográficas de sus predecesores,
no retrataban a distancia los hechos, sino que
se movilizaban por dentro de la escena to-
mando a los personajes desde diferentes án-
gulos, variando las tomas y creando diferentes
climas en la imagen. El retrato fotográfico de
Nappelbaum y la fotografía constructivista −
sobre todo, de Alexander Ródchenko− tuvie-
ron una fuerte influencia en estas imágenes.
La fotografía de prensa de estos jóvenes fotó-
grafos ya no mostraba los hechos de la Revo-
lución con la actitud ajena del operador foto-
gráfico de salón sino desde la proximidad a los
hechos. Revelaban la búsqueda de momentos
justos, encuadres propicios y hasta efectos.

Shaiket, A., Ogoniok. n. 47. 1924.


Ogoniok. n. 40. 1925. 39
WOLF, 2004, p. 208.

24
La fotografía rusa durante la NEP

Fridliand, S., Ogoniok. n.30. 1926.


Shaiket, A., Ogoniok. n. 46. 1927.

25
Renata Carla Finelli

En 1926, Mijaíl Kolstov fundó la revista So-


vetskoe foto (1926-1931) con el objetivo de pro-
mover la fotografía soviética y difundir los tra-
bajos de los principales fotógrafos. La revista
se enfocó en el mundo del trabajador ruso,
abriendo el espacio de publicación para la fo-
tografía de aficionado o liubitel. La fotografía
de aficionado había nacido antes de la llegada
del Partido al poder a través de sociedades de
fotógrafos y exposiciones privadas;40 sin em-
bargo, durante los primeros años revoluciona-
rios, esta actividad se había puesto en duda ya
que se consideró “una afición asociada a los
momentos de ocio que sólo individuos acau-
dalados se podían permitir”.41 Una vez que in-
gresaron nuevos productos fotográficos, estas
imágenes comenzaron a cobrar interés de la
mano de la expansión de la prensa ilustrada42
y también, “por los esfuerzos sindicales por
alentar una nueva cultura obrera”.43 De este
modo, nació la fotografía obrera de aficionado
que se promovió en sindicatos, fábricas y al-
gunos salones de fotografía.

Sovetskoe foto. n. 5. 1926.


Sovestskoe foto realizó un significativo pa-
pel fomentando la fotografía obrera y destacando su impor-
tancia en la Rusia revolucionaria. Se mostraban imágenes de
aficionados que buscaban representar la vida del trabajador
ruso. A diferencia de las imágenes de prensa, estas fotografías
contaban con una fuerte carga poética por el uso y manejo de
las luces, los contrastes y el tipo de composiciones. La revista
no sólo se encargó de la exhibición de estas imágenes, sino
también de la promoción de su desarrollo profesional a través
de artículos sobre técnicas para la realización de imágenes,
notas de interés y concursos fotográficos.
40
WOLF, 2010.
41
Ibidem, p. 33.
42
LEGMANY Y ROUILLÉ, 1988.
43
WOLF, Op. cit., p. 32.

26
La fotografía rusa durante la NEP

Sovetskoe foto. n. 5. 1926. p. 139


Sovetskoe foto. n. 40. 1927.

27
Renata Carla Finelli

Sovetskoe foto. n. 40. 1927. p. 310.


Sovetskoe foto. n. 7. 1928. p.306.
Sovetskoe foto. n. 7. 1928. p.309.

28
La fotografía rusa durante la NEP

29
Renata Carla Finelli

La revista LEF (Levy Front Iskusstv) ocupó un lugar central


en el campo de las artes de los años veinte de Rusia. Tuvo una
tirada de 1500 ejemplares, se autoproclamó la encargada de
“reunir en un solo bloque todas las fuerzas de izquierda”44 y
de “reafirmar las conquistas de la Revolución de octubre y re-
forzar el arte de izquierda”.45 Sus miembros concibieron a la
fotografía como el nuevo lenguaje artístico de la Revolución y
rechazaron la pintura como modo de representación. Uno de
sus principales teóricos, Osip Brik (1888-1945), expresó, de este
modo, en qué consistía el trabajo del fotógrafo de entonces:
(…) abandonar los principios de la composición pictórica en
fotografía y hallar otros principios, leyes específicamente fo-
tográficas que sirvan para realizar y componer imágenes foto-
gráficas. Esto debe interesar a todo aquel que no considera que
la fotografía es un oficio lastimoso, sino un sujeto de enorme
relevancia social llamado a silenciar la cháchara de la pintura
sobre la representación artística de la vida.46
La revista fue creada en 1923 por el poeta Vladímir Maya-
kovsky con el objetivo de visibilizar y agrupar las nuevas ten-
dencias del arte revolucionario constructivista. Participaron
fotógrafos ligados al campo de las artes visuales como el artis-
ta Alexander Ródchenko y el cineasta Dziga Vertov (1896-1954)
–quienes habían sido parte de otra revista emblemática de la
época que se dedicó exclusivamente a la difusión del cine y
la fotografía, Kino-Fot (1922-1923)− Mijaíl Kauffman, la artista
plástica Luibov Popova (1889-1924), el escritor y teórico de arte
Sergey Tretyakov (1892-1937), el cineasta Serguei Einsenstein
(1898-1948), entre otros.
En su primera plataforma de los años 1923-1925, la revista
destacó el fotomontaje y la yuxtaposición de imágenes, letras
o líneas por sobre la fotografía directa. En sintonía con su vi-
sión más futurista del arte, los trabajos fotográficos intenta-
ban dar un mensaje a los trabajadores rusos y el fotomontaje
fue la mejor forma ya que permitía la manipulación del mate-
rial y el agregado de frases y líneas.
44
SHERWOOD, 1971, p.35.
45
FERNANDEZ BUEY, 1973, p. 92.
46
BRIK, [1926] 2003, p. 127.

30
La fotografía rusa durante la NEP

Ródchenko, A., LEF. n. 3. 1923.


Ródchenko, A., LEF. n. 2. 1923.

31
Renata Carla Finelli

Popova, L., LEF. n. 4. 1923. p.43


En su segunda plataforma, llamada factográfica o escritu-
Citroen, P., LEF. n. 4. 1923. p.42.
ra de los hechos de Novy LEF (1927- 1928), el grupo abandonó
la escritura ficcional del futurismo y la reemplazó por obras
basadas en hechos de la realidad social y política, una idea
que ya contemplaba Tretyakov en el último número de LEF.
Como explica Halina Tephan: “En el último número de LEF
en 1925, Tretyakov publicó notas sobre su viaje a Pekín. Estas
notas marcan claramente el inicio de la ´literatura fakta´ que
finalmente se desarrolló en Novy LEF con Tretyakov como su
principal teórico y practicante”.47 En esta nueva plataforma,
las notas de viajes y los diarios tomaron mayor relevancia que
la poesía. La fotografía tuvo mayor protagonismo y comenzó
47
STEPHAN, 1981, p.185.

32
La fotografía rusa durante la NEP

a publicarse en las páginas centrales de la re-


vista, se dejó de lado el fotomontaje y se prefi-
rió la fotografía directa.
Al interior del grupo, hubo diferencias res-
pecto a la composición de la fotografía facto-
gráfica. Los fotógrafos más experimentales –
como Alexander Ródchenko− hacían un uso
libre de la cámara, jugando con los puntos de
vistas, los contrastes, las líneas y las texturas.
Mientras que los factógrafos más comprome-
tidos por la documentación del hecho, −como
Sergey Tretyakov48− daban importancia a
la acumulación de imágenes −el archivo− y
realizaban un tipo de composición tradicio-
nal con puntos de vista normales, encuadres
abiertos y poco contraste.
A partir de 1929, se vivió en Rusia un radical
cambio en las políticas estatales. Una vez der-
rotada la oposición bujarinista en 1929, Jose-
ph Stalin (1878-1953) dejó de lado la propuesta
económica de la NEP y abogó por la industria-
lización pesada y la hipercentralización de
la economía bajo la dirección del Estado. En-
tre 1929 y 1933 se implementó el Primer Plan
Ródchenko, A., Novy LEF. n.1, 19
Quinquenal que aparejó una fuerte reorganización estatal,
27.
Ródchenko, A., Novy LEF. n.4. económica y cultural.
1927.
Tretyakov, S., Novy LEF. n. 11-12.
En el campo de fotografía, entre 1928 y 1929 comenzó la per-
1928. p.31. secución social a los estilos fotográficos que no se alineaban
Tretyakov, S., Novy LEF. n. 11-12. bajo la bandera del fotoperiodismo. En 1928, Alexandr Ród-
1928. p. 32.
chenko fue criticado en Sovestskoe foto por su tendencia for-
malista y, en los años treinta, hubo un fuerte enfrentamiento
entre el grupo Octubre (Oktiabr’) −formado por Eleazar Lang-
man (1895-1940), Borís Ignatovich (1899-1976) y Ródchenko− y
los miembros de la Asociación Rusa de Fotoperiodistas Prole-
tarios (ROFP), formada por fotorreporteros como Max Alpert,
Arkadi Shaiket y Semión Fridliand. La principal crítica al gru-

48
Cf. TRETYAKOV, [1929] 2006.

33
Renata Carla Finelli

34
La fotografía rusa durante la NEP

35
Renata Carla Finelli

po Octubre fue de “desviación izquierdista”, es decir, los acusa-


ban de tener una perspectiva pseudo-artística, burguesa e in-
dividualista que no se adaptaba la nueva fotografía soviética.
Finalmente en 1932, Stalin proclamó el decreto “Acerca de
la reconstrucción de las organizaciones literarias y artísticas”
que anunciaba al Realismo Socialista como el único movi-
miento artístico de la URSS y la centralización de todas las
agencias fotográficas en agencias estatales.49 De este modo,
las diferentes producciones que hubo en los años veinte de-
bieron alinearse bajo la propaganda socialista y el fotoperio-
dismo.50 La fotografía de aficionado se publicó cada vez menos
y se lanzaron leyes para el control de la fotografía en espacios
públicos.

Reflexiones finales

El escenario fotográfico que se vivió durante los años de la


NEP fue muy variado y colmado de obras de artistas signifi-
cativos, muchos de ellos con una larga trayectoria dentro del
campo y otros, que comenzaban su carrera en medio de un
ambiente revolucionario en ebullición. Como se explicó, la
fotografía llegó a Rusia al poco tiempo de que fuera presen-
tada en la Academia de Bellas Artes de Francia en 1839 y, en
adelante, fue una herramienta que sirvió a los miembros de la
aristocracia. Luego de los años de hambruna ocasionados por
la Primera Guerra Mundial y la Guerra Civil, en los años vein-
te, la fotografía volvió a tomar importancia en el país, pero ya
no para retratar a la elite zarista sino como una herramienta
para el pueblo trabajador ruso. Sin embargo, a diferencia de las
imágenes del siglo XX, durante los años veinte hubo una mar-
cada interrelación de estilos fotográficos y una ampliación de
las fronteras compositivas, técnicas y discursivas de la ima-
gen fotográfica.
La fotografía rusa de estos años fue considerada por algunos
49
WOLF, 2010.
50
Idem.

36
La fotografía rusa durante la NEP

historiadores la antesala de la campaña de propaganda que


comenzó en 1930.51 Sin embargo, desde el punto de vista de
la historiografía fotográfica, los años veinte significaron una
ruptura respecto a las imágenes del zarismo y del estalinis-
mo, lo que no implica que no haya habido ciertos rasgos en
común. Las políticas de importación y promoción de la NEP
repercutieron de diferentes formas al interior del escenario
fotográfico. Por un lado, provocaron el retorno de la actividad
y su inserción en el escenario del trabajador ruso; por otro, fo-
mentaron su profesionalización a través diferentes formatos
de enseñanza (foto clubes, sindicatos, Academia Estatal de
Bellas Artes y revistas,); y, finalmente, promovieron la circula-
ción masiva de la fotografía y el trabajo en grupo con editores,
artistas y cinematógrafos, estimulando la experimentación y
la mezcla de estilos, ampliando las formas de registro. De este
modo, el clima social y cultural de la NEP impulsó no sólo la
masificación de la fotografía sino también, su re-significación
como la herramienta artística y documental que podía captar
los hechos de la Rusia revolucionaria.
En adelante, su rasgo documental fue tomado por sobre el
artístico para impulsar el plan de propaganda del Primer Plan
Quinquenal. La ampliación compositiva que se vivió durante
los años veinte, fue sometida a nuevas leyes de control de imá-
genes que dieron inicio un nuevo capítulo en la historiografía
de la fotografía en el que la fotografía de prensa ocupó el lugar
central.

51
Se hace referencia aquí a la llamada “tesis de la continuidad” desarrollada por sociólo-
gos y sovietólogos de la Escuela del Totalitarismo que sugiere una prolongación entre las
prácticas del bolchevismo de los años veinte y el estalinismo. Consultar Baña, 2016/2017.
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37
Renata Carla Finelli

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Recebido: em 05/02/2020
Aceito: em 20/04/2020
Publicado: em junho de 2020

39
Pelo prisma de violência:
percurso pelo universo
artístico de Ivan Búnin

Márcia Vinha*
Elena Vássina**

Resumo: Objetiva-se identificar e Abstract: This article aims to identify


analisar a imagem artística da violência and analyze the artistic image of
criada pelo escritor russo Ivan Búnin, violence in three short stories of
prêmio Nobel de literatura, em três Russian writer Ivan Búnin, Nobel Prize
contos. Apoiados nas perspectivas for literature. Based on the perspectives
de G. Bataille, H. Arendt, J. Derrida, I. of G. Bataille, H. Arendt, J. Derrida,
Tiniánov e I. Lotman com relação à Iu.Tiniánov e Iu.Lotman on the violence
violência e à criação da imagem de and on the image of violence in artistic
violência no texto artístico, buscamos text, we intend to understand the
compreender a relação entre esta e a relation between violence, writing and
escritura, bem como a imagem artística its artistic image. Taking into account
por ela construída. Com o apoio de historic revolutionary context and
fatos da vida do escritor e do contexto writer’s life, violence working system is
histórico, buscamos identificar a identified.
sistematização da violência.

Palavras-chave: Literatura russa; Ivan Búnin; Imagem artística; Violência;


Revolução Russa
Keywords: Russian Literature; Ivan Bunin; Artistic Image; Violence; Russian
Revolution

40
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

*
Doutoranda do Departamento
de Estudos Russos e Orientais
da Universidade Hebraica de
Jerusalém. E-mail: marciavinha@
C om este estudo, buscamos compreender como se
manifesta, no plano de criação literária e do método, a ima-
gem artística da violência na obra do escritor russo Ivan Bú-
hotmail.com   https://orcid. nin (1870-1953).
org/0000-0003-3379-2799
Uma imagem artística é um fenômeno complexo, que inclui
**
Professora da Área de Língua o individual e o geral, o característico e o típico. Qualquer ima-
e Literatura Russa da Faculdade
gem artística é o resultado de um reflexo subjetivo e autoral,
de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São que transforma a realidade. Uma imagem artística é um meio,
Paulo. E-mail: elenavassina@usp. forma, método e resultado da reprodução e compreensão da
br  https://orcid.org/0000-0001-
realidade, transformada criativamente pelo autor.
8199-5764
A estrutura da imagem em sua forma mais geral pode ser
expressa da seguinte maneira:
1) O conteúdo objetivo da imagem artística é a realidade his-
tórica em que o autor está inserido, refletida em sua criação,
independentemente de como ele se relaciona com este con-
texto histórico.
2) O conteúdo subjetivo é a recriação artística da realidade
feita pelo escritor. Portanto toda imagem literária e/ou artísti-
ca não é apenas um reflexo da vida, mas, em certo sentido, um
prisma peculiar da visão de mundo do autor. A subjetividade é
um indício da originalidade e do talento do autor.
Tendo crescido no campo durante a época do empobreci-
mento dos latifundiários após a emancipação dos servos, o
autor é considerado o primeiro a desmitificar a imagem do
mujique na literatura russa, a romper com a sua representa-
ção clássica como naturalmente bom e dócil. Um retrato da
cruel realidade vivida no campo, a novela “A Aldeia” não deixa
dúvidas de que a falta de consciência promove a animaliza-
ção do homem. Contemporâneo de Tolstói e Hitler, o escritor
vivenciou momentos trágicos da história humana, em nível
coletivo e individual, como na I Guerra Mundial, em que ficava
inconformado com a convocação do povo, que, segundo ele,
não compreendia ser mero sacrifício.

41
Márcia Vinha e Elena Vássina

Durante a Guerra Civil que eclodiu na União Soviética logo


depois da Revolução de 1917, Búnin testemunhou o cresci-
mento da brutalidade, motivo de este o ex-tolstoísta afirmar
não crer mais na raça humana. Após escapar de uma tentativa
de assassinato, quando camponeses da propriedade de sua fa-
mília tentaram atirá-lo ao fogo, o vencedor do Prêmio Púchkin
e membro honorário da Academia de Ciências de Petersburgo
viu seu prestígio ser corroído aos poucos, pois a censura so-
viética se fortalecia, e seus textos gradualmente migravam da
lista de obras consagradas para a lista de obras proibidas. Bú-
nin também assistiu a ascensão e queda do nazismo durante
a II Guerra Mundial, chegando a passar fome em idade avan-
çada. Contentava-se, porém, com o fato de nunca ter colabora-
do com os jornais alemães, ao contrário de outros escritores
russos de emigração.
A crítica não o designa a uma posição inferior à dos gran-
des nomes da literatura universal, chegando a ser o primeiro
escritor russo a ganhar o Prêmio Nobel em 1933, à época, um
apátrida acolhido pela França. Com uma vida praticamente
sitiada pela violência, não causa espanto que sua obra a con-
temple, talvez de passagem, mesmo quando escreve sobre o
amor, como é o caso das duas novelas “O processo do tenente
Ieláguin” e de “Amor de Mítia”, traduzidas magistralmente por
Boris Schnaiderman1. Enquanto na primeira o leitor se depara
com um crime passional feito a pedido da vítima, na segunda
Búnin elabora as aflições amorosas da adolescência, que cul-
minam no suicídio. Convém notar que, tal como Mítia, o escri-
tor cogitou seriamente a possiblidade de pôr fim à própria vida
para aplacar as dores de um romance interrompido na juven-
tude, o que revela a proximidade com que Búnin vivenciou o
tema explorado. Em diversos períodos da sua obra o assunto
é retratado com riqueza de imagens e construções, por vezes
imperceptíveis em primeira leitura. Em “Ignat”, por exemplo,
contemplamos a violência inconsciente e passional na aldeia.
Já em “Orelhas em laço” nos deparamos com uma narrati-

1 Búnin, Ivan. O processo do tenente Ieláguin. Trad. De Boris Schnaiderman. São Paulo:
Editora 34, 2016.
Búnin, Ivan. O amor de Mítia. São Paulo: Editora 34, 2016.

42
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

va de cunho filosófico, em que Búnin confronta Dostoiévski


ao declarar ser o crime apenas resposta a uma necessidade
humana. Em “Fim”, o escritor narra o pavor da guerra civil e
da partida de Odessa, de maneira escatológica e com grande
força visual, recriando seus últimos momentos em solo natal.
Esses três contos, também traduzidos, possibilitam a análise
dos métodos empregados pelo escritor para problematizar o
assunto e, por esse motivo, constituem o corpus desse estudo.

1. Aproximações teóricas do
conceito de violência

Inicialmente vale mencionar que um olhar sobre a imagem


da violência na literatura pode ser um desafio, já que, confor-
me afirma o teórico e escritor francês George Bataille, sabe-
mos da possibilidade de sua existência imanente:
A língua comum recusa a expressão da violência, para a
qual ela concede um lugar de algo indevido, culpável. Ela a
nega, retira toda a razão de sua existência e toda justifica-
tiva. Se, no entanto, ela ocorre, se a violência tem seu lugar,
isto significa que em alguma parte cometeu-se um erro. (...)
Entretanto, o silêncio não suprime aquilo que a linguagem
não pode afirmar. A violência não é menos irredutível do que
a morte. E se a linguagem oculta a aniquilação universal – a
obra serena do tempo – somente a língua sofre, ela é limita-
da, mas não o tempo nem a violência. (...)
A negação racional da violência, vista como inútil e peri-
gosa, não pode suprimir o que nega e, ainda mais, não pode
fazer a negação irracional da morte” (BATAILLE, 1987, pp.
185-186)2.
Segundo o estudioso, a palavra é capaz de ocultar a violência,
mote da célebre frase: “a violência é silenciosa”. Depreende-se
o seguinte questionamento: se a violência não possui lingua-
gem própria, então como defini-la no texto literário? Estamos
diante desta tarefa paradoxal, embora bastante instigante.

2 Nossa tradução, assim como, doravante, as demais citações em língua estrangeira.

43
Márcia Vinha e Elena Vássina

Imagens, sons, leituras, falas e toques podem ser violentos,


cada um à sua maneira. Há troca de informações através da
linguagem visual, corporal, escrita ou falada. Tratam-se de
meios elementares através dos quais o homem tem acesso
a um conteúdo violento, inerente à forma de transmissão da
mensagem.
A palavra é reveladora e criadora. Partindo deste pressupos-
to, focalizaremos em dois aspectos: num primeiro momento,
identificar a forma de a palavra, como significante, revelar seu
significado violento. Em seguida, se faz necessário que com-
preendamos como ela cria o contexto para a discussão da vio-
lência, seja aquela baseada no tema abordado ou instrumento
de caracterização das personagens. O referido contexto, mais
precisamente, é organizado no todo da obra literária e, exa-
tamente por isso, a compreensão da violência neste âmbito
adquire níveis de profundidade analítica: assim se pode com-
preendê-la tanto à luz da obra como tessitura de vocábulos e
também como uma obra em seu todo artístico e, por fim, como
o contexto de escrita.
Basta que existamos para logo notarmos a violência como
um dos muitos traços constituintes da vida real, ou ainda, da
essência humana. Graças à verossimilhança, este traço em
particular contribui para delinear, por sua vez, o todo de qual-
quer obra literária, desde que o olhar se direcione para isso.
Se na realidade a violência pode ser percebida nos mais
diversos enfoques do relacionamento humano, seja no modo
como uma pessoa percebe a si mesma, na maneira que as re-
lações interpessoais se dão ou ainda num sistema qualquer
para com seus cidadãos, na literatura isso ocorre da mesma
forma. Constrói-se a narrativa a partir de alguém que desem-
penha seu papel num ato ou processo violento. Falamos do
algoz, da vítima, do observador e até do narrador crítico, todas
perspectivas fundamentais para a caracterização da violência
enquanto tal.
Aqui ela pode ser encontrada nos respectivos níveis que es-
truturam uma obra: no nível denotativo e, portanto, basilar da
composição criativa, ou seja, na escolha dos vocábulos; e no

44
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

nível conotativo, que diz respeito tanto a elementos caracte-


rizadores da obra, quanto à problemática direta da violência.
Fruto do trabalho criterioso do escritor, o texto é sempre re-
sultado de sua perspectiva orquestrada. Sua voz, contudo, é
emprestada aos participantes da obra: ao narrador em terceira
pessoa, que expõe o andamento do enredo; ao narrador-perso-
nagem, que cumpre igual função, gozando ainda da liberdade
de participar ativamente das ações; ao personagem que fala e
pensa, manifestando-se a partir do discurso direto ou indireto
livre. Desta forma, a violência é configurada sempre a partir
das perspectivas de cada participante, o que, num nível mais
profundo, desnuda sua relatividade característica, determina-
da e restringida pela análise detida dos componentes verbais,
já que - violência depende do ponto de vista.
Mas comecemos a levantar a pergunta: como caracterizar
o que é violento? Para Hannah Arendt, a violência consiste
em um “instrumento de dominação”3 e, portanto, o violento
exige “obediência inquestionável” de um outro em dado con-
texto, como ocorre num assalto ou, ainda, em conflitos arma-
dos internacionais. Para Marilena Chauí, a violência pode ser
definida “como qualquer ato de força, violação ou brutalidade,
seja ele concreto ou moral, contra alguém, algum sentimento,
direito ou objeto”4. Num primeiro plano, a definição imediata
– além da perspectiva adotada para o relato – é a multiplici-
dade de facetas através das quais ela pode se manifestar. Para
Chauí, ela pode ser concreta ou abstrata. A primeira existe
sob forma física, ou seja, está presente em atos concretos de
agressão, tais como a agressão corporal, a depredação, a des-
truição e a transgressão de regras. A segunda se manifesta
de forma subjetiva, oculta em estados sutis do uso da força,
presente em situações e atitudes: uma circunstância social
que oprime, reprime, violenta gradualmente, às vezes até de
forma quase imperceptível (CHAUÍ, 1998: 33-34). Tal definição
nos traz de encontro a Bataille, pois vemos que a palavra pode
ocultar a violência apesar de solidamente instituída, como em

3 Arendt, 1994, p. 32.


4 Chauí, 1998, pp. 33-34.

45
Márcia Vinha e Elena Vássina

sistemas políticos democráticos, porém estruturados na dife-


rença social e no racismo. Este seria o caso da burocracia, por
exemplo, que para Hannah Arendt é um dos “mais claramente
tirânico de todos”, pois no “domínio do Ninguém” não há como
se atribuir responsabilidade nem identificar o inimigo. Para a
filósofa, o caráter instrumental é o que distingue a violência
do poder, da autoridade ou da força, palavras que poderiam ser
lidas como sinônimos. O instrumento com que ela é exercida
– de um soco à silenciosa hipocrisia das elites – a diferen-
cia da articulação de um grupo organizado (poder), da energia
de movimentos sociais (força) e do reconhecimento inques-
tionável que ocorre sem persuasão nem coação (autoridade)
(1998: 36-37). Para se materializar, a violência precisa justificar
e orientar o fim que almeja; sem isso, ela não pode se efetivar.
A partir disso, depreende-se que a justificativa de um combate
responsável pelo fim da guerra seria a própria guerra. Se nessa
medida prenhe de violência vemos a justificação, um fim com
vista ao futuro, não vemos, contudo, uma legitimidade, ou seja,
o apelo a um fato passado que ampara o emprego da violência.
Por esse motivo, Arendt afirma que “a violência pode ser justi-
ficável, mas ela nunca será legítima.” (1998:41).
Partindo dessas considerações, passamos à análise de como
a violência é retratada no texto literário e o que as suas varia-
ções em diferentes épocas têm a dizer ao leitor contemporâ-
neo.
Por refletir o pensamento humano, o texto literário nos leva
a concluir que toda e qualquer forma de violência relatada em
texto alude à reflexão do homem de sua época acerca do tema.
Salientamos que esta reflexão pode ocorrer a partir dos mais
diversos pontos de vista: o da vítima, algoz ou testemunha de
um ato violento; a visão de uma condição social mais ou me-
nos favorecida ou de um sistema sócio-econômico-político
frente a seus cidadãos, prezando pela sua sobrevivência; o de
uma cultura que busca manter-se, e assim por diante.

46
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

2. A função da violência no texto literário


Cabe aos estudos literários analisar a forma de representa-
ção da violência na obra de um dado escritor e quais papeis
ela desempenha como elemento textual. Ambas as esferas
interagem e se complementam, resultando na revelação do
que caracteriza a violência, seja ela um atributo da natureza
humana ou um mecanismo do sistema preponderante sobre
a vida de pessoas. Como nosso instrumento de trabalho é a
palavra, nosso foco de análise será a imagem da violência, que
pode ser construída de duas formas:
• explícita: faz uso da denotação e ocorre no plano do texto
como tal;
• implícita: não manifestamente declarado, se dá no plano
do texto (pelo recurso da ironia, do sarcasmo, do humor negro,
da paródia etc.), dos significados e compreensão da obra (em
última análise).
Somente a partir da análise formal da obra literária pode-
mos compreender como é composta a imagem da violência
e qual é o papel da violência na obra: se ela é mais um traço
caracterizador (das personagens, espaço, tempo ou da narra-
tiva) ou se ela é o próprio tema da obra, sendo, portanto, um
elemento da estrutura.
Como elemento caracterizador, ela pode definir os traços:
• da personagem: se a violência, concreta ou moral, for rela-
tada como um componente da personagem – como uma per-
sonagem que gosta da guerra, é excessivamente dominadora
ou está sempre na condição de vítima – trata-se de um atribu-
to da mesma. Nestas condições, os relatos de forma declarada
e/ou implícita determinam se estamos diante de um caráter
afeito ou desafeito à violência, o que, em última análise, nos
revela como o indivíduo a vivencia;
• do espaço: se a violência concreta for usada como qualifi-
cadora do espaço, como um campo de batalha ou de concen-
tração, uma tormenta de neve ou maremoto. Nestes casos os
relatos geralmente são colocados de forma declarada, nunca

47
Márcia Vinha e Elena Vássina

implícita, o que traz à tona a percepção da personagem frente


a situações de total desfavorecimento da sobrevivência huma-
na;
• do tempo: se ela, concreta ou moral, for relatada de forma
a atribuir o sentido de tempo marcado pela violência, como
os tempos de guerra ou de profunda crise econômica (como a
época da Depressão Americana ao final dos anos 1920). Nestas
condições, predominam relatos concretos e abstratos, de ma-
neira tal que eles interagem mutuamente;
• da narrativa: quando a violência, concreta ou moral, é re-
latada no âmbito das ações – como um assassinato ou uma
agressão verbal – trata-se de um elemento caracterizador do
enredo.
Se a violência, concreta ou moral, relatada de forma declara-
da ou implícita, for recorrente, ou seja, caracteriza de maneira
bastante presente as personagens, o enredo, a ambientação,
chegando a ser foco de discussão crítica de personagens ou
narrador, que pode até mesmo abordar o tema abertamente.
Neste caso, a violência deixa de desempenhar apenas uma
função atributiva para se tornar o princípio organizador do
texto. Ela é percebida neste papel se penetrar em todas as de-
mais constituintes da narrativa, chegando a caracterizar in-
clusive o espaço e o tempo, já que a discussão acerca do tema
só pode ser empreendida se apoiada em seus diversos compo-
nentes. Se a obra em sua totalidade está orientada em torno
deste tema, ela desempenha uma função estrutural, e, para ser
compreendida, exige uma análise em nível microscópico do
texto literário, isto é, de sua rede de signos e símbolos.
Como já dito, as personagens, o espaço, o tempo e o enredo
da narrativa participam na construção da imagem da violên-
cia, sendo que a forma de abordagem da violência determina
sua função atributiva e/ou da estrutura da obra. Esta última
possibilita identificar qual é a dialética da violência através da
percepção do escritor, já que ela se encontra problematizada,
revelada, em essência, como inevitável – apesar das conse-
quências dolorosas que ocasiona – como um algoz necessário.

48
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

3. A violência como traço cultural

O conto “Ignat”, escrito por Ivan Búnin em 1912, desenvol-


ve-se a partir de um narrador observador que discorre sobre
Ignat, um pastor de rebanhos de uma herdade russa do iní-
cio do século XX. A abordagem realista nos dá a conhecer que
o protagonista se apaixona e se casa com uma mulher infiel,
Liúbka, que – apesar de sua origem camponesa, igual à dele –
gozava de posição social mais elevada, graças à sua condição
de filha ilegítima de um senhor de terras. Esta diferença entre
os protagonistas determina os pontos de tensão da narrativa,
na qual acumulam-se as suspeitas de traição e culmina com o
assassinato de um de seus parceiros amorosos e o, suposto, de
Liúbka, ambos cometidos por Ignat. Búnin constrói um prota-
gonista naturalmente violento, oprimido pela condição social
miserável e pela crescente angústia em relação ao amor de
Liúbka: ele chora e fustiga as vacas até chegar à carne, ator-
mentado pela severa pobreza, rouba, embriaga-se, ameaça,
mata.
Com a esposa ele morara apenas três meses. Logo depois
daquela noite de julho, quando de maneira muito inespera-
da dera-se uma reviravolta em seu destino, Liubka se sentiu
grávida – e nunca mais o abandonou o pensamento ruim de
que, só por causa disso, ela se casara com ele. Ela dizia que
o amava, arranjou para seu pai, um velho doente, o serviço
de vaqueiro no pátio senhorial; vestiu-o e o equipou para o
exército, com lágrimas o acompanhou. Ele a espancou se-
veramente, farreando, vangloriando-se de que se tornara
recruta, vingando-se dela por causa dos senhores. A gravi-
dez não vingou, por causa das pancadas, que ela aguentou
como quem merecesse. Quando o mandaram para Vassilkóv,
ela frequentemente lhe enviava dinheiro nas cartas, estas,
escrevia com carinho, tratando-o por “senhor”. Mas ele não
acreditava em nenhuma palavra dela, vivia angustiado em
uma tormenta constante, no ciúme, na invenção dos mais
terríveis castigos para as supostas traições. (BÚNIN, 2014:
46-47)
O trecho sumariza a sistematização de uma violência explí-
cita, que, se fosse natural, não ocorreria isolada do sofrimento

49
Márcia Vinha e Elena Vássina

que a motivasse e a legitimasse aos olhos do assassino. Ela se


estabelece como forma de comunicação com o meio, consis-
te em uma linguagem que expressa o estado de desconten-
tamento em que o indivíduo se encontra, revela uma relação
desarmoniosa com o ambiente que o abriga, caracterizando
as personagens e o momento pré-revolucionário. Através da
violência o inconsciente Ignat atua no mundo. Como repre-
sentante da classe social dos camponeses, Ignat é o expoente
de uma consciência coletiva – a mesma que, revoltada com
suas condições de vida, posteriormente protagoniza a Revolu-
ção Russa de 1917. Ele mata Liubka, ou seja, amor, em russo, o
oponente clássico da violência. O amor figura como estrutura-
dor da harmonia, promotor do bem comum e cria a existência
cheia de bem-estar: “(...) somente o amor e o arrependimento,
que levam à ressurreição, podem originar a ordem e a harmo-
nia” (MELETÍNSKI, 2002: 224). Sua morte simboliza que não há
espaço para harmonia no contexto retratado, oferecendo sal-
vo conduto para que a violência substitua o papel, geralmente
desempenhado pelo amor. Ao retratar Ignat a matar por amor,
Búnin traz aos nossos olhos a lógica inversa, pois o amor jus-
tifica a violência.
- É quaresma e nós enchendo a pança... – Depois de calar por
instantes, acrescentou com desatenção: - De qualquer jeito a
gente vai queimar tudo junto no inferno, mesmo.
- Isso por causa de quê? – perguntou o negociante.
- De tudo. Nosso lugar é no inferno. Os velhos falam que de
qualquer jeito mujique não vira santo. Isso é coisa pra bispo,
pra arquimandrita (BÚNIN, 2014: 64-63).
A fala de Liubka não apenas revela a condição hereditária de
subalternidade à qual os camponeses estavam fadados, já que
só poderiam ser bispos e arquimandritas pessoas da nobreza
ou da aristocracia russas. Sua visão de mundo não enxerga
salvação às pessoas de sua classe e os destina ao sofrimen-
to eterno e inevitável, representado pela ideia do inferno. Em
outras palavras, se tudo acabará lá mesmo, não há razões para
não pecar.
Escrito em 1912, ou seja, cinco anos antes da Revolução Rus-
sa, o conto constrói a imagem da violência implícita, já fer-

50
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

mentando à época. Ela caracteriza a consciência e o estado de


espírito coletivo de revolta, insatisfação e, sobretudo, de fal-
ta de perspectivas para o campesinato. Trata-se de um epos
prenhe de violência, bastante vivo sob a abordagem aparen-
temente neutra do realismo. Esse estado geral, coletivo, como
a própria história provou, resultaria em um dos conflitos mais
violentos da história, a Guerra Civil Russa.
Resta colocar que, no nível da escritura, a violência é retrata-
da através da objetividade, que busca mimetizar a realidade do
homem do campo, qualificada pela isenção e distanciamen-
to da narrativa. Embora haja o relato denotativo da violência
concreta, a distância narrativa resulta no discurso silencioso
de uma violência ainda mais forte que o ato violento em si,
como considerava Bataille. Se por um lado essa característica
do texto suprime essa violência, por outro, paradoxalmente,
acaba por fortalecê-la, já que, aqui, ela pulsa vigorosamente.

4. A paródia agressiva e
a violência orgânica
Outro tipo de imagem da violência apresenta-se no conto
“Orelhas em laço”, escrito em 1916, que confronta a obra de Fiô-
dor Dostoiévski5, Crime e Castigo. Aqui nos deparamos, segun-
do o teórico russo Iúri Tiniánov, (1977: 284-310) com o mais tra-
dicional tipo de hipertextualidade: a paródia, uma elaboração
secundária da estrutura do texto de origem, no caso, o conhe-
cido romance, com objetivos jocosos. Neste tipo de inter-re-
lação, ela pode ser o objetivo em si ou pode ser, segundo uma
observação profunda de Tiniánov, o caso da “paródia agressi-
va”. Mas, em ambos os casos, a desautomatização da estrutura
original acontece distanciadamente. A “paródia agressiva” é o
mais importante meio da força dinâmica da evolução literária.
Sokolôvitch, um nobre que se dizia marinheiro, é um assas-
sino que mata por prazer. Contrapondo-se a Raskôlnikov, pro-

5 Vide ELISSÊIEV, N. L. Búnin i Dostoiévski. In: AVERINA, B., RINIKERA, K., STEPANOVA, K.
(org.) Ivan Búnin: Pro et Contra. São Petersburgo: Rússki Khristiánski Gumanitárni Institut,
2003. p. 694-699.

51
Márcia Vinha e Elena Vássina

tagonista de Crime e Castigo, ele defende que os assassinos


não matariam impulsionados por uma ideia, mas sim, pelo
simples desejo de matar. Esta vontade seria tão visceralmente
humana que a própria sociedade a institucionalizaria, daí a
sua bandeira: “chega de escrever sobre o crime com castigos,
está na hora de escrever sobre o crime sem qualquer castigo”
(BÚNIN, 2014: 77). Segundo ele, a satisfação do desejo de matar
só acarretaria o sentimento de bem-estar pela sua realização,
mas não o “tormento da consciência”, como ocorre com Raskô-
lnikov. Como demonstra o excerto a seguir, o conto levanta um
traço de perversão:
Todos os livros humanos – todos estes mitos, epos, bili-
nas, histórias, dramas, romances – todos estão cheios des-
tas mesmas anotações, e quem é que se assusta por causa
deles? Cada moleque esquece da vida lendo Kuper, no qual
só fazem arrancar escalpos, cada colegial estuda que os tza-
res assírios forravam as paredes dos muros de suas cidades
com a pele de prisioneiros, cada pastor sabe que, na Bíblia, a
palavra “matou” é empregada mais de mil vezes e, em gran-
de parte, com a maior vanglória e gratidão ao criador pelo
ato perpetrado (BÚNIN, 2014:78).
Cabe aqui mencionar que o conto foi escrito enquanto efer-
vescia o positivismo, forte influência da literatura europeia do
final do século XIX com o culto à ciência. Búnin retrata um
assassino fisicamente desproporcional, retomando a ideia do
atavismo como traço determinante de personalidades violen-
tas e anormais, defendida na época por Lombroso6. Embora
o progresso científico tenha refutado Lombroso, o conto ain-
da está entre os mais admiráveis de Búnin pela forma como a
narrativa está construída. Hoje podemos ver em Sokolôvitch a
metáfora de um sádico.
Os gorilas de verdade ainda não tinham nem estes tzares
assírios, nem os césares, nem as inquisições, nem o desco-
brimento da América, nem reis, que assinavam sentenças de
morte com um charuto na boca, nem inventores de subma-
rinos, que matam de uma vez alguns milhares de pessoas,
nem Robespierres, nem Jacks Estripadores... O que o senhor

6 Apenas quatro décadas antes da publicação de Orelhas em laço, em 1876, o médico


italiano Cesare Lombroso publicou “L’Uomo Delinquente”, defendendo cientificamente a
frenologia.

52
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

acha, Liêvtchenko – perguntou ele, novamente levantando


os olhos severos aos marinheiros – que todos estes senho-
res se martirizavam com suplícios de Caim ou Raskólnikov?
Martirizavam-se todos os assassinos dos tiranos, opresso-
res, inscritos com letras de ouro nas assim chamadas tábuas
da história? Os senhores se martirizam quando lêem que os
turcos abateram mais cem mil armênios, que os alemães in-
toxicam poços com bacilos pestilentos, que as trincheiras
estão atulhadas de cadáveres putrefeitos, que os aviadores
de guerra lançam bombas em Nazaré? Uma Londres ou Paris
se martiriza, sendo construída sobre ossos humanos e que
floresce na mais furiosa e habitual crueldade em relação ao,
assim chamado, próximo? (BÚNIN, 2014: 78-79)
No trecho, o protagonista defende e chega a ironizar que
nem mesmo a religião é capaz de conter os impulsos atávicos
humanos, vindos dos “gorilas” e chegando à civilização huma-
na. Vemos aqui a violência como instrumento dos progresso
e poder, mas também de cunho fisiológico, traço talvez ainda
embrionário em “Ignat”, que Búnin parece ter desenvolvido às
vésperas da Revolução. No âmbito das explicações biológicas
para a violência, encontramos Arendt comparando a agressi-
vidade ao impulso sexual, já que ambas permitem a perpetua-
ção da espécie. Aquela, contudo, por ter sido racionalizada e
recalcada, teria perdido sua função de autopreservação e se
tornado “irracional”, “razão pelas quais os homens podem ser
mais bestiais que os animais” (1998: 46).
Criado para cumprir a função de agredir à obra e às ideias de
Dostoiévski, o escritor criticava a previsibilidade das obras do
romancista. Búnin dizia ser necessário explorar uma nova fa-
ceta humana, a que permite o “crime sem nenhum castigo”. Ao
interpretar este conto em particular à luz da postura competi-
tiva de Búnin em relação aos clássicos, Iúri Lotman (1997:731)
indica ser esta a inovação do escritor:
Não é por acaso que ele atribuiu a Dostoiévski, provavel-
mente, o único pecado que o autor de Irmãos Karamázov não
teve – o racionalismo. (...) Exatamente nesta perspectiva que
se descobre o Búnin-inovador, que deseja ser continuador da
grande tradição clássica na época do Modernismo, mas com
o objetivo de reescrever toda esta tradição outra vez. (Lot-
man, 1997:730-731).

53
Márcia Vinha e Elena Vássina

As armas que Búnin usa para defender essas ideias contra-


ditórias são as palavras, sustentando o conto e desferindo gol-
pes contra o romance: “só um Raskôlnikov, ao que se verifica,
se martiriza, e só unicamente por causa da própria anemia e
pela vontade de seu escritor ruim, que enfia Cristo em toda a
sua literatura folhetinesca (BÚNIN, 2014: 79)”.
Essa diferença de pontos de vista bastaria para justificar a
tentativa de reconstrução da estrutura do texto original, base
da paródia de Búnin. Entretanto, há que se mencionar que ou-
tro elemento, desta vez biográfico, possa ter contribuído para a
aversão pelo grande romancista, segundo aponta Bowie:
Mas a essência do ódio exaltado de Búnin contra Dos-
toiévski pode estar em sua alma de maneira ainda mais pro-
funda, do que qualquer de motivo já mencionado. A essência,
no meu ponto de vista, consiste no fato de que, às vezes ele
olhava para sua obra e para sua vida e lá via Dostoiévski, ele
olhava para o espelho e via nele Fiôdor Mikháilovitch, e isso
o enfurecia tanto, que ele queria fazer o que muitos perso-
nagens de Dostoiévski faziam: cuspir por despeito (BOWIE,
2003: 701).

5. Imagem da violência
e contexto histórico
A obra de Búnin enriqueceu-se de novos temas com as mu-
danças sociais e políticas trazidas pela Revolução Russa de
1917. Se antes o escritor explorava a figura do mujique, a na-
tureza e temas, como o amor e a existência, agora ele discorre
amplamente sobre a tensão pré-revolucionária, a transforma-
ção da Rússia em União Soviética, e vê neste uma fonte farta,
abordada profundamente em diversos escritos. Crítico feroz
da forma como as mudanças revolucionárias foram empreen-
didas, ele emigra para a França, onde passa a residir em Paris
e continua sua atividade literária. Búnin passa a publicar em
jornais de emigrados russos e conquista cada vez mais êxito
pela sua produção, que é editada em russo na Europa e depois
amplamente traduzida.

54
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

Em 1919, publica-se a obra Dias Malditos7, considerada um


importante documento histórico-literário. Narra-se a Revolu-
ção Russa sob forma de diário, escrito a partir dos olhos de um
escritor perseguido: o cotidiano dos dias do terror vermelho
em Odessa, repletos da brutalidade que marcou o período. Iúri
Máltsev a considera como uma categoria complementar dos
contos e poesias de Búnin:
Desde os primeiros dias ele também não concebeu a revo-
lução de fevereiro de maneira propriamente estilística. (…)
O mundo soviético era-lhe um antimundo organicamente
inaceitável, ele não podia escrever sobre ela em sua prosa,
cuja matéria artística não reconhecia a antimatéria da exis-
tência soviética. É muito interessante comparar com o pro-
cesso criativo que nós observamos junto aos nossos novos
escritores, que também não aceitam o mundo soviético, mas
que ao mesmo tempo estão completamente imersos nele, o
retratando. Búnin preenche as lacunas de sua prosa na pu-
blicística (MÁLTSEV, 2003: 715).
Ante a essa postura do escritor, a censura soviética o proíbe.
Na URSS, ele passa a ser visto como uma figura distante, um
escritor ultrapassado que se exilara, abandonando a luta pela
construção de um novo país, e cai gradativamente no esque-
cimento. Sobre isso, Maltsev comenta: “recordo que, naquela
época, Varlam Chalámov teve sua pena aumentada no campo
de concentração por se atrever a denominar Búnin de grande
escritor russo” (MÁLTSEV, 2003: 717).
Suas obras somente voltaram a ser editadas em meados de
1960, porém trechos sobre a violência na Revolução foram cor-
tados e muitos escritos foram excluídos de suas coletâneas.
Apenas durante a Perestróika e Glasnost, na segunda metade
da década de 1980, foi possível sua publicação integral, que
chegou à Rússia acompanhada por um ar de revelação.
Vale aqui uma digressão pertinente: devemos notar que a
proibição de Búnin constitui um esforço, por parte da censura
soviética, de tentar negar a violência em suas próprias ins-
tituições. Assim a censura se apresenta como manifestação

7 Vide BÚNIN, I. Okaianie Dni. Vospominania. Stati. (Dias Malditos. Recordações. Artigos.).
Moscou: Soviétski Pissátel, 1990. No que se refere à literatura de testemunho, o livro é tido
como uma obra-prima da época.

55
Márcia Vinha e Elena Vássina

exemplar de violência, pois é responsável por negar a existên-


cia das palavras na consciência dos cidadãos. Ela responde
por ajustar a realidade a um país ideal, muito embora ele seja
bastante distinto desta idealização. Neste âmbito, a palavra
tem papel fundamental, pois ao nomear seu objeto, garante
sua existência. A tentativa de emudecer aquele que fala se
traduz em um empenho arbitrário de anular a existência da
violência do Estado soviético, particularmente durante a sua
formação. Trata-se do poder de elaborar um discurso próprio
para justificar e legitimar a crueldade.
O filósofo Jacques Derrida (1973) aponta para a violência
contra a palavra como forma de negação e validação da exis-
tência do objeto. Citando Claude Lévi-Strauss, ele comenta o
fato de, durante o processo de colonização, a proibição de no-
mes próprios na fala ser vista como necessária para se negar
aos índios uma identidade e vestir a do colonizador. A única
ferramenta de Lévi-Strauss para identificar os indígenas eram
apelidos ou nomes portugueses, cujo uso validava progressi-
vamente o predomínio desta cultura.
Mas, acima de tudo, como recusar a prática da escritura
em geral a uma sociedade capaz de obliterar o próprio, isto
é, a uma sociedade violenta? Pois a escritura, a obliteração
do próprio classificado no jogo da diferença, é a violência
originária mesma: pura impossibilidade do ‘ponto vocativo’,
impossível pureza do ponto de vocação. [...] A morte da de-
nominação absolutamente própria, reconhecendo numa lin-
guagem o outro como outro puro, invocando-o como o que
é, é a morte do idioma puro, reservado ao único. (DERRIDA,
1973: 136)
Tanto a anulação daquilo que é fato e existe, em que consiste
a proibição do nome, quanto a tentativa de violar tal proibição
são chamadas por Derrida de guerra (DERRIDA, 1973: 140). Es-
tes mesmos elementos compõem o “estado de guerra” em que
se deu a Revolução e contra o qual Búnin foi ativo combaten-
te. Paradoxalmente, a obliteração “constitui legibilidade ori-
ginária daquilo mesmo que ela rasura” (DERRIDA, 1973: 134), o
que se oficializou, completamente, setenta décadas depois da
proibição de Búnin na URSS, com publicações integrais.
Entre a censura e a liberdade, Búnin elegeu a última, dei-

56
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

xando o país, em que a liberdade se restringia cada vez mais.


No conto “Fim” ele relata sua partida, em 1921, descrevendo o
navio francês, que levava os refugiados. Sob o pano de fundo
de disparos de canhão e mortos nas ruas, os bolcheviques to-
maram a cidade no mesmo dia, o conto narra uma travessia
marítima em meio à terrível nevasca, que colocava em risco
a vida dos passageiros. Enfatiza-se a conscientização do que
realmente ficava para trás, numa busca incessante de tentar
nomear os sentimentos da partida indesejada, de aquilatar o
valor do abandonado de forma voluntária, porém inevitável, a
partir do que Búnin conclui: “é o fim – da Rússia, e também
de tudo, também o fim de toda a minha vida anterior” (BÚNIN,
2014: 108).
A partir do ponto de vista dos emigrados, a Revolução Russa
é vista como a violência em mais alto grau: ela impunha aos
exilados a distância da pátria, a pulverização da identidade de
um povo, o fim de um mundo identificado e harmônico, que
deixa de existir a partir do nascimento da URSS. Na percepção
da emigração, a perseguição do terror vermelho e a Revolução
tinham proporções bíblicas, senão absolutas.
Três quartos das pessoas que se amontoavam no Patras
já haviam experimentado uma quantidade inumerável e
inverossímil de perdas e desgraças, de perigos mortais, de
coincidências absurdas, de martírios de todas os transpor-
tes e lutas com todos os impedimentos, os mais extremos
sacrifícios da imundície, do cansaço corporal e espiritual.
Agora, tendo gasto a última nesga do bem-estar humano,
perdido aos poucos uns aos outros, esquecido quaisquer me-
recimentos do homem, carregando em si, sedentos, a última
mala, eles escapavam para este último limite, sob a proteção
dos seres felizes, chamados franceses, distantes de todos os
seus sofrimentos, e, por isso, orgulhosos em segredo, e estes
franceses permitiram-lhes escapar da última morte, naqui-
lo, débil e apertado, que se chamava Patras, e que naquela
noite de inverno partiu com toda a sua gentalha ao encontro
da noite escura de inverno, em direção ao vazio e à vastidão
do mar sombrio e invernal. O que toda esta gentalha devia
sentir? Com o que todos estes que se amontoavam no Patras
podiam contar, com algo absolutamente enigmático que os
esperava em algum lugar, em Istambul, em Chipre, nos Bál-

57
Márcia Vinha e Elena Vássina

cãs? Mas, entretanto, cada um deles tinham esperança de


algo, vivam de algo, alegravam-se com algo e de forma algu-
ma pensavam naquele terrível percurso marítimo naquela
terrível noite de inverno e bastaria este único pensamento
sóbrio para pânico total e desespero. Por misericórdia divi-
na, é justamente a sobriedade que falta aos homens nos mo-
mentos mais fatais de suas vidas. O homem, nestes momen-
tos, mergulha num embotar salvador (BÚNIN, 2014:100-101).
A violência externa, representada pela Guerra Civil Russa,
assume sua proporção interna e reverbera dentro da perso-
nagem. Vemos aqui como o homem lida com a violência no
contexto histórico, a guerra, aquela que não só possui uma
“imprevisibilidade onipotente” (ARENDT, 1998:14) como tam-
bém infecta as estruturas garantidoras da civilização e cuja
cicatriz atravessa gerações.
Com essas proporções, a violência aqui se torna o eixo da
narrativa e, portanto, estrutural. O olhar do narrador oscila
com o da vítima inconformada e diante da morte iminente, in-
seridos ambos num contexto de violência física externa, cria
efeitos semelhantes aos de uma caixa-acústica a reverberar o
pavor de maneira incessante. Tudo repercute tão intensamen-
te dentro e fora das personagens que o leitor é levado a um
tempo e espaço de violência, ao tempo da Guerra Civil Russa
e das perdas consequentes; ao espaço que é o cenário destas
ocorrências e à violência personificada:
Nos vidros negros, os respingos voavam em bátegas, a
neve úmida e branca grudava, o vento soprava e assoviava
com força, enquanto sua respiração fria, ora ou outra, sen-
tia-se no ar esfumaçado, quente e fétido do refeitório bai-
xo, o qual, não obstante, orgulhava-se do aconchego, que tão
primitivamente anseia o coração humano, ainda recordador
dos terrores da vida remota, dos tempos das cavernas, das
palafitas” (BÚNIN, 1966: 64).
O conto se organiza de tal maneira que todas as suas ações
convergem para a criação da imagem da violência, assim
como todas as caracterizações. Elas partem da vítima para o
algoz e vice-versa, da condição de impotência, da constata-
ção de mudanças involuntárias e definitivas, de uma incerteza
aguda quanto ao futuro. O uso da imagem da arca de Noé ilus-

58
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

tra de modo eficaz esta imagem, remetendo-nos ao caos dos


primórdios da existência humana, à ideia do fim dos tempos
e da humanidade, representada pelo Dilúvio. É o jugo do caos
sobre a ordem:
Pelos subúrbios, em torno das estações de trem e nas ruas
de gelidez absolutamente espicaçante, em torno dos cor-
reios e do banco estatal, onde nas calçadas jaziam já os mor-
tos, e um estalido ora ou outra se elevava, ou uma rajada de
espingarda ou uma metralhadora, que disparava às pressas,
intermitente.
(...) A maioria gemia, se afligia – com esforço, com gritos
de dor, expelia de si toda a alma, deitada no sofá, no chão, ou
precipitada, caindo e tropeçando, saía correndo do refeitó-
rio. Ora aqui, ora ali, ela jorrava de forma asquerosa em al-
guém, enquanto os que saíam batiam a porta, e o frio úmido
começou a se misturar com o fedor ácido de vômito. Já não
era mais possível nem andar, nem ficar em pé, era necessá-
rio sair às pressas, sentar era apoiar as costas na poltrona,
na parede, e os pés na mesa, nas malas (BÚNIN, 2014: 97,105).

6. Considerações finais
Outro conto construído em bases semelhantes é “O hino ver-
melho”, escrito em 1920, que consiste em um relato testemu-
nhal. Ao contrário das anteriores, a linguagem utilizada é per-
meada pela agressividade do narrador e o ódio pelos soldados
do exército vermelho. Trata-se de um relato apoiado em um
acontecimento verídico, testemunhado por um oficial russo
que relata sua história a Búnin, que a coloca no papel.
A pequena história se ambienta numa prisão de guerrilhas
em plena Revolução, onde três marinheiros do Exército Ver-
melho estão aprisionados com oficiais do Exército Branco.
Enquanto estes observam; aqueles, presos por assassinato, co-
mem, fumam, cantam e bebem. A construção os define a partir
da satisfação exagerada das próprias necessidades fisiológi-
cas, como a fome e a sede:
E, depois de encherem a cara, de se empanturrarem, de
fumarem até se empanzinar, soluçando por causa da cheia
satisfação, se largam nas tarimbas, e começaram a jogar

59
Márcia Vinha e Elena Vássina

cartas sobre um casaco estendido de pele de ovelha branca,


obviamente arrancado dos ombros de algum oficial. (BÚNIN,
2000: 368-369).
Fica explícita a relação violenta entre os oficiais brancos e
os marinheiros vermelhos, que se comportam de maneira pro-
vocadora, mas nem uma única palavra é trocada entre eles,
evidência da presença muda da violência. A voz do narrador,
contudo, deixa devidamente estabelecida a violência que ca-
racteriza a narrativa. Concluimos a partir de um dos recur-
sos, a trágica ironia do discurso indireto livre, que, ao dar voz
à ideologia comunista, caracteriza os marinheiros: “(...) trou-
xeram até nós, numa noite belíssima, três marinheiros, três
‘combatentes do imperialismo, capitalismo e da contra-revo-
lução’, ou seja, que serviam no regimento de Tarasch do Exér-
cito Vermelho” (BÚNIN, 2000: 368). Antes silenciada pela pala-
vra, a violência é revestida por ela para desvelar a voz do autor,
o que pode ser percebido pelo tom da narrativa:
Aquilo me lembrou as águias de ouro do brasão, que arran-
caram com tamanha fúria por toda a Rússia, dos palácios,
dos locais de trabalho, no inolvidável março de dezessete...
Lembrei-me das salas palacianas com cornijas de ouro, re-
pletas de sujeira, fumaça, soldados, trabalhadores que, co-
biçosos, mordiscavam sementinhas de girassol e seguiam
tudo com olhos entrefechados, que escutavam com atenção
todo o tempo como se fosse sempre a mesma figura desca-
beçada que gesticulava com as mãozinhas pequenas no ta-
blado distante, em meio a colunas de mármore... Lembrei-
-me do salão nu, como um galpão, cheio de pegadas de lama,
de cuspes, que servia para as tcheresvitchaek8 que eu havia
visto, onde os tchekisti9 se reuniam em cadeiras de ouro –
não é a toa que o ouro é considerado o símbolo do poder e da
força! – e um atrás do outro davam vistos em sentenças de
morte “na ordem de instauração da vida do terror vermelho”.
(BÚNIN, 2000: 369)
O espaço da prisão e o tempo da Guerra Civil são modelos
absolutos para a criação da imagem da violência, que se es-
tende ao quadro geral do processo da Revolução Russa. Tudo
está caracterizado pela agressiva relação de afronta, ameaça,
8 Reunião extraordinária dos bolcheviques
9 Participantes do comitê extraordinário

60
Pelo prisma de violência: percurso pelo universo artístico de Ivan Búnin

tentativa de destruir tudo o que parece reacionário. Assim, a


iconoclastia reflete a tentativa de aniquilar a história, a cultu-
ra e a identidade pré-revolucionárias.
Na ausência desta força equilibradora, falta ao homem o que
o diferencia dos animais, resultando na violência como úni-
ca forma possível e compreensível de existência. A satisfação
das necessidades fisiológicas, assunto abordado em “Ignat” a
partir da satisfação sexual da personagem principal, não são
capazes, portanto, de deter uma inclinação natural à violên-
cia, que segundo a visão de Ivan Búnin é intrínseca à essência
humana. Aqui estamos diante de uma ambientação resultante
desta ausência de limites, deste mundo onde prevalece o caos
absoluto sem hipótese de ordem (MELETÍNSKI, 2002: 50, 179),
muito embora a narrativa esteja circunscrita à cadeia. Assim
ela está impregnada desta violência, que desempenha carac-
teriza o texto e sua estrutura.
Fecha-se aqui a imagem da violência, eleita nestas condi-
ções como a única comunicável, num cenário em que as ocor-
rências se dão à flor da pele. Ela explode com fúria a partir
de todos os envolvidos – vítima, algoz e observador – como
manifestação do sofrimento daqueles incapazes de suportar
as condições a que estão submetidos, estejam estes a buscar a
manutenção de um estado de força, mudança ou apenas mas-
sacrados pela violência. No contexto-limite da dor, aquilo que
domestica a agressividade nata do ser humano é massacrado,
restando apenas sua própria reação a isso. Essa é a gênese da
linguagem da violência, de acordo com o estudo aqui realiza-
do. Quando todos se encontram sob o poder de algo maior e in-
transponível, a violência é a única suficientemente forte para
dar a conhecer a sua mensagem ao outro e ao meio.

Referências bibliográficas
ARENDT, H. Sobre a violência. Rio de Janeiro, Relume Duma-
rá: 1994.
BATAILLE, G. Œuvres Complète. Paris: NRF Gallimard, 1987,
vol. X. pp. 185-186: Sade et l’homme normal.

61
Márcia Vinha e Elena Vássina

BOWIE, R. Dostoiévski i “dostoiévschina” v proizvediéniakh


i jízni Búnina (Dostoiévski e o “dostoievskiano” na obra e
vida de Búnin). In: AVERINA, B., RINIKERA, K., STEPANOVA,
K. (org.) Ivan Búnin: Pro et Contra. São Petersburgo: Rússki
Khristiánski Gumanitárni Institut, 2003. pp. 700-713.
BÚNIN, I. Sobránie Sotchinéni (Obras reunidas). Moscou:
Moskóvski rabótchi, 2000, vol. VIII. pp. 368-370: Krásnii Gimn
(O hino vermelho).
_________Contos escolhidos. (Tradução, seleção e prefácio
Márcia Pileggi Vinha). São Paulo: Amarilys, 2014.
CHAUÍ, M. Ética e violência. Teoria & Debate, Ano 11, no 39, pp.
32-41, out/nov/dez 1998, São Paulo, Fundação Perseu Abramo.
DERRIDA, J. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 1973. pp.
125-172: A violência da letra: de Lévi-Strauss a Rousseau.
ELISSÊIEV, N. L. Búnin i Dostoiévski. In: AVERINA, B., RINI-
KERA, K., STEPANOVA, K. (org.) Ivan Búnin: Pro et Contra. São
Petersburgo: Rússki Khristiánski Gumanitárni Institut, 2003.
pp. 694-699.
LOTMAN, Iu. O rússkoi literatúre. São Petersburgo: Iskússt-
vo-SPB, 1997. pp. 730-742: Dva ústnikh rasskáza Búnina - k
probléme “Búnin i Dostoiévski” (Dois contos orais de Búnin –
para o problema “Búnin e Dostoiévski”).
MÁLTSEV, Iu. Zabítie publicátsii Búnina (As publicações
esquecidas de Búnin). In: AVERINA, B., RINIKERA, K., STEPA-
NOVA, K. (org.) Ivan Búnin: Pro et Contra. São Petersburgo:
Rússki Khristiánski Gumanitárni Institut, 2003. pp. 714-730
MELETÍNSKI, E. Os arquétipos literários. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2002.
TINIÁNOV, Iu. Poétika. Istória literaturi. Kino. Moscou: Iskust-
vo, 1977. pp. 284-310: O paródii (Sobre a paródia).

Recebido: em 22/03/2020
Aceito: em 13/05/2020
Publicado: em junho de 2020

62
Monteiro Lobato e
Samuel Marchak
através de seus
ilustradores
Daniela Mountian*
Resumo: Nos anos 1920, iniciou-se uma Abstract: In the 1920s began a global
revolução global da arte do livro, momento revolution in the book art, at this point
em que começaram a atuar Samuel began to work Samuel Marchak (1867-
Marchak (1867-1964) e Monteiro Lobato 1964) and Monteiro Lobato (1862-1948),
(1862-1948), duas figuras-chave para o two key authors for the development of
desenvolvimento da moderna literatura modern children literature in each country:
infantil de seus respectivos países: Marchak in Russia and Lobato in Brazil.
Marchak na Rússia, Lobato no Brasil. Além They were writers, translators and important
de escritores, ambos foram tradutores e editors, attracting artists and painters from
importantes editores, reunindo ao redor de various schools. The article presents the
si artistas gráficos e pintores de escolas trajectory of Marshak e Lobato through the
variadas. O artigo apresentará a trajetória analysis of some covers of children books
de Marchak e Lobato através da análise de of the 1920s produced for them by Voltolino
algumas capas infanto-juvenis da década (1884-1926), Belmonte (1896-1947), K.
de 1920 produzidas para eles por Voltolino Wiese (1877-1974), V. Lebedev (1891-
(1884-1926), Belmonte (1896-1947), K. 1967), V. Konachevitch (1888-1963), M.
Wiese (1877-1974), V. Lébedev (1891- Tsekhanovski (1889-1965).
1967), V. Konachévitch (1888-1963), M.
Tsekhanóvski (1889-1965).

Palavras-chave: Monteiro Lobato, Samuel Marchak, design, anos 1920, modernismo,


mercado editorial
Keywords: Monteiro Lobato, Samuel Marchak, design, 1920s, modernism, book market

63
Daniela Mountian

–1–
Quem é que bate à minha porta
Levando uma bolsa tão grossa
E um 5 na placa de cobre,
E o quepe azul do uniforme?
É ele,
É ele,
O carteiro de Leningrado!
(…)
–2–
— Vem registrada de Rostóv
Para o camarada Jitkóv!
— Uma registrada a Jitkóv?
Não tem ninguém assim, perdão!
— Onde se encontra o cidadão?
— Mas voou ontem para Berlim.
(…)
–4–
Lá vem o carteiro alemão
Com a última carga na mão.
Como um dândi vai assim:
Um boné de aba carmim.
(…)
— Carta a Herr Jitkóv agora,
De número seis!
— Ontem às onze horas
Jitkóv partiu ao país inglês!
(…)
–6–
(…)
*
Pós-doutoranda do Departamen- Pela Bobkin Street, Bobkin Street
to de Teoria Literária e Literatura Vai ligeiro mister Smith
Comparada (FFLCH/USP), com Azul-correio é seu quepe,
apoio da FAPESP (processo BEPE E um palito ele parece.
nº 2019/05678-1). E- mail: dmou-
ntian@gmail.com https://orcid. (…)
org/0000-0001-6313-6050

64
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

Sob os óculos o porteiro


Repara no nome inteiro
E fala: — Boris Jitkóv!
Para o Brasil se mandou!
Q uando o carteiro “mister Smith”
foi procurar Jitkóv e soube que este havia
1

partido para o Brasil, Samuel Marchak (1867-


1964) já havia escrito obras que lhe renderam
–7– o epíteto de um dos pioneiros da moderna
O vapor literatura russa para crianças, como O circo
Vai partindo (1925), O sorvete (1925) e A bagagem (1926).
Em poucos momentos Quando o carteiro “dom Basílio” saiu, “sob as
O povo cheio de malas palmeiras”, para procurar Jitkóv, e soube que
Ocupa os compartimentos.
este havia voltado para Leningrado, Monteiro
Mas a uma dessas cabinas Lobato (1862-1948) já havia escrito livros como
Malas não são conduzidas. Narizinho arrebitado (1921) e O marquês de
E lá vai justo quem: Rabicó (1922), em que aparecem o Sítio do pi-
O carteiro e sua carta.
capau amarelo e as personagens que também
–8– renderam ao seu autor o epíteto de pai fun-
No Brasil sob as palmeiras, dador da moderna literatura brasileira para
Do calor vem a canseira, crianças.
Sai andando dom Basílio, O paralelo proposto faz parte do projeto de
O carteiro brasileiro.
pós-doutorado “Literatura infantil russa e bra-
Na mão leva uma carta, sileira: uma análise comparada (1919-1943)”,
Amarrotada e extravagante. durante o qual publico uma série de ensaios
No selo vai uma marca comparativos, do ponto de vista literário e grá-
Da posta de lugar distante. fico, de artistas russos e brasileiros do mesmo
período. As leituras são sempre feitas com
Sob o nome se vê um lembrete
Dizendo que o destinatário base em alguns parâmetros (épocas similares,
No Brasil já não está presente afinidades estéticas, atuações semelhantes,
Partiu de volta a Leningrado. etc.), mas não se trata de estabelecer conta-
tos concretos ou filiações entre essas duas
(…) culturas, como preconizavam os primeiros

comparatistas franceses. O intuito é, tendo
(“O Correio” (A Boris Jitkóv), um mesmo problema investigativo, comparar
Samuel Marchak, 1927) duas semiosferas distintas: “Assim, a investi-
gação de um mesmo problema em diferentes

1 Tradução nossa.

65
Daniela Mountian

contextos literários permite que se ampliem os horizontes do


conhecimento estético ao mesmo tempo em que, pela análi-
se contrastante, favorece a visão crítica das literaturas nacio-
nais”, como pontuou Tania Franco Carvalhal.2
Se na Rússia o nome de Marchak costuma constelar com o
de Kornei Tchukóvski (1862-1969) na poesia infantil do início
dos anos 1920, no Brasil Monteiro Lobato brilha praticamen-
te sozinho na prosa (nessa década, a produção de poesia para
crianças era bem menor do que a de prosa).
Como é sabido, Lobato deu nome a uma cidade, sua vida e
obra são temas de exposições, em sua homenagem um mu-
seu foi construído, pesquisas e livros são no autor inspirados,
suas histórias foram traduzidas para diversas línguas, inclu-
sive para o russo — há duas coletâneas soviéticas, até hoje
reeditadas: Contos da Tia Nastácia (Skáski Tiótuchki Nastá-
cii), de 1958, com tradução de G. Guilanov, e Ordem do Picapau
Amarelo (Orden Joltogo Diátla),3 de 1961, com tradução de I.
Tyniánova. Esse sucesso se deu devido às aventuras do Sítio
do Picapau amarelo, que marcaram gerações de crianças bra-
sileiras, pelo texto em si e por terem sido adaptadas para a
televisão mais de uma vez — a primeira delas, na década de
1950, por Tatiana Belinky (1919-2013), brasileira nascida em
São Petersburgo, expoente da difusão das letras russas infan-
tis no Brasil. Foram as obras infantis de Monteiro Lobato que
fizeram com que a pequena poliglota se apaixonasse pela li-
teratura brasileira (Belinky tinha dez anos quando se mudou
com sua mãe para o Brasil) e depois, já adulta, uma profícua
escritora para crianças e tradutora, verteu para o português,
entre outros, alguns poemas infantis de Samuel Marchak na
antologia Di-versos russos (Ed. Scipione, 1992).

2 CARVALHAL, 2006, p. 86.


3 Em russo o título foi alterado: em vez de Sítio do Pica-pau amarelo, está Ordem do Pica-
-Pau-amarelo, provavelmente pelo vocábulo “sítio” ter sido considerado, na URSS, “demasia-
do burguês”, como explicam Marina Darmaros e John Milton. Fazendo o cotejo de Ordem
do Pica-Pau amarelo com o original, os pesquisadores analisam as adaptações realizadas
na tradução, que evolvem mudanças nas características das personagens (a Emília se torna
menos sapeca e teimosa, por exemplo), corte da maioria das referências norte-americanas,
e omissão dos elementos de teor racista achados na obra lobatiana. (DARMAROS, 2019).

66
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

Tão festejado pelos russos como Lobato o é pelos brasileiros,


Samuel Marchak, natural de Vorónej e de origem judia, come-
çou a escrever e a recitar poemas na infância, dividida com
cinco irmãos, dois dos quais também se tornaram escritores
para os pequenos (M. Ilin e Elena Iliná). Impressionado com
os dotes literários de Marchak, o mecenas David Guinsburg
(1857-1910), amigo da família, apresenta o menino ao crítico de
arte Vladímir Stássov (1824-1906), que “o toma sob sua prote-
ção: cuida da transferência de Marchak para um ginásio pe-
tersburguês (os estudos são pagos por F. I. Chaliápin), apre-
senta-o a M. Górki, fala da criança prodígio a L. Tolstói”.4 Górki
convidou Marchak, por este ter tuberculose, para passar uma
temporada com ele em Ialta, e lá o jovem poeta ficou de 1904 a
1906, estreitando laços de uma amizade que nunca se desfez.
Desde 1904 começou a publicar textos para leitores adultos,
mas foi a literatura infantil que mais tarde lhe deu a possibi-
lidade de conquistar uma posição considerável na sociedade
soviética.
Em 1911, envolvido na causa judaica, Samuel Marchak este-
ve com amigos na Turquia, Grécia, Síria e Palestina, tornan-
do-se correspondente de jornais e revistas. Passou ainda uma
temporada na Inglaterra, onde surgiu sua predileção pela li-
teratura inglesa (gosto que compartilhou com Tchukóvski),
em especial por William Blake, que chegou a traduzir. Além
do ritmo, do nonsense e do humor inglês, Marchak se impres-
sionou com as ideias educacionais teosóficas de Philip Oyler
(1880-1973), em cuja escola (Simple Life School) ele trabalhou,
em Hampshire e em Wales.5 Com um método educacional de
vanguarda condizente com os que surgiram na Europa nessa
época, Oyler, quase um tolstoiano,6 criou um sistema que valo-
rizava a experiência e a autonomia da criança:
Trata-se de um sistema que também dá plena liberdade
à criança, que a ensina a não ser preconceituosa, mas to-
lerante; que não recompensa, nem pune; que não favorece
especializações prematuras; que ensina o trabalho domésti-
co, antes de ensinar a ler e escrever; que educa igualmente
os dois sexos; que põe a criança em contato com a natureza;
que procura educar pelo exemplo; que valoriza o amor, a re-
ligião, a fraternidade entre os povos; que ensina a criança

67
Daniela Mountian

a fazer seus próprios brinquedos; que preza a autonomia, a


independência do educando.7
Ao voltar para a Rússia, durante a Primeira Guerra Mundial,
Marchak trabalhou com crianças refugiadas. Еm Krasno-
dar (então Ekaterinodar), ajudara a organizar um centro para
crianças sem lar em que havia um teatro infantil. Para esse
teatro, em 1920, ele escreveu em parceria com a poeta Eliza-
veta Dmítrieva (nome de batismo de Tcherubina de Gabriak,
1887-1928) algumas peças que, reunidas dois anos mais tarde,
transformaram-se na primeira publicação do poeta voltada
para o público infantil.
Também em 1920, Monteiro Lobato escreveu seu primeiro
livro para crianças, A menina do narizinho arrebitado. Com-
parado com seus antecessores, 8 o autor usa de um estilo me-
nos arcaico e rebuscado, mais ao gosto infantil da época, pro-
duzindo textos “de uma invenção original e moderna, escritos
em linguagem da mais encantadora vivacidade”,9 observou
Antonio Candido. Fantasia e realidade transitam livremente
na composição das diversas personagens que povoam o sítio:
o mundo rural, revestido de um nacionalismo irreverente, é o
cenário lobatiano por excelência.
Desde que o Brasil se tornou independente de Portugal, em
1822, a definição do que é ser brasileiro, do que o diferencia
do português, tornou-se uma questão premente, respondida,
na esfera da literatura, pelos românticos, que em geral procu-
ravam seus temas na natureza e na figura do índio, tornada
símbolo nacional: “Basta dizer que com a Independência de-
senvolveu-se cada vez mais a consciência de que a literatura
7 BARREIRA, 2014, p. 667.
8 Recentemente, Norma Sandra de Almeida Ferreira, pesquisadora da Unicamp, localizou
e estudou um manuscrito do educador João Köpke (1852-1926) intitulado Versos para
os pequeninos (1886-1897). Trata-se de poemas de forte oralidade e ritmo contagiante.
Embora a obra de Köpke não tenha tido a mesma reperscussão que teve a obra de Monteiro
Lobato, Ferreira mostra que, ao integrar à literatura infantil uma linguagem mais coloquial e
mais espirituosa, Lobato não estava completamente sozinho. (FERREIRA, 2014) Na Rússia,
antes de Tchukóvski e Marchak, também houve experiências literárias que lidaram com o
humor e a paródia, não pautadas em motivos puramente didáticos. Valentin Golovin chama
a atenção para a revista Gralhinha (Galtchónok) (1911–1913), em especial para os autores
S. Gorodiétski e M. Movárskaia. (GOLOVIN, 2014).
9 CANDIDO, 1999, p. 67.

68
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

brasileira era ou devia ser diferente da portuguesa (...)”.10 Com


a abolição da escravatura e a proclamação da república, esse
ideal romântico, movido pelos efeitos de uma urbanização
acelerada e descuidada, foi de algum modo reavivado e se ma-
nifestou em alguns textos da primeira safra de escritores bra-
sileiros que se dedicaram às crianças (fim do século XIX e iní-
cio do XX), textos marcados, de uma maneira geral, pelo tom
didático, patriótico e formal. Lobato não abandona as questões
nacionais, mas incorpora a elas o humor, a fantasia e o fan-
tástico, utilizando recursos do conto tradicional, como o an-
tropomorfismo, e criando um diálogo direto com seus jovens
leitores. Muitos dos procedimentos explorados por Lobato es-
tão presentes no universo poético de Marchak (humor, antro-
pomorfismo, folclore, etc.), embora eles sejam donos de estilos
bastante distintos, escrevam em gêneros diversos (poesia e
prosa) e respondam a contextos histórico-sociais específicos.
Mas uma coisa é certa: Marchak e Lobato não foram apenas
escritores de talento, mas exímios editores.
Em 1922, Marchak retornou de Krasnodar para Petersburgo
е começou a dirigir o Estúdio de Literatura Infantil. No ano
seguinte passou a editar a revista O Pardal (Vorobei,1923-24),
depois renomeada por ele O novo Robinson (para crianças de
8 a 12 anos), na qual colaboraram nomes do calibre de Boris
Pasternak (1890-1960), Óssip Maldelstam (1891-1938) e Víktor
Chklóvski (1893-1984), além de novos escritores (Vitáli Bianki,
Boris Jitkóv, Evguéni Schwartz, M. Ilin). Impressiona o faro in-
falível do editor Marchak para talentos singulares — como os
formidáveis poetas absurdistas-oberiuty Daniil Kharms (1905-
1942) e Aleksandr Vvediénski (1904-1941). Marchak levou mui-
tos escritores da década de 1920 para o mundo infanto-juvenil,
e essa capacidade de reuni-los e de estimulá-los foi uma de
suas grandes contribuições para a formação de um novo tipo
de literatura russa destinada à infância:
Marchak edita obras de escritores novatos (V. Bianki, B.
Jitkóv, E. Schwartz, G. Belykh, L. Panteléiev, etc.); uma série
de escritores já estabelecidos para “adultos” (M. Zóschen-
ko, D. Kharms, A. Vvediénski, A. Slonímski, V. Kaviérin, N.

10 Ibidem, p. 36.

69
Daniela Mountian

Tíkhonov, etc.), a conselho de Marchak, escreve livros para


crianças; além disso, ele atrai para a literatura infantil cien-
tistas que não tinham experiência anterior no trabalho com
ela: o classicista S. Lurié (Carta de um jovem grego), o crítico
literário Iú. Tyniánov (Kiukhlia), o físico M. Bronstein (Subs-
tância solar), e outros.11
Samuel Marchak também compreendeu que, para atrair a
atenção das crianças, as revistas e os livros, além de didáticos,
deveriam ser divertidos e atraentes e esteve ao lado de gran-
des artistas gráficos. Sua percepção sobre o livro ilustrado re-
flete o pensamento de editores contemporâneos voltados para
o livro enquanto objeto artístico, ou seja, a ilustração não tem a
função de explicar o texto, mas de dar novos significados a ele.
Monteiro Lobato também tinha pudores estéticos, mas não
menos anseios comerciais: “Chamei desenhistas, mandei pôr
cores berrantes nas capas. E também mandei pôr figuras!”, dis-
se um dia ele.12 A menina do narizinho arrebitado saiu por edi-
tora própria, a Monteiro Lobato e Cia. (depois renomeada Cia.
Gráfico Editora Monteiro Lobato), fruto da influente Revista do
Brasil, que o escritor havia comprado em 1918. O livro teve tão
boa recepção entre as crianças que Lobato fez para uma ven-
da ao governo uma edição escolar, de impressão mais barata,
com tiragem de 50.500 exemplares (as tiragens comerciais de
livros de literatura no Brasil eram bem menores, podendo co-
meçar com 1.000 exemplares).
Em 1924, sua editora foi a primeira a importar uma máqui-
na de impressão offset (a Companhia Lithographica Ferrei-
ra Pinto, que já tinha o maquinário, trabalhava basicamente
com a fábrica de cigarros Souza Cruz). Não é de admirar que a
substituição da técnica tipográfica por uma nova (que só será
disseminada no país décadas adiante), aliada às oscilações
econômicas de um Brasil agrário e conservador, tenha afetado
grandemente as finanças da editora, que faliu em 1925, tornan-
do-se, em nova sociedade, a Companhia Editora Nacional, até
hoje existente. Eis um exemplo do caráter inquieto e empreen-
dedor de Lobato, que trouxe um novo olhar sobre a indústria do

11 KULECHÓV, 2012, p. 78.


12 HALLEWELL, 2005, p. 326.

70
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

livro, participando de todas as etapas de sua produção, desde a


negociação de direitos autorais até a impressão, a distribuição
(inaugurou o sistema de consignação) e a propaganda (coloca-
va anúncios em jornal, prática para a qual os outros editores
torciam o nariz). Em suma, Monteiro Lobato “revolucionou a
feitura do livro”:
Antes, este era, ou editado na Europa, ou editado aqui de
maneira graficamente incaracterística, por empresas de
pequeno porte ou associadas a firmas europeias. Monteiro
Lobato concebeu um tipo materialmente original de livro,
barato e elegante, destinado a publicar autores brasileiros
contemporâneos. A tentativa acabou alguns anos depois no
malogro econômico, mas a editora que fundou tornou-se,
noutras mãos, uma das mais importantes do Brasil.13
Na época em que Lobato fundou sua editora, a indústria do
livro era ainda precária e incipiente. A imprensa só foi im-
plantada no Brasil após a chegada, em 1808, de D. João VI, que,
acossado pelas tropas de Napoleão, refugiou-se em sua maior
colônia e ali decidiu instalar a primeira gráfica do país (an-
tes disso, qualquer atividade editorial em solo brasileiro era
proibida, para evitar insurreições). No entanto, só no século
seguinte, a partir da década de 1920, a produção do livro co-
meçou a se consolidar, inclusive em matéria de artes gráficas,
e Monteiro Lobato teve relevância particular nesse processo.
Nascido em Taubaté, interessou-se por pintura desde peque-
no e pensou até em estudar as artes plásticas, mas, desencora-
jado por seu avô, o Visconde de Tremembé, acabou indo para
São Paulo fazer o curso de Direito. Seus dotes de artista, po-
rém, não o abandonaram e ele chegou a colaborar em algumas
revistas como desenhista.
Como editor, preocupado em atrair o olhar de seu ledor e en-
tendido no mister, Lobato investiu no seu produto, contratando
artistas de talento e produzindo livros amplamente ilustrados,
com uma concepção editorial bastante alinhada à produção
contemporânea:
Deve-se dizer que a importância de Monteiro Lobato vai
muito além dos autores que publicou. O que realizaram edi-

13 CANDIDO, 1999, p. 67.

71
Daniela Mountian

toras posteriores, como a José Olympio,


somente foi possível porque puderam tri-
lhar o caminho que Lobato já havia explo-
rado. Durante os sete anos de sua primeira
aventura editorial, ele conseguiu revolu-
cionar todos os aspectos da indústria. (...)14
Para dar cara ao seu livro infanto-juvenil
de estreia, convidou o paulistano Voltolino,
pseudônimo de Lemmo Lemmi (1884-1926).
Filho de imigrantes italianos, o caricaturista
colaborou em várias publicações brasileiras
e ficou conhecido especialmente pelas ilus-
trações que fez, de 1911 a 1917, para a revista
O Pirralho, fundada por Oswald de Andrade.
Voltolino era dono de um “traçado ágil, nervo-
so e despreocupado”:
(...) no qual a economia gráfica se desta-
ca. A determinação do risco e rapidez da
execução dão organicidade a seus perso-
nagens. Voltolino desenha-os primeiro a
lápis para depois, já totalmente decidido,
finalizá-los com contorno a nanquim. Com
relação às cores, gosta de usar as puras
e intensas, usualmente trabalhadas em
contraste. Salvo quando precisa desenhar
em papel couché, em que utiliza a aguada
em nanquim e a aquarela, suas cores são
Figura 1: Nanquim de Lobato. saturadas.15
Na capa de A menina de narizinho arrebitado (figura 2) sal-
tam aos olhos o enquadramento e os detalhes decorativos ao
redor, quase um arabesco, com linhas sinuosas em estilo art
nouveau. Cores fortes contrastantes no traje da menina; ele-
mentos de fantasia misturados com os da realidade; e, o mais
importante, a criança como figura central da composição
(invadindo a moldura). Uma capa desenvolvida para atrair o
olhar do leitor ao texto:
A inovadora apresentação gráfica, com capas desenhadas

14 HALLEWELL, 2005, p. 326.


15 VOLTOLINO, 2019.

72
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

Figura 2: A menina do narizinho arrebitado. Livro de figuras.


Ed. Monteiro Lobato & Cia. Dezembro de 1920 (1ª edição, São Paulo). Tamanho: 29x22 cm.

73
Daniela Mountian

Figura 4: A menina do narizinho arrebitado.


Companhia Editora Nacional. 1938 (5ª edição, São Paulo).

Figura 3: A menina do narizinho arrebitado.


Livro de figuras.
Editora Monteiro Lobato & Cia. 1922 (2ª
edição, São Paulo).

74
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

e coloridas para cobrir brochuras, mostrava a preocupação


do editor Monteiro Lobato com a embalagem do produto li-
vro, fugindo dos hábitos estabelecidos na época quanto à
apresentação de capas, em geral amareladas, copiadas das
populares edições francesas.16
Nas outras edições (figuras 3 e 4), Voltolino manteve as mol-
duras decoradas de animais, os serezinhos que povoam as
aventuras das personagens. A capa da quinta edição traz um
close do rosto da menina.
Voltolino ainda assinou a capa de Fábulas (fig. 5), de 1922,
em que lançou mão do tradicional recurso da silhueta para dar
vida às histórias de Esopo e de La Fontaine que Lobato adap-
tou à brasileira. Foi o ano da Semana de Arte Moderna — de 11
a 18 de fevereiro o Theatro Municipal de São Paulo foi palco de
recitações, exposições e concertos de representantes do mo-
dernismo brasileiro, como Anita Malfatti, Oswald de Andra-
de, Heitor Villa-Lobos e Mário de Andrade, cujo livro Pauliceia
Desvairada o editor Lobato recusou-se a publicar. Monteiro Lo-
bato se viu envolvido em vários conflitos com os modernistas,
mas certas reivindicações do movimento, pensado em linhas
gerais, foram realizadas por meio de sua obra.
Já Marchak, mesmo não sendo um, rodeou-se de vanguar-
distas e modernistas. Seus primeiros livros dedicados às
crianças, assim como os de Tchukóvski (depois da publicação
de O crocodilo, de 1917) foram lançados pela editora Ráduga
(Arco-íris), uma iniciativa privada criada em 1922 sob a égi-
de da NEP (Nova Política Econômica). Na verdade, ambos os
poetas (até hoje um dos mais vendidos na Rússia) estiveram
ligados à concepção da editora: eles queriam criar uma nova
e moderna revista infantil cujo nome seria Ráduga, o mesmo
dado por Górki a uma coletânea que organizara em 1918. No
fim, o projeto da revista deu lugar a uma editora, especializada
em literatura infantil e dirigida pelo jornalista Lev Kliatchkó
(1873-1933). Com participação ativa de Tchukóvski e Marchak,
a editora reuniu talentosos escritores, como, por exemplo, Ág-
nia Bartó (1906-1981), Vitáli Bianki (1894-1959), Boris Jitkóv
(1882-1938). A direção artística coube a Nikolai Lápchin (1891-

16 KOSHIYAMA, 1982, p. 70.

75
Daniela Mountian

Figura 5: Fábulas.
Monteiro Lobato
e Cia. 1922 (1ª
edição, São Paulo).
Capa: Voltolino.

Figura 6: Fábulas.
Companhia Editora
Nacional. 4ª edição
(1929, São Paulo).
Capa: Voltolino.

1942), “uma das figuras-chave da produção construtivista de


livros nos anos 1920”.17
A Ráduga reuniu duas gerações de artistas modernos: os de
vanguarda, como os membros do coletivo “Hoje”, e os pintores
do grupo “Mundo da Arte” (Mir iskusstva, 1898-1927), como Bo-
ris Kustódiev (1878-1927), Мstisláv Dobujínski (1875-1957), Vla-
dímir Konachévitch (1888-1963) e Serguei Tchekhónin (1878-
1936). O coletivo “Hoje”, de caráter experimental, foi idealizado
por Vera Ermoláieva (1893-1937), um dos nomes decisivos da
vanguarda russa, e contou com participação de artistas gráfi-
cos de estilos diferentes, como o próprio Lápchin, Ekaterina
Túrova (1980?-1953?), Iúri Ánnenkov (1889-1974). A associação
durou apenas alguns meses, mas produziu livros formidáveis
em linografia sobre textos de S. Iessiénin, A. Kuzmin, A. Rié-
mizov.18
A Ráduga, com sede em Petersburgo e em Moscou, funcio-
nou de 1922 a 1930 e lançou cerca de 400 títulos. Não é de hoje
que seus livros em litografia são conhecidos fora da Rússia.

17 STEINER, 2019, p. 77.


18 FOMIN, 2015, p. 732.

76
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

Eles foram expostos em vários países e, em 1925, renderam à


editora uma medalha da Exposição Internacional de Arte De-
corativa em Paris.
Uma das parcerias mais bem-sucedidas e duradouras nasci-
das na ambiência da Ráduga foi a de Samuel Marchak e Vladí-
mir Lébedev (1891-1967). Quando, em 1924, Marchak tornou-se
editor da seção infantil da Gosizdat (acrônimo de Gosudárst-
vennoie izdátelstvo, Editora Estatal), logo o convidou para ser
o diretor artístico. Ambos dirigiram também, a partir de 1933,
a sede leningradense da Detguiz (acrônimo de Diétskoie Gosu-
dárstvennoie izdátelstvo, Editora Estatal Infantil).
Vladímir Lébedev ficou conhecido pelos cartazes políticos
que produziu no começo dos anos 1920, quando trabalhou
numa série criada pela ROSTA (Rossísskoie Telegráfnoie
Aguénstvo, Agência Telegráfica da Rússia). A estética arrojada
e direta de seus cartazes visivelmente foi aplicada em alguns
de seus livros infantis da época (a partir da década de 1930,
seus trabalhos ganharam contornos mais realistas). Sua for-
mação em artes ocorreu em estúdios particulares. Entre 1912
e 1914, estudou na escola criada em Petersburgo pelo pintor e
artista gráfico Mikhail Bernstein (1875-1960), que também foi
professor de outros membros da arte de “esquerda”: Nikolai
Lápchin (que ilustrou muitos livros de M. Ilin, irmão de Mar-
chak), Vera Ermoláieva e Vladímir Tátlin (1885-1953), e todos
ajudaram a levar a produção de livros infantis para outro pa-
tamar estético.
As obras de linha construtivista de Marchak-Lébedev, como
O sorvete, A bagagem, Ontem e hoje e O circo, tornaram-se um
clássico das artes gráficas no momento de sua produção, e tra-
balhos de muitos artistas da época trazem marcas da escola
lebedeviana, como Evguénia Evenbakh (1889-1981), aluna fa-
vorita do singular pintor Petróv-Vódkin (ambos foram colabo-
radores da Ráguga),

Na capa criada por Lébedev para O circo (figura 7), de 1925,


admira a simetria construída por meio do palhaço-marionete,
trazendo humor e ao mesmo tempo sofisticação à composição

77
Daniela Mountian

geométrica, modular e de cores saturadas e contrastantes. O


nome do poeta e do artista têm o mesmo peso visual, como
notou Steiner: “O nome de Lébedev não raro aparecia na capa
como coautor”19 e, no caso, não poderia ser diferente. Em A arte
do livro no contexto da cultura dos anos 1920, Dmítri Fomin
chama a atenção para o fato de os desenhos de O circo terem
sido feitos antes dos versos, o que não era incomum na época:
“Tal método de trabalho era
amplamente praticado na De-
tguiz de Leningrado e produ-
ziu muitas obras clássicas da
literatura infantil”.20

Esse processo de criação,


além de acentuar o caráter
artístico do desenho, explica
a síntese ideal entre texto e
imagem: a concisão e o humor
marchakianos se encaixam
perfeitamente no traçado
moderno de Lébedev. Fomin
também destaca os reflexos
da experiência anterior do ar-
tista na produção de cartazes:
“cada página poderia tornar-
-se um formidável cartaz”.21

Na relação que Fomin es-


tabelece entre a produção de
livros da década de 1920 e a
“arte do espetáculo”, O cir-
co de Lébedev constitui caso
exemplar: em cada página o
leitor/espectador vê um nú-

19 STEINER, 2019, p. 322.


Figura 7. O circo. Ráduga. 1 20 FOMIN, 2015, p. 218.
925 (1ª edição). Capa: V. Lébedev.
21 Ibidem, p. 218.

78
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

Figura 8. O circo. Ilustração: V. Lébedev.


Figura 9. O circo. Ilustração: V. Lébedev

79
Daniela Mountian

mero circense. Não por acaso Kulechóv (2012), ao analisar a


poética de Marchak, usou a expressão “poesia da ‘contempla-
ção’” para caracterizar algumas de suas obras. Em todo caso,
além dе o motivo circense ser tema clássico da arte pictórica
moderna, Lébedev morava perto de um circo e o adorava.22
O tema circense não poderia faltar ao universo lobatiano.
Em 1929, o livro O Circo de Escavalinho é publicado com capa
(fig. 10) de Belmonte (1897-1947) — depois o texto foi incluído
em Reinações de Narizinho (1931), junto com outras aventuras
da turma do Sítio do Picapau Amarelo. Quando O Circo de Es-
cavalinho saiu, Lobato estava nos EUA, pois havia sido nomea-
do pelo presidente Washington Luís adido comercial do Brasil.
A amizade entre Lobato e Belmonte, apelido de Benedito de
Barros Barreto, foi frutífera: cinco títulos em parceria. Além de
desenhista e pintor, Belmonte foi jornalista e historiador. Cola-
borou em várias revistas satíricas e ganhou notoriedade com o
Juca Pato, personagem que criou em 1925 para a Folha da Ma-
nhã (atual Folha de S. Paulo). Belmonte era adepto assumido
de J. Carlos (1884-1950), um dos mais talentosos caricaturistas
brasileiros do início do século XX (até Walt Disney tentou levá-
-lo embora para a América). Se Monteiro Lobato não se identi-
ficava com a estética modernista, atraiu para seus livros gran-
des nomes do jornalismo e da charge política, área em que o
Brasil tem larga tradição.
A história de O Circo de Escavalinho descreve as peripécias
das crianças do sítio quando resolvem montar um circo. Sin-
tomaticamente, as personagens na capa estão de frente para
o leitor/espectador, em cima do tablado. O desenhista tinha
apreço pelo detalhe e pelo traço definido e estável: “Os dese-
nhos bem acabados de Belmonte, com sua Narizinho de fran-
jas bem cortadas e um Pedrinho topetudo, ajudaram a popula-
rizar no Brasil o estilo art déco”.23
A sátira bem-humorada também pode ser encontrada entre
as capas de Marchak, como em O nariz torto, livro publicado
em 1928 pela Gosizdat com capa (fig. 11) de Vladímir Konaché-

22 Ibidem, p. 220.
23 Catálogo da Exposição “Ilustradores de Lobato: a construção do livro infantil brasileiro
(1920-1948)”. 12 de outubro a 27 de dezembro de 2015. SESC São José dos Campos.

80
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

Figura 10: O circo de Escavalinho.


Cia. Editora Nacional.
Capa: Belmonte.

vitch. Os desenhos de Konachévitch são caracterizados por


sua “expressividade, a habilidade do pintor em conferir brilho
e dramaticidade até a cenas sem importância, transforman-
do todos os elementos representados, sem exceção, mesmo
os inanimados, em personagens, dando a cada um deles um
traço facilmente reconhecível”.24 Membro do “Mundo da Arte”,
Konachévitch passou a se interessar por artes gráficas na dé-
cada de 1920. Em 1918, teve sua primeira experiência na esfera

24 FOMIN, 2015, p. 452.

81
Daniela Mountian

infantil ao criar o Abc em desenhos, usando a


nova ortografia russa adotada em 1917-18.
Konachévitch também assinou as ilustra-
ções e a folha de rosto (fig. 13) de O incêndio
(1924), enquanto a capa (fig. 12) foi feita pelo
renomado Boris Kustódiev, que se interessou
por litografia e linografia e colaborou como
caricaturista em algumas revistas. De caráter
mais didático, O incêndio revela a preocupa-
ção de Marchak com a função edificante das
letras infantis.
Mal eclodiu a revolução de 1917, ficou claro
que havia necessidade de produzir outra lite-
ratura, sem traços do passado, e leitores com
outra mentalidade. A educação era a ponta de
lança do governo bolchevique: além de uma
grande campanha para liquidar o analfabetis-
mo do país (Likbez), criaram-se organizações
para jovens (Pequenos outubristas, Pioneiros,
Komsomol) e uma literatura para eles pratica-
mente do zero, desde o início condizente com
Figura 11: O nariz torto. Gosizdat. a nova ideologia proletária, mas — enquanto
1ª edição, 1928. o realismo socialista ainda não tinha se tornado estilo obri-
Capa: V. Konachévitch.
gatório — delineada por artistas não raro dotados de uma lin-
guagem arrojada. Na década de 1920, Marchak ainda saiu pu-
blicamente em defesa da arte, do skazka e do folclore, indo
contra muitos pedagogos e políticos, embora ele nunca tenha
negado a importância da função educativa das letras infantis
e tenha sido um crítico feroz de escritores do antigo regime
considerados “burgueses”, como Lídia Tchárskaia (1875-1937),
a favorita das jovens do início do século XX, que nos anos 1930
foi condenada ao ostracismo.
Em O incêndio, Samuel Marchak narra um incêndio em que
o fogo ganha características humanas. As cenas desenhadas
por Konachévitch acompanham o passo acelerado da história
e dos jogos de palavras de Marchak: a menina Lena, acossada
pelo fogo, é libertada pelo “cavaleiro” Kuzmá, o bombeiro. Com

82
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

um conteúdo mais próximo do realismo socialista (achado em


textos de Marchak de meados de 1930), o herói, positivo e sem
conflitos, é um homem comum, assim como sua profissão.

Outro livro de Marchak de teor didático ligado a profissões

Figura 12: O incêndio. Ráduga. 1ª é O correio (fig. 14), em que, como vimos, carteiros do mun-
edição, 1923. Capa: Kustódiev.
Figura 13: O incêndio. Folha de
do todo saem em busca do escritor Boris Jitkóv. Entre eles
rosto: Konachévitch. encontramos “dom Basílio” (fig. 15), rodeado de palmeiras e
macaquinhos. As imagens estereotípicas relacionadas com o
Brasil acentuam o humor dos cenários modernos de Mikhail
Tsekhanóvski (1889-1965).
Tsekhanóvski, artista gráfico e diretor de desenhos anima-

83
Daniela Mountian

Figura 14: O correio. Ráduga. 1ª


dos, ao lado de Lébedev, é um dos grandes representantes do
edição, 1925.
Capa: M. Tsekhanóvski. construtivismo russo nas artes gráficas. Tsekhanóvski fez em
1929 uma animação de O correio baseada nas próprias ilus-
trações. Em 1933, começou a produzir o que teria sido seu pri-
meiro média-metragem: uma ópera em animação baseada no
Conto do pope e seu trabalhador Balda, de Aleksandr Púch-
kin, com música de Dmítri Chostakóvitch e letra de Aleksandr
Vvediénski. Infelizmente, do desenho, que ficara pronto em
1936, só restaram alguns minutos — ele foi destruído num in-
cêndio ocorrido no Lenfilm em 1941, durante a guerra. A parti-
tura também foi perdida.
Monteiro Lobato também se preocupava com a questão edu-
cacional, traço que se aprofundou na sua escrita ao longo dos
anos 1930, quando o escritor estreitou laços de amizade com
o educador baiano Anísio Teixeira (1900-1971). Pai da “Escola
Nova”, Teixeira, apoiado em ideias de John Dewey (1859-1952),
valorizava um ensino democrático, centrado na experiência

84
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

da criança. Exemplos dessa vertente


de Lobato são achados, entre outros,
em História do mundo para crianças
(1933), Geografia de Dona Benta (1935),
Aritmética da Emília (1935), Emília no
país da gramática (1934). Nesse úl-
timo, o rinoceronte Quindim leva os
amigos do sítio para conhecer o bairro
dos adjetivos, o bairro dos arcaísmos,
as casinhas dos pronomes, a tribo dos
advérbios...
Mas o envolvimento de Lobato em
problemas da sociedade brasileira,
como se sabe, existiu desde sempre.
Um caso notório foi movido pelo livro
O escândalo do petróleo (1936), no qual
o escritor, admirado com os avanços
norte-americanos na área, criticou a
atuação do governo de Getúlio Vargas
de não explorar o petróleo e de não
deixar que o explorassem (o próprio
Lobato chegou a montar uma pequena
Figura 15: O correio. Interior. empresa de prospecção de petróleo). Pelas críticas obstinadas,
1ª edição, 1925. Ilustração: M.
Tsekhanóvski.
o escritor foi preso por alguns meses em 1941.
Outra campanha que Monteiro Lobato abraçou foi a sani-
tarista (na Rússia quem o fez foi Maiakóvski). Em 1924, com
capa e ilustrações do alemão Kurt Wiese (1887-1974), Lobato
publicou Jéca Tatuzinho, que dava às crianças noções de hi-
giene. Jéca Tatuzinho surgiu do Jeca Tatu, personagem que
apareceu no primeiro livro de Lobato, Urupês (1918), voltado
para o público adulto. A figura de Jeca Tatu simbolizava o cai-
pira indolente, ignorante e letárgico, marcado pelo abando-
no institucional e pela miséria. A imagem de Jéca Tatuzinho
encabeçou campanhas de produtos do Laboratório Fontou-
ra, como o Biotônico Fontoura, cujos cartazes, que correram
o Brasil, eram feitos por ilustradores de Lobato, J. U. Campos
(1903-1972), Belmonte e Wiese.

85
Daniela Mountian

Kurt Wiese teve uma vida aventurosa: viveu seis anos na


China e, capturado por japoneses na Primeira Guerra Mundial,
ficou cinco anos na Austrália. Mudou-se em 1927 para os EUA,
onde fez carreira bem-sucedida, mas antes havia passado
uma temporada no Brasil. Foi nessa época que assinou algu-
mas capas de Lobato usando de um traçado ágil e expressivo
que dialogava com os quadrinhos.

Figura 16. Jéca Tatuzinho. Cia. Gráfico-Editora Monteiro Lobato.


1ª edição (1924, São Paulo). Capa: K. Wiese.
`Figura 17: Jéca Tatuzinho. Ilustração: K. Wiese.

86
Monteiro Lobato e Samuel Marchak através de seus ilustradores

***

Os anos 1930 trouxeram mudanças importantes nos dois


países (ascensão de Getúlio Vargas no Brasil e consolidação
do poder de Ióssif Stálin na Rússia) com desdobramentos nos
percursos literários e editorais tanto de Marchak como de Lo-
bato, o que não vem ao caso detalhar neste artigo.
O fato é que, na década de 1920, Monteiro Lobato e Samuel
Marchak foram protagonistas da formação de um novo tipo de
livro voltado para o público infanto-juvenil. Enquanto escrito-
res, seja na prosa, seja na poesia, ambos buscaram criar uma
linguagem mais próxima dos pequenos e acharam nos con-
tos populares tradicionais um arcabouço de procedimentos
literários. Enquanto editores, suas atividades foram decisivas
para elaborar uma nova feição para as publicações destinadas
à infância.
Monteiro Lobato, dono de editora, mudou radicalmente a
forma de comercializar e de produzir livros infantis, que se
tornaram mais divertidos e mais chamativos, com a presença
de ilustradores vindos do jornalismo e, depois, da propaganda.
Samuel Marchak ajudou a arregimentar para a produção de li-
vros e revistas infantis ilustradores e pintores das diversas es-
colas que proliferaram na Rússia no início do século XX — em
nenhum país do mundo houve um envolvimento tão intenso
de artistas vanguardistas e modernistas em edições infantis
como na Rússia. No decorrer da década de 1930 muitos desses
artistas (incluindo escritores), que criaram um dos períodos
mais impressionantes da literatura russa para crianças, fo-
ram banidos (os que conseguiram continuar trabalhando ado-
taram o realismo socialista, outros emigraram, outros foram
mandados para campos de prisioneiros, onde vários perderam
a vida). Em todo caso, as obras infantis produzidas por eles,
em geral nos anos 1920, tornaram-se um legado inestimável
para as artes gráficas, com criações ousadas que, para o delei-
te de designers, vêm sendo redescobertas e reproduzidas em
fac-símile.

87
Daniela Mountian

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lino>. Acesso em: 06 de Set. 2019. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

Fonte das ilustrações:

Fig. 1: monteirolobato.com
Fig. 2-6: capasdelivrosbrasil.blogspot.com
Fig. 7-9: images2.bonhams.com e otvet.imgsmail.ru
Fig.10: capasdelivrosbrasil.blogspot.com
Fig. 11: arch.rgdb.ru
Fig. 12-13: s-marshak.ru
Fig. 14-15: regnum.ru
Fig.16 е 17: digital.bbm.usp.br/handle/bbm/7448

Recebido em: 28/03/2020

Aceito em: 07/04/2020

Publicado em junho de 2020

89
Púchkin e Machado,
o ser negro, formas
de ouvir o outro1
Susana Fuentes*

Resumo: Este estudo pretende, em leituras Abstract: Readings of Pushkin and


de Púchkin e aproximações de Machado, approaches to Machado: the present study
analisar, em perspectiva comparada, o lugar aims at analyzing within a comparative
de visibilidade da herança afrodescendente perspective the space of visibility of the
em Aleksander Púchkin (1799-1837) na Afro-descendant heritage in Alexander
literatura russa e Machado de Assis (1839- Pushkin (1799-1837) in Russian Literature
1908) na literatura brasileira. Perceber, entre – and Machado de Assis (1839-1908)
margem e centro, a voz plural e inovadora in Brazilian Literature. As well as
do autor russo, seus caminhos até o outro. perceiving Pushkin’s plural, ingenious
Em Puchkin, a viagem. Fronteiras possíveis. voice considering the tensions between
O olhar para si que se deixa atravessar pela margins and centers, and the singularity of
diferença. Em Machado, seu olhar para each encounter with the Other. Pushkin’s
as máscaras sociais e para a escravidão. voyage, possible borders. The encounter
Nesses autores, marcas em sua literatura with the difference and getting impacted
que formam a sua casa e o seu tempo, em by otherness. Machado’s critical reading
diálogo com a modernidade. Na abertura of social masks and slavery. Marks within
para o outro, leituras onde o que estava the works of these two authors that shape
no lugar do cânone também se modifica, their home and their time in dialogue with
escurecendo o imaginário nos novos modernity. In the opening to the Other,
contextos. experiences of reading as they modify the
canon, darkening the literary imagination
and raising new contexts.

Palavras-chave: Aleksandr Púchkin; Machado de Assis; Afrodescendência; Estudos


comparados de literatura russa e brasileira
Keywords: Alexander Pushkin; Machado de Assis; Afro-descendant; Comparative studies in
Russian and Brazilian literatures

90
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

Primeiras linhas

* Doutora em Literatura Com- Escurecer a folha. Uma escolha, um gesto. Penso na página
parada pela Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
feita de pedaços, vestígios. Machado em seu contexto afrodes-
e Pós-Doutora pela mesma uni- cendente. Nesse colar e recolar, no escurecimento da folha,
versidade (bolsa CAPES/FAPERJ), percursos de encontro com Machado, em suas marcas de al-
escritora.
E-mail: fuentes.susana@gmail. teridade, e pensar o ser negro em Púchkin. Nesse olhar, ele
com https://orcid.org/0000-0001- e Machado se aproximam. E resolvo perguntar: de que modo
5529-6900
estar fora do centro provoca e marca o espírito agudo de sua
escrita? Esse espaçamento onde se é o mesmo e o outro. E re-
solvo olhá-los no papel – em vestígios – no mapa. Pela mar-
ca de uma idade antiga, um retrato com pistas das diásporas,
dispersões, distâncias. Na reinvenção do cânone, no diálogo
entre a literatura russa e a literatura brasileira.
Púchkin me faz procurar no mapa. O lago Chad. O local de
origem de seu bisavô materno. Por causa de Púchkin nascem
para mim novos pontos, fendas, relíquias. Fazer a pergunta so-
bre o risco, ou fenda, essa demora para que algo ali se instale.
Sobre os silêncios, um olhar em direção a, um olhar em mo-
vimento que se abre como pergunta. Ser negro, dizer a negri-
tude. Sim, ainda é preciso dizer. Ainda há surpresas. O leitor
comum ainda se espanta e ouvimos a pergunta, Machado de
Assis, agora eu sei, agora sabemos, mas... e Púchkin também?

Ode à liberdade. O céu africano


Púchkin, nascido em Moscou em 1799, é celebrado como o
fundador da literatura russa moderna e as diferentes gerações
de autores russos dialogam e se deixam atravessar pelo olhar

1 Este trabalho parte de minha pesquisa apresentada no 14º Congresso Internacional da


Associação de Estudos Brasileiros (BRASA), em julho de 2018 na PUC-Rio, com o título:
“O mesmo e o outro em Púchkin e Machado, o ser negro, diálogos com o contemporâneo”,
integrando o Painel “Perspectivas Contemporâneas dos Estudos da Literatura Afrodescen-
dente no Brasil”.

91
Susana Fuentes

inovador em sua obra. Por seus escritos sobre a liberdade e


seu assim considerado “espírito subversivo”, foi exilado em
Odessa e esteve também confinado na propriedade da família
em Mikháilovskoie, até lhe ser permitido viajar novamente a
Petersburgo. Lá ele conhece Natália Gontcharóva, com quem
se casaria. Púchkin morre após o duelo com o barão D’Anthès,
em 1837.
Amigos muito próximos de Púchkin foram revoltosos de-
zembristas e se inspiram em seus escritos, como no seu Ode à
Liberdade, para se opor à opressão do regime tsarista e exigir
reformas por parte de Alexandre I, que abandonara a imple-
mentação de uma política liberal. Com a morte do tsar, sufo-
cados por seu sucessor, o repressivo Nicolau I, cinco amigos
de Púchkin foram enforcados. Nos arquivos da época, lemos
o depoimento prestado por P. Bestújev depois da revolta de 14
de dezembro de 1825: “As ideias liberais germinaram em meu
cérebro depois da leitura de alguns poemas manuscritos, tais
como Ode à Liberdade, O Populacho, Meu Apolo, e de certas
cartas devido às quais nosso célebre poeta Púchkin fora im-
portunado”.2 Púchkin não participou do levante por estar no
exílio. Mas agentes tentam implicá-lo na revolta. Será pou-
pado por Nicolau I, mas este se autonomeará censor de suas
obras.
Elena Vássina, em seu artigo “Boris Schnaiderman e Alek-
sandr Púchkin: dois iniciadores”, ressalta a análise no prefá-
cio para A Dama de Espadas, por Boris Schnaiderman, sobre a
origem africana do bisavô de Púchkin, Abraão Anibal. Segun-
do as pesquisas mais recentes, era natural do antigo Sudão
Central, região sul do lago Chad e ao norte de Camarões, filho
de um chefe africano. No artigo, Elena Vássina aponta:

É interessante prestar atenção às páginas do Prefácio dedi-


cadas à inacabada novela “O Negro de Pedro, o Grande” onde
Boris Schnaiderman, ao abordar as interligações da obra
com a biografia do próprio Púchkin, estuda a questão das
raízes africanas do poeta, sempre debatida entre historiado-
res da literatura. “O Negro de Pedro, o Grande”, narra a vida

2 ANDRADE, 2004, p.161.

92
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

de Anibal, bisavô de Púchkin pela linha materna. É bastan-


te conhecido que Púchkin se referiu diversas vezes em sua
obra – e com orgulho – a suas origens africanas. Contudo, há
quem tenha defendido uma outra versão da história, ou seja,
a de que Púchkin não seria descendente dos negros. Neste
contexto, Boris Schnaiderman cita o destacado historiador
literário Dmítri Mirsky e o antropólogo Anútchin – o últi-
mo, “imbuído de preconceitos racistas, não podia conceber
que um negro desempenhasse papel tão importante e fosse
um antecessor direto do poeta nacional russo”.3 Segundo as
pesquisas de Dieudonné Gnammankou, do Benin, o bisavô
de Púchkin teria sido levado aos oito anos para a corte do
sultão turco em Constantinopla. Um embaixador russo o te-
ria enviado como presente a Pedro, o Grande. E o tsar, como
grande modernizador, talvez para copiar as tendências da
corte francesa, decidiu ficar com o menino na Rússia. Lá ele
o batizou, tornando-se seu padrinho. Pedro visitou a França
em 1717 e neste mesmo período enviou Abraão para estu-
dar lá. Voltou oficial de artilharia e com outro nome: Ganibal
(Anibal), e tornou-se um respeitado engenheiro militar. Vi-
veu até o reinado de Catarina, a Grande. Morreu apenas 18
anos antes do nascimento de Púchkin.4

Fazia parte do projeto de Púchkin escrever sobre seu bisavô


Abraão. E ao criar o personagem Ibraim em sua obra inacaba-
da O Negro de Pedro, o Grande, é notável como não se esquiva
de revelar espaços de desconforto, o lugar fora do centro desse
protegido de Pedro. Ibraim se move por terrenos escorrega-
dios, entre inclusão e exclusão, encantos do personagem que
se revelam no mal-estar do exotismo ou sobressaltos, em ob-
servações do narrador ou no diálogo dos personagens. Como
na situação em que Ibraim é imposto como noivo a Natacha,
que está apaixonada por outro, e assim adoece. Quando Na-
tacha sai do delírio, conversa com a criada: “– Sabes, Andori-
nha? – disse ela. – Papai vai casar-me com o negro”. E a criada,
uma anã, conta que ninguém irá intervir a seu favor: “Durante
a sua doença, o negro teve tempo de encantar a todos. O patrão
está maluco por ele, o príncipe não tem outro assunto e Tatia-

3 VÁSSINA, 2018, p.63.


4 Cf. SCHMEMANN, 2010.

93
Susana Fuentes

na Afanássievna sempre diz é pena que seja negro, mas seria


até pecado desejar noivo melhor”.5
O que conduzira a tal situação fora a “inesperada atividade
casamenteira do tsar” e percebemos que Ibraim, o noivo, pelo
tom irônico do narrador e protestos do personagem, estava sa-
tisfeito com a vida de solteiro: “– Meu soberano”, diz Ibraim,
sou feliz com a proteção e as bondades de Vossa Majes-
tade comigo. Que Deus dê ao meu tzar e benfeitor vida mais
longa que a minha, é tudo quanto desejo. No entanto, mesmo
que eu pretendesse casar-me, a moça e a família concorda-
riam? O meu físico...6
Anteriormente, em Paris, antes da volta a Petersburgo,
Ibraim já tivera contato com certa condessa e percebe como
na sociedade o olhavam como raridade. Talvez por isso atuas-
se sem expectativas e “demoras francesas” e é aí que desperta
o interesse da condessa de D.
A noção de que a natureza não o criara para ser corres-
pondido nas suas paixões fizera com que se libertasse da
presunção e de quaisquer pretensões de amor-próprio, o que
acrescia de raro encanto as suas relações com as mulheres.
A sua prosa era simples e solene; ele agradou à condessa
de D., que estava cansada das eternas pilhérias e das alu-
sões sutis do humor francês. Ibraim frequentava muito a
sua casa. Aos poucos, ela se habituou à aparência do jovem
negro e até começou a ver algo agradável naquele cabeça
crespa que negrejava entre as perucas empoadas do seu sa-
lão de recepções (Ibraim fora ferido na cabeça e usava uma
atadura em lugar de uma peruca). Tinha ele então 27 anos, e
era alto e esbelto; mais de uma beldade o encarava com um
sentimento mais lisonjeiro que a simples curiosidade, mas
o desconfiado Ibraim ora não notava nada, ora via apenas
faceirice.7
Segundo Mike Phillips, curador convidado da British Li-
brary, agora Púchkin aparece como uma figura capaz de usar
diferentes camadas de sua identidade para criar e inspirar no-
vos modos de ver e novas abordagens culturais. Ele conta que

5 PÚCHKIN, 1981, p. 30.


6 Ibidem, p25.
7 Ibidem, p.5.

94
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

Púchkin, quando deixou a escola em 1814, havia estado com


o último filho ainda vivo de Abraão, o irmão de seu avô Pe-
dro. Em 1825, expressou em seus diários o desejo de ouvir dele
algumas memórias de seu bisavô. E depois de uma semana
voltava com uma biografia inédita de Abraão e um caderno de
memórias sobre a família escritas por Pedro. E Mike Phillips
contempla a seguinte possibilidade: “No entanto, mesmo com
os fatos em mãos, não há evidência de que seu protagonista,
Ibraim, compartilhasse as experiências do Abrão Anibal real.
Talvez o racismo que envolve a personagem no romance ve-
nha da própria experiência de Púchkin”.8
Percebemos em Púchkin o orgulho de seu bisavô – como
no romance em versos Eugênio Onêguin, obra que começou
a escrever no exílio – na distância, o voo poético até o céu de
sua África: “Chorar sob o meu céu Africano”, diz o verso na tra-
dução por Alípio Correia de Franca Neto e Elena Vássina dos
Capítulos I-IV que integram o primeiro volume do romance.9 E
em nota de pé de página aprendemos que na primeira edição
do Capítulo I havia um longo comentário autobiográfico, que é
suprimido na edição de 1833. Púchkin escrevera: “o autor, por
parte de mãe, é de origem africana. Seu bisavô, Abram Petró-
vitch Annibal, aos oito anos de idade, foi sequestrado e levado
da costa africana para Constantinopla..”.10
No diálogo com essa herança o autor russo não deixa, po-
rém, de revelar desajustes. Quando escreve sobre seu bisavô
– o afilhado do tsar – na figura de Ibraim, nas feições de seu
personagem revela a inadequação a um ideal europeu. Esse
saber-se olhado – com afeição ou com curiosidade? Podemos
de fato nos perguntar: até que ponto o autor deixa de falar me-
mórias que possivelmente o tenham atravessado? Ibraim in-
tuía que era para as mulheres
uma espécie de bicho raro, uma criatura diferente, estra-
nha ao mundo, para o qual fora transportada casualmente
e com o qual nada tinha em comum. Chegava até a invejar

8 PHILLIPS, s.d., tradução minha.


9 PÚCHKIN, 2019, p. 67.
10 Ibidem, p. 66-67.

95
Susana Fuentes

pessoas que passavam despercebidas e considerava a insig-


nificância delas uma felicidade.11
Lemos, ainda:
A condessa recebeu Ibraim de modo cortês, mas sem
nenhuma atenção especial, e isto o lisonjeou. Geralmente,
olhava-se para o jovem negro como para um fenômeno. Ro-
deavam-no, bombardeavam-no com saudações e perguntas,
e embora essa curiosidade viesse coberta de condescendên-
cia, assim mesmo ofendia o seu amor-próprio. 12
No romance, Ibraim está integrado aos círculos sociais e, ao
mesmo tempo, pode percebê-lo de fora, nas tensões ou exotis-
mos colocados em evidência por seu formato de rosto, cabelos
ou cor da pele.
Entre as “Reminiscências e materiais biográficos sobre Pú-
chkin” reunidos no Caderno de Literatura e Cultura Russa no
dossiê dedicado ao autor (2004), há o registro de um episódio
do poeta russo em seu quarto em Odessa, em “excelente dis-
posição de espírito” junto ao amigo Mouro Ali, originário da
Tunísia e ex-capitão de um navio. Púchkin estava sentado so-
bre os joelhos de Mouro – conta o amigo Liprandi, que viajara
com Púchkin à Bessarábia por nove dias, em 1821. O Mouro Ali
gostava de Púchkin, que por sua vez o tratava de corsá-
rio... Minha aparição não fez Púchkin mudar sua atitude...
Púchkin elogiou-me o Mouro e acrescentou: “Sinto-me uni-
do a ele, quem sabe, meu avô não era parente próximo de um
ancestral dele?”13
No mesmo depoimento, Liprandi alude à insatisfação de Pú-
chkin em Odessa, “em razão da própria sociedade que ele, ao
que parece, sentia-se mais ou menos na obrigação de frequen-
tar”. E acrescenta: “ele perdera o hábito e o gosto dos círculos
aristocráticos e familiares regidos pela etiqueta”.14

11 PÚCHKIN, 1981, p.5.


12 Idem.
13 ANDRADE, Op.cit., p.152.
14 Idem.

96
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

De espelhos, olhares fora do


centro, distanciamentos
Nesse universo das aparências, lembremos do conto “O Es-
pelho”, de Machado de Assis. A alma interior e a alma exterior
parecem propor um olhar presente em romances e ao longo
de uma série de contos do autor. A aparência, a posição social,
títulos são vistos com um distanciamento crítico. A ironia per-
passa os elementos que aparecem com naturalidade no dis-
curso das personagens. A sociedade observada por Machado é
também a complexidade do indivíduo na sua constituição ín-
tima, na subjetividade que se forma a partir de si e no encontro
com o outro. Em “O Espelho – o esboço de uma nova teoria da
alma humana”, uma lista do que pode ser a alma, esse outro
exterior, “pode ser um fluido, um homem, muitos homens, um
objeto, uma operação”:
O ofício da segunda alma é transmitir a vida, como a pri-
meira; as duas completam o homem, que é, metafisicamente
falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, perde
naturalmente metade da existência; e casos há, não raros,
em que a perda da alma exterior implica a da existência in-
teira.15
E se reconhece que “separar ambas as instâncias é sempre
uma operação ingrata, mas em caso de perigo à consideração
pública, a alma exterior, terá primazia”.
Ora, em diferentes obras do autor russo podemos buscar
esse olhar de viés, novos ângulos embaralhando o centro. Es-
pelhamentos, formas de olhar, contradições. Quem é este ou-
tro que se revela no mesmo?
Em seu poema narrativo O Cavaleiro de Bronze (1833), Pú-
chkin fala do sujeito esmagado pelo peso da cidade, na inun-
dação de Petersburgo, esta cidade criada por Pedro, o Grande,
o próprio Cavaleiro representado na estátua. Ali, sob o monu-
mento de bronze, o tema do homem pequeno, o ма́ленький
челове́к. O pobre sujeito sentindo-se culpado por dar um
murro na estátua, que paira na cidade construída sobre o pân-

15 MACHADO, 2016, p. 346.

97
Susana Fuentes

tano. A cidade-símbolo de sua perda: a sua noiva que morrera


na inundação cantada no poema.
É significativo que Púchkin, apesar de lhe ter sido encomen-
dado pelo tsar Nicolau I escrever sobre Pedro, o Grande16, dê
início a outra pesquisa, sobre o cossaco Pugatchióv e a rebe-
lião contra o poder imperial, nos Arquivos do Império. O autor
dará vida ao rebelde, em seu lado nobre de “bandido” insurgen-
te, no romance A Filha do Capitão, que espera publicar na sua
revista literária trimestral O Contemporâneo (Совреме́нник),
fundada por Púchkin em 1836. Em sua investigação, irá visitar
os lugares da revolta de Pugatchióv, o cossaco com largas cal-
ças de tártaro.
Em O chefe da estação, conto que pertence ao ciclo dos Con-
tos de Biélkin, Púchkin cria o autor fictício Ivan Petróvitch
Biélkin. Esse autor-narrador anuncia logo nas primeiras li-
nhas que o chefe da estação não é o culpado de tudo, como
costumam lhe infligir. E defendendo suas dores, embaralha as
expectativas sobre sua figura. E nesse conto podemos distin-
guir esse distanciamento, quebra de lugares fixos sobre o que
se apresenta como certo. “O que é um chefe de estação? Um
verdadeiro mártir de décima-quarta classe, defendido pelo seu
título unicamente contra agressões corporais, e assim mesmo,
nem sempre”.17 E anuncia: “Não é um verdadeiro trabalho for-
çado?” Para completar, o viajante descarrega nele toda a irrita-
ção pelo cansaço da viagem. Com fina ironia, o narrador exorta
o leitor a perceber tudo isso para que, em vez de indignado,
tenha sincera compaixão. E protesta, ainda: “a classe dos che-
fes de estação foi apresentada à opinião pública sob o aspecto
mais falso”. De novo, essa troca dos lugares sociais: se os via-
jantes não querem dar ouvidos ao chefe de estação, “quanto
a mim, confesso que prefiro a sua palestra às falas de algum
funcionário de sexta classe, viajando a serviço”.18 E a décima
quarta classe era a última na hierarquia dos funcionários pú-
blicos na Rússia tsarista. E, pronto para começar a história:

16 Cf. ANDRADE, Op.Cit., p. 132-133.


17 PÚCHKIN, 1981, p.115.
18 Ibidem, p.116.

98
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

“pode-se adivinhar facilmente que tenho amigos entre a digna


categoria dos chefes de estação. Com efeito, a memória de um
deles me é preciosa”, o narrador se interrompe para refletir so-
bre o “servo criterioso” da casa de um governador que passava
por ele sem servi-lo. E como por muito tempo não pôde habi-
tuar-se a isso:
Realmente, o que seria de nós, se em vez da regra cômoda
para todos o titulo respeita o título, se introduzisse em uso
uma outra, por exemplo a inteligência respeita a inteligên-
cia? Que discussões não surgiriam! E por quem começariam
os criados a servir a comida? Mas eu volto à minha história. 19
E na história, a parábola do filho pródigo será contada, de
certo modo, às avessas. A filha do chefe da estação será quem
parte, e com um estranho. No entanto, não parece infeliz. Em
vez de se perder, parece ter encontrado um caminho possí-
vel, ainda que com culpa, uma escolha. Os desajustes, porém,
acompanham toda a narrativa. O narrador fica entre diferen-
tes tempos: entre a lembrança da menina que conheceu na
casa do chefe da estação, o encontro com o pai que lamenta a
filha perdida e a descoberta do retorno dessa filha pródiga por
intermédio de um menino do povoado. A cada vez, um desen-
caixe. O retorno da filha se dá depois de findarem quaisquer
possibilidades de encontro (o pai morreu) e apreendemos, pe-
los ouvidos do narrador, a visão do menino – a dama tinha
procurado há pouco pelo chefe da estação. O menino conta
como ela seguira até o túmulo. Desceu de uma charrete, com
crianças, ama, e ainda cuidou para que não faltasse ao me-
nino uma moeda, e ao túmulo, uma cruz. No sentido que lhe
atribuía o pai, essa filha não se perdeu. A perda se faz sentir
no silêncio, na impossibilidade de se comunicar, de fazer a pa-
lavra chegar ao outro. Assim Púchkin rompe com o que é co-
nhecido pelo leitor quanto à parábola do filho pródigo e nesses
desencontros entre os personagens, ou de suas expectativas,
o narrador segue as pistas e conta a história a partir de uma
ausência. Nesse final, em que as personagens convergem para
o mesmo espaço em tempos diferentes e se perdem uma das
outras. E seguem suas vidas.

19 Idem.

99
Susana Fuentes

Não seria aqui novamente esse olhar de Púchkin para o


avesso das coisas? Helena Nazario chama a atenção para a
minúcia com que o narrador viajante descreve os quadros na
parede da casa do chefe da estação – quadros com cenas da
parábola do filho pródigo. Para então observar que na “narra-
tiva engendrada por Púchkin [...] a cada passo o leitor aguarda
em vão a reprodução das cenas dos quadrinhos da parábola”.20
E adiante, conclui: “O autor oferece em troca uma nova leitura,
criativa e surpreendente, opondo à estética do clichê, da repe-
tição, uma estética de oposição, de recusa da norma”.21

Paradoxos
Em Púchkin, Boris Schnaiderman lembra que a personagem
do conto Dubróvski, ao mesmo tempo em que tranca a porta
para que as pessoas não saíssem do celeiro incendiado, sobe
no telhado e se arrisca para salvar o gato. Desse gesto acena
para um terreno do humano a que seremos apresentados em
Dostoiévski. Também Ralskólnikov de Crime e Castigo guarda
uma centelha do reflexo de Hermann em A Dama de Espadas,
de Púchkin, ele diz.
Basta ler, por exemplo, o episódio do incêndio da casa de
Dubróvski, na novela do mesmo nome, aquele episódio em
que o ferreiro Arkhip, que trancou a porta da casa incendia-
da, a fim de não escaparem dela os funcionários ali instala-
dos, e que, no entanto, arrisca a vida, ao salvar um gato sobre
o telhado em chamas, para constatar que há em Púchkin
uma compreensão da complexidade dos caracteres huma-
nos que já prenuncia Dostoiévski.22
Curiosamente, podemos buscar essas contradições em dife-
rentes obras do poeta russo, como em seu narrador Biélkin no
inacabado “A história do povoado de Goriúkhino”, cujos frag-
mentos reunidos foram publicados após a sua morte. Atente-
mos para este trecho da viagem de retorno de Biélkin ao seu
pequeno povoado:

20 NAZARIO, 2004, p.83.


21 Ibidem, p.84.
22 SCHNAIDERMAN, 1981, p.1.

100
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

Apesar da natureza tranquila do meu caráter, a impaciên-


cia para ver o local onde passara os meus melhores anos
apoderou-se de mim de tal modo que a todo instante apres-
sava o meu cocheiro, ora prometendo-lhe dinheiro para vo-
dca, ora ameaçando-lhe com uma surra; e como era mais
cômodo empurrar-lhe as costas do que tirar e desamarrar o
saquinho de dinheiro, confesso que bati nele umas três ve-
zes, coisa que nunca havia me acontecido, pois a classe dos
cocheiros, nem eu mesmo sei por que, é por mim particular-
mente querida.23
Assim, Púchkin instaura quebras, ironias, disparates de
ações. Há um episódio no drama histórico Boris Godunov, cena
do personagem Nikolka, chamado Idiota, a quem as crianças
roubam um copeque, que o pobre acabara de ganhar – “Leva-
ram o meu copeque; ofenderam o Nikolka!” clama ao tsar Boris
que deixava a Catedral: “Boris, Boris! As crianças ofenderam
Nikolka” e pede que mande degolar as criancinhas como fez
com o pequeno tsarévitche. Diante da acusação contida na
súplica, o boiardo que acompanha o tsar quer enxotá-lo dali,
no que Boris intervém: “Deixem-no. Reza por mim, pobre Ni-
kolka”. E após a saída do tsar, o Idiota contradiz a própria sú-
plica: “Não, não! É proibido rezar pelo tsar Herodes. A Mãe de
Deus não permite”.24
Púchkin no caminho fundador, em diálogo com o seu tem-
po, e provocando seu tempo, vai às feiras colher a fala popular,
pregões de vendedores, “ladainhas de mendigos, profecias de
loucos mansos, imprecações e pragas de bêbados e prostitu-
tas, maldições e esconjuros de velhos crentes, as variantes da
linguagem falada pelos camponeses”.25
Púchkin e a língua russa vulgar, da plebe, não ao classicis-
mo, ao eslavo eclesiástico, tão discutido em suas relações com
o russo, na poesia fará o verso branco, inova a estrutura do
poema, oscila para a prosa (“descer à prosa/humilde prosa”),26
na conversa com o leitor as digressões, interrupções na histó-
ria do poema.

23 PÚCHKIN, 2010, p.109.


24 PÚCHKIN, 2007, p.115.
25 ANDRADE, Op.cit., p.128.
26 PÚCHKIN, 2010, p.114.

101
Susana Fuentes

Ao observar a quebra de expectativas no conto “O Chefe da


Estação”, Helena Nazario refere-se à estratégia de desauto-
matização do leitor por Púchkin em seu romance em versos
Eugênio Onêguin: “É famosa a citação dos versos do Evguéni
Oniéguin, em que Púchkin se refere com escárnio à automati-
zação do leitor em relação ao procedimento: ‘O leitor já espera
a rima rosas / Aí está, tome-a, segure-a, rapidamente’”.27
A tradução de Onêguin já citada aproxima o leitor do sabor
dessa ironia no texto de Púchkin: no funeral do tio “Cada um,
pope ou conviva, junto/Comeu, bebeu e saiu de cena. / Com ar
de que valera a pena”.28 O narrador dá o tom do espaço social
e o tédio de Onêguin, que já tinha sido apresentado ao mundo
da aristocracia russa:
Eis meu Onêguin livremente,
Cabelo em corte o mais recente,
Trajado de dandy londrino –
E enfim viu o círculo grã-fino29
Na descoberta da escolha de palavras em cada verso
não se pode deixar aqui de cotejar com o original pelo menos
os dois últimos versos “Как dandy ло́ндонский оде́ть – / И
наконе́ц уви́дел све́т”. E logo adiante: “Que mais se quer? O
mundo viu (Свет реши́л) / Que tinha brilho e era gentil (Что
он у́мен и о́чень мил)”.30
Ora, no mundo das aparências, fica decidido assim: “Que
mais se quer?” E no campo, após o funeral do tio, Onêguin se
entedia. O narrador com agudeza contrapõe: “Nasci pra ter
vida de paz”, e “... far niente me é a lei mais certa”.31 E apon-
ta para Onêguin “Por dois dias foi nova a paisagem / Com os
prados em isolamento, / O bosque escuro e sua friagem, / O
murmar do riacho lento; / Já no outro, bosque, monte e prado/
Não lhe causavam mais agrado”.32 E para si: “Me apraz mostrar

27 NAZARIO, Op.cit, p. 83.


28 PÚCHKIN,2019, p.69.
29 Ibidem, p.23.
30 Ibidem, p. 22-23.
31 Ibidem, p. 71.
32 Idem.

102
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

a diferença / A toda hora entre Onêguin e eu [...] Como se não


nos fosse dado/ Fazer agora um longo poema / sem ter senão
a nós por tema”.33
Esse narrador que se revela e nos leva para onde quer. Ele
para, volta, se despede, comenta. Haroldo de Campos observa
em Eugênio Onêguin a “‘bravura’ com que o poeta se propõe
empecilhos e dele se safa”, e como faz “do jogo da linguagem o
principal fator de ‘suspense’ e interesse da narração”.34 E cita
Chklóvski quando este se volta a Onêguin para tomá-lo como
exemplo ao escrever sobre “romance paródico”, em sua Teoria
da Prosa – Chklóvski afirma como entrecho (siujét / сюжет)
na obra de Púchkin não o romance de amor com Tatiana, mas
as intervenções, digressões do narrador que interrompem o
material fabular. E de modo a oferecer ao leitor brasileiro “uma
ideia da empreitada de Púchkin, devoto – como nosso zom-
beteiro e cético Machado – de Laurence Sterne”,35 Haroldo de
Campos propõe imaginar Machado de Assis “compondo em
versos seu irresolvido Dom Casmurro, cuja principal persona-
gem”, ele diria, “é não Capitu, mas o capítulo. Esse capítulo ga-
guejante, antecipador e antecipado, interrompido, suspenso,
rememorado”.36
Na tradução, a ironia se revela na escolha de palavras como
“enfim viu o círculo grã-fino”37 (o jogo com sviet / свет), quan-
do Onêguin finalmente vê a luz é apresentado ao mundo, nos
versos acima. Escolhas que marcam o justo espírito puchki-
niano: “Mas há uma natureza doida”, e também “da biblioteca
do tinhoso”. Aí vemos a linguagem límpida, frases curtas, e o
jogo que atravessa cada verso. Não à toa o poeta e romancis-
ta Boris Pasternak entrega a pena ao seu personagem Jivago,
que escreve:
Dentre tudo que é russo, o que eu atualmente mais gosto
é do espírito infantil de Púchkin e de Tchékhov, da despreo-

33 Ibidem, p.73.
34 CAMPOS, 2004, p.63.
35 Ibidem, p. 64.
36 Idem.
37 PÚCHKIN,2019, p. 23.

103
Susana Fuentes

cupação acanhada de ambos diante de coisas tão turbulen-


tas, tais como o fim último da humanidade e a sua própria
salvação.38
Elena Vássina (2018) observa as diferentes traduções de Bo-
ris Schnaiderman. E distingue em seu trabalho escolhas reve-
ladoras da escrita de Púchkin:
Por exemplo, na edição de “A dama de espadas” de 1981,
determinada frase teve apenas uma palavra alterada: em vez
de “Meu avô estava em franca rebelião, passamos a ler “Meu
avô estava em franca revolta”. Certamente, a palavra “revol-
ta” é mais apropriada ao estilo puchkiniano e soa melhor no
contexto da obra.39
Em “Púchkin – a poesia da gramática”, que se encontra no
dossiê dedicado ao autor no Caderno de Cultura e Literatura
Russa, Haroldo de Campos ressalta:
quando Maiakóvski, no seu poema dedicado ao “Jubi-
leu” de Púchkin, passado o primeiro momento de irritação
futurista contra os “generais clássicos”, convida o autor de
Evguiéni Oniéguin a descer do pedestal de sua estátua e a
participar com ele da revista LEF e da composição de poe-
mas-cartazes de agitação
Se você
fosse vivo,
eu o faria
co-redator da LEF,
e seria capaz
de confiar-lhe
até
a poesia cartaz.
Mostrava como se faz:
– e zás! –
com esse estilo,
não duvido
você aprenderia!
não está senão rendendo um tributo de reconhecimento
à extraordinária contribuição do “Africano”, o orgulhoso bis-
neto do “Negro de Pedro, o Grande”, à renovação das letras
russas.40

38 PASTERNAK, 2017, p. 316.


39 VÁSSINA, Op.cit., 2018.
40 CAMPOS, Op. cit., p. 66-67.

104
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

E Haroldo ilumina:
Na imprevisibilidade das chamadas ‘rimas maiakovskia-
nas’, na abolição de fronteiras entre verso e prosa que os
seus poemas acabam propondo, na variedade rítmica e en-
tonacional de sua dicção trepidante [...] em tudo isso Maia-
kóvski parece estar reconhecendo a percussão de um mi-
glior fabbro: Aleksandr Serguéievitch Púchkin.41
E o verso de Maiakóvski reverbera: “Nós dois / contra o liris-
mo,/ baioneta calada, /buscamos/ a nudez / da palavra preci-
sa”.42

Em direção ao outro.
A inabarcável Rússia. Uma travessia.
O gorro do poeta persa.
Contemporaneamente às diferentes questões de etnia e mi-
grações, podemos ver Púchkin com as marcas de sua identida-
de plural como alguém capaz de fazer aparecer novas nuances
e de promover aberturas. No texto “Viagem a Arzrum”, Púch-
kin relata sua viagem ao Cáucaso e as diversas fronteiras na
vastidão dessa travessia repleta de transições entre o ociden-
te e o oriente.
Ao final da travessia ao longo dos desfiladeiros do rio Térek,
a transição instantânea do Cáucaso ameaçador para a Geórgia,
o ar do sul, vales luminosos, as aldeias de terra queimada pelo
calor. Até a terra ressecada dar lugar às planícies verdes e fres-
cas da Armênia, na estrada rumo a Pérsia e Turquia. No céu, a
montanha nevada de dois cumes – o Ararat, a montanha bíbli-
ca. E bem mais próximo, o riacho que deveriam atravessar. O
Arpatchai – que demarcava a fronteira com as terras turcas.
E, para Púchkin, esse rio valia tanto quanto o Ararat, porque
desde menino seu sonho mais querido era o de viajar, mas
nunca “escapara dos limites da inabarcável Rússia”.43 Final-
mente, cruzaria até o outro lado. Ele escreve: “alegre, avancei

41 Idem.
42 MAIAKÓVSKI, 1983, p.97.
43 GOMIDE, 2011, p.64.

105
Susana Fuentes

pelo rio sagrado, e o fiel cavalo me levou para a margem turca”.


No entanto, é frustrado em sua travessia – “essa margem já
havia sido conquistada: eu ainda me encontrava na Rússia”.44
E seguirá em direção à cidade turca de Arzrum nos embates
finais da campanha de 1829 contra os turcos.
Ora, sua viagem “abrange fronteiras diversas” e ele se apro-
priou do exterior que estava à mão, conforme lemos na apre-
sentação que precede o relato de Púchkin na Nova Antologia
do Conto Russo organizada por Bruno Gomide, onde revela:
“dotado de uma capacidade ímpar de recriar gêneros literários
ocidentais, o cosmopolita Aleksandr Serguêievitch Púchkin
(1799-1837) nunca viajou para a Europa – e nos dois aspectos
possui semelhanças com Machado de Assis”.45 E além da ca-
pacidade de recriar gêneros literários ocidentais e nunca ter
ido à Europa, destaca outro aspecto em que o autor russo se
assemelha a Machado: com este “compartilha também o pro-
verbial ‘salto’ de qualidade em relação à respectiva produção
literária nacional existente até então”.46
O texto seria a “reelaboração – artística – de um relato de
viagem que nem sempre é apresentado no rol da prosa de fic-
ção de Púchkin”47, escreve Bruno Gomide. E na escolha do tex-
to para compor a antologia está a sugestão de se pensar as
“possíveis orientalizações das periferias russas”.48
No espaço de negociações, aberturas, no caminho até o ou-
tro, um episódio se faz notar: o encontro de Púchkin com a co-
mitiva que conduzia o poeta persa da corte, Fazil-Khan. Conta
como a princípio não o levara a sério pelo gorro que esse poeta
usava, e reflete sobre o engano de sua percepção quando o per-
sa lhe responde com cortesia e sobriedade:
[...]com a ajuda do tradutor, comecei a fazer uma saudação
grandiloquente à maneira oriental; mas qual não foi minha
vergonha quando Fazil-Khan respondeu à minha descabida
engenhosidade com a cortesia simples e inteligente de uma

44 Idem.
45 Ibidem, p.39.
46 Idem.
47 Ibidem, p.17.
48 Ibidem, p. 16.

106
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

pessoa digna! Esperava ver-me em Petersburgo; lamentava


que nosso encontro fosse tão breve e assim por diante. En-
vergonhado, fui obrigado a abandonar o tom importante e
zombeteiro e descer às frases europeias habituais.49
Decidido a nunca mais julgar alguém por sua veste, lança o
detalhe de sua reflexão sobre o gorro persa (a papakkha): “De
agora em diante, não julgarei um homem por sua papakha de
carneiro e suas unhas pintadas”.50 A possibilidade de se modi-
ficar no choque com o outro e deixar que esse embate se revele
no texto traduz uma escuta. E é significativo que permaneça
na reescritura do texto, quando decide revelar suas anotações,
que serão publicadas sete anos depois da viagem, apenas em
1836. Na reescrita do texto a aparição do detalhe se mantém,
não é riscada da narrativa. E me pergunto sobre as tensões no
texto, onde algo se modifica ou se revela na relação ao outro.
Essas formas diferentes de olhar têm expressão significa-
tiva na escrita de Púchkin. E são essas formas que pretendo
buscar (e mais adiante, neste estudo, em passagens de dife-
rentes obras).
Em sua despedida de Arzrum, então “considerada a princi-
pal cidade da Turquia asiática”51 e por onde passavam as prin-
cipais rotas terrestres de comércio entre a Europa e Oriente,
o autor se depara com a peste. E suas reações entre repulsa e
curiosidade são narradas de modo a mais uma vez descons-
truir uma identidade fixa e espantar-se. Esse narrador em seu
testemunho de viagem faz aparecer o que não percebera antes
a respeito dos seus próprios limites, contornos, fronteiras. Em
espelhamentos, colisões. Que o autor-narrador atente a isso
é algo que pode ser lançado como pergunta. Essas marcas de
alteridade poderiam não estar presentes. Que exista a escolha
em contá-las, percebê-las no ato da escrita, mostra-nos Púch-
kin em mais uma fenda, abertura, nas travessias até o outro.
Terminados os embates da campanha do império russo
contra os turcos, tem-se notícia da peste que assolava a re-

49 Ibidem, p. 52
50 Idem.
51 Ibidem, p. 79.

107
Susana Fuentes

gião. Púchkin confessa: “Imediatamente pensei nos horrores


da quarentena e decidi abandonar o exército naquele mesmo
dia52. Escreve:

A ideia da presença da peste é extremamente desagradá-


vel para quem não está acostumado. Com desejo de apagar
essa impressão, fui passear pela feira [...] de repente alguém
bateu em meu ombro. Olhei ao redor: atrás de mim havia um
mendigo horrível. Estava pálido como a morte [...] a ideia da
peste passou por minha imaginação outra vez. Empurrei o
mendigo com um asco indescritível e voltei para casa extre-
mamente descontente com o meu passeio.53
Podemos nos perguntar se se aborreceu com o passeio ou
com o próprio gesto. E quando relata que “no entanto, a curio-
sidade venceu; no dia seguinte me dirigi com um médico ao
campo onde se encontravam os infectados”54 estaria, mais do
que curioso, desejoso de confrontar a “imaginação” da peste
com a experiência da visão da peste? De novo a “palidez” apa-
rece em primeiro plano quando lhe trazem um doente, o que
se vê é a cor que falta: “estava extraordinariamente pálido e
cambaleava como um bêbado”.55 E sua atenção se dirige aos
homens que levavam o outro doente até a tenda: “voltei a aten-
ção a dois turcos que o carregaram pelos braços”. É quando
Púchkin, protegido na direção do vento, admite que ficou en-
vergonhado por seu “acanhamento europeu” diante da doença,
ante a indiferença dos dois turcos.
Volto a um trecho do relato que revela essa qualidade de dis-
tanciamento das coisas. Ainda no acampamento, depois da
tomada de Arzrum, quando os representantes turcos já entre-
gavam a chave da cidade, em meio à rendição e à lida com os
grupos revoltosos dá-se a conversa entre os generais e um dos
paxás aprisionados. Este paxá, ao se inteirar de que ali estava
um poeta, surpreende Púchkin com uma saudação oriental, da
qual o autor toma nota:

52 Ibidem, p. 83.
53 Ibidem, p. 84
54 Idem.
55 Idem.

108
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

Abençoada seja a hora em que encontramos um poeta. O


poeta é irmão do dervixe. Ele não possui nem pátria, nem
bens terrenos; e enquanto nós, pobres, nos preocupamos
com glória, poder e tesouros, ele está lado a lado com os reis
da Terra e é por todos reverenciado.56
Púchkin assinala no texto: “a saudação oriental agradou a
todos”. Para, no entanto, registrar cena significativa:
Ao sair da tenda, vi um jovem seminu, com um gorro de
carneiro, uma vara na mão e com um odre (outre) nos om-
bros. Ele gritava a plenos pulmões. Me disseram que era meu
irmão, um dervixe, que viera cumprimentar os vencedores.
Enxotaram-no a duras penas.57
E de novo um gorro aparece, o gorro de carneiro, não no poe-
ta, mas em seu irmão dervixe. Irmão expulso, e seu grito silen-
ciado a duras penas. Nessa relação de espelhamentos, refle-
xos, revela-se o outro lado, o poeta puxa a linha desse gorro e
o desfia, busca o seu avesso. O lado do avesso onde aparecem
os rastros. Cena expressiva lançada no ar, ao final do capítulo.
Como se no mundo o lugar do poeta não fosse algo tão reve-
renciado assim. Também ele, um dia, teria que pagar por insis-
tir na sua liberdade escrita a plenos pulmões.
Enfim, na travessia terá encontrado o poeta persa, o paxá
turco e o dervixe, e também cossacos, cazaques, nogais, tárta-
ros, ossetas, calmucos, iazidi... e a estes últimos perguntará se
de fato reverenciam Satanás.
Às minhas perguntas, respondeu que os boatos de que os
iazidi adoram Satã são pura invenção; eles acreditam em um
único Deus; que por sua lei, é verdade, amaldiçoar o diabo é
considerado indecoro e vil, pois agora ele é infeliz, mas com
o tempo pode ser perdoado.58
E Púchkin fica tranquilo com sua explicação. A literatura
aproxima olhares que viram o mundo pelo avesso.

56 Ibidem, p. 78.
57 Idem.
58 Ibidem, p. 70.

109
Susana Fuentes

Ao longo da História,
omissões, branqueamentos
Púchkin, na literatura russa, neste mundo de deslocamen-
tos, migrações, é capaz de acolher o outro. É quando o leitor à
margem percebe que ele diz a sua voz, a sua letra, pois o que
disse na letra era de um lugar obtuso, não do centro, e então
se torna outro como ele também. Instaura a dúvida e no dis-
parate de ações de suas personagens é fonte para um autor
como Dostoiévski trabalhar a complexidade da alma humana.
E Machado, na literatura brasileira, suas personagens no olhar
para as convenções, o distanciamento que aponta a máscara
social, o contar em silêncios, a forma do conto que não conta
e apenas sugere. Intriga o leitor e o chama à cena. Machado,
leitor dos russos. Machado negro. Púchkin negro. No alfinete,
na trama, na ponta do lápis, a crítica, a dúvida, a pergunta. E é
preciso perguntar, sempre.
Ora, em 2018, mais uma foto de Machado de Assis foi des-
coberta. Publicada originalmente em 25 de janeiro de 1908 na
revista semanal argentina Caras y Caretas, a foto do escritor
foi redescoberta pelo pesquisador independente Felipe Perei-
ra Rissato. De acordo com Rissato, o retrato era desconhecido
– e trata-se, possivelmente, do último do autor.
No caso brasileiro, em Machado o branqueamento se dá não
apenas nas gravuras, mas também nos silenciamentos, nes-
sa ausência de referências à sua etnia. Aspectos importantes
eram convenientemente deixados de lado. Com a literatura
nas escolas estudadas de forma a memorizar dados e datas,
muitas vezes Machado em fotos onde o branqueamento é no-
tório.
Em artigo de João Cezar de Castro Rocha para a revista Veja
logo após a descoberta dessa última foto de Machado, lemos:
Um mês após a morte do escritor, ocorrida em 29 setembro
de 1908, o crítico José Veríssimo, grande amigo de Macha-
do, escreveu um elogio no Jornal do Commercio, incluindo
a sentença: “Mulato, foi de fato um grego da melhor época,
pelo seu profundo senso de beleza, pela harmonia de sua
vida”. Outro amigo dileto, o Embaixador Joaquim Nabuco,

110
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

reagiu com rispidez numa carta nada diplomática: “Eu não


teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doe-
ria mais do que essa síntese (...). O Machado para mim era
um branco, e (...) quando houvesse sangue estranho, isso
em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu
pelo menos só vi nele o grego”.59
E João Cezar comenta, ao final:
Estampada na revista argentina Caras y Caretas, no ano
de sua morte, o Machado de corpo inteiro é um homem evi-
dentemente preto. Perfeitamente trajado, a barba e o bigode
irretocáveis, apresentado como “presidente de la Academia
de la Lengua Brasileña”, ainda assim, ou por isso mesmo,
esse instantâneo afro-brasileiro rompe com o modelo ático
legado à posteridade.60
Esse modelo “atenuante” das raízes negras de Machado por
seus pares esbarra em processo semelhante em Púchkin até
as novas descobertas. Segundo o artigo de Serge Schmemann
para o The New York Times,61 escrito em La Fére, França –
exatamente onde Abrão Anibal se graduou, na academia de
artilharia real – a tese do historiador Dieudonné Gnamman-
kou, ele mesmo de Benin, especialista da diáspora africana na
Europa e eslavófilo, causou um impacto na Rússia. Raízes na
África negra, diria Gnammankou, pareceriam menos aceitá-
veis que raízes no antigo império cristão da Etiópia. O que Bo-
ris Schnaiderman ressalta em sua pesquisa sobre a recepção
de Púchkin pelos historiadores em seu “Prefácio” a Dama de
Espadas comentado por Elena Vássina: os traços que o poeta
russo deixou do orgulho de sua etnia podem ter sido omiti-
dos. De novo, ecoa a questão – como “conceber que um negro
desempenhasse papel tão importante e fosse um antecessor
direto do poeta nacional dos russos”.62
É interessante observar que inicialmente se pensava o bisa-
vô Púchkin como abissínio. O Império Etíope, também conhe-
cido como Abissínia, ocupou os atuais territórios da Etiópia e

59 CEZAR, 2018.
60 Idem.
61 SCHMEMANN, 2010.
62 SCHNAIDERMAN, 1999, p.10.

111
Susana Fuentes

da Eritreia. Mas o único fato conhecido foi que o próprio Abrão


Anibal contou numa carta à filha de Pedro, o Grande, a impera-
dora Elizabeth, que ele era da cidade de Lagon. E o historiador
Gnammankou, em 1995, chegar à conclusão de que Lagon era
Logone, a capital do antigo Kotoko, reino de Logone-Birni ao
sul do lago Chad, atualmente ao norte de Camarões.

Lembro-me de quando, ainda na graduação em Letras na


UERJ, bolsista de iniciação científica orientada pela Professo-
ra e Pesquisadora Cida Salgueiro, visitei o Centro Cultural José
Bonifácio, na Gamboa, no Rio de Janeiro, para encontrar-me
com Conceição Evaristo. Durante nossa conversa, ela me mos-
trou uma imagem que revelava o Machado de Assis negro. Nos
últimos anos, não cessam os esforços de pesquisadores como
Eduardo de Assis Duarte na recepção de Machado, e marco
importante foi o lançamento em 2011 de sua Antologia crítica
em quatro volumes Literatura e afrodescendência no Brasil.
Como organizador, revê o conceito de cânone não apenas pela
própria elaboração da antologia, incluindo autores e autoras
que construíram espaços independentes para sua escrita,
mas também pela inserção de autores canônicos como Ma-
chado de Assis, revendo a forma de sua recepção. As margens
aproximando-se do centro e operando ali uma desconstrução,
revelando os acidentes, riscos então apagados, desses abran-
damentos que escondem e não negociam fronteiras, erigem
muros para não acolher a diversidade das margens em seu
tráfego cultural.
Importante, nessa perspectiva, ainda outra questão. Nos úl-
timos anos Machado foi relido de forma a revelar que sim, vol-
tou sua atenção e crítica ao passado escravagista. Para tanto,
com esse novo olhar, a leitura do conto “Pai contra mãe” que
fala da escravidão. Publicado após a abolição da escravatura,
aponta, no entanto, para um período anterior, revelando um
sistema cruel em cada espaço que ocupa, nos diferentes graus
de poder. No conto, o caçador de escravos já quase não tem
trabalho, escasseavam os negros fugidos. Em vez de capitão
do mato, ele é um trabalhador pobre, com família, que pensa

112
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

no filho que terá de abandonar, caso não ganhe algum dinhei-


ro. Este é o pai a que se refere o título do conto. A mãe, desco-
brimos, é a escrava fugitiva, que está grávida. Ela já tinha es-
capado havia algum tempo, e parecia estar tranquila à luz do
dia, quando é avistada pelo caçador. Faltava pouco para esta
mãe dar à luz. No confronto entre os dois, pai e mãe, podemos
pensar que está em xeque a quem pertence o direito à felici-
dade. E até que ponto não fica a pergunta – questão atual em
nosso país – sobre quem tem o direito à vida. Na hipocrisia
dos lugares sociais, na ironia do encontro, a condição trágica
do negro (que na época histórica, ainda que tenha recebido a
alforria, é privado de direitos e espaços). Na violência da cap-
tura, a mãe perde a criança, e Machado termina o conto com a
frase – “Nem todas as crianças vingam” – seca e cruel, apon-
ta o cinismo de uma sociedade partida. Onde, se você está do
lado errado, o mundo não estará a seu favor.
Machado nasceu em 1839, na cidade do Rio de Janeiro, no
Morro do Livramento, dois anos após o falecimento de Púch-
kin. Passou a infância entre a casa pobre dos pais e a casa
rica da madrinha de batismo, Dona Maria José de Mendonça,
viúva de um senador. Com a morte da mãe e, depois, do pai,
ficou com sua madrasta negra, Maria Inês. Para sobreviver, ela
fazia quitutes, que ele vendia pelas ruas. Ainda adolescente,
estudou francês ao frequentar a casa de Mme. Gallot. Pensan-
do em Machado afrodescendente, revemos constantemente o
corpo da literatura negra ou afro-brasileira que assim se co-
loca de modo a existir, sem esperar por uma “autorização”. As
vozes nessas linhagens que se reinauguram e se reinventam
também surgem a cada novo esforço em repensar o cânone, o
já estabelecido.
Machado de Assis é relido em sua crítica a um passado es-
cravagista por pesquisadores como Eduardo de Assis Duarte.
Maria Nazareth Soares Fonseca assinala: Duarte “identifica a
posição irônica de Machado de Assis contra os senhores de es-
cravos e a exposição crítica dos mecanismos utilizados pelas
elites para prolongar os benefícios advindos da escravidão” 63

63 DUARTE, 2011, p. 256.

113
Susana Fuentes

os quais “tornam-se evidentes em sua literatura, que também


se empenhou em apontar os desmandos dos senhores de es-
cravos e a situação de penúria vivida pelos africanos e seus
descendentes no Brasil”.64
Referindo-se ao conto “Pai contra mãe”, Duarte irá refletir
como Machado reconstrói a memória da escravidão. E isso
com um narrador que se identifica “não com a classe social
que ele critica, mas sim com os irmãos vítimas do sistema es-
cravocrata. E mostra como o conto desafia a voz que tenta ate-
nuar o processo violento da escravidão no Brasil”.65
Ora, se virmos o começo do conto, fala-se das máscaras que
infligiam aos escravos para lhes tapar a boca e curar-lhes o
alcoolismo. A máscara de folha de Flandres com três buracos,
dois para ver e um para respirar. Cada frase traz a ironia no
que expõe a crueldade como se fora algo bem comum. Aban-
donado o vício, “perdiam a tentação de furtar, porque geral-
mente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que
matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobrieda-
de e a honestidade certas”.66 A cada nova frase mais um esca-
var afiado, seco e pleno de ironia. “Era grotesca a tal máscara,
mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o
grotesco, e alguma vez o cruel”.67 Muito naturalmente apren-
demos que as máscaras podiam ser compradas à vontade nas
lojas. E o narrador anuncia num corte: “Mas não cuidemos de
máscaras”.
E havia o ferro para o pescoço, usado para conter os “escra-
vos fujões”, ao que o narrador de Machado observa: “há meio
século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e
nem todos gostavam da escravidão”. O narrador nos faz es-
tranhar o fato de que houvesse uma ou outra fuga eventual, e
reflete: “Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem
todos gostavam de apanhar pancada”.68 Os comentários desse

64 Idem.
65 FUENTES, 2012, p. 92.
66 RUFFATO, 2010, p. 59.
67 Idem.
68 Ibidem, p.60.

114
Púchkin e Machado, o ser negro, formas de ouvir o outro

narrador parecem criar outro plano de leitura, o tom do absur-


do, que evidencia parte de nossa história, da formação do país.
Aqui a necessidade de se repensar o cânone em suas marcas
de alteridade. O Brasil à luz do escurecimento, “onde a negri-
tude não se separa das vozes que compõe ou narram a nação,
mas vem como autocelebração, como memória e como futuro
de um componente africano que se insere no contexto con-
temporâneo brasileiro”.69
Como escreve Maria Aparecida Andrade Salgueiro, no arti-
go “Literature, Written Art and Historical Commitment: From
Cadernos to Conceição Evaristo”, a noção de cânone vem ela
mesma sendo discutida:
“Num momento histórico em que o termo ‘globalização’
é ainda debatido, lutas e rebeliões nacionalistas se impõe,
e a ideia de ‘nação’ de acordo com parâmetros tradicionais
é altamente questionada, era de se esperar que a noção de
cânone também fosse desafiada.70
Assim, repensar o cânone em seu diálogo com o contempo-
râneo. Em cada palavra para escurecer a folha, um novo Pú-
chkin. Machado em mais uma casa. A estátua de Púchkin em
Asmara, Eritreia. E na Etiópia. E enfim Logone-Birni, Cama-
rões. Púchkin me faz procurar no mapa. O lago Chad. E a me-
mória fala de outro encontro, este em novembro do ano passa-
do, quando na primeira noite nas ruas de Moscou, no caminho
para o teatro, de repente Púchkin, sua estátua na Tverskaia
aparece diante de mim. Ainda não planejara os trajetos, che-
gara na véspera debaixo de chuva e inesperadamente ali es-
tava o poeta, sobre seus ombros a lua e todo o céu de Moscou.
No mesmo chão por onde andou Dostoiévski em seu discurso
da Praça Púchkin. Esse poeta que os russos sabem de cor. E, de
fato, quando voltei durante o dia à mesma praça, encontrei o
menino com seu avô que lhe levava para conhecer o poeta. Era
novembro, fazia frio, havia poucas pessoas, conversamos e o

69 FUENTES, Op. cit., p. 92.


70 SALGUEIRO, 2011, p.9, tradução minha. “At a historical moment when ‘globalization’ is
still much talked about, when nationalist rebellions and struggles succeed, when the very
notion of ‘nation’ according to traditional parameters is strongly questioned, it is not surpri-
sing that the notion of ‘canon’ is also being challenged.”

115
Susana Fuentes

pequeno Kiril me falou um poema de Púchkin. Esquecia-se de


uma parte, depois lembrava. Na despedida, eu contei que era
do Brasil, passou um tempinho e eles voltaram. O avô disse:
então ele vai declamar para você outro poema. Kiril não falava
sem pensar, enxergava as palavras. E foi aí que perguntei seu
nome. Devia ter uns sete anos. E fico pensando quantas coisas
não acontecem através dos séculos. Naquela praça. E passo
pelo Catete onde há um pedaço de mármore e onde se lê sobre
Machado de Assis. Paro em rito de leitura, nesse lugar sem
pouso, esquina. E penso nas ruas e como a literatura escreve a
cidade, e na importância de narrativas culturais que possam
asilar, receber, nesse universo de recusas, o outro. Para habitar
o poema, a linha, o livro, a praça.

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Susana Fuentes

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Recebido: em 26/04/2020
Aceito: em 30/05/2020
Publicado: em junho de 2020

118
Ironia e seriedade no
romance russo:
anotações para ler
Dostoiévski sob o ponto de
vista de Kierkegaard1
Jimmy Sudário Cabral*

Resumo: O artigo considera que as Abstract: The article considers that


análises de Kierkegaard da ironia Kierkegaard’s analyzes of romantic
romântica carregam um potencial crítico irony carry a critical and explanatory
e explicativo capaz de lançar luz sobre o potential capable of shedding light on the
significado filosófico e estético da obra philosophical and aesthetic significance
romanesca de Dostoiévski. Considerando of Dostoevsky’s romanesque works.
o juízo de Bakhtin, que reconheceu no Considering the judgment of Bakhtin, who
romance polifônico de Dostoiévski uma recognized in Dostoevsky’s polyphonic
expressão de superação do solipsismo Novel an expression of overcoming the
filosófico do romantismo, o artigo propõe philosophical solipsism of romanticism,
que o conceito kierkegaardiano de “ironia the article proposes that the kierkegaardian
dominada”, presente na última parte da concept of “dominated irony”, present in
sua dissertação sobre O conceito de ironia, the last part of his dissertation on The
pode ser utilizado como uma chave de concept of irony, can be used as a key to the
interpretação da estética de Dostoiévski, interpretation of Dostoevsky’s aesthetics,
bem como de seu diagnóstico e de sua as well as his diagnosis and attempt
tentativa de superação do niilismo estético to overcome the aesthetic nihilism of
dos românticos. romantics.

Palavras-chave: Dostoiévski; Kierkegaard; ironia; romantismo; niilismo


Keywords: Dostoevsky; Kierkegaard; irony; romanticism; nihilism

119
Jimmy Sudário Cabral

A procura da própria palavra é, de fato, procura da palavra


precisamente não minha, mas de uma palavra maior que eu
mesmo; é o intento de sair de minhas próprias palavras, por
meio das quais não consigo dizer nada de essencial [...] tal
procura levou Dostoiévski à criação do romance polifônico.
Ele não encontrou um discurso para o romance monológico.
Tolstói seguiu a via paralela no sentido dos contos populares
(o primitivismo), da inserção de citações do Evangelho.
Outra via era a de fazer o mundo falar e prestar ouvidos nas
palavras do próprio mundo (Heidegger).2
M. Bakhtin

Como toda filosofia inicia pela dúvida, assim também inicia


pela ironia toda vida que se chamará digna do homem.3
Kierkegaard

I
* Professor no Departamento e no A relação feita por Bakhtin entre Dostoiévski, Tolstói e Hei-
Programa de Pós-Graduação em degger, como um triunvirato do pensamento moderno que
Ciência da Religião da Universida-
de Federal de Juiz de Fora. Coor- procurou uma outra linguagem através da qual o pensador ou
denador do Núcleo de Estudos da o artista pudessem sair de si mesmos, sair das suas “próprias
Religião em Dostoiévski e Tolstói, palavras”, por meio das quais eles não poderiam mais “dizer
Nerdt. https://www.ufjf.br/nerdt/.
E-mail: sudarioc@hotmail.com nada de essencial”, aponta para o significado da torção pro-
https://orcid.org/0000-0001- vocada pela obra do alemão e dos dois russos no pensamento
6598-0554
ocidental. Os ecos de Dostoiévski no pensamento de Heidegger
não são negligenciáveis, e sabemos que, além de cultivar um
retrato do último em seu escritório, este foi o único pensador
moderno não alemão a quem Heidegger dirigiu-se atentamen-
te.4 O fenômeno do niilismo e a sua relação com a ciência, a

1 As principais ideias do presente artigo foram elaboradas como parte das atividades como
pesquisador visitante no Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da USP entre os meses de junho a agosto de 2019. Agradeço aos
professores Bruno Gomide e Fátima Bianchi pela interlocução e acolhimento.
2 BAKHTIN, 2017, p. 47-48
3 KIERKEGAARD, 1991, p. 19.
4 SCHMID, 2011, p. 37-45

120
Ironia e seriedade no romance russo

função da obra de arte, a desintegração de todos os valores no


mundo burguês são temas do pensamento heideggeriano que
remetem, inegavelmente, à sua leitura da obra de Dostoiévs-
ki. Nenhuma outra obra do século XIX determinou com tan-
ta envergadura o pensamento moderno e contemporâneo, e
sabemos que Nietzsche, Freud, Camus, entre outros, povoam
a constelação de pensadores afetados pelas questões inco-
mensuráveis de uma obra romanesca inesgotável. A questão
levantada por Bakhtin, e a qual buscaremos explorar, refere-se
ao lugar do romance russo no diagnóstico do niilismo moder-
no e do “intento” presente na obra romanesca de Dostoiévski
(como também, por outros caminhos, na obra de Tolstói e Hei-
degger) de superar o solipsismo filosófico e estético do pen-
samento moderno, ou seja, “sair das próprias palavras”, como
definiu Bakhtin, com o intuito de “dizer algo de essencial”.
Há no romance russo do século XIX, especialmente em
Dostoiévski e Tolstói, um diagnóstico do niilismo moderno
e, ao mesmo tempo, um sofisticado exercício de superação
desse hóspede indesejado. A estética da literatura russa en-
contra-se, nesse sentido, dentro da mesma atmosfera de juízo
romântico ao decadentismo burguês e científico, e inaugura
dentro desse universo uma forma de seriedade que procurou
superar o puro estetismo da arte europeia. Articulado à luz das
análises de Kierkegaard do conceito de “ironia”, o conceito de
“seriedade”, que procuramos encontrar especialmente na obra
de Dostoiévski, deve ser interpretado como uma atividade lite-
rária que buscou ultrapassar o solipsismo estético da arte mo-
derna e superar a experiência do simples refúgio estético na
interioridade, o que Jean Paul Richter classificou como “nii-
lismo poético”.5 A ironia, como um sintoma de desvelamento
do niilismo na arte moderna, deve ser interpretada aqui como
um método qualitativo que subverteu e esvaziou os conteú-
dos positivos da realidade e inaugurou, enquanto “infinita e
absoluta negatividade”,6 os fundamentos de uma existência
subjetiva. No horizonte da nossa argumentação, entendemos

5 VOLPI, 1999, p. 21; Cf. também KLEINERT, 2008, p. 155-170.


6 KIERKEGAARD, Op. cit., Tese VIII, p. 19.

121
Jimmy Sudário Cabral

que foi na forma de “ironia dominada”,7 conforme a criterio-


logia de Kierkegaard, que se alcançou na literatura russa um
conceito de seriedade que constituiu o núcleo dos grandes ro-
mances de Dostoiévski e Tolstói. Nesse sentido, o que George
Steiner definiu, por exemplo, como a “alta seriedade” de Anna
Karenina em relação a Madame de Bovary poderia ser inter-
pretado a partir do conceito kierkegaardiano de “ironia domi-
nada”, e definiria a atividade literária de Tolstói e Dostoiévs-
ki como um exercício de ultrapassagem do niilismo poético
através de uma “ênfase adequada na realidade”.8 Assim, para
além da clássica oposição entre arte religiosa e arte secular,
segundo os critérios interpretativos de Steiner, a estética do
romance russo representaria uma busca por transcendência e
alteridade, que teve como ponto de partida a negatividade da
ironia do escritor moderno. A dupla constatação do jovem Lu-
kács de que “a transcendência é inevitável quando a rejeição
utópica do mundo convencional objetiva-se numa realidade
igualmente existente” e o fato de uma tal possibilidade não ter
sido “dada à evolução histórica da Europa Ocidental”9 abrem
vistas para a singularidade do romance russo e do seu con-
fronto com o niilismo.
Donna Orwin demonstrou como a ironia apareceu na litera-
tura russa do século XIX como um traço de identidade nacio-
nal e conferiu os caminhos de fortalecimento da subjetividade
e o cultivo de uma vida interior que soube resistir aos deter-
minismos sociais e psicológicos de um atomismo científico e
burguês. Para Orwinn,
It is enough to compare the atmosphere of Tolstoy’s Anna
Karenina (1875-1877) to that of a comparable masterpiece
of European realism, Gustave Flaubert’s Madame Bovary
(1857), to appreciate the greater respect accorded subjecti-
vity in the Russian novel, and also to begin to understand
the consequences of this. In both novels, the eponymous he-
roine follows her subjective daimon wherever it leads her
and perishes as a result. Both characters are loved by their

7 Ibidem, p. 275.
8 Ibidem, p. 279.
9 LUKÁCS, 2000, p. 151.

122
Ironia e seriedade no romance russo

creators and consequently by readers, yet only Anna rises


to the level of tragic heroine, while Emma remains a victim
of her surroundings and her own delusions. Flaubert’s res-
pect is reserved for true science, as represented by the great
doctor who arrives too late to save Emma at the end of the
novel but sizes up the situation at a glance. Tolstoy loves
Anna as the repositor of sincere feeling but also respects her
as a free agent, and he therefore holds her accountable for
her own demise [...] Even as an emotive being, Anna differs
from Emma. The essential love of life that wells up in her at
the end is fundamentally moral, while Flaubert counts such
love of life as amoral. So Tolstoy judges Anna more harshly
than Flaubert does Emma, but in so doing the Russian au-
thor honors his heroine more than the French one does his.
Turgenev, Dostoevsky, and Tolstoy all share this complex at-
titude toward subjectivity; it affects every aspect of Russian
psychological realism. The self that Russian realists cons-
truct is made up of matter not visible under a microscope,
and we confirm its existence only because we feel its motive
power in ourselves.10
A entropia subsumida no decadentismo estético de Flau-
bert contrasta-se com a rejeição utópica do mundo convencio-
nal e com a incansável procura por uma experiência de alteri-
dade que deu forma ao romance russo. Como notou D. Orwin, o
crítico V. Belinski reconheceu a persistente presença de uma
“consciência religiosa” na literatura russa,11 descolada de toda
e qualquer forma de crença em um tipo tradicional de religião.
Não estaríamos longe da verdade se associássemos esse tipo
de consciência religiosa à ironia romântica e à tão significati-
va presença do idealismo e do romantismo alemão na intelli-
gentsia filosófica e artística do século XIX russo.12 A proteção
da subjetividade através dos invólucros de uma experiencia
romântica capaz de blindar um eu exposto ao materialismo
burguês e científico ganhou um status canônico no pensa-
mento russo e experimentou todas as consequentes aporias
do romantismo.

10 ORWIN, 2007, p. 10.


11 Ibidem, p. 31.
12 Cf. PRATT, 1984.

123
Jimmy Sudário Cabral

Argumentamos que a estética do romance russo, e de uma


forma particular a obra de Dostoiévski e Tolstói, experimentou
um aprofundamento da ironia romântica e, ao mesmo tempo,
buscou ultrapassar os limites solipsistas do romantismo. A
tese de Kierkegaard, segundo a qual “a ironia é, como o ne-
gativo, o caminho; não a verdade, mas o caminho”,13 ilumina
o conceito de seriedade que encontramos no romance russo
e oferece uma chave de interpretação da obra de Dostoiévski
e Tolstói à luz da compreensão kierkegaardiana do conceito
de “ironia dominada”. Os limites da ironia romântica apare-
cem na autossuficiência de uma subjetividade que perdeu o
seu contato com a realidade e encontrou em sua interioridade
a única fonte de todo o “seu dever ser em oposição à vida”.14
Essa forma de decadentismo estético, que perdeu o sentido
do real e rendeu-se à entropia estética de um niilismo poé-
tico,15 caracterizou-se pela sua renúncia de toda e qualquer
possibilidade de alteridade e transcendência. O romance de
Dostoiévski aparece, como prenunciou o jovem Lukács, como
uma tentativa de ruptura com essas formas históricas do ro-
mantismo europeu, anunciando uma experiência de alterida-
de e transcendência que buscou ultrapassar os limites de uma
interioridade romântica, um autrement qu’être da experiencia
estética, o que na linguagem de Kierkegaard poderia ser no-
meado como um “movimento de dominação da ironia”.

II
A obra de Dostoiévski deve ser lida no contexto da história
do romance ocidental e interpretada, fazendo uso das consi-
derações de Kierkegaard sobre Goethe, como o reflexo de “um
acordo entre a sua vida de poeta e a sua própria realidade”.16
Em seu ensaio de 1936 sobre o romance de Goethe, Lukács

13 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 333.


14 LUKÁCS, Op. cit., p. 122.
15 O ensaio Dovol’no, de Ivan Turguêniev, oferece um bom exemplo de niilismo poético no
contexto da literatura russa. Cf. KELLY, 1998.
16 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 276.

124
Ironia e seriedade no romance russo

considerou que “o momento de transição para a educação de


Wilhelm Meister consiste precisamente no afastamento dessa
pura interioridade, que Goethe condena como vazia e abstra-
ta, como também Hegel mais tarde em sua fenomenologia do
espírito”.17 O romance de Goethe, então, responderia ao esgota-
mento do Romantismo, entendido como interioridade abstra-
ta, o ser prisioneiro das próprias palavras, e procurou oferecer
uma alternativa ao que considerou ser uma “revolta cega” da
“falsa poesia” romântica.18 O contexto de recepção de Wilhelm
Meister, sobretudo se nos atemos ao juízo de Novalis, que con-
siderou o romance como uma história burguesa e poetizada
na qual o elemento romântico desaparece, tem uma signifi-
cativa relevância para a nossa discussão na medida em que
nos aproxima das elaborações de Kierkegaard sobre o lugar e
a função da ironia romântica.
Para Kierkegaard, ironia é romantismo, e a sua aparição no
interior do círculo romântico dos irmãos Schlegel, na forma
de um “princípio fichteano, no qual a subjetividade, o eu, tem
validade constitutiva”,19 abriu o cenário para o aparecimento
do demoníaco em filosofia e na arte moderna, possibilitando
a constituição plena da interioridade como liberdade e como
negação da ordem prosaica do mundo burguês. Embora o juízo
de Kierkegaard sobre a ironia não tenha sido menos severo
do que o juízo de Goethe, a distância tomada pelo primeiro da
condenação hegeliana da ironia romântica deu lugar à expe-
riência qualitativa de uma subjetividade livre que subverteu,
como escreveu Kierkegaard na dissertação sobre o conceito
de ironia, a “seriedade bitolada” de um universo burguês que
tem uma “ênfase na conveniência e na utilidade, uma miserá-
vel teleologia idolatrada por tantos homens e que exige como
vítima adequada o sacrifício de todas as ambições infinitas”.20
A arte romântica, com seu princípio na ironia, apareceu no
mundo moderno como uma experiência de subversão da rea-

17 LUKÁCS, 2009, p. 590.


18 Ibidem, p. 591.
19 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 237.
20 Ibidem, p. 248.

125
Jimmy Sudário Cabral

lidade utilitária e circunscrita às medidas tradicionais de um


temperamento burguês, na qual os homens encontravam-se
“petrificados numa ordem social definitiva” e onde “tudo se-
guia o bater das horas”.21 O espaço oferecido pela ironia no pen-
samento de Kierkegaard é, nesse sentido, fundamentalmente
distinto do juízo hegeliano, no qual uma objetividade filosófica
procurou demonizar, em nome de uma seriedade especulativa,
a aparição da ironia na arte moderna. O que podemos chamar
aqui de a seriedade de Hegel e o seu juízo da ironia distingue-
-se da recepção de Kierkegaard da ironia romântica e do con-
ceito de seriedade que o último forjará a partir da sua leitura
dos românticos. Em sua estética, Hegel colocou sub judice a
liberdade romântica, o “sentido de viver como artista e confi-
gurar sua vida artisticamente”22 em nome de valores objetivos
que se encontravam na “esfera da eticidade, do direito, do hu-
mano e do divino” e que seriam esferas objetivas da realidade
que se contrapunham ao eu fictício dos românticos. Reagindo
ao caráter meramente performático da ironia romântica, He-
gel denuncia nela uma ausência de seriedade, pois:
segundo este princípio, eu vivo como artista quando todo
o meu agir e manifestar em geral, na medida em que se re-
fere a algum conteúdo, somente permanece para mim uma
aparência e assume uma forma que está totalmente em meu
poder. E assim, não há para mim verdadeira seriedade nes-
te conteúdo e nem em sua manifestação e efetivação geral.
Pois a verdadeira seriedade somente se apresenta por meio
de um interesse substancial, por uma coisa, verdade, etici-
dade e assim por diante, em si mesmas cheias de conteúdo,
por meio de um conteúdo que enquanto tal já vale para mim
como essencial, de tal modo que somente sou essencial para
mim mesmo na medida em que mergulhei em tal conteú-
do e a ele me tornei adequado em todo o meu saber e agir.
No ponto de vista em que se encontra o eu do artista que
estabelece tudo a partir de si mesmo e o desfaz para o qual
nenhum conteúdo aparece à consciência como absoluto e
em si e para si, mas somente como aparência feita por ele
mesmo e possível de ser destruída, tal seriedade não pode
encontrar lugar, já que é atribuída validade apenas ao forma-

21 Ibidem, p. 260
22 HEGEL, 2001, p. 82.

126
Ironia e seriedade no romance russo

lismo do eu [...] Essa virtuosidade de uma vida irônica e ar-


tística se concebe, pois, como genialidade divina, para a qual
tudo e todos são apenas uma criação sem essência, na qual o
criador livre, que se sabe desvencilhado e livre de tudo, não
se prende, pois pode tanto destruí-la quanto criá-la. Aquele
que se encontra em tal ponto de vista da genialidade divina
observa do alto com distinção todos os outros homens, que
são considerados limitados e rasos, na medida em que o di-
reito, a eticidade etc. ainda valem para eles como algo sólido,
de obrigatório e de essencial.23
O juízo de Hegel poderia ser aplicado, com toda justeza, à
primeira parte da novela de Dostoiévski Memórias do Subsolo,
na qual o homem do subsolo observa, sob um ponto de vista
irônico, a partir do subsolo, e, portanto, do alto da sua ironia,
“todos os outros homens, que são considerados limitados e ra-
sos, na medida em que o direito, a eticidade ainda valem para
eles como algo sólido, de obrigatório e de essencial”. O que nos
importa aqui é a articulação do conceito de seriedade hegelia-
na, a partir do qual Hegel tabuíza a ironia romântica em nome
de uma substancialidade que se consolida nas esferas objeti-
vas de uma realidade burguesa. Em nome de uma “firmeza e
substancialidade” que “constituem o tom fundamental do ca-
ráter”, Hegel denuncia a falta de caráter do indivíduo irônico
pelo fato de este fundamentar-se em uma mera performance
artística e não conseguir por isso mesmo “perseverar junto a
fins sólidos e importantes”.24 Eis o ponto de vista da seriedade
hegeliana! Não poderíamos senão nos aproximar da ironia do
homem do subsolo: “Oh, se eu não fizesse nada unicamente
por preguiça! Meu Deus, como eu me respeitaria então! Res-
peitar-me-ia justamente porque teria a capacidade de possuir
em mim ao menos a preguiça; haveria, pelo menos, uma pro-
priedade como que positiva, e da qual eu estaria certo. Pergun-
ta: quem é? Resposta: um preguiçoso”.25 A rejeição da ironia
por Hegel significa, à luz das diatribes do homem do subsolo,
a desconsideração da dimensão abissal da subjetividade, en-

23 HEGEL, 2001, p. 82-83.


24 Ibidem, p. 84.
25 DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 31.

127
Jimmy Sudário Cabral

tendida, por exemplo, no contexto da literatura russa, como


vólia, através da qual o homem do subsolo experimenta uma
ausência de fundamentos e “cada causa primeira arrasta atrás
de si outra, ainda anterior, e assim por diante, até o infinito”.26
Em suas considerações escritas como prefácio ao Concei-
to de Ironia, A. Walls afirmou que, “se a ironia romântica não
é séria”, Kierkegaard tem condições de questionar também o
direito da seriedade hegeliana para condenar os abominados
românticos do círculo dos irmãos Schlegel”.27 A distância to-
mada por Kierkegaard da seriedade de Hegel nos dá a dimen-
são do lugar e da função da ironia e da potência qualitativa que
ela guarda no pensamento e na arte moderna. É a partir dela
que se desenrolará no pensamento de Kierkegaard um con-
ceito de seriedade que não está atribuído a uma experiência
de adequação a um objeto “essencial” da realidade histórica,
como o definiu Hegel, para quem
a verdadeira seriedade somente se apresenta por meio de
um interesse substancial, por uma coisa, verdade, eticidade
[...] em si mesmas cheias de conteúdo, por meio de um con-
teúdo que enquanto tal já vale para mim como essencial, de
tal modo que somente sou essencial para mim mesmo na
medida em que mergulhei em tal conteúdo e a ele me tornei
adequado em todo o meu saber e agir.28
A seriedade em Kierkegaard não adviria de uma experiên-
cia de adequação a conteúdos da realidade histórica interpre-
tados no horizonte do direito e da eticidade, entendidos, na
perspectiva de uma especulação filosófica hegeliana, como
sólidos e essenciais. Ao contrário de uma experiência com
uma realidade histórica substancial, detentora de valores mo-
rais e éticos compartilhados, cheia de conteúdos, a seriedade
que encontramos em Kierkegaard pressupõe o movimento da
ironia romântica que torna nulo tudo o que uma determinada
época considerou como objetivo e carregado de substancia-
lidade: torna nulo o conceito de eticidade hegeliana e o uni-
verso prosaico da realidade burguesa. Em um trecho de sua

26 Ibidem, p. 29.
27 WALLS, In: KIERKEGAARD, Op. cit., p. 11.
28 HEGEL, Op. cit., p. 82.

128
Ironia e seriedade no romance russo

dissertação, Kierkegaard considera o lugar do acontecimento


filosófico e estético inaugurado pela ironia romântica.
A gente se apaixonava ao completar vinte anos; às dez ho-
ras em ponto a gente ia para a cama. A gente ganhava filhos,
ganhava preocupações caseiras... a gente entendia o mundo,
e educava os filhos para que estes também chegassem a isto,
e uma noite por semana a gente se entusiasmava ouvindo o
hino de um poeta sobre a beleza da existência; e de novo a
gente era tudo para os seus, ano após ano, com segurança e
precisão, sem se atrasar um minuto. O mundo se infantiliza-
va, ele precisava rejuvenescer. E neste sentido o romantis-
mo fez bem. Atravessa o romantismo uma rajada de vento
fresco, uma refrescante brisa matinal vinda das florestas
virgens medievais ou do éter puro da Grécia; os filisteus
sentem um calafrio perpassar-lhes a espinha, porém isto é
necessário para varrer o mau cheiro bestial que até então a
gente tinha respirado”.29
A ironia, para Kierkegaard, é o caminho de articulação de
uma seriedade qualitativa, mas essa seriedade só poderia vir
à luz caso o homem fosse tomado por uma experiência inte-
rior de constituição de si provocada pela ironia. Aqui estamos
diante da última tese que abre a dissertação: “como toda filo-
sofia inicia pela dúvida, assim também inicia pela ironia toda
vida que se chamará digna do homem”.30 E será sob esse pris-
ma que encontraremos ao final da sua dissertação o que Kier-
kegaard chamou de experiência de dominação da ironia, e que
se tornará o fundamento qualitativo de um tipo particular de
seriedade. A ironia romântica encontra-se, nesse sentido, en-
tre duas seriedades: a seriedade positiva da filosofia hegeliana,
“a realidade dada com todo o seu miserável espírito filisteu”,31
e uma outra seriedade, a seriedade do romance moderno, em
relação à qual Kierkegaard mira-se no exemplo de Goethe e
que nascerá do aprofundamento e, ao mesmo tempo, de uma
experiência de não permanência nos limites subjetivos da iro-
nia.

29 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 260-261.


30 Ibidem, p. 19.
31 Ibidem, p. 261.

129
Jimmy Sudário Cabral

O estetismo que encontrou na arte um refúgio e modulou


um tipo de religião da arte, povoando o século XIX com uma
confraria de sacerdotes, encontrou seu ponto de partida na
ironia, pois, como observou Kierkegaard, “quanto mais ironia
houver, tanto mais livre e poeticamente o poeta flutuará sus-
penso sobre a sua obra poética”.32 Mas, se essa ironia românti-
ca por si mesma não é séria, pelo fato de negar toda realidade
histórica, a fim de abrir lugar a uma realidade autoproduzida e
partindo dela viver poeticamente, a ironia dominada, segundo
Kierkegaard, faz com que o poeta, em lugar de apenas poetizar
a si mesmo, aprenda a cultivar um exercício poético de reali-
zação da realidade. A ironia torna-se, assim, um método. Para
Kierkegaard,
A ironia é um disciplinador (Tugtemester, pedagogo), que
só é temido por quem não o conhece. Quem simplesmente
não compreende a ironia, quem não tem ouvidos para seus
sussurros, carece eo ipso daquilo que se poderia chamar o
início absoluto da vida pessoal, carece daquilo que em cer-
tos momentos é indispensável para a vida pessoal, carece
do banho de renovação e de rejuvenescimento, do banho de
purificação, que salva a alma de ter a sua vida na finitude,
mesmo que viva aí com força e energia; ele não conhece o
frescor e a força que se encontram quando, sentindo o ar pe-
sado demais, nos despimos e nos atiramos ao mar da ironia,
naturalmente não para aí permanecermos, mas para tornar-
mos a nos vestir saudáveis e alegres e leves.33
Para Kierkegaard, é quando o indivíduo está corretamente
orientado, e ele o está quando a ironia foi limitada, que então
a ironia adquire sua justa significação, sua verdadeira vali-
dade. Se a ironia romântica, quando fixada nela mesma, não
é séria — como denunciou o próprio Hegel, pelo fato de o su-
jeito não conseguir se libertar da solidão do seu retraimento
em si mesmo, e por não superar essa interioridade insatisfei-
ta e abstrata, tornando-se por isso presa de uma nostalgia,34
como encontramos, por exemplo, na nostalgia de Novalis pelo
mundo medieval —, será através da dominação da ironia que

32 Ibidem, p. 272.
33 Ibidem, p. 277.
34 HEGEL, Op. cit., p. 83.

130
Ironia e seriedade no romance russo

se poderia experimentar o nascimento dessa outra seriedade


advogada por Kierkegaard. Para o filósofo, “a ironia é, como o
negativo, o caminho; não a verdade, mas o caminho”.35 E será
a partir desse início de mundo da subjetividade inaugurado
pela ironia, no qual todos os elos com uma determinada rea-
lidade histórica foram quebrados,36 que se estabelecerá uma
relação qualitativa e, ao mesmo tempo, criadora com a reali-
dade. E é dentro desse espaço qualitativo que a vida pessoal
“adquire saúde e verdade” e no qual se aprende, como mostrou
Kierkegaard, a colocar a ênfase adequada na realidade: “a iro-
nia ensina a realizar a realidade, a colocar a ênfase adequada
na realidade”.37
Será no romance de Goethe, e também na ironia de Sha-
kespeare, que Kierkegaard buscará o exemplo de uma ironia
dominada, o exemplo de uma forma de realismo que estará no
fundamento do seu conceito de seriedade. Para ele, “o que faz
a grandeza da existência poética de Goethe (Digter-Existents)
é que ele sabia estabelecer um acordo entre a sua própria vida
de poeta (Digter-Tilvaerelse) e a sua própria realidade. Mas
para isso é preciso novamente a ironia, porém, bem-entendi-
da, ironia dominada”.38 Será no espaço literário e, portanto, no
romance de formação de Goethe, que Kierkegaard visualizará
os acenos de superação, por um lado, do miserável espírito fi-
listeu preso a uma realidade dada e, por outro, a superação de
um esteticismo sem conteúdos de um eu preso aos delírios
poéticos da sua própria subjetividade.

III
À luz da interpretação de Kierkegard sobre o conceito de
ironia, consideramos que Dostoiévski deve ser lido dentro
do contexto da história do romance ocidental, e a sua obra
interpretada como o reflexo de um acordo entre a sua vida
de poeta e a sua própria realidade. Esse acordo representa o

35 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 278.


36 HEGEL, Op. cit., p. 83.
37 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 279.
38 Ibidem, p. 276.

131
Jimmy Sudário Cabral

fundamental da experiência nomeada por Kierkegaard como


ironia dominada.
G. Lukács terminou o seu ensaio A Teoria do Romance afir-
mando que “Dostoiévski não escreveu romances, e a intenção
configuradora que se evidencia em suas obras nada tem a ver,
seja como afirmação, seja como negação, com o romantis-
mo europeu do século XIX e com as múltiplas reações igual-
mente românticas contra ele. Ele pertence ao novo mundo”.39
O tom apocalíptico de Lukács sobre o significado da ruptura
de Dostoiévski40 com os quadros mentais que deram forma
ao romance europeu pode ser melhor avaliado à luz da lei-
tura de Kierkegaard da ironia romântica. Apesar de não ofe-
recer, como o próprio autor reconhece, uma “análise formal”
das obras de Dostoiévski, Lukács aproxima-se, ainda que não
conceitualmente, do significado da viragem dostoievskiana,
nomeada mais tarde por Bakhtin como “polifonia”. A ruptura
com a linguagem monológica apresenta-se como uma saída
do romantismo e da mistificação da vida interior que afian-
çou o decadentismo estético da arte europeia. A monologia do
niilismo poético representou o estado de desenraizamento de
um eu artístico que se instalou na ironia, a fim de viver poe-
ticamente e poetizar a si mesmo, experimentando, conforme
considerou Kierkegaard, uma vitória sobre a realidade que
consistiu muito mais numa emigração para fora da realida-
de do que num permanecer nela.41 Para Kierkegaard, a obra de
Goethe sinalizou uma possibilidade de reconfiguração poética
e de aprofundamento do real capaz de integrar o homem na
realidade à qual ele pertence. No entanto, esse tipo particu-
lar de vida poética só foi possível através de uma experiência
de dominação da ironia que, imprimindo verdade e conteúdo
ao real, estabeleceu as condições de superação de um realis-

39 LUKÁCS, 2000, p. 160. O ensaio de Lukács origina-se com sua tentativa de escrever uma
obra sobre Dostoiévski. Cf. carta de agosto de 1915 ao poeta Paul Ernst: “I have already gi-
ven up my Dostoevsky book; it has become too big a project. Out of it emerged a large-scale
essay, called “The Aesthetic of the Novel”.   LUKÁCS, 1986, p. 252.
40 Sobre a tonalidade apocalíptica do jovem Lukács em relação a Dostoiévski, ver LÖWY,
2016, p. 36-54.
41 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 262.

132
Ironia e seriedade no romance russo

mo idolátrico e, ao mesmo tempo, evadiu-se de um solipsismo


estético desprovido de realidade. É nesse sentido que Kierke-
gaard considera que
a ironia, como um momento dominado, mostra-se em sua
verdade justamente nisso: que ela ensina a realizar a reali-
dade, a colocar a ênfase adequada na realidade. Daqui não
se segue, de jeito nenhum, a conclusão bem saintsimonia-
na de que se deve idolatrar a realidade, ou negar que há em
cada homem, ou deveria haver, uma nostalgia por algo mais
perfeito. Mas esta nostalgia não pode esvaziar a realidade,
muito pelo contrário, o conteúdo da vida tem de ser um ver-
dadeiro e significativo momento numa realidade mais alta,
cuja plenitude atrai a alma. Com isso a realidade adquire o
seu valor, não como um purgatório — pois a alma não deve-
rá ser purificada de modo a, digamos, sair desta vida total-
mente nua, branca e despojada —, mas sim como história,
na qual a consciência se entrega sucessivamente — porém,
de tal modo que a felicidade não consiste em esquecer tudo
isso, mas em permanecer presente aí. Por isso, a realidade
não quer ser recusada, e a nostalgia deve ser um amor sa-
dio, não uma forma medrosa e efeminada de fugir do mundo.
Pode então ser verdade, quando o romantismo suspira por
algo mais alto; mas assim como o homem não deve separar o
que Deus uniu, assim também ele não deve nunca, jamais re-
unir o que Deus separou; mas uma nostalgia mórbida é uma
tentativa de querer ter o perfeito antes do tempo. A realidade
adquire, portanto, sua validade na ação. Mas a ação não deve
degenerar em uma certa insistência estúpida, ela deve ter
um a priori em si, que a impeça de perder-se numa infinida-
de sem conteúdo.42
O diagnóstico kierkegaardiano da ironia romântica encon-
tra-se muito próximo do cenário filosófico da estética russa
do século XIX e tem uma clara convergência com os juízos de
Dostoiévski em relação ao lugar e à função da arte moderna.
O seu juízo crítico em relação ao niilismo poético de Turguê-
niev, bem como a sua rejeição de um tipo de realismo que se
caracterizou por uma “idolatria do fenômeno” talvez nos apro-
ximem do sentido daquilo que Kierkegaard procurou traduzir
com o conceito de “ironia dominada”.
A pintura feita por Dostoiévski de São Petersburgo repre-

42 Ibidem, p. 334.

133
Jimmy Sudário Cabral

senta a encarnação mais evidente do acordo entre a sua vida


de poeta e a sua própria realidade. Como considerou L. Gross-
man, “nineteenth-century Petersburg, in spite of all the fan-
tastic coloring Dostoevsky imparted to its description, has not
been depicted by anyone more exactly, more sharply, more
palpably, or more truly”.43 O realismo de Dostoiévski distin-
guiu-se, como já foi fartamente demonstrado pela fortuna crí-
tica, do simples realismo dos seus contemporâneos, e deve ser
interpretado como um aprofundamento do significado da mo-
dernidade russa. Como o próprio Dostoiévski considerou em
sua carta de dezembro de 1868 a Appollon Máikov:
I have completely different ideas about reality [dejstvi-
tel’nost’] and realism [realizm] than do our realists and cri-
tics. My idealism is more real than their realism. Good Lord!
If one simply recounted everything that all of us Russians
have experienced in the past ten years in our spiritual deve-
lopment, would not the realists shout that this was fantasy?
And yet this was pure, authentic realism! This is what rea-
lism is, only deeper, but they merely skim the surface.44
A crise dos anos de 1860 na intelligentsia russa, interpre-
tada por Dostoiévski como um momento de “desenvolvimen-
to espiritual”, significou o aprofundamento da modernidade
russa em seu confronto com o niilismo. Com a publicação de
Pais e Filhos (1861) por Turguêniev, de O que fazer (1863) por
Tchernichevski e da novela de Dostoiévski Memórias do Sub-
solo (1864), encontramos a tradução literária da modernidade
russa como uma experiência de discernimento e de aprofun-
damento do niilismo. É dentro desse cenário que o realismo
de Dostoiévski ganhou os seus contornos e confrontou as re-
duções materialistas do que poderíamos nomear como “nii-
lismo científico” (Tchernichevski) e como “niilismo poético”
(Turguêniev).
Turguêniev foi um herdeiro sofisticado do romantismo,
e suas representações do homem supérfluo podem ser vis-
tas como a expressão mais acabada da estética europeia em
solo russo. O estado de orfandade social e ontológica dos seus

43 GROSSMAN, In: FANGER, 1998, p. 129.


44 DOSTOEVSKY, In: STACY, 1974, p. 87.

134
Ironia e seriedade no romance russo

hamlets e o completo desacordo com a realidade dos seus ti-


pos literários conferiram à sua obra um grau incontornável
de distopia. Esse “romântico da desilusão essencialmente
europeu”,45 conforme o definiu Lukács, trouxe para dentro do
mundo romanesco um elaborado pessimismo filosófico e emi-
tiu um juízo da modernidade russa sob o prisma metafísico
e estético do romantismo alemão. O seu niilismo poético deu
forma à configuração trágica do tipo supérfluo e traduziu um
estado de desenraizamento que buscou a sua ancestralida-
de na orfandade de Hamlet. Entre a experiência de Rúdin, ao
descobrir que não tem “o chão sob os pés”,46 até a tragédia de
Bazárov, desenha-se um juízo da realidade que elevou o tipo
supérfluo a um status de dignidade que só uma grande arte
pode oferecer. A aversão ao tipo supérfluo, a recepção de Tur-
guêniev no âmbito da crítica democrática dos homens novos e
de ação e a rejeição à paralisia de tipos como Rúdin e Bazárov
aproximam-se da rejeição crítica de Hegel à negatividade e à
falta de solidez dos românticos. A inutilidade dos tipos supér-
fluos significa, no contexto da crítica a Turguêniev, o reconhe-
cimento da inutilidade de Shakespeare e da nulidade de seus
hamlets. A demora no negativo de uma existência observada
sub specie ironiae significou, do ponto de vista utilitarista dos
críticos radicais, uma incapacidade de ação concreta que des-
velou o caráter inativo da figura do “homem supérfluo”.47 Se
pudéssemos parafrasear Kierkegaard, ao comentar o destino
de Solger no contexto da estética de Hegel, poderíamos pensar
em Turguêniev como uma vítima oferecida ao sistema positi-
vo dos homens de ação.48
A relação entre Dostoiévski e Turguêniev tem maior com-
plexidade e pode ser interpretada a partir da singularidade da
crítica kierkegaardiana aos românticos. A resistência do pri-
meiro ao niilismo estético de Turguêniev não se deu em nome
de uma positividade que se considerou imune às contradições

45 LUKÁCS, 2000, p. 153.


46 TURGUÊNIEV, 2014, p. 171.
47 BIANCHI, 2014, p. 198.
48 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 275.

135
Jimmy Sudário Cabral

de uma época negativa. Ao contrário, a riqueza imagética do


realismo de Dostoiévski passa pelo seu discernimento do lu-
gar ocupado pelo tipo supérfluo no contexto social e filosófico
da modernidade russa. A recusa do estetismo de Turguêniev,
a paródia impiedosa que encontramos, por exemplo, na figura
do grande escritor Karmazinóv, em Os Demônios, manifesta-
-se no seu reconhecimento da realidade inequívoca da “infi-
nitude interior” que deu forma à existência poética dos seus
tipos literários e que, ao mesmo tempo, revelou a negatividade
não menos radical de uma “existência” que “carece de existên-
cia”.49 A novela Memórias do Subsolo representa o diagnóstico
de Dostoiévski do niilismo russo e europeu e principia uma
viragem na estética russa que se contrapôs aos dois niilismos,
ao científico e ao poético, instaurando uma torção negativa
que reformulou os caminhos da literatura moderna. O homem
do subsolo representa a pintura de Dostoiévski do tipo supér-
fluo e deve ser interpretado como o caminho de tematização
dos limites da ironia romântica e do princípio da viragem
dostoievskiana que traduziu, a partir de dentro, a carência
de substância do romantismo. A novela de 1864 prenuncia o
nascimento de um tipo de seriedade que tem convergências
filosóficas com a tematização kierkegaardiana do conceito de
ironia, e ofereceu os fundamentos filosóficos e literários, em
contexto russo, para o que Kierkegaard chamou de “ironia do-
minada”. Ao contrário de uma seriedade hegeliana, que alcan-
çará a geração democrática dos anos de 1860 através da mate-
rialização literária das teses de um hegelianismo de esquerda
encarnado nas ideias de Feuerbach e Büchenr, as quais sus-
tentarão, por exemplo, a saída de Vera Pavlovna do subsolo,
em O que Fazer50 o homem do subsolo pavimentará, através da
ironia, os caminhos de formação de uma existência autêntica.
A ironia que conduz a suspensão de toda eticidade objetiva na
primeira parte da novela, o recolhimento absoluto de um eu
que se separa efetivamente da realidade através de uma ne-
gatividade absoluta (como um Sócrates negativo, para quem
toda a substancialidade do helenismo havia perdido a valida-
49 Ibidem, p. 247.
50 SUDÁRIO-CABRAL, 2019, p. 263.

136
Ironia e seriedade no romance russo

de) confrontam-se com “todos os outros homens, que são con-


siderados limitados e rasos, na medida em que o direito e a
eticidade ainda valem para eles como algo sólido, obrigatório
e essencial”.51 O diagnóstico dostoievskiano do niilismo apro-
xima-se da estética e do romantismo de Turguêniev na medi-
da em que assume o desprezo à cultura filistina dos homens
de ação, seu servilismo científico e utilitário, e ao mesmo tem-
po identifica na sua paralisia poética uma decadência e um
ressentimento que carecem de enfrentamento. O desfecho da
primeira parte anuncia um exercício de dominação da ironia
romântica através de um movimento de saída de si que pro-
curou desfazer-se de uma gramática solipsista incapaz, como
considerou Bakhtin, de dizer qualquer coisa de essencial.
O fim dos fins, meus senhores: o melhor é não fazer nada!
O melhor é a inércia consciente! Pois bem, viva o subsolo!
Embora eu tenha dito realmente que invejo o homem normal
até a derradeira gota da minha bílis, não quero ser ele, nas
condições em que o vejo (embora não cesse de invejá-lo.
Não, não, em todo caso, o subsolo é mais vantajoso!) Ali, pelo
menos, se pode... Eh! Mas estou mentindo agora também.
Minto porque eu mesmo sei, como dois e dois, que o melhor
não é o subsolo, mas algo diverso, absolutamente diverso,
pelo qual anseio, mas de modo nenhum hei de encontrar! Ao
diabo o subsolo!52
Um ano depois da aparição da novela de Dostoiévski, Tur-
guêniev publica o ensaio Dovol’no e faz uma vez mais da sua
poesia a expressão da “inércia consciente” do seu niilismo:
There’s only one way for an individual to remain upright,
not to fall to pieces, not to sink into the mire of self-oblivi-
on... or self-contempt. That’s calmly to turn away from ev-
erything, to say, “Enough!” and, folding one’s empty breast,
to retain the ultimate, the sole attainable virtue, the virtue of
recognizing one’s own insignificance”.53
Para além do esforço em transformar Shakespeare em um
contemporâneo, o ensaio de Turguêniev pode ser lido como
uma leitura poética do pessimismo romântico de Schope-

51 HEGEL, Op. cit., p. 82-83.


52 DOSTOIÉVSKI, 2000, p. 50-51.
53 TURGENEV, 1994, p. 759.

137
Jimmy Sudário Cabral

nhauer e interpretado no contexto da estética russa como a


elaboração mais acabada de um niilismo poético. Na disserta-
ção de 1841 sobre o conceito de ironia, Kierkegaard anteviu o
esgotamento do romantismo como a expressão da impossível
reconciliação entre a virtude interior de uma existência au-
têntica e o filisteísmo nauseabundo da realidade dada. O diag-
nóstico de Kierkegaard da ironia romântica antecipa uma pos-
tura filosófica de resistência ao niilismo poético e reflete o seu
intento de superar a solidão estética e a inércia do romantis-
mo. Os parágrafos de conclusão do seu ensaio conjugam um
grau de seriedade e de beleza poética que são por si mesmos a
tradução de uma compreensão religiosa da arte e do seu papel
de imprimir verdade e conteúdo à realidade. Para Kierkegaard,
É preciso coragem para não ceder aos conselhos
engenhosos ou misericordiosos do desespero que permitem
a alguém riscar-se a si mesmo do número de viventes; mas
daí não se segue de maneira alguma que qualquer vendedor
de toucinho, cevado e nutrido em autossuficiência, tenha
mais coragem do que aquele que cede ao desespero. É preciso
ter coragem para resistir ao encanto da tristeza, quando
nos quer ensinar a falsear toda alegria em melancolia, toda
nostalgia em privação, toda esperança em lembrança; é
preciso coragem para querer aí ser alegre; mas daí não se
segue de jeito nenhum que um adulto que não passe de uma
criança grande, com um sorriso de náusea e com um olhar
bêbado de alegria, tenha mais coragem do que aquele que,
curvado pelos cuidados, não sabe mais sorrir. Assim também
como a ironia. Se é preciso se precaver contra a ironia como
diante de uma sedutora, igualmente é preciso recomendá-la
como guia para o caminho [...] A ironia é, como o negativo, o
caminho; não a verdade, mas o caminho.54
Heidegger considerou que o critério “para avaliar a auten-
ticidade e o vigor de um filósofo é ver se ele capta, logo radi-
calmente, no ser do ente, a proximidade do nada. Quem não
viver essa experiência ficará, de modo definitivo e sem espe-
rança, fora da filosofia”.55 O mesmo veredito deve servir para
a literatura. Acompanhando o critério de Heidegger, não há
dúvidas de que, caso a obra de Dostoiévski se esgotasse na pe-
54 KIERKEGAARD, Op. cit., p. 278.
55 HEIDEGGER, 2007, p. 382.

138
Ironia e seriedade no romance russo

quena e explosiva novela Memórias do Subsolo, já teríamos o


suficiente para considerá-lo um autêntico filósofo e artista. O
seu diagnóstico do niilismo e a exposição da “infinitude in-
terior” de uma existência desprovida de “causas primeiras” e
que se vê confrontada pela autossuficiência parva e limitada
dos homens de ação foram o ponto de partida do seu caminho
romanesco. À luz da criteriologia de Kierkegaard, para quem
“a ironia é, como o negativo, o caminho; não a verdade, mas o
caminho”, podemos afirmar que o princípio qualitativo defini-
dor não só da autenticidade, mas da força de uma obra de arte
encontra-se na sua capacidade de não sucumbir ao niilismo.
Como mostrou A. Walls, “O Conceito de Ironia constantemente
referido a Sócrates contém a verdadeira plataforma, o progra-
ma em seus aspectos temáticos e metodológicos que se desen-
volverão ao longo da produção kierkegaardiana”.56 Da mesma
forma, Memórias do subsolo deve ser lido como a platafor-
ma da produção dostoievskiana na qual a ironia foi colocada
como “guia para o caminho”, estabelecendo, ao mesmo tempo,
a consciência lancinante da necessidade de ultrapassagem
dos limites de uma existência interior. O conjunto da obra de
Kierkegaard e seus inumeráveis exercícios de confronto com
o nada podem ser interpretados como um intento filosófico
de ultrapassagem do niilismo estético do mesmo, no qual o
solilóquio de uma ironia romântica confrontou-se, insistente-
mente, com a possibilidade redentora de uma transcendência
religiosa. A obra de Dostoiévski que se seguiu ao subsolo ca-
racterizou-se, e a isso Bakhtin nomeu polifonia, pela incontor-
nável descoberta da realidade como alteridade. A sua ativida-
de romanesca realizou o movimento filosófico de Kierkegaard
na medida em que a “infinitude interior” da ironia se abriu
para um exercício de “realização da realidade”, que significou
o abandono da solidão metafísica de “uma alma tornada inte-
rioridade”.57 O que definimos como o “acordo entre a sua vida
de poeta e a sua própria realidade”, para além de representar

56 WALLS, In: KIERKEGAARD, Op. cit., p. 10.


57 LUKÁCS, 2000, p. 151.

139
Jimmy Sudário Cabral

o que Donald Fanger chamou de “realismo romântico”,58 reve-


la um grau de seriedade estética e filosófica detentora de um
inaudito antiniilismo. Sua arte e pensamento triunfam sobre
a superfície ilusória de um niilismo científico incapaz de tra-
duzir uma terça parte da realidade e, ao mesmo tempo, ultra-
passam o aprisionamento solipsista de um niilismo estético
que, invariavelmente, sucumbe aos “conselhos engenhosos do
desespero”. A singularidade da estética de Dostoiévski nos faz
saber, com Kierkegaard, que “é preciso ter coragem para resis-
tir ao encanto da tristeza” e “para querer aí ser alegre”.
As raízes da força que sustenta o antiniilismo de Dostoiévski
encontram-se na singularidade do seu realismo. As definições
de Robert Luis Jackson têm, nesse sentido, absoluta precisão:
“reality for Dostoevsky always is pregnant with an inner truth,
a poetry that can at any moment suddenly make itself felt
(and suddenly is one of his favorite words)”.59 A percepção do
inacabamento de uma realidade grávida de acontecimentos e
insubmissa à lógica científica ou filosófica deu à luz uma ex-
periência messiânica que assumiu a imprevisibilidade abso-
luta de um real não submetido a um possível. No espaço roma-
nesco de Dostoiévski, “o real é propriamente impossível antes
de ser, porque precede qualquer possibilidade, ele a antecipa e
a surpreende. Eis onde se encontra a “marca viva” do aconteci-
mento, a “lesão” que este inflige a uma vida previsível”.60 O que
Lukács definiu como “o poder estéril do meramente existen-
te”, e que poderia facilmente esmagar as “meras esperanças”
que “proclamam a chegada do novo”,61 desfaz-se à medida que
é confrontado pela absoluta contingência de uma realidade
inobjetivável. As modulações dostoievskianas do real lançam
luzes no déficit de verdade do realismo científico e na sua in-
capacidade de alcançar a “marca viva” dos fenômenos mais
nuançados da existência. A incomensurabilidade de um real
que precede qualquer possibilidade e o movimento dostoievs-

58 FANGER, 1998.
59 JACKSON, 1992, p. 240.
60 BENSUSSAN, 2019, p. 5.
61 LUKÁCS, Op. cit., p. 161.

140
Ironia e seriedade no romance russo

kiano rumo ao “imprevisivelmente-outro”62 modularam uma


escatologia romanesca que libertou a linguagem poética dos
limites do mesmo, dos limites de uma interioridade propensa
a se entregar ao desespero por não encontrar em si mesma
nenhuma razão para esperar. Para Bakhtin, em Dostoiévski
os limites do romance monológico cederam lugar ao roman-
ce polifônico, o que possibilitou um autrement qu’être da ex-
periência estética na qual o conceito de alteridade tornou-se
medular. A alteridade de outrem e a exterioridade do mundo
transformaram-se, dessa forma, na matéria-prima imprevisí-
vel da linguagem poética, elevando a atividade artística a uma
seriedade de criação e espera que não se entregou ao filisteís-
mo de uma “realidade dada” e, ao mesmo tempo, guardou-se
de não sucumbir aos acenos do niilismo por estar diante de
um real que pode, subitamente, revelar-se poeticamente ne-
cessário.

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Recebido em: 23/04/2020

Aceito em: 03/05/2020

Publicado: em junho de 2020

143
Retratos da vida:
uma visada sobre o
Impressionismo do
dramaturgo Anton Tchekhov
Para Victoria B. Kononova
Hugo Lenes Menezes*

Resumo: O Impressionismo não constitui estilo Abstract: Impressionism is not an exclusive


exclusivo das estéticas plásticas, pois outras style to the visual aesthetics, because others
manifestações artísticas da etapa finissecular artistic expressions of the 19th century and
oitocentista e da Modernidade são tocadas por modernity are touched by this trend. Among
essa tendência. Entre os literatos lusófonos, the Portuguese-speaking literati, we mention
destacamos Raul Pompeia, o último Machado Raul Pompeia, the last Machado de Assis and
de Assis e Eça de Queirós; Graça Aranha e Eça de Queirós; Graça Aranha and Adelino
Adelino Magalhães; todos no gênero narrativo. Magalhães; all of them in narrative. Regarding
No tocante a línguas estrangeiras e ao mesmo foreign languages and the same genre, we
gênero, mencionamos Edmond e Jules Goncourt, mention Edmond and Jules Goncourt, who
que pintam descrições cromático-verbais; Marcel paint chromatic verbal descriptions; Marcel
Proust e Thomas Wolfe, num memorialismo das Proust and Thomas Wolfe, in a memorialism
sensações; e Henry James, da perspectiva do of the sensations; and Henry James, from the
impreciso. No teatro, citamos Anton Tchekhov, perspective of the inaccurate. In theater drama,
identificado com uma filosofia do momento. we quote Chekhov, identified with a philosophy
Dessa maneira, no presente artigo, abordamos of the moment. Therefore here we discuss
o gênero dramático, sobretudo na Modernidade, the dramatic genre, especially in modernity, in
em relação à pintura impressionista, mais relation to the Impressionist painting, above
exatamente numa visada sobre criações all in Chekhov’s creations for impersonation,
tchekhovianas para representação no palco, we look closer to play Three Sisters (1901), a
e detemo-nos por fim, com mais vagar, numa masterpiece of scenic Impressionism.
abordagem da peça As três irmãs (1901), obra-
prima universal do Impressionismo cênico.

Palavras-chave: gênero dramático; Impressionismo; pintura; Modernidade; Anton Tchekhov; As três


irmãs.
Keywords: dramatic genre; Impressionism; painting; Modernity; Anton Chekhov; Three Sisters.

144
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

Impressionismo: uma atitude1

*
Professor Titular de Língua Por- Entre o Realismo-Naturalismo decadente e o Simbolismo
tuguesa e Literaturas Brasileira e
nascente, desponta uma atitude estética conhecida como
Portuguesa do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnolo- Impressionismo. Inicialmente pictórica, semelhante atitude
gia do Piauí (IFPI). se desenvolve na França, com vistas a captar, diretamente, o
E-mail: hugomenezes@ifpi.edu.br
https://orcid.org/0000-0001-6234- mundo externo no momento em que uma incidência luminosa
267X projeta relevo e tonalidades dos seres. Tal expressão artísti-
ca configura uma pintura instantânea e sensorial, em que as
formas não são criadas pelas linhas. Sua denominação deriva
de Impressões: sol levante (1872), obra de Monet, exposta em
1874 num salão onde igualmente Renoir, Degas, Pissaro e Cé-
zanne exibem quadros e se assumem como impressionistas.
Para esses importam mais as sensações, impressões, matizes
e horizontes mutáveis do que as coisas, já que a realidade sur-
ge efêmera e heráclitica.2
Por isso, a criação visual agora ocorre en plein air (ao ar livre)
e não em estúdios. Ao revelar suas principais fontes nas gra-
vuras japonesas (ukiyo-e), com temas corriqueiros, e na foto-
grafia, novo método de apreensão do momento,3 o movimento
em tela não constitui apenas uma fase da história da pintura,
pois quase todas as demais artes, notadamente no sincretis-
mo estético da Belle Époque, são tocadas por essa tendência.
Emblematicamente, Debussy e Ravel, autor de Bolero (1926), a
mais tocada música instrumental francesa, deixam-nos com-
posições estruturadas em impressões fugidias. Inclusive, o
prelúdio de Debussy Tarde de um fauno (1876), composto com
base no poema simbolista homônimo de Mallarmé, é o marco

1 Utilizamos a edição cuja referência é: TCHEKHOV, Anton. As três irmãs. Trad. Maria Jacin-
tha e Boris Schnaiderman. São Paulo: Abril Cultural, 1976. Nossas análises, em especial as
sobre a linguagem, são especificamente da tradução usada, da qual atualizamos todas as
citações pelo Novo Acordo Ortográfico de 1990.
2 Ver MARTHE, Marcelo. A primeira impressão é a que fica. In: Revista Veja. Disponível em
http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/tema-livre/uma-fabulosa-exposicao-sobre-o-im-
pressionismo-na-franca/. Acesso em 28/04/2020.
3 Ver SHEPPARD, Richard. A crise da linguagem. In. BRADBURY; MACFARLANE, 1989, p.
263-274.

145
Hugo Lenes Menezes

do Impressionismo na música, cujos trabalhos debussynia-


nos, em consonância com a corrente plástica, revelam frag-
mentação, decomposição dos sons e timbres, sugerindo ima-
gens, da mesma forma que diversas peças apresentam nomes
de paisagens, como “O mar”. Pertinentemente, um célebre balé
de repertório, Paquita (1846), é revisto pelo russo Marius Peti-
pa, que em 1881 lança nova versão do espetáculo, inspirado em
Ravel e no pintor pós-impressionista Van Gogh.
Ademais, mencionamos a escultura de Degas; de Carpeaux,
com esboços dinâmicos; de Merdado, com formas “inacaba-
das”; e de Rodin, fixando um instante do movimento, junta-
mente à vanguarda inicial do cinema, que dialoga com a pin-
tura impressionista, da qual adota a técnica da visão subjetiva,
sobre personagens e espaços, e do olhar móvel, com monta-
gem rítmica acelerada, em filmes sobre o cotidiano, de autoria
também de Louis Delluc e Marcel L’Herbier. Ao se estender à
literatura, o Impressionismo floresce plenamente em Proust,
consagrado no gênero narrativo com um ciclo de romances
centrados na busca do tempo perdido através das impressões
do ambiente; nos irmãos Goncourt, que fazem descrições cro-
máticas e procuram pintar com palavras, empreendendo a
escritura artística, com os toques isolados das orações nomi-
nais; em Thomas Wolfe, sob o memorialismo proustiano das
sensações; e em Henry James, de seu ponto de vista do im-
preciso. No gênero dramático, distinguimos Anton Tchekhov,
admirador e melhor amigo do paisagista russo Isaac Levitan,
que pinta quadros como Ponte em Savinskaya (1884), Dia de
sol (1876), Bosque de bétulas (1885-1889), Primavera na Itália
(1890) e Outono dourado (1895), além de retratar o teatrólogo
compatriota numa obra de 1886. Ambos cultivam relação fra-
ternal que, não obstante os períodos mútuos de afeição e es-
tremecimento, reflete uma tendência estética compartilhada,
qual seja, o Impressionismo.4

4 Ver GREGORY, Serge. Antosha and Levitasha: the shared lives and art of Anton Chekhov and
Isaac Levitan. Dekalb: Northern Illinois University Press, 2015.

146
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

Tchekhov e o Impressionismo
No último quartel dos Oitocentos e no início dos Novecen-
tos, um inconformismo com a imitação servil deflagra vários
“ismos”, como Decadentismo, Simbolismo e Impressionismo.
Em tal contexto, admirado por James Joyce, Bernard Shaw e
tantos outros; casado com a atriz russa Olga Knipper; aparti-
dário médico filantropo, além de perscrutador da alma huma-
na, nosso literato, cuja dramaturgia, para a critica ortodoxa, é
realista simbolista ou naturalista psicológica, se rende à filo-
sofia do momento. E ao incorporar características da arte de
Monet em suas peças, ele “vai além dos limites do Naturalis-
mo e o dilui num Impressionismo cênico, pelo requinte das
nuances poéticas e pelo esgarçamento da realidade em som,
luz e atmosfera.”5
Nesse sentido, um espectador de Tchekhov, o pintor Paul
Fischer,6 influenciado pelo pós-impressionista Toulouse-Lau-
trec, descreve com deslumbramento o jardim ensolarado e
cintilante do drama Tio Vânia (1897), na encenação de 1906,
por Stanislavski no Teatro Artístico de Moscou (TAM): “parecia
que o palco com suas personagens, mormente as mulheres, fa-
zia parte de uma das telas luminosas, floridas, de Renoir.” Pelo
registro de acontecimentos em quadros ou tableaux,7 em cuja
sequencia “a noção de situação tende a dominar a de ação”,8
ao contrário da construção dramática tradicional, as criações
teatrais tchekhovianas se assemelham a um mosaico de im-
pressões. De onde Arnold Hauser reconhecer no intelectual
enfocado um legítimo representante do estilo estético em
pauta, além de declarar que:
O mais curioso fenômeno na historia do Impressionismo é
a sua adoção pela Rússia e o surgimento de um escritor como
Tchekhov, que pode ser descrito como o mais puro represen-
tante de todo o movimento. Nada é mais surpreendente do

5 ROSENFELD, 1993, p. 115.


6 Apud ROSENFELD, 1993, p. 116.
7 Ver NASCIMENTO, 2019, p. 192.
8 SARRAZAC, 2013, p. 82.

147
Hugo Lenes Menezes

que encontrar tal personalidade num país que pouco tempo


antes vive no clima intelectual do Iluminismo.9
Enquanto artífice de traços nitidamente impressionistas,
nosso autor, que persegue a recriação do real através da lite-
ratura, atinge seu objetivo, visto que “o Impressionismo é me-
nos ilusionista do que o Naturalismo: em vez de ilusão, forne-
ce elementos do tema; em vez da imagem do todo, as várias
peças que compõem a experiência.”10Assim, ele não se mos-
tra interessado na reprodução da realidade impessoal, exata
e estática, mas nos diferentes pontos de vista, na impressão
que a realidade desperta sobre o espírito. Igualmente a Proust,
que é o outro grande mestre do Impressionismo literário e re-
trata grandes mudanças, como o declínio da aristocracia e a
ascensão das classes médias na França da Terceira República,
Tchekhov aborda a decadência da aristocracia provinciana e
saudosa na Rússia pré-revolucionária, em meio aos estertores
do regime dos Czares, cuja derrocada transforma o universo
político e econômico internacional. Entretanto, nenhum dos
dois mestres o faz explicitamente, não torna o texto panfletá-
rio: em suas obras os fatos são apresentados a partir do filtro
mnemônico afetivo, que os apura e seleciona seus matizes, ge-
rando um estado nostálgico.
Observando que o Decadentismo acompanha a ascensão
impressionista, conforme comprovamos pela nostálgica at-
mosfera crepuscular, animada por uma luz pálida na última
fase da dramaturgia do criador de Tio Vânia, a temática da
decadência da referida camada rural finissecular ajusta-se
ao Impressionismo, porquanto esse é um estilo aristocrático,
que reflete o hedonismo da nobreza, de quem o gentleman
Tchekhov preza a cultura, finesse e sensibilidade, tomadas
não como maneirismo de classe e sim como cristalização de
uma conquista do espírito.

Como acontece na ficção impressionista, de maneira lapidar

9 HAUSER, 1995, p. 917.


10 Ibidem, p. 889.

148
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

na obra de um discípulo de Bergson,11 nomeadamente Proust,


certas personagens tchekhovianas, a exemplo de Olga, Macha
e Irina, de As três irmãs (1901), tentam reencontrar um tempo
perdido. Aliás, através da captação da verdade no momento,
o tempo constitui o elemento vital do Impressionismo: não o
tempo físico, cronológico, impessoal e causal, mas a duração
interior, bergsoniana, experimentada pelo espírito e determi-
nada por desejo ou imaginação.
Igualmente ao Decadentismo, o Simbolismo está na gênese
impressionista. E embora as primeiras criações de Tchekhov
para o palco, quadros dramáticos e a longa peça sobre a de-
cadência de um aristocrata latifundiário, Ivanov (1887), apre-
sentem um estilo naturalista, em A gaivota (1896), seu autor
utiliza técnicas da dramaturgia simbolista, como a de Maeter-
linck, em O pássaro azul (1908), e a de Hauptmann, em o Sino
submerso (1896): “A introdução de símbolos infiltrantes como
o da gaivota e o jardim de cerejeiras, que, numa analogia, se
sustenta frequentemente com o pato selvagem de Ibsen, cons-
titui um meio de aprofundar e enriquecer o significado dramá-
tico.”12
A essa altura, o russo enfocado já mescla técnicas simbo-
listas a impressionistas, como vemos também em A gaivota,
cuja unidade de cor demonstra uma espécie de crepúsculo
nostálgico, um clima de final de tarde. E semelhante peça cria,
no lugar da sensação de um quadro histórico-estático, a sen-
sação de um trabalho do Pontilhismo,13 ou ainda, nas palavras
de Vsevolod Meierhold, “um cênico Impressionismo”,14 o qual

11 Filósofo contraparente de Proust, escreve, entre outras obras, Matéria e memória (1896),
em que concilia a concepção materialista de memória, como estoque cerebral, e a concep-
ção idealista, segundo a qual a memória não é mero receptáculo, mas sim consciência,
processo e poder de imaginação. Ver. LE GOFF, Jacques. Memória e história. Campinas:
Edunicamp, 1994, p. 471.
12 BRADBURY; MACFARLANE, 1989, p. 427.
13 Princípio em que se apoia o Divisionismo, técnica pictórica também chamada Neoim-
pressionismo. Nesse, separam-se as cores, justapostas na tela em vez de misturadas na
paleta, de modo que manchas ou pontos se fundam e gerem imagens à distância nos olhos
do observador. Surgida na França oitocentista, impulsionada por Seurat e Signac, a tática
lembra as artes de mosaico aplicadas à pintura de quadros.
14 Apud ALLEN, 2000, s.n.

149
Hugo Lenes Menezes

vai distinguir os últimos dramas do autor em questão: Tio Vâ-


nia (1897), As três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904),
todos girando em torno da inexorável passagem do tempo a
destruir sonhos. Inclusive, para nosso teatrólogo, “o fenômeno
cênico é também uma arte do tempo.”15
Na verdade, vários outros artistas ultrapassam o Naturalis-
mo em direção ao Impressionismo, às suas atmosferas e es-
tados de ânimo, como Manet, na pintura, Tchekhov, em suas
peças, e Stanislavski, na encenação. Esse último, conforme
Margot Berthold: “[...] desenvolveu um refinado estilo impres-
sionista. Mobilizou todos os meios concebíveis de ilusão ótica
e acústica, de forma a criar a atmosfera correta para seus ato-
res e para o público”.16
Tchekhov, além de ter inovado a dramaturgia universal,
transcedendo o Naturalismo com recursos do Simbolismo e,
especialmente, do Impressionismo, a partir do chamado sub-
texto, da intuição do não dito, da ação subterrânea, da “corrente
submarina”, ou “vida submersa no texto”, segundo Meierhold,17
quando traz o fluxo da vida para o teatro, renova a prosa dra-
mática, como Proust revoluciona a prosa narrativa de ficção
quando descobre o fluxo da consciência.
Hoje, pela atmosfera de estagnação; pela importância dada
ao silêncio; pela ausência de sentido da vida da nobreza rural
russa e de todos os infelizes de outras categorias sociais; pela
reflexão sobre a dificuldade e até a impossibilidade de comu-
nicação; enfim, por sua identificação e empatia com tudo que
é humano, Tchekhov é apontado como um precursor do tea-
tro do absurdo, um dramaturgo que apresenta afinidades com
Beckett, Ionesco, Adamov, Albee e Pinter,18 rumo à expressão
de nossa Contemporaneidade.

Luz, alma e impressão


15 NASCIMENTO, 2019, p. 13.
16 BERTHOLD, 2003. p. 463.
17 Apud ALLEN, 2000, s.n.
18 Ver BRADBURY; MACFARLANE, 1989. ESSLIN, S., 1961, p. 67-68. OATES, J., 1966, p.
44-58.

150
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

O drama tchekhoviano As três irmãs, dividido em quatro


atos variáveis na duração, como que isolados, quase quadros,
ciclicamente transcorre nas quatro estações por cinco anos.
Tal peça pode ter sido inspirada nas três irmãs Brontë (Char-
lotte, Emily e Anne), bem como em seu irmão Patrick Branwell,
ou mais provavelmente nas irmãs russas Ottilia, Margarita e
Evelina Zimmermann, essa última chamada, pelos familiares,
Inna/Irina. As três têm as mesmas iniciais das personagens-
-título da obra em apreciação; apenas uma delas se casa; pos-
suem um amado irmão e vivem numa simplicidade cultivada
e voltada para a educação.19
Em Ialta, cidade da Crimeia, ao sul da Ucrânia, onde mora
então, Tchekhov elabora em 1900 As três irmãs, especifi-
camente para o Teatro de Arte.20 Escritor rápido, demora na
elaboração desse trabalho, dedicando-se a um burilamento,21
o que nos evoca a escrita artística do estilo impressionista.22
Conclui o texto a 16 de outubro daquele ano e embarca para
Moscou. Ali lê sua criação para os diretores teatrais Stanis-
lavski e Nemirov-Danchtenko, os quais encenam a peça um
ano depois, porque o dramaturgo resolve reescrever os dois
primeiros atos, em Nice. Posteriormente, em Florença, recebe
o comunicado do sucesso da encenação de 1901 pelo TAM. Em
seguida, As três irmãs ganham os palcos do mundo. Tal produ-
ção, cujo título confere crédito à tríade feminina dos Prosorov,
não dispõe de um protagonista definido. Lembremos que, para
seu autor, como nota Vsevolod Meierhold, “as personagens, es-
boçadas de maneira impressionista, constituem um material
aberto, que pode ser aproveitado para levar o traçado até seu
acabamento em figuras brilhantes.”23
Outrossim, o fio condutor de As três irmãs é bem simples,
assentado no curso natural da existência. Até porque, no en-

19 Ver Les trois soeurs. Disponível em https://fr.wikipedia.org/wiki/Les_Trois_S%C5%93urs.


Acesso em 28/04/2020.
20 NASCIMENTO, 2019, p. 152.
21 Ibidem, p. 152.
22 Ver As três irmãs (Tri sestri). In. LISBOA, Luiz Carlos. Pequeno guia da literatura universal.
São Paulo: Círculo do livro, 1994, p. 267-268.
23 MEIERHOLD, 2000, s.n.

151
Hugo Lenes Menezes

tender de Tchekhov, o entrecho de uma peça é “um conjunto


teatral de quadros de figuras e situações, esboçados não como
cópia, mas como síntese do natural.”24 Do mesmo modo que,
na tela, os pintores impressionistas sintetizam e dissolvem a
imagem natural estável, além de transformá-las num surgir e
num transcorrer, como algo não terminado, o prosador de His-
tórias meio-coloridas (1886) e No crepúsculo (1887) dissolve,
no texto teatral, a ação, reduzida e subordinada a uma dispo-
nibilidade espiritual:
Por trás da fachada, sob a superfície, submersa – é lá, e
dessa maneira, que se passa a ação. O incidente explícito
simplesmente induz à introspecção e à autorrevelação, e o
meio da autorrevelação é o lugar-comum, o irrelevante, o
aparentemente superficial. Para Tchekhov, a ação dramáti-
ca é essencialmente um continuum, que só se interrompe
ou termina com uma drástica intervenção melodramática.25
Eis, então, um resumo da fábula externa de As três irmãs,
drama de traços líricos e de epicidade, conforme costuma su-
ceder com seu criador, que confere grandiosidade, profundo
conteúdo, a coisas banais e as transforma em realidades poé-
ticas: Os Prosorov, em virtude da carreira militar do patriarca,
importante general de um monarca do Império Russo, saem
da capital, onde a mãe da família está enterrada. Num passado
não muito claro, vão para uma longínqua, insignificante e des-
nomeada província dentro de seu país,26 ainda de organiza-
ção autocrática. Lá contam em casa com um velho porteiro e
mensageiro, Feraponte, e com uma idosa enfermeira, Anfissa,
também ama dos jovens aristocratas. Esses, que oscilam entre
o nome de batismo e o hipocorístico, são: Olga (Ólia, Oletch-
ka ou Oliútchka, a mais velha); Maria (Macha ou Machenka,
a do meio); Irina (Irinichka, Ira ou Iricha, a caçula) e Andrei
(Andriúcha), um intelectual, diletante violonista e pintor, que
aspira a uma cátedra na Universidade de Moscou. Tal família
tenta desesperadamente sobreviver à monotonia do cotidiano
24 Apud GUINSBURG, 2001, p. 136-137.
25 BRADBURY; MACFARLANE, 1989, p. 427.
26 No que tange a tal província, não podemos responder à clássica pergunta: “Qual sua gra-
ça?” Obviamente, por ela não apresentar nome, ser desgraçada, desnomeada, indeterminada,
lugar neutro, ou terra de ninguém.

152
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

e sonha em retornar para a capital, cenário de uma infância


feliz. Mas esse sonho se frustra.
As três jovens, o irmão e os militares vizinhos que frequen-
tam a casa passam quase todo o tempo travando conversas
absurdas e grandes debates filosóficos. São aristocratas ricos,
representantes de um grand monde de muita tradição e pouco
ou nenhum trabalho. Olga, Macha, Irina e Andrei habitam in-
sulados, como que encarcerados, há onze anos, na província.
Professora de liceu, a maternal Olga é a mais severa e inteli-
gente; pianista amadora e irritada, a ibseniana Macha é infeliz
num casamento com um homem do magistério secundário,
Fedor Kulyguin, o qual, por interesses pessoais, fecha os olhos
à infidelidade da mulher, que de início o tem como sábio e im-
portante, mas depois o descobre ser um medíocre; e Irina é
uma moça sonhadora, que termina por se conformar com um
emprego de telegrafista.
O marasmo provinciano é abalado pela chegada de uma
brigada comandada pelo tenente-coronel Aleksandr Verchi-
nin, ex-companheiro de armas do pai dos Prosorov, que ago-
ra acolhem o militar. Esse se diz interessado por Macha. As
três irmãs entram então em contato com alguns oficiais. Dois
deles, inseparáveis e em constante discussão, o barão Nikolai
Tusenbach, bom e feio, e o capitão Vassíli Solioni, caprichoso,
desajeitado, um tanto brutal e comparado por si mesmo a Ler-
montov,27 cortejam Irina. No entanto, quem chama a atenção
das jovens é Verchinin. Ele vem de Moscou, onde as conhece
quando meninas. Macha corresponde ao flerte de Verchinin,
que, como ela, é casado. Sua mulher, que sofre das faculdades
mentais, possui tendência suicida. O tenente-coronel até so-
nha com um lar harmonioso num lugar determinado, porém,
benigno, não larga a esposa doente por Macha, visto não ter
coragem e estar condenado a não criar raízes, passando volu-
velmente de uma aventura à outra por onde anda. Aqui, temos
pontos de comédia, como é o caso do confidente Ivan Tche-
boutykin, ex-médico militar idoso, que se deprecia, atribulado

27 Romancista e poeta byroniano, Lermontov é um importante romântico russo. Oficial


militar, aos 27 anos, morre num duelo.

153
Hugo Lenes Menezes

e bêbado, por nada mais se lembrar de medicina e pela nostal-


gia de ter amado a mãe dos Prozorov.28
Enquanto as irmãs devaneiam, Natacha Ivanovna, noiva e
depois mulher de Andrei, que, inicialmente às escondidas e
depois às claras, é ludibriado por ela e seu amante, Mikhail
Protopopov, a quem ele é profissionalmente subordinado, apo-
dera-se da casa, sem a mínima consideração por empregados
de longa data (Feraponte e Anfissa), com a desculpa de que
estão improdutivos. Representante de valores pequeno-bur-
gueses e de seu materialismo recém-conquistado, Natacha, de
cuja segunda criança provavelmente o pai é Protopopov, insta-
lado por ela na propriedade dos Prosorov, não tem qualidades
atribuídas à aristocracia, mesmo decadente, como requinte,
elegância e intelectualidade.
Ao lado de Natacha, o promissor Andrei, agora obeso, reduz-
-se a simples funcionário do campo e chega a hipotecar a casa,
sem consultar as irmãs, para pagar dívidas contraídas tanto
no vício a que se entrega (o jogo), e que dilapida a fortuna dos
Prosorov, quanto no sustento da mulher e do filho Bobik, fruto
de um péssimo casamento, que promove a cisão com a família
de origem. Aliás, como destaca Howard Moss, “Tchekhov (as-
sim como Proust), jamais oferece o retrato de um casamento
feliz.”29 Por sua vez, a brigada militar, quando não se encontra
mais a serviço no local, retira-se para a Polônia e leva consigo
a fagulha vital de Macha. Condenada a um trabalho prosai-
co, Irina vê cair por terra a possibilidade de voltar para Mos-
cou mediante o casamento com Tusenbach, morto por Solioni
num trágico duelo por ciúmes. Olga, não identificada com o
emprego, aceita ser diretora de liceu. Natacha, paulatina e ar-
rogantemente ocupa a casa, da qual obtém o controle total e
ninguém se move para detê-la. Às três Prosorov e ao irmão,
abandonados ao tédio de suas esperanças novamente derro-
28 Nosso dramaturgo revela as mazelas sociais com fino humor espirituoso e chama suas
peças de comédias, classificação viável, caso não as vejamos como dramas pesados e
trágicos, conforme Stanislavski os interpreta e dirige. Das peças tchekhovianas, a obra As
três irmãs é a de mais difícil classificação, pois é tragédia, tragicomédia, comédia e drama.
Ver BLOOM, Harold. Anton Tchekhov. In. Gênio: os 100 autores mais criativos da história da
literatura. Trad. José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 260.
29 Ibidem, p. 260.

154
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

tadas, só resta o lamento “diante da constatação do que po-


deriam ter sido e não são, com um breve desejo de um futuro
diverso da vida atual.”30
A partir dessa síntese de As três irmãs, compreendemos
uma visão de León Mirlas, segundo a qual: “Tchekhov constrói
o drama com uma ação voluntariamente paupérrima, que (de
forma bem impressionista), por momentos, quase imobiliza
no tempo as personagens, com uma finura de matizes.”31 O su-
perlativo paupérrima é utilizado no sentido de muito econô-
mica pelo crítico, ao qualificar a ação dramática. Dessa, Luchi-
no Visconti, em 1952, com o então cenógrafo Franco Zefirelli,
realiza requintada encenação em espaço cênico de alto custo.
Tal sofisticação, característica do aristocrático Impressionis-
mo, decorre do próprio círculo no qual se movem as bem nas-
cidas personagens centrais da peça, um drama que constitui a
figuração de criaturas exaustas, remanescentes de um mundo
belo e que, no presente isolado, fazem a vida nos grandes cen-
tros, como Moscou, parecer melhor do que é. E tal postura nos
traz à memória os tópicos universais do locus horrendus32 e
do locus amoenus,33 esse um dos motivos do Impressionismo,
notadamente da estética de Renoir, que pinta a joie de vivre (a
alegria de viver).
Na dimensão literária, apesar dos pesares, a família Prosorov
“procura a alegria, o riso, a animação; quer viver e não vege-
tar.”34 Por sinal, acerca do temperamento do criador das perso-
nagens, diz, em “Os dois Tchekhov”, o poeta moderno Maia-
kovski: “Por trás do vulto conhecido do cantor do crepúsculo,
despontam as linhas de outro Tchekhov – o alegre e vigoroso

30 NASCIMENTO, 2019, p. 165.


31 MIRLAS, 1960, p. 203.
32 Lugar horrível em latim, esse tópico consiste na descrição de uma paisagem sombria,
isolada, lúgubre, inquietante e decadente. Ver CURTIUS, E. R. Topoi. In. Literatura europeia e
Idade Média latina. Trad. Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: Edusp, 2013.
33 Lugar ameno ou aprazível em latim, esse tópico consiste na descrição de um ambiente
ideal de felicidade, um paraíso perdido. Ver CURTIUS, E. R. Topoi. In. Literatura europeia e
Idade Média latina. Trad. Teodoro Cabral e Paulo Rónai. São Paulo: Edusp, 2013.
34 STANISLAVSKI, 1989, p. 320.

155
Hugo Lenes Menezes

artista da palavra.”35 Filho de devoto cristão ortodoxo,36 nos-


so dramaturgo, que, sem intolerância de credo, confessa não
ser religioso, nem indiferente, mas ao mesmo tempo é dado à
ciência e às coisas do espírito, confirma a alegria como motivo
do Impressionismo, mormente pelo fato de ele sempre interli-
gar dois planos, o da vida cotidiana e o da vida espiritual, que
o autor julga imprescindível. Isso porque, em seu entender, até
num locus horrendus, a existência humana se justifica, en-
contra razão de ser, quando iluminada pela busca da Verdade,
da Beleza e do Bem.37
Aqui, a província se afigura o locus horrendus de Olga, Ma-
cha, Irina e Andrei; um lugar parado, onde estão inseridos con-
tra vontade e se sentem desterrados, deslocados, enfim, um
espaço que lhes causa a sensação de não pertencimento, de
serem estranhos e até estrangeiros em seu país. Trata-se de
um local, para eles, desprovido de positividade, destituído de
sentido, como evidenciam os seguintes dizeres de Macha: “E
tudo é tão vazio e calmo que nos acreditamos em um deserto.
Vou-me embora.”38 Por consequência, a Moscou imperial, idea-
lizada por esses irmãos, torna-se seu locus amoenus, lugar de
nostalgia e sonho, um paraíso perdido, no qual eles projetam
e concentram suas ilusões. Inclusive, Irina clama por Moscou,
o que nos recorda o provérbio russo: “É bom onde não esta-
mos”.39 Vejamos:
OLGA: - Um único sonho cresceu em mim e acabou por
tornar-me inteira...
IRINA: - Já sei: partir para Moscou... Vender a casa, acabar
com tudo aqui e partir...
OLGA: - Sim! E bem depressa. Voltar para Moscou.
IRINA: (só, tomada de nostalgia) Moscou! Moscou!40

35 Apud SCHNAIDERMAN, 1971, p. 147.


36 Ver ALTMAN, Max. Hoje na história (1904): morre o escritor russo Anton Tchekhov. In.
Opera Mundi. Disponível em https://operamundi.uol.com.br/historia/30008/hoje-na-historia-
-1904-morre-o-escritor-russo-anton-tchekhov. Acesso em 28/04/2020.
37 Ver VÁSSINA, Elena. Anton Pavlovitch Tchekhov. In. Revista Cult. Disponível em: https://
revistacult.uol.com.br/home/anton-pavlovitch-tchekhov. Acesso em 28/04/2020.
38 TCHEKHOV, 1976, p. 18.
39 Ver TCHEKHOV, Anton. O beijo e outras histórias. In. As três irmãs & Contos. Trad. Maria
Jacintha e Boris Schnaiderman. São Paulo: Círculo do Livro, 1997, p. 170.
40 TCHEKHOV, 1976, p. 11.

156
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

Numa relação análoga ao locus amoenus e ao locus horren-


dus, a atitude de tais personagens nos remete aos conceitos
freudianos de Eros e Tânatos.41 Recordemos que a época do
Impressionismo é a mesma em que o neurologista austríaco
cria a Psicanálise. Então, vemos que a província, nessa situa-
ção inóspita e distópica, é um indesejado ambiente geográfico,
associado a um presente desventurado. Semelhante ambien-
te, ao qual os Prosorov atribuem seus infortúnios, correspon-
de, pela mesquinhez e apatia de seu cotidiano, ao espaço de
Tânatos, das pulsões de morte, visto que a mesmice, a repeti-
ção e a permanência de valores, numa existência mecânica,
sugestionam, inclusive, a autodestruição:
IRINA: (dominando-se) - Tenho o cérebro ressecado, ema-
greci, enfeei, envelheci e nada (...). O tempo passa e sempre
me parece que nos estamos afastando da vida verdadeira e
bela... que nos afastamos cada vez mais, atraídos para não
sei que abismo. Estou desesperada... Não sei como ainda es-
tou viva... Não compreendo por que ainda não me matei...42
Na condição de espaço de Tânatos, a província faz dos mem-
bros da família Prosorov criaturas como que enterradas vivas,
pois não lhes oferece nem o suficiente para desenvolverem
sua inteligência e sensibilidade, para vivenciarem maiores
experiências. Eles são criados por um pai viúvo que lhes pro-
porciona apurada educação. Porém, onde habitam, a forma-
ção recebida não possui nenhuma serventia: “MACHA: - Nesta
cidade, conhecer três línguas é um luxo inútil. Mais do que
luxo, é um apêndice inútil, qualquer coisa assim como um sex-
to dedo.”43 Já a longínqua capital representa para a família o
espaço de Eros, das pulsões de amor, de ação, de movimento,
de vida, enfim.44 Mais que um lugar, Moscou é a dimensão de
um passado venturoso, um pretérito perfeito, pleno da joie de
vivre dos impressionistas. Isso porque os Prosorov, quando se
41 Eros é a pulsão de vida e sexualidade, voltada para a autoconservação, e Tânatos é a
pulsão de morte, orientada para o retorno ao estado inanimado. Ver FREUD, Sigmund. Além
do princípio de prazer. In. Obras psicológicas completas. Trad. José Octávio de A. Abreu. Rio
de Janeiro: Imago, 1969, p. 13-88.
42 TCHEKHOV, 1976, p. 10-11.
43 Ibidem, p. 33.
44 Ver FISCHER, 2020, s.n.

157
Hugo Lenes Menezes

lembram de sua cidade de nascimento e infância, inundam-se


de energia vital:
VERCHININ: - Meu nome é Aleksandr Ignatievitch...
IRINA: - Aleksandr Ignatievitch, vindo de Moscou... Que
surpresa!
OLGA: - E nós nos mudaremos para Moscou.
IRINA: - Desejamos já estar lá no próximo outono. É nossa
cidade, nascemos lá... Rua Velha Basmannaia... (Ambos
riem, felizes).
MACHA: - Elas estão encantadas por verem um conterrâ-
neo. (Vivamente) Ah! Já estou me lembrando! Lembras-te,
Olga? Diziam, em nossa casa: “o comandante amoroso”. O
senhor era tenente, e estava apaixonado.45
Do princípio ao final do drama em causa, o estilo impres-
sionista perpassa-lhes as cenas. Tomemos, pois, a título de
exemplo e ponto de partida, as duas falas iniciais de Olga no
primeiro ato, com vistas a levantarmos traços de semelhan-
te estilo entre os Prosorov. Em paralelo ao transcurso da data
natalícia de Irina, sua irmã mais velha exprime um estado de
alma em festivo dia atual de primavera, enquanto temporali-
dade teatral que simboliza o fim do luto pelo falecimento do
pai da família, além de representar a expectativa ou esperan-
ça, o renascimento da natureza e das próprias personagens.
Vejamos:
OLGA: - Faz hoje exatamente um ano que papai morreu: dia
cinco de maio... Dia de teu aniversario, Irina. Um dia tão
frio... Nevava. Eu temia que não sobrevivesses. E tu estavas
estendida como morta... No entanto, passa-se um ano ape-
nas e nós nos lembramos dele com calma, e tu estás aí, ves-
tida de branco, resplandecente. (O relógio soa dez horas).
Naquele dia, o relógio também soou assim, como agora.
Recordo-me de quando levaram seu caixão: houve música
e salvas de tiros no cemitério. Ele era general e comandava
uma brigada. Mas não houve muita gente em seu enterro. É
verdade que chovia... Chovia a cântaros e havia muita neve.
IRINA: - Não penses mais nisso! (Além das colunas, na sala,
perto da mesa, aparece o barão Tusenbach, Tchebutykin e
Solioni).

45 TCHEKHOV, 1976, p. 24.

158
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

OLGA: - Hoje não está chovendo. Podemos deixar as janelas


abertas. Mas as bétulas ainda não floresceram. Papai havia
recebido o comando da brigada daqui e deixara Moscou
conosco. Há onze anos... Eu me lembro muito bem de que,
nos começos de maio, nessa época, Moscou já estava toda
coberta de flores. E não chovia. E havia sol. Já se passaram
onze anos, mas eu me lembro de tudo, como se fosse on-
tem. Meu Deus! Essa manhã despertei, vi todas essas luzes,
senti a primavera e a alegria estourou em meu coração, e eu
apaixonadamente tive vontade de voltar para nossa casa,
para nossa terra natal.46
Encontramo-nos diante da passagem em que o dramatur-
go nos apresenta Olga recordando um fato (a morte do pai).
E toda a paisagem que desfila naquele momento diante dos
olhos dela lhe parece de uma alegria bastante animadora. Na
atualidade, ou tempo da representação, um ano depois do inci-
dente lembrado, toda aquela matéria de memória se torna tão
encantadora que gera uma recordação dentro de outra. Acima,
em termos de composição dramatúrgica, temos em destaque
uma figura feminina em ação. Entretanto, o que na verdade
aparece em valorização são as impressões do ser ficcional.
As falas de tal figura desenvolvem-se em três faixas de tem-
po: o presente, em que ela recorda; o tempo da recordação e a
recordação de fatos anteriores. Atentemos para o uso acentua-
do de verbos nos pretéritos perfeito e imperfeito do indicativo
para dar ao leitor/espectador a impressão de estar assistindo
ao que é descrito. E o que nos parece ainda mais importante,
na fala de Olga, é que a valorização dos incidentes decorre da
situação do momento vivido, da duração interior, bergsoniana.
Há no diálogo citado anteriormente uma plasticidade na
linguagem, uma luminosidade paisagística e um colorido vi-
brante, o que acentua a atmosfera geral, inicialmente sombria,
e prepara a sensação de Olga imergir em si mesma e reen-
contrar, numa atitude proustiana, a alegria vivenciada outrora.
Essa tendência descritiva para o luminoso e o colorido, que
confere o tom peculiar da imagem impressionista, aparece
na peça em questão desde sua rubrica de abertura: “Meio-dia.

46 Ibidem, p. 10.

159
Hugo Lenes Menezes

Claridade de sol (...). Olga, com o uniforme azul dos professores


de liceu para moças, corrige, sem se deter, cadernos escolares,
de pé e passeando.”47 E a linguagem de As três irmãs, pela ex-
pressividade das figuras verbais, desenvolve a escrita artística
do Impressionismo literário. Eis uma ilustração:
VERCHININ: (passeando pela sala) - Muitas vezes penso: E
se recomeçássemos a vida, dessa vez conscientemente? Se
vivêssemos uma vida como quem faz um rascunho, e pu-
déssemos vivê-la de novo passada a limpo. Então, cada um
de nós teria sobretudo tentado não se repetir e tentado criar
condições de vida diferentes, uma casa florida, como essa,
cheia de claridade.48
Nessa esfera, um paisagista de um Impressionismo avant la
lettre,49 pelo tratamento da cor; pela criação ao ar livre e alte-
rações nos motivos conforme condições da natureza: névoa,
chuva, sol e umidade, o pintor romântico Constable, também
literato, agradece, à maravilhosa abóboda celeste de seu vila-
rejo inglês, a decisão de se tornar pintor e fica famoso, em es-
pecial, pela força e emoção da trabalhada luminosidade dos
céus de suas telas. Igualmente, na França impressionista, é
fato que seus artistas, particularmente os pintores, buscam
muitas vezes o céu de Paris e o ambiente onde o rio Sena ga-
nha a beleza adicional dos barcos a vela. E, no fragmento a
seguir, personificada em Irina e como que concedendo “um
papel ativo aos elementos plásticos”,50 temos uma espécie de
imagem de um quadro em aquarela dessa tendência estética:
“- Diga-me por que me sinto tão feliz hoje. Como se eu tivesse
velas como um barco e, sobre mim, se estendesse um imenso
céu azul, cheio de pássaros brancos. Por quê? Por quê?”51
Como dissemos, no Impressionismo, a importância maior é
dada às emoções despertadas pela realidade no espírito. De
onde os artistas buscarem a sensação do fluir de tudo no prin-
cipal motivo do teatro de Tchekhov: o tempo. Assim, um dos
47 Ibidem, p. 9.
48 Ibidem, p. 35.
49 Expressão do francês, que significa “antes do termo existir.”
50 NASCIMENTO, 2019, p. 85.
51 TCHEKHOV, 1976, p. 14.

160
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

temas prediletos deles é, com a corrente heraclitiana e o jogo


de reflexos, a água. Tal ocorre desde a obra inaugural do mo-
vimento em tela, a saber, o quadro de Monet Impressão, sol
levante, que mostra reflexos solares mutantes nessa mesma
água. Semelhante aspecto podemos observar mediante uma
fala da personagem Verchinin: “- Por uns tempos, morei na
Rua Alemã. Dessa rua, saía para a caserna. No caminho há
uma ponte lúgubre. Ouve-se o barulho da água sob a ponte.
Um homem solitário torna-se triste passando por lá.”52
Tais impressões humanas acontecem, também, com uma
chuva a cair sobre um jardim, motivo insistente de éden per-
dido, como o jardim das cerejeiras, em Tchekhov, que retoma,
além dos mencionados reflexos da luz na água, outros ele-
mentos caros aos impressionistas de diversas artes, como as
vibrações sonoras e o vento. Cabe-nos então mencionar que o
quarto ato de As três irmãs abre-se com uma rubrica da qual
retiramos umas linhas pertinentes: “O velho jardim em torno
da casa dos Prosorov. Uma longa aleia de pinheiros, em cuja
extremidade vê-se um rio. Além do rio, a floresta. (...) Meio-dia.
Veem-se, de quando em quando, transeuntes que vão da rua
ao rio.”53
Nessa ambiência de criaturas embriagadas de recordações,
numa prisão mental e acuadas por um mundo em transforma-
ção, registramos o que George Poulet diz ser uma lembrança,
identificada com incidentes percebidos no passado e a partir
de um sabor, de um odor, de uma cor, de um barulho de sinos
etc., ou seja, um grande movimento de reminiscência.54 E, nas
palavras seguintes, pronunciadas por Macha, vemos irromper
da memória uma imagem-lembrança suscitada pelos sen-
tidos, que é um forte traço da ficção impressionista: “- Como
esse vento soprou na chaminé! Pouco antes da morte de meu
pai, o vento gemeu assim, na chaminé. Exatamente como ho-
je”.55

52 TCHEKHOV, 1976, p. 25-26.


53 Ibidem, p. 89.
54 Ver POULET, Georges. O espaço proustiano. Trad. Ana Luiza B. Martins Costa. Rio de
Janeiro: Imago, 1992, p. 57.
55 TCHEKHOV, 1976, p. 59.

161
Hugo Lenes Menezes

O tempo e a solidão pesam sobre os Prosorov, personagens


marcadas pela duração interior, que salienta sua angústia, con-
forme verificamos numa das falas de Olga: “(Ouve-se o repicar
dos sinos) - Essa noite envelheci dez anos.”56 Como ilustra a
rubrica, o motivo dos sinos a badalar, da mesma forma que o
da água a verter, é recorrente tanto na tradição russa quanto
nas expressões impressionistas pelo mundo, a exemplo do que
o retromencionado Poulet aponta em sua publicação O espaço
proustiano.57 Tão grande é a importância do elemento sino no
país do autor de As três irmãs, que, depois do estabelecimento
dos impressionistas, os quais não deixam de ser uns românti-
cos da natureza sob as flutuações da luz, Sergei Rachmaninoff,
músico russo tardo-romântico, faz canções com base em pe-
ças também de Tchekhov e compõe uma exitosa sinfonia sob
o título de Os carrilhões (1913), em cuja elaboração ele usa som
de sinos. Esses, como acontece na Igreja Católica Romana, são
considerados, pela Igreja Ortodoxa Russa, peças sagradas, que
anunciam o rito litúrgico e o toque das Ave-Marias ou da Hora
do Angelus, representado em 1858 num quadro homônimo de
Millet, cujo entardecer vai se transformar no “amanhecer do
Impressionismo, pois é nesse quadro, como também nas úl-
timas telas de Corot, que achamos os mais imediatos antece-
dentes da pintura impressionista.”58
Ademais, os títulos “Sinos pela folhagem”, “Reflexos n’água”
e “Jardins na chuva”, de obras de Debussy, o maior represen-
tante musical do Impressionismo, demonstram a recorrência,
nessa manifestação artística, dos dois supracitados motivos
estéticos. Esses, aliás, em 2017, numa montagem-releitura de
As três irmãs pela companhia paulistana Estúdio Lusco-Fus-
co, que une ficção, neurociência e memória, surgem, num mo-
saico experimentalista teatral, como a joie de vivre dos im-
pressionistas, vibrando respectivamente em poças d’água e
toques de sinos, os quais Tchekhov, que na infância é obrigado

56 Ibidem, p. 97.
57 Os nostálgicos russos conservam no Kremlin o imemorial Sino do Czar, ou Sino Real,
cuja lingueta exterior necessita de 24 pessoas para movimentar-se. Maior do mundo, data
do século XVIII, quando se produzem enormes artefatos do gênero, exibidos em Moscou.
58 BALZI, 1992, p. 22.

162
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

a cantar na Igreja Ortodoxa Russa, aprecia ouvir como única


remanescência de sua religiosidade.59
Em As três irmãs, localizamos várias referências ao motivo
impressionista sino. Um dos destaques vai para o terceiro ato,
em cuja rubrica de abertura é informada a ocorrência de um
incêndio na cidade. De vez em quando, soa o badalar de um
sino a toque redobrado, que chega de um templo cristão nas
imediações da casa dos Prosorov, anunciando o incidente com
o fogo, o qual é um agente de transformação. E semelhante
fato, dentro da referida dicotomia de Eros e Tânatos, encara-
mos, em oposição à morte interior das principais figuras da
peça, como uma aproximação à vida, num abalo daquele uni-
verso onde nada costuma suceder. De acordo com Tiezza Tissi
Barbosa: “Em uma estrutura dramática em que as persona-
gens não têm o poder da ação, o mundo é que muda à sua volta,
obrigando-as a se readaptarem.”60 Outro destaque no tocante
ao motivo sino diz respeito à alegoria em que Macha o utiliza
para traduzir a situação de seu irmão Andrei:
MACHA: (Olha Andrei que passa, sempre empurrando o car-
rinho de criança.) - Repare no nosso Andrei, nosso irmão...
Tanta esperança perdida... Milhares de homens levantavam
um sino... e nisso puseram muito trabalho e muito dinheiro...
De repente, o sino cai e se quebra. De repente, sem qualquer
razão visível... Assim, Andrei...61
Numa situação típica da ficção impressionista, o dra-
ma As três irmãs mostra na casa dos Prosorov um rico espa-
ço estético-cultural, que funciona como uma ilha de erudição,
um atenuante à mediocridade da existência cotidiana. Eis, a
título de exemplificação, uma rubrica com indicação de músi-
ca de registro alto (no texto deparamos com muitas) e o pos-
terior diálogo entre Macha e Irina: “(Ouve-se um violino que
está fora de cena) MACHA: - É Andrei, nosso irmão, que está
tocando. IRINA: - É o sábio da família. Terá um dia uma cátedra

59 Ver BARBOSA, Tieza Tissi. As partituras de Stanislavski para As três irmãs, de Tchekhov:
tradução e análise da composição espacial da encenação. Tese de Doutorado. São Paulo:
Universidade de São Paulo (USP), 2012, p. 66.
60 BARBOSA, 2012, p. 65.
61 TCHEKHOV, 1976, p. 95.

163
Hugo Lenes Menezes

na universidade. Papai era militar e seu filho escolheu ser um


sábio.”62 Do teatro impressionista em apreço, quatro das perso-
nagens masculinas, os oficiais Verchinin, Solioni, Tchebuty-
kin e Tusenbach, agem como um coro da tragédia grega, cujos
integrantes analisam o drama dos Prosorov. Enquanto Olga,
Macha e Irina passam os dias entregues a fantasias, mesclan-
do passado e futuro, em meio a esperanças inúteis, os oficiais
as alertam sobre sua alienação. Quando Olga fala para Irina
que elas vão voltar para Moscou, Tchebutykin e Tusenbach
riem, cientes de que isso não vai acontecer, pois os Prosorov
nada fazem para vencer a inércia da vida:
MACHA: - Feliz aquele que nunca repara se está no inverno
ou no verão. Eu, se estivesse em Moscou, ficaria indiferente
a qualquer estação.
VERCHININ: - Vocês não repararão em Moscou, quando fo-
rem lá. Não somos felizes, a felicidade não existe e o máximo
que podemos fazer é desejá-la.63
No texto em análise, aos meios-tons, ao cambiante das co-
res, correspondem, numa pulverização impressionista, os
meios-tons da vida das personagens. Mesmo porque o indi-
reto, o fugidio, a impressão, a sugestão, o discurso elíptico e
reticente, as sutilezas da linguagem, e até o silêncio (em As
três irmãs, constatamos mais de vinte rubricas com essa indi-
cação) pertencem à essência dramática de Tchekhov. De onde
a presença, em suas composições teatrais, do aludido subtex-
to, ou, na expressão do simbolista Maeterlinck, de um “diálogo
de segundo grau.”64
Para esse último, que fala diretamente às almas, a produ-
ção tchekhoviana nos remete, ao revelar nas entrelinhas a
intenção subliminar que as palavras ocultam ou mascaram:
“Os diálogos tradicionais cedem lugar a monólogos paralelos.
Neles, cada um deixa entrever, de quando em quando, suas
mágoas ou desejos mais profundos.”65 Em vez de expressarem

62 Ibidem, p. 29.
63 Ibidem, p. 29.
64 Apud MONTEIRO, 2010, p. 275.
65 ANÔNIMO, 1976, p. XVII.

164
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

sentimentos, as palavras os dissimulam, o que caracteriza um


deslocamento entre as situações e os seres de ficção, que se
lançam a uma argumentação inconsequente. Aqui, “as perso-
nagens examinam os recursos da fala para encontrar frestas
por onde possam escapar de suas verdades.”66 Para isso, recor-
rem ao silencio ou a frivolidades:
ANDREI: - Por que não dizes nada, Ólia? (pausa) Já é tempo
de esquecemos essas bobagens e de não andarmos brigando
por tudo, sem razão... Macha está aqui... Irina também... Ex-
pliquemo-nos de uma vez por todas... Que têm vocês contra
mim?
OLGA: - Vamos deixar isso, Andriúcha. Amanhã nos explica-
remos. (Com agitação) Que noite horrível!
ANDREI: (muito constrangido) - Acalma-te. Estou perfeita-
mente tranquilo... Apenas pergunto, o que é que têm contra
mim? Digam claramente.
VOZ DE VERCHININ: - Ta-ra-ta! MACHA: (levantando-se, com
voz forte). - Ta-ra-tam. (A Olga) Adeus, Ólia. Que Deus te pro-
teja. (Vai atrás do biombo e beija Irina) Dorme bem... Adeus.
OLGA: - É verdade, Andriúcha. Deixemos isso para amanhã...
(vai para trás do biombo) Já está na hora de dormir.67
Tal é o grande aprendizado que Tchekhov obtém de Shakes-
peare: criar figuras dramáticas as quais não se dispõem a ou-
vir seu interlocutor, em meio a uma diversidade de linguagens,
inclusive a não verbal, como o riso, e de falas, como que banais.
Diálogos de surdos, embates monológicos e um solipsismo ad-
mirável caracterizam as personagens de Tchekhov. Entretan-
to, todas as aparentes futilidades de discurso são desnudadas,
quadro a quadro, para revelar os questionamentos existenciais
que constituem a desdita de cada um. A propósito, Tieza Tissi
Barbosa nota que:
Em meio a um grande monólogo de Verchinin sobre a
passagem do tempo, Macha ri e Tusenbach lhe pergunta: “o
que há?” Ela responde: “Não sei. Hoje estou rindo o dia todo,
desde manhã”. O encenador Stanislavski propõe, então, um
poema visual, até mesmo sinestésico, que dilata e prolonga o
estado de espírito de Macha para além de sua fala (...), rever-

66 BRADBURY; MCFARLANE, 1989, p. 418.


67 TCHEKHOV, 1976, p. 114-115.

165
Hugo Lenes Menezes

berando na continuação da cena, quando Verchinin voltará


a filosofar. (...) A fala de Macha é muito discreta. Rindo, ela
foge do assunto em pauta (...). Esse estado não é simples de
se contornar, é desenhado de forma impressionista. Macha
está prestes a chorar (de acordo com o encenador) e ri. (...)
Stanislavski cria inúmeros poemas cênicos, servindo-se de
uma rigorosa composição de luz, de sons e silêncios, gestos,
movimentos, objetos.68
Os quadros-poemas cênico-visuais de semelhante encena-
dor russo nos remetem à fotografia, cujo surgimento, como
novo método de captação de certo instante, constitui uma das
fontes do Impressionismo, conforme dissemos na primeira
parte de nosso artigo. Depois, outro encenador, o inglês Peter
Brook, em montagem sua do drama O jardim das cerejeiras,
em 1981, para promover efeitos pictóricos, utiliza igual moda-
lidade de transposição, notável para o teatro, como realização
de cenas imóveis ou cinéticas, que insinuam pinturas ou foto-
grafias. E, pertinentemente, a mesma retromencionada Tieza
Tissi Barbosa, no tópico “Existe o tempo”, de sua dissertação
de mestrado, ressalta, no viés da memória, que:
Tchekhov inicia o quarto (e último) ato com despedidas no
terraço. (O encenador) Stanislavski inicia com o zelador e o
ordenança trazendo um baú com a mudança de Tchebouty-
kin. Depois saem para pegar outra arca. (...) As despedidas
vêm em seguida com a entrada de dois oficiais, também do
pequeno círculo da nobreza na casa dos Prosorov: os subte-
nentes Aleksei Fedotik e Vladimir Rodé, que se beijam, abra-
çam e tiram fotos. A fotografia eterniza o momento, ou pode
sempre ressuscitá-lo à lembrança. Esse ato é atravessado
pela impressão de suspensão do tempo. (...) Stanislavski re-
força essas marcas de tempo (...). É necessário traduzir as
linhas literárias de Tchekhov em imagens visuais e sonoras;
o espectador deve ver, de uma só vez, aquilo que o leitor pode
apreender, demorando-se mais ou mesmo, voltando um tre-
cho na obra literária.69
A peça As três irmãs é uma obra em que o tempo pretérito
assume feições de realidade, porquanto é o drama de indiví-
duos que tentam alucinadamente reencontrar, numa atitude

68 BARBOSA, 2012, p. 46-47.


69 Ibidem, p. 72.

166
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

impressionista, mais exatamente proustiana, um tempo (a


infância) e um espaço (Moscou). Em outros termos, todos os
membros da família Prosorov são sinônimos do que já é pas-
sado. Como assinala Gilda de Mello e Souza: “O seu tema é ir
para Moscou, ou melhor, voltar para Moscou, rever lugares an-
tigos em que moraram, as ruas de que ainda guardam os no-
mes. Moscou é o tema da memória e do passado.”70 Tudo isso
vemos como que num “quadro impressionista”, constituído
por uma “galeria de vencidos.”71 Mas agora, tais desejos estão
para sempre perdidos: “perdidos um como o outro, da mesma
forma, perdidos como quem se perdeu e busca o caminho.”72
Em semelhante direção e numa demonstração de caracte-
rística do Impressionismo, Macha capta a passagem do tem-
po por meio de um fenômeno da natureza, o deslocamento de
aves, típico de uma estação do ano, e diz, ao chegar o outono:
“A neve pode cair a qualquer momento... Os pássaros já come-
çam a emigrar...”73 Essa fala indica que os pássaros de arriba-
ção carregam com eles todos os sonhos e expectativas dos
Prosorov. E assim a peça caminha para seu final, que ratifica a
inação revelada, nos três atos anteriores, por todos os irmãos,
os quais:
(...) vão sendo tragados pelo tempo morto do qual tentam
fugir. Irina e Olga se enredam num cotidiano de trabalho em
que não se satisfazem (...). (A caçula) perde a única possi-
bilidade de casamento que havia sido desenhada para ela;
Andrei é cada vez mais infeliz em um casamento falido (...)
e termina deprimido em trabalho sem sentido, totalmente
diverso do futuro que havia projetado para si quando jovem;
Macha perde a oportunidade de um novo amor e volta à vida
rotineira com o marido – todos, no final das contas, não vão
a Moscou.74
..............

70 MELLO E SOUZA, 1956, s.n.


71 Ibidem, s.n.
72 POULET, 1992, p. 17.
73 TCHEKHOV, 1976, p. 97.
74 NASCIMENTO, 2019, p. 23.

167
Hugo Lenes Menezes

E o último ato, ambientado no “velho jardim dos Prozorov,”


é uma combinação de comentário trágico e irônico aos acon-
tecimentos. Ao mesmo tempo em que é palco da partida dos
militares – a (impressionista) “longa alameda de abetos”75
compõe uma linha ampla, simbolizando a estrada para o fu-
turo que se abre para os que partem – é também metáfora
do processo de expulsão das irmãs de seu próprio espaço,
de sua intimidade, de seus antigos sonhos e projetos. Olga já
havia perdido seu quarto e agora Natacha, em seu animales-
co domínio do espaço e do tempo presente, faz planos para
o quarto de Irina.76
Sob o ponto de vista da arte do Impressionismo e seu moti-
vo condutor do fluir do tempo, as palavras finais de Olga ex-
primem um murmúrio de resignação, cujo sentido essencial
equivale a dizer: Nada podemos fazer, a não ser continuar vi-
vendo na sucessão de dias e noites. E mesmo que tal fala de
Olga contenha esperança, essa se volta para um longínquo fu-
turo, para os que ainda hão de vir, pois nossa professora enten-
de que seu destino e dos irmãos consiste somente em deixar
que a existência siga. Muitos anos se passam e cada vez mais
os Prozorov se acham sorvidos pela comunidade local. No der-
radeiro tableau, em que Olga, Macha e Irina se abraçam, ago-
niadas por saber sua razão de vida e sofrimento, igualmente
agoniadas por não saber o que vai ser delas, semelhante ma-
nifestação de afeto familiar gera:
(...) a ilusão de um corpo unificado, (...) de modo que a ex-
clamação de Olga tem inevitável ressonância coral: “Vivere-
mos.”77
..............

O discurso de Olga (...) fala do tempo que passa inexorável,


da certeza de que a vida não chegou ao fim, de que morre-
rão no futuro e serão esquecidas. Ela sabe que “as pessoas
lembrarão com gratidão daqueles que vivem agora.” Serão
esquecidas e, ao mesmo tempo, lembradas? (...) Em verdade,
a personagem parece lutar internamente para se assegurar

75 O motivo da árvore de abeto é pintado por artistas pós-impressionistas como Van Gogh.
76 NASCIMENTO, 2019, p. 89.
77 Ibidem, p. 150.

168
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

de que nem tudo o que viveram foi em vão, mas oscila entre a
certeza e a possibilidade (...). Logo em seguida, a já conheci-
da fala que encerra a peça traz a locução conjuntiva “se pelo
menos”, que pode expressar uma condição irreal ou um pe-
dido: “Se pelo menos nós soubéssemos, se pelo menos sou-
béssemos!” É assim, em tal ambiguidade, entre a condição e
o pedido, entre a hesitação e a certeza, que oscila Olga nas
últimas falas de As três irmãs.78
E do mesmo modo que, ciclicamente, a existência se esvai
e nada no mundo se altera, a produção As três irmãs, como é
típico da dramaturgia tchekhoviana, revela-se anticlimática e
não tem desenlace. Seu entrecho se inicia em dia claro de uma
estação de transição (a primavera) e se encerra, sem surpresa
ou qualquer efeito especial, numa noite da estação homóloga
(o outono), início de outro ciclo, visto ser essa ação teatral ape-
nas uma parcela da realidade, uma fatia da vida:
Assim como o pintor impressionista Degas desloca par-
tes importantes da representação para a margem da tela, e
faz com que a moldura se lhes sobreponha em parte, tam-
bém Tchekhov termina suas peças (em aberto) com uma
anacruse,79 a fim de suscitar a impressão de inconclusivida-
de, precipitação e desfecho casual e arbitrário.80
Por seu turno, Priscilla Herrerias ressalta: “Tchekhov prolon-
ga suas obras (...) e reforça a ideia de que a vida continua e a
rotina das personagens foi alterada por certo período.”81 E ao
não apresentar um fim absoluto, coincidente com o da peça,
o último ato de As três irmãs, passado na estação de transi-
ção do outono, o qual se associa à incerteza das personagens
quanto a seu futuro, evoca o fluxo existencial, que vai além
dos fatos de um enredo pleno de nuances, numa suspensão a
ser preenchida pelos receptores. Tal aspecto, como decorrên-
cia da abordagem impressionista, é sublinhado por Guinsburg,
que nos fala de uma:

78 Ibidem, p. 160.
79 Nota ou notas que preparam o tempo forte de um ritmo, significando prelúdio no grego.
Ver MED, Bohumil. Teoria da música. Brasília: Musimed, 1996.
80 HAUSER, 1995, p. 936.
81 HERRERIAS, 2010, p. 65.

169
Hugo Lenes Menezes

(...) extraordinária capacidade tchekhoviana de ocultar o


sentido, deixando ao leitor e/ou espectador a tarefa de che-
gar às conclusões (...). Pintura dramática feita como que por
manchas de coloração, sem traços de contorno muito níti-
dos, ela se compõe através dos claros abertos que são verda-
deiros campos de sugestão.82
Aliás, no contexto mais amplo do Impressionismo, sons, mo-
vimentos, vocábulos, formas com volumes, imagens estáticas
ou cinéticas e espaços, todos expressam sensações humanas.
O músico, o coreógrafo, o poeta, o prosador narrativo ou dra-
mático, o escultor e o cineasta “pintam” o que apreendem da
natureza; o pintor sugere a música e outras expressões de to-
dos os entes. E a obra As três irmãs constitui uma espécie de
retrato impressionista da melancolia da existência na provín-
cia, a qual funciona como moldura e ponto de partida para a
compreensão da ação dramática. Mas ali, Tchekhov, de reco-
nhecido pendor descritivo também em suas rubricas,83 não só
traça, mediante as palavras, um retrato, como também auscul-
ta o cômico e o trágico, as miudezas terríveis em que tal vida
doméstica insiste em se converter, flagrando seus quadrantes
entre o jardim e o fumegante samovar.84 Vejamos, então, do
drama em apreço, que associa arte dramática e pintura, alguns
instantes finais, envoltos por sensações de música que colo-
rem o diálogo: “OLGA: (abraçando suas duas irmãs) - Minhas
queridas irmãs, nossa vida ainda não terminou. Viveremos. A
música é tão alegre, tão comunicativa (...). A música é tão ale-
gre, tão viva... (A música se afasta...)”85
No caso presente de um artigo sobre As três irmãs, cumpre-
-nos referir que a música, precisamente a impressionista, com
rápidas notações sugestivas, se propõe a delinear imagens ou,
como interpretamos as cenas do texto tchekhoviano, delinear
Retratos da vida, título no Brasil de uma película de 1981, diri-

82 GUINSBURG, 2006, p. 90.


83 Tal pendor tchekhoviano é “logo transformado por Stanislavski em um ateliê de minú-
cias”. Ver NASCIMENTO, 2019, p. 85.
84 Utensílio doméstico de origem russa, utilizado para aquecer água e servir chá, muito
apreciado pelos czares.
85 TCHEKHOV, 1976, p. 117.

170
Retratos da vida: Uma visada sobre o Impressionismo

gida pelo cineasta Claude Lelouch. Esse decalca para a grande


tela a já mencionada e célebre partitura denominada Bolero.
Inspirada na atriz e dançarina russa Ida Rubinstein, recriada
num quadro homônimo de 1910 por um impressionista, o tam-
bém russo Valentin Serov, que igualmente pinta Tchekhov em
1903, tal composição de Ravel, quando ouvida, costuma nos re-
meter imediatamente ao drama musical fílmico Retratos da
vida.

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171
Hugo Lenes Menezes

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Recebido: em 01/02/2019
Aceito: em 13/05/2020
Publicado: em junho de 2020

172
“Um Tchékhov tal, que
nunca havíamos visto antes!”:
ecos tchekhovianos pós-soviéticos1

Cássia Regina Marconi Marcançoli*

Resumo: o presente artigo busca refletir Abstract: this article seeks to reflect
sobre as releituras dramatúrgicas on dramaturgical reinterpretations of
de peças de Anton Tchékhov (1860- plays by Anton Chekhov (1860-1904)
1904) feitas por dramaturgos by contemporary Russian playwrights,
russos contemporâneos, como such as Alexey Slapovsky (1957-),
Alekséi Slapóvski (1957-), Liudmila Lyudmila Petrushevskaya (1938-), Viktor
Petruchévskaia (1938-), Viktor Slavkin (1935-2014) and others. Such
Slávkin (1935-2014) e outros. Tais reinterpretations arose mainly at the
releituras surgiram principalmente time of Perestroika and the fall of the
na época da Perestróika e após a USSR, a period in which several scenic
dissolução da URSS, período em que reinterpretations of the Chekhovian
diversas releituras cênicas das peças plays had already been done by Russian
tchekhovianas já haviam sido feitas directors as well as European, American
tanto por diretores russos como por and Brazilian directors.
diretores europeus, norte-americanos e
brasileiros.

Palavras-chave: Teatro russo; Dramaturgia; Anton Tchékhov; Alekséi Slapóvski;


Dramaturgia contemporânea
Keywords: Russian theater; Dramaturgy; Anton Chekhov; Alexey Slapovsky; Con-
temporary dramaturgy

173
Cássia Regina Marconi Marcançoli

Naturalmente, vão ficar ofendidos se eu lhes disser:


1

- Vocês não conhecem Tchékhov!


- Tchékhov?2
(Vladímir Maiakóvski)

*
Pesquisadora na área de Litera- Em seu artigo sobre a icônica encenação stanislavskiana de
tura e Cultura Russa e doutoranda
As três irmãs pelo Teatro de Arte de Moscou (TAM) em 1901,3
do programa LETRA – Letras
Estrangeiras e Tradução, do De- Nick Worrall especula sobre os motivos de não haver monta-
partamento de Letras Modernas gens expressivas das peças de Anton Tchékhov (1860-1904)
(DLM) da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da no período entre 1904, ano da morte do famoso dramaturgo
USP (FFLCH-USP). nascido em Taganrog, quando suas peças maiores4 já haviam
E-mail: cassiamarconi@yahoo.
com.br https://orcid.org/0000-
sido encenadas pelo TAM, e 1940, quando Vladímir Ivánovitch
0003-1734-1787 Nemirovitch-Dántchenko (1858-1943) montou As três irmãs,
já no período soviético e após a morte do mestre Konstantin
Stanislávski (1863-1938). Neste mesmo período, as peças de
Tchékhov continuavam sendo encenadas em larga escala na
Europa Ocidental, bem como nos EUA. Worrall aposta que um
dos grandes motivos para esse hiato tchekhoviano nos pal-
cos russos durante os primeiros quarenta anos do século XX
deveu-se ao grande impacto causado pela Revolução Russa,
que disseminou na Rússia a noção do “universo a-trágico onde
o ser humano poderia intervir expressivamente em seu pró-
prio destino”.5 O fato de as peças tchekhovianas estarem cada
vez mais presentes nos palcos europeus e americanos e cada
vez mais ausentes dos palcos russos é reflexo também do in-
teresse dos primeiros pelas “ideologias do pessimismo” e da
disseminação de uma ideologia otimista na Rússia soviética.
Ora, no homo sovieticus ativo, atlético, trabalhador e heroico
não cabiam passivos, contemplativos e indolentes tios Vânia,

1
Citação da peça O jubileu, 1993, de Vladímir Sorókin.
2
MAIAKÓVSKI, 1984, p. 139.
3
WORRALL, 1990, p. 1-32.
4
As peças maiores de Tchékhov são: A gaivota (Чайка, 1896), O tio Vânia (Дядя Ваня,
1898), As três irmãs (Tri sestry, 1901), e O jardim das cerejeiras (Vichnióvyi sad, 1904).
Algumas vezes, Ivánov (1887) também aparece nesta lista.
5
Ibidem, p.1.

174
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

Ivánovs, Machas, Irinas, Liubas, Ninas e Trepliovs. Talvez cou-


bessem Lopákhins no homo sovieticus, mas Liubas, não.
Encenações de Tchékhov além-Rússia iam surgindo confor-
me o TAM realizava suas turnês mundo afora.6 E podemos ve-
rificar que, apenas anos depois da encenação de As três irmãs
por Nemirovitch-Dantchenko, em 1940, importantes monta-
gens das peças tchekhovianas foram realizadas internacio-
nalmente. O jardim das cerejeiras, do italiano Giorgio Strehler,
em 1974, uma “verdadeira referência de revisão de leitura sta-
nislavskiana no século XX”, concebida como “três caixas chi-
nesas” que correspondiam à realidade, à história e à vida.7 A
gaivota, de Andre Gregory, levada aos palcos em 1975, em Nova
York, que, entre “músicas populares e atores vestidos com sué-
teres e calças justas”, objetivava mostrar que “não havia dife-
rença entre o teatro de vanguarda e o teatro comercial”.8 E, no
mesmo ano de 1975, também em Nova York, a mesma A gaivota
foi transformada por Joseph Chaikin e Jean-Claude Van Itallie
em uma série de workshops. No Brasil, um importante marco
inovador na forma de encenar Tchékhov se deu em 1972, quan-
do José Celso Martinez Corrêa e o seu Teatro Oficina fizeram
uma tentativa bastante significativa de “entender como o dra-
maturgo russo poderia falar de maneira direta ao público bra-
sileiro de então”.9 Baseando sua cenografia em uma mandala,
além de representar os quatro elementos da natureza (ar, água,
fogo e terra) e a passagem do tempo, representava as quatro
fases pelas quais o corpo passa (nascimento, espera, quebra e
morte) e também servia de autocrítica para os quatro últimos
anos da trupe.10 Outro diretor que “descobriu em Tchékhov um
potente leitor da contemporaneidade”11 foi Enrique Diaz, que
montou As três irmãs, em 1998. O diretor deu um “ritmo acele-

6
Rodrigo Alves do Nascimento traça um rico panorama das peças tchekhovianas na Rússia,
no Brasil e no mundo em sua dissertação de mestrado. Cf. NASCIMENTO, 2013.
7
NASCIMENTO, 2013, p.151.
8
JOHNSON, 2010, p.33.
9
NASCIMENTO, Op. cit., p.136.
10
Ibidem, p.141.
11
Ibidem, p.186.

175
Cássia Regina Marconi Marcançoli

rado às falas das personagens como se negasse a elas o direito


de elaborar suas próprias palavras”,12 mas foi em Gaivota, tema
para um conto curto, de 2007, que Diaz prescindiu do texto:
Gaivota, tema para um conto curto, pode ser considerado
momento decisivo dessa etapa de recepção do russo entre
nós. É como se também simbolizasse o alto grau de intimi-
dade alcançado entre Tchékhov e nosso teatro – tanto que
se torna possível uma encenação que prescinde do texto
(ou pelo menos do que seria sua “lógica interna”), ao mesmo
tempo que o comenta e dele depende para que o universo de
referências ganhe em profundidade.13
Voltando para a Rússia soviética, em 1965, As três irmãs, di-
rigida por Gueórgui Tovstonógov (1915-1989), “pretendia enten-
der qual a dialética entre a impiedosa crítica a um modo de
vida que se provava injusto e improdutivo e a simpatia que
Tchékhov reservava às personagens dele representantes”.14
Um período de revisão das leituras dominantes de Tchékhov
na Rússia iniciava-se então,15 e essas releituras cênicas das
peças tchekhovianas tornaram-se possíveis também por um
certo abrandamento da censura, ocasionado após denúncia
dos crimes cometidos por Josef Stálin (1878-1953) feita por
Nikita Khruschióv (1894-1971) no 20º Congresso do Partido
Comunista, em 1956.16 Seguiu-se, então, um período de experi-
mentação e ousadia no meio teatral.
Podemos observar que tanto no Brasil (antes de As três ir-
mãs do Teatro Oficina) quanto na Rússia (antes de As três ir-
mãs de Tovstonógov), a leitura geralmente feita de Tchékhov
era de “um ‘trágico’, um ‘poeta do crepúsculo’, leitor da ‘inércia
e melancolia’ de uma classe social que perde espaço gradual-
mente”.17

12
Idem.
13
Ibidem, p.187.
14
Ibidem, p.149.
15
Ibidem, p.148-149.
16
Ibidem, p.150.
17
Ibidem, p.137.

176
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

Seguindo a linha das releituras cênicas de Tchékhov nos


palcos russos, Anatóli Éfros, em 1967, colocou em cena As três
irmãs com o objetivo de traçar uma “elegia à ruína”, que ficou
apenas seis meses em cartaz devido à censura soviética.18 Em
1975, o diretor realizou a montagem de O jardim das cerejeiras
“como uma espécie de enfrentamento não só ao regime, mas
também aos padrões de interpretação do TAM”.19 Voltar a clás-
sicos como Tchékhov era uma estratégia dos diretores para
driblar a censura soviética ainda vigente, mas nem sempre
isso dava certo, como no caso de As três irmãs de Éfros.
Talvez, semelhantemente inspirados por essa revisão das
leituras cênicas das peças de Tchékhov e fortemente moti-
vados pelos novos rumos históricos da já moribunda URSS,
diversos dramaturgos russos (muitos, ainda hoje, vivos), co-
meçaram também a fazer suas revisões dramatúrgicas de
Tchékhov. Os anos de 1980, período tanto de incertezas quanto
de esperanças com as políticas da Perestróika e da Glásnost,20
foram férteis para essa revisão dramatúrgica, que cresceu e
floresceu entre os dramaturgos e escritores após a Nova Onda
dos anos 1970. A Nova Onda foi uma espécie de movimento
formado pelos escritores Liudmila Petruchévskaia (1938-),
Aleksandr Galin (1947-) Vladímir Arro (1932-), Víktor Sláv-
kin (1935-2014), Aleksandr Kazántsev (1906-2002), Liudmila
Razumóvskaia (1946-) e outros que “tinham como tema princi-
pal a vida cotidiana soviética, a rotina e a frustração, uma sé-
rie de tragédias vitais agravadas pela inércia social, mas sem-
pre com um certo grau de esperança”.21 Além da Nova Onda e
do movimento incentivador de novas dramaturgias na Rússia,
o Teatr.doc22 de Mikhail Ugárov (1956-2018), outros aconteci-
mentos continuaram abrindo campo fértil para as reescrituras
das peças tchekhovianas, bem como para outras inovações no

18
Ibidem, p.149.
19
Ibidem, p.150.
20
Do russo, “reconstrução” e “transparência” – políticas de reestruturação econômica e de
liberdade de expressão introduzidas na URSS em 1986 por Mikhail Gorbatchov (1931-).
21
PIGAIOVA, 1996, p.6.
AUTANT-MATHIEU, 2012, p.33.
22

177
Cássia Regina Marconi Marcançoli

campo dramatúrgico e teatral como um todo. Assim como Sta-


nislávski procurava novas formas para fugir das convenções
teatrais então vigentes, na virada do século XX para o XXI, os
artistas teatrais russos dos anos de 1980 em diante também
“declararam guerra contra todas as convenções” 23 e expressa-
ram toda essa pulsão por renovação e criatividade em diversas
peças apresentadas nos festivais Zolotáia Máska,24 Liubmo-
vka25 e no Festival Novo Drama, instituído em 2001 por Eduard
Boiakov (1964-) e Ielena Gremina (1956-2018), autora de Brátia
Tch. [Irmãos Tch], de 2010. Especialmente sobre as peças de
Tchékhov, o diretor Kirill Serébrennikov (1969-) declarou que
“as produções de Tchékhov devem refletir as pessoas de hoje
em dia e não uma distante Rússia que já está perdida”.26 Para
muitos dramaturgos e diretores russos contemporâneos
[…] A obra de Tchékhov, sua representação do mundo, a
maneira como sua arte se fundamenta no absurdo, na iro-
nia, na zombaria e na rejeição às formas passadas de escrita,
constituem um meta-drama único, um “texto de textos”, um
ponto de partida, um modelo definidor de parâmetros e um
objeto de estudo, de imitação e de rivalidade (tradução nos-
sa).27
Então, se na época de Tovstonógov e de Éfros montar
Tchékhov com certas inovações era uma saída para driblar a
censura soviética, para Mikhail Ugárov, Eduard Boiakov, Iele-
na Gremina e outros, voltar a Tchékhov e manipulá-lo drama-
turgicamente, de diversas maneiras, era uma forma de fugir
das convenções teatrais já marcadas do século XX.

23
HANUKAI, 2019.
24
“O Zolotáia Máska [Máscara de Ouro] é um Prêmio Nacional de Teatro criado em 1993
para produções em todos os gêneros de arte teatral: teatro, opera, balé, dança moderna,
opereta, musical e teatro de marionetes. O Zolotáia Máska também é um festival de artes
cênicas totalmente russo que ocorre em Moscou na primavera de cada ano, apresentando
as performances mais significativas de toda a Rússia.” Fonte http://m.eng.goldenmask.ru.
Acesso em março de 2020.
25
Festival anual de jovens dramaturgos realizado em Moscou todo mês de setembro, desde
1991. Fonte https://thetheatretimes.com/moscows-2018-liubmovka-festival-new-trends-ol-
d-problems/. Acesso em março de 2020.
26
AUTANT-MATHIEU, Op. cit., p.33.
27
Idem, ibidem. Tradução nossa.

178
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

Strehler, quando montou O jardim das cerejeiras, em 1974,


procurava um equilíbrio entre as três esferas que a dramatur-
gia tchekhoviana pode evocar: a realidade (dos personagens),
a história e a vida. No caso dos dramaturgos contemporâneos
que revisaram a dramaturgia tchekhoviana, surgiram peças
mais centradas na experimentação com a linguagem e em
procedimentos vários com o texto (caso de O jubileu, 1993, de
Vladímir Sorókin, peça que empresta uma frase ao título des-
te artigo) e outras que buscam em Tchékhov um termômetro
para medir historicamente a Rússia (caso de Meu pequeno jar-
dim das cerejeiras, de 1993, de Alekséi Slapóvski).
A revisão dramatúrgica da qual estamos falando, e da qual
fazem parte Sorókin e Slapóvski, abrange especialmente o
período que vai de 1980 a 2010. As peças do período são ana-
lisadas no artigo da pesquisadora francesa Marie-Christine
Autant-Mathieu, “Rewriting Chekhov in Russia Today – Ques-
tioning a Fragmented Society and Finding New Aesthetic Re-
ference Points”, publicado no livro Adapting Chekhov – The
Text and its Mutations,28 obra oriunda do workshop Anton
Pavlovich Chekhov: Poetics, Hermeneutics, Thematics, orga-
nizado por J. Douglas Clayton, em 2004, na Universidade de
Ottawa, no Canadá, e do seminário Generative Chekhov, orga-
nizado por Karen Bamford, da Universidade de Mount Allison,
do Canadá, em 2010, por ocasião dos 150 anos do nascimento
de Tchékhov. Neste artigo, Autant-Mathieu elenca as seguin-
tes peças russas contemporâneas que fazem essa espécie de
revisão da dramaturgia tchekhoviana:
1. Три девушки в голубом (Tri devuchki v golubom – As
três moças de azul) – Liudmila Petruchévskaia (1980)
2. Обруч (Obrutch – Jogo de argolas) – Victor Slávkin (1982)
3. Полонез Огинского (Polonez Oguinskogo – A polonaise
de Oguínski) – Nikolai Koliadá (1993)
4. Мой вишневый садик (Moi vichniovyi sadik – Meu pe-
queno jardim das cerejeiras) – Alekséi Slapóvski (1993)
5. Три сестры и дядя Ваня (Tri sestry i diadia Vania – Três
irmãs e Tio Vânia) – Marina Gavrílova (1993)
6. Юбилей (Iubilei – O jubileu) – Vladímir Sorókin (1993)
28
Cf. AUTANT-MATHIEU, Op. cit.

179
Cássia Regina Marconi Marcançoli

7. Вишневый сад продан? (Vichniovyi sad prodan? – O jar-


dim das cerejeiras foi vendido?) – Nina Iskriénko (1993)
8. Сахалинская жена (Sakhalinskaia jena – A esposa de
Sacalina) – Ielena Gremina (1996)
9. Поспели вишни в саду у дяди Вани (Pospeli vichni v
sadu u diadi Vani – Cerejas maduras no jardim do Tio Vânia)
– Vladimir Zabalúiev and Aleksei Zenzínov (1999)
10. Французские страсти на подмосковной даче (Frant-
suzskie strasti na podmoskovnoi datche –Paixões francesas
em uma datcha perto de Moscou) – Liudmila Razumóvskaia
(1999)
11. Чайка (Tchaika – A gaivota) – Boris Akúnin (2000)
12. Мертвые уши, или Новейшая история туалетной
бумаги (Miórtvye uchi ili Noveichaia istoriia tualetnoi bu-
magui – Orelhas mortas, ou a mais recente história do papel
higiênico) – Oleg Bogáiev (2000)
13. Фирсиада - Смерть Фирса; Апокалипсис от Фирса
(Firsiada – Smert’ Firsa; Apokalipsis ot Firsa – Firsiada – A
morte de Firs; Apocalipse de Firs) – Vadim Levánov (1997 e
2000)
14. Русское варенье (Russkoe varen’e – Geléia Russa) –
Liudmila Ulítskaia (2003)
15. Чайка А.П.Чехова (Tchaika A. P. Tchekhova – A gaivota
de A. P. Tchékhov) – Konstantin Kostiénko (2004)
16. Братья Ч. (Brátia Tch. - Irmãos Tch.) – Ielena Gremina
(2010)
Podemos observar que o ano de 1993 foi extremamente pro-
dutivo para as releituras dramatúrgicas de Tchékhov, pois só
neste corpus temos cinco peças produzidas nesse ano: O jubi-
leu, de Vladímir Sorókin; Meu pequeno jardim das cerejeiras,
de Alekséi Slapóvski; Três irmãs e Tio Vânia, de Marina Gavrí-
lova; O jardim das cerejeiras foi vendido?, de Nina Iskriénko; e
A esposa de Sacalina, de Ielena Gremina.
Inspirando-nos na concepção cênica de Strehler, segundo
a qual O jardim das cerejeiras foi dividido em três esferas (a
realidade dos personagens, a história e a vida) e também nos
paradigmas nos quais Autant-Mathieu divide todas as peças
citadas, propomos que essas dezesseis releituras dramatúr-
gicas de Tchékhov sejam classificadas principalmente, como

180
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

supracitado, em peças centradas na experimentação com a


linguagem e procedimentos vários com o texto (paradigmas C
e D) e peças que buscam em Tchékhov um termômetro histó-
rico, uma forma de se analisar o século XX (paradigmas A e B),
de forma que as peças podem ser agrupadas em dois grandes
paradigmas, ao invés de quatro. Os quatro paradigmas de Au-
tant-Mathieu são:
A) a referência deformada da era soviética e do passado rus-
so (As três moças de azul – Liudmila Petruchévskaia; Jogo
de argolas – Victor Slávkin);
B) inversão carnavalesca... (A polonaise de Oguínski – Niko-
lai Koliadá)... e o uso de Tchékhov como um critério para me-
dir o presente (Meu pequeno jardim das cerejeiras – Alekséi
Slapóvski; Três irmãs e Tio Vânia – Marina Gavrílova; Pai-
xões francesas em uma datcha perto de Moscou – Liudmila
Razumóvskaia);
C) desconstrução (O jubileu – Vladímir Sorókin; A gaivota
de A. P. Tchékhov – Konstantin Kostiénko)... para transfor-
mar os personagens tchekhovianos em avatares da cultura
popular pós-moderna (Orelhas mortas, ou a mais recente
história do papel higiênico – Oleg Bogáiev; O jardim das ce-
rejeiras foi vendido?– Nina Iskriénko) e borrar a linha divi-
sória entre autor e obra (Irmãos Tch. e A esposa de Sacalina
- Ielena Gremina);
D) sequências (A gaivota – Boris Akúnin; Cerejas maduras
no jardim do Tio Vânia – Vladimir Zabalúiev and Aleksei
Zenzínov; Geléia Russa – Liudmila Ulítskaia). 29
Neste artigo, focalizaremos a peça Meu pequeno jardim das
cerejeiras, de Alekséi Slapóvski, cujo tipo de experimentação
está mais voltado a utilizar as peças tchekhovianas como ter-
mômetro histórico do século XX do que a tecer experimentos
textuais e linguísticos com essas peças.
Alekséi Slapóvski nasceu em 1957, em Sarátov, às margens
do rio Volga. Estudou filologia na Universidade de Sarátov, tra-
balhou como professor, motorista de caminhão, jornalista de
rádio e televisão e, “desde que sua primeira obra foi montada
com êxito no Teatro Juvenil de Iaroslávl, dedica-se apenas a

29
AUTANT-MATHIEU, Op. cit., p.34.

181
Cássia Regina Marconi Marcançoli

escrever”.30 Foi também colaborador, entre os anos 1990 e 1995,


da revista Volga, publicação da União dos Escritores Soviéti-
cos, que, em 1991, foi transformada em União dos Escritores
Russos. Slapóvski começou sua carreira de escritor em 1980,
tendo sido nomeado muitas vezes ao Russkii Buker (conhe-
cido internacionalmente como Russian Booker Prize), prêmio
literário russo anual existente desde 1992. Além de ser autor
de contos, romances e peças de teatro, Slapóvski é roteirista
de filmes e seriados, como o filme Dien’ dieneg [O dia do di-
nheiro], de2006, e o seriado Utchastok [O lote], de 2003. Sobre o
teatro, Slapóvski declara que, “se fosse diretor teatral, não ten-
taria encenar um monte de obras modernas, mas trabalharia
apenas com William Shakespeare e Anton Tchékhov.31 O autor
se declara:
aluno do célebre dramaturgo Aleksandr Vampílov, mor-
to em 1972, e muitos de seus personagens – anjos caídos,
idealistas de outrora, sonhadores desiludidos que foram im-
pedidos de ser quem são – possuem “genes” dos melhores
espécimes do drama psicológico tradicional.32
A maioria das peças de Slapóvski foi publicada na revista
Sovremennáia Dramaturguiia [Dramaturgia Contemporânea]
e também em duas coletâneas Zametchátelnaia jizn liudei:
piésy [A notável vida das pessoas: peças], de 2008, e Sámaia
nastoiáchtchaia liubóv: piésy dlia bolchikh I malykh teatrov,
[O mais verdadeiro amor: peças para grandes e pequenos tea-
tros], de 2014, pela editora moscovita Vrêmia. Além de Meu
pequeno jardim das cerejeiras, Slapóvski escreveu as peças
Jénchtchina nad nami, [A mulher do outro andar], de 1993,
Piésa no 27 [Peça nº 27], de 1994, Piérvoie vtoróie prichéstvie,
[O primeiro segundo advento], de 1995, Ot krásnoi kryssy do
zeliónoi zvezdy, [Do rato vermelho à estrela verde], de 1995, e
outras.
Meu pequeno jardim das cerejeiras se passa no sótão de
uma velha casa urbana onde há uma única cerejeira (na ver-

30
PIGAIOVA, Op. cit., p.17.
31
Ibidem, p.7.
32
Ibidem, p.18. Tradução nossa.

182
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

dade, um arbusto de cerejas), “símbolo de um passado perdi-


do, que ainda cresce”,33 e mostra “o conflito entre o indomá-
vel idealismo da velha geração e o radicalismo destrutivo da
nova geração que colhe os frutos deixados por seus pais sem
eles próprios plantarem outros por si mesmos”.34Na peça de
Slapóvski, contrariamente à de Tchékhov, não há exatamen-
te um jardim, mas um pequeno arbusto que floresceu por aci-
dente. Um dos personagens, não sabemos se o jovem Sacha
ou o próprio dono da casa, Azalkánov, cuspiu a semente, que,
por sua vez, caiu em uma fenda do sótão. Este “passado que
ainda cresce”, representado pelo arbusto que, acidentalmen-
te, cresce e floresce, nos faz reiterar que a peça de Slapóvski
está realmente centrada muito mais no paradigma de tomar
Tchékhov como instrumento para medir o presente do que
nos paradigmas de peças que privilegiam a experimentação
com a linguagem. Os contextos em que foram escritas ambas
as peças, a de Tchékhov e a de Slapóvski, definiram épocas de
grandes mudanças sociais na Rússia. No ano em que a última
peça de Tchékhov, O jardim das cerejeiras, foi escrita, 1904, o
clima sócio-político-econômico era de grande tensão, que cul-
minaria no Domingo Sangrento, nas Revoluções de 1905 e de
fevereiro e outubro de 1917, bem como a Primeira Guerra Mun-
dial, em 1914.
Na época em que Tchékhov escreveu suas peças, a sensa-
ção de colapso generalizado pairava no ar. Tudo estava prestes
a se fragmentar. Ninguém sabia o que estava por vir, mas to-
dos sentiam a instabilidade. A mesma sensação de incerteza,
colapso e fragmentação pairava no ar russo em 1993, com a
recente queda da URSS e seus posteriores desdobramentos.
Apesar do clima propício ao surgimento de peças engajadas,
como as de Maksim Górki (1868-1936), o autor retomado foi
Tchékhov, um dramaturgo que não escreveu peças engajadas
e se considerava um escritor apolítico. Contudo, sua drama-
turgia, apesar de “não engajada”, pode ser considerada política
no sentido de o texto falar por si só, uma característica poten-

33
FREEDMAN, 1999, p.544.
34
AUTANT-MATHIEU, Op. cit., p.40.

183
Cássia Regina Marconi Marcançoli

cialmente aproveitável por diferentes diretores e dramaturgos


de várias épocas. Em diversos momentos, “o elemento político
emergiria da própria presença daquela peça naquela conjun-
tura” e “deixar o texto falar já (seria) estabelecer uma comuni-
cação com o presente”.35
O tema comum às peças é o destino das propriedades: em
O jardim das cerejeiras, o leilão da propriedade de Liuba e,
em Meu pequeno jardim das cerejeiras, a venda (ou, de acor-
do com a vontade de outro personagem, Vássenka) a trans-
formação da casa. Como a peça se passa na parte superior
da casa, o sótão, e também de acordo com uma das falas de
Minussínki, onde este relaciona “sótão” à “cabeça”, uma das
leituras possíveis seria que uma mudança de mentalidade es-
taria prestes a ocorrer na Rússia no período de escrita da peça
de Slapóvski, assim como também estava prestes a acontecer
quando Tchékhov escreveu O jardim das cerejeiras. Tanto em
Tchékhov como em Slapóvski, o destino das propriedades é
incerto e sua venda ou demolição é envolta em mal-entendi-
dos. Houvera também, nessas propriedades, a morte de fami-
liares de alguns personagens: na peça de Slapóvski, o pai de
Azalkánov se enforcou no sótão; na peça de Tchékhov, o filho
de Liuba se afogou no lago da propriedade, o que faz os perso-
nagens expressarem certo apego a esses locais.
Os personagens de Meu pequeno jardim das cerejeiras não
constituem paródias nem sátiras aos personagens tchekho-
vianos, mas são construídos tendo estes como referências
remotas, algo como arquétipos que contrastam com o coti-
diano russo do final dos anos 1980. Liudmila Petruchévskaia,
em As três moças de azul,36 também se utiliza deste procedi-
mento. Portanto, podemos perceber que as peças que tomam
Tchékhov como um termômetro histórico surgiram de 1980
até meados de 1990 (exceto Paixões francesas em uma datcha
perto de Moscou, de Liudmila Razumóvskaia, que foi escrita
em 1999), enquanto as peças que se preocupam mais com a
experimentação textual e linguística a partir de Tchékhov

35
NASCIMENTO, 2018, p. 192-193.
36
AUTANT-MATHIEU, Op. cit., p.34.

184
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

surgiram de meados de 1990 até 2010. Nota-se, ainda, que as


peças centradas em utilizar Tchékhov como um termômetro
histórico se baseiam principalmente em O jardim das cerejei-
ras (Meu pequeno jardim das cerejeiras, Jogo de Argolas, A po-
lonaise de Oguínski, Paixões francesas em uma datcha perto
de Moscou).
Se As três moças de azul busca retratar facetas do sonho
da vida comunal durante a URSS por meio de personagens
que vivem juntos em uma datcha, Meu pequeno jardim das
cerejeiras, escrita por Slapóvski em 1993, e Jogo de Argolas,
escrita por Viktor Slávkin em 1982, procuram representar um
certo “arquétipo da casa inabitada para unir a família”.37 Assim
como na peça de Slapóvski, Slávkin coloca um grupo de pes-
soas dentro de uma casa inabitada (no caso de Slávkin, uma
casa de campo russa, datcha) pertencente à avó de um dos
personagens. Verificamos, assim, que ambas as peças evocam
como que continuações de O jardim das cerejeiras, com uma
casa sendo reaberta e reocupada anos depois,38 só que, dife-
rentemente de Meu pequeno jardim das cerejeiras, onde a casa
é destruída, em Jogo de Argolas a casa é lacrada novamente,
“como um túmulo”.39 Lacrar novamente a casa, ou até mesmo
destruí-la, faz-nos perceber que “é inútil tentar reviver os valo-
res de um tempo passado, pois as pessoas já mudaram profun-
damente”.40 Entre as peças que utilizam Tchékhov como um
termômetro histórico (paradigmas A e B de Autant-Mathieu),
os personagens tchekhovianos que emergem são essencial-
mente Vânia e Ivánov, “homens supérfluos que fizeram uma
bagunça em suas próprias vidas”;41 Lopákhin, “um empreende-
dor novato que rapidamente virou uma figura típica no come-
ço do século XXI”;42 e Firs, que “representa o mundo esquecido
de muito tempo atrás”.43
37
Ibidem, p.36.
38
Ibidem, p.37.
39
Idem.
40
Idem.
41
Ibidem, p.40.
42
Idem.
43
Idem.

185
Cássia Regina Marconi Marcançoli

Este breve esboço de alguns ecos tchekhovianos na drama-


turgia russa contemporânea nos faz verificar que tanto os di-
retores que pretendiam rever as leituras stanislavskianas de
Tchékhov como os dramaturgos contemporâneos que busca-
vam, através de Tchékhov, a quebra das convenções teatrais
firmadas no século XX estavam fazendo aquilo que o próprio
Tchékhov bem compreendeu: que “o escritor apenas modela
um vaso artístico, e não importa se ele contém vinho ou por-
carias”44 e que um mestre da palavra (bem como um mestre
da cena) está preocupado em “novas formas de expressão do
pensamento”45 e na “abordagem correta dos verdadeiros pro-
blemas da arte”.46 Mesmo que a maioria destas peças (com ex-
ceção de As três moças de azul, de Liudmila Petruchévskaia;
Jogo de Argolas, de Victor Slávkin; e A polonaise de Oguíns-
ki, de Nikolai Koliada) não tenham, obviamente, alcançado
um alto grau de notoriedade como as peças tchekhovianas
nas quais elas se inspiraram,47 todas estas reescrituras e re-
visões da dramaturgia tchekhoviana nos fazem perceber que
“Tchékhov sempre renasce emergindo intacto de todas essas
manipulações”48 e experimentações.

44
MAIAKÓVSKI, In: SCHNAIDERMAN, 1984, p.145.
45
Ibidem, p.146.
46
Idem.
47
AUTANT-MATHIEU, 2012, p.52.
48
Idem.

186
“Um Tchékhov tal, que nunca havíamos visto antes!”

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Recebido: em 30/03/2020
Aceito: em 25/05/2020
Publicado: em junho de 2020

188
tradução
Textos de
Velimir Khlébnikov
em tradução anotada
Velimir Khlébnikov
Tradução de Ludmila Menezes Zwick*

Resumo: Estes seis textos de Velimir Khlébnikov, Abstract: These six texts by Velimir Khlebnikov,
escritos entre 1904 e 1916, expressam sua written between 1904 and 1916, express his
reverência à natureza e à inventividade, querelam reverence for nature and inventiveness, quarrels
com as gerações passadas e com vozes de with past generations and with voices of
autoridade de sua época, clamam pela liberdade authority of his time, clamours for the freedom
dos povos, pela extirpação do conservadorismo of the people, for the extirpation of the instituted
instituído e pela vinda do futurismo. O primeiro, conservatism and for the coming of futurism.
Deixe-os ler na lápide, trata de suas crenças The first text, Let them read on the gravestone,
sobre a natureza e as coisas vivas, e resume, deals with his beliefs about nature and living
em tom de burla, seus feitos; o segundo, things and summarizes, in burlesque tone, his
Cerca de cinco ou mais sentidos, trata de uma achievements; the second, On the five-and-
espécie de teoria da metamorfose de todas more senses, deals with a kind of theory of the
as coisas e de suas respectivas percepções metamorphosis of all things and their respective
pelos sentidos. Em Observações polêmicas de perceptions by the senses. In Polemical Remarks
1913, manifesta-se contra figuras públicas que of 1913, he speaks out against public figures
criticavam o futurismo; em Seu tagarela sem who criticized futurism; in You untalented
talento!, Khlébnikov critica alguns futuristas, loudmouth!, Khlebnikov criticizes some futurists,
evidenciando que o futurismo era um movimento showing that futurism was a movement full
cheio de nuanças e apenas parcialmente of nuances and only partially cohesive; in
coeso; em Nota autobiográfica, apresenta suas Autobiographical Note, he presents his origins
origens e expõe com firmeza alguns de seus and firmly exposes some of his positions, and in
posicionamentos, e, em Carta a dois japoneses, A Letter To Two Japanese he extends his hands
estende as mãos à juventude do oriente. to the youth of the East.

Palavras-chave: Velimir Khlébnikov; Natureza; Inventividade; Futurismo;


Posicionamentos
Keywords: Velimir Khlebnikov; Nature; Inventiveness; Futurism; Positions

190
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

Ele não enxergava distinção entre a


[espécie humana e os animais (...)
foi criança a ponto de supor que o seis viesse
[depois do cinco, e o sete depois do seis.
Velimir Khlébnikov

*
Mestre em Estética e História Em 1903, ainda com o prenome Viktor, Khlébnikov se tornou
da Arte pela Universidade de São aluno da Universidade de Kazan, onde escolheu a Faculdade de
Paulo e doutora em Literatura e
Cultura Russa pela mesma univer- Física e Matemática. No departamento de matemática ele per-
sidade. maneceria até novembro, quando se transferiu para o depar-
E-mail: apuslynx@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-
tamento de ciências naturais da mesma instituição. Seus pais
9873-7243 tiveram uma boa educação e pertenciam a uma linhagem de
aristocratas empobrecidos; seu pai, seu grande influenciador,
era um destacado botânico e ornitólogo, fundador da primeira
reserva estadual na foz do Volga. Tendo testemunhado even-
tos como a derrota do exército de Antón I. Deníkin no Cáucaso
e no norte do Irã, Khlébnikov constatou que a humanidade se
oporia à guerra à medida que se unisse à natureza; tal consta-
tação aparece em muitos de seus escritos, desde obras como
o poema Ladomir, de 1920, como no texto Observações ornito-
lógicas na Reserva Pavdinsk, de 1911. Neste último ele narra
sua experiência na primavera de 1905, quando, com o apoio da
Sociedade de Cientistas Naturais de Kazan, ele foi à reserva
Pavdinsk, localizada ao longo da encosta leste da porção nor-
te dos Urais centrais, um local que, segundo ele, era notável
não apenas pela taiga virgem e extraordinariamente variada,
mas também pela quantidade de aves aquáticas migratórias
e pela passagem constante de veados e ursos pelas trilhas de
salgueiros. Um trecho: “Riachos e arroios são bastante nume-
rosos. Com natureza montês, as águas em geral fluem ruido-
samente e colidem com as pedras, espargindo espuma nas
margens. No trecho mediano das montanhas há numerosos

191
Ludmila Menezes Zwick

riachos pequenos correndo dentro e fora das


rochas. Só é preciso apurar os ouvidos para
ouvir aqui e ali seu murmúrio melodioso”.1

[Deixe-os ler na lápide]2

Deixe-os ler na lápide: ele lutou pela espé-


cie e extirpou de si próprio as aspirações dela.
Ele não enxergava distinção entre a espécie
humana e os animais e se manteve a favor
de estender às nobres espécies animais este
mandamento e sua prática: “ama o próximo
como a ti mesmo”. Ele chamou as indivisíveis
e nobres espécies animais de seus “próximos”,
Fig. 1. Viktor com um boné de
estudante, 1903, de Vera Khléb- e assinalou o proveito da utilização de experiências de vida
nikova passadas das espécies mais antigas. Ele ainda supôs que be-
Fonte: Coletânea de obras em
seis volumes. Ed. por R.V. Dugá-
neficiaria a raça humana adotar em seu comportamento algo
nov, v. 6, livro 1, p. 8 semelhante à noção das abelhas operárias em uma colmeia, e
expressava com frequência que via na noção das abelhas ope-
rárias seu próprio ideal pessoal. Ele ergueu o estandarte de
amor da Galileia, e estendeu a sombra desse estandarte sobre
muitas espécies animais nobres. O coração, a encarnação do
ímpeto contemporâneo das sociedades humanas ao progres-
so, ele não o via no homem principesco, mas no tecido do prín-
cipe3 – o nobre bocado de tecido humano encarcerado na caixa

1Khlébnikov, 2005, p. 303.


2 Velimir Khlébnikov não atribuiu título a este texto; daí os colchetes.
3 Uma vez que o tecido cerebral que compõe a mente humana, sendo principesco ou cam-
pesino, compõe também a terra, não há divisão entre eles; a nobreza do tecido estaria na
mente. Essa associação nada usual do tecido cerebral ao tecido principesco ou campesino
relaciona-se à forma adjetivada da escrita de Khlébnikov. Tal ideia surge do contato com
a noção de linguagem totalmente eslava de Viacheslav Ivánov, que o estimulou a experi-
mentar a criação de palavras, bem como a ter uma nova atitude em relação às tarefas e
métodos da arte literária. Com base no neologismo чернозем (tchernozióm) = черно- +
земля (negro + solo), Khlébnikov forma o neologismo terramental, мыслезем (myslezióm)
= мысленный + земля, que conota a humanização da natureza, o crescimento constante
da substância mental na Terra, correspondendo ao conceito de noosfera, que se difundiria
entre os anos de 1920-1930 nos escritos de Vladímir Vernádski (1863-1945), Édouard Le

192
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

Fig. 2. Paisagem dos Urais em


10 de julho de 1905, de Velimir
Khlébnikov. de cálcio do crânio. Ele foi inspirado ao sonho de ser um profe-
Fonte: Coletânea de obras em seis
volumes. Ed. por R.V. Dugánov, v. ta e um grande intérprete do tecido principesco, e apenas dele.
6, livro 1, p. 307-308. Antevendo sua vontade, com um único ímpeto de seu próprio
osso, carne e sangue, ele sonhava com o decréscimo da posi-
ção ε/ρ, onde ε – é igual à massa de tecido principesco, e ρ – é
igual à massa de tecido campesino, no que lhe dizia respeito.
Ele sonhava com o futuro4 distante, o globo da Terra vindoura,

Roy (1870-1954) e Teilhard de Chardin (1881-1955). A afeição à terra semelhante à cons-


tituição do homem também figura em textos como “O destino encerrou o sonho com um
bocejo...” (Khlébnikov, 2002, p. 273). (Nota baseada na edição russa, doravante mencionada
como N. da E.)
4 De acordo com o raciocínio do cientista leto-alemão W. Ostwald (1853-1932), químico e fi-
lósofo que influenciou Khlébnikov como estudante em Kazan por meio da obra A filosofia da
natureza (São Petersburgo, 1903), a capacidade de antever o futuro seria a mais essencial
das propriedades humanas, pois não temos poder algum sobre o passado, apenas sobre o
futuro; por essa razão, até os problemas mais elevados e abstratos, em todas as áreas da
ciência, precisam ser vistos pela via da confiante contemplação do futuro: “[...] o berço da
criatividade é o futuro. De lá sopra o vento da palavra dos deuses” (Khlébnikov, 2000, p. 8).
(N. da E.)

193
Ludmila Menezes Zwick

194
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

Fig. 3. Observações ornitológicas,


de Velimir Khlébnikov.
Fonte: Coletânea de obras em seis volumes.
Ed. por R.V. Dugánov, v. 6, livro 1, p. 307-308.
Fig. 4. Observações ornitológicas,
de Velimir Khlébnikov.
Fonte: Coletânea de obras em seis volumes.
Ed. por R.V. Dugánov, v. 6, livro 1, p. 307-308.
Fig. 5. Observações ornitológicas,
de Velimir Khlébnikov.
Fonte: Coletânea de obras em seis volumes.
Ed. por R.V. Dugánov, v. 6, livro 2, p. 244.

195
Ludmila Menezes Zwick

e seus sonhos foram inspirados quando ele comparou a Terra


a um pequeno animal da estepe, correndo de arbúsculo em ar-
búsculo. Ele descobriu a verdadeira classificação das ciências,
ele associou tempo e espaço, ele fundamentou a geometria
dos números. Ele descobriu o princípio eslavo, ele fundou um
instituto para o estudo da vida pré-natal da criança. Ele desco-
briu o micróbio causador da paralisia progressiva, ele ligou e
elucidou os princípios da química no espaço. Satisfeito de que
deixassem uma página devotada a ele, a ele e a vários tantos.
Ele foi criança a ponto de supor que o seis viesse depois do
cinco, e o sete depois do seis. Ele se atreveu inclusive a supor
que, como regra geral, onde temos um e mais um, temos tam-
bém três, cinco, e sete, e infinito – ∞.
Ademais, ele não expressou sua opinião sobre ninguém, ele
a julgou pertencente à sua própria pessoa, reconheceu que o
mais sagrado de qualquer dos direitos era o de ter uma opinião
contrária.
1904

II

Estes dois textos foram escritos em 1904 e, embora sejam


significativamente independentes, de modo aparentemente
simultâneo. O primeiro, Deixe-os ler na lápide, é uma espécie
de autoepitáfio (falando de si próprio na terceira pessoa), e o
segundo, Cerca de cinco ou mais sentidos, é um exemplo de
um julgamento analítico objetivo sobre questões científicas
em si. Supõe-se que o primeiro texto, em sua própria concep-
ção, tenha uma conexão significativa com outro fragmento de
texto do caderno de Khlébnikov, escrito em 1904, denomina-
do Dedicatória ao campesinato russo, no qual declara consi-
derar os campesinos seus principais parceiros, a quem deve
exclusivamente seu trabalho, uma vez que araram e semea-
ram a terra para ele e assaram seu pão, enquanto ele lhes de-
dica um trabalho que seria uma fraca prova de seu dever, mas

196
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

que demonstra também sua vastidão e irrelevância. O epitáfio


cristianizado traz ao texto uma aura filosófica; há também a
atribuição do significado de tecido cerebral ao tecido princi-
pesco. O impulso criativo parte de uma ideia de luta com sua
própria visão, uma luta contra a visão positivista da estrutu-
ra antropocêntrica e hierárquica de todo o mundo vivo, e uma
aproximação ao conceito ético de ortobiose, segundo o qual a
pessoa se dota de uma prontidão racional para a morte, bem
como se vê em pé de igualdade com as espécies biológicas.
Pressupõe-se que Khlébnikov conhecesse a psicologia fisio-
lógica de Wilhelm Wundt (1832-1920), substancializada pelo
problema da sinestesia como uma interconexão de sensações
físicas heterogêneas, problema que é estudado em conceitos e
imagens da esfera matemática5.

Cerca de cinco ou mais sentidos

Cinco aspectos; há cinco deles, porém são insuficientes. Por


que não dizer simplesmente: existe apenas um, mas um gran-
dioso?
O padrão do pontilhado, quando preenches os espaços em
branco, quando povoas o baldio desabitado?
Há certa grandeza, uma multiformidade infinitamente ex-
tensa,6 em incessantes transformações, que, em relação aos
nossos cinco sentidos, está na mesma posição que um espaço
bidimensional contínuo está em relação a um triângulo, um
círculo, uma oval, um retângulo.
Isto é, assim como um triângulo, um círculo, um octógono
são partes de um plano, da mesma forma nossos sentidos de

5 Apresentação a partir das notas da Edição russa.


6 Ou “múltipla variedade estendida”, termo de um trabalho do matemático alemão B.
Riemann (1826-1866), Sobre as hipóteses que estão na base da geometria (Über die
Hypothesen, welche der Geometrie zugrunde liegen), na coleção Sobre os fundamentos da
geometria, traduzida e publicada em Kazan, em 1893, por ocasião do aniversário de N.I.
Lobatchévski. (N. da E.)

197
Ludmila Menezes Zwick

audição, visão, paladar e olfato são partes, lapsos fortuitos


dessa grande multiformidade estendida.
Ele ergueu a cabeça leonina e nos encarou, mas seus lábios
estavam cerrados.
Além disso, assim como pela contínua mutação de um cír-
culo pode-se obter um triângulo, e o triângulo pode ser conti-
nuamente alterado para formar um octógono, e assim como
de uma esfera no espaço tridimensional, pela via da variação
contínua, pode-se obter um ovo, uma maçã, um chifre, um bar-
rilete, apenas existem certas quantidades, variáveis ​​indepen-
dentes, que, à medida que alteram, transformam os sentidos
das diversas sequências – por exemplo, o auditivo e visual ou
olfativo –, um atravessa o outro.
De modo tal, alterando-se certos valores existentes, a cor
azul de uma centáurea (refiro-me à sensação pura) pode ser
incessantemente transformada por meio de regiões de ruptu-
ras desconhecidas pelos seres humanos e convertida no som
de um cucar ou do choro de uma criança; assim estes passam
a existir.
Durante essa variação contínua, cria-se certa diversidade de
extensão, cujos pontos, salvo aqueles próximos ao primeiro e
ao último, concernem a uma região de sensações desconhe-
cidas, como se fossem de outro mundo. Tal diversidade já ilu-
minou ao menos uma vez a mente de um homem agonizante,
reluzindo como um relâmpago que reúne duas nuvens incha-
das, ao combinar duas séries de experiências na consciência
inflamada de um cérebro doente.
Pode ser que no instante pré-morte,7 quando tudo se apres-
sa, quando todo o pânico e medo se dispersam, se precipitam,
saltam barreiras, abandonam a esperança de salvaguardar a
todos, a totalidade de muitas vidas individuais, e se inquieta
sobre a própria, quando o que acontece na cabeça de um ho-
mem se assemelha ao que acontece em uma cidade submer-
gida por ondas famintas de lava derretida, pode haver naquele
instante pré-morte em cada cabeça humana uma celeridade

7 Tema retomado nos versos de 1915: “Antes da morte, a vida pisca novamente / Mas muito
veloz e de outro modo” (Khlébnikov, 2000, p. 330). (N. da E.)

198
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

assombrosa que se origina tal como o preenchimento de la-


cunas e valas, tamanha é a transgressão de formas e frontei-
ras. E quiçá, em toda consciência humana, numa celeridade
assombrosa, uma sensação própria à ordem, A, transforma-se
em uma sensação de ordem, B, e somente então, após tornar-
-se B, essa sensação perde celeridade e torna-se perceptível, à
maneira como podemos captar os raios de uma roda somente
quando a celeridade de sua rotação desacelera abaixo de certo
limite. Tais celeridades nas quais as sensações fluem por esse
espaço desconhecido são combinadas de tal modo que as sen-
sações mais intimamente interligadas, positiva ou negativa-
mente, à segurança de todo o ser se movem mais lentamente.
E, desse modo, podem ser distinguidas com maior minudên-
cia e nuança. Aquelas sensações que têm menos a ver com
questões existenciais transcorrem ligeiramente, sem permitir
que a consciência se concentre nelas.

24 de novembro de 1904

III

No ano de 1913, nem Khlébnikov nem os seus pares descan-


saram; ele e Aleksiéi Krutchônikh passaram a viver em São
Petersburgo, o que fez da cidade o novo local do movimento
cubofuturista. Em março os cubofuturistas se aliaram à União
da Juventude Pertersburguense, o que lhes trouxe auxílio fi-
nanceiro, inclusive para a produção da obra Vitória sobre o
Sol. De 1912 até o início de 1914, praticamente junto com o livro
Um jogo no inferno, de Khlébnikov, saiu o livro de poesia de
Krutchônikh, Amor à moda antiga, ilustrado por Mikhail La-
riónov. Seguiram-se várias publicações, incluindo Uma bofe-
tada no gosto do público, de 1913, além de uma segunda edição
de Um jogo no inferno, no final desse mesmo ano, desta vez
com ilustrações de Olga Rozánova e Kazímir
Malévitch. Houve o florescimento da amizade entre Khléb-

199
Ludmila Menezes Zwick

nikov e Mikhail V. Matiúchin, que era referência na União e


um de seus editores, bem como com Malévitch e Filônov, dois
artistas admirados por Khlébnikov.
No outono de 1913, Tchukóvski deu uma palestra em Mos-
cou e em São Petersburgo, A arte do futuro (poetas futuristas
russos), que foi editada e publicada. A motivação principal da
palestra era uma oposição aos inovadores locais da poesia
democrática influenciada pela obra Folhas de relva, de Walt
Whitman (1819-1892). Na ocasião, Tchukóvski foi contestado
por D. Burliúk, A. Krutchônikh e V. Maiakóvski. Há coinci-
dências lexicais na escrita de Krutchônikh e Khlébnikov ao
se referirem a Tchukóvski nessa ocasião; ambos o chamaram
de “comissário”, porque em um de seus discursos um policial
mantenedor da ordem fora lembrado da proibição pelo prefei-
to de ler em público versos dos futuristas.

Observações
polêmicas de 1913

Vocês, ondas de imundice e vício, e tempestades de torpeza


espiritual!
Vocês, Tchukóvskis,8 Iablonovskis!9 Saibam, guiamo-nos pe-
las estrelas, temos a mão firme no leme e nossa embarcação
não teme seus cercos e assaltos. O pirata literário Tchukóvski,
com o machado de Whitman,10 saltou em nosso convés duran-

8 Kórnei Ivánovitch Tchukóvski (1882-1969): crítico literário e autor de livros infantis que em
seus artigos e palestras frequentemente se referia ao trabalho de Khlébnikov e opunha-se
ao futurismo. (N. da E.)
9 Trata-se de uma das assinaturas de Serguéi Víktorovitch Potréssov (1870–1953), um
jornalista moscovita, autor de vários artigos satíricos sobre o futurismo; citado por David
Burliúk em seu texto de 1914, O vergonhoso pilar de um crítico russo. (N. da E.)
10 Refere-se a um texto de Tchukóvski sobre o poeta americano com o título provocador de
O primeiro futurista. Maiores informações podem ser lidas no artigo de B. Lívchits, de 1919,

200
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

te a tempestade para apoderar-se do lugar do timoneiro e dos


tesouros da trajetória.
Mas você já não avista o cadáver dele flutuando nas ondas?

II

Ontem, o comissário de polícia Tchukóvski propôs que des-


cansássemos;11 tirássemos uma soneca em uma cela com
Whitman12 e uma certa -cracia.13 Mas os orgulhosos cavalos-
-de-prjeválski bufaram com desdém e se recusaram. O freio
dos citas, aquele que você vê no vaso Tchertomlyk – permane-
ceu suspenso no ar.

IV

O texto a seguir trata-se de uma carta mesclada, escrita ao


mesmo tempo em que ora a mensagem é dirigida a uma per-
sonagem sem nome, mas pertencente ao círculo do autor (pro-
vavelmente Nikolai Búrliuk), ora a Filippo Tommaso Marinetti
(1876-1944), que visitara a Rússia a convite da Sociedade Inter-
nacional de Contatos Culturais. Na noite de 1º de fevereiro de
1914, Khlébnikov apareceu na primeira palestra do futurista
italiano, por ocasião de sua única visita à Rússia, para distri-
buir um folheto assinado por ele e pelo poeta Benedíkt Lív-
chits. Essa carta foi escrita por Khlébnikov no dia seguinte a
esse episódio, quando o folheto em questão foi reimpresso no
periódico jornalístico Notícias da Bolsa. A seguir, a reprodu-
ção do folheto: “Hoje, por razões pessoais, a colônia italiana
no Nevá e alguns nativos caem aos pés de Marinetti, traindo a

Na cidadela da palavra revolucionária. (N. da E.)


11 (N. da T.)
12 (N. da E.)
13 Do gr. -kratía, as, do gr. krátos, eos-ous, “força”; “poder”; “autoridade”; “soberania”; “domí-
nio”; “governo” (Dicionário Caldas Aulete). (N. da T.)

201
Ludmila Menezes Zwick

arte russa em seus primeiros passos no caminho da liberdade


e da honra, e inclinam a nobre altivez da Ásia sob o jugo da
Europa. Aquelas pessoas que não aspiram à coleira de cavalo
em torno do pescoço, como nos dias vergonhosos de Verhae-
ren e Max Linder, serão as silenciosas contempladoras de uma
sombria façanha. Aquelas pessoas dotadas de vontade perma-
necerão de lado. Elas recordam-se das leis da hospitalidade,
mas o arco delas está retesado, e a fronte está encolerizada.
Forasteiro, lembre-se em que país você está! Carneiros da hos-
pitalidade com os colarinhos de renda da servidão”.14
Em princípios de 1914, Khlébnikov teria declarado que o gos-
to público de seu tempo usava o bigode gótico de Marinetti.
Solicitava então que trouxessem esse gosto público à sua pre-
sença para que pudesse dar-lhe uma bofetada. No entanto, de-
ve-se ter em mente a ambiguidade da atitude de Khlébnikov
em relação ao líder do futurismo italiano em textos como O
trompete dos marcianos15.
Neste texto, Khlébnikov saúda os terráqueos e lhes adverte:
“O cérebro humano até hoje estava pulando em três pernas (os
três eixos de localização)! Como um lavrador, a cultivar o cé-
rebro humano, refazemos este cãozinho dando-lhe uma quar-
ta perna, a saber – o eixo do tempo. Oh, cãozinho coxo! Não
mais torturarás nossos ouvidos com teu latido desagradável!
As pessoas do passado não eram mais inteligentes que nós;
elas acreditaram que as velas do Estado poderiam ser cons-
truídas apenas para os eixos do espaço. Nós, trajados apenas
com uma capa de triunfos, começamos a construir uma alian-
ça juvenil com a vela rente ao eixo do TEMPO, e advertimos de
antemão que nossa dimensão é maior que a de Quéops, e que
nossa incumbência é valente, majestosa e intransigente”. E
ele prossegue, dizendo que as questões futuristas estão em um
espaço desabitado, em que o homem sequer chegou, “imperio-
samente as marcaremos com ferrete na testa da Via Láctea, e
na deidade circular dos negociantes – questões sobre como
libertar o motor alado de sua via engordurada, o trem de carga

14 KHLÉBNIKOV, 2005, p. 345.


15 Baseado nas notas da edição russa.

202
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

das gerações passadas. Deixe as faixas etárias se desprende-


rem e viverem apartadas! Desatrelamos os comboios atados à
locomotiva de nossa ousadia – não há nada lá, salvo as lápides
dos jovens...”. Khlébnikov ainda clama pela rendição de todos
os que estão mais próximos da morte do que do nascimento
para que os jovens futuristas possam passar, acusa a geração
passada de ter em suas próprias mãos a morte de seus ídolos
– Púchkin e Liérmontov –, bem como do envio de homens do
porte de Lobatchévski para atuar como professor em escola
paroquial e do de Montgolfier para um hospício, e então ques-
tiona o que tal geração faria com os futuristas, que das fileiras
humanas saem para as fileiras marcianas; e, entre os convida-
dos sem direito a voto para o Conselho Marciano, Khlébnikov
convoca H.G. Wells e Marinetti

Seu tagarela sem talento!16

Deixemos de lado a conduta bestial do dr. Kulbin.17 Este in-


sensato de mente débil, este Lichard18 fiel, este tolo convenci-
do, esperava que sua injúria obstinada maculasse o nome de
alguém. Porém, na conduta bestial desse médico de renome,
ouço uma voz italiana, que guia um polichinelo; então, com
certo asco por esse negócio sujo, retorno para você as palavras
de Kulbin: vilão, canalha. Ele é seu servo (o eslavo encontrou
um senhor com um cnute). Defenda seu criado como alguém
mais forte e mais igual a mim, e assuma a responsabilidade
por sua conduta, carregando o peso dessas palavras: “vilão”,
“canalha”, e aceite uma bofetada na cara, destinada a Marinet-
ti, aquele vegetal italiano.
Entenda esta carta como quiser, junto ou separadamente de
seus três amigos, mas aqui o Oriente lança um desafio ao arro-
gante Ocidente, pisoteando com desprezo os corpos dos devo-
radores de carniça.
Seu italiano Marinetti (discurso em Notícias da Bolsa19 nº

19 Birjevýe Védomosti (Биржевы́е ве́домости) foi um jornal pertersburguense diário, de

203
Ludmila Menezes Zwick

13984) nos surpreende com sua agradável desenvoltura.


Não carecemos aceitar essas infusões de fora, porque nos
lançamos ao futuro em 1905. O fato de Burliúks e Kulbins não
terem percebido essa mentira indica que eles eram simulado-
res, e não autênticos.
A propósito, seu discurso no nº 13984 é um monólogo de Gri-
boiédov20 (“O francês de Bordeaux”).
Amigo, você chegou atrasado à Rússia, você deveria ter vin-
do em 1814. Cem anos de erro no nascimento de um homem do
futuro.
A corrida frenética da vida não se encerra para que um fran-
cês de Bordeaux intervenha a cada século.
Portanto, recorrendo à mesma linguagem que seu escravo
Kulbin utilizou, você é um vilão e um canalha. Assim, um futu-
rista honra o janota francês de Bordeaux. Adeus, seu vegetal!
Estou convencido de que em outros tempos nos encontrare-
mos junto ao estrondo de canhões, em um duelo entre a coa-
lizão ítalo-alemã e os eslavos, na costa da Dalmácia. Sugiro
Dubróvnik como o lugar de encontro de nossos amigos.
P.S. Visto que seu amigo rejeitou qualquer responsabilidade
por suas palavras, estou inteiramente convencido de que sua
conduta corresponderá à dele e decidi não importuná-lo com
quaisquer pedidos, pois considero o incidente encerrado.
A covardia é uma característica popular dos italianos; eles
são comerciantes talentosos e fraudadores magistrais.
Minha carta não será um segredo.
De agora em diante, não tenho nada em comum com os
membros da Guiléia.21

cunho político, econômico e literário liberal, uma gazeta mercantil com um boletim diário do
mercado de ações, ativo de 1861 a 1879. (N. da T.)
20 Alusão ao poeta, dramaturgo, compositor, pianista e diplomata Aleksandr S. Griboiédov
(1795-1829). (N. da T.)
21 O poeta Aivchiu Benedíkt Naumóvitch (1886-1939), membro da Guiléia, confirmou e des-
creveu em suas memórias a atitude de vários representantes da arte de vanguarda russa
em relação a Marinetti, bem como a posição da imprensa liberal russa ao cobrir a visita de
um futurista estrangeiro. Naquela época, Khlébnikov havia encontrado em Lívchits um alia-
do para expressar sua própria posição social e cultural. Nas memórias do próprio Lívchits,

204
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

2 de fevereiro 1914
V. Khlébnikov
B. Lívchits

A Nota autobiográfica a seguir foi provavelmente escrita


na mesma época do preenchimento do formulário usado por
Semión Afanássievitch Venguérov (1855-1920) para seu ina-
cabado Dicionário crítico e bibliográfico de escritores russos;
Khlébnikov participou e foi influenciado pelo famoso semi-
nário de Venguérov sobre Púchkin. Esse formulário continha
nove questões, entre elas, nome e local de nascimento, nome
dos pais, formação educacional e religião, um delineamento
das atividades literárias e alguma história da formação que in-
dicasse qualquer influência intelectual e social; a esta pergun-
ta, Khlébnikov respondeu: “Meu pai é um admirador de Dar-
win e Tolstói; é um grande conhecedor do reino das aves e as
estudou a vida inteira...”; como evento marcante de sua vida,
ele recordou um trabalho científico, Professor e aluno, em que
chegara a conclusão de que os eventos semelhantes na histó-
ria ocorrem a cada 365 ± 48 anos (a ponte para as estrelas)22.

Nota autobiográfica
Nasci em 28 de outubro de 1885, num campo de budistas nô-

este narra que ambos, ainda na gráfica, levaram um quarto de hora para obter a autorização
de distribuição do folheto e Khlébnikov fez algumas alterações no texto, suavizando as ex-
pressões que lhe pareciam duras demais. Passada a palestra de Marinetti, David Búrliuk e V.
Maiakóvski sairiam em turnê pela Crimeia, declarando a independência da nova arte russa;
para Maiakóvski e outros, o futurismo era um movimento social nascido de uma grande
cidade, destruindo, portanto, todo tipo de diferença nacional. Para eles, a poesia do futuro
seria então cosmopolita. (N. da E.)
22 KHLÉBNIKOV, 2006, p. 240. Baseado nas notas da edição russa.

205
Ludmila Menezes Zwick

mades23 da Mongólia – na “sede do canado”, na estepe24 –, o


fundo seco de uma parte desaparecida do mar Cáspio (o mar
de quarenta nomes). Durante as viagens de Pedro, o Grande,
no Volga, um dos meus antepassados25 ​​serviu-o com um cá-
lice de moedas de ouro oriundas de banditismo. Em minhas
veias tenho sangue armênio (os alabovs)26 e sangue cossaco27
(os verbítskis), cuja linhagem especial manifesta-se no fato de
que Prjeválski,28 Miklúka-Maklái29 e outros exploradores eram
descendentes dos filhos de Sietch.
Pertenço ao local onde o Volga encontra o mar Cáspio (Si-
gái). Essa área, mais de uma vez ao longo dos séculos, manteve
o equilíbrio da história russa e agitou a balança.
Fiz uma aliança matrimonial com a morte e, portanto, sou
casado. Tenho vivido pelos rios Volga, Dniéper, Nevá, Moscou
e Gorýn.30

23 Os Derbétys (Málye Derbéty, Calmúquia) pertencem à tribo mongol ocidental que migrou
para as estepes no século XVI; praticam o lamaísmo, que surgiu no Tibete entre os séculos
XIV e XV. (N. da E.)
24 Khlébnikov nasceu e viveu seus primeiros cinco anos nos arredores do mosteiro lamaís-
ta da estepe da Calmúquia (território de Astracã). Vide poema, de 1909, em que Khlébnikov,
vivente atado à natureza, escreveu: “Estava cercado por estepes, flores, camelos blaterando
(...). Um mar de ovelhas cujas faces são uniformemente magras (...). Cinturão cossaco com
gravuras bordadas (...). Aí está, homem, o que preencheu minh’alma” (Khlébnikov, 2000, p.
205). (N. da T.)
25 Acerca desse ancestral, segundo os historiadores locais, Pedro teria se encontrado em
1696 com P. Kúrotchkin, o mártir de Astracã, cujo parentesco com os Khlébnikov não foi
comprovado. (N. da E.)
26 Origem por parte de mãe. (N. da E.)
27 Mais exatamente, de Zaporojskaia Sietch, espécie de república dos Estados cossacos.
(N. da E.)
28 Nikolai М. Prjeválski (1839-1888), explorador e membro honorário da Academia de Ciên-
cias de São Petersburgo (1878), realizador de diversas explorações na Ásia, onde descobriu
uma série de cadeias, bacias e lagos em regiões como as do platô tibetano. Catalogou
plantas e animais; descreveu pela primeira vez um cavalo selvagem, o cavalo-de-prjeválski.
(N. da E.)
29 Nikolai N. Miklúka-Maklái (1846-1888), explorador, antropólogo e biólogo que se opôs
ao racismo e estudou a população indígena do sudeste; entre os anos de 1870-1880, viajou
pela Ásia, Austrália e Oceania. (N. da E.)
30 Rio da Volýnia (Ucrânia). Os Khlébnikov residiam na antiga propriedade dos príncipes
poloneses de Czartoryski. (N. da E.)

206
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

Atravessando o istmo31 que une os reservató-


rios do Volga e do Liêna, fiz alguns punhados de
água fluir para o oceano Ártico em vez de para o
mar Cáspio.
Nadei no golfo de Sudák (três verstas32) e no
Volga, em Ienotáevka. Montei cavalos indômitos
em estábulos alheios. Exigi que o idioma russo
fosse purificado33 do lixo de palavras estrangei-
ras, tendo feito tudo o que se pode esperar em
dez páginas.
Publiquei Encantação pelo riso; dei às pessoas
em 365 ± 48 os meios para prever o futuro, desco-
bri a lei das gerações; Menina-Deus, onde povoei
o passado russo com sombras radiantes; Amiza-
de campesina; abri uma janela para as estrelas
por entre as leis cotidianas da vida das pessoas.
Outrora fiz um apelo público34 aos sérvios
e montenegrinos por ocasião da pilhagem da
Bósnia-Herzegovina, um apelo que em parte
se justificou alguns anos depois na Guerra dos

31 Vide, de Khlébnikov, Rázin às avessas, que reverencia o rebelde camponês do final do


século XVII. (N. da E.)
32 Medida itinerária da Rússia, equivalente a 1067 metros. (N. da T.)
33 Vide Snegúrotchka; Khlébnikov representa essa personagem de conto de fadas segundo
o princípio simbolista de estar imerso em um universo dramático-mitológico, de modo a
resgatar pela via da língua e da cultura o universo do mito arcaico eslavo, trazendo seus
deuses e heróis do passado sem passar pelo presente, já rumo ao futuro pelo viés da pala-
vra que se autogera. (N. da T.)
34 Em Apelo aos eslavos, de 1908, saudando uma guerra santa pela unidade eslava, pelos
direitos pisoteados dos eslavos, Khlébnikov escreveu: “Hoje, Lübeck e Dantzig nos conside-
ram silenciados, nos testam – cidades com populações alemãs e nomes eslavos russos.
Seus corações não sentem nada pelos eslavos da Polábia? Nossas almas não foram

207
Ludmila Menezes Zwick

Bálcãs e em defesa dos ugro-russos,35 a quem os alemães clas-


sificam como do reino vegetal.
O continente, despertando, entrega seu bastão às pessoas
que vivem à beira-mar.
Em 1913 fui nomeado o grande gênio da atualidade, cuja pa-
tente guardo até agora.
Nunca prestei serviço militar

VI

O motivo do texto a seguir de Khlébnikov foram as “Cartas


de Amizade” escritas por dois estudantes japoneses e reim-
pressas pelo jornal moscovita Palavra Russa em 21 de setem-
bro de 1916, extraídas do jornal de Tóquio Kokumin-Shimbun,
cuja edição especial de 11 de setembro de 1916 anunciava uma
viagem do príncipe herdeiro à Rússia em missão diplomáti-
ca. Tal edição continha a matéria de um concurso juvenil cujo
tema eram as relações russo-japonesas. A carta do vencedor,
Sotaro Yamana, foi impressa em uma tradução para o russo, e
a carta de Toya Mornta referia-se aos russos como pessoas do
Oriente que viviam na Europa, e aos japoneses como pessoas

mortalmente envenenadas pela visão de Reicher, trajado de ferro, correndo sua lança pelos
camponeses eslavos? Seus ultrajes são grandes e suficientes para embeber toda uma hoste
de cavalos de vendeta – então os conduzimos do Don ao Dniéper, do Volga ao Vístula. (...)
Os cavalos russos sabem como bater seus cascos nas ruas de Berlim. Nós não esquece-
mos isso. Ainda sabemos o que significa ser russo. (...) Abaixo os Habsburgo! Detenham os
Hohenzollern!” (Khlébnikov, 2005, p. 197-198). (N. da T.)
35 Quem são os ugro-russos?, texto de 1913. “Chamados pelos húngaros de ‘órochis’, os
ugro-russos, que se autodenominam russniaks ou russos, compreendem uma população de
500 a 700.000 habitantes e vivem em uma estreita faixa de terra entre a Hungria e a Galícia.
No momento, estão sofrendo pressão simultânea da Santa Sé, esperançosa de adquirir no-
vos filhos espirituais, e de Budapeste e Viena, que tentam engolir um grupo de pessoas que
não são alemãs nem magiares. Representando a linha de frente da enchente eslava no sopé
das terras magiares, imersos em seus trabalhos agrícolas, os ugro-russos nem sempre
sabem que são objeto de um comércio vigoroso entre a Cidade Eterna e a capital dos Habs-
burgo, cujo meio de troca é sua antiga fé ortodoxa, à qual se referem como russos. Sob a
pressão do catolicismo, plantado ora com violência por uma mão laica e militar, ora discreta
e ardilosamente pela distorção dos livros litúrgicos, o povo ugro-russo está perdendo fortifi-
cações que pareciam inexpugnáveis...” (Khlébnikov, 2005, p. 68-69). (N. da T.)

208
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

do Ocidente que viviam no Extremo Oriente. No texto havia a


esperança de que em um futuro próximo o russo pudesse ser o
unificador da cultura juvenil do Extremo Oriente e da cultura
do Norte da Europa. Esses dois jovens japoneses teriam se di-
rigido ao jornal russo para que este fosse uma ponte entre os
jovens do Japão e da Rússia.36

Carta a dois japoneses

Nossos amigos distantes! Sucedeu-me ler sua carta do jornal


Kokumin-Shimbun e refleti se seria inoportuno responder-
-lhes. Decidi que não; então, por meio desta, apanho a bola e a
lanço de volta para vocês, convoco-os a tomar parte do jogo de
bola da geração mais jovem. Pois bem, vocês nos estenderam
sua mão, por isso os cumprimentamos com o aperto de nossa
mão, e agora as mãos dos jovens de dois países estão unidas
em toda a Ásia, como o arco da aurora boreal. E nossos me-
lhores desejos vão com o aperto de mão! Suponho que vocês
não nos conheçam, mas ocorreu de parecer que estão escre-
vendo para nós e sobre nós. As mesmas opiniões sobre a Ásia
que lhes ocorreram de modo tão inteligente e súbito, vieram
às nossas cabeças. Pois acontece que, mesmo distantes uma
da outra, as cordas começam a soar ainda que nenhum músico
as tenha tocado, elas são despertadas por um som misterioso
que ambas compartilham. E vocês ainda falam diretamente
com os jovens de nosso país em nome de seus jovens. Essa é
uma resposta muito coesa às nossas ideias sobre uma aliança
mundial juvenil e os conflitos entre gerações. Afinal, as gera-
ções caminham e falam de modos distintos. Compreendo me-
lhor japoneses jovens falando o idioma arcaico do que alguns
de meus compatriotas falando o russo moderno. Talvez muita
coisa dependa do fato de que os jovens da Ásia nunca aper-
taram as mãos uns dos outros, e não se reuniram para trocar
opiniões e para julgar assuntos comuns. Pois se existe um
conceito de terra para os pais, então existe um para os filhos

36 Baseado nas notas da edição russa.

209
Ludmila Menezes Zwick

e devemos salvaguardar os dois. Como parece, o objetivo con-


siste em não interferir na vida dos idosos, mas em construir
nossa própria vida junto deles. Outra coisa compartilhada, que
sentimos substancialmente, e sobre a qual nos calamos, é que
a Ásia não é apenas uma terra do norte habitada por um poli-
nômio de povos, mas é de fato uma espécie de miscelânea de
caracteres antigos, dos quais deve surgir a palavra eu. Talvez
ninguém ainda a tenha colocado por escrito; então, não é nos-
so destino comum, com alguma pena, colocá-la de imediato
por escrito? Que a mão do escritor universal reflita sobre isso!
Pois bem, vamos arrancar um pinheiro na floresta, mergulhá-
-lo no tinteiro do oceano e escrever nosso emblema-estandar-
te: Eu sou da Ásia. A Ásia tem vontade própria. Se o pinheiro
partir, usaremos o monte Everest. Pois bem, tomemos as mãos
uns dos outros, e tomemos as mãos de dois ou três hindus, e
daiaques, e escalemos a partir do ano de 1916, como uma alian-
ça dos jovens, reunidos não porque suas extensões de terra
se avizinham, mas em virtude da irmandade de geração. Tal-
vez possamos nos reunir em Tóquio. Afinal, somos egípcios
contemporâneos, já que podemos falar em transmigração de
almas, enquanto vocês costumam transparecer como os ante-
passados gregos. E quando o daiaque, um caçador de crânios,
pregar em sua cabana o cartão postal de A apoteose da guerra,
de Vereshcháguin,37 ele se juntará a nós. Mas o maravilhoso
é que vocês lançaram a bola e ela tocou nossos corações. Por
essa razão, nos concederam o direito de dar o segundo passo,
necessário para ambos os lados, mas irrealizável sem a amá-
vel iniciativa de vocês, porque com a devolução da bola, o jogo
começa.
Cordialmente, caros amigos japoneses,
V. Khlébnikov

37 Vassíli Vereshcháguin (1842-1904) foi um cronista pictórico da guerra. A obra A apo-


teose da guerra tinha sido originalmente chamada de O triunfo de Tamerlão, referência ao
conquistador da Ásia central que teria empilhado os crânios dos guerreiros mortos em ba-
talha sob a forma de pirâmide. O pintor viajou pela Índia, Síria, Palestina e Ásia Central; tinha
estúdios na Rússia, em Munique e em Paris, e sua obra foi amplamente exibida na Europa
e nos Estados Unidos. Faleceu quando desenhava a bordo de um navio de guerra durante a
Guerra Russo-Japonesa. (N. da T.)

210
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

211
Ludmila Menezes Zwick

Eis aqui uma agenda de questões que poderíamos debater


na primeira reunião de um congresso asiático:
1. Auxílio conjunto a inventores em sua luta com os compra-
dores. Os inventores são próximos e compreensíveis a nós.
2. A fundação do primeiro Ensino Superior Futurista.38 Ele
consistirá em vários (treze) locais alugados (por cem anos) de
habitantes com propriedades no território disposto à beira-
-mar ou entre as montanhas, próximas aos vulcões extintos de
Sião, da Sibéria, do Japão, do Ceilão, de Múrmansk, nas monta-

212
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

nhas ermas; lá onde há dificuldade e não há de quem adquirir


coisas, mas onde é fácil inventar. O radiotelégrafo unirá todos
eles entre si, e as lições serão transmitidas pelo radiotelégra-
fo. Devemos ter nosso próprio radiotelégrafo. Comunicação
por via aérea.
3. Em dois anos organizar ataques regulares contra as men-
tes dos habitantes desses territórios (não sobre seus corpos,
apenas a suas mentes) para caçar suas ciências, golpeando-as
com a flecha mortal das novas invenções.
4. Fundar o Diário Asiático para composições e invenções.
Isso acelerará nosso vôo de gaviões do futuro. Os artigos serão
impressos em qualquer idioma, radiotelegrafados a toda parte.
O conteúdo será traduzido dentro de uma semana. Então ele
se tornará uma chibata para a velocidade, se for diário e se
estiver em mãos futuristas!
5. Refletir sobre a rota da linha férrea do Himalaia, com ra-
mais em Suez e Malaca.
6. Não refletir sobre o classicismo grego, mas sim sobre o
asiático (Vidjai,39 os Ronins,40 al-Masih al-Dajjal41).
7. Criar aves de rapina para lidar com pessoas que estejam
se convertendo em coelhos. Nos rios, criar crocodilos. Exami-
nar as capacidades intelectuais da geração mais velha.
8. Em nossas propriedades pitorescas arrendadas para uso
temporário, instalar alojamentos de inventores, onde eles pos-

39 Campanha Vidjai; possível fonte de Khlébnikov: A história da humanidade. Ed. G. Guel-


molt. Vol. II, São Petersburgo, 1903, p. 489 (История человечества. Г: Гельмольта. Т. II.
СПб, 1903, С. 489). (N. da E.)
40 Um ronin era um guerreiro samurai do Japão feudal sem mestre ou senhor (daimio). (N.
T.)
41 Possível fonte de Khlébnikov: Malóv, Evguêni A. Akhyr Zaman Kitabi: Doutrina maome-
tana sobre o fim do mundo (Ахыр заман китаби: Мухаммеданское учение о кончине
мира). Kazan, 1897. (Livro popular entre os tártaros de Kazan.) Nas lendas apócrifas muçul-
manas, al-Masih ad-Dajjal é um tentador de pessoas que estabelecerá temporariamente
seu reinado antes do fim do mundo (correspondência tipológica com o anticristo). Nessa
doutrina, ele é uma figura do mal, o impostor que irá se passar pelo Messias antes do dia da
ressurreição islâmica. Dajjal, no árabe, é “falso profeta”, e al-Masih ad-Dajjal, com o artigo
definido, significa “o impostor”. O termo árabe para “falso messias”, al-Masih ad-Dajjāl, vem
do siríaco, Mšīḥā Daggālā, do vocabulário comum do Oriente Médio, antecede o Alcorão e
advém da Peshitta, a Bíblia em aramaico. (N. da E.)

213
Ludmila Menezes Zwick

sam viver de acordo com seu temperamento e gosto. Exigir


que as cidades e vilarejos das cercanias os alimentem e os
adorem.
9. Assegurar a transferência para nossas mãos daquela fra-
ção dos recursos que é nosso quinhão devido. A geração pas-
sada não aprendeu a extrair de si honradez suficiente em rela-
ção aos mais jovens, e, em muitos países, estes últimos levam
uma vida de cães de Constantinopla.
10. De resto, concederemos à geração mais velha proceder
como bem entender. O negócio dela é o regateio, a família e as
posses. O nosso é a invenção, as artes, o conhecimento e a luta
com ela.
11. Exterminar os idiomas sitiando seus segredos. A palavra
não será mais para uso diário, mas somente para a palavra.
12. Intervir na arquitetura. Habitações transportáveis com
ancoradouros para zepelins, gradeamento para as casas.
13. A linguagem dos números será o laurel dos jovens asiá-
ticos.
Podemos designar cada ação e cada imagem com um nú-
mero e, ao fazer com que um número seja avistado no vidro
da luminária, comunicar-nos dessa forma. Para compilar tal
dicionário para toda a Ásia (imagens e tradições de toda a
Ásia) contamos com o trato pessoal entre os membros da As-
sembleia dos Jovens do Futuro. A linguagem dos números é
especialmente adequada para telegramas de rádio. Conversa
numérica. A mente se libertará do desperdício sem sentido de
sua energia no discurso cotidiano.

Setembro de 1916

214
Textos de Velimir Khlébnikov em tradução anotada

Referências bibliográficas
Dos textos:
Khlébnikov, Velimir. Que assim leiam em minha lápide. In:
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 6, livro 1. Artigos (esboços). Traba-
lhos científicos. Apelos. Cartas abertas. Discursos 1904-1922.
Moscou: IMLI RAN, 2005, p. 7-8.
Khlébnikov, Velimir. Cerca de cinco ou mais sentidos. In:
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 6, livro 1. Artigos (esboços). Traba-
lhos científicos. Apelos. Cartas abertas. Discursos 1904-1922.
Moscou: IMLI RAN, 2005, p. 9-10.
Khlébnikov, Velimir. Observações polêmicas de 1913. In:
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 6, livro 1. Artigos (esboços). Traba-
lhos científicos. Apelos. Cartas abertas. Discursos 1904-1922.
Moscou: IMLI RAN, 2005, p. 219.
Khlébnikov, Velimir. Seu tagarela sem talento! In: Khlébnikov,
Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed. por R.V. Du-
gánov. Volume 6, livro 1. Artigos (esboços). Trabalhos cientí-
ficos. Apelos. Cartas abertas. Discursos 1904-1922. Moscou:
IMLI RAN, 2005, p. 222-223.
Khlébnikov, Velimir. Nota autobiográfica. In: Khlébnikov,
Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed. por R.V.
Dugánov. Volume 6, livro 2. Tabelas do destino. Pensamentos
e notas. Cartas e outros. Materiais autobiográficos 1897-1922.
Moscou: IMLI RAN, 2006, p. 243-244.
Khlébnikov, Velimir. Carta a dois japoneses. In: Khlébnikov,
Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed. por R.V.
Dugánov. Volume 6, livro 1. Artigos (esboços). Trabalhos cien-
tíficos. Apelos. Cartas abertas. Discursos 1904-1922. Moscou:
IMLI RAN, 2005, p. 252-256.

215
Ludmila Menezes Zwick

Das notas:
Dicionário Caldas Aulete. Disponível em: <http://www.aulete.
com.br/>. Acesso em: 29 dez. 2019.
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 1. Textos literários. Autobiografia.
Poesias 1904-1916. Moscou: IMLI RAN, 2000, p. 8; 205; 330.
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 3. Poemas 1905-1922. Moscou: IMLI
RAN, 2002, p. 422; 457; 488.
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes.
Ed. por R.V. Dugánov. Volume 4. Poemas dramáticos. Dramas.
Cenas 1904-1922. Moscou: IMLI RAN, 2003, p. 176.
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 5. Poesia em prosa. Contos, novelas,
ensaios, sagas 1904-1922. Moscou: IMLI RAN, 2004, p. 230; 411;
416; 428.
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 6, livro 1. Artigos (esboços). Traba-
lhos científicos. Apelos. Cartas abertas. Discursos 1904-1922.
Moscou: IMLI RAN, 2005, p. 352-440.
Khlébnikov, Velimir. Coletânea de obras em seis volumes. Ed.
por R.V. Dugánov. Volume 6, livro 2. Tabelas do destino. Pen-
samentos e notas. Cartas e outros. Materiais autobiográficos
1897-1922. Moscou: IMLI RAN, 2006, p. 341-342.
Terras, Victor. A Karamazov Companion: Commentary on the
Genesis, Language, and Style of Dostoevsky’s Novel. Madison:
University of Wisconsin Press, 2002.

Recebido em: 23/02/2020


Aceito em: 23/03/2020
Publicado em junho de 2020

216
Epos e lírica na Rússia
contemporânea –
Vladímir Maiakóvski e
Boris Pasternak1
Marina Tsvetáeva
Tradução de Aurora Bernardini*

Resumo: Marina Tsvetáeva explica Abstract: In the first part of Marina


em parte, nessa primeira metade de Tsvetaeva’s essay “Epos and Lyrics
seu ensaio “Epos e lírica na Rússia in contemporary Russia - Vladimir
contemporânea – Vladímir Maiakóvski Mayakovsky and Boris Pasternak” the
e Boris Pasternak” por quê, na poesia poet explains why she puts side by side
russa do século passado, ela coloca the names of the two poets. According
os nomes dos dois poetas, Vladímir to her personal concept of poetry she
Maiakóvski e Boris Pasternak, um juxtaposes and exemplifies both poets’
ao lado do outro, segundo seu characteristics and works. (Part II will
conceito pessoal de poesia. Em sua be published in the next issue (n. 16) of
explicação ela exemplifica e contrasta RUS)
as características e os poemas dos
dois poetas. (A parte II do ensaio será
publicada no N. 16 da RUS.)

Palavras-chave: Marina Tsvetáeva; Poesia russa do séc. XX; Vladímir Maiakóvski;


Boris Pasternak
Key-words: Marina Tsvetaeva; 20th century Russian poetry; Vladimir Mayakovsky;
Boris Pasternak.

217
Aurora Bernardini

Parte I

* Professora Titular dos Progra- O motivo pelo qual, ao falar da poesia contemporânea na
mas de Pós-Graduação em Litera- Rússia, eu ponho esses dois nomes um ao lado do outro, é por-
tura e Cultura Russa e em Teoria
Literária e Literatura Comparada que eles estão um ao lado do outro. Ao se falar de poesia russa,
da USP. E-mail: bernaur2@yahoo. é possível nomear apenas um deles, pode-se nomear um sem
com.br https://orcid.org/0000-
0002-25597080
nomear o outro: de qualquer maneira estará sendo dada toda
a poesia, tal como acontece para todo grande poeta, uma vez
que a poesia não se fragmenta nem em poetas, nem dentro dos
poetas; em todas suas manifestações ela é única, uma coisa
só, em cada um deles – exatamente como, em substância, não
existem os poetas: há o poeta, sempre o mesmo poeta, do co-
meço ao fim do mundo, uma força que, a cada vez, se colore
com a cor dessas ou daquelas épocas, gentes, países, idiomas,
vultos, que passam através dela, a força que carregam como
um rio essas ou aquelas margens, nesses ou naqueles céus,
nesses ou naqueles leitos (caso contrário nunca entendería-
mos Villon, que compreendemos inteiramente, sem sequer
considerar a incompreensibilidade física de algumas pala-
vras. Voltamos a ele como justamente se retorna a um rio de
seu país natal.)
Então, se coloco lado a lado Pasternak e Maiakóvski, se os
coloco próximos, mas não os proponho juntos, não é porque
um seja pouco, não é porque um tenha necessidade do outro
ou o complemente (repito: cada um deles está cheio até a orla
e a Rússia é cheia de cada um deles – é dada por cada um
deles, até a orla, e não apenas a Rússia, mas a própria poe-
sia), faço isso para mostrar duas vezes que o que Deus quis que
ocorresse uma vez a cada cinquenta anos, aqui foi mostrado
pela natureza duas vezes em cinco anos: o milagre puro e ple-
no do poeta.

1 Por haver sido realizada em uma época em que as obras da poeta não eram disponíveis
na antiga URSS, a tradução foi realizada a partir do texto original russo retirado do volume
M. I. Cvetaeva ausgewälte Werke – Wilhelm Fink Verlag: Munique, 1971, uma das mais con-
ceituadas editoras alemãs. Foi respeitada, na medida do possível, a pontuação característi-
ca da autora, especialmente no que se refere ao seu sinal característico: o travessão.

218
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

Coloco-os lado a lado porque eles mesmos puseram-se e


permaneceram próximos na sua época, no ponto mais alto de
sua época.
Ouço uma voz: – “A poesia contemporânea na Rússia”. “Pas-
ternak, sim, Pasternak, mas por que não Maiakóvski que, em
1928...”
Em primeiro lugar, quando falamos de um poeta – queira
Deus que lembremos do século desse poeta. Em segundo lugar,
e inversamente: ao falar do poeta em questão, de Maiakóvski,
no caso, teremos que lembrar não apenas do século dele, mas
teremos que lembrar continuamente dele um século adiante.
Este lugar vago, de primeiro poeta no mundo, das massas, não
será preenchido tão rapidamente. E nós – mas, quem sabe até
nossos netos – ao olharmos para Maiakóvski teremos que vol-
tar-nos não para trás, mas para frente.
Quando, em alguma reunião literária, na França, ouço nomes
sendo mencionados, menos o de Proust, à minha pergunta
inocente: “Et Proust?” eles respondem – Mais Proust est mort,
nous parlons des vivants2– é como se eu sempre caísse das
nuvens: por qual critério é possível estabelecer a mortalidade
ou a vitalidade de um escritor? É possível que X esteja vivo,
contemporâneo e ativo só porque que ele pode comparecer a
essa reunião e Marcel Proust esteja morto por não poder com-
parecer, nunca, em lugar algum, com suas pernas? Assim é
que se julgam apenas os corredores.
Em resposta a isso, pergunto calma, benévola:

– Onde poderei encontrar jamais


Alguém, como eu, de pés alados?

Com seus pés alados Maiakóvski avançou além, muito além


de nosso mundo contemporâneo, e em algum lugar, numa es-
quina qualquer, ele terá que ficar esperando por nós, ainda por
muito tempo.

2 “Mas Proust está morto, nós falamos dos vivos”.

219
Aurora Bernardini

Pasternak e Maiakóvski são coetâneos. Ambos são moscovi-


tas. O primeiro por nascimento, o segundo por formação. Am-
bos chegaram à poesia por caminhos outros. Maiakóvski pela
pintura, Pasternak pela música. Ambos acrescentaram algo
diferente à poesia: Maiakóvski “o golpe de vista de ave de rapi-
na do simples, do simples carpinteiro” e Pasternak, tudo o que
é indizível. Ambos a enriqueceram. Ambos não encontraram
a si próprios logo, mas ambos se encontraram definitivamente
na poesia. (Incidentalmente: melhor demorar a encontrar a si
próprio no outro do que em si mesmo. Vaguear no que não é
próprio e encontrar a si mesmo no que lhe é peculiar, nativo.
Assim, pelo menos, terá evitado as “tentativas”).
Os Irrjahre3 de ambos terminaram cedo. Mas à poesia Maia-
kóvski chegou também graças à Revolução e não se saberia
dizer se mais graças à pintura ou à Revolução. Graças à atua-
ção revolucionária. Aos dezesseis anos já estava na prisão.
“Isso não é um mérito”. – Mas é um fato indicativo. Para o
poeta não é mérito, mas é indicativo para o homem. Para este
poeta, entretanto, é mérito também: ele começou pagando.
A fisionomia poética de cada um deles tornou-se complexa
e manifesta muito cedo. Maiakóvski começou mostrando-se
ao mundo com o vozerio, com a exposição. Pasternak – mas
quem pode falar do começo de Pasternak? Dele ninguém soube
nada, durante tanto tempo. (Viktor Chklóvski, numa conversa,
em 1922: “Ele tem uma fama tão boa: subterrânea”). Maiakóvs-
ki aparecia, Pasternak ocultava-se. Maiakóvski se mostrava,
Pasternak se escondia. E se agora Pasternak tem um nome,
poderia facilmente não tê-lo: foi uma casualidade de um tem-
po e de um país propícios ao talento – de la carrière ouverte
aux talents, 4 e mesmo não ouverte mas offerte, oferecida, so-
mente se – na fileira dos poetas palatáveis, mas destinados ao
silêncio – o portador desse dom não fosse dissidente.
Maiakóvski, ao contrário, sempre teria um nome; não teria,
sempre teve um nome. E o nome – ele o teve antes de fazer-
-se a si próprio. Depois ele teve que correr para chegar lá. Eis

3 Irrjahre: anos de errância; de acordo com Tsvetáeva: anos de buscas.


4 “A carreira aberta aos talentos”

220
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

como os fatos de deram. Este jovem sentia dentro de si uma


força sem saber de que natureza – ele abriu a boca e disse –
EU! – Perguntaram-lhe: - Eu, quem? – E ele respondeu: – EU:
Vladímir Maiakóvski. – Mas quem é Vladímir Maiakóvski? –
Sou EU – E mais nada, por enquanto. Depois, em seguida, tudo.
Disso saiu: “Vladímir Maiakóvski, aquele é: EU.” As pessoas
riam, mas o EU nos ouvidos e a blusa amarela nos olhos – per-
maneceram. (Alguns, infelizmente, até hoje, nada mais viram
ou ouviram dele, mas ninguém o esqueceu).
Já, de Pasternak... conheciam o nome, mas era o nome do
pai: o artista de Iásnaia Poliana, a pastelista, o pintor das ca-
becinhas de mulheres e crianças. Ainda em 1921 eu ouvi dizer:
“Sim, Bória Pasternak, o filho do pintor, um rapaz tão educa-
do, tão bom. Ele esteve em nossa casa, algumas vezes. Então
ele escreve versos? Mas parece que era musicista”... Entre a
pintura do pai e sua própria (ótima) música de adolescente,
Pasternak ficou esmagado, como numa garganta, por duas
montanhas extremamente próximas. Como poderia se afir-
mar, nessas condições, o terceiro, o poeta? No entanto, às suas
costas, ele já tinha três etapas intermediárias (a começar pela
última): 1917: “Minha irmã, a vida” (publicada apenas em 1922);
1913: “Além das barreiras”; e a primeira, a primeiríssima, da
qual nem eu, escrevedora, sei o nome.5 O que não dizer dos
outros? Até 1920 conheciam Pasternak apenas aqueles poucos
que veem o sangue correr nas veias, que ouvem a grama cres-
cer. De Pasternak pode-se dizer, com as palavras de Rilke:

...die wollten blühn.


Wir wollen dunkel sein und uns bemühn6

Pasternak não queria a fama. Quem sabe o mau olhado lhe


desse medo: o olhar onipresente, estranho, imaterial, da fama.
Assim a Rússia deve resguardar-se do turismo estrangeiro.

5 “O gêmeo nas nuvens” (Blisniéts v tútchakh) – publicada em 1914.


6 Citação inexata (“... eles queriam florescer. / Nós queremos ficar na sombra e nos atare-
far.”) de:
...Sie wollten blühn,
und blühn ist schön sein; doch wir wollen reifen,
und das heißt dunkel sein und sich bemühn.” (Rilke, Im Saal, 1906.)

221
Aurora Bernardini

Ao contrário, Maiakóvski não tinha medo de nada, ficava


ereto, de pé, e vociferava, e quanto mais alto vociferava, mais
o escutavam as massas e quanto mais as massas o escuta-
vam, mais alto ele vociferava – e continuou vociferando até
“A guerra e o universo”,7 até o auditório de milhares de lugares
do Museu Politécnico8– e depois, até a praça de 150 milhões da
Rússia inteira.9 (De um cantante, diz-se – com toda a voz; de
Maiakóvski, diz-se – com todo o alento.)
Pasternak nunca terá uma praça. Ele terá, e já tem, uma mul-
tidão de solitários, uma multidão solitária de sedentos que ele,
fonte isolada, abebera. Anda-se atrás de Maiakóvski, mas pas-
sa-se por Pasternak, como por um lugar ignorado e vai-se pro-
curando água, quem sabe aonde, quem sabe por quê – confian-
tes, mas aonde? Mas por quê? – tateando, à ventura, cada um
por seu caminho, todos separados, sempre dispersos. Em Pas-
ternak, como na margem de um rio, pode-se se encontrar, para
se separar de novo, cada um abeberado, cada um lavado, cada
um carregando o rio consigo e sobre si. Sobre Maiakóvski, ao
contrário, como numa praça, ou se discute, ou se concorda.
Pasternak tem tantos leitores – quantas são as cabeças.
Maiakóvski tem um único leitor – a Rússia.
Em Pasternak, não se esquece de si: encontra-se a si próprio
e a Pasternak, ou seja, um novo olhar, um novo ouvir.
Em Maiakóvski, esquece-se de si e de Maiakóvski. Maia-
kóvski deve ser lido por todos juntos, quase em coro (em tom
de templo), em todo caso em voz alta, numa voz a mais alta
possível, o que acontece a cada um que o leia. Com toda a sala.
Com todo o século.
Pasternak deve ser levado consigo para qualquer lugar, como
um talismã contra aqueles que gritam em coro sempre aque-
las duas (indefectíveis) verdades de Maiakóvski. Ou melhor
ainda – como durante todos os séculos escreveram os poetas e
foram lidos os poetas – num bosque, em solidão, sem se preo-
cupar se o bosque são folhas, ou Pasternak, páginas.

7 Poema de Maiakóvski escrito em 1915-1916.


8 Local onde Maiakóvski costumava declamar seus versos.
9 150 000000 – poema de Maiakóvski escrito entre 1928 e 1930.

222
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

Eu disse: o primeiro poeta das massas do mundo. E ainda


acrescento: o primeiro poeta russo – orador. Da tragédia Vla-
dímir Maiakóvski10 até a última quadra:

Como se diz “o caso está encerrado”,


O barco do amor quebrou no cotidiano.
Estamos quites com a vida. Não cabe o elenco
Das dores mútuas, dos males, das ofensas.11

– em todo lugar, em todo Maiakóvski há um discurso dire-


to com um alvo vivo. Do elitista ao feirante, Maiakóvski está
sempre tentando enfiar alguma coisa em sua cabeça, tirar al-
guma coisa de dentro de você, com qualquer meio, mesmo o
mais grosseiro, infalivelmente eficaz.
Um exemplo deste último:

E na cama de Aleksandra Fiódorovna


Desabou Aleksandr Fiódorovitch12

– coisa que todos nós sabíamos, uma assonância de nomes


que todos haviam notado – nada de novo, mas – excelente! E,
qualquer coisa pensemos de Aleksadra Fiódorovna e de Alek-
sandr Fiódorovitch (e do próprio Maiakóvski), esses versos
nos satisfazem, satisfazem a cada um de nós como uma fór-
mula. Maiakóvski é aquele poeta para quem sempre tudo dá
certo, porque deve dar certo. Mesmo porque na beira extrema
por onde incessantemente anda Maiakóvski, errar o passo sig-
nifica – descambar. A arte inteira de Maiakóvski equilibra-se
entre o sublime e o banal. O caminho de Maiakóvski não é um
caminho literário. Todos os que seguem suas pegadas podem
demonstrá-lo. A força é inimitável e sem a força Maiakóvski
é – nonsense. O lugar comum elevado aos cumes do sublime
– aqui está, quase sempre, a fórmula de Maiakóvski. Nisso –
num outro século, numa outra língua – ele seria parecido com
Hugo, a quem, quero lembrar, ele venerava:

10 Trata-se da primeira obra dramatúrgica de Maiakóvski escrita em 1913.


11 De “Carta-testamento” do poeta, escrita entre 1928 e 1930, mas publicada postumamen-
te.
12 Citação não exata da obra de Maiakóvski “Moscou queima” (Moskvá gorit), de 1930.

223
Aurora Bernardini

Em cada jovem – os vícios de Marinetti,


Em cada velho – a sapiência de Hugo.13

Não por acaso é Hugo, e não Goethe, com quem Maiakóvski


nada tinha em comum.
Mas a quem fala Pasternak? Ele fala a si próprio. Queria até
mesmo dizer: na presença de si próprio, como na presença de
uma árvore, de um cão – de alguém que nunca o trairá... O lei-
tor de Pasternak – todo mundo sente isso – é um alguém que
espia. Olhos que espiam não em seu quarto (o que estará ele
fazendo?), mas diretamente sob sua pele, dentro de seu costa-
do (o que se passa ali?).
Apesar de todos os esforços (já foi há muitos anos) de sair
de si próprio, de falar àqueles (ou mesmo a todos) de uma dada
maneira e justamente daquilo, Pasternak acaba invariavel-
mente falando de outras coisas e de outra maneira e, princi-
palmente, a ninguém. Isso porque os seus são pensamentos
em voz alta. Acontece-lhe tê-los – diante de nós. Os esquece
– sem nós. Palavras de sonho, palavras de devaneio. “O sonado
balbuciar da Parca”....14

(A tentativa de conversação entre o leitor e Pasternak faz-


-me lembrar os diálogos de Alice no país das maravilhas, onde
a cada pergunta é dada uma resposta atrasada, escamoteada
ou que nada tem a ver com aquilo que foi perguntado – seria
muito precisa se – mas aqui é deslocada. A semelhança se ex-
plica com o fato de que em Alice foi descrito um tempo dife-
rente, o tempo do sonho do qual jamais saiu Pasternak).

Nem para Maiakóvski, nem para Pasternak há, na verdade,


um leitor. Para Maiakóvski, há alguém que ouve; para Paster-
nak, alguém que espreita, que espia, que segue até suas pega-
das.

13 Versos de “A guerra e o universo”, op. cit.


14 Alusão ao poema de 1830, de Púchkin: “Versos compostos numa noite de insônia”.

224
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

E deve ser acrescentado: Maiakóvski não necessita da co-


laboração do leitor: a bom entendedor – poucas palavras – e
com isso dá certo.
Pasternak depende todo da colaboração do leitor; para al-
guns, ler Pasternak é mais fácil – e quem sabe não seja tão
fácil assim – do que para Pasternak descrever a si próprio.
Maiakóvski age sobre nós, Pasternak – em nós. Pasternak
não se faz ler por nós, ele se completa, em nós.

Há uma fórmula para Pasternak e para Maiakóvski. É o ver-


so ambivalente de Tiútchev:

Tudo está em mim e eu estou em tudo.15

Tudo está em mim – Pasternak. Eu estou em tudo – Maia-


kóvski. Poeta e montanha. Para existir (para tornar-se verda-
deiro), Maiakóvski precisa das montanhas. Numa cela, isolado,
Maiakóvski – não é nada. Para que existissem as montanhas,
Pasternak precisava apenas nascer. Numa cela, isolado, Pas-
ternak – é tudo. Maiakóvski torna-se verdadeiro com a mon-
tanha. A montanha torna-se verdadeira com Pasternak. Maia-
kóvski sentiu-se, digamos, Urais – e os Urais ele se tornou. Já
não existe Maiakóvski. Existem os Urais. Pasternak embebeu-
-se dos Urais e fez dos Urais – si mesmo. Não existem mais os
Urais. Existe Pasternak. (É sabido: não existem os Urais fora
dos Urais de Pasternak. É isso mesmo e apoio-me em todos
aqueles que leram “A infância de Liuvers” e os “Versos uráli-
cos.”16
Pasternak é engolimento, Maiakóvski é restituição. Maia-
kóvski é autotransformação no objeto, autodissolução no ob-
jeto. Pasternak, transformação do objeto em si, dissolução do
objeto em si: sim, e mesmo dos objetos menos solúveis como
as rochas dos montes Urais. Todas as rochas dos Urais se dis-
solvem em sua corrente lírica, corrente de um rio tão enorme,

15 Do poema “As nuvens cinza se confundiram (Téni sízye smésilis), 1835.


16 Respectivamente, conto de Pasternak (Diétstvo Liúvers), de 1918, e ciclo de poemas de
Pasternak (Urálskie Stikhi), de 1919.

225
Aurora Bernardini

tão pesado, somente porque é lava – não, nem mesmo lava, a


lava é assim mesmo uma dissolução de terra homogênea –
uma solução saturada (de universo).
Maiakóvski é impessoal; transformou-se numa coisa, numa
pintura. Maiakóvski, enquanto nome, é coletivo. Maiakóvski é
o cemitério da Guerra e do Universo, é a pátria do Outubro, é
a coluna Vendôme, que pensa se casar com a Place de la Con-
corde 17; é o Poniatóvski em ferro fundido18 que ameaça a Rús-
sia e alguém (o próprio Maiakóvski) que o ameaça de um pe-
destal vivo, de multidões, é a ida a Versailles “pão!” É a última
Criméia, o último Vranguel19... não existe Maiakóvski. Existe
– o epos.
Pasternak permanecerá como um adjetivo: a chuva paster-
nakiana, a maré pasternakiana, o caroço pasternakiano, ete-
cetera.
Maiakóvski, permanecerá como coletivo: abreviativo.

No decorrer dos dias, Maiakóvski é um para todos (em nome


de todos).

(Os dez anos de outubro):


Não escondo a alegria sob a modéstia falsa.
Com os vencedores de fome e do breu berro a plena voz:
–“Fui eu!
Fomos nós!”20

(Não havia falsa modéstia nele, mas se lerem com atenção


verão que tipo de modéstia é a dele: a mais profunda, a mais

17 Tsvetáieva alude ao poema de Maiakóvski “Cidade” (Górod).


18 Nobre polonês (1763-1813), marechal de Napoleão, citado no poema de Maiakóvski
“Calças de ferro” (Tchugúnnye chtany), de 1927.
19 General russo, chefe das forças contrarrevolucionárias, que aparece no poema de 1927,
“Bem!” (Khorochó!), de Maiakóvski.
20 Trata-se, novamente, de Piotr Nikolaevitch Vranguel (1878-1928), general russo, chefe
das forças antirrevolucionárias que, em 1910, foi derrotado pelos Bolcheviques.
Do poema “De ônibus, por Moscou” (Avtóbusom po Moskvié) de Maiakóvski, composto em
1927, por ocasião do décimo aniversário da Revolução.

226
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

autêntica. Pela primeira vez o poeta sente orgulho de ser ele


também, de ser – todos!).
Pasternak, um de todos, entre todos, sem todos:

A vida inteira quis ser como todos,


Mas o mundo em sua beleza
Não ouviu minha tristeza
E quis ser ela – como eu!21

Pasternak é – a impossibilidade de fusão.


Maiakóvski é – a impossibilidade de não fusão. Maiakóvs-
ki, no ódio, funde-se com o inimigo mais do que Pasternak no
amor, com o ser amado. (Eu bem sei que também Maiakóvski
era só, mas era só exclusivamente por causa da excepciona-
lidade de sua força: não unicidade do indivíduo, mas a uni-
cidade da força). Maiakóvski é inteiramente humano. Nele,
até as montanhas falam uma língua humana (como nas fá-
bulas, como em qualquer epos). Em Pasternak, o homem é –
da montanha (aquela mesma torrente pasternakiana). Nada
enternece mais, quando Pasternak tenta imitar o homem, do
que aquela honestidade, levada até a escravidão, de algumas
passagens de “O tenente Schmidt”. 22 A tal ponto ele não sabe
como isso (ou aquilo, ou outro isso) possa acontecer ao ho-
mem, que – como num exame, o último aluno da classe copia
tudo de seu colega de carteira, inclusive os lapsos na escrita. E
que contraste terrível: Pasternak vivo, com sua linguagem, e a
linguagem de seu herói, como se fosse um objeto.
Tudo foi dado a Pasternak, fora um outro homem vivo – um
outro, em todas suas manifestações – seja ele um homem
qualquer ou determinado homem. Pois o outro homem de Pas-
ternak não é vivo, mas é uma espécie de coletânea de lugares-
-comuns e de ditos – como um alemão que queira exibir-se
pelo conhecimento que tem da língua russa. O homem comum
de Pasternak é o mais não comum. A Pasternak foram dadas
montanhas vivas, um mar vivo (e que mar, esse! o primeiro
da literatura russa depois do mar como elemento natural, e

21 Do poema de Pasternak “Uma doença sublime” (Vyssókaia bolézn)”, 1923 – 1928.


22 Poema de Pasternak (Leitenant Chmidt), de 1927.

227
Aurora Bernardini

comparável ao mar puchkiniano); mas o que adianta elencar?


foi-lhe dado vivo – tudo!

Aqui também a neve trescala


E a pedra respira sob o pé...

– tudo, fora o homem vivo, que pode ser aquele alemão ou


o próprio Pasternak, ou seja, uma individualidade que não se
parece com nada, ou seja, a própria vida, mas não um homem
vivo (Minha irmã, a vida – as pessoas não chamam assim a
vida).
Em seu conto genial de uma adolescente de quatorze
anos nos é dado tudo, menos a dita adolescente, a adoles-
23

cente pura, nos é dada – quer dizer – toda a intuição (e a apro-


priação) pasternakiana do todo, ou seja, a alma. Foi dada toda
a adolescência e todos os catorze anos, foi dada a adolescente
de todo jeito (dá vontade de dizer... aos pedaços), foram dados
todos os elementos que compõem a adolescente, mas aquela
adolescente, contudo, não foi realizada. Quem é? Como é? Nin-
guém saberá dizê-lo. Porque aquela adolescente não é aquela
dada adolescente, mas é a adolescente dada por meio de Boris
Pasternak: Boris Pasternak, se ele fosse uma adolescente, se
o tivesse sido, ou seja, o próprio Pasternak, Pasternak inteiro
– coisa que uma adolescente de catorze anos não pode ser.
(Pasternak não permite que os homens se tornem verdadeiros
através dele. Nisso ele é oposto de um médium ou de um ímã
– se é que existe o oposto de um médium ou de um ímã). O que
nos resta desse conto? Os olhos de Pasternak.
Mas vou dizer mais: esses olhos pasternakianos não per-
manecem apenas em nossa consciência, eles permanecem
fisicamente em tudo – como um sinal, uma marca, uma pa-
tente, para que se possa estabelecer com exatidão se se trata
de uma página de Pasternak ou de alguma outra coisa. Uma
vez absorvida a página com o olho, devolve-a com o olho (uma
gema, um broto). (Não posso reter essa – desculpem-me por
usar uma palavra tão pouco russa – reminiscência: o famoso e
encantador quadro em pastel de Pasternak (o pai), o pequeno

23 A infância de Liuvers, op. cit.

228
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

olho. Uma enorme jarra e, inclinando sobre ela, tanto de cobrir


e esconder totalmente o rosto de quem bebe, um enorme olho
infantil: um olhinho... Quem sabe o próprio Boris Pasternak na
infância, certamente Boris Pasternak – na eternidade. Se o pai
tivesse sabido quem, e sobretudo o que estava bebendo!)
Como escrevi um dia [1916], de uma maneira completamente
diferente – lírica, alegórica – sobre Anna Akhmátova:

E todos com teus olhos olham os ícones!

assim, hoje, com absoluta objetividade e verossimilhança,


poderia dizer de Pasternak:

E todos com teus olhos olham as árvores!

Todo poeta lírico absorve, mas a maioria absorve sem o fil-


tro e sem o obstáculo do olho, diretamente do exterior para
dentro da alma: mergulha a coisa na umidade lírica que todos
têm e a devolve colorida com essa alma lírica comum a todos.
Ao contrário, o olho de Pasternak filtra o mundo. Pasternak
é – uma filtragem. Seu olho – espreme. Pela retina do olho de
Pasternak escorre – jorra em torrentes – a natureza inteira;
às vezes até mesmo passa algum fragmento humano (sempre
inesquecível!), mas nenhum ser humano foi capaz de passar
por inteiro. Pasternak dissolve a ele também, invariavelmen-
te. Não homem, – mas solução humana.

Poesia! Esponja grega entre ventosas


Sê tu, e no meio da verdura pegajosa
Por-te-ei na tábua umedecida
Do banco verde do jardim.
Cultiva para ti golas e pomposas crinolinas,
Absorve nuvens e barrancos,
E à noite, poesia, te espremerei
À saúde da sedenta folha em branco.

Lembro que a esponja de Pasternak – tinge intensamente.


Tudo o que ela absorve não será jamais o que foi e nós que, ini-
cialmente, afirmamos nunca ter existido uma chuva daquela
espécie (como a de Pasternak), terminamos com a afirmação
de que nunca houve e jamais poderá haver nenhuma chuva
tão torrencial como a de Pasternak. Que é o caso de Oscar Wil-

229
Aurora Bernardini

de da influência da arte (em outras palavras: do olho) sobre


a natureza, ou seja, antes de mais nada sobre a natureza, do
nosso olho.

O homem vivo de Pasternak, conforme dissemos, ou é um


fantoche, ou é o próprio Pasternak, mas – de qualquer maneira
– é sempre um homem de palha. Maiakóvski, quanto ao ho-
mem vivo, é igualmente incapaz, mas por razões diferentes.
Se Pasternak fragmenta o indivíduo e o dissolve, Maiakóvski
o recria, o estende – em altura, em largura, em fundura (mas
nunca em profundidade!). Coloca-lhe por baixo o pedestal do
seu amor, ou então o estrado de seu ódio, de modo que o que re-
sulta não é a amada Lília Brik, por exemplo, mas uma Lília Brik
elevada à enésima potência de seu amor, do amor de Maia-
kóvski: de todo o amor de homem, de macho, e de poeta, uma
Lília Brik – Nôtre Dame. Ou seja, o amor em si, a grandeza do
amor de Maiakóvski, de todo o amor. – Se, ao contrário, se trata
de uma “guarda branca” (um inimigo), Maiakóvski lhe atribui
atributos de tamanha expressividade que ela não nos lembra-
rá nenhum outro conhecido vivo que foi ser voluntário. Será
como se víssemos o Exército Branco com os olhos do Exército
Vermelho: isto é, o epos vivo do ódio, isto é, um monstro perfei-
to (um bruto) e não um homem vivo (imperfeito, ou seja, com
suas virtudes, também). O general será –um homem a quem
cresceram monstruosamente as dragonas e as suíças; o bur-
guês será – um ventre que avança em nossa direção não como
um monte de carne, mas como um rochedo inteiro; o marido
(do poema “Amor” [1926]) será seu ódio, de Maiakóvski, ódio
que não estará em condições de justificar, nem que estivesse
de acordo, em sua nulidade, uma inteira centena de “maridos”.
Um marido assim não existe, mas um ódio assim – sim. Os
sentimentos de Maiakóvski não são uma hipérbole, mas um
indivíduo vivo é uma hipérbole. Quando se trata de amor – é
uma catedral. Quando se trata de ódio – é uma paliçada, isto é,
o epos de nossos dias: um manifesto.
A acuidade do olho de Maiakóvski, seu golpe de vista das

230
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

massas no ódio e a visão de toda a massa de Maiakóvski, no


amor. Não apenas ele, mas também seus heróis são – épicos,
ou seja, sem nome... Nisso é novamente semelhante a Hugo,
que nos espaços ilimitados e densamente povoados de Os mi-
seráveis não nos deu sequer um homem vivo, tal como exis-
te na realidade, mas: o Dever (Javert), o Bem (Monseigneur), a
Desgraça (Valijean), a Maternidade (Fantine), a Pureza (Coset-
te) – etc. etc.; Hugo, que nos deu desmedidamente mais do que
“o homem vivo”: as forças vivas, que movem o mundo. Pois –
insisto nisso com toda a autoridade – Maiakóvski, com o ódio
mais vivo, torna viva qualquer força, nem que se trate de uma
força meramente física. Ele deforma apenas quando despreza,
quando se encontra diante da fraqueza (mesmo que seja a de
uma inteira classe que triunfa!), e não da força – mesmo que
derrotada. Maiakóvski, em suma, só não desculpa a impotên-
cia. Sua potência confere mérito a qualquer potência. Lembre-
mos os versos dedicados a Poniatóvski e, sem ir longe demais,
as linhas geniais do último Vránguel, que se eleva sobre a últi-
ma a Crimeia e permanece como a visão extrema do Exército
Voluntário. Vránguel, que apenas Maiakóvski conseguiu fixar
na dimensão de sua desgraça desumana: Vránguel na dimen-
são da tragédia.
Diante da força, Maiakóvski adquire um olho infalível, mais
precisamente seu olho desmedido demonstra-se apropria-
do: normal. Pasternak engana-se na composição do homem,
Maiakóvski, na dimensão do homem.

Quando eu digo “arauto das massas” tenho a impressão de


ver ou o tempo em que todos tinham a mesma estatura, passo,
força, de Maiakóvski ou o tempo em que todos os terão. Por en-
quanto, porém, de qualquer maneira no campo das sensações,
ele é, sem dúvida, um Gulliver no meio de liliputianos que são
completamente iguais a ele, só que muito pequenos. É o que
diz Pasternak, em sua saudação ao poeta abatido:

Teu disparo foi semelhante a um Etna


Na falda da montanha de covardes.

231
Aurora Bernardini

O “homem vivo” de Pasternak e de Maiakóvski não é igual


também porque ambos são poetas, ou seja, homens vivos com
mais e com menos alguma coisa.

Ação de Pasternak e ação de Maiakóvski: Maiakóvski nos


traz de volta à realidade, ou seja, furando-nos os olhos o mais
largamente possível – um poste de quilometragem dentro da
coisa, ou então dentro do olho: Olha! Obriga-nos a ver a coisa
que sempre esteve lá, mas que nós não víamos por estarmos
adormecidos – ou por não querer vê-la.
Pasternak não apenas se imprime com seu olho sobre tudo;
ele ainda enfia em nós esse olho. Maiakóvski nos aclara. Pas-
ternak nos enfeitiça.
Ao ler Maiakóvski nos lembramos de tudo, menos de Maia-
kóvski.
Quando lemos Pasternak nos esquecemos de tudo, menos
de Pasternak.
Maiakóvski permanecerá cosmicamente em todo o mundo
exterior. Impessoalmente (solidamente). Pasternak permane-
cerá em nós como uma inoculação que transforma nosso san-
gue.
O comando das massas, até mesmo dos maquinários (les
grandes machines: o próprio Maiakóvski é a fábrica “Gigant”).
Revelação de detalhes – Pasternak.24 Também em Maiakóvski
há detalhes, ele está todo nos detalhes, mas cada detalhe dele
é quase um piano. (De tempo em tempo, a física dos versos
de Maiakóvski me faz lembrar do rosto de Domingo, em O ho-
mem que era Quinta-feira; grande demais para que se pudesse
imaginar. No atacado – Maiakóvski. No varejo – Pasternak.
Uma escritura cifrada – Pasternak. Uma escritura clara,
quase caligrafia – Maiakóvski. “Não comprem preto e branco,
não digam sim e não” – Pasternak. Preto e branco, sim e não
– Maiakóvski.

24 O todo-poderoso Deus dos detalhes, o todo-poderoso Deus do amor, dos Jaguelões e


das Edwiges. (B. P.).

232
Epos e lírica na Rússia contemporânea – Vladímir Maiakóvski e Boris Pasternak

Discurso figurado (Pasternak).25 Discurso direto – Maiakóvs-


ki. E a tal ponto direto que, se não o entendes, o repetirá e o re-
petirá até a náusea, até que não tenha entrado em tua cabeça.
(De qualquer maneira, ele nunca se cansa).
A cifra (Pasternak). – A propaganda luminosa, ou, ainda me-
lhor, o projetor, ou, ainda mais – o farol. Maiakóvski.
Não há ninguém que não entenda Maiakóvski. Mas onde há
o homem que compreenda Pasternak até o fundo? (Se esse ho-
mem existe – não é Boris Pasternak).
Maiakóvski é todo autoconsciência, mesmo na entrega:

Toda minha força sonora de poeta


entrego-a a ti, classe atacante!

Com ênfase em “toda”. Ele sabe muito bem o que entrega.


Pasternak: é todo dúvida de si, olvido de si mesmo.
O homérico humor de Maiakóvski.
A ausência de humor de Pasternak, exceto pelo início de al-
gum tímido (e difícil) sorriso, logo interrompido.
Ler Pasternak durante muito tempo é insuportável pela ten-
são (do cérebro, dos olhos), como quando se olha através de
lentes demasiado fortes, que não servem para seus olhos (para
quais olhos ele serve?).
Ler Maiakóvski durante muito tempo é insuportável devido
ao desgaste puramente físico. Depois de Maiakóvski deve-se
comer muito e por muito tempo. Ou então, dormir. Ou então –
para quem tem mais resistência – caminhar. Recobrar-se, ou
então - para quem tem mais resistência – caminhar mais de-
pressa. E, involuntariamente, surge a visão de Pedro, aos olhos
de Pasternak com dezoito anos:

25 Tomo um exemplo qualquer: A morte do poeta:


Só naqueles vultos um úmido desvio,
como entre as dobras de uma rede rasgada.
Um desvio lagrimoso, úmido, que perpassa o rosto.
A rede de arrasto foi rasgada e a água irrompeu – as lágrimas. (nota de M. T.)

233
Aurora Bernardini

Quão grande foi! Qual rede as convulsões


Cobriram suas faces ferrosas,
Quando aos olhos de Pedro retornaram
As lágrimas das baias pantanosas...
E à garganta as vagas bálticas montaram
Grãos de saudade...

Assim Maiakóvski olha hoje para a construção da Rússia.

Recebido: em 16/02/2020
Aceito: em 30/03/2020
Publicado: em junho de 2020

234
Boris Eikhenbaum,
uma (auto)biografia
Boris Eikhenbaum
Tradução de Raquel Abuin Siphone*

Resumo: A presente tradução traz ao Abstract: The current translation brings


público brasileiro um material inédito to the Brazilian public an unprecedented
do crítico e teórico judeu-russo Boris material by the Jewish-Russian critic
Mikháilovitch Eikhenbaum (1886- and theorist Boris Mikhailovitch
1959). Conhecido principalmente Eikhenbaum (1886-1959). Known
por suas importantes contribuições mainly for his important contributions
para o movimento Formalista, a to the Formalist movement, the training
formação e vida do crítico ainda and life of the critic is still unknown to
é desconhecida pelo grande the general public. In these translated
público. Nos textos aqui traduzidos, texts, Eikhenbaum speaks briefly
Eikhenbaum fala brevemente sobre about his provincial childhood, his
sua infância provinciana, a mudança move to Petersburg and his academic
para Petersburgo e sua formação background.
acadêmica.

Palavras-chave: Boris Eikhenbaum; Biografia; Autobiografia


Keywords: Boris Eikhenbaum; Biography; Autobiography

235
Raquel Abuin Siphone

*
Graduanda do Curso de Russo
da Faculdade de Filosofia, Letras
e Ciências Humanas da Universi-
dade de São Paulo.
A presente tradução é parte do trabalho do pes-
quisador russo Aleksandr Samuilovitch Kriúkov, professor na
Universidade Estatal Pedagógica de Voronej (VGPU), que com-
E-mail: siphoneraquel@gmail. pilou um conjunto de materiais a serem utilizados numa pos-
com https://orcid.org/0000-
0003-2259-7517 sível elaboração da biografia do teórico e crítico literário Boris
Mikháilovitch Eikhenbaum. Essa biografia, infelizmente, ja-
mais foi realizada; no entanto, esse conjunto de materiais foi
publicado e está disponível no oitavo volume da revista acadê-
mica russa Notas filológicas (Филологические Записки), do
ano de 1997. Em nosso recorte para a tradução, selecionamos
dois textos: “um esboço de uma autobiografia datada de 1925
e uma biografia escrita em 1936”.1 A compilação de Kriúkov
ainda conta com outros fragmentos pessoais como memórias
e cartas.
A primeira tentativa, de 1925, é uma autobiografia incom-
pleta. Esse ensaio, por assim dizer, é a base para a elaboração
posterior, e agora sim completa, de 1936.
Embora os materiais tenham sido retirados do arquivo pes-
soal de Eikhenbaum, conforme indicado pelo próprio professor
Kriúkov, percebemos que há, tipograficamente, interferências
do autor que os compilou; essas inserções estão marcadas, no
original, pela diminuição da fonte e sua alteração para o for-
mato “negrito”. Em nossa tradução, mantivemos essa variação
alterando a cor da fonte e marcando em negrito os trechos in-
seridos por Kriúkov no corpo do documento eikhenbauniano.
É importante destacar que esses acréscimos funcionam como
notas explicativas de como estão estruturados os cadernos de
anotações eikhenbaunianos e elas aparecem, exclusivamente,
no texto de 1936.

1 KRIÚKOV, A. S. Materiais para uma biografia de B. M. Eikhenbaum. Filologuítcheskie


zapiski. Voronej, 1997, p. 230.

236
Boris Eikhenbaum, uma (auto)biografia

Por fim, é preciso dizer que Kriúkov retirou os textos de fon-


tes manuscritas, o que, por vezes, dificulta a compreensão do
documento. Assim, o autor-compilador preenche algumas la-
cunas entre colchetes e marca, com pontos de interrogação,
vocábulos cuja grafia não tem certeza.
As notas de rodapé são, majoritariamente, de autoria da tra-
dutora. Aquelas que pertencem ao material original possuem
indicação na própria nota.

Autobiografia2

Nasci em 22 de setembro (4 de outubro) do ano de 1886 no


condado de Krásnoi, na pro[víncia] Smoliénski, onde, à época,
meu pai era médico do zemstvo.3 Fiquei sabendo disso através
de meus pais; por mim mesmo, lembro-me já da cidade de Vo-
ronej, para onde minha família mudou-se quando eu tinha 3
ou 4 anos. Ali passei toda a minha infância e adolescência, até
1905. Éramos em dois irmãos: Vsevolod, o mais velho, e eu. Era
uma família de médicos; minha mãe também era médica (uma
das primeiras médicas mulher). Meu pai era de origem judaica,
filho de um famoso poeta do círculo judeu dos anos de 1840-
60, matemático e enxadrista, Iákov Moiséievitch Eikhenbaum
(aliás, autor do poema sobre xadrez Gakrav, cuja tradução para
o russo foi reimpressa no ano passado sob o misterioso título
de Poema antigo sobre jogo de xadrez). Meu avô tinha uma
família grande ― cerca de dez filhas; daí a quantidade colossal
de parentes espalhados pelo mundo (Goldenweiseres, Gurovit-
ches, [Liúnes?] etc), entre eles há atores (B. S. Boríssov), mú-
sicos (A. B. Goldenweiser), advogados etc., dos quais conheço
apenas alguns. Minha mãe vem de uma família russa naval, os
Glotov. Dos parentes de seu lado da família, o filho de sua irmã,
meu primo M. K. Lemke (autor de uma série de trabalhos sobre

2 Os materiais foram retirados do artigo Materiais para uma biografia de B. M. Eikhen-


baum de A. S. Kriúkov (КРЮКОВ, А, С. Материалы к биографии Б. М. Эйхенбаума.
Филологические Записки - Воронеж, 1997. - Вып. 8. - С. 230-237).
3 Conselho administrativo rural instituído em 1864.

237
Raquel Abuin Siphone

a história da sociedade russa, editor da obra de A. I. Herzen


etc., falecido em 1923), teve algum significado em minha vida.
A medida em uma autobiografia é difícil, as lembranças se
atropelam e, se não escrever brevemente, fica difícil escolher
o que é importante. É preciso, claro, escrever sobre a infância.
A vida em Voronej, o ginásio, os primeiros amores e pensa-
mentos; tudo isso é tão distante e tão fantástico que só pare-
ce ser narrável a partir de memórias detalhadas em forma de
semificção. Contarei em poucas palavras. A infância não foi
fácil. Eu fui, ao que parece, uma criança difícil, e minha mãe,
sempre absorta em trabalho, era uma pessoa muito geniosa e
orgulhosa, bastante ansiosa e severa, tratava-me de maneira
austera e exigente.

Curriculum vitae de
B. M. Eikhenbaum
Boris Mikháilovitch Eikhenbaum nasceu no ano de 1886 no
condado de Krásnoi (província Smolenski), onde seu pai era
médico do zemstvo4. O pai de Eikhenbaum era de origem ju-
daica ― filho de um famoso matemático e poeta, autor de uma
série de versos e do poema enxadrista Gakrav (vide Enciclo-
pédia judaica), da sociedade judaica; em 1881, foi batizado e se
casou com uma russa da família Glotov. Minha mãe foi uma
das primeiras médicas mulheres na Rússia, aluna de P. F. Les-
gaft.
B. M. Eikhenbaum passou a infância na cidade de Voronej
onde, em 1905, formou-se no ginásio clássico. Passou o outono
desse mesmo ano em Petersburgo e ingressou na Academia
Militar de Medicina. Em 1906, enquanto a Academia esteve
fechada por razões de “motins” estudantis, Eikhenbaum es-
tudou na Escola Superior Livre de P. F. Lesgaft (Departamen-
to de Biologia). Em 1907 abandonou a Academia e, em 1908,
ingressou na Faculdade de Filologia Histórica da Universida-
de de Petersburgo, onde cursou os estudos de Eslavo-Russo
e Romano-Germânico. Em 1912, formou-se em Eslavo-Russo.
Em 1913, passou nos exames estatais e começou a lecionar li-

238
Boris Eikhenbaum, uma (auto)biografia

teratura russa na escola secundária. Em 1914, foi jubilado pela


Universidade. Em 1917, passou nos exames de magistério. Em
1918, deu palestras experimentais na faculdade e foi escolhido
como professor assistente. No outono de 1917 começou a tra-
balhar na Escola Superior ― a princípio nos Cursos Superiores
de Raiev para Mulheres e, posteriormente, no Segundo Institu-
to de Pedagogia, no Instituto da Palavra Viva, na Universidade,
no Instituto de História da Arte. O trabalho pedagógico conti-
nuou e atualmente Eikhenbaum é professor na Faculdade de
Filologia da Universidade de Leningrado. No atual ano letivo,
ministra, aos alunos de graduação, seminários sobre Lérmon-
tov e, aos alunos de pós-graduação, seminários sobre textolo-
gia.
Começou seu trabalho literário e científico ainda em 1907 (o
artigo sobre Púchkin na revista Viestnik znania foi o primei-
ro trabalho impresso) e deu continuidade a eles após concluir
a Universidade. Durante os anos de 1912 a 1921, Eikhenbaum
publicou seus artigos em diversos periódicos (Sievernye za-
piski, Zaprocy jizni, Zaviety, entre outros) e coleções. Nos anos
de 1911 a 1913, foi secretário de M. K. Lemke. Em abril de 1918,
Eikhenbaum foi convidado pelo Departamento de Literatu-
ra e Publicação do Narkompros5 (junto com K. I. Khalabaiev)
para a seção de editoração de clássicos. Os resultados destes
trabalhos, que se realizam ainda hoje, foram as novas edições
das obras de Lérmontov, Gógol, Turguênev, L. Tolstói, Schedrin,
Píssiemski ― com textos examinados a partir dos originais e
livres de distorções por parte da censura.
Em 1922, saíram os primeiros livros de Eikhenbaum: A me-
lodia do verso e O jovem Tolstói. Em seguida, o principal tra-
balho científico de Eikhenbaum foram os estudos de Lérmon-
tov e Tolstói. Em novembro deste ano, Eikhenbaum entregou
à Goslitizdat6 o terceiro volume de sua grande monografia, Lev
Tolstói.
Em 1934, Eikhenbaum foi convidado para o Instituto de Lite-
ratura da Academia de Ciências da URSS, em que é, atualmente,
pesquisador sênior, presidente do Comitê Lérmontov, um dos

5 Sigla para Comissariado do Povo de Educação da RSFS.


6 Editora Estatal de Ficção (atualmente Khudlit).

239
Raquel Abuin Siphone

editores do selo História da Literatura e editor-chefe das pu-


blicações acad[êmicas] da obra de Lérmontov.
Em agosto de 1936, o Presidente da Academia de Ciências
da URSS concedeu a Eikhenbaum o título de Doutor em Crí-
tica Literária “sem defesa de dissertação, em razão dos proe-
minentes trabalhos nas áreas de literatura e textologia russa”
(excerto do protocolo de 5/8/1936) (F. 1527, op. 1, Unidade de
armazenamento: 242).
Ao final dos anos 20, provavelmente em correlação com o tra-
balho do livro Minha época, Eikhenbaum escreveu um excer-
to memorialístico, cronologicamente relacionado aos eventos
não registrados em seu diário:
Em 28 de agosto de 1905, pela primeira vez, atravessei as por-
tas da Estação Nikolaiévski em direção à Praça Znamenskaia.
Estranho: pegar o trem parado na plataforma da Estação de Vo-
ronej, viajar duas noites e seguir adiante para a Avenida Névs-
ki. Pareceu-me que isso seria, de alguma maneira, diferente.
Achava que Petersburgo não teria paredes ou estaria suspen-
sa sobre os campos, bosques e jardins que a circundam; que
da estação partiria uma estrada especial, que levaria a alguns
arcos grandiosos. Isto foi uma decepção para aquele jovem
provinciano: mesmo em Voronej, precisávamos ir da estação à
rua preambular para chegarmos à Bolshaia Dvoriánskaia. Mas
aqui, mal tive tempo de sair do vagão, voltar a mim, mover-me
adequadamente, sentir-me disposto e de boas-vindas: Praça
Znamenskaia e Avenida Névski. Por sorte, o clima era tal que
não poderia haver qualquer manifestação solene: o vento so-
prava e caia uma chuva fina. Um céu amarelo-acinzentado, a
lama marrom, motoristas enlameados, os negros guarda-chu-
vas, as negras capotas das carruagens e uma fileira uniforme
de casas incolores, essa era toda a paisagem. Nem uma colina,
nem um raio de sol, nem um conhecido sequer. Todos ocupa-
dos com seus afazeres, e quanto a mim? O que eu tinha ido
fazer lá? Como posso me acostumar com essa cidade, com es-
sas pessoas? Escondi-me no canto da carruagem e, com medo,
olhava para o movimento da multidão de pessoas. (F. 1527, op.
1, Unidade de armazenamento: 247).

240
Boris Eikhenbaum, uma (auto)biografia

O fragmento citado foi escrito num caderno ambientado no


cotidiano de 1927 a 1928. Colocado separadamente, ao final
do caderno. Nem a cronologia, nem a temática estabelecem
relação com as entradas dos diários. Talvez, a memória de
Eikhenbaum tenha sido criada como uma sequência do ca-
pítulo Escapada, incluído na parte autobiográfica de Minha
época.
Na cidade de Voronej, assim como Nikolai Rostov, eu dança-
va e cortejava; eu, no entanto, não havia comprado um cavalo,
não dançava na casa do governador, não cortejava as esposas
de outros e não usava um uniforme de hussardo, mas de um
ginasiano azul com botões claros e galão prateado no pesco-
ço. Nossos inimigos e rivais eram superiores a nós em ma-
temática, mas inferiores, em relação a nós, no conhecimento
de línguas antigas; os “realistas”7 usavam uniformes pretos
com galões dourados e botões como os nossos. Além dessas
duas espécies, havia os cadetes, cujo ódio mútuo unia-nos aos
realistas, embora sua superioridade devesse ser reconhecida.
Assim era a juventude da cidade de Voronej, dividida em três
grupos: cadetes, realistas e ginasianos (idealistas?). A popu-
lação adulta não era, oficialmente, dividida em grupo algum…
Não precisava de Voronej para um enredo, mas para a infân-
cia. Se agora me parece como enredo, é apenas porque qual-
quer passado é, por si só, uma narrativa. A poeira do tempo faz
as coisas mais comuns dignas dos museus.
Voronej é uma cidade próspera, com magnatas e comercian-
tes. Aqui estabeleceram-se firmemente pessoas e sobrenomes.
A pessoa mais rica da cidade é o comerciante Samofalov: na
Bolshaia Dvoriánskaia há uma fileira de casas suas, uma das
quais é o hotel central. Com os óculos caídos à ponta do nariz,
ele vai à rua e observa se tudo está em ordem em sua cidade.
Os sobrenomes tingem o idioma da cidade com uma cor lo-
cal especial, criam uma espécie de dialeto. A língua da cidade
de Voronej ressoa os sobrenomes entre os quais o meu pare-
ce forasteiro: os Tiúrin, os Khaliútin, os Tcheriemissinov, os

7 Nós os provocávamos porque em seus cintos estava a sigla VRU (Escola Real de Voronej).
A história voltou-se contra mim, já que em minha folha de pagamento agora há a sigla LGU
(Universidade Estatal de Leningrado). (Nota de B. Eikhenbaum - Ed).

241
Raquel Abuin Siphone

Tchertkov, os Klotchkov, os Malinin, os Tchigaiev, os Seliva-


nov, os Khruchiov, os Fiedoseevski, os Perelechin. É verdade
que havia a farmácia Volpian, o boticário Miúfke, a salsicharia
do Guekht, mas esses não eram sobrenomes tão bons quanto a
predestinada confeitaria Jam.
Nós não tínhamos apenas um sobrenome, como também
uma vida forasteira: sem flores nas janelas, sem gatos, sem
garrafas de licor, não passávamos as noites sentados ao redor
do samovar, sem visitas, sem fofocas, nada que fosse próprio
de Voronej ou fosse aconchegante. Em casa, a autoridade era
a mãe, que estava constantemente ocupada e irascível. O pai
vivia “na linha”, era médico ferroviário. Os cômodos eram bem
severos e limpos. No escritório da mãe, instrumentos médicos;
na sala de estar, sentavam-se senhoras enfermas. Não havia
coisas supérfluas nem mesmo nas paredes, enfeitadas com
uma reprodução a óleo de um sol poente e um barco. Em tudo,
algum tipo de angústia, de falha, que se transformava em or-
gulho. A mãe exigia que ambos, meu irmão e eu, fôssemos os
melhores alunos.
Não vivíamos como os de Voronej, nosso sobrenome não
pertencia a Voronej, e minha infância não foi a típica de Vo-
ronej.
Vejo outras cidades em sonhos. Petersburgo parece mágica,
para mim. Em Voronej, minha vida não ia bem... Não era um
garoto de Voronej. (B. Eikhenbaum. Minha época. L., 1929. p.17-
21).
Eikhenbaum inicia o “Diário”, como observado no primeiro
caderno de anotações, em janeiro de 1910 (RGALI8. F. 1527,
op.1, Unidade de armazenamento: 244, l.1). Contudo, entradas
mais ou menos regulares aparecem apenas após dois anos.
As primeiras vinte e poucas páginas são preenchidas com
poemas, trechos de poemas e prosa de diversos autores, que
permitem apresentar um conjunto extremamente amplo das
leituras do estudante da Universidade de Petersburgo, Bo-
ris Eikhenbaum. O diário começa com uma longa citação do

8 Sigla para Arquivo Nacional Russo de Literatura e Arte (Российский государственный


архив литературы и искусства).

242
Boris Eikhenbaum, uma (auto)biografia

romance O buraco de A. Kuprin, que começara a ser impresso


no inverno de 1909. Em seguida, aparecem poemas de Fiódor
Tiútchev, Nikolai Minsky, Fiódor Sologub, Poliksiena Solo-
vieva, Konstantin Balmont, Afanassi Fet, Viatcheslav Ivanov,
Valeri Briússov, Ivan Bunin. Duas vezes há a repetição do afo-
rismo de Goethe Worte sind Dichters Waffen ― As palavras
são as armas do poeta. Seguido por fragmentos de poemas de
Calino e Arquíloco (texto no grego antigo e tradução), seguem
citações de Sêneca, Ésquilo, Torquato Tasso, Oscar Wilde,
Simónides, Menandro, Ovídio, Alfred Tennyson e Maurice
Maeterlinck.
Na página vinte e três, um cabeçalho especial: “Seção fami-
liar” que é seguido por um conjunto de textos familiares.

Recebido: em 22/01/2020
Aceito: em 17/02/2020
Publicado: em junho de 2020

243
Recordações sobre
L. A. Sulerjítski1
Mikhail Tchékhov2
Tradução de Daniela Simone Terehoff Merino*

Resumo: Estas recordações foram Abstract: These memories were written


escritas pelo ator russo Mikhail Tchékhov by the Russian actor Michael Chekhov
(1891-1955) após a morte de seu mestre (1891-1955) after the death of his theater
teatral Leopold Antônovitch Sulerjítski master Leopold Antonovich Sulerzhitsky 
(1872-1916). No decorrer do texto torna- (1872-1916). Throughout the text, the
se evidente a influência benéfica que o beneficial influence that the teacher had on
professor exerceu sobre a individualidade his student’s creative individuality becomes
criadora de seu aluno. Também são evident. Some of the main experiences
trazidas à tona algumas das principais lived by the actor are also brought up within
experiências vividas pelo ator dentro do the small experimental space known as
pequeno espaço experimental conhecido the First Studio of the Moscow Art Theater
como Primeiro Estúdio do Teatro de (MAT). The relevance of these memories
Arte de Moscou (TAM). A relevância is not only in reaffirming the existing
destas recordações está não apenas em confluences between the teacher and his
reafirmar as confluências existentes entre apprentice, but also in demonstrating how
o mestre e seu aprendiz, como também em much the First Studio – opened in 1912 by
demonstrar o quanto o Primeiro Estúdio – Leopold Sulerzhitsky  himself in partnership
inaugurado em 1912 pelo próprio Leopold with the great Russian actor, director and
Sulerjítski em parceria com o grande pedagogue Constantin Stanislavski (1863-
ator, diretor e pedagogo russo Konstantin 1938) – was one of the main drivers of
Stanislávski (1863-1938) –, foi um dos Michael Chekhov’s later artistic journey.
principais impulsionadores da jornada
artística posterior de Mikhail Tchékhov.

Palavras-chave: Primeiro Estúdio do TAM; Mikhail Tchékhov; Leopold Sulerjítski;


Konstantin Stanislávski
Keywords: First Studio of MAT; Michael Chekhov; Leopold Sulerzhitsky;
Constantin Stanislavski

244
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

* Doutoranda do Programa de
Pós-Graduação LETRA (Letras Es-
trangeiras e Tradução) / FFLCH-
-USP. Bolsista FAPESP (Fundação
N o terceiro andar do Primeiro estúdio3 do TAM
havia uma sala pequena, comprida e estreita com uma única
janela e mobília parca. Por muito tempo viveu e trabalhou nes-
de Amparo à Pesquisa do Estado ta sala o verdadeiro inspirador e criador do estúdio: Leopold
de São Paulo, processo nº 2017/
21093-8) sob a supervisão da Antônovitch Sulerjítski.
Profa. Dra. Elena Vássina. Ele refletiu muito neste lugar, tentando organizar da melhor
E-mail: daniela.terehoff@hotmail.
com forma possível a vida coletiva dos discípulos do estúdio. Sua
https://orcid.org/0000-0001-6896- fantasia lhe sugeria sempre novas formas de conduzir o estú-
0030
dio, de modo que cada um de nós pudesse obter o máximo de
alegria tanto na hora de trabalhar, quanto na de descansar.
Ele frequentemente se aconselhava sobre isso com seu dis-
cípulo e amigo Vakthângov.4

1 De acordo com a teatróloga russa Elena Poliakóva (1926 -2007), este texto constitui
capítulo de um livro de recordações de Mikhail Tchékhov publicado durante o período
pós-guerra em Nova Iorque. A presente tradução baseou-se na versão de 1970, publicada
em coletânea organizada pela própria Poliakóva sob o título de Сулержицкий. Повести и
расказы. Статьи и заметке о театре. Переписка. Воспоминания о Л. А. Сулержицком
(Sulerjítski. Novelas e contos. Artigos e notas sobre teatro. Correspondência. Recordações
sobre L. A. Sulerjítski). Estas recordações de Mikhail Tchékhov – entre as páginas 604 e 610
da referida coletânea – são aqui traduzidas para a língua portuguesa pela primeira vez. Não
havendo no original russo qualquer indicação precisa de título para este texto, optou-se pela
preservação do nome da sessão da coletânea em que o mesmo se encontra.
2 Mikhail Aleksándrovitch Tchékhov (1891-1955) foi um aclamado encenador, ator de teatro
e cinema e pedagogo teatral russo. A convite de Konstantin Stanislávski, ingressou no
Teatro de Arte de Moscou (TAM) em 1912. No mesmo ano, tornou-se membro do recém-
-inaugurado Primeiro Estúdio do TAM, coordenado pelo pedagogo Leopold Antônovitch
Sulerjítski. Ao longo de sua vida artística posterior desenvolveu uma técnica de treinamento
para o ator, sustentada por pilares como o Gesto Psicológico, o trabalho com a imagina-
ção, a improvisação e a individualidade criativa. Obrigado a partir da Rússia Soviética em
1928, divulgou seu aprendizado teatral no Ocidente por meio de aulas, palestras e livros.
Participou de 11 filmes, recebendo indicação ao Oscar por sua atuação em “Spellbound”
(1945) de A. Richckok. É também conhecido por ser um dos grandes divulgadores da ideias
de Konstantin Stanislávski, que o considerava o seu aluno mais brilhante. No Brasil temos
atualmente algumas heranças de seu trabalho, estando entre elas: 1) a escola de teatro do
Rio de Janeiro Michael Chekhov Brasil; e 2) a tradução de um de seus livros, publicado em
1986 pela editora Martins Fontes sob o título “Para o ator”.
3 Grafado com inicial minúscula pelo próprio autor do texto, o que foi aqui respeitado. (N.T.)
4 Evguiêni Vakhtângov (1883 – 1922): grande ator e diretor teatral russo. Considerado um

245
Daniela Simone Terehoff Merino

Para cada um de nós era uma alegria entrar na sala de Su-


lerjítski. Apesar de seu exterior pouco atraente, a sala tinha
uma atmosfera amistosa e cordial e dava a impressão de ser
aconchegante e, inclusive, não tão mal mobiliada.
Por que sempre me parecia haver ali não apenas um Súler
(Leopold Antônovitch era chamado assim), mas dois?
Não seria porque sua vida íntima era demasiadamente
rica?...
Por que por trás das suas palavras, atos e estado de espírito
sempre surgia algo além do que era possível ver e ouvir no
sentido comum?
Olho para ele através de minhas memórias e vejo: é um ho-
mem pequeno e vivo com barbicha, olhos risonhos e sobran-
celhas tristes.
Tinha-se a impressão de que ele entraria na sala sem ser
notado por ninguém.
Mas Súler entrava e todos – conhecessem-no ou não –, to-
dos se voltavam. Prestavam atenção em Súler, senão esperan-
do algo, então surpreendidos com qualquer coisa.
E quanto mais modesto ele era, tanto mais curiosos se tor-
navam os olhares.
E eu sentia o seguinte: aqui está um Súler, o pequeno e mo-
desto; e cá está o outro: grande, surpreendente, importante e
até, sem querer, dotado de poder sobre as pessoas. E estes dois
Súlers andavam e se moviam de modo diferente. O pequeno
de barbicha se inclinava para o lado balançando timidamente,
afundando as mãos nas mangas longas, se fazendo um pou-
quinho de tolo e parecendo um tanto simplório (para se escon-
der). O outro, o grande Súler, sustentava a cabeça com orgulho
– por isso a sua testa grande se tornava visível –, as mãos sur-
giam das mangas e seus gestos ficavam bonitos e concluídos,
contendo sempre um mesmo e determinado caráter... como
expressar isso... eles eram éticos.

dos responsáveis pela propagação das ideias de Konstantin Stanislávski. Foi também um
dos principais incentivadores do trabalho dos estúdios após a morte de Leopold Sulerjítski.
Um trabalho notável escrito em português acerca desta personalidade artística é a disserta-
ção de mestrado de Camilo Scandolara indicada nas referências bibliográficas. (N. da T.)

246
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

Preste atenção aos gestos de alguém que está falando; des-


vie do sentido das suas palavras e experimente apanhá-las por
meio de seus gestos. Você “ouvirá” desta pessoa muito de ines-
perado através da sua gesticulação. Pode ser que à sua frente
ela desenvolva os próprios ideais em belas palavras; mas olhe
para as mãos, para os seus gestos, e você provavelmente verá
como ela o está ameaçando, ofendendo e empurrando.
A linguagem dos gestos é mais sincera do que a das pala-
vras.
Assim também era com Súler. Ou ele não desenvolvia os
gestos por completo, ou então seus gestos falavam de amor,
humanismo, ternura e pureza e, numa palavra, eram éticos.
Acontecia de Súler zangar-se, gritar e ameaçar. Mas os ges-
tos o traiam, dizendo: “Todos vocês são meus queridos, eu os
amo, não temam!”
Súler amava as crianças, em especial as de berço.
Ele passava horas sobre o berço do filho mais novo e algu-
ma coisa o fazia chorar de rir desenfreadamente até não poder
mais.
E quando estava entre adultos, encontrava-se alegre, ria e
seus gestos eram os de uma criança de berço: as palmas das
mãos abertas e os braços se movendo no ar de forma indefini-
da para cima, para baixo e em círculos; numa palavra, como se
estivesse num berço.
Muitas vezes Súler andava triste. À sua maneira, de um jeito
especial.
Quando ele estava triste eu o via em sua sala no terceiro an-
dar.
Aí está ele: de pé, encostado à parede, apertando a testa e a
lateral do corpo com força contra ela. Os olhos estão fechados.
De um jeito que quase não se ouve, cantarola de leve uma me-
lodia desconhecida, provavelmente composta por ele mesmo;
a mão marca um pouco os compassos e o ritmo nessa mesma
parede. Os ritmos mudam, “ouvem-se” as notas tristes: uma
fermata, aqui um staccato, um legato e, veja só, uma pausa lon-
ga e triste. Súbito a cadência cresce e é evidente: Súler voa
para algum lugar sob o triste ronronar da cançãozinha.

247
Daniela Simone Terehoff Merino

Eu sei: ele passava horas desse jeito encostado à parede.


Ou ficava triste e sorria de um jeito especialmente bom,
apertando os olhos e se mexendo devagar e sem perceber. Este
sorriso não deixava o seu rosto por dias e nós sabíamos: Súler
está triste.
Mas quando estava alegre, quanta severidade era capaz de
assumir. Ele era assustador – era o que pensava de si mesmo
– e isso o divertia (também a nós).
Súler colocou no estúdio um livro em que cada um de nós
podia anotar pensamentos sobre nossos espetáculos em curso
e sobre a arte em geral. Súler atribuía grande significado a este
livro. Tal como um Evangelho num facistol, ele ficava numa
prateleirinha inclinada e especialmente construída perto da
porta da sua sala no terceiro andar. Frequentemente ele dava
uma espiada no livro e, embora soubesse de cor tudo o que ha-
via ali, mesmo assim lia-o com atenção e seriedade.
Uma vez, passando pelo andar de cima, abri esse livro e de-
senhei nele caricaturas de Súler, Vakthângov e de mim mes-
mo.5
Desenhei e desci correndo.
Quase que na mesma hora ressoou lá em cima um grito:
“Quem fez isso? Quem se atreveu? Meu Deus, o que é isso?”
Havia um ensaio na sala de baixo.
Todos se detiveram e apuraram os ouvidos.
A voz de Súler se aproximava. Seus passos rápidos soavam
pela escada. Ele gritava de um jeito cada vez mais furioso e
assustador. Já estava correndo pela sala vizinha.
Escancarando as portas, sem fôlego e pálido pela corrida,
ele gritou: “Preciso saber imediatamente, agora mesmo: quem
teve a coragem de desenhar algo ali, no livro? Falem agora
mesmo: quem?”
Levantei-me. “Fui eu, Leopold Antônovitch.”
“Pois muito bem, o que o senhor – pronunciou sem pensar
muito e com a respiração ainda pesada –, pois bem, ainda que
5 A paixão pelo desenho de caricaturas foi algo que Mikhail Tchékhov herdou de seu pai.
(N.T.)

248
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

desenhem, o que há de mau nisso? – e abrindo bastante os


braços – Grande coisa, que crime. Como vai o ensaio? Muito
bem, vamos, me mostrem.” (1)6
Dentro de um minuto ele já estava absorvido por completo
pelo trabalho.
Às vezes Súler pegava uma vassoura e começava a varrer a
sala onde se encontrava a maior parte dos estudantes.
Isso significava que ele não se sentia bem como um senhor,
que cada trabalho era digno de respeito e que se nós de fato
amávamos o Estúdio, então não nos incomodaríamos em var-
rer o chão.
Certa vez, na época das tournées artísticas, Súler anunciou
a nós, os discípulos do estúdio, que após o espetáculo de hoje
todos deveriam reunir-se em seu quarto. Ele tem algo muito
importante a nos dizer.
Súler passou o dia inteiro com um aspecto concentrado e
nós ficamos inquietos pela conversa iminente.
À noite, após o fim do espetáculo, tiramos a maquiagem de-
pressa e fomos em direção ao hotel de Súler. Ali, perto da porta
do seu quarto, os nossos companheiros que não haviam parti-
cipado do espetáculo neste dia já estavam esperando.
A porta do quarto de Súler estava fechada. Esperávamos que
ele saísse e nos deixasse entrar. Mas a porta não se abria.
Esperamos bastante tempo, até que decidimos bater. Não
houve resposta. Abrimos a porta em silêncio. O quarto estava
escuro. Pelo visto Súler não estava ali. Entramos de mansinho
e ligamos a luz.
- Quem está ai? – ouviu-se de repente uma voz assustada.
Viramo-nos e vimos Súler. Ele estava sentado na cama, des-
pido, embrulhado no cobertor. Tinha um aspecto sonolento e
assustado.
- Quem é? De que precisam? – gritou ele para nós.
- Viemos vê-lo, Leopold Antônovitch.

6 Ver sessão de notas da própria Elena Poliakova, também traduzidas ao fim deste texto.
(N.T.)

249
Daniela Simone Terehoff Merino

- Para quê? O que aconteceu?


- O senhor nos chamou...
- Quando? – Súler esfrega os olhos e de repente gargalha. –
Meus caros, eu me esqueci, juro que esqueci. Vão para casa,
fica para uma próxima vez.
Indo embora, ouvimos como Súler caia na gargalhada.
Na época do trabalho com “O grilo na lareira”,7 Leopold Antô-
novitch – que participou de todas as encenações como diretor
artístico – revelou para nós a alma desta obra de Dickens.
Como ele fez isso? Não através de discursos nem por meio de
explicações ou pela interpretação da peça, mas pelo fato de
que durante o trabalho ele mesmo se transformava num tipo
dickensiniano, principalmente em Caleb Plummer,8 o fazedor
de brinquedos.
Não penso que ele tivesse consciência dessa transformação
em si mesmo. Ela acontecia de forma espontânea, com a mes-
ma franqueza e naturalidade que havia em tudo de bom que
ele fazia.
Sua presença nos ensaios criava aquela atmosfera que de-
pois foi transmitida ao público com tanta força e que contribui
consideravelmente para o sucesso do espetáculo.9
Eis que ele está sentado numa cadeirinha baixa de tripé
diante de sua filha cega Bertha e canta para ela uma cançãozi-
nha alegre. Uma lágrima corre por sua face. A mão aperta um
pincel com uma tinta vermelha e alegre, as costas estão do-

7 Foram quatro as grandes peças encenadas pelos atores do Estúdio durante a existência
deste laboratório teatral: “O naufrágio do Esperança”, do escritor holandês Herman Hei-
jermans (1864-1924); “A festa da paz” – também conhecida como “A reconciliação” – do
dramaturgo alemão Gerhart Haupmann (1862-1946); “O grilo na Lareira”, texto adaptado
pelos atores do Estúdio a partir do conto homônimo do escritor inglês Charles Dickenns
(1812 – 1870); e “O dilúvio”, do escritor sueco Henning Berger (1872-1924). Sobre estas
encenações teço alguns comentários no livro “Sulerjítski: mestre de teatro, mestre de vida”,
publicado pela editora Perspectiva em 2019. (N.T.)
8 Os nomes das personagens são aqui inseridos mantendo-se a grafia do conto original
“The cricket on the hearth. A fairy tale of home”. (N.T.)
9 O impacto desta peça foi notável e encontra-se brevemente descrito por Stanislávski em
seu livro “Minha vida na arte”. Mas para se ter por ora alguma ideia da repercussão, basta a
informação de que aquilo que a peça de Anton Tchékhov “A gaivota” significou para o Teatro
de Arte de Moscou, a peça “O grilo na lareira” representou para o Primeiro Estúdio.

250
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

bradas e o pescoço esticado como o de um pintinho assustado.


A cançãozinha termina; a cega Bertha e Súler dão risada. Ca-
leb seca a face às escondidas, ficando nela uma grande man-
cha do trapo impregnado pelas tintas.
Olho para Súler; em minha alma cresce e se fortalece aqui-
lo que é impossível expressar em palavras e sei que atuarei
como Caleb. Eu já o amo – amo também Súler –com todo o
meu ser, de todo coração.
Eis que Súler é Tackleton.
Ele entra em cena com um olho apertado, mau, sombrio,
cruel e árido. Pronuncia duas-três frases e... de repente ouve
um riso contido... se detém, busca com os olhos o dono da ri-
sada e encontra Vakthângov.
Com ar de culpa enquanto aperta as mãos contra o coração,
Vakthângov tenta justificar-se e explicar algo a Súler por meio
do riso.
Mas Súler não precisa de explicações: ele próprio também
gargalha por muito tempo, às casquinadas e, como sempre, até
as lágrimas.
Ele não consegue fazer pessoas más e negativas sem deixá-
-las cômicas.
O mal – que o próprio Súler nunca temeu – sempre foi en-
graçado em suas interpretações.
O Tackleton de Súler é hilário em sua maldade; já Vakthân-
gov o interpreta sem humor. Ele é realmente mal e cruel.
Súler retrata também John, a Criancinha10 e a menina Tilly...
E tudo o que ele faz durante o ensaio é impregnado pela at-
mosfera do conforto, da graça e do amor dickensiniano. Suler
termina o ensaio. Precisamos partir. Mas é impossível.
Já é tarde, mas Súler propõe a organização de um chá. Ama-
nhã cedo, levantar; mas esta noite, o chá. Todos nós, partici-
pantes do “Grilo”, estamos encantados por esta atmosfera de
Súler (de Dickens).

10 Referência à Sra. Peerybingle, que é carinhosamente chamada por seu marido o tempo
todo de Малюткa (Criancinha, bem, nenê)

251
Daniela Simone Terehoff Merino

Eu fico depois de todos. Estou acostumado a não dormir à


noite, amo as horas noturnas e quando todos vão embora Súler
e eu vamos para a oficina de cenários e recortamos, colamos e
tingimos os brinquedos para o pobre quarto de Caleb.
Súler estende um saco no chão e desenha com cuidado uma
mancha de tinta cinza na superfície áspera do futuro sobre-
tudo do velho Caleb. A mancha cai bem nas costas, como diz
Dickens. O sobretudo deve ser velho e sujo. Súler espalha o
café líquido e “desenha” a mancha.
Ele boceja, esfrega os olhos com o punho e outra vez dese-
nha ou faz um boneco com olhos espantados ou um palhaço
tão “assustador” que ele mesmo, ao fitá-lo, se põe a gargalhar.
- Sabe, Micha, o que eu quero desenhar? – diz ele apertando
os olhos sobre o boneco (Súler desenhava bastante bem).11
- O quê?
- Aquilo que não é visível.
Eu não o compreendi.
– Quando você olha para algo – esclareceu ele –, então en-
xerga com clareza e segurança; mas quanto mais se desvia,
pior você vê. E onde está a fronteira? Quando você enxerga
pior? Aqui está o que eu quero desenhar: como é que você dei-
xa de enxergar, hein?... Muito bem, vamos dormir Micha, dor-
mir – diz ele pouco convincente, começando um novo brin-
quedo....
Absolutamente contrário àquele Súler da época do “Grilo” foi
o do trabalho com “A festa da paz” de Hauptmann.
Pungente, nervoso e perspicaz, ele nos inseriu na atmosfera
da peça, optando – juntamente com Vakthângov – pela com-
plicada psicologia das “pessoas doentes”.
E foi diferente no período da encenação de “O dilúvio”.
Ensaiamos “O dilúvio” por muito tempo e não foi fácil para
nós. A peça não possuía um estilo expresso de maneira clara e
não revelava a individualidade do ator. Não sabíamos se con-

11Em 1890, Sulerjítski foi admitido na Escola de Pintura, Escultura e Arquitetura de Moscou.
Foi lá que conheceu a filha de Lev Tolstói, Tatiana Tolstaia, por meio de quem veio a estabe-
lecer contato com o escritor russo e toda a sua família.

252
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

vinha representá-la como um drama ou uma comédia. Ambas


eram possibilidades.
Optamos pela representação de uma comédia. Mas o
humor logo se esgotou e os ensaios se desenrolavam sem en-
tusiasmo nem alegria.
Leopold Antônovitch apareceu e disse: “‘O dilúvio’ é
uma tragédia. Vamos ensaiar cada momento com toda a sin-
ceridade e importância: como algo profundamente trágico.”
Dentro de meia hora a gargalhada estava em cena.
Como tragédia, “O dilúvio” mostrou-se incrivelmente cômico.
Súler celebrou: ele havia restituído para nós o humor de
“O dilúlvio”. Logo a peça foi apresentada ao público.
K. S. Stanislávski estimava demais Súler como artista e
amava-o de verdade enquanto ser humano.
Quando Stanislávski adoeceu seriamente, Súler passa-
va as noites ao seu lado.
Ele nunca poupava a si mesmo se os outros precisas-
sem da sua ajuda.
Na época da guerra, na qualidade de recrutado, fui fazer
o exame médico. Assim que amanheceu, para minha surpresa,
vi Súler no portão da minha casa. Ele estava esperando para
me acompanhar até o posto de recrutamento.
Passei o dia inteiro pelado em quartéis sujos e frios.
Através da janela via-se como a chuva torrencial molhava a
multidão de mulheres velhas e jovens que esperavam por seus
irmãos, maridos e filhos.
Só fui examinado tarde da noite. Quando saí, já estava
totalmente escuro.
- E então? – ouvi uma voz calma e acolhedora.
Eu me virei. Molhado pela chuva torrencial, Súler esta-
va parado perto de mim.
Ele não havia saído do posto de recrutamento, o dia inteiro
me esperando (2).
Chamavam Sulerjítski de tolstoísta; mas, se fosse assim, en-
tão ele era um tipo singular de tolstoísta. Não havia nele sinal

253
Daniela Simone Terehoff Merino

de fanatismo ou de sectarismo.
Tudo o que ele fazia de bem e de bom partia dele mesmo, era
de seu feitio e as ideias de Tolstói não sobrepunham nele uma
marca externa.
É sabido que Tolstói o amava e talvez isso se deva precisa-
mente à forma como ele encarnava as suas ideias.
Tudo o que Sulerjítski assimilava de fora – fosse um ensi-
namento de Tolstói ou o sistema de Stanislávski – ele sempre
elaborava em si mesmo e tornava seu; não imitava ninguém,
era singular e original em tudo.
Nas suas discussões sobre a vida, a bondade, a ética e Deus,
nunca ouvimos pensamentos e frases batidas do tipo: “Cada
um crê à sua maneira”, “A História se repete”, “Um homem é
sempre um homem”, “Vivemos uma única vez”, etc. Tais frases
(para muitos, substitutas da faculdade de pensar) eram inúteis
para Súler.
Pouco antes da morte de Sulerjítski12 notamos nele excita-
ção e inquietude que logo se transformaram em abatimento.
Ele ficou indiferente a muitas coisas. Parecia submergir em
certos pensamentos e sentimentos novos e não querer contar
aos outros sobre eles.
Veio me visitar nesse estado certa noite. Fui ao seu encontro
e vi uma figura estranha à minha frente. Seus ombros estavam
abaixados, as mangas cobriam as mãos por completo e a cha-
pka13 ocultava os olhos. Sorrindo, olhou para mim em silêncio.
Em toda a sua figura havia uma bondade extraordinária.
Sugeri que se despisse. Mas ele não saiu do lugar. Tirei seu
sobretudo, a chapka e as luvas macias e o conduzi para o quar-
to.
– Tenho legumes. O senhor quer, Leopold Antônovitch? (Su-
lerjítski não comia carne.)
Ele mal compreendeu minha pergunta e súbito, de forma

12 Sulerjítski morreu de nefrite em 17 (29) de dezembro de 1916, sendo a primeira data a do


antigo calendário (juliano) e a segunda, a do gregoriano, implementado na Rússia apenas
em 1918.
13 Espécie de gorro utilizado na Rússia nesta época.

254
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

vaga mas alegre, pôs-se a contar algo que não compreendi.


Pude captar apenas a alegria que o entusiasmava durante o
relato. E então acabou.
Após ficar comigo cerca de uma hora ele partiu sorridente,
com a mesma alegria e mistério de antes.
Quando Sulerjítski morreu, o caixão com o seu corpo ficou
em nosso estúdio.
Entre os que falaram sobre ele durante a cerimônia fúnebre
após o enterro, apareceu também Stanislávski.
Ele estava pálido e seus lábios tremiam.
Contendo os soluços e sem terminar o discurso, ele se reti-
rou para as coxias do nosso pequeno palco.

Notas de Elena Poliakova:14

Este é um capítulo do livro de memórias de Mikhail Alek-


sándrovitch Tchékhov, publicado em Nova Iorque nos anos do
pós-guerra. Enviado para esta coleção por V.V. Solovieva, uma
ex-atriz do Primeiro Estúdio e do Segundo TAM.
Neste capítulo, M. A. Tchékhov combinou e complementou
as recordações sobre Sulerjítski incluídas no livro “O Cami-
nho do Ator” (M., “Academia”, 1928). Ao mesmo tempo, alguns
episódios foram descritos com mais clareza e precisão em “O
caminho do ator” do que no novo livro. Talvez isso se expli-
que tanto pela passagem de tempo quanto pelo fato de que
na América Tchékhov se viu afastado da maior parte de seus
companheiros do Teatro de Arte do Primeiro Estúdio e da at-
mosfera criativa da vida no teatro russo.

14 Optei por manter as notas ao fim do texto, tal como se encontram no original. (N.T.)

255
Daniela Simone Terehoff Merino

1. No livro “O Caminho de um Ator”, este episódio é apre-


sentado de uma maneira um pouco diferente: “Como todas as
pessoas gentis de verdade, L. A. Sulerjítski às vezes gostava
de parecer zangado, rigoroso e até ameaçador. Ele colocou no
estúdio um livro grosso em que cada um de nós podia anotar
os próprios pensamentos.
Certa vez o próprio Leopold Antônovitch registrou neste li-
vro uma série de pensamentos surpreendentes sobre os tra-
balhadores e sua vida difícil nas condições modernas e, por-
tanto, sobre a necessidade de uma relação atenciosa com os
nossos trabalhadores teatrais. Ao ler este artigo, fui inspirado
por seu conteúdo. Mas infelizmente não encontrei nada me-
lhor do que despejar minha inspiração em uma série de cari-
caturas que ilustravam o texto de L. A. Sulerjítski.
À noite, assim que cheguei ao estúdio, ouvi um grito estron-
doso. L. A. Sulerjítski procurava o culpado das ilustrações e
parecia pronto para rasgá-lo em pedaços.
– Isso é um insulto! – gritou ele de longe, se aproximando de
nós. – Quem, quem ousou fazer isso?!
Um L. A. Sulerjítski zangado apareceu na porta procurando
por sua vítima.
– Quem fez isso? Fale agora mesmo! Quem?
– Fui eu ... – respondi horrorizado. Pausa.
– Pois bem, e o que há de mau nisso? – disse de repente L.
A. Sulerjítski com ternura e tranquilidade – Bem, desenhou! E
daí? Não foi nada!
Leopold Antônovitch me abraçou e estava pronto a me con-
solar como se ele é que fosse o culpado e eu o tivesse chamado
à responsabilidade. Essa foi a vingança de L. A. Sulerjítski.”
(pp. 79-80).

2. No livro “O Caminho do Ator”, Tchékhov fala sobre esse


episódio da seguinte maneira: “Cheguei à comissão tarde da
noite. Os médicos já estavam no limite da exaustão. Gritavam
conosco, cravando em nós suas mãos e atravessando por um
instante nossas costas e peito com auscultadores. Eu mal con-

256
Recordações sobre L.A. Sulerjítski

seguia manter-me em pé e esperava o veredicto passivamen-


te. De repente, ouvi: “Três meses!” Adiamento! Meu sonho se
tornou realidade. Adiamento!... Fiquei mais de uma hora pro-
curando a minha roupa. Estava tudo escuro quando saí para a
rua. Chovia como antes. Eu estava tonto de felicidade. Pus-me
a correr, aspirando o ar fresco com avidez.
– Micha! – escutei uma voz calma e acolhedora
Voltei-me. Diante de mim estava Sulerjítski, todo molha-
do pela chuva torrencial. Pasmei. Leopold Antônovitch não se
afastou do posto de recrutamento o dia inteiro e me esperou
entre a multidão de parentes que lamentavam seus filhos úni-
cos... Mas quem era eu para ele, L. A. Sulerjítski? Um irmão?
Um filho? Eu era nada mais do que um de seus discípulos do
estúdio!!!” (p.78-79)

Referências bibliográficas
CHEKHOV, M. Para o ator. Trad. Álvaro Cabral. 4a ed. São Pau-
lo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
DICKENS, C. The Cricket on the hearth. A fairy tale of home.
Primeira publicação em 1845. Disponível em: http://www.
ibiblio.org/ebooks/Dickens/Cricket/Dickens_Cricket.pdf
MERINO, D.S.T. Sulerjítski: mestre de teatro, mestre de vida.
Sua busca artística e pedagógica. São Paulo: Perspectiva,
2019.
SCANDOLARA, Camilo. Os estúdios do Teatro de Arte de Mos-
cou e a formação da pedagogia teatral no século XX. Disserta-
ção de Mestrado, Campinas, 2006.
STANISLÁVSKI, K. S. Minha vida na arte. Trad. Paulo Bezerra.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
СУЛЕРЖИЦКИЙ, Л. Сулержицкий. Повести и расказы.
Статьи и заметке о театре. Переписка. Воспоминания
о Л. А. Сулержицком (Sulerjítski. Novelas e contos. Artigos
e notas sobre teatro. Correspondência. Recordações sobre L.

257
Daniela Simone Terehoff Merino

A. Sulerjítski). Москва, Искусство, 1970. Disponível tam-


bém em: http://teatr-lib.ru/Library/Sulerzhitsky/Suler/#_
Toc319074187
ЧЕХОВ, М. Путь актёра. М. “Academia”, 1928.
HAUPTMANN, Gerhardt. The reconciliation. PoetLore.Michi-
gan University: Richard G. Badger, v. XXI. Number.5, 1910.
HEIJERMANS, H. The Good Hope: a drama of the sea in 4
acts. Dramatic Publishing
Disponível em: https://archive.org/details/goodhopedramaof-
s00heijiala/page/3/mode/2up

Recebido: em 30/03/2020
Aceito: em 05/05/2020
Publicado: em junho de 2020

258
Ele e Ela 1

Anton Pávlovitch Tchékhov


Tradução de Melissa Teixeira Siqueira Barbosa*

Resumo:“Ele e Ela” (Он и Она) foi Abstract: “He and She” (Он и Она)
publicado pela primeira vez pela revista was published for the first time on 23
“Mirskói Tólk” (Мирской толк), em 23 July 1882 by the magazine “Mirskoi
de Julho de 1882. Dois anos mais tarde, Tolk”(Мирской толк). Two years later, in
em 1884, foi publicado na coletânea 1884, after undergoing some changes,
“Contos de Melpômene” (Сказки it was published in the anthology
Мельпомены), após sofrer algumas “The Tales of Melpomene” (Сказки
alterações. O escritor e dramaturgo Мельпомены). Chekhov signed this
Anton Tchékhov (1860-1904) assinou work under the alias A. Chekhonte,
esta obra utilizando um de seus which was derived from his surname.
pseudônimos, A. Tchekhonté, derivado In the present short story we follow
de seu sobrenome. No presente conto the conflictual relationship between a
acompanhamos o relacionamento famous singer and her husband amidst
conflituoso entre uma cantora famosa the frantic pace of the the feasts and
e seu marido em meio ao ritmo agitado characters of the theatrical sphere.
de banquetes e de personagens do
meio teatral.

Palavras-chave: Literatura Russa; Tradução; Conto; Tchékhov


Keywords: Russian Literature; Translation; Short Story; Chekhov

259
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa

Introdução

*Graduanda em Letras Portu- “Ele e Ela” é uma obra solidamente construída sobre os pi-
guês/ Italiano pela Universidade lares da ironia, conhecidamente um dos traços tchekhovianos
Federal Fluminense.
E-mail: melissa.t.siqueira@gmail. mais marcantes. Além disso, o conto também é rico em te-
com https://orcid.org/0000- mas que muitas vezes são apresentados de forma polarizada,
0001-6288-783X como: o feminino e o masculino, o amor e o ódio, a fama e o
anonimato, o afeto e o desprezo, etc.
Além do cuidado em manter viva essa dualidade da obra, ao
iniciar a tradução deste conto, uma das preocupações foi em
procurar transmitir com fidelidade o tom e o estilo do autor
para o português e, ao mesmo tempo, preservar, na medida do
possível, o ritmo do texto original, mas sem comprometer a
fluidez do texto de chegada.2
Ao analisar o original, as repetições foram um dos princi-
pais pontos problemáticos que surgiram, um plausível exem-
plo disso é a recorrência constante dos pronomes pessoais. O
pronome “On” (Ele) desde o título até a última frase é repetido
quarenta vezes, enquanto “Ona” (Ela) é repetido sessenta e três
vezes, atentando para o fato de que essa contagem abarca ape-
nas a recorrência desses pronomes no caso nominativo.
É possível observar que o emprego dos pronomes na língua
russa é muito comum, enquanto em português a tendência em
geral é suprimir o pronome pessoal quando acompanhado de
verbo. Durante o processo de tradução algumas, dessas repe-
tições foram mantidas sempre que possível, enquanto em ou-
tras foram estrategicamente suprimidas, visando evitar que o
texto traduzido perdesse a sua vivacidade e desenvoltura.
A opção por suprimir as repetições, por mais simples que
possa parecer à primeira vista, carrega em si um certo nível
de complexidade, porque o tradutor precisa ter um olhar sen-
sível para tentar interpretar a intenção do autor ao empregar
cada elemento que compõe a sua obra. Ademais, muitas vezes

1Texto original em russo disponível em: <http://chehov-lit.ru/chehov/text/on-i-ona.htm>.


Acesso em: Setembro de 2018.
2 QUEIROZ, 2008, p.48.

260
Ele e ela

o tradutor também precisa se colocar no lugar do leitor, na ten-


tativa de prever como será a recepção do trabalho.
Embora a supressão de alguns elementos tenha sido um
passo necessário para a construção do texto alvo, não se po-
des deixar de observar a riqueza que esses detalhes trazem ao
texto original. A repetição dos pronomes pessoais “ele” e “ela”
está diretamente ligada ao cerne da obra e salienta ainda mais
a oposição entre a duas personagens principais, que também
executam o trabalho de narradores.

Ele e Ela
Eles estão em peregrinação. Paris é a única cidade na qual
eles passam meses, já em relação à Berlim, Viena, Nápoles,
Madrid, São Petersburgo e outras capitais, eles são sovinas.
Em Paris eles se sentem quasi3 em casa; para eles Paris é a
capital, a residência, o resto da Europa é uma província estú-
pida e entediante que apenas pode ser observada através das
cortinas abaixadas do grand-hôtel ou do proscênio. Eles não
são velhos, mas já passaram duas ou três vezes por todas as
capitais européias. Já estão cansados da Europa e começam a
conversar sobre uma viagem para a América, e vão conversar
até o momento em que eles estejam convencidos de que a voz
dela não é tão maravilhosa assim para ser apresentada em
ambos os hemisférios.
Avistá-los é difícil. Não se pode vê-los nas ruas, porque an-
dam de carruagem quando está escuro, à noite e de madruga-
da. Dormem até a hora do almoço. Costumam acordar de mau-
-humor e não recebem ninguém. Recebem apenas em horários
não definidos, atrás dos bastidores ou sentados para jantar.
É possível vê-la nos cartões, que estão à venda. Porém, nos
cartões ela é bela, e bela nunca foi. Não acredite nos cartões:
ela é uma aberração. A maioria a vê no palco. Mas no palco ela
é irreconhecível. Pó de arroz, rouge, máscara de cílios e cabe-
los postiços cobrem o seu rosto, como uma máscara. O mesmo
ocorre nos concertos.

3 Quase (Latim).

261
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa

Quando interpreta Margarida, ela, com vinte e sete anos,


com rugas, desajeitada, o nariz coberto de sardas, parece uma
garota esbelta e atraente de dezessete. No palco é onde ela me-
nos se parece consigo mesma.
Se os senhores quiserem vê-los, consigam o direito de es-
tarem presentes nos almoços, que são organizados para ela e
que às vezes ela própria organiza antes de viajar de uma capi-
tal para outra. Conseguir esse direito só é fácil à primeira vista,
apenas pessoas escolhidas podem chegar à mesa do almoço...
Estes últimos incluem cavalheiros revisores, penetras que
fingem ser revisores, cantores nativos, regentes e maestros,
amadores e apreciadores com cabelos alisados que escondem
a careca, transformados em frequentadores e bajuladores tea-
trais graças ao ouro, à prata e ao parentesco. Esses almoços
não são nada entediantes, para uma pessoa observadora são
até interessantes… Vale a pena almoçar um par de vezes.
Os famosos (que são muitos entre os que almoçam) comem
e conversam. A postura deles é livre: o pescoço para um lado,
a cabeça para outro, um cotovelo na mesa. Os idosos até catu-
cam os dentes.
Jornalistas ocupam as cadeiras mais próximas da dela. Es-
tão quase todos bêbados e se mantêm notavelmente atrevidos,
como se a conhecessem há cem anos. Se exagerassem mais
um grau, seria um desrespeito. Eles contam piadas em voz
alta, bebem, interrompem uns aos outros (sem esquecer de di-
zer: “pardon!”), propõem brindes estrondosos e aparentemente
não têm medo de parecerem tolos; alguns chegam a deitar em
cima da mesa para beijar a mão dela como gentlemen.
Os que fingem ser revisores conversam com amadores e
apreciadores. Os amadores e apreciadores ficam calados. Eles
invejam os jornalistas, sorriem alegremente e bebem apenas
vinho tinto, que é particularmente bom nesses almoços.
Ela, a rainha do almoço, está vestida de forma despretensio-
sa, mas muito cara. Um diamante graúdo aparece por baixo da
faixa de renda no pescoço. Em ambas as mãos há uma massi-
va e elegante pulseira. O penteado é extremamente indefinido:
as damas gostam, os homens não. O rosto dela é radiante e

262
Ele e ela

derrama um largo sorriso para toda a companhia que almoça.


Ela consegue sorrir para todos de uma só vez, conversar com
todos de uma só vez, acenar de forma adorável com a cabe-
ça, todas as pessoas no almoço recebem um aceno de cabeça.
Observem o rosto dela e lhes parecerá que só há amigos ao
seu redor e que ela nutre por eles a mais amigável disposição.
No fim do almoço ela presenteia alguém com seus cartões; ali
mesmo na mesa escreve no verso do cartão o nome e o sobre-
nome do destinatário sortudo e o autógrafo. É claro que ela
conversa em francês, e no fim do almoço em outras línguas
também. Em inglês e alemão fala tão mal que chega a ser ridí-
culo, mas até mesmo esse defeito parece adorável vindo dela.
Geralmente ela é tão agradável, que o senhor esquece por um
longo período de tempo que ela é uma aberração.
E ele? Ele, le mari d’elle,4 está sentado a cinco cadeiras dela,
bebendo e comendo muito, passa bastante tempo em silêncio,
faz bolinhas com o pão e relê os rótulos das garrafas. Ao olhar
para a sua figura, sente-se que ele não tem nada para fazer,
está entediado, com preguiça, cansado...
Ele tem cabelos loiros com uma calvície que percorre a sua
cabeça em trilhas. Mulheres, vinho, noites em claro e o arras-
tar-se pelo mundo passaram como um arado pelo seu rosto e
deixaram rugas profundas. Ele tem trinta e cinco anos, e não
mais, mas aparenta ser mais velho. O rosto parece ter ficado de
molho no kvas.5 Tem olhos bons, mas preguiçosos… Nem sem-
pre foi uma aberração, mas agora é. Pernas arqueadas, braços
de cor terrena, pescoço cabeludo. Graças a essas pernas tortas
e a um jeito estranhamente particular de andar, por alguma ra-
zão, o chamam de “caleche” na Europa. Em seu fraque ele lem-
bra uma gralha molhada com a cauda seca. As pessoas que
almoçam nem notam sua presença. Ele os paga com a mesma
moeda.
Se vocês conseguirem ir ao almoço, olhem para eles, para
esse casal, observem e me digam, o que atou e continua pren-
dendo essas duas pessoas.

4 O marido dela (Francês).


5 Bebida tradicional russa fermentada à base de pão.

263
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa

Olhando para eles, responderão (obviamente, mais ou me-


nos) que:
— Ela é uma cantora famosa, ele é apenas o marido de uma
cantora famosa, ou, para expressar com um termo dos basti-
dores, marido de sua esposa. Ela ganha ao ano até oitenta mil
em moeda russa, ele não faz nada, portanto, ele tem tempo
para ser o criado dela. Ela precisa de um contador e de um ho-
mem que lide com os empresários, contratos, acordos... Ela co-
nhece apenas o público que aplaude, quanto ao caixa, ela não
toma parte do lado prosaico de seu trabalho, não quer saber
disso. Consequentemente, ela precisa dele, precisa como de
um lacaio, de um criado... Ela o expulsaria se soubesse como
administrar isso sozinha. Já ele, apesar de receber dela um só-
lido salário (ela não conhece o valor do dinheiro!), a rouba jun-
to com as suas camareiras, como duas vezes dois são quatro,
ele torra o dinheiro dela, farreia sem parar, talvez até mesmo
guarde dinheiro para um dia ruim — e está confortável com a
própria posição, assim como um verme que conseguiu entrar
em uma boa maçã. Ele a teria deixado, se ela não tivesse di-
nheiro.
Assim pensam e falam todos aqueles que os observam du-
rante os almoços. Pensam e falam dessa forma, porque, por
serem incapazes de penetrar na profundidade do assunto,
podem apenas julgar superficialmente. Olham para ela, como
que para uma diva, já ele é evitado, como um pigmeu coberto
com gosma de sapo; e ainda assim essa diva europeia está li-
gada a esse sapo por um invejável e nobre laço.
Eis o que ele escreveu:
“Me perguntam, por que eu amo essa megera? É verdade,
essa mulher não merece amor. Ela também não merece o ódio.
A única coisa que ela merece é que não prestem atenção nela,
que ignorem a sua existência. Para amá-la ou você precisa ser
eu, ou ser um louco, o que, a propósito, é a mesma coisa.
Ela não é bonita. Quando nos casamos, ela era uma aberra-
ção, e agora mais ainda. Não tem testa; no lugar das sobrance-
lhas acima dos olhos estão duas tiras quase imperceptíveis; ao
invés de olhos há duas fendas rasas. Nada brilha nessas fen-

264
Ele e ela

das: nem intelecto, nem desejos, nem paixão. O nariz é como


uma batata. A boca é pequena, bonita, mas os dentes são horrí-
veis. Ela não tem peito e nem cintura. De qualquer forma, essa
última falha é suavizada, por sua diabólica, e de alguma forma
sobrenatural, habilidade de apertar o espartilho com destreza.
Ela é baixinha e robusta. Sua robustez é flácida. En masse,6 o
defeito que eu acho mais proeminente em seu corpo inteiro é
a completa falta de feminilidade. A palidez da pele e a flacidez
dos músculos eu não conto como feminilidade, e, nesse sen-
tido, discordo da visão de muitos outros. Ela não é uma dama,
nem uma senhora, mas uma lojista com modos desajeitados:
quando caminha – sacode os braços, ao sentar coloca uma
perna sobre a outra balançando todo o corpo para trás e para
frente, ao deitar levanta as pernas, etc...
Ela é desleixada. As suas malas são um exemplo notável
disso. Nelas as roupas íntimas limpas estão misturadas com
as sujas, punhos de camisas com os saltos e com as minhas
botas, espartilhos novos com os danificados. Nunca recebe-
mos ninguém, porque nos nossos quartos sempre reina uma
bagunça suja… Ah, o que mais eu posso dizer? Olhe para ela
ao meio-dia, quando ela acorda e preguiçosa rasteja para fora
do cobertor, e você não reconhecerá nela a mulher com voz de
rouxinol. Despenteada, com o cabelo emaranhado, com olhos
sonolentos e inchados, em uma camisola com os ombros ras-
gados, descalça, vesga, envolta por uma nuvem de fumaça do
tabaco de ontem – por acaso, ela parece um rouxinol?
Ela bebe. Bebe como um hussardo, a qualquer hora e qual-
quer coisa. Já bebe faz tempo. Se ela não bebesse, estaria aci-
ma da Patti,7 ou, pelo menos, não abaixo. Metade de sua car-
reira ela vem bebendo e em breve vai beber a outra metade.
Patifes alemães a ensinaram a beber cerveja, e agora ela não
se deita sem beber duas ou três garrafas para chamar o sono.
Se não bebesse, não teria gastrite.
Ela é mal-educada e as testemunhas disso são os estudan-
tes que às vezes a convidam para os seus concertos.

6 Em geral (Francês).
7 Adelina Patti (1843 -1919) foi uma famosa cantora italiana.

265
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa

Ela ama publicidade. A publicidade nos custa anualmente


alguns milhares de francos. Eu desprezo a publicidade com
toda a minha alma. Por mais cara que seja essa estúpida pro-
paganda, ela sempre será mais barata que a voz dela. Minha
esposa ama que lhe passem a mão na cabeça, não gosta que
digam sobre ela uma verdade que não pareça um elogio. Para
ela um beijo de Judas comprado é mais agradável do que uma
crítica não comprada. É uma completa falta de consciência de
dignidade própria!
Ela é inteligente, mas seu intelecto não foi suficientemente
educado. Seus miolos há muito perderam a elasticidade; co-
bertos de gordura, adormeceram.
Ela é geniosa, volúvel, não tem nenhuma convicção dura-
doura. Ontem disse que o dinheiro é uma bobagem, que o pon-
to principal não é ele, já hoje fará concertos em quatro lugares,
porque chegou à convicção de que não há nada superior ao
dinheiro. Amanhã vai dizer o que disse ontem. Ela não quer
saber da pátria, não tem heróis políticos, nem um jornal prefe-
rido, nem autores preferidos.
Ela é rica, mas não ajuda os pobres. Mais que isso, muitas
vezes nem paga tudo o que deve aos modistas e aos cabeleirei-
ros. Ela não tem coração.
Mil vezes uma mulher podre!
Mas olhe para essa megera, quando ela, toda pintada, com
o cabelo alisado, espremida, se aproximada da rampa, para
começar a competir com rouxinóis e com uma cotovia que
saúdam um amanhecer de maio. Quanta dignidade e quanto
charme há nesse caminhar de cisne! Dêem uma olhada, eu
vos suplico, prestem atenção. Quando ela pela primeira vez
levanta a mão e abre a boca, as suas pequenas fendas se trans-
formam em grandes olhos e enchem-se de brilho e paixão...
Em nenhum outro lugar você encontraris olhos tão maravi-
lhosos. Quando ela, minha esposa, começa a cantar, quando
os primeiros gorjeios se espalham pelo ar, quando eu começo
a sentir que sob o efeito desses sons maravilhosos a minha
alma conturbada se acalma, olhem para o meu rosto e então o
mistério do meu amor será revelado a vocês.

266
Ele e ela

— Ela é admirável, não é? — às vezes pergunto aos meus vi-


zinhos.
Eles dizem “sim”, mas para mim é pouco. Quero aniquilar
aquele que ouse pensar que essa mulher extraordinária não é
minha esposa. Esqueço tudo o que houve antes e vivo apenas
o presente.
Vejam, que atriz ela é! Quanta profundeza de significado ela
esconde em cada movimento! De tudo ela entende: tanto o
amor, quanto o ódio, e a alma humana… Não é por acaso que o
teatro se desfaz em aplausos.
Ao fim do último ato eu a conduzo para fora do teatro pálida,
exausta, em uma noite viveu uma vida inteira. Também es-
tou pálido e exausto. Nós pegamos uma carruagem e vamos
para o hotel. No hotel ela, calada, sem tirar a roupa, se joga na
cama. Eu me sento em silêncio na beirada da cama e beijo sua
mão. Nessa noite ela não me afasta. Adormecemos juntos, dor-
mimos até de manhã e acordamos, para mandar um ao outro
para o inferno e...
Sabe quando eu ainda a amo? Quando ela faz presença em
bailes ou almoços. Aqui também amo nela a atriz formidável.
De fato, precisa ser uma atriz e tanto para ser capaz de enga-
nar e dominar a sua própria natureza do jeito como ela sabe
fazer. Eu não a reconheço nesses estúpidos almoços… De um
pato depenado ela faz um pavão…”
Essa é uma carta escrita com uma caligrafia de bêbado, qua-
se ilegível. Foi escrita em alemão e está salpicada de erros or-
tográficos.
Eis o que ela escreve:
“Vocês me perguntam se eu amo esse garoto? Sim, às vezes…
Por quê? Só Deus sabe...
É verdade, ele não é bonito e não tem uma boa aparência.
Pessoas como ele não nasceram para ter o direito de ter um
amor recíproco. Pessoas como ele podem apenas comprar o
amor, já que este não lhes é entregue de graça. Tirem as suas
próprias conclusões.
Dia e noite ele está trocando as pernas. As suas mãos tre-
mem, o que é bastante feio. Quando está bêbado, resmunga e

267
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa

briga. Ele bate em mim também. Quando está sóbrio, fica dei-
tado sem dizer nada todo desleixado.
Ele está sempre vestido em farrapos, embora não falte di-
nheiro para roupas. Metade dos meus ganhos escorrega por
suas mãos, não se sabe para onde.
De forma nenhuma vou controlá-lo. As desafortunadas atri-
zes casadas têm contadores terrivelmente caros. Os maridos
recebem metade dos lucros por seus trabalhos.
Ele não gasta com mulheres, disso eu sei. Ele as despreza.
Ele é preguiçoso. Eu nunca o vi fazer coisa alguma. Bebe,
come, dorme e só.
Ele não terminou nenhum curso. Foi expulso do primeiro
ano na universidade por insolências.
Ele não é nobre, e pior de tudo, é alemão.
Eu não gosto dos senhores alemães. Para cem alemães, há
noventa e nove idiotas e um gênio. O último eu descobri gra-
ças a um príncipe, alemão com um forro francês.
Ele fuma um tabaco abominável.
Mas ele tem lados bons. Ama a minha nobre arte mais do
que eu. Quando anunciam, antes de um espetáculo, que estou
doente e não posso cantar, isto é, fazendo birra, ele se arrasta
como um cadáver e aperta os punhos.
Ele não é covarde e não tem medo dos outros. Isso é o que eu
mais amo nas pessoas. Vou contar aos senhores um pequeno
episódio da minha vida. Isso aconteceu em Paris, um ano após
a minha saída do conservatório. Eu era então muito jovem e
estava aprendendo a beber. Farreava todas as noites, o tanto
quanto as minhas forças juvenis aguentavam. Festejava, natu-
ralmente, acompanhada. Em uma dessas farras, quando esta-
va brindando com meus nobres admiradores, um garoto muito
feio e desconhecido veio até a mesa e, olhando diretamente
para os meus olhos, perguntou:
— Por que a senhora está bebendo?
Nós gargalhamos. O meu garoto não se intimidou.
A segunda pergunta foi mais ousada e saiu diretamente da

268
Ele e ela

alma:

— Do que você está rindo? Os patifes, que agora estão embe-
bedando a senhora com vinho, não lhe darão nem uma moeda
quando a senhora perder sua voz por causa da bebida e se tor-
nar uma miserável!
Que tal uma insolência dessas? A minha companhia come-
çou a se revoltar. Enquanto isso, eu já havia colocado o garoto
ao meu lado e ordenado que lhe servissem vinho. Acontece
que o defensor da sobriedade revelou-se um ótimo bebedor de
vinho. A propôs:8 eu o chamo de garoto apenas porque ele tem
os bigodes muito pequenos.
Paguei pela sua insolência com o casamento.
O que ele mais faz é ficar em silêncio. Na maioria das vezes
fala apenas uma palavra. Essa palavra ele fala com uma voz
grave, com um tremor na garganta e um espasmo no rosto. Ele
pronuncia essa palavra quando ele está sentado entre as pes-
soas, durante o almoço, no baile... Quando alguém (quem quer
que seja) conta uma mentira, ele levanta a cabeça e, sem olhar
para nada e sem ficar acanhado, fala:
— Mentira!
Essa é a palavra preferida dele. Que mulher resistiria ao bri-
lho nos olhos, com o qual essa palavra é pronunciada? Eu amo
essa palavra, esse brilho e esse espasmo no rosto. Nem todos
sabem pronunciar essa palavra tão boa, ousada, mas meu ma-
rido a fala em qualquer lugar e sempre. Eu o amo às vezes, e
esse “às vezes”, até onde bem me lembro, coincide com a pro-
núncia dessa boa palavra. De qualquer forma, só Deus sabe
porque o amo. Sou uma má psicóloga, mas, neste caso, parece
que é uma questão psicológica que está em jogo…”
Esta carta foi escrita em francês, com uma maravilhosa,
quase masculina caligrafia. Nela você não encontrará um só
erro gramatical.

8 A propósito (Francês).

269
Melissa Teixeira Siqueira Barbosa

Referências Bibliográficas
QUEIROZ, Sônia (org.). Glossário de termos de edição e tradu-
ção. Belo Horizonte: Viva Voz (FALE/UFMG), 2008. Disponível
em:
http://escritoriodolivro.com.br/bibliografia/glossarioedicaoe-
traducao.pdf Acesso em: Abril de 2020.
TCHÉKHOV, Anton. On i Ona. In: Pólnoie sobránie sotchiniéni
i píssem v 30 tomakh. (Obra completa em 30 volumes). Volu-
me 1. Moscou: Naúka, 1974, pp. 239-246.

Recebido: em 20/03/2019
Aceito em 03/04/2020
Publicado: em junho de 2020

270
Meu caminho

Serguei Iessiênin
Tradução de André Nogueira*

Palavras-chave: Serguei Iessiênin; Meu caminho; Poesia russa; Tradução


Keywords: Sergei Yesenin; My way; Russian poetry; Translation

271
André Nogueira

Resumo
*André Bacciotti Nogueira, ba-
charel em Filosofia pelo Instituto Natural de Riazán, Serguei Iessiênin (1895-1925) foi o princi-
de Filosofia e Ciências Humanas pal expoente dos “poetas camponeses” e um dos nomes cen-
da Universidade Estadual de
trais da literatura russa no período revolucionário. Seu sui-
Campinas, e mestre em Letras
pelo Programa de Pós-graduação cídio em dezembro de 1925 e o poema de despedida, “escrito
em Literatura e Cultura Russa, no com o sangue das veias abertas”, causou grande comoção na
Departamento de Letras Orientais
da Faculdade de Filosofia, Letras sociedade soviética de então. É inevitável que a posteridade
e Ciências Humanas da Univer- o tenha absorvido a partir deste trágico desfecho. Em nossa
sidade de São Paulo. E-mail: língua o poema “Até logo, até logo companheiro” foi primei-
andresala40@gmail.com https://
orcid.org/0000-0002-2105-1216 ro traduzido por Augusto de Campos, com mais uma pequena
seleção do autor na antologia Poesia Russa Moderna; ele apa-
rece também associado à resposta de Maiakóvski ao suicídio
do poeta e toda uma polêmica em torno desse fato, que acabou
por ofuscar o interesse no restante de sua obra. Superando a
barreira de sua morte, no entanto, Iessiênin nos aparece como
uma personalidade de grande riqueza poética e interessante
trajetória de vida, que precisa ser redescoberta e posta em evi-
dência através de um trabalho extensivo de tradução. Este é
o trabalho que tenho desenvolvido e cuja tradução abaixo é
uma amostra. Para apresentar Iessiênin, e começar esta apre-
sentação não pela morte, mas pela vida do poeta, escolhi este
poema: “Meu caminho”, uma espécie de sua pequena autobio-
grafia em verso. A primeira publicação do original saiu em
março de 1925 na revista Gorod i derevnia, Moscou. Nesta fase
entre 1924-1925 Iessiênin freqüentemente adotou este modelo
de “estâncias”: poemas narrativos breves com estrofes de 6 a 8
versos e rimas intercaladas. Procurei na tradução reproduzir
e valorizar a forma e sonoridade do original. O objetivo é dar a
conhecer o autor em nossa língua e expressar suas potências
num texto que funcione poeticamente. Para esta tradução o
texto foi consultado em ЕСЕНИН, Сергей. Полное собрание
сочинений в семи томах. Том второй. Стихотворения
(Маленькие поэмы). Издательство «Голос», 1996.

272
Meu caminho

Abstract

Born in Riazán, Sergei Yesenin (1895-1925) was the main


exponent of “peasant poets” and one of the central names in
Russian literature during the revolutionary period. His sui-
cide in December 1925 and the farewell poem, “written with
the blood of open veins”, caused a great stir in Soviet society
at the time. It is inevitable that posterity has absorbed him
from this tragic outcome. In our language the poem “See you
later, see you later companion” was first translated by Augusto
de Campos, with another small selection of the author in the
anthology Poesia Russa Moderna; it also appears associated
with Mayakovsky’s response to the poet’s suicide and a whole
controversy around this fact, which ended up overshadowing
interest in the rest of his work. Overcoming the barrier of his
death, however, Yesenin appears to us as a personality of great
poetic richness and interesting life trajectory, which needs to
be rediscovered and highlighted through extensive work of
translation. This is the work that I have developed and whose
translation below is a sample. To presentate Yessiênin, and to
start this presentation not by death, but by the life of the poet, I
chose this poem: “My way”, a kind of his little autobiography in
verse. The first publication of the original came out in March
1925 in the magazine Gorod i derevnia, Moscow. In this phase
between 1924-1925 Yesenin frequently adopted this model of
“stanzas”: short narrative poems with stanzas of 6 to 8 verses
and intercalated rhymes. In the translation, I tried to repro-
duce and enhance the original form and sound. The objective
is to make the author known in our language and express his
powers in a text that works poetically. For this translation, the
text was consulted in ЕСЕНИН, Сергей. Полное собрание
сочинений в семи томах. Том второй. Стихотворения
(Маленькие поэмы). Издательство «Голос», 1996.

273
André Nogueira

МОЙ ПУТЬ MEU CAMINHO

Жизнь входит в берега. Das margens já me abeiro.


Села давнишний житель, Antigo habitante da aldeia,
Я вспоминаю то, Lembro bem de tudo aquilo
Что видел я в краю. Que da vida eu aprendi.
Стихи мои, Com palavras verdadeiras
Спокойно расскажите Que eu conte tranqüilo
Про жизнь мою. O que vivi em meu país.

Изба крестьянская. A cabana campesina.


Хомутный запах дегтя, Débil luz da lamparina
Божница старая, Com os ícones na estante,
Лампады кроткий свет. O cheiro forte de verniz.
Как хорошо, Ainda bem que são bastantes
Что я сберег те As memórias que guardei
Все ощущенья детских лет. Daqueles anos infantis.

Под окнами Da janela lá fora a nevasca,


Костер метели белой. O aconchego da isbá.
Мне девять лет. Nove anos eu tinha.
Лежанка, бабка, кот... Minha avó, a gata, o forno...
И бабка что-то грустное, E vovó, muito beata,
Степное пела, Bocejando já de sono,
Порой зевая Os lábios benzia a cantar
И крестя свой рот. Alguma triste ladainha.

Метель ревела. A nevasca ululava.


Под оконцем Era como se por vezes
Как будто бы плясали мертвецы. Lá fora dançassem os mortos.
Тогда империя O império sustentava
Вела войну с японцем, A guerra contra os japoneses,

274
Meu caminho

И всем далекие E nós parecíamos ver


Мерещились кресты. Umas cruzes remotas.

Тогда не знал я Da Rússia e seus turvos assuntos


Черных дел России. Nada então eu conhecia.
Не знал, зачем Não sabia eu o quê
И почему война. E o porquê de uma guerra.
Рязанские поля, Os campos meus de Riazán,
Где мужики косили, Onde o mujique ceifa a junco
Где сеяли свой хлеб, E colhe o pão de cada dia,
Была моя страна. Essa era toda a minha terra.

Я помню только то, Lembro apenas com que raiva


Что мужики роптали, Resmungavam os mujiques,
Бранились в черта, Contra Deus e o tsar
В Бога и в царя. E o diabo praguejando.
Но им в ответ Mas resposta se escutava
Лишь улыбались дали Só do vendaval longínquo,
Да наша жидкая E sobre o nosso limoal
Лимонная заря. A alvorada despontando.

Тогда впервые Com as rimas pelejar


С рифмой я схлестнулся. Da vez primeira me ocorreu.
От сонма чувств A multidão de pensamentos
Вскружилась голова. Subiu-me à cabeça.
И я сказал: E disse eu:
Коль этот зуд проснулся, Que, se tiver mesmo talento,
Всю душу выплещу в слова. A alma em verso eu ofereça.

Года далекие, Tudo isso foi há muito


Теперь вы как в тумане. E me parece envolto em névoa.
И помню, дед мне Lembro só que o avô veio

275
André Nogueira

С грустью говорил: E disse assim:


«Пустое дело... “Ofício inútil...
Ну, а если тянет — Mas, se isso te alegra —
Пиши про рожь, Escreve então sobre o centeio,
Но больше про кобыл». Além de tudo sobre as éguas”.

Тогда в мозгу, Foi então que em secreto,


Влеченьем к музе сжатом, Com o cérebro inclinado para a musa,
Текли мечтанья Me ocorreu ao pensamento
В тайной тишине, Certo afã
Что буду я De que serei grande poeta,
Известным и богатым Conhecido em toda a Rússia,
И будет памятник E erguerão um monumento
Стоять в Рязани мне. Para mim em Riazán.

В пятнадцать лет Os quinze chegaram depressa.


Взлюбил я до печенок Eu então me apaixonei até o fígado.
И сладко думал, Da aldeia indo embora
Лишь уединюсь, Só pensava em uma coisa:
Что я на этой Que a essa,
Лучшей из девчонок, A mais formosa rapariga,
Достигнув возраста, женюсь. Em sua hora, vou tomá-la como esposa.

............................................. ..........................................

Года текли. O tempo se passou


Года меняют лица — E foi mudando de figura —
Другой на них Uma outra alvorada decerto
Ложится свет. Já nele rompia.
Мечтатель сельский — Eu, campônio sonhador, —
Я в столице Na capital tive ventura:
Стал первокласснейший поэт. Converti-me num poeta da melhor categoria.

276
Meu caminho

И, заболев Mas o tédio de escritor


Писательскою скукой, A tal ponto tomou minha vida,
Пошел скитаться я Por vários países errando
Средь разных стран, Me tornei um vagabundo,
Не веря встречам, E sem sorrir para os encontros,
Не томясь разлукой, Sem chorar as despedidas,
Считая мир весь за обман. Conheci o grande engano que é o mundo.

Тогда я понял, Foi então que compreendi


Что такое Русь. O que afinal é a Rússia.
Я понял, что такое слава. Compreendi o que é a glória.
И потому мне Em minha alma desde aí
В душу грусть Fatal angústia
Вошла, как горькая отрава. Se cravou, como uma estaca divisória.

На кой мне черт, Mas então, ao diabo


Что я поэт!.. Que eu seja poeta!..
И без меня в достатке дряни. Sem mim já é bastante o que há de asneira.
Пускай я сдохну, Ainda que eu me acabe,
Только...... Mas espera...
Нет, Não,
Не ставьте памятник в Рязани! Monumento não levantem na aldeia!

Россия... Царщина... Rússia... O império do tsares...


Тоска... Angústia...
И снисходительность дворянства. E os ares indulgentes da nobreza.
Ну что ж! Pois espera para ver!
Так принимай, Москва, Se tu, Moscou, não te assustares
Отчаянное хулиганство. Com a nossa desordeira natureza.

277
André Nogueira

Посмотрим — Vejamos agora —


Кто кого возьмет! Quem pega quem!
И вот в стихах моих Ouçam bem essa canção de Riazán,
Забила Como pulando a essa escória
В салонный вылощенный Dos salões ela rega
Сброд Com mijo que nem
Мочой рязанская кобыла. Minha égua alazã.

Не нравится? Como, não gostaram?


Да, вы правы — Não é para menos —
Привычка к Лориган Pois costumam se banhar
И к розам... Com L’ Origan, caros perfumes...
Но этот хлеб, Mas o pão
Что жрете вы, — Que vocês comem, —
Ведь мы его того-с... A verdade é que o fazemos com...
Навозом... Estrume...

........................... ......................................

Ещё прошли года. Os anos se passaram.


В годах такое было, Então passa-se aquilo
О чем в словах Que não ouso descrever
Всего не рассказать: Com meu vulgar vocabulário:
На смену царщине Ao governo dos tsares aniquila
С величественной силой Com esplêndido poder
Рабочая предстала рать. O exército operário.

Устав таскаться Já cansado das andanças


По чужим пределам, Por confins de outras terras,
Вернулся я Regressei tão logo pude
В родимый дом. Para o meu torrão natal.
Зеленокосая, Com verdes tranças,

278
Meu caminho

В юбчонке белой O saiote balançando do açude,


Стоит береза над прудом. Fez-me a bétula um sinal.

Уж и береза! Ah, bétula amiga!


Чудная... А груди... Tão bela... E que seios...
Таких грудей Seios assim,
У женщин не найдешь. Que não os têm as raparigas.
С полей обрызганные солнцем Desde os campos de centeio
Люди As gentes trazem para mim
Везут навстречу мне Uma telega
В телегах рожь. Carregada de espigas.

Им не узнать меня, Não me reconhece a gente,


Я им прохожий. Para elas sou somente um viajante.
Но вот проходит Então passou uma velhinha,
Баба, не взглянув. Minha avó, e não me viu.
Какой-то ток E eu senti por toda espinha
Невыразимой дрожи A corrente lancinante
Я чувствую во всю спину. De um terrível calafrio.

Ужель она? Será que não reconheceu?


Ужели не узнала? Ou será eu que confundi?
Ну и пускай, Bem, que se vá,
Пускай себе пройдет... Não importa...
И без меня ей Para ela já sem mim
Горечи немало — As amarguras não são poucas —
Недаром лег Não acaso caiu torta
Страдальчески так рот. Sua sofredora boca.

По вечерам, O dia acaba,


Надвинув ниже кепи, A cabeça eu enfio no quepe,
Чтобы не выдать Protegendo com a aba

279
André Nogueira

Холода очей,— Os olhos do frio, —


Хожу смотреть я Então eu parto para ver
Скошенные степи As ceifadas estepes,
И слушать, Ouvir como as águas
Как звенит ручей. Murmuram no rio.

Ну что же? Bem, e daí?


Молодость прошла! Foi-se embora a juventude!
Пора приняться мне É forçoso admitir,
За дело, Fazer as pazes com o assunto.
Чтоб озорливая душа Os novos anos eu saúde
Уже по-зрелому запела. Com meu canto vagabundo.

И пусть иная жизнь села Por um caminho diferente da aldeia


Меня наполнит Sinto agora
Новой силой, Que uma nova vida pulsa,
Как раньше Como outrora da cocheira
К славе привела Conduziu-me para a glória
Родная русская кобыла. A saudosa égua russa.

<1925> <1925>

Recebido: em 29/03/2020
Aceito: 28/05/2020
Publicado: em junho de 2020

280
A Homero Freitas de Andrade*

* Professor do curso de Língua Embora eu tenha sido contratada como professora do Curso
e Literatura Russa da Faculdade
de Russo em 1969, já cinco anos antes lecionava como volun-
de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da USP, falecido em 07 tária. Pois bem, Homero Freitas de Andrade foi aluno de uma
de março de 2020. de minhas primeiras turmas e, juntamente com a colega Ar-
** Professora Titular dos Progra- lete Orlando, salientou-se por seu entusiasmo e aplicação. O
mas de Pós-Graduação em Litera- que o caracterizava era também um tipo de ironia, ora sutil
tura e Cultura Russa e em Teoria ora sarcástica, que soube desenvolver e articular admiravel-
Literária e Literatura Comparada
da USP. E-mail: bernaur2@yahoo. mente nas traduções que empreendeu, inicialmente sob mi-
com.br https://orcid.org/0000- nha orientação, de duas literaturas: a italiana e a russa. Em
0002-25597080
algumas delas foi extremamente feliz e nossa colaboração du-
rou muitos anos: Bakhtin, Tchékov, Pirandello, Umberto Eco,
Meletínski... algumas de nossas traduções ganharam prêmios
importantes ( Isaak Bábel), foram indicadas para prêmios im-
portantes (Pirandello, Tchékov), ou foram bestsellers que con-
taram com várias edições (O nome da rosa, O deserto dos tárta-
ros) etc. Homero continuou com suas atividade como tradutor
por conta própria traduzindo, entre outros, Léxico familiar,  de
N. Ginsburg, e várias obras de M. Bulgákov , incluindo sua tese,
O diabo solto em Moscou, que, acaba de contar-me Sergio Me-
deiros, da Universidade Federal de Santa Catarina, é utilizada
em seus cursos e muito apreciada pelos alunos.

Finalmente, Homero e Arlete tornaram-se assistentes douto-


res do Curso de Russo e eu deixei de orientá-los. Já era tempo
de trilharem o próprio caminho... Cabe aos alunos, agora, reco-
nhecer seus méritos e seus legados. Adeus Homero, acompa-
nham-no minhas melhores lembranças.

Aurora Bernardini**

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