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Ficha Técnica

Título original: Fado Alexandrino


Autor: António Lobo Antunes
Design de capa: Atelier Henrique Cayatte
Revisão: Eulália Pyrrait
ISBN: 9789722042550
Publicações Dom Quixote
[Uma chancela do grupo Leya]
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© 1983, António Lobo Antunes e Publicações Dom Quixote
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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Este livro é dedicado aos meus amigos

Helena Silva Araújo


José Almeida Costa
Luís Sobrinho
Now the years are rolling by me
They are rocking evenly
I am older than I once was
Younger than I’ll be
But that’s not unusual
No it isn’t strange
After changes upon changes
We are more or less the same
After changes we are more or less the same
PAUL SIMON The Boxer
primeira parte
antes da revolução
1

Saiu a arrastar a mala, misturado com os colegas, do


edifício desbotado do quartel, e distinguiu logo, do outro lado
das grades, no passeio, uma espécie de monstro marinho de
caras, de corpos e de mãos, que se agitava, aguardando-os, no
meio-dia cinzento da Encarnação, em que os semáforos
boiavam ao acaso, suspensos da neblina como frutos de luz.
Qualquer avião invisível assobiava por cima das nuvens. Um
pelotão de cadetes passou a correr, quase junto a eles,
mastigando o cascalho da parada com as mandíbulas das botas
enormes, esporeado por um furriel cujos olhos vazios se
assemelhavam aos dos cães de loiça dos aparadores.
— Que março de merda
lamentou-se o cabo condutor à sua esquerda, de saco às
costas repleto de bugigangas africanas que esfarrapados negros
manetas impingem à tropa de licença nos cafés de Lourenço
Marques: cachimbos de folha, pulseiras de arame, manipansos
horríveis fabricados à pressa, à navalha, no zinco miserável
dos musseques. E ele pensou Estou em Lisboa e em
Moçambique, vejo ao mesmo tempo as casas do bairro
económico e as árvores da mata, os jardinzitos gotosos e as
palhotas devastadas pelas metralhadoras, o polvo de alegres
braços ansiosos que António Lobo Antunes nos chama e o
enorme, gigantesco silêncio que se seguia às emboscadas,
povoado de gemidos leves como os protestos da chuva:
espreitou por debaixo da Mercedes, na picada, e o tipo que
dormia no beliche, a três palmos de si, fitava-o já com a
desatenção longínqua dos mortos nos velórios, cujos sorrisos
se adoçam da amável indiferença dos retratos. Reviu o
comandante a despedir-se do batalhão no ginásio do quartel, o
brilho ácido dos óculos sem aro, os dedos que se estendiam,
moles, para os soldados em sentido, quase encostados às traves
do espaldar, e pensou Continuo em Moçambique, no arame,
sentado no bar a ver chegar a noite: o enfermeiro distribuiu ao
jantar os comprimidos contra o paludismo, um cacimbo miúdo
tomba na tarde da Encarnação, na tarde de Lisboa, fazendo
subir dos caixões o cheiro suave da madeira molhada, o odor
redondo da terra, e dentro em breve centenas de insectos vão
surgir no alcatrão e espalhar-se, zunindo, nas ruas da cidade
como nos arbustos de Omar, até se sumirem aos poucos, lá
longe, na escuridão dos abrigos. O cabo condutor passou o
fardo de um ombro para o outro, e aspirou indignado a
humidade do ar:
— A porra de tempo que encontrámos aqui.
As cabeças pegavam-se às grades, as caras fendiam-se em
gargalhadas enormes, vozes confusas, agudas, misturadas,
chamavam-nos. Um sargento idoso, de bata branca, assomou a
fumar aborrecidamente à porta de uma construção com uma
cruz vermelha na fachada, tornou para o interior a arrastar os
sapatos, e o soldado percebeu um vértice de secretária,
armários de vidro, a escala de letras cada vez mais pequeninas
destinada à angústia dos míopes. Lisboa, pensou ele
desiludido, vinte e oito meses a sonhar com a gaita da cidade e
afinal Lisboa é isto, enquanto uma furgoneta de cervejas, a
gemer no cascalho, cruzava a porta de armas e a espingarda de
brinquedo da sentinela, pedaços do vinho Sandeman e do
dentífrico Binaca emergiam dos telhados, os oficiais jogavam
as cartas no palheiro da messe, aguardando a sopa do jantar.
Mas não iria haver ataques hoje, não haveria ataques nunca
mais: acabaram-se os trilhos, os bombardeamentos, a fome, os
massacres, eis-me de novo no Bairro da Encarnação e nas
casitas podres como dentes cariados, perto das fedorentas
gengivas abertas dos esgotos, que cabo-verdianos de picareta
em riste martelam sem vontade.
— Uma gripe de certeza, profetizou o cabo condutor, oito
dias de botija e chás de limão até que os espirros me passem.
Suava no beliche, de arma à cabeceira e um cansaço infinito
nos membros, Vou morrer. O médico observava-o de mãos nos
bolsos, distraído, meia hora depois alguém o mandava voltar-
se de barriga para baixo, e no mesmo instante enfiavam-lhe na
nádega uma injecção para as sezões, cuja dor se espalhava na
carne como se um molar ardesse de súbito, incandescente, no
rabo. Completamente imóvel, de olhos fechados, sentia o
próprio sangue pular na almofada, contra o pescoço, idêntico a
um bicho aflito que se escapa, e à sua volta o rumor tranquilo
das árvores e das vozes que lhes gritavam, do lado de lá das
grades, num júbilo confuso: cada folha, pensou ele, é uma
língua que treme, cada órbita um nó saliente da madeira, cada
corpo um ramo que se inclina, assustador e efusivo. O tenente
do Serviço Geral passou a trote, alheado, pela sombra
estendida na Mercedes, cuja boca se estirava num suspiro
infindável, e abraçou-se no passeio a um velho que escrevia no
ar, com a ponteira da bengala, iniciais indecifráveis de
emoção. Tropeçou na mala evitando cuidadosamente o vizinho
de cama com os pés, o qual jazia no empedrado de Lisboa
numa poça repugnante de intestinos, desviou a vista para não
encontrar o buraco da bala na orelha, e reparou que o polvo de
pessoas que os esperava numa angústia feliz se torcia e
estirava de cólicas junto à porta de armas, engolindo os tropas
um a um num alarido carnívoro de beijos: Vão comer-me
também, temeu apavorado, vão devorar-me com os seus
tentáculos de mangas, de camisas, de gravatas, de gabardines,
de calças, de gastos vestidos tristes de viúva, vão triturar-me as
articulações com o seu afecto veemente e impositivo. O
tenente do Serviço Geral pegava ao colo uma criança que
berrava, um graduado desaparecia por António Lobo Antunes
seu turno num torvelinho de puxões e de palmadas, e o
soldado lembrou-se dele na mata, de morteiro às costas,
caminhando, oblíquo, pelos arbustos, na quietude da manhã,
na direcção da sanzala abandonada onde umas brasas mornas,
sem brilho, agonizavam.
— Se este tempo continua, queixou-se o cabo condutor,
palavra que nem a alminha se me aproveita.
O avião rompeu as nuvens com as rodas das patas
agressivamente de fora, e aproximou-se da pista oculta do
aeroporto como um grande pombo desajeitado e hirto, cheio
de poros quadrados de janelas e uma larga risca vermelha ao
longo do dorso de metal. Vagarosamente, penosamente,
reconstituiu dentro de si, como se arrumasse no lugar as peças
de um jogo esquecido, a cidade deixada dois anos antes entre
apitos de navio e marchas militares, quando o barco se
desprendeu do cais perseguido pelos crocitos de gaivota das
famílias, que voavam em torno do casco à laia de enormes
aves aflitas e fúnebres, acenando sobre as ondas de azeitona os
guarda-chuvas abertos de janeiro. Foi a primeira vez que vi o
meu pai voar (pensou ele estendido no colchão à medida que
as máquinas do paquete lhe remexiam os bofes e faziam
soluçar a urina na bexiga) e continuou voando na minha
memória no rastro das hélices que se afastavam, disputando
aos pássaros o seu jantar de espuma, até chegar a Moçambique
a única carta da minha irmã:
Abílio muito estimo que ao receberes desta te encontres de
boa e feliz saúde que eu e o meu filho bem graças adeus apesar
do Vítor não dar um tostão para a criança e me armar cada
cena aqui à porta que só visto pancadaria ameaças palavreado
Abílio trago uma notícia muito triste para ti e que é: o pai
espichou estava a dar na televisão os ranchos folclóricos e eu
só atentei nisso ao dizer-lhe para se ir deitar toquei o dedo no
ombro e ele caiu de lado no sofá como um boneco por sinal
que atirou ao chão com o cotovelo o candeeiro da nossa
falecida mãe aquele transparente que se percebe o fio e lhe deu
a senhora onde trabalhou a dias a dona Márcia da capelista
prometeu-me uma cola boa para o consertar demos anteontem
o velório e apareceram os vizinhos quase todos o senhor
Honório o chefe Salgado a prima Esmeralda e as sobrinhas
que trouxeram a entrevada do catorze coitadita numa cadeira
de rodas lembras-te que a gente atirava pedras aos caixilhos e
ela nos gritava malandros malandros o tio Venâncio dos
correios tratou dos documentos da certidão de óbito das
facturas paga-se à agência funerária em prestações a propósito
se tiveres de parte manda que também era teu pai e não é justo
escorregar eu sozinha com o arame houve duas coroas de
flores uma pequena de fita roxa dos amigos do café e outra
minha tão bonita que o Osório do campo de futebol me disse
poça menina Otília que me dá ganas de esticar e eu atirei-lhe
logo descanse que com a tosse com que você anda não espera
muito tempo por isso o funeral meteu carreta padre seis táxis
da praça e três automóveis uma colega da fábrica emprestou-
me a saia e a mantilha tiveram todos pena que não assistisses e
mandam-te sentidos pêsames e cumprimentos oxalá voltes
depressa e escorreito que se nota por aí tanto aleijado na rua
recebe um abraço da tua irmã Maria Otília Alves Nunes a
Deus quinhentos escudos já me davam jeito.
Agora (pensou quando acabou a carta e guardou o envelope
na mala) o velho continua a voar, de guarda-chuva aberto,
debaixo da terra, de boca cheia de lama e de torrões, com os
pequeninos olhos vagos de reformado a observarem
miudamente um barco que não há, a afastar-se cheio de
soldados na direcção de África, cada vez mais insignificante
no azul de papel selado do rio. O cabo condutor examinava
com desconfiança o céu baixo de Lisboa, do mesmo modo que
a língua palpa devagar, cautelosamente, um dente que dói:
rolos de ásperas nuvens escuras sem leme, e uma impressão
esquisita de oco, de vazio, como se o tecto da cidade fosse
constituído por uma ladeira de imensos degraus translúcidos
que conduziam a nenhuma porta.
— Uma pneumonia pelo menos, previu o tipo a abanar
desgostosamente a cabeça como depois da explosão das minas
na picada, quando se juntavam, mudos, sem saber o que fazer,
em torno de um corpo esquartejado que sangrava.
O polvo atrás das grades diminuía a pouco e pouco, cachos
de pessoas afastavam-se, rodeando um tropa, pela praceta da
Encarnação fora, onde o trânsito circulava pacientemente à
laia de um grande boi exausto, a adubar de cagalhões de fumo
as árvores magras da rotunda, que imprimiam nas placas de
cera das paredes as pegadas delicadas, de brônquios, dos
ramos. Só um pequeno grupo se mantinha tenazmente colado à
porta de armas, tão perto já de si que lhes distinguia as feições
e os braços que apertavam as sombrinhas fechadas contra o
peito (ansiosos como os negros inutilmente grudados ao arame
farpado, de lata em punho, na esperança dos restos de comida
do batalhão), mulheres, homens, velhos de rugas lavradas pela
resignada expectativa dos pobres, sapatorras, idênticas a
calhaus informes, plantadas nas pedras moles do passeio. Os
recrutas tornaram a roçar por eles a trote, bandarilhados pelos
gritos do aspirante e do segundo sargento que o seguia como
um cachorro de rebanho, insultando um gordo que rebolava
penosamente na cauda da coluna, liquefeito de desespero e de
cansaço, os edifícios do quartel achatavam-se, insignificantes,
nas suas costas: acabou-se o Exército, acabaram-se os tiros,
acabou-se a morte, noites e noites no abrigo a espreitar por um
buraquinho a rápida luz cor de laranja das armas. Uma, duas,
três mãos sequiosas agarraram o cabo condutor pelo blusão,
pelas divisas, pelos botões da farda, como se dividissem entre
si um despojo precioso, uma minúscula velha de xaile
dependurava-se-lhe, a chorar, da cintura, encostava-lhe a cara
à barriga tímida, satisfeita, comovida, a minha irmã não pôde
vir de certeza por causa do miúdo, e o amargo da inveja de não
ter ninguém a chamá-lo, a empurrá-lo, a molhá-lo de beijos, o
cabo sorria atarantado, sem perceber, Estamos ainda em
África, seguimos ainda os vestígios dos gajos, atravessamos
ainda a mudez branca das manhãs de guerra, a cheirar à
mandioca nas esteiras e ao odor lento dos negros, paramos
ainda diante do unimogue que explodiu, e da espinha
desarticulada do condutor enforcado no volante. Saiu a porta
de armas a puxar a mala e procurou com os olhos, sem a
encontrar, a paragem do autocarro: até as paragens mudaram
nesta terra, caralho. As pessoas cruzavam-se com ele numa
pressa mecânica, rostos, peitos, membros movendo-se com
rapidez prolixa. Um cego de bengala de alumínio tacteava
velozmente as esquinas, o altifalante de um sorteio qualquer
deslizou a vociferar no topo de uma camioneta imperativa:
tinham-se evaporado os sujeitos de pasta sebenta e colarinho
sujo que trocavam dinheiro africano por dinheiro português,
nas esplanadas junto ao mar, aos militares que embarcavam,
doze por cento, quinze por cento, vinte e um por cento, trinta
por cento. Não sobrava uma única silhueta pegada às grades, e
um garoto ruivo, coberto de sardas, com uma cesta de marçano
ao ombro, informou Desça dois quarteirões até à loja de
artigos eléctricos e apanha o quarenta e sete. As íris do rapaz
eram verdes, picadas de uma cercadura de ínfimas manchas
amarelas, a chuva assemelhava-se a uma espécie de poeira
húmida cintilando delicadamente no ar, as casas de madeira
dos ciganos cercavam o bairro de uma pestilencial desordem
de musseque: crianças, burros coxos, e pedras e pneus de
automóvel nas lâminas de zinco dos telhados. Subsistirá o
prédio acanhado da Buraca atrás da linha do comboio e do
triste choro nocturno dos apitos? (A mala roja-se nos
calcanhares como uma cauda.) O retrato do meu sobrinho na
moldura de búzios em cima da televisão aparatosa? À medida
que caminha tenta recordar as divisões: a retrete, o quarto, as
tampas de caixas de bombons a servirem de quadros nas
paredes, o autoclismo sempre avariado brandindo como ossos
as travessas dos caixilhos. Uma fila de pessoas, quase todas
mulheres, aguarda em silêncio o autocarro: amanhã, cantava-
se em Angola quando por lá passei, vou acender uma vela na
Muxima, vou à Fortaleza de São Paulo, vou ver a água cor de
bílis da baía. O quarenta e sete imobiliza-se finalmente num
suspiro agudo de travões, e as mulheres começam a subir,
cabisbaixas, para dentro, depois de a porta metálica se
encolher num estrondo de biombo. O condutor batuca os
dedos no volante, e acaba por arrancar de salto numa vibração
de latas. O soldado agarra-se a um dos tubos cromados ou às
tiras de couro que balouçam do ( António Lobo Antunes tecto,
segura a mala entre os joelhos e assiste a um trepidante desfile
de ruas, avenidas, edifícios desconhecidos, esqueléticas
pracetas de cotão sob o céu de cotão. De tempos a tempos uma
campainha toca, o veículo abranda em sucessivos guinchos de
molas, e acaba por desmaiar num arrepio derradeiro: os que
entram e os que saem possuem o mesmo soslaio azedo e turvo,
a mesma roupa escorrida, as mesmas feições envelhecidas
infinitamente distantes. (Ao despedir-se do capelão, no quartel,
pensou Nunca mais vejo este gajo, nunca mais oiço a voz
deste gajo na parada, nunca mais escuto o seu latinório inútil
em torno dos caixões.) O autocarro roda de novo num vagar
difícil, mais fachadas, mais edifícios, mais árvores, antigos
descampados hoje cobertos de uma borbulhagem de casebres,
passeios inundados de lixo, miúdos e cães. Como os cães e os
putos se parecem nesta terra, pensa ele, se pareciam em
África: a mesma expressão pedinte, o mesmo pêlo baço, os
mesmos membros frouxos de lírio. O autocarro cruza a gemer
um aqueduto derruído, vira à esquerda cerca do caminho-de-
ferro cujas calhas se adivinham a espaços nos intervalos de um
canavial, e inicia, asmático, a rampa da Buraca: há qualquer
coisa de familiar aqui, qualquer coisa de indefinível e íntimo
que conheço para além destas pequenas varandas de azulejo,
destas gaiolas de pássaro de fora das janelas, destas camisas
dependuradas de barrigas de cordel.
— Cresci na época em que essas bandas eram quintarolas de
couves e criação (dir-me-ia mais tarde no restaurante onde nos
encontrámos tantos anos depois, dez ou onze, a seguir à volta
da guerra). Na altura, meu capitão, a Damaia parecia um
deserto, uma ribeira pestilenta tropeçava ao acaso nos calhaus,
o meu pai tinha duas cabras presas a um espigão, a balirem o
dia inteiro, indignadas.
(Dispersar, ordenou o major no ginásio do quartel e acabou-
se Moçambique, bater com força o pé direito no chão e meter
nessa força o nojo que vos tenho, os mortos, os pernetas, os
feridos, a falta de cigarros, de comida fresca, de
correspondência, de mulher, salvo uma ou outra negra
magríssima, desinteressada, barriguda, em trapos.) Vê de
repente um prédio estreito, de três andares, entalado entre a
mercearia e um edifício esbeiçado e idoso, puxa depressa a
guita de cabedal da campainha, Cheguei, e as pessoas mornas
que viajam com ele consideram-no espantadas: um tipo careca
nasce, surpreendido, do jornal, como os hipopótamos do
tanque do jardim zoológico, de espessos óculos enevoados de
notícias e de letras. Acotovela passageiros que tossem,
resmungos indistintos entrelaçam-se com os estalos do motor,
apeia-se abraçado à mala que rasteja nas estrias do chão a sua
zanga murcha, e fica estupidamente no passeio a seguir o
autocarro que se afasta no vagar indolente dos obesos,
transportando a sua carga inerte e indiferente.
— Eu também não sabia o que fazer (explicar-me-ia o
alferes por cima do peixe, dos grelos e dos ovos cozidos), o
que responder a tantas perguntas, a tantos beijos, a tanta súbita
e inesperada solicitude, a tanto interesse por mim. Apalpavam-
me para se assegurarem que era eu, confundiam os seus hálitos
vivos com o meu hálito carregado de defuntos, e nisto veio-me
à ideia E agora? O meu capitão não pensou E agora? quando
chegou a casa? Não pensou Como caralho me vou esquecer
disto tudo? Não ficou aflito, sozinho, em Lisboa, com esse
espaço de dias adiante, de horas necessitadas de se mobilar de
qualquer coisa, não pensou que difícil despir o uniforme e ser
civil, só sei pegar numa canhota e andar à caça de pretos pela
mata?
— Quando desembarquei do autocarro na Buraca a minha
irmã não estava, disse o soldado, tinha ido às compras com o
miúdo ou o caneco, esperei um tomate de tempo à entrada da
casa.
— Não te espeques com cara de parvo a olhar para mim,
entra, disse ela
e o soldado distinguiu uma mulher mais ou menos da sua
idade, com um saco de plástico numa das mãos e um catraio
na outra, a fitá-lo com pupilas áridas vagamente contentes,
vagamente maçadas, que segura a porta com a anca, o precede,
sacudida, ao longo do corredor sujo (mais caixotes de lixo,
línguas de capacho, o estuque do tecto a António Lobo
Antunes dissolver-se de bolor) e vai arrumar o saco na cozinha
onde cresce o grunhido de urso polar do frigorífico, enquanto
o filho, plantado ao meio da sala, o examina com órbitas
gigantescas de pasmo, entre um calendário Mobil exibindo
uma rapariga de deslumbrantes tetas nuas, e o aquário da
televisão desligada. Instala-se a medo na borda do sofá (Foi
aqui que o meu pai morreu), dá com o retrato do velhote numa
prateleira, a fotografia antiga de um homem de bigodes e
corrente de relógio, imponente como um papa no seu trono de
feira, levanta-se de um pulo, da cozinha chegam ruídos de
tampas que se chocam, estalos de gavetas, um banco que cai,
aproxima-se da janela e eis os prédios escavacados do bairro, o
terreiro tinhoso onde se jogava futebol, de balizas marcadas
por pedras ou boinas ou cacos de garrafa, cones de entulho,
homens que remexem desperdícios com um pau, e mais para
cima os verdes desbotados de Monsanto no meio-dia
desalentado de março.
— Perguntou-me se eu tencionava ficar lá em casa, disse-
me o soldado. Eu ainda tonto da mona como se acabasse de
acordar e ela só a perguntar-me se eu tencionava ficar lá em
casa como se mais nada no mundo, percebe o meu capitão, lhe
interessasse de facto, ficas cá, não ficas cá, talvez se arranje
lugar na sala por uns dias.
As cortinas de plástico eram as mesmas, só que mais pardas
e tristes, os mesmos os feios móveis modestos, o mesmo o
prato de louça do Algarve no aparador, o mesmo cheiro de
retrete entupida e abandono por toda a parte, os jornais de
reformado do pai empilhados num canto, de ângulos amarelos
retorcidos como patas de peru, e a surpresa de um casaco
berrante de homem num cabide, suspenso da corda que
atravessava a sala de lado a lado e a que as molas se
agarravam como pardais de plástico, segurando no bico
peúgas, cuecas de botão, uma insólita camisa estampada de
bailarinas havaianas, a erguerem os pulsos a um céu de
palmeiras. A irmã voltou da cozinha a enxugar as unhas roídas
à saia.
— Um mês depois do nosso pai falecer juntou-se com o
primo da porteira, disse o soldado, um mulato que trabalhava
no restaurante do aeroporto, sempre de óculos escuros mesmo
à noite, cheio de anéis, que a derreou de filhos e porrada.
Resultado, tive de alugar quarto noutro sítio.
— Estas verde, informou a irmã, pensativa. Em
Moçambique não te alimentavas bem?
Que distância agora nos separa, reflectiu ele: conversas
comigo como se eu fosse um estranho, sem um beijo, sem uma
festa, sem uma sombra de ternura: fechou os olhos e o polvo
de caras, de gestos, de exclamações, de risos ansiosos, agitou-
se de novo, na sua cabeça, junto à porta de armas do quartel,
na manhã nevoenta da Encarnação.
— Óculos escuros mesmo de noite, daqueles de aros
doirados, completamente opacos, meu capitão, repetiu
devagarinho o soldado a contemplar o círculo de espuma de
cerveja do copo. Não se conseguia perceber raspas para onde o
gajo olhava.
— Trouxeste alguma doença esquisita, por acaso?,
perguntou a irmã, desconfiada, a compor rosas de pano numa
jarra. Lêndeas na bexiga, bichos no estômago ou assim, sei lá,
uma gaita que se pegue.
O filho, sentado no chão, entretinha-se a rasgar uma revista,
faltava mobília, faltavam quadros, o espaço aumentara
desmesuradamente, o D. Quixote de barro, de lança quebrada,
ameaçava, inútil, o candeeiro. E falhas, e riscos, e nódoas nas
paredes também, um desleixo amargo que desconhecia. A irmã
correu um pano apressado por aqui e por ali, ajeitou as
almofadas torcidas do sofá, enfureceu-se com uma varejeira
que entrou pela janela, traçando largos círculos exasperados no
compartimento: o avião do correio, pensou ele, a zumbir, nas
manhãs de quinta-feira, invisível na mata, e que a irmã
perseguia, em grandes gestos espectaculares de zanga, para
não se enervar comigo, para não me gritar Perdeste o teu lugar
cá em casa, vai-te embora, enquanto o mulato metia a chave à
porta (uma rápida chave decidida de proprietário) e o fixava,
impenetrável, do umbral, por detrás dos célebres óculos de
armação doirada.
— Nem nessa noite dormi lá, explicou-me o soldado, com
um grosso beiço de líquido branco por cima da boca e os
ombros curvados sobre a mesa como se fosse correr. Fiquei no
segundo andar de uma pensão do Calhariz, com os comboios a
entrarem-me a noite inteira nos ouvidos e a luz das carruagens
a deslizar no tecto aquela sucessão branca de quadradinhos
tremidos, como no fim dos filmes do refeitório do quartel. A
cama pulou durante horas e vinha-me à ideia que tinha rodas
debaixo do colchão e galopava por um funil de casas, Buraca
fora, a caminho de Monsanto, da mata, das flechas da igreja,
dos bairros horríveis da Amadora, dos canteiros do parque: de
forma que acordei com uma dor do catano nos rins e um apito
de locomotiva nas orelhas que o meu capitão nem calcula.
E Lisboa, na rua, à espera dele, lojas fechadas, os vincos de
papel de embrulho da névoa, camionetas a afastarem com as
mãos dos faróis o silêncio transido da manhã, recortes de
pessoas de cartão na paragem do autocarro, ter de aguentar até
às nove para entrar numa farmácia e comprar aspirinas.
— Eu era casado e com uma filha pequena nessa altura,
disse o alferes a sorrir para as colheres do empregado que lhe
servia a carne. Morava na Rua da Mãe-d’Água, ao pé da fonte,
e a seguir às intimidades, mesmo de interruptor apagado, via a
bola redonda do candeeiro de papel, parecido com uma lua
enorme, a semear no escuro fantasmas japoneses. (A
respiração da mulher ao seu lado e a da filha no outro quarto
inundavam o andar de um murmúrio de sons que se elevava e
descia como o atrito leve de um vestido. Um electrodoméstico
desatava de súbito a ronronar nas trevas à laia de um tractor
escalando uma ladeira, os ponteiros do despertador
esbracejavam, imóveis, no armário dos livros, e a lua redonda
de papel vogava, presa por um cordão verde, junto ao tecto,
soprada pelo hálito doce das estrelas lá fora, semelhantes às
pedras de um jogo de damas de solução indecifrável. O tempo,
caraças, engoliu-me a mim também, pensa ele, esta cerveja
sabe a fim de barril.) Quando passo na Rua da Mãe-d’Água a
maior parte das vezes nem me lembro do prédio, da Inês na
cozinha, de costas para mim, girando sem ruído nos sapatos de
ténis, de jeans em franja caídos sobre os calcanhares: veja o
meu capitão com que facilidade a gente esquece as coisas.
— Nessa tarde, disse o soldado, fui ter com o meu tio a
procurar trabalho. O velho tinha uma camioneta, fazia
mudanças, havia a hipótese de uma quotazita no negócio, e no
dia seguinte já eu carregava e descarregava cómodas, mesas,
cadeiras, máquinas de lavar, pianos, ajudado por um par de
infelizes de fato-macaco e cigarro apagado na boca, que
traziam escrito no lombo, de omoplata a omoplata, ILÍDIO,
em letras desbotadas.
— Chegaste ontem, hã?, ladrou aos berros o tio Ilídio, da
casota da sua secretária em ruínas, a mexer em facturas
porquíssimas, sem o olhar, no espaço minúsculo que lhe servia
de escritório, repleto de agendas, de vasos de plantas, de
caixas de binóculos, de teias de aranha, de papelada e de
trôpegos contadores de embutidos.
Era um homem pequenino, asmático, quase completamente
calvo, cujas feições se concentravam numa cósmica ferocidade
sem objecto, alimentada pelo fole vacilante dos pulmões:
calava-se de minuto a minuto, mirava o cabide podre onde a
gabardina sebenta oscilava, e viam-se as costelas incharem e
desincharem sob a camisa, aflitas como as papadas das rãs.
— Ainda mal desembarcaste, sibilou o velho, e entras-me
logo por aqui dentro a pedinchar emprego.
Contemplou raivosamente os nós dos dedos e latiu-lhe com
fúria: — Ao menos deu-te o bom senso de almoçar?
— Era sempre assim, elucidou-me o soldado, danava-se
consigo próprio por gostar das pessoas.
A mão agitou-se-lhe junto ao copo, varrendo espectros:
— Teve a trombose em novembro, paralisou do lado
esquerdo, sou eu praticamente quem trata de tudo. Qualquer
dia a gente também pffffft e parece mentira, meu capitão, não
é?
— Apresentei-me no banco uns dias depois, disse o alferes.
Sentei-me no gabinete, fechei a porta e pensei Não houve
guerra nenhuma, não andei vinte e tal meses em Moçambique
de espingarda às costas, inventei coisas parvas esta noite: a
disenteria, a água choca, os mortos, os feridos, o oficial de
sapadores que ficou sem o braço ao desarmar uma mina.
Pensei Não houve guerra não houve guerra não houve guerra
não houve guerra, e comecei devagarinho a esquecer-me.
Quando me trouxeram o café, às onze da manhã, nunca saíra
de Lisboa e África era os nomes dos rios que se decoravam na
escola e a gente esquecia logo a seguir, para os substituir por
serras, gramática e o ramal da Beira Baixa. Olhava as pessoas,
meu capitão, as secretárias, os colegas, os empregados, os
contínuos, despachava requerimentos, folheava propostas,
assinava relatórios, e pensava É claro que ontem estive cá, que
merda bebi eu para ter chupado tantos sonhos esta noite?
O tio saiu do armazém a empurrá-lo, soprando-lhe nas
costas o iracundo hálito penoso de peixe, e foi-o enxotando
calçada fora (carroças de hortaliça, cestos de flores, janelas de
rés-do-chão com comadres, de órbitas como berlindes, no
peitoril), até uma tabuleta de esquina a balouçar,
desengonçada, da sua haste de ferro: dois degraus, penumbras
húmidas cheirando a cozido, mesas com toalhas de papel, um
rádio aos gritos, e ao fundo, por detrás do balcão, um tipo de
pescoço vigilante a puxar para baixo e para cima as alavancas
cromadas da máquina de café. O tio levantou o braço e um
segundo sujeito pousou na toalha garfos e facas torcidos como
se uma mula os espezinhasse momentos antes, pratos de
rebordo rachado, um jarro de vinho, dois copos, pão, um
paliteiro triangular de plástico: pela prontidão do empregado o
soldado adivinhou que o velho e ele se conheciam.
— Eu não como, resfolegou o tio. É um bife de burro com
lepra aqui para o rapaz.
Distinguiam-se mal os clientes nas trevas da taberna (Para
não repararem na porcaria que engolem, soprou o senhor Ilídio
numa gargalhadinha feroz), vultos dobrados, raspar de
talheres, a claridade vaga, dispersa por sucessivos reflexos de
azulejo, do fogão. O velho girava um fósforo de um vértice da
boca para o outro à medida que ele mastigava à pressa a carne,
as batatas, o ovo, o navio gordo da carcaça, mas o almoço
descia, quase intacto, o algeroz do esófago.
— A conta ordenou o tio observando as sombras em torno
num desgostoso sarcasmo. Cá fora, na rua, o março chuvoso
da véspera escorria pelas fachadas decrépitas como a pintura
de uma mulher idosa que chorasse.
— Voltámos ao escritório minúsculo, explicou o soldado,
ele numa cadeira rebentada que rangia e eu de pé diante da
secretária, o mais imóvel possível, meu capitão, para não
derrubar uma resma qualquer daquela papelada, daquele lixo
todo.
(O tio cessou por completo de reparar no tropa, a alinhar
riscos pensativos nas costas de uma factura imunda, e de
repente espreitou-o com as pupilas rombas e afirmou, num
cicio peremptório
— De que estás à espera, cretino, começaste agora mesmo a
trabalhar.)
— A mim o que me custou mais foi a casa, disse o alferes.
Chegava do banco e aí sim, meu capitão, sentia-me estranho.
Não no trabalho, nem no restaurante, nem na cidade, dentro do
carro, talvez porque metia a música do rádio ao máximo e os
anúncios e a voz do locutor me distraíam, e depois, sabe como
é, quando um gajo guia só não quer bater no da frente nem que
o de trás lhe bata, e há as pessoas nos passeios, essas caras
todas, diferentes umas das outras, sempre a correr e a mudar,
mas a seguir arrumava o automóvel, subia as escadas, enfiava
a chave na porta e lá estava, a lixar-me, a impressão esquisita
do costume: olhava as mesas, as estantes, os cinzeiros, e
perguntava a mim próprio Onde caralho param as árvores,
porque não via as árvores, entende, o arame farpado, os
abrigos, a mata, pousava a pasta, caía no sofá com o jornal, a
minha mulher aparecia a sorrir e eu inclinava-me para diante
na esperança de que surgisse, da sombra dela, um perfil
familiar de camuflado.
— Nessa noite mandou-me jantar com ele, contou o
soldado. Não me convidou, ordenou-me, meu capitão: morava
numa cave ao pé do Campo Santana, numa travessa angulosa
habitada de barbeiros e de gatos.
Uma mulher sem idade, com o pescoço coberto por
manchas de vitiligo, abriu-lhe a porta a chinelar, pousou nele
um olho intacto e outro azul e vazado que parecia mais
penetrante do que o bom, e disse
— Nota-se à légua que é o sobrinho do Ilídio, entre.
Paredes repletas de nódoas de humidade, de buracos de
pregos, de caganitas de insectos, móveis díspares, uma revista
aberta numa cadeira de baloiço, azulejos do Benfica, o retrato
da minha mãe no aparador, no meio dos cálices facetados,
baratos, cor de laranja, com aquele aspecto tímido,
envergonhado, que eu conheci tão mal.
— Não ligue à desarrumação, desculpou-se a mulher, fui ao
médico da Caixa hoje e aguentei quatro horas à espera da
consulta.
A fotografia da mãe perseguia-o, tenaz, sem descanso, pelo
compartimento fora, como os Jesus de coração à mostra e boca
de cocote dos calendários das sacristias, uma janela bateu com
violência ao fundo e o tio, em camisola interior, insultou-o Olá
rapaz. Mantinha a expressão furibunda do costume mas uma
espécie de careta apertava-lhe de leve as pálpebras minúsculas.
Boa noite senhor, respondeu ele pensando Não consigo à-
vontade, conho, para tratá-lo de outra forma. Acabaram por
instalar-se à mesa de nojenta toalha de oleado aos
quadradinhos pretos e amarelos, a mulher remexia nos tachos,
o tio, embaraçado, coçava em silêncio a nuca com a unha
gigantesca do mínimo: é espantoso como o velho se assemelha
a um sapo, notou o soldado, o mesmo tronco esférico, os
mesmos membros estreitos, a mesma boca grande. Ia começar
a sopa de hortaliça e nisto uma rapariga de canadiana entrou
na sala Olá mãe olá padrinho, e eu de colher no ar, com cara
de parvo, a saltar o pingue-pongue dos olhos entre a moça e o
velho: Afinal sempre te casaste com uma viúva como me
segredaram, sempre te enforcaste com uma tipa de mais dez
anos do que tu e por isso a avó protestava e guinchava se te
mencionavam o nome, e a bola de celulóide pulou do tio para
a rapariga que lhe estendeu um feixe de rápidos dedos suados
Muito prazer, sentou-se à mesa, afastou migalhas e pedaços de
côdea com as costas da mão, inclinou-se e principiou a engolir
o caldo, uma magrita, meu capitão, com um nariz um bocado
abatatado e uma cicatriz na bochecha, de gestos vivos e
súbitos como os dos pardais.
— Montaste-a?, perguntei eu à procura do lenço na
algibeira.
Uma santola passou a voar diante de nós, na extremidade de
um braço, para aterrar no canto onde os oficiais do comando
cochichavam por cima da barriquinha amarela da mostarda.
— Isso foi só muito depois, disse o soldado, levou meses e
meses sem me ligar nenhuma. (E a boca dele sorria, fixa e
dura, de pasta, como a dos manequins das lojas.)
— A guerra pôs-te assim calado como uma corvina?,
questionou o tio, possesso. Sabes falar?
Acabou a sopa, assoou-se ao guardanapo e aparou um arroto
monumental com a palma da mão: sentia a barriga inchada de
gases como as escadas e os corredores do metropolitano na
hora de ponta, pessoas e pessoas de vento a trotarem nos
degraus das tripas, chiar de carruagens, guinadas insólitas,
sopros de espuma: Estou nervoso de ter voltado ou de me
encontrar aqui, com os velhos e ela, nesta acanhada casa
malcheirosa que não conheço, a cuspir espinha após espinha
para o garfo? Nunca me calharam tantas numa só posta, meu
capitão, como nesse jantar de má morte: o tio ruminava de
queixo no prato, com a asma a assobiar, difícil, na garganta.
Apetecia-me mais azeite mas envergonhava-me de pedir, as
batatas enrolavam-se na língua, os grelos, impossíveis de
esfiar, entupiam-no. O alferes, de cigarro nos dedos, tossiu de
leve à minha frente:
— Com a merda que nos davam a comer na mata, meu
capitão, esquecera-me por completo dos miminhos
domésticos, do pirex a fumegar como a boca morta do
Vesúvio, das etiquetas que desaprendi na tropa, dos ridículos
truquezinhos sociais que me impingiram.
Iniciou o suflé perante a expressão contente, risonha,
ansiosa, da Inês, e não lhe sabia a nada. Nada: só uma massa
mole que comungava com indiferença de avestruz, numa
melancólica sofreguidão urgente: ver depressa o fundo do
prato, ver o mais depressa possível o fundo ao prato, e talvez
que surjam, pintados na loiça ou no plástico ou no vidro, os
joviais bonecos das papas da infância: Ratos Mickeys bem
dispostos, Patos Donalds dançando, uma menina a saltar à
corda diante de um jardim de brinquedo, pálida recompensa de
almoços torturados e de penosos jantares, encafuados na boca
(Abra) pela colher de pedreiro da criada. No pátio da cozinha,
durante o verão, as plantas subiam dos vasos para o céu
amparadas a uma teia geométrica de arames. O alferes, de
copo de vinho em punho, sorriu para a mulher:
— Ficou óptimo. (Tantas coisas de verga espalhadas na sala,
pensou ele, cadeirinhas, bancos, molduras, prateleiras, e uma
súbita suspeita moeu-lhe os intestinos: onde arranjaste
dinheiro para isto, cabrona?) A enteada do tio, que descascava
um pêro por cima das ruínas amontoadas do peixe, parecia
troçar do seu embaraço receoso:
— E como era isso lá em África?, perguntou a velha a
levantar os pratos e a transportá-los, em pilha, para a cozinha.
Movia-se com dificuldade, arrastando um dos chinelos tal e
qual como a cadela gorda do quartel, quando quebrou uma
pata e oscilava, a custo, em impulsos oblíquos de navio. A
moça ergueu o queixo para o ouvir melhor, A sério que ficou
óptimo, repetiu o alferes para o rosto preocupado da mulher no
exacto instante em que a filha, no quarto ao lado, começou a
chorar, o tio, de mãos espalmadas na toalha, exigia,
impaciente, o café, o autoclismo dos vizinhos descarregou-se
num vómito trémulo de ferrugem: o soldado passeou em torno
as pupilas humildes, deteve-se no globo ocular da lâmpada
poeirenta do candeeiro, dependurado do tecto por um fio
entrançado, sem pálpebra de quebra-luz a protegê-lo. Dos
restantes andares chegavam, através das paredes, distantes
vozes abafadas, o helicóptero levou o corpo irreconhecível
para Mueda, envolto num cobertor em tiras como um fardo
sem préstimo. A rapariga, de faca imóvel, continuava à espera.
O soldado puxou de dentro da garganta, como uma espécie de
soluço, a voz mais neutra que pôde:
— Mais ou menos como aqui, minha senhora, disse ele.
2

O tenente-coronel espreitou pela janela de segundo andar do


gabinete do comando (secretária de torcidos, bandeiras,
estantes, o eterno aspecto de desocupação morna, pesada,
morosa, dos quartéis): um faxina, lá em baixo, aparava a relva
dos canteiros, cozinheiros depenavam frangos, o radar do
aeroporto espiralava na distância como um girassol de arame:
— Já se foram todos embora, disse sem mover a boca,
observando a porta de armas deserta. Havia mais um tenente-
coronel e três majores no compartimento, todos de cálice de
vinho do Porto nas unhas. Um dos majores tornou a servir-se
da garrafa pousada numa bandeja de metal, e ergueu
criticamente o copo à altura dos olhos. Possuía ancas de
mulher, bochechas pendentes, e uma fitinha de condecorações
no blusão:
— Petróleo da Arábia, aprovou ele. Há quase trinta meses
que não bebíamos disto.
O segundo tenente-coronel ofereceu em torno cigarrilhas
espanholas de uma caixa de madeira, mas o que chegara da
guerra nem reparou no tabaco: permanecia à janela, afastando
com a mão o véu de noiva da cortina, de costas para aquela
espécie de aniversário triste, celebrado por cinco homens
fúnebres e gastos. As paredes do gabinete, pintadas de fresco,
transpiravam um clima enjoativo que parecia nascer do corpo
mole do almirante encaixilhado sobre os estandartes, a
examiná-los com os olhos de bácoro sem luz. Alguns prédios
altos distinguiam-se ao longe: o nevoeiro dissipava-se em
lentos trapos sujos que desmaiavam e se reagrupavam numa
preguiça fatigada. Os majores acendiam as cigarrilhas uns dos
outros, gracejando sem entusiasmo, e um cheiro ácido e gordo
dilatou-se na sala: África, pensou o tenente-coronel, a terra de
Moçambique depois da chuva, os grilos a libertarem as asas
para o canto da noite, o oficial de transmissões em sentido à
porta, muito sério, de papelucho na mão:
— Dá licença?
— A tua mulher?, perguntou o comandante do quartel, que
de tempos a tempos puxava as calças para cima num tique de
palhaço. Fora o melhor aluno do curso e um esgrimista
razoável, mas agora ali, diante dele, afigurou-se-lhe um
velhote acanhado e pateta, desejoso de agradar como se
mendigasse um emprego.
— Não tive tempo de ir ao hospital, respondeu
desabridamente para se arrepender logo da aspereza do tom e
encolher os ombros: emagreceu um bocado com as radiações
mas sabes como são as cartas da família: alarmavam-nos
menos se contassem a verdade. (E pensou Já nem me lembro
se eras bonita quando te conheci, hei-de abrir a gaveta das
fotografias e pasmar-me com o lixo do passado.)
— Aposto que ninguém sabe da tua volta, sorriu-lhe
afectuosamente o comandante a subir as calças com um
esticão mais forte. Tens o meu carro em baixo, à tua espera.
O oficial de transmissões deu um passo em frente e
estendeu a mensagem:
— Seguimos dia vinte e seis para Lisboa.
O amigo apagou a cigarrilha em meio no cinzeiro de vidro:
percebiam-se os acessos da auto-estrada, mais árvores,
amontoados de casas, como se a cidade ascendesse do interior
de si própria num desses palcos móveis de casino: Gerente,
todas as putas de Lourenço Marques para a minha mesa.
— Não és só tu que fodes os cornos nisto, gemeu o
esgrimista. Repara em mim: quem me dá quarenta e cinco
anos, merda? E agora em agosto, imagina-me, Guiné.
Ficou a olhar para as letras, incrédulo, à procura de fósforos
no bolso da camisa: a chama iluminou-lhe pedaços da cara
comprida, dois vincos profundos, verticais, na raiz dos
malares, a cicatriz castanha da mandíbula, um mapa com
tachas coloridas por detrás. O oficial de transmissões limpava
os óculos com o lenço. Os postos da guarda aparentavam-se a
pequenos morros cúbicos no silêncio, voltados para a ameaça
escura da mata. O tenente-coronel afagou o cabelo ralo,
levantou a cabeça, e o outro encontrou-lhe as pupilas claras,
encovadas, inexpressivas:
— Entregue ao major Albuquerque, ele que trate de tudo.
Pode sair.
Desceu as escadas do quartel sem responder às continências,
e instalou-se, ao lado da mala e do saco, no banco traseiro do
Volkswagen preto do comandante, que um cabo afadistado, de
bigodinho loiro, conduzia:
— Para o Instituto do Cancro, ordenou numa voz baça e
rápida em que as palavras se devoravam umas às outras como
cães irados.
Os pneus despegaram-se do cascalho, o carro deslizou na
direcção da porta de armas a arrastar um guarda-lamas num
entrechocar penoso de latas, e sumiu-se no trânsito da
Encarnação, à sombra de uma enorme camioneta de seis rodas.
— Lisboa engoliu-nos a todos, meu capitão, cada um para
seu lado como uma ninhada se desfaz, disse o alferes. E agora
aqui juntos, depois de dez anos, não somos os mesmos:
aconteceu tanta coisa neste tempo.
O oficial de transmissões pousou os cotovelos na toalha e
avançou para mim, esquecido do peixe, o brilho brando dos
óculos:
— Quando chegámos, em setenta e dois, eu pertencia à
Organização há cinco anos. Não quiseram que eu me pirasse a
salto, ou que entrasse na clandestinidade, ou me tornasse
funcionário: era importante para nós, meu capitão, termos
gente no Exército, entendermos por dentro o que acontecia,
actuar no interior da máquina: sabíamos que a única
possibilidade de mudança viria forçosamente daí.
A caminho de Sete Rios o tenente-coronel não desviou uma
só vez os olhos da nuca do chofer, do cabelo rapado curto, das
sardas ou espinhas ou borbulhas junto ao colarinho. O
Volkswagen cheirava às cigarrilhas e ao after-shave do
comandante, no cinzeiro de metal engastado na porta
acumulavam-se e retorciam-se, como vermes, cachos de
beatas: Porque raio nos escrevem para África, pensou ele, com
as cautelas que se usam com os convalescentes e as crianças,
porque nos mentem através dos infinitos, concêntricos rodeios
das meias palavras imbecis: Estou bastante animada com o
cobalto, amor, não sinto dores nenhumas, não perdi mais peso,
o médico é simpatiquíssimo, conhece-te, foi da tua turma no
liceu.
— E veio-me logo à ideia, disse-me o tenente-coronel, um
grão de bico enfezado, péssimo na ginástica, sempre à roda do
padreca do professor de moral, cheio de piedades, de
peditórios, de missas, a vingar-se das tareias que a gente lhe
pregou em miúdo abrindo a barriga das pessoas.
Havia muitos doentes na entrada da consulta, silenciosos e
ovinos, à espera que uma porta se abrisse e lhes chamassem o
nome, os observassem, os apalpassem, os medicassem, os
aconselhassem, os mandassem embora de receita na mão:
Volte para o mês que vem, ou no outro, ou no outro, ou no
outro, tenha paciência, pode ser que haja vaga nessa altura.
Sujeitos em bancos compridos, papéis, pontas de cigarros e
cascas de tangerina pelo chão, a cinza de uma claridade
granulosa a turvar as caras de viés, e uma mulher de bata a
varrer o lixo, por entre mil pernas, para um recipiente de
madeira. A chupeta de um bebé de colo caiu nos azulejos
imundos e a mãe tornou a enfiar-lha, expeditiva, na boca que
se escancarava para um berreiro tremendo. O homem
amarelento ao seu lado, tão magro que se diria de arame, lia o
jornal vincando cuidadosamente as páginas com a unha do
polegar: a derradeira paragem, o último apeadeiro, o fim da
linha: os tipos das agências funerárias devem ancorar aqui
diariamente a deitar contas ao negócio, a fazer balanços, a
calcular o número de caixões.
— Claro que estive fora, esclareceu-me o oficial de
transmissões a erguer delicadamente a pele do peixe com a
ponta da faca, mas por razões óbvias não passei de Paris. O
meu capitão não calcula a quantidade de informadores que a
polícia política semeava no estrangeiro.
Perguntou a um servente de meia-idade, que transportava a
coxear um fardo de roupa, pela enfermaria da mulher, e
seguindo conscientemente o complicado conselho que lhe
deram subiu escadas, tropeçou em degraus, perdeu-se por
corredores riscados de frases a lápis, e acabou por encalhar
num laboratório exíguo, onde um careca de avental
examinava, de mãos nos bolsos, uma fieira de tubos de ensaio
numa armação de pau.
— Dez anos é muito tempo, caramba, disse o alferes a
abanar vagarosamente a cabeça. Repare só no que eu mudei.
— Três filhos, meu capitão, segredou-me o soldado. Vejo-
me à rasquinha a partir do meio do mês.
Tentou refazer o trajecto de uma forma inversa mas sentia-
se perdido num labirinto de paredes, de esquinas, de degraus,
de portas que se não abriam, de botões de elevador em que não
se atrevia a carregar. De tempos a tempos cruzava-se com uma
maca pilotada por duas empregadas (uma das quais segurava
invariavelmente, como um pendão, um frasco de soro no braço
erguido), com um tipo de olhos fechados e boca de algeroz lá
dentro, semelhante a um pardal defunto. Tectos lascados,
fragmentos de cartazes colados com adesivo cor-de-rosa, a
mancha circular, de clara de ovo, de um escarro gigantesco:
por instantes imaginou desvãos cheios de cadáveres que se
transviaram, como ele, naquele dédalo de raras janelas
fechadas sobre a uniforme melancolia da tarde, cheirando a
éter, a desinfectante e a mijo de retrete. As humildes e caladas
criaturas da entrada deram lugar ao eco dos próprios sapatos e
ao som da sua bronquite aflita (Como quando ouvia no rádio
os apelos das companhias atacadas, pensou, debruçado por
cima do cabo para escutar, entre silvos, os berros em pânico
que suplicavam), até que empurrou por acaso um guarda-vento
e se achou de súbito no meio de uma sala inundada de camas e
de mesas de cabeceira pintadas de branco, ao centro da qual
um grupo de médicos conferenciava com solenidade.
— A minha mulher morreu em setenta e dois, na véspera do
dia em que regressámos de Moçambique, disse o tenente-
coronel a partir meticulosamente um palito em pedacinhos
iguais que ia alinhando, paralelos, na toalha. Tossiu e as
têmporas estreitaram-se como as de um cão exausto:
— Quase nem ao enterro tive tempo de assistir.
E eu pensei, olhando em volta as calvas, os cabelos
grisalhos, os rostos usados que sorriam e mastigavam e
falavam: Envelhecemos para nada ou ainda é possível, ainda
será possível qualquer coisa? Porque isso para mim era o pior
de tudo, a eventualidade de nos termos tramado em vão, de
nos termos gasto sem motivo.
— Até a porteira do prédio onde morei, em Barcelona,
exemplificou o oficial de transmissões, ia periodicamente ao
gajo da Pide, na Embaixada, contar o que os portugueses da
casa faziam. Claro que tínhamos os nossos contactos longe
dali, nos cafés, nos jardins, nas igrejas, no metropolitano mas
quase com as mesmas cautelas, as mesmas precauções do que
em Lisboa.
— Dez anos, meu capitão, repetia incrédulo o alferes. Dez
anos sem ninguém dar por isso.
O tenente-coronel tentou um passinho tímido na enfermaria
(talvez o colega enfezado, agora importantíssimo, pairasse por
ali), viu uma criatura aracnídea extrair a arrastadeira de
debaixo das nádegas e pousá-la no soalho, observou por um
segundo as coxas magríssimas, peludas, que se moviam, o par
de órbitas gigantescas que o mirava sem curiosidade nem
vergonha, flutuando apenas, como cisnes vagos, á superfície
de uma indiferença absoluta, viu troncos estendidos,
desprovidos de substância e de peso, idênticos aos negros das
lavras clandestinas que os helicópteros sul-africanos
transportavam da mata, puxou da pistola junto ao posto de
comando, o tipo olhava-o de membros bambos sem alarme
nem ódio e eu não era capaz de disparar, vê-lo dobrar-se, sem
um protesto, amontoar-se no chão. Um dos médicos,
enforcado no colar do estetoscópio, observou-o
interrogadoramente: Será este o pateta do liceu, pensou ele,
mas sentia-se na realidade amedrontado e tonto, sem palavras,
de modo que principiou a recuar até a mão tocar o frio
metálico de um puxador. Os clínicos, de repente enormes,
contemplavam-no com o que se lhe afigurou uma reprovação
imensa: A sério que o não matei, gritou calado o tenente-
coronel, não apertei o gatilho, não ergui sequer o cano da arma
à altura dos trapos do peito. Abriu a porta, aterrado, e de novo
os corredores pouco limpos, os cartazes rasgados, as
obscenidades de sanita escritas a lápis na parede, o labirinto de
desinfectante e éter do costume, serventes com baldes, ou
fardos, ou caixas de pensos, ou tripulando carrinhos
niquelados repletos de pratos de folha com comida. O céu
tornara-se azul do outro lado das janelas, por cima dos dentes
cor de tijolo dos telhados, das varandinhas com vasos e plantas
e da sementeira de antenas da televisão, cujos frutos eram
trémulas gotas de chuva dependuradas do arame dos ramos.
Um elevador acanhado, enxameado de enfermeiras jovens que
conversavam e se riam, vomitou-o no átrio onde reencontrou
as tristes pessoas cinzentas que aguardavam a consulta em
silêncio. Perguntou a um velhote malcheiroso de chapéu
tirolês e depois a um homenzito de barbicha fúnebre Onde fica
a secretaria faz favor? Os outros dispensavam-lhe opiniões
apressadas e prolixas, e o tenente-coronel caminhou ao acaso,
entre bancos de pau e escarradores, até encontrar uma fila de
guichets, idênticos a buracos de casotas de cães, demasiado
baixos para a sua altura. Dobrou-se e deu com um rosto opaco,
pintado, de mulher: O que deseja? Os restantes empregados
escreviam enfastiadamente, rosnavam ao telefone,
consultavam ficheiros. A mulher ouvia-o a mordiscar o lápis:
possuía um dente partido mesmo à frente, mas as bochechas,
cobertas de creme, pareciam redondas e macias, e um perfume
suave evaporava-se-lhe dos cabelos: Aqui é a contabilidade, se
necessita de uma informação dirija-se aos guichets do fundo, e
um braço chocalhante de pulseiras surgiu solícito lá de dentro
e apontou as unhas compridíssimas para a esquerda: uma bicha
resignada, som mate de carimbos, o tenente-coronel,
obediente, esperou a sua vez, atrás de uma freira idosa, numa
penumbra de fim de corredor, enquanto alguém nas suas costas
arfava o tempo inteiro, tornou a inclinar-se Queria saber onde.
Agora era um tipo de hálito diabético que o atendia a folhear
papéis, agitado, nervosíssimo, molhando constantemente as
falanges num círculo de esponja, o qual puxou um espesso
registo de uma prateleira, desceu páginas com o indicador,
berrou um insulto a um colega invisível, vasculhou cadernos,
mais registos, documentos soltos, acabou por demorar-se, a
acender o cigarro com o isqueiro renitente, à medida que
decifrava, a mexer os beiços, um dossier de capa de cartão
azul, Lamento informá-lo, meu caro amigo, mas a sua esposa
faleceu e o corpo abandonou já o Instituto, a família removeu-
o logo após a autópsia conforme anotação aqui anexa. Pensou
Deve ser engano de certeza, nunca nenhuma secretaria
funcionou bem em Portugal, trocam os nomes, trocam as
datas, trocam as vidas, trocam os filhos nas maternidades,
quanto mais. Qual é o serviço?, perguntou ele. Não há serviço
nenhum, respondeu preguiçosamente o diabético, entrou hoje
uma doente para o lugar da finada. A minha mulher estava a
melhorar, recebi carta dela há poucos dias, berrou o tenente-
coronel a segurar o guichet com tanta força que os dedos se
lhe tornaram brancos: a bicha serpenteou, intrigada, nas trevas,
o hálito virou a cabeça e disse O senhor Mendes importa-se de
dar um salto ao meu balcão. O senhor Mendes detinha um
fácies lunar e os modos urbanos dos chefes de repartição
tirânicos. O diabético apagou-se com deferência para lhe dar
lugar, e o senhor Mendes avaliou os galões do tenente-coronel
e proferiu, em pompa cúmplice de comandante para
comandante, Qualquer reclamaçãozinha quanto aos meus
serviços? Ergui o revólver à altura do ombro, disparei, e o
negro tombou sentado de mãos no ventre, a fitar-me sem
animosidade nem surpresa: um nastro de sangue escorria-lhe,
lento, para as calças, as solas dos pés constituíam uma
geografia inextrincável de rugas e de fendas e de gretas.
Permaneceu muito tempo com a pistola contra a anca,
simultaneamente fascinado e apavorado, o negro cuspiu a
custo uma espécie de vómito, a mão agarrou frouxamente, ao
acaso, cabelos de erva, O que é que eu fiz? O senhor Mendes
sorria expectante a compor o nó de pintas da gravata, o
tenente-coronel franziu o nariz, fungou, inclinou-se mais:
Cheguei hoje de Moçambique e pretendia só que me
explicassem qual é a enfermaria da minha mulher. O senhor
Mendes lançou de imediato um soslaio indignado ao diabético,
que se apressou a exibir atabalhoadamente os seus papéis
confusos. Novo soslaio feroz: Homem mostre-me isso em
termos. Usava um anel de pedra preta a seguir à aliança, em
bebé pregavam-lhe ao peito um alfinete de ouro pedindo Não
Me Peguem Ao Colo, acordou na cama mijada até aos
dezasseis anos de idade. O menino lunar estudou os
documentos com cuidadosa ponderação, escrevendo frases
sábias a esferográfica nas margens. As pessoas nas costas do
tenente-coronel protestavam
(— Como se um animal informe, elucidou-me ele, uma
espécie de sáurio me segredasse ao pescoço)
o senhor Mendes mirou-o muito sério, torceu a boca solene,
abriu-a para iniciar um discurso, fechou-a, abriu-a, fechou-a,
ordenou por fim ao diabético Abra a porta ao senhor oficial
para se conversar à vontade. Porém nessa altura eu já tinha
entendido e comecei a caminhar para a saída sem os olhar
sequer, percebi que me chamavam ao longe Faz o obséquio faz
o obséquio faz o obséquio em crocitos de pássaro no equinócio
das praias, alcancei o jardim por intermédio António Lobo
Antunes de umas escaditas apertadas no extremo do edifício,
onde um camponês de fato-macaco regava amorosamente os
canteiros, e eu vazio (contava-me ele, de cotovelos na toalha, a
acender um cigarro, esquecido do jantar), sem angústia, sem
desgosto, sem aflição, sem nada, eu completamente oco a
trotar frente às paredes usadas na direcção do Volkswagen
preto do quartel, eu a evitar tropeçar na mangueira, eu a galgar
as plantas desmaiadas e as cercaduras geométricas da relva, eu
a cruzar-me com os doentes e as visitas e as enfermeiras e os
médicos e o raio que os parta que entravam e saíam, eu a
contornar os lombos mornos dos automóveis estacionados, eu
a abrir a porta e a sentar-me no banco de trás, vi as pupilas
interrogativas, instantaneamente despertas, do condutor que
dormitava ao volante no rectângulo do espelho, Segue para os
Anjos e endireita a boina, ordenou, és um militar ou és um
chulo?, mastigou o trajecto inteiro o filtro de um cigarro que
não acendeu, fitava, como um mocho empalhado ou um
boneco de cera, as casas, as ruas, as travessas, os becos, as
pracetas, vazio (descrevia-me ele), sempre vazio, indicou o
prédio ao loiro, recusou que o ajudassem a transportar a mala e
o saco para dentro, subiu ao terceiro andar sem uma única
mirada ao espelho, turvo de riscos, do elevador, o corpo do
negro acabou por relaxar-se, os queixos desajustaram-se numa
careta estranha, a mão, de palma voltada para cima, apontava
as copas ralas das árvores, Matei-o, Matei-a, o odor da pólvora
picava-lhe o nariz, Matei-a com a minha quase ausência de
notícias, o meu desinteresse, a minha frieza, ninguém o
esperava no vestíbulo e a excessiva ordem dos objectos
alarmou-o, puxou a fita da persiana da sala e deu com o
próprio retrato, fardado, numa mesinha baixa, cinzeiros sem
beatas, a televisão, livros, Quem andou por aqui a limpar
tudo?, foi até ao quarto onde a cama, coberta de uma colcha de
crochet, ocupava quase por completo a alcatifa, acendeu o
candeeiro da mesa de cabeceira do seu lado e as paredes
reverberaram de círculos concêntricos de luz, Tenho medo de
rodar o fecho do armário e encontrar a tua roupa, os teus
sapatos, os cintos dependurados de uma faixa de pano, despiu-
se devagar deixando cair o blusão, as calças, a camisa, no
soalho à sua volta, Enterrem-no fora do arame, ordenou ao
primeiro sargento que acorreu, e à medida que se
desembaraçava das meias o negro recomeçava a tombar diante
dele numa lentidão sem fim, enrolado sobre si mesmo como
uma serpentina de alambique, o estrondo do disparo ecoava-
lhe a cada instante nos ouvidos, accionou a alavanca do
chuveiro e o jorro de vidro da água deformava a imagem da
maca que se afastava, rápida, na direcção das trincheiras,
precedida pelo pequenino vulto obsequioso do sargento,
Cavem o buraco depressa, enfiem-no lá dentro, acabem com
isto por amor de Deus, saiu do banho a pingar à procura, às
cegas, da toalha, Porque camandro não te mandei ir ter
comigo, não te arranjei um sítio sossegado na vilória mais
próxima para te visitar nos períodos de licença, podíamos estar
juntos, conversar, fazer amor, sentir a tua língua lamber-me os
cabelos do peito no remoinho do orgasmo, o torso estendido
como um arco a fim de receber, inteiro, as chicotadas do meu
sangue, comer os teus jantares eternamente insossos, aboborar-
me contigo na varanda, de calções, a respirar a noite, o bafo de
África carregado de insectos misteriosos, chispas de claridades
estranhas, sombras descomunais, estrelas sem nome e vozes
rugosas e alegres, alcançou a tiritar uma toalha do monte da
cómoda do corredor e jogou uma espreitadela à cozinha,
nenhum prato no lava-loiças, nenhuma tigela, nenhuma
frigideira, nenhum garfo, o fogão sem nódoas de molho, o
frigorífico imaculado com uma garrafa de água das pedras,
solitária, na prateleira da porta, O meu genro veio cá de
certeza mamar-me o uísque todo, sobrava um resto de gin no
bar da sala e enfiou a garrafa nos dentes num movimento
automático, irreflectido, e nesse exacto instante o telefone
principiou a tocar, Já devem saber que voltei, andam à minha
procura na cidade, compungidos, graves, sérios, cheios de
pegajosa compreensão e conselhos resignados, Põe-te em
sentido, uivou o tenente-coronel ao guerrilheiro, estas a falar
com um branco, quero conhecer o que a Frelimo planeia
contra nós, lá ao fundo os soldados, empoleirados em caixotes,
beberricavam cervejas no bar improvisado, o negro fitava-o
sem responder, soltou o fecho do coldre com o dedo, Tudo o
que vocês preparam para nos foder os cornos meu filho da
puta, escolheu uma camisa e umas calças e vestiu-se sem
pressa, observando pela janela a tranquilidade pasmada de
Lisboa, as cores suaves da tarde, o remansoso trânsito doente,
Se estivesses comigo não morrias, não te deixavas morrer na
amável desistência teimosíssima dos bichos, Quando é o
próximo ataque meu cabrão?, as órbitas avermelhadas do
negro, desprovidas de sentimentos e receio, dissolviam-se
numa espécie de tintura de iodo, de sangue, Quantos
morteiros, quantas bazookas, quantos canhões sem recuo,
procurou o casaco de malha de andar por casa na gaveta, Um
dia ainda me sirvo desse trapo imundo para limpar a tina,
ameaçava de brincadeira a mulher com o indicador espetado,
bebeu outro gole de gin tentando recordar-se fisicamente dela,
a cara, os gestos, a voz, e vinha-lhe à memória, lentamente,
uma figura difusa, um rosto de água, acenos transparentes,
sons que se desarticulavam, líquidos, a uma distância
formidável, acocorava-se no chão com a garrafa entre as
pernas e o telefone não cessava de o chamar aos gritos,
mantinha-se de pé no mesmo sítio, de pistola em punho,
quando o sargento lhe tocou no cotovelo Acabámos o
trabalhinho meu comandante, Como é que acabaram o
trabalhinho, perguntou-se ele, se o negro tomba de contínuo à
minha frente, se se amachuca constantemente na terra, de
mãos no umbigo, perante a minha aflição angustiada,
Acompanhaste-me a Angola e à Guiné, pensou o tenente-
coronel, mas para Moçambique não, emagreceras, queixavas-
te de dores no peito, entornavas-te por vezes numa cadeira, de
pálpebras suadas, a escorregar para mim um olhar ausente e
fosco, o médico aconselhou análises, radiografias, exames
complicados, despediu-se no cais metida num casaco de
repente enorme, a aliança caía, as pulseiras caíam, os sapatos
dançavam nos pés, o gin acelerava-lhe a pouco e pouco o
coração, Estou velho, não aguento o álcool como antigamente,
deu uma pancada inadvertida no cinzeiro e as beatas
espalharam-se na alcatifa, Os olhos do preto, percebe, não me
acusavam, não me condenavam (disse-me ele a quebrar novo
palito na toalha), era eu que me acusava e condenava, me
destruía sem remédio, acenou que sim ao sargento e empurrou
a porta do gabinete forrado de esquemas e de mapas, com uma
janelinha para a sanzala abandonada, palhotas derruídas,
troncos, o abandono devorado pelas ervas, a correspondência
prolixamente optimista de Lisboa confundia-o, se os exames
são normais porque não são mais claros no que escrevem,
porque não me justificam o motivo da operação, das
radiografias, dos remédios, apoiou-se com excessiva força a
uma mesa circular de três pés, cheia de bibelots e de caixinhas,
e aquela preciosa cangalhada escorregou ao longo do naperon
e despenhou-se-lhe em cima, a tampa de um coração de
porcelana quebrou-se em mil pedaços, o telefone, inalterável,
prosseguia os seus esguichos agudos e monótonos: Se eu
estivesse aqui não morrias, pegava-te no pulso e não te
deixava morrer, explicava-te que preciso de ti, que a casa
aumenta desmesuradamente, que não consigo respirar sozinho,
trago uma coisa nas costelas, um torno, uma chave que aperta,
um desconforto, uma agonia, um mal estar sem nome, amanhã
mudo-me para o quartel sem desfazer as malas, Quantos
canhões meu sacana, quantos morteiros, quantos homens,
calçava botas de borracha ordinária e as pernas subiam, finas,
cor de chocolate, até aos calções de caqui, tentou colocar-se
em pé, transportando a garrafa, e cambulhou de borco sobre os
membros bambos, encontrou num espelho inesperado a sua
boca aberta, o cabelo em desordem, as órbitas sem rumo,
sentou-se no gabinete e retirou o uísque da gaveta enquanto o
indicador premia interminavelmente o gatilho, Apanhámos
este macaco, meu tenente-coronel, de guarda a uma aldeia de
apoio, nem nos viu, o primeiro e o último que caçámos, assim
à luva, como os coelhos, imaginou a mulher no hospital do
cancro idêntica às doentes que vira algumas horas antes, a
mesma exaustão, a mesma palidez, a mesma desistência, que
caralho, da morte, o gin faz-me azia, enjoa-me, dá-me ganas
de mandar as tripas pela goela, o telefone continuava a
estremecer o seu apelo soluçado, chocou com uma poltrona,
com outra, com o pesado armário dos livros, com a porta
(— Apesar do que o meu capitão supõe, disse o oficial de
transmissões, depois da Revolução a luta tornou-se, em certo
sentido, muito mais difícil)
ganhou o corredor na direcção do quarto mas as paredes
ondeavam, o tecto ondeava, o chão subia e descia tentando
desequilibrá-lo a cada passo, degraus inesperados obrigavam-
no a bascular, a inclinar-se, a esbracejar como um patinador
que principia, Morrer na véspera da minha chegada é pelo
menos de mau gosto odeio-te, Quantas bazookas, preto de
merda, quantos instrutores russos, quais os trilhos minados e
depressa, Que vou fazer agora um ano inteiro, atrás de uma
secretária, a dar ordens a sargentos bolorentos, e depois de
novo Angola ou Guiné ou Moçambique e vinte e tantos meses
de guerra, armas, caixões, rostos cansados de sobreviverem
todos os dias ao próprio medo, à própria inquietação, ao
próprio pequenino desespero tenaz a evaporar-se, azedo, pelos
mil buraquinhos da pele, e de súbito um estampido enorme a
cegar os ouvidos, os morcegos assustando-se, pendurados das
árvores, semelhantes a leques espanhóis de renda, o negro a
apertar a barriga com os punhos, o fiozito de sangue, as
orelhas aflitas a vibrarem ao ritmo do som, entrou no quarto e
eis o telefone a protestar indignado, insistente, insuportável, na
mesa de cabeceira, junto ao seu retrato, acabou a garrafa de
gin que rolou para o tapete, susteve o vómito com a manga Já
não tenho idade para beber assim, olhou a cama feita Deves ter
ido às compras, daqui a nada voltas para arrumar os sacos de
plástico do supermercado na copa, as latas de conserva, os
legumes, os ovos, o peixe congelado, a carne, entras na sala a
queixar-te dos preços, desapareces por causa do jantar, tornas a
surgir para limpar os cinzeiros, de início e até me habituar
incomodava-me a tua exagerada mania da ordem, tudo
simétrico, tudo brilhante, tudo excessivamente asseado, O que
faço ao sacana deste preto que não acaba de cair, de umbigo
roto, no interior de mim, o que farei a este preto que cairá para
sempre, a cada segundo, de umbigo roto, no interior de mim, é
um de vocês dois que me chama ao telefone, ou tu ou ele,
levanto o auscultador e oiço Olá querido do outro lado, bateu
com as pernas na esquina da cama ao tentar alcançar o
aparelho, agarrou-se desordenadamente às cortinas da janela,
daqui a pouco acendem-se as luzes lá em baixo, endireitou-se
a custo com o estômago a estalar
(— Não, brincadeira à parte diga-me lá se é fácil, meu
capitão, perguntou-me o soldado, um tipo aguentar-se nos
tempos que correm com mulher e três filhos)
a cabeça tonta, os membros misturados, És tu a pedir-me
para te ir buscar à Baixa porque não arranjas táxi, ou então
Fiquei no apartamento da Maria João com o bebé daqui a um
quarto de hora chego a casa, Tenho de te contar do preto,
tenho de te contar a falta que me fazes, seguiu ao longo da
franja do tapete, Amo-te, imagina só a brincadeira de mau
gosto que me pregaram no Instituto do Cancro, imagina só a
parvoeira deles, estendeu a mão para o telefone, ergueu-o à
altura da boca, e quando ia responder desistiu, pousou-o ao seu
lado na almofada, estendeu-se no colchão agoniado de
vómitos, e abraçou-se com toda a força à baquelite como a um
corpo vivo de mulher.
3

— E para o meu capitão, oiça lá, a vida tem sido fácil?,


perguntou-me o soldado.
O oficial de transmissões morava com a madrinha surda e
uma cadela gorda, às manchas brancas e pretas, sem raça, num
andar muito velho, de salas enormes, na rua por trás da Feira
Popular: no verão a janela do quarto abria directamente para
os carrosséis iluminados, de modo que de tempos a tempos um
elefante ou um cavalo de madeira giravam por segundos no
soalho, embrulhados no odor açucarado das farturas, antes de
se sumirem de novo na direcção da tenda da cigana que previa
tromboses, heranças e naufrágios ou das barracas de refrescos
e de sumos, pilotadas por jovens decotadas, de avaliadores
olhos sabidos de prestamista. A madrinha e a cadela, parecidas
uma com a outra, claudicavam da mesma perna, sofriam os
mesmos achaques, partilhavam a dieta de couves e goraz, e
trotavam à sua volta numa alegria de guinchos lamurienta e
ramelosa.
— Não sei, respondeu o soldado, olhando melhor o meu
capitão envelheceu tanto como nós.
— Esmeralda, latiu a madrinha para o quarto dos armários,
rodando António Lobo Antunes com dificuldade a cabeça
sobre os ossos ferrugentos. Esmeralda anda cá ver quem está
aqui.
Um terceiro ser decrépito, a cheirar a goma e a roupa
quente, surgiu com o hissope de um borrifador em punho, e
ficou a adorá-lo num silêncio de paixão pasmada em que se
insinuavam farrapos enternecidos de recordações: baptizados,
um triciclo à chuva num pátio, tintura de iodo, festas de anos.
Centenas de relógios baloiçavam com pompa entre budas de
loiça, pratos da China, retratos de tenentes de Marinha de
gigantescos bigodes marciais. Um aroma podre de mijo
impregnava os tapetes, e as velhas flutuavam como
mergulhadores no interior do cheiro, soltando pela boca as
bolhinhas de pó-de-arroz que respiravam:
— O menino, exclamou a Esmeralda, fascinada, à procura
do lenço da emoção no bolso descosido do avental.
— A minha madrinha morreu em setenta e cinco, disse o
oficial de transmissões, gasta de a Pide ir lá a casa de
madrugada, buscar-me para os interrogatórios, para as
ameaças, para a choça. A Esmeralda cegou depois, num lar de
pobres no Combro: visito-a no Natal e ela não fala, não ouve,
não compreende, não me conhece. Odiavam o Marcelo
Caetano por minha causa, meu capitão, achavam que o sacana
se empenhava pessoalmente em chatear-me.
Foi caminhando pelo comprido corredor fora (a humidade
grelava as paredes junto ao tecto) e encontrou o quarto
exactamente como se lembrava dele, exactamente como o
deixara: a cama, a secretária, o armário, as lombadas dos livros
ao acaso nas estantes, idênticas a incisivos encavalitados em
gengivas sobrepostas: Vou esperar um mês ou mais que me
contactem, pensou ele, e até lá que desculpa impinjo às
velhas?
— No dia seguinte apareceu a minha filha, explicou-me o
tenente-coronel, e acordei enquanto ela limpava o vomitado.
Há anos que não me embebedava, amigo, joguei fora quilos e
quilos de comida.
Dei-lhe um trabalhão do catrino.
Havia um ruído qualquer longíssimo, como o de um homem
a andar ou de duas coisas que se esfregam, e a seguir o som
aproximou-se, cada vez mais perto, ao alcance da mão. Tentou
colhê-lo com os dedos mas o braço, o ombro, o corpo inteiro
não lhe obedeciam: abriu os olhos e distinguiu uma cara de
rapariga no nevoeiro, o rosto de um sujeito mais atrás,
vibrações pastosas de vozes que o crânio pesado, idêntico a
uma pedra de ângulos dolorosos, entendia defeituosamente.
— Pai, chiou a moça como um pato na bruma, sente-se
bem, pai?
Recordou-se do despertar da anestesia quando lhe extraíram
a vesícula, de perceber os outros por intermédio de um filtro
deformado, das palavras do cirurgião que lhe reboavam,
incompreensíveis, nos miolos, do jorro de uma torneira aberta
lhe doer nos tímpanos à laia de uma facada sem fim: Duas
aspirinas, pensou o tenente-coronel, um copo de leite e fico
óptimo, à medida que os objectos em redor se precisavam e
tomava consciência de a nuca se achar triturada em
migalhinhas minúsculas, mantidas umas perto das outras pela
película da pele. A rapariga (Não se parece comigo, não se
pareceu nunca comigo) inclinou-se ameaçadoramente para ele
como um prédio gigantesco que desaba, escacando em torno
grossos blocos apavorantes de saliva:
— Vou-lhe buscar água, pai.
Um mês a roçar o cu nas cadeiras dos cafés, a ler jornais, a
comprar livros semiclandestinos naquela tabacariazita da
Avenida, a cabecear de aborrecimento nas matinés de reprise,
a inventar empregos para tranquilizar as velhas, até um
telefonema inofensivo lhe marcar encontro num banco do
parque: ao pé da quinta árvore, recordou-se, quase sempre ao
pé da quinta árvore a contar de cima. E no decurso desses dias
de desocupação e impaciência os companheiros espiá-lo-iam,
observá-lo-iam, medi-lo-iam à distância numa cautela
prudente, reunir-se-iam para discutir o seu caso em sótãos
fumarentos, em vivendas dos arredores de Lisboa, em
armazéns, em garagens, aguardariam relatórios que não
chegavam, que não chegariam talvez nunca, dos núcleos de
África.
— O menino, gemeu a Esmeralda apatetada de felicidade, a
mover a papada ao ritmo digestivo dos relógios.
Da janela do quarto a feira, assim de dia, aparentava-se a
um esqueleto de vértebras de ferro, de grinaldas de lâmpadas
apagadas e de girafas de pestanas pintadas, à espera que as
bilheteiras abrissem para desatarem a tremer, a rodopiar, a
estalar em cima de um círculo de tábuas desconjuntadas, que
um motor de peidos chochos empurrava. Desfez a mala com a
cadela a roçar-se-lhe nos tornozelos, o alferes apagou a luz e a
cama tornou-se uma baixa-mar escura de lençóis, onde a
respiração deles avançava e recuava como as ondas nas trevas.
Um comprimido fervia no fundo do copo, diminuindo e
remexendo-se contra as paredes de vidro, soltando na direcção
da superfície uma impetuosa nuvem de gás: o tenente-coronel
tentou erguer o queixo do travesseiro mas o cérebro,
independente dos ombros, convertera-se num calhau lunar que
nenhuma força do mundo arrastaria: ancorado para sempre no
colchão assistiria à lenta passagem dos anos na patética
angústia das estátuas.
— Fizemos-te pastéis de bacalhau, informou a madrinha da
porta. E adquiriu um ar de cómica confidencialidade que lhe
repuxava o nariz sob as mechas grisalhas, pouco limpas, do
cabelo:
— Só não posso dizer o doce, é surpresa.
— Chiça penico, murmurou o oficial de transmissões a
servir-se do bolo. Não se passa uma semana que não me
lembre dessa velha.
E com efeito, durante quinze dias, leu jornais, afogou-se em
cinemas, roçou-se madraçamente nos cafés, a olhar para nada,
abstracto e fúnebre, inclinado como um salgueiro para uma
bica vazia, distraído das conversas, dos empregados que
cirandavam pelas mesas, dos jogadores de bilhar ao fundo,
deslocando os marcadores com o taco desdenhoso. À noite,
deitado, folheava desconsoladíssimo números antigos das
Selecções, enquanto os elefantes de madeira entravam e saíam
pela janela aberta, os colares de luzes oscilavam no tecto, e as
motos do Poço da Morte atroavam o bairro de acelerações
catastróficas: A Pide, pensava ele, desmantelara a
Organização? E o Olavo, o Emilio, o Careca, e aquele tipo
atarracado, meio louco, que queria à viva força plantar bombas
de quilo na sede da Federação de Pingue-Pongue, por não
suportar o som das bolas toc toc toc toc toc toc toc no chão de
cimento? Ter-se-ia ramificado na sua ausência em novos
grupos, novas células, novos comandos de guerrilha, ou, pelo
contrário, reduzido a quatro ou cinco estudantes veementes e
obstinados, distribuindo panfletos, sondando colegas,
escrevendo à pressa nas fachadas, a spray vermelho, em letras
trémulas, Morte À Ditadura? Haveria ainda dinheiro para
pagar aos funcionários o seu salário de miséria, encomendar
armas de Argel ou de Marrocos, levar aos presos fruta,
cigarros, pão-de-ló, revistas? Os membros do alferes reptavam
lentamente, vencendo a resistência mole dos cobertores, a
boca encontrou o ângulo perfumado de um ombro e trepou ao
longo do pescoço, em suaves beijos sucessivos, a caminho da
orelha.
— Mete, pediu a mulher numa voz rápida, urgente.
— Veja se consegue beber sem entornar, disse a rapariga de
mão em concha sob o rebordo de vidro. Daqui a dez minutos
sente-se esplêndido, palavra.
A Inês arregaçou a camisa de dormir, acomodou-se de
costas, e os dedos do alferes tocaram um tufo de pêlos macios
e por dentro dos pêlos uma grutazinha oblíqua que humedecia
e se babava. Um braço rodeou-lhe o pescoço, procurou o
intervalo das nádegas, esfregou-lhe o ânus e premiu a raiz
tenra, inchada, dos testículos. A lua de papel do candeeiro ia e
vinha, amarela, contra as árvores, e ao alcançar a paragem do
autocarro diante do cinema (um filme policial completamente
idiota, uma americanada mongolóide e sem nexo) um tipo
atirou-lhe um empurrão como que casual e continuou a
caminhar no sentido da Estefânia, e do seu repuxozinho
melancólico a afogar-se em casas: maravilhado, surpreendido,
exaltado, incrédulo (De certeza? De certeza? De certeza
mesmo?) reconheceu as costas magras e os passinhos curtos
do Olavo, cujo esfiado sobretudo gigantesco, grande demais,
como 56 sempre, para o tronco minúsculo, roçava o chão
numa nobreza ridícula de paramento de padre.
— Afinal não se tinham esquecido de mim, meu capitão,
disse o oficial de transmissões, afinal sobreviviam, afinal
trabalhavam, afinal chegara a informação de Moçambique e eu
continuava um tipo fixe.
Deu-lhe vinte, trinta metros de avanço e principiou a segui-
lo, de mãos nos bolsos, rente aos prédios, parando de tempos a
tempos para observar uma montra, um aleijado que pedia
esmola a exibir as cicatrizes sujas dos cotos, um bêbado
cabisbaixo e teimoso resmungando a sua fúria cósmica na
berma do passeio, endereçando manguitos violentos às calhas
dos eléctricos.
— O meu capitão também tem cabelos brancos, triunfou o
soldado examinando-me, também tem rugas, também tem
barriga: aposto que usa óculos para ler.
Sem olhar para trás o Olavo contornou o busto de Cesário
Verde que escurecia num rectangulozito de relva, e subiu uma
ladeira curta onde os automóveis, galgando o passeio,
estacionavam uns por cima dos outros como peixes mortos. O
sol revelava melhor as cantarias desmanteladas e leprosas de
Lisboa, os andaimes, os retroseiros, as pessoas apáticas e
neutras. Sentou-se na cama, a filha pousou o copo na mesa de
cabeceira, e o sangue recomeçou a latir-lhe, esvaído, sem
pressas, pelos ombros.
— Meu querido, soprava a mulher agitando-se, de coxas
muito abertas, para que o pénis lhe martelasse com força o
fundo da vagina. (O cordel do stérilet incomoda-me, que
merda.) Meu querido meu querido meu querido meu querido.
— Quando o batalhão se reunir outra vez daqui a dez anos,
perguntou-me o soldado, que possuía o vinho sarcástico e
amargo, quantos de nós, diga-me lá, já bateram a sola? A
sério, meu capitão, alinhe comigo nessa.
De longe, o oficial de transmissões ia espiando não apenas o
trajecto do Olavo mas tudo o que se afigurasse suspeito ao seu
redor
(Como na mata, pensou, como na guerra, atento aos sons, às
cores, ao movimento, ao brilho da paisagem): os desocupados,
os vendedores na ombreira dos estabelecimentos desertos, um
polícia diligente que prendia os papéis das multas nos limpa-
vidros dos carros, erguendo-os delicadamente, como insectos,
com dois dedos dextros, até que o sujeito pequenino se
evaporou na sombra de uma porta e ele esperou dez minutos
ou um quarto de hora, plantado na relva, com o ar mais idiota
e comprometido deste mundo.
— Fui sempre assim, meu capitão, justificou-se com um
sorriso tímido, de colher suspensa sobre o pires de leite-creme.
Nunca me ajeitei com a clandestinidade.
O tenente-coronel tentou colocar-se de pé e o quarto, de dia,
surgiu-lhe tão diferente da noite da véspera, sem trevas, sem
ameaças, sem fantasmas, que pensou para si próprio A tarde
de ontem é mentira, o teu fim é mentira, o hospital do cancro é
mentira: dentro de instantes chegas em roupão, com o
pequeno-almoço, o café, as torradas, o doce de laranja no
tabuleiro de bambu, e a minha vida reentrará, aliviada, na
vereda do costume, o quartel, os jantares de família, o cinema
aos sábados com os meus cunhados, e atingirei lentamente a
reforma sem sobressaltos nem angústias. Mas confrontou-se
na casa de banho com o seu rosto desfeito, crostas de vómito
esbranquiçado no colarinho e no queixo, o vestido escuro da
filha, a gravata preta do genro, as caras compungidas cheias de
nuvens, desesperançadamente sérias, e deixou-se cair na borda
da banheira, ansioso, confundido, a correr a palma derrotada
pela desordem do cabelo.
— Para baixo, pediu o alferes de testa já encostada aos
tubos de latão da cama, e a rapariga, apoiada nos calcanhares,
desceu trinta centímetros em ondulações de cobra. As órbitas,
líquidas e cegas como as dos recém-nascidos, palpitavam no
vácuo, os empregados do lixo invadiam estrepitosamente a rua
cambulhando caixotes, e a camioneta, com duas lâmpadas que
cirandavam no tejadilho, engolia detritos, garrafas vazias,
restos de comida, papéis gordurosos, pedaços de galinha, em
enormes e formidáveis engasgos mecânicos. Aproximou-se de
bochechas a arder e coração descompassado da porta onde o
Olavo entrara, procurando desesperadamente um à-vontade de
inquilino habitual e todavia cônscio dos meus horríveis gestos
postiços e das minhas caretas de conspirador, e penetrou num
desses vestíbulos antigos, sem luz, de soalho de azulejo, com
as caixas do correio engastadas na parede sarnosa e o cubículo
da porteira ao fundo, a cheirar a gato e a peixe apodrecido. A
claridade do exterior vibrava com dificuldade naquela
acanhada gruta poeirenta, de ar imemorialmente quieto como o
dos museus, e o oficial de transmissões percebeu a custo um
corrimão, espirais de degraus, o hexágono de uma vidraça suja
no topo. Avançou dois passos oblíquos, hesitantes, perdidos,
que os sapatos sublinhavam rangendo asperamente: apetecia-
lhe fugir, escapar-se depressa, regressar ao dia claro lá de fora,
à geografia conhecida da cidade, e nisto o Olavo a chamá-lo
debruçado do primeiro andar, vultozinho microscópico, de
gravata, idêntico a um minucioso notário competente, e a
vozita conhecida Espera, não sejas parvo, anda cá.
— Vai ou não vai, meu capitão, insistiu o soldado. Daqui a
dez anos, se ainda durarmos os dois, o que perder paga uma
garrafa de Colares ao outro.
Subiu os degraus a tropeçar (as solas gemiam guinchos
pavorosos no silêncio), alcançou o patamar e o Olavo
empurrou-o para uma saleta atravancada de trastes, com uma
natureza-morta de lebres e perdizes pendurada à esquerda, e
dali para um compartimento um pouco mais amplo mas
igualmente melancólico, de cortinas de crochet que impediam
o sol, uma infinidade de cadeiras, de mesas, de pequenas
consolas com retratos (De quem?), armários repletos de loiças
e de copos, um sofá puído cujas pernas mordiam os ângulos de
um tapete de ramagens. O esqueletozinho abriu o aparador das
garrafas e serviu-se de um cálice de anis: o odor do açúcar
ondulou-lhe, distante, nas narinas, como se morasse um
gerânio no andar de cima.
— És servido?, ofereceu o Olavo na sua entoação explicada,
a exibir os doirados do rótulo. Espanhol autêntico, pá, para
comemorar o teu regresso.
— O meu capitão não quer arriscar, desafiou-me o soldado.
Tem mais cagufa de perder que o Deus me livre.
Que gajo morará nesta espelunca?, interrogou-se o oficial de
transmissões, perplexo, examinando os móveis, as fotografias
(um senhor fardado, crianças, o focinho atento de um terrier),
os bonecos de barro nos naperons, uma segunda natureza-
morta, com mais lebres, suspensa defronte da janela que a
tarde escassa alumiava como uma lamparina, o Olavo
satisfeitíssimo, a estalar as bochechas depois de cada gole.
Dele não era decerto, impossível imaginá-lo num cenário
assim, resignado, inútil, antigo: rodeava-se, ia jurá-lo, de
posters fervorosos e de slogans revolucionários pregados com
tachas, de livros lidos e relidos de Ho Chi Min e de Marx, e de
cinzeiros transbordando das beatas amarrotadas de infindáveis
discussões, que amargavam a boca do gosto rançoso dos
projectos heróicos. A Organização melhorou na minha
ausência, pensou o oficial de transmissões, forneceu-se de
esconderijos sofisticados, de disfarces mais perfeitos, se calhar
de novas formas de luta: em caves anónimas, sujeitos de
barba, sem interrogações nem dúvidas, armadilhavam bombas,
preparavam cartuchos, telefonavam em cifra, de palma em
concha no bocal, para contactos longínquos, solicitavam
metralhadoras e pistolas aos companheiros de Paris, os quais
por seu turno (calculava) negociavam em bairros sórdidos com
marroquinos enigmáticos e cúpidos. O regime ia cair às nossas
mãos, os tipos da polícia secreta amanheciam assassinados nas
esquinas, os ministros espavoridos, de cheviote em tiras,
atravessavam à pata a fronteira de Espanha, bandeiras
vermelhas inundavam as fachadas das casas, praças apinhadas
de punhos erguidos entoavam em coro A Internacional.
— Pai, perguntou a rapariga tentando abraçar-lhe a cintura,
sente-se bem, pai?
Uma tontura, uma vertigem, a tensão alta ou baixa, a
emoção do regresso, nada de importante, já passa. O cheiro a
vomitado agoniava-o, as pernas procuravam em vão
equilibrar-se, coxeavam sem destino pelo quarto (meter a
cabeça debaixo da torneira e o frio da água a escorrer na nuca,
nos cabelos, no pescoço, ao longo do canal das costas), os
azulejos elevavam-se e desciam como as vagas na praia, o
reflexo da lâmpada do lavatório picava-lhe nas pálpebras mil
agulhas leitosas. A mulher retirou o pénis do alferes do interior
da vagina e principiou a acariciá-lo à medida que a língua lhe
excitava os mamilos, se demorava no peito, deslizava ventre
fora no sentido do púbis.
— Bebe-me, roncou ele com toda a força dos nervos
concentrada na forquilha dura, tumefacta, das coxas, prestes a
explodir em sucessivas ondazinhas de líquido.
A filha e o marido abriram o chuveiro e ajudaram-no a
inclinar a testa sob o jacto, enquanto o tenente-coronel
espirrava e tossia fungadelas moribundas de morsa.
— Que tal aquilo em África?, questionou o Olavo como se
acabasse de o ver há cinco minutos, no mesmo tom casual com
que perguntaria Como anda o trânsito na Baixa? No fundo
cagam-se para mim, pensou o oficial de transmissões: usam-
me por lhes servir e se deixar de ser útil dão-me um bilhete de
avião para Bruxelas e mandam-me catequizar os emigrantes, a
berrar frases de Mao para os operários da construção civil.
— Morre-se, respondeu cautelosamente afagando uma rosa
de renda numa jarra que imitava um braço feminino. (Que
pateta habitará este bazar?) Morre-se tanto, acrescentou
ressentido, que julguei que se não lembrassem do rapaz:
cheguei há quase três semanas, pá.
O Olavo serviu-se de mais anis e sorriu-lhe: nada nos seus
gestos denunciava pressa ou ironia:
— As precauções do costume, conheces o esquema. O
nervoso atacou a Pide, desmantelaram o mês passado uma
célula inteira do Partido Comunista: doze homens, material de
rádio, papelada, documentação que compromete pelo menos
cinco anos de trabalho. E se pescou no Partido com muito
mais facilidade arreia em nós.
O genro, a soprar-lhe na orelha o bafo do tabaco americano,
enxugou-lhe a cara e os objectos foram-se tornando
progressivamente nítidos. O tenente-coronel mirou no espelho,
surpreendido, as feições desarrumadas: Passei a idade das
orgias de miúdo, pensou, o tempo de afogar as dores da alma
no primeiro gargalo que aparece.
O corpo do alferes sacudiu-se três ou quatro vezes em
curtos impulsos decrescentes, e aterrou nos lençóis como um
motor avariado ou um náufrago na praia: a Inês, acocorada
sobre a sua barriga numa postura de feto, continuava a sugá-lo,
de bochechas côncavas, tocando-lhe o períneo com a ponta
dos dedos, e o desejo começava de novo a subir, devagarinho,
dentro dele, transformando o sangue numa espuma de bolhas
exaltadas. O Olavo deixou o cálice e mediu o oficial de
transmissões com os olhos pequenos, inquiridores:
— Nós, percebes, continuamos a lutar da mesma forma.
Não nos amolgaram nenhum dos núcleos e temos a certeza de
não haver infiltrações nos simpatizantes. (Quem se pode gabar
de uma música dessas?, pensou o oficial de transmissões.
Vende a banha da cobra a outro que já cá ando há tantos anos
como tu.) Não faremos grandes coisas mas fazemo-las
pianinho, pelo seguro: a doutrinação das estruturas de base, a
formação de quadros, a sólida implantação na classe operária,
umas acçõezitas atrevidas, a recolha de dados. É deste último
ponto, aliás, que me mandaram falar-te.
— O meu capitão é supersticioso?, perguntou o soldado a
inclinar-se sobre a mesa, roçando com a gravata feiíssima uma
garrafa vazia. (Está bêbado, pensei eu, a porra destes jantares
de batalhão é que acaba tudo grosso como pipos: quantos
melros nas lonas não levei de automóvel para casa, a
cantarem, a berrarem, a mijarem-se no banco de trás, efusivos,
chatíssimos, insuportáveis?)
A expressão do soldado tornara-se íntima, fraterna, oleosa,
cúmplice, com o álcool a abolir o quilométrico respeito dos
galões:
— Esqueça, concedeu ele. Daqui a dez anos, à velocidade
com que a gente envelhece, nenhum de nós se aguenta nas
canetas.
— A Comissão Política do Conselho Permanente, informou
o Olavo, agora sentado, de perna cruzada, num pavoroso
canapé de palhinha, a exibir com orgulho os sapatos sem
graxa, decidiu que continues na tropa em nome dos supremos
interesses do Proletariado, e arranjou-te um lugar de secretaria
no Ministério do Exército. Precisamos de safar da guerra
companheiros operacionais, precisamos de revolucionários de
confiança no interior da máquina, de orelhas escancaradas e
boca que saiba cantar na altura exacta.
Contemplou radiante os sapatos de saldo, apertou
meticulosamente um atacador deslaçado: Este gajo tem mesmo
alma de notário à séria, disse-se o oficial de transmissões, fala
comigo com a suficiência altiva de um doutor a adiar datas de
escritura. Caminhou até à janela, a tremer de irritação, afastou
as cortinas de crochet e viu um cão miserável, marreco, a
remexer o conteúdo de um saco de papel na peanha do busto
de Cesário Verde. Um cavalheiro de colete e aspecto digno
passava um pano solícito pelo dorso de um Austin antigo,
repleto de gigantescos faróis suplementares. Tipos de fato-
macaco descarregavam frigoríficos de uma camioneta. A tarde
avermelhava os desgraciosos edifícios cinzentos, ou pardos, ou
azuis, da Estefânia, as árvores abanavam-se, sopradas por um
vento inexistente. A mulher escondeu a cabeça no ombro
deitado do alferes, com as pernas cheias, redondas, bem feitas,
dobradas sobre as dele:
— Dá-me um cigarro, e eu estendi a mão até alcançar a
caixa de fósforos, o tabaco, o cinzeiro surripiado há muitos
anos numa boite qualquer, na época em que se divertiam a
roubar pratos, colheres, emblemas, ementas, dos restaurantes e
dos hotéis, para coleccionar lembranças dos paraísos de
pacotilha onde estivemos, esplanadas junto ao mar, pensões
ranhosas do Beato, pousadas, o misterioso canto dos
eucaliptos na noite, tilintando o zinco das folhas. O Olavo
exibiu um rectângulo comprido:
— Tudo neste envelope, companheiro, explicou ele.
Dinheiro, papéis militares, passaporte, instruções a destruir
depois de lidas. Entras no Ministério no começo do mês,
aproveita a semana de ripanço que te falta. Entretanto
arranjámos lá outro sócio para te fornecer apoio: entregas-lhe
os relatórios dos níveis um, dois e três, e ele encarrega-se da
distribuição e dos contactos. (Fornecer apoio ou vigiar-me?,
pensou o oficial de transmissões, desconfiado. Lixam-me os
cornos com tantas súbitas cautelas.)
O Olavo friccionou o sapato do pé esquerdo na calça da
perna direita, acabou rapidamente o anis, olhou o cálice com
saudade e levantou-se: a silhueta pequenina e esbatida dava a
impressão de fazer parte da mobília.
— Eu sei que esta gaitada, disse ele numa benevolência de
gerente que se desculpa, as precauções, os controlos, os
segredos, o que tu consideras patetices escusadas, te encanitam
como o diabo. Mas somos poucos, pá, deu-nos água pela barba
endireitar a Organização, a polícia compra informadores em
cada esquina, e ao primeiro deslize, zás.
Afogou a ponta do cigarro no celofane do maço que
guardou na algibeira amarrotada, colocou uns ridículos óculos
escuros no nariz, e arrepanhou-se numa espécie de careta ou
de sorriso:
— Conheces as dezenas de prisões que tem havido por
incúria estúpida, por ausência de cuidado, queixou-se a
compor o naperon de renda do sofá, as modificações tácticas a
que nos obrigaram, as abébias que vamos entregando à Pide: o
Comité de Defesa e Segurança deliberou ser altura de se
acabar com os luxos desse género.
Veio apertar-lhe a mão e o oficial de transmissões sentiu na
palma, como sempre, os desagradáveis ossos húmidos do
outro:
— Dá-me vinte minutos antes de saíres, pediu o Olavo.
A porta fechou-se e ficou sozinho no meio dos retratos, das
flores e das pretensiosas cómodas em ruína, farejando em
volta o silêncio especial das casas antigas, tecido de
minúsculas vibrações, de pulos de molas de relógio, de
oscilações subtis de reposteiro, de gemidos de móveis e de
tábuas de soalho que nenhuma sola pisa: Daqui a pouco desço
as escadas e esqueci este prédio, não conheço um gajo
chamado António Lobo Antunes
Olavo, resolvi continuar na tropa por causa da crise dos
empregos, moro com a minha madrinha e uma cadela velha
nas traseiras da Feira Popular. O quê, senhor agente? À saída
da Estefânia, diz o senhor agente, pegado ao busto de Cesário
Verde? Desculpe desmenti-lo, senhor agente, mas não é
possível, há séculos que não paro nessas bandas, há um
engano qualquer da sua parte. Debruçou-se para a fotografia
de uma mulher gordíssima, de risca ao meio, tornou a
endireitar-se: Um mal entendido, senhor agente, um mal
entendido lamentável, sou oficial do Exército português,
defendo a Pátria, as politiquices enojam-me, já tenho
divertimentos que me bastam. Eu num bando terrorista, senhor
agente, num grupo armado contra o Governo da Nação, contra
o País? Por amor de Deus, senhor agente, uma asneira assim
só por brincadeira ou por maldade. Lavou na cozinha o cálice
do Olavo e colocou-o no armário, junto aos outros. A seguir
respirou fundo (Aí vou eu mamã, aí vou eu papá) abotoou o
casaco e encaminhou-se para o patamar: a cidade mantinha o
aspecto inofensivo, neutro, pacífico de sempre.
— Chulei um ano e tal na brega antes de me engaiolarem,
meu capitão, disse-me ele. Saí dos quadradinhos com a
Revolução.
Sugou cuidadosamente, de um e outro lado, a colher de
leite-creme:
— O Olavo cirandava por Marselha nessa época, a comprar
granadas aos Líbios, e eu só vim a saber muito depois que
estivera em casa da mãe dele, que a gorda de risca ao meio da
fotografia era a velha: que idealistas pacóvios, meu capitão, a
polícia devia rir-se da gente até tombar de cu.
A mulher recomeçou a lamber e a beijar devagarinho o
peito do alferes:
— Mais, pediu ela.
4

O corpo desarticulado do apontador de metralhadora


obliquamente estendido sobre o seu, tão próximo da cara que
lhe sentia o odor fétido da morte, deu lentamente lugar à perna
nua da mulher na sua perna, ao ventre liso contra o seu flanco
que suava (Tenho de sair daqui, pensou ele angustiado, tenho
de encontrar o camandro do cabo do rádio para chamar Mueda
no meio dos estampidos e dos gritos), ao peso da cabeça
adormecida no seu ombro, queimando-lhe o pescoço de uma
ténue respiração tranquila. À medida que acordava as árvores
transformavam-se em paredes e móveis, o chão de capim
convertia-se na paz enrolada dos lençóis, a tarde de Lisboa
substituía-se à manhã de Moçambique, as buzinas dos
automóveis na rua emergiam dos lamentos dos feridos
espalhados ao acaso na alcatifa, entre a desordem da casa e os
chinelos da mulher. O alferes furtou-se ao joelho que lhe
esmagava as coxas, e dirigiu-se à cozinha para encharcar a
nuca na torneira do lava-loiças, cujo jacto provinha não do
tubo arqueado de metal mas da garganta do tipo do morteiro,
destruída por um pedaço de granada, gorgolejando aos sacões
uma substância escura. Olhou a pilha de pratos sujos à
esquerda e a fila de panos quadriculados suspensa de uma tira
de grampos, e o coração tornou-se mais sereno, mais paulado,
mais lento: Estou na Rua da Mãe-d’Água, estou em casa, a
senhora de bengala do costume sobe devagar as escadas da
fonte para o Príncipe Real, puxando por uma corda duas
cadelas cegas. Coçou as virilhas, de pé, nos azulejos, sentindo
o frio da porcelana trepar-lhe pelas veias, Que pesadelo foda-
se, cheguei há mais de um mês, tenho amanhã uma reunião
importantíssima no banco, que esquisito como as coisas
horríveis se nos pegam, viscosas, à memória. Acendeu um
cigarro com a caixa de fósforos grande do fogão, apanhou o
cinzeiro com cápsulas de garrafas de cerveja torcidas pelo tira-
tampas dentro, e deitou-se de novo à ilharga do corpo cheio da
mulher, que soltou uma frase sem nexo pela boca aberta,
avançou e recuou os cotovelos num espasmo amolecido de
sapo, e lhe pousou o braço no ombro, sem deixar de dormir, à
maneira de um remo sobre um barco ancorado.
— Talvez que devesse ter ficado em África nessa altura,
contou-me o alferes. Antes da revolução, e da independência,
e dos russos tomarem conta daquilo, claro: é que levei uma
porção de tempo a acostumar-me a Lisboa, meu capitão.
De moleirinha apoiada no espaldar da cama e o fumo a
erguer-se do intervalo dos dedos, habituava-se, espantado, aos
objectos familiares, do mesmo modo que os doentes de
trombose reaprendem sílaba a sílaba o esquecido vocabulário
que já sabem: este quadro, este bibelot, esta pintura, aquela
porta, como se as coisas carecessem e possuíssem ao mesmo
tempo um passado, penosamente reconstruído numa espécie
de arqueologia difícil das emoções. A própria cidade se
tornara na sua ausência igual e diferente, e deslocava-se num
cenário de pasta idêntico à realidade que perdera e no entanto
subtilmente diverso, onde actores mascarados representavam,
com mais tintas de mechas brancas no cabelo e mais rugas de
lápis nas bochechas, os amigos de três anos antes, quando a
guerra se resumia à vaga ameaça das notícias dos jornais,
estropiados, mortes, condecorações, gloriosíssimas vitórias. A
mulher moveu-se um tudo-nada no colchão como tartaruga em
fundo de aquário, o púbis roçou-lhe no umbigo o buxo de
caracóis que a depiladora aparava no verão, e o alferes pousou
a beata e começou a afagar mansamente aquele húmido ouriço
em repouso, que lhe lambia os dedos com as membranas
tenras da boca. A tarde escurecia na janela, o balão do
candeeiro oscilava devagar, nascendo, como a lua, por detrás
da sombra geométrica da mesa, os sorrisos das molduras,
disseminados pelo quarto, recolhiam aos vidros numa pressa
aflita de pássaros. Deslizou a palma ao longo do ventre da Inês
até à curva do peito, sublinhou com a língua o búzio da orelha
(Oiço tão bem o mar nos teus ouvidos), uma garrafa vazia
rebolou para o chão assustando o malmequer de gás do
esquentador na janelinha de esmalte, ancinhos de unhas
prenderam-se-lhe aos rins, os testículos apequenaram-se no
forro de bolso da pele, afastou as pernas da mulher com os
calcanhares, o vizinho da frente conversava aos gritos da
varanda para a rua com um pequinês ao colo, e aproveitando a
cadência da voz, como um pranchista de surf uma onda
favorável, partiu a caminho da margem do orgasmo num
turbilhão de espuma.
— Um pequinês ao colo, meu alferes?, perguntou o soldado,
inquieto, indiferente ao bagaço. Um pequinês na Rua da Mãe-
d’Água?
— Não os conhecia de todo, tinham-se mudado há poucos
meses para lá, respondeu o alferes. Um pintor maricas e o
amante preto, do Senegal, que babava francês a tropeçar nas
palavras. O bairro encheu-se de paneleiragem num instante.
Ao encalhar de bruços na areia da fronha, idêntico a um
cadáver de gaivota de quem a água se aproxima e afasta numa
lentidão aborrecida (nenhuns disparos agora, nenhuns
queixumes, somente a espessa paz oleosa que se seguia às
emboscadas), a lua de papel oscilava mansa nas trevas sobre as
nódoas dos móveis, e a asma dos fenos do telefone espirrava
no ângulo do quarto, chamando-os numa obstinada e
implacável ferocidade mecânica. Procurou às cegas o
interruptor do candeeiro (Vou despenhar um livro, um boneco,
uma merdinha de loiça, um dos mil cacos preciosos de que te
rodeias), as luzes lá de fora tremiam em círculos no tecto,
rosáceas de sucessivos anéis esbatidos, mais claros 68 na
parede cinzenta, puxou o cordel e o meu corpo nu e indefeso
surgiu subitamente na cama como numa mesa de autópsia,
com um segundo corpo ao lado, também inerte, a resmungar
protestos na almofada: Está ferida, pensou o alferes, vou pedir
o helicóptero ao hospital de Mueda, e caminhou pelo trilho da
alcatifa, de pénis murcho baloiçando, a tentar adivinhar as
minas nas irregularidades do piso, até ao canto do telefone,
que se torcia e agitava numa zanga de cólicas. Agachou-se de
arma invisível nos joelhos, ergueu o auscultador (Vinte
minutos, meia hora, toc toc toc toc toc toc toc toc toc por cima
dos arbustos), e a voz desagradável, masculina, autoritária da
sogra verrumou-lhe o crânio à laia de um estilete
incandescente:
— Donde fala?
— Era sempre assim, meu capitão, queixou-se o alferes a
servir-se, sem me pedir licença, dos meus cigarros. Estava a
fazer amor ou tinha acabado nesse momento e a gaja, que
parecia adivinhar, ligava-me para casa a interromper-me o
prazer, a fornicar-me o juízo, a chatear-me a cornadura. Bateu
a bota o ano passado com um cancro do pâncreas e o marido
casou com a governanta, uma baixinha de bigode que pelo
menos na época não mandava nele: aposto que levou a criada
ao registo como quem vai a Fátima, de joelhos, agradecer um
milagre.
De cócoras, sem roupa, a espiar ansiosamente em volta o
sossego das paredes (Um canhão sem recuo oculto no talude
do armário? Um morteiro no caixilho da porta?) colou aos
buraquinhos de chuveiro do bocal o murmúrio da cifra:
— Aranha Dois chama Madrinha, Aranha Dois chama
Madrinha, escuto.
— O meu alferes, disse o soldado, andou marreco da cabeça
muito tempo: se o doutor não lhe acudisse com as pastilhas
dos malucos comia uma porrada do caraças.
O monstro hesitou um segundo, desconcertado, e tornou à
carga numa rudeza azeda:
— Donde fala?
A Inês, ausente de sono, iluminada pela claridade de cadeira
de dentista da lâmpada da cama, que abolia sombras e volumes
e acendia nas caras tonalidades anémicas de moribundo,
apontava ao alferes as miras de pistola dos bicos espetados do
peito. Os lençóis, oblíquos, cobriam o leque de pêlos das
coxas, a maçã das nádegas destacava-se de um fundo escuro
de livros. A voz insistia, irritada:
— Donde fala?
Eis-me em Lisboa, poça, eis-me realmente em Lisboa,
pensou ele, nenhuma mina explode nos meus pés. De modo
que se sentou no sofá e respondeu
— Sou eu, mãe num suspirozinho resignado de vencido.
— A porra das famílias das mulheres em cima da porra das
nossas famílias são sarilhos em demasia, decretou o oficial de
transmissões a palitar os dentes, morre-se afogado debaixo de
tanta malta. A única coisa boa da guerra é que pelo menos
durante dois anos somos órfãos, com certinhas de quando em
quando para brincar aos filhos, aos maridos.
— Que vem a ser essa história de aranhas?, perguntou a
sogra, desconfiada.
— Também não percebi, justificou-se o alferes muito
depressa. Linhas cruzadas, se calhar.
— Estranho, comentou a sogra depois de um silêncio.
Importa-se de me passar a Inês?
No andar do pintor, do lado oposto da rua, uma silhueta em
contraluz executava uma espécie de dança oriental atrás dos
reposteiros vermelhos. A cadela da porteira, bicho minúsculo,
horroroso, eternamente grávido e dotado de inacreditável
capacidade de rugir em animal tão diminuto, ladrava
colericamente em baixo: Mais trinta ou quarenta anos disto (e
se não for disto de algo semelhante a isto), pensou o alferes,
desalentado, e depois morro: uma doença breve ou longa,
carregada de espanto, de indignação, de sofrimento, e a seguir,
e de repente, nada. Nada: os olhos da Inês começaram a
habitar-se, as extremidades da cara dobraram-se para cima
num arremedo de sorriso, encolheu-se no colchão e designou o
aparelho com o queixo, sem palavras: Quem é?
— A tua mãe, explicou o alferes, e ela encolheu os ombros
de indiferença, de enfado:
— Diz-lhe que saí, alvitrou baixinho. Uma desculpa, sei lá,
que tenho um amante, que fui à missa, ao cabeleireiro, ao
supermercado fazer compras: são as únicas quatro coisas que
ela respeita.
O homem cobriu o bocal com a mão como se mandasse
calar, nas vizinhanças de um aldeamento, o grupo de combate
que se desdobrava em semicírculo no capim:
— Não serve, daqui a dez minutos liga outra vez. Despacha-
a com duas tretas e pronto.
— O facto é que a pouco e pouco, disse o tenente-coronel
chicoteando com o guardanapo uma mosca invisível, me
acostumei à sua ausência: cessei de a ver por toda a parte nos
compartimentos da casa, deixei de esperar a sua careta
submissa, na sala, quando entrava, acabei por guardar os
retratos numa gaveta do escritório. Tornei a casar-me uns anos
depois e reparei no outro dia que as fotografias desapareceram:
a minha actual mulher não consegue achar muita graça ao meu
passado.
(E eu imaginei uma criatura furibunda, gorda, despenteada,
em roupão turco, espezinhando molduras com os saltos
desfeitos dos sapatos.)
— A gente fossávamos como burros, contou o soldado, e a
empresa prosperava. Se o meu tio não se pegasse tanto aos
métodos antigos éramos ricos hoje.
— Ainda aí está, Jorge?, questionou a sogra, hesitante.
Porque é que a Inês não vem ao telefone?
O alferes puxou o fio até à cama, sentou-se no colchão e
estendeu o auscultador à rapariga: Aranha Dois chama
Madrinha, Aranha Dois chama Madrinha, silvos, guinchos,
crocitos, e um hálito baço, apagado, respondendo dos
antípodas: Aqui Madrinha, aqui Madrinha, passo à escuta,
stop.
— Sim?, disse a Inês a espreguiçar-se, pedindo com o
indicador e o médio um cigarro aceso. Mãe?
O alferes beijou-lhe os joelhos, as coxas, o umbigo, pousou
a cabeça no peito, junto à raiz do pescoço, e fechou os olhos:
Acabei de conhecer-te, corremos de mão dada na praia, sigo
para a tropa em abril. Ouve as ondas estalarem no paredão,
gargalhadas, gritos, os ganidos breves, rápidos, instantâneos,
dos pássaros, a luta para te subir a saia no pinhal, te
desembaraçar das cuecas, a caruma e os troncos pequenos
magoavam-me as pernas, os cotovelos, as costelas, por dentro
da camisa viajavam-me formigas, o soutien rasgou-se (Olha
para isto olha para isto olha para isto e agora?), mordia-lhe as
orelhas, o cabelo, a curva trémula dos ombros (Bruto besta
pára não quero mais larga-me) e a manchinha de sangue na
terra, as tuas lágrimas, eu de mãos nos bolsos, aflitíssimo,
apoiado a um eucalipto (A sério que te amo caso contigo não
chores) e tu de borco no chão, de pernas ainda abertas,
soluçando.
— Não, mãe, estou óptima, disse a Inês à procura do
cinzeiro com os olhos, e voltou-se nos lençóis, de costas para o
alferes, oferecendo-lhe os balões inchados, rijos, das nádegas.
(A rapariga continuava a debater-se na sua memória e ele
pensou Quatro anos, caramba, como o tempo passa.)
— O meu tio, meu capitão, nunca quis alterações na firma,
explicou o soldado inclinando-se para trás na cadeira a pedir
outra garrafa. E no negócio das mudanças se uma pessoa se
não moderniza quilha-se.
— As conversinhas do costume, queixou-se o alferes. As
eternas, intermináveis, idiotas conversinhas do costume, horas
e horas ao telefone a segredarem patetices, a combinarem
canastas, a verrinarem intrigas.
— Jantar aí hoje?, perguntou a Inês abraçada ao travesseiro
numa inércia de feto. (A violência da luz apagava-lhe arestas,
saliências e ângulos, transformava-a numa substancia rósea a
flutuar nos cobertores, contraindo-se e distendendo-se à
maneira de um intestino que digere.) Claro que queremos, não
temos nada combinado.
— E depois constantemente a comer lá, continuou o alferes,
todas as noites de Lisboa para Carcavelos e de Carcavelos para
Lisboa e eu chateadíssimo daquela porra, meu capitão, não há
centímetro da Marginal que não conheça de cor.
O casarão enorme no meio do jardim maltratado, os lobos
d’alsácia aos pulos ao redor do carro, encostando os focinhos
gigantescos aos vidros, repuxando os beiços sobre os dentes
agudos, apoiando as patas no capot, aparecendo e
desaparecendo no repuxo dos faróis num bailado grotesco de
dorsos, de caudas e de avermelhadas pupilas cintilantes
(Quieto Roy, quieta Bazooka, quieto Bruce), a incrível
sucessão de salas, de corredores, de quartos, de cubículos, de
escadas, os bustos do avô em cada esquina, os retratos do avô
por toda a parte, o luxo excessivo dos móveis, os cunhados
que se moviam na atmosfera rarefeita de fumo em ondulações
de peixe, a sogra a tricotar diante da televisão acesa, o marido
baixinho, subsidiário, a folhear revistas, a guardar os óculos no
bolso, a vaguear em torno uma humildade conformada de
vassalo.
— A seguir às rações de combate, sopa de lagosta, açorda
de mariscos, toalhas de linho, talheres de prata, descreveu o
alferes. O meu capitão topa o género? Tinha de lembrar-me
sempre que o meu pai era primeiro oficial, percebe, para não
perder o pé naquela água.
Para além do pinhal, distinguia-se ao longe a escama azul
do mar, um vento sem matéria inquietava as copas, os insectos
surgiam, verdes, das frinchas e dos intervalos das raízes,
desdobrando o papel de seda, coberto de nervuras, das asas:
— Por amor de Deus, solicitou o alferes, acaba com a
choradeira, prometo pela minha saúde que me caso contigo.
— Daqui a uma hora, o mais tardar, garantiu a Inês, estamos
aí, mãe. É só o tempo de vestir uma blusa e uma saia.
Largou o auscultador e apagou o cigarro: Como o teu tio,
pensou ele, quando me chama ao gabinete da direcção do
banco para me dar ordens, tutelado pelo eterno busto do avô
na sua peanha cúbica de mármore: a mesma ruga ao meio da
testa, a mesma boca irónica, o mesmo perfil que os anos
encarregariam de adensar, conferindo-lhe uma solenidade
tribunícia. A rapariga mirou a noite da rua através da
semitransparência das cortinas, e informou Jantamos em
Carcavelos, sem me perguntar o que eu queria, entende, sem
me pedir opinião.
— Cheguei a casa e avisei a velha que continuava na tropa,
narrou-me o oficial de transmissões a pescar as migalhas da
toalha com o polegar humedecido em cuspo. Como o pai dela
morreu sargento de Lanceiros (um gorducho de bigode à
cabeceira da cama) é óbvio que aceitou lindamente.
Ajudou-a a levantar-se, limpou-lhe a roupa das agulhas de
caruma (a mancha de sangue sumira-se por completo, tragada
pelos insectos ou pela garganta da terra), procurou o lenço nas
calças a fim de lhe secar as lágrimas, e subiram os degraus da
entrada iluminados por uma lanterna pintada de azul que
avolumava ainda mais as trevas do jardim, enquanto os cães
saltavam e latiam, desordenados, num júbilo turbulento. A
Inês tocou a campainha que um ramo solto de trepadeira
ocultava: a criada abriu a porta (uma quarentona masculina,
sem sexo, que enxotou os bichos com um gesto), Boa noite
menina, Olá Hilária, e os animais introduziram-se a galope nas
moitas cabeludas, na direcção do paralelepípedo vago da
garagem, atulhada de caixotes de azulejos, de pranchas, de
pneus antigos, de barcos por concluir e de restos de móveis. O
catequista negro avançou para o alferes, que o esperava junto
ao arame, com uma criança descalça, de dez anos, pela mão:
— Quatro contos, negociou num português difícil.
Esta parva nem se digna falar-me, sou completamente nulo
aqui, começo-me a convencer que não existo, pensou ele
entregando a gabardine à criada, que a lançou, indiferente,
sobre uma arca enorme, de pregos: e lá estavam a espiá-lo,
desde o vestíbulo, os bustos, os quadros, as fotografias
odiosas.
— Quatro contos nosso alferes, insistiu o preto. Mercadoria
barata.
Trotou ao longo de diversos tapetes de Arraiolos que o
guiavam no sentido da sala (a Inês evaporara-se no ar, talvez
que tivesse entrado na cozinha a cumprimentar os mujiques
enternecidos), escutando vozes distantes, o som de funil da
televisão, o gira-discos num dos quartos do fundo. Verificou a
gravata no espelho de moldura de talha que lhe devolveu um
perfil ondulado pelos defeitos do vidro, mas os sucessivos
apliques empurravam-no para diante, a cambalear como uma
borboleta tonta (Caso contigo, seja cego, amanhã à tarde
converso com os teus pais, os azuis imóveis do mar e do céu
uniam-se numa linha recta, perfeita, alaranjada), e
desembocou por fim num grande e hirto compartimento
pomposo, povoado de gente, de porcelanas, de cadeiras, de um
samovar de prata numa espécie de trono, de murmúrios, de
decotes, de corpos, de risos carnívoros, contidos, educados
(Quando eu era pequeno supunha sempre que o mundo
acabava naquela geométrica junção de cores, e depois havia
apenas fantasmas de sonhos, anjos e meninos mortos a
chamarem em guinchos penetrantes de boneca, tudo a boiar ao
calhas num líquido indistinto). Cumprimentou senhoras de
idade que cheiravam a frascos de perfume vazios, cavalheiros
segurando uísques duplos como bengalas derradeiras,
dentaduras postiças que se entrechocavam como os cubos de
gelo das bebidas, cubos de gelo que se entrechocavam como
dentes, examinou, de cima para baixo, a miúda descalça, de
pés calosos de cegonha e vestido incrivelmente sujo, examinou
as redondas pupilas inexpressivas, alheadas, neutras, o inchaço
de fome da barriga, retirou os fósforos do bolso da camisa (Há
quantos séculos não faço amor com ninguém?), limpou as
solas das botas numa pedra, e contrapôs comercialmente
observando o silêncio de cacimbo da mata:
— Um conto.
— Felizmente que me colocaram num regimento, disse o
tenente-coronel alinhando os pedaços de um terceiro palito
paralelamente aos outros. Se me metessem atrás de uma
secretária, no Ministério, dava em chalupa num mês.
Viu a sogra a tricotar num sofá de veludo, ao lado de uma
criatura de cabelos roxos com um colar de bolas amarelas
dependurado, como um grampo, do pescoço magríssimo, e
principiou a remar para o adamastor através de um canavial de
leques, de jarrões, de contadores, de bustos do avô, de
bandejas de aperitivos, de exclamações, de glu glus, de
brinquedos de criança, de gargalhadas, de conversas.
— Um conto? O catequista estalou a mão no peito,
ofendidíssimo. Um conto? Um conto, nosso alferes? O branco
já reparaste na menina?
Fê-la girar no chão de terra e de ervas pisadas, com tanta
violência que os membros estreitos da garota se embrulharam
uns nos outros como fios de esparguete, abriu-lhe a boca para
mostrar os incisivos curtos, rombos, infantis, correu-lhe
proprietariamente a palma pelas nádegas inexistentes, e fitou o
oficial num soslaio magoado:
— Um conto pela minha sobrinha virgem, nosso alferes?
— Queria pedir a Inês em casamento, explicou
engasgadíssimo para o casal que o escutava num silêncio
hostil, impenetrável.
A sogra ofereceu-lhe a bochecha distraída, o esqueleto de
cabelo roxo estendeu-lhe a beijar o exagero dos anéis, cujas
pedras reflectiam intensamente a luz como os casacos de
lantejoulas dos palhaços ricos. Bassets introduziam-se a
galope debaixo das poltronas, um rapazinho sardento,
espapaçado no tapete ao lado de uma mancha de chichi,
escavacava à martelada um automóvel de lata.
— Um conto e quinhentos e um garrafão de álcool, ofereceu
o alferes sentindo o pénis inchar-se-lhe, incómodo, nas calças:
Há quantos séculos ao certo sem ver o padeiro, tentou calcular
mentalmente: Sete, oito, nove?
— Precisava de ver pessoas, de respirar, esclareceu o
tenente-coronel corrigindo com o mínimo a posição de um dos
pauzinhos. Nunca fui homem de papéis: enjaulem-me oito
horas por dia num gabinete e endoideço.
O sogro pousou a revista numa mesa de duplo tampo de
vidro, repleto de conchas, de corais, de búzios, de
preciosidades da vazante. A baleia suspendeu o tricot,
estarrecida, e levantou para eles a boca que se arredondava de
surpresa:
— Tínhamos pensado em março, se a mãe estiver de
acordo, disse a Inês. O Jorge vai em abril para a tropa.
O catequista acendeu o cigarro que o alferes lhe estendia, e
ponderou a oferta. Usava sempre gravata, um trapo sebento
torcido sobre a camisa em pedaços, e aos domingos, num
ímpeto de luxo, munia-se de espectaculares óculos de lentes
rachadas e hastes remendadas com adesivos cor-de-rosa, e um
fantástico cinto de plástico com os números 007 na fivela
imensa. O dedo do pé sobrava de um buraco dos sapatos de
ténis milenários:
— Dois contos, rematou ele como quem finda
honrosamente um tratado de paz. Dois contos e o garrafão de
álcool para beber à sua saúde, nosso alferes. A gente toma
conta da menina, não se deita com soldado, não apanha
doença.
— Vá à sala de jantar, ordenou a sogra a contar as malhas, e
peça à Hilária que o sirva: deve ter sobrado um pirex de
bacalhau.
O cabelo roxo compôs as melenas numa coqueteria
fantasmagórica, estremecendo as asas traçadas das pestanas:
— Que é feito da Inês que não lhe pus a vista em cima?
— Dois contos, tornou o catequista, e uma cubata da família
só para ela e o nosso alferes falarem. Mãe gosta, pai gosta,
irmãos gostam, eu gosto, damos uma cabra de dote se
emprenhar.
— Porquê tanta pressa em se casarem?, perguntou a sogra,
admirada, no meio dos seus severos, incontáveis bustos de
mármore. Na volta da tropa há tempo, não?
O marido agitou-se na cadeira como se aparafusasse as
nádegas ao assento de palhinha:
— Cale-se, Jaime, cortou ela num ganido azedo.
O alferes tropeçou num dos bassets que se refugiou,
espavorido, atrás de um reposteiro, cruzou-se com o sogro
para quem ninguém olhava, a girar como um estranho na
vizinhança do transatlântico encalhado do piano, palpando as
algibeiras em busca do isqueiro do cachimbo, beijou mais
anéis sumptuosos que cheiravam a verniz de unhas e a
bacalhau no forno, contou dois contos e entregou-os ao
catequista que os sumiu de imediato nos farrapos das calças. A
miúda, desinteressada, mirava o aquartelamento deserto e o
canhão sem recuo apontado à mata, coberto com uma manta
de oleado.
— Dou-te amanhã o garrafão de álcool, decidiu o alferes,
depois de me inteirar da remessa. De qualquer maneira mentes
como um cão, preto de merda: uma garota deste tamanho não
tem mais de sete anos. m catequista, sem se zangar, franziu-se
num sorriso sábio: Como os contrabandistas de Lisboa, pensou
ele, os gajos que impingem rádios, canetas, relógios, toalhas,
gravadores, tudo vistoso e péssimo, nos patamares das casas:
— Saiu de raça pequena, nosso alferes, mas fez dez,
garantiu ele. Veio-lhe o primeiro sangue o mês passado.
Um ou dois primos da Inês roçaram-no sem o verem,
vogando na alcatifa enfunados pelo sopro de caravela da
heroína. Sujeitos demasiado bem vestidos discutiam
empréstimos, dívidas, manobras de bolsa, operações bancárias.
Apercebeu-se vagamente, na sala vizinha, de criaturas
debruçadas para panos de jogo, escutou em qualquer parte o
trabalho nauseabundo do ânus artificial do teu tio, do meu
patrão: Justamente, meu caro amigo, por vir para as empresas
da família lhe exijo muito mais do que aos outros, nem sonhe
que lhe facilito a tarefa um bocadinho: e os cagalhões a
pularem em tumulto para o saco de borracha suspenso do
umbigo. A sala de jantar ocupada por uma enorme mesa
devastada (Que praga de gafanhotos circulou por aqui?), um
velho a dormitar a um canto, de rissol na mão. Enquanto se
servia de tinto ouviu a Inês chamar uma das irmãs no corredor
(Aposto que se entupiram de erva na retrete, pensou o alferes,
a chupeta colectiva de uma beata a girar de boca em boca),
sapatos de salto alto trotaram-lhe nas costas, um bebé urrava, e
inundou o prato de bacalhau observando a garota negra
(Quantos milénios sem uma foda valente?) que mal lhe
chegava à cintura, e cuja submissa impenetrabilidade o
intrigava.
— Mando limpar hoje a cubata para o nosso alferes,
prometeu o catequista numa exaltação de baile de gala:
grandes nuvens de chuva cor de tabaco acumulavam-se a leste,
um vento súbito ciciava ao rés da terra, dentro de momentos
principiaria a trovejar: o fecho éclair dos relâmpagos rebolava
ao acaso furando o ventre da mata. Tossiu, aguardou um
bocadinho, tossiu de novo, os senhores esperavam,
impacientes, a sogra espetou as agulhas no novelo, o sogro
amassava o cachimbo com os dedos, o alferes envolveu-os a
ambos no mesmo desajeitado olhar em pânico (Meti-me num
bonito serviço, não há dúvida) e adiantou em voz moribunda,
que desmaiava a cada sílaba, envergonhada e exausta:
— A Inês está grávida.
— A Mariana nasceu sete meses depois, meu capitão, pouco
antes de embarcarmos para a guerra, contou ele a repetir o
leite-creme. A mim parecia-me um macaquinho engelhado aos
latidos no berço, os meus pais juravam que era linda. Agora é
uma mulher, cresce-lhe o peito, quer ver a fotografia dela?
O catequista cumprimentou-o em vénias sucessivas à
entrada da palhota, escoltado por um rapaz de muletas que
uma doença da espinha deformara:
— O irmão da sua noiva, nosso alferes, apresentou o
religioso, educadíssimo.
Cessara de chover e a erva luzia, as árvores luziam, a tarde
luzia, as galinhas minúsculas, catando a erva com ar
preocupado de gerentes, luziam, a clara paz que antecede as
noites de África, ampla e limpa como um pulmão lavado,
luzia, idêntica a uma renda côncava sem fim. O da muleta
saltitava, inquieto, à minha volta:
— Trouxeste o garrafão de álcool, nosso alferes?
— A Inês grávida?, inquiriu o sogro, gelado.
— Cale-se, Jaime, comandou a mulher afastando os bassets
com os saltos. Ó menino, quando é que disse que ia para a
tropa?
O velho que dormitava no seu canto deu uma dentada
distraída no rissol, e recaiu num coma digno de executivo,
babando migalhas no colete. O alferes empurrou a porta da
cubata (cheirava a mandioca seca, ao odor pobre, incómodo,
enjoativo, da mandioca seca nas esteiras, aroma de cadáver das
raízes de giz, semelhantes a fémures torcidos, nos telhados) e
encontrou a miúda numa imensa e decrépita cama de casal, de
pernas substituídas por cunhas e pedaços de tijolo, com uma
boneca de pau ao colo, fitando-o com os eternos olhos
enigmáticos, estranhamente adultos, enquanto por trás da Inês
a rama dos pinheiros balouçava, e na escama horizontal do
mar tremiam frisos brancos de espuma:
— Quietinho, pára com isso, não quero, pedia ela de olhos
fechados, afastando-lhe os braços com os pulsos estendidos de
cega. Arranco-te as cuecas, pensou o alferes a quem a própria
erecção dificultava os movimentos, arranco-te as cuecas e
consigo. Olhou a Inês ansiando, perdido, por um auxílio que
não vinha, assoou-se, voltou a tossir, e dissolveu-se na
contemplação aflita dos sapatos:
— Como é que você disse que se chamava?, perguntou
desdenhosamente a sogra.
Além da cama havia uma ou duas cadeiras desmanteladas,
uma bacia com água, um pedaço de sabão embrulhado numa
página de jornal. A garota despiu-se numa pressa infantil, sem
largar a boneca, e estendeu-se no colchão repleto de bossas e
de covas, estudando o tecto de palha com os berlindes
transparentes das pupilas. (Alguns relâmpagos estrondeavam
ainda, dispersos, para o lado do rio.) Seis ou sete António
Lobo Antunes anos, pensou o alferes a desabotoar a camisa e
as calças, a deslaçar as enormes botas fedorentas enquanto o
desejo (Há quantos séculos, porra?) lhe trepava as coxas,
devagar, como a coluna de mercúrio da febre. Deitou-se,
completamente nu, junto do frágil perfil de salamandra da
miúda, e principiou a vasculhar-lhe, como um bolso, o
esquelético perfil inerte das pernas. O sogro acendia o
cachimbo, incomodado, chupando o fumo com as nádegas
estendidas das bochechas. O alferes notou envergonhadíssimo
que os sapatos necessitavam de meias solas urgentes, e
procurou disfarçar os punhos esfiados encolhendo o mais
possível as mangas da camisa. Penetrou a garota agarrada à
boneca, vencendo furiosamente uma resistência de mucosas, e
sentiu que o corpo se lhe amolecia, quase de seguida, como o
dos insectos libertando a humidade das asas das crisálidas
esbranquiçadas. De modo que levantou o queixo e olhou de
frente os ácidos óculos bifocais da sogra:
— Chamo-me Jorge, disse ele.
5

— Se me custou a adaptar ao trabalho, meu capitão?, riu-se


o soldado, divertido, a cuspir caroços de azeitona para a palma
enorme. Se tivesse gramado uma vida como a minha, sabia
que a única coisa que custa é não comer.
Chegava às oito da manhã ao armazém, com os vidros das
janelas lá no alto, junto ao tecto de zinco, todos partidos,
paredes fuliginosas, as palavras Não Fumar, a encarnado,
pálidas como baton numa camisa velha, móveis e caixotes e
armários coxos que uma claridade difícil, avara, vinda não se
sabia de onde, iluminava, revelando superfícies poeirentas,
estofos devorados pelos ratos, armações de bidés, a gaiola do
escritório do tio à entrada, com a célebre secretária em ruína e
a sua indescritível desordem de dossiers. Era aí, meu capitão,
do lado de fora, claro, que se aguardava o serviço do dia
(Mudar o recheio do número Tal da rua Tal para a avenida Tal,
trazer a tralha mais pesada de uma vivenda em Caneças, ir a
este endereço de Caxias rebocar dois pianos para a Amadora),
batendo as solas no chão com o frio, fumando cigarrecos
baratos, observando o céu descolorido pelas fendas do telhado,
à medida que o droguista gordo retirava os taipais da loja em
frente e as primeiras velhas se aboboravam nos peitoris,
amortalhadas [ António Lobo Antunes nos sudários das
cortinas de crochet. Havia uma espécie de galeria precária no
primeiro andar, onde se deixavam as lancheiras do almoço, se
mudava de roupa e se comia, com um postigo para a cerca do
asilo dos malucos, na qual miseráveis homenzitos de farda
castanha gesticulavam no meio de árvores coléricas. O senhor
Ilídio entrava às oito e meia sem cumprimentar ninguém,
soprando a sua asma feroz de pacaça num susto de roncos e de
silvos, de barba crescida e olhos inflamados por insónias
tormentosas, palpava o casaco à procura da chave e encerrava-
se no cubículo atulhado, carimbando facturas, protestando
contra a anarquia de papéis que ele próprio segregava,
empurrando com os cotovelos e os pés maços antigos de
jornais, latindo ao telefone conversas iradas com credores ou
amigos ou clientes, à medida que rabiscava num bloco sebento
com o coto minúsculo do lápis. Esperavam às vezes, assim,
desocupados, quase a manhã inteira, a apreciar as mulheres
que entravam e saíam da drogaria e as vendedoras ambulantes
de fruta e de hortaliça nos seus triciclos empenados, ouviam os
ratos chiarem nos fundos do armazém, galopando entre patas
carunchosas de cómodas, roçavam os fatos-macacos ociosos
na caliça, e de súbito a porta do escritório aberta com
violência, a cara mole do sapo a fitá-los com ódio, a mão
gorducha que brandia raivosamente um papel, Venham cá.
— Éramos só três empregados nesse tempo, meu capitão,
lembrou-se o soldado, baixinho, binoculando enternecido o
nevoeiro doce do passado. Um velho a quem faltavam três
dedos, que estivera preso há muitos anos por bater num polícia
e conduzia a camioneta a cair aos pedaços, pulando, em
sucessivos terramotos de lata, por todos os buracos das ruas,
eu, e um tipo magro que não falava nunca, de esposa internada
por ataques no hospital. Depois as coisas melhoraram,
comprámos duas furgonetas e metemos onze funcionários,
incluindo uma senhora de óculos, constipadíssima, que vinha
ao fim da tarde emendar as asneiras da escrita do meu tio, e
pôr tudo a limpo num livro de capa preta, encadernado como
os dos notários e os das igrejas.
A pouco e pouco os dossiers foram diminuindo, a desordem
decrescendo, apareceram canetas novas em cima da mesa, um
mata-borrão, flores num copo de água, e o velho, assustado
com a limpeza, meio tonto como se não reconhecesse o local,
bufava de angústia perante aquele insólito exagero de asseio, a
suspirar, meu capitão, pelo seu casulo de lixo.
— Quase não ia a casa nas primeiras semanas, disse-me o
tenente-coronel. Tudo tão direitinho, desabitado, sem defeito
nenhum, recordava-me, não sei porquê, a morte. Em pequeno
nunca a imaginei com as caveiras e as tíbias e os fantasmas e
os corpos estendidos nos caixões do costume: se pensava nisso
era sempre um quarto excessivamente arrumado, com os
objectos exageradamente no lugar, que aparecia. Ou então a
máquina de costura antiga da minha avó, num canto, perto da
janela, com um cesto de roupa por coser ao lado, a sombra do
candeeiro na parede e uma completa ausência de pessoas. É
isso, a ausência das pessoas, entende, que me assusta: o
silêncio das praças à noite, sem ninguém, os corredores nos
quais os próprios passos caminham, inquietantes, ao nosso
encontro, e onde, quando tossimos, a bronquite nos regressa à
garganta, desagradável e azeda como um vómito engolido.
Por causa da asma do velho, que o tabaco assanhava,
apagavam os cigarros decapitando os morrões com o mínimo,
e guardavam as beatas nas caixas de fósforos, atrás da orelha,
no bolso, para fumar a seguir, os três aos solavancos, na
camioneta desconjuntada, pelo trânsito em desordem da
cidade, que distinguiam a custo, através do sujo vidro
embaciado, como se a observassem (edifícios, avenidas,
praças, descampados, a estranha mistura de elementos
díspares, ao acaso, que compõem Lisboa) para lá da névoa de
um sonho. Subiam, a arrastar os sapatos de ténis ou as botas,
os degraus gastos do cubículo do tio, o velho a quem faltavam
três dedos desbarretava-se respeitosamente à entrada como nas
capelas, exibindo as sardas e as crostas da calva, e
amontoavam-se diante do patrão, a torturar as boinas com o
embaraço dos dedos, enquanto o senhor Ilídio retirava a flor
do copo no ar infinitamente enojado de quem toca num bicho
repelente, e a atirava (agastado? surpreendido? envergonhado
deles?) para o cesto do lixo, no qual se empilhava uma confusa
papelada sem fim, amontoando-se e levedando num pudim de
facturas.
— Se calhar depois de vocês saírem, sugeriu o oficial de
transmissões a estender a manga pouco certa para um gargalo
de tinto, pescava outra vez a flor do cesto e permanecia a tarde
inteira a olhá-la: o teu tio devia ser um lírico.
— O recheio do andar Tal da rua Tal para o número Tal da
praça Tal, regougava o asmático entregando-lhes uma página
de agenda com as moradas escritas. E a camionetazinha aqui
de volta às sete, não quero vias sacras nas tabernas.
O aviso era para o mudo, explicou o soldado. Não
aguentava o vinho e aparecia aos bordos, depois do serviço,
com o velho e eu, alarmados de cagaço, a ampará-lo.
Assobiava, dançava o tango, espojava-se no chão, imitava o
cacarejo das galinhas, contava-me da filha que morreu de
meses de uma doença de intestinos, o hospital, os tubos no
nariz, a barriga cosida da autópsia, acabava por nos babar os
ombros de lágrimas de ranho. Por fim não se tinha nas pernas,
prendia-se a nós, pedia-nos que o levássemos ao cemitério a
visitar a campa da menina, e não valia a pena explicar-lhe que
passava das sete, que não havia campa, que foi há mais de
cinco anos, que deitaram os ossos na vala misturados com os
outros: não ouvia, insistia à mesma, monótono, confuso, lento,
teimosíssimo. Costumávamos parar numa tasca de Chelas, o
mudo conhecia o dono, jogaram futebol juntos nos
principiantes do Operário, havia dezenas de retratos
encaixilhados, com dedicatória, em todas as paredes, moscas
inumeráveis, uma frescurazinha agradável no verão, bebíamos
os quatro à saúde do Operário, um maneta que vendia cautelas
sacudia a carteira para mostrar a fotografia da célebre linha
avançada da equipa de honra (Manecas, Gonzalez, Zuzarte,
Pires II e Zezinho) ao lado do sorriso apaspalhado da neta mas
catada de sevilhana, pagava uma rodada à conta da lotaria do
Natal, havia ainda duas taças oxidadas e uma vitrina pequena
de medalhas, a gente começava a subir no interior de nós
mesmos, meu capitão, com o impulso do Bucelas, o corpo
flutuava no recheio do corpo, os gestos flutuavam no tutano
dos membros, uma mulher forte, de avental, assava
passarinhos num fogareiro de barro, A patroa, apresentava
orgulhosamente o dono, larguei o futebol por este naco, a
gente observava a cara bexigosa dela, a barriga espetada, as
varizes, os pêlos compridos das pernas e acenava que sim com
a cabeça, Com uma febra como a sua até eu me enforcava,
senhor Paz, gabava com convicção o das cautelas na esperança
de um bagaço grátis, ou então, imagine, gostava mesmo
daquela foca triste, existem homens que se excitam com
coiros, o patrão aplicava uma palmada sem energia, sem
vontade, no rabo da criatura e esquecia-se dela como a gente,
às vezes, nos calha afagar um cão por acaso, toma lá e vai-te
embora rafeiro, percebe o que eu quero dizer?, os empregados
da fundição da esquina metiam pardais no pão e o molho
escorria-lhes pelo queixo abaixo, os dentes esmagavam e
chupavam lentamente os ossos, o mudo abraçava a rapaziada
inteira num entusiasmo sem forças, a nossa camioneta
atravancava a rua e uma fila de automóveis, carrinhas e
triciclos protestava atrás, saíamos ao escurecer, meu capitão,
de fachadas tingidas pela noite de um reboco lilás, os prédios
mudavam de cor, as caras mudavam de cor, as árvores
mudavam de cor, os próprios sons mudavam de cor, tudo se
tornava frágil, vulnerável, de vidro, se as vozes, por exemplo,
caíssem no passeio, fracturavam-se em mil estilhas de sílabas,
caminhávamos muito direitos, com infinito cuidado, de medo
que as nossas cabeças cheias de nuvens, precárias e sem peso,
nos tombassem dos ombros, de medo que as órbitas nos
resvalassem, idênticas a bolinhas de loiça, para o chão, e ao
mesmo tempo uma espessa tontura, varandas que ondulavam,
um desassossego no estômago a transformar-se em vómito,
punha-se o motor a trabalhar e os corpos, desarticulados,
badalhocavam no assento, o velho agarrado ao volante
arrotava de segundo a segundo e um hálito de espantar
besouros alastrava na cabina, chegávamos ao armazém e o
meu tio à porta à nossa espera, meu capitão, puxando os
suspensórios, a bufar de indignação, de raiva:
— Por onde é que vocês andaram, seus sacanas?
As lâmpadas fracas e raras da loja, pregadas ao tecto,
pestanejavam as antenas de barata da luz, revelando e
ocultando o seu imenso espaço de sombras em que os móveis
empilhados arfavam estalos dispersos de madeira. No cubículo
do escritório a flor, amarrotada, retomara o seu lugar no copo,
e o soldado pensou Apaixonaste-te pela contabilista da gripe
(beijos intermináveis e castos esvoaçavam sobre infinitas
contas de somar) e se a tua patroa sonha, meu malandro, faz-te
a vida num inferno, pratos partidos, ameaças, gritos,
pancadaria, a garoupa do jantar comida num silêncio tenso de
catástrofe. Ao princípio dormia no armazém, embrulhado em
podres cobertores esburacados, com o assento da camioneta,
que cheirava a cabedal e a suor, no lugar do travesseiro, e o
céu de tinta da china da noite, penetrando pelas janelas
estragadas, a gelar-lhe os ossos e as veias. Apavorava-o a ideia
de que os ratos lhe trotassem sobre o corpo, julgando sentir
patinhas minúsculas, ventres minúsculos, dentinhos
minúsculos devorarem-lhe os testículos, julgando distinguir
gulosas pupilazinhas minúsculas espiando, agudas, no escuro.
Uma madrugada despertaram-no a abaná-lo com força, sentou-
se em pânico no meio dos desperdícios e do pó (deviam estar a
comer-lhe o pénis, o ventre, os arcos das costelas), primeiro
teve só frio e surpresa mas a seguir notou uma silhueta de pé,
quase tocando as lâmpadas e as estalactites de teias de aranha
do tecto com a testa, e era o tio, meu capitão, a fungar para
cima de mim a asma ultrajada, Quem te autorizou a dormires
aqui, que caralho. Vestiu-se à pressa, tonto de sono, com o
senhor Ilídio a insultá-lo e a descompô-lo, Não quero ninguém
na loja, minha besta, isto é hotel ou quê?, e ao mesmo tempo
ajudava-o a abotoar a camisa, a acertar com as mangas do
casaco, a não escorregar nos degraus, de quando em quando
um automóvel qualquer afastava-se na rua, lá estava a drogaria
fechada, as casas todas iguais, o húmido silêncio desse março,
o leite sujo do céu, a relva magra das pracetas que a urina dos
cães ia matando, o velho parou para recuperar o fôlego
encostado a um banco de jardim, esmagava a mão aberta no
peito, um dos joelhos tremia (Vai dar-lhe uma trabuzanada,
pensei eu), um par de homens, quase colados, desaparecia nos
degraus do urinol subterrâneo, cujo néon derramava o seu
luarzinho asséptico, numa espécie de poeira, nos canteiros em
volta.
— Fiquei com ela que tempos, explicou o alferes a acender
um dos charutos que o segundo comandante, embrulhado
numa nuvem gordurosa de fumo, ia distribuindo ao comprido
da mesa. Engravidou, abortou, tornou a engravidar, de modo
que pelas minhas contas, meu capitão, tenho um bastardo de
nove anos em Moçambique.
— O meu sobrinho passa a ficar cá em casa, sibilou o tio na
direcção do contorno difuso que se movia vagamente, a meio
do corredor, para além de uma porta entreaberta. A casa,
àquela hora, afigurou-se-lhe ainda mais feia, mais rebarbativa,
mais gasta, a cheirar ainda mais a pouca limpeza, a fritos e a
mênstruo de gato. O senhor Ilídio rodou o comutador e o
soldado recuou, encolhido, sob a luz violenta: um esconso,
uma cama de armar sem lençóis, um lavatório de esmalte, o
retrato de uma velhota numa moldura de búzios: É aqui.
— Amanhã a Isaura arranja-te lençóis, grasnou o batráquio
virando-lhe impetuosamente as costas e ele pensou Quem
camandro é a Isaura? A rapariga? A outra, a que levanta a
loiça? Adormeceu vestido, de luz acesa, sem se descalçar
sequer, o tio berrava algures, danado, Encontrei-o no meio dos
trapos como um mendigo, é quase tão cretino como eu, a
madrugada parda acinzentava as paredes e o soalho, sentia as
pernas moídas, quebravam-se-lhe os rins, bom dia.
— Ela também dormia lá, meu capitão, informou o soldado
a verter os caroços no cinzeiro de plástico, num quarto
pequenino, logo à entrada, à esquerda do vestíbulo. Às vezes,
ao passar, via um fio de claridade debaixo da porta, a tipa
trabalhava de dia numa firma de electrodomésticos e estudava
de noite, eu vinha do cinema, ou de jogar bilhar, ou das casas
de pegas com os amigos e apetecia-me bater e não batia,
apetecia-me que me deixasse entrar, conversasse comigo, se
interessasse, me olhasse muito séria, de mãos no queixo, no
meio dos livros e dos cadernos abertos, apetecia-me que uma
mulher se preocupasse comigo mas faltava-me a coragem,
entrava na retrete na esperança de ganhar lata e nada, fitava-
me ao espelho e decidia Vou lá, bato, sento-me na cama e
desato a falar, insultava o próprio reflexo Mexe-te maricas,
puxava o cordão do autoclismo sobre a água tranquila da
sanita, escutava a tosse do tio no corredor, hesitava, imóvel no
escuro, enquanto as palmas se lhe oleavam de pânico, e
acabava por me fechar vencido, lixado comigo mesmo, no
esconso do fundo, a folhear com raiva jornalecos de caubóis.
Ao jantar, se ela chegava cedo das aulas e comia com a gente,
não se atrevia nunca a falar-lhe: o tio, com a camisola interior
de sempre, cada vez mais castanha, a tapar-lhe o peito inchado
e curto, palitava os dentes em silêncio, a dona Isaura combatia
os talheres e os pratos na cozinha, e a rapariga (chamava-se
Odete e o pai morreu numa passagem de nível, era dos que
estendem a bandeira verde aos comboios e uma ocasião,
bêbado, tropeçou nas calhas e a locomotiva dividiu-o em
orações, sobrou um sapato intacto, um fragmento de pano, e a
cometa amarela a cheirar a vinho), descascava em cima dos
restos do frango o pêro do costume. O soldado pensava É hoje
que consigo e não era hoje nunca, até que soube por um primo
a escola que ela frequentava, na Rua Pascoal de Melo, enfiou
três ginjas seguidas numa mercearia para tomar balanço, e
aguentou a pé firme, de fato novo e gravata, junto à paragem
do autocarro, de mãos mais molhadas do que nunca,
esperando, descompassado e opresso, que mulheres e homens
com livros descessem as escadas de um prédio de gaveto com
uma placa na varanda do primeiro andar, Externato
Republicano, Ensino Liceal.
— Mudar os móveis de um apartamento de Cascais para
uma vivenda em Pedrouços, vociferou o tio. E se ancorarem
aqui depois das cinco perdem o emprego.
— Nunca falou comigo, meu capitão, disse o alferes, nunca
consegui puxar-lhe uma palavra. Agarrava-se à boneca o
tempo inteiro, a observar as paredes de barro, os postigos, o
tecto, na indiferença do costume, como se eu fosse
transparente, percebe, como se eu estivesse morto, como se eu
não existisse. De início julguei que era doente, atrasada
mental, idiota, uma coisa qualquer desse estilo, depois
lembrei-me que os pretos detestam o cheiro dos brancos e que
devia ser isso, repugnância, nojo, mal estar, e só passados
meses e meses entendi.
— Não me diga que estava à minha espera?, perguntou a
Odete, intrigada. (Que dentes tão certinhos, pensou o soldado,
que sorriso bonito.) Vestia saia de pregas, camisola, anel de
prata no dedo, sapatos usados, sem salto, e como os outros que
abandonavam em grupos o prédio do Externato Republicano
trazia uma pasta de livros e cadernos sob o braço. Se respondo
que sim goza-me de certeza, se respondo que não faço figura
de parvo, que havia eu de dizer, meu capitão? Encolheu os
ombros sem se atrever a fitá-la, coçou a bochecha com a unha
compridíssima do mínimo, a montra de uma ourivesaria
próxima assemelhava-se a um enorme cubo doirado de gelo
cintilante. O tio entregou-lhes o papel com as moradas e
embarafustou a soprar pelo cubículo dentro: uma rosa
vermelha, idêntica a uma vulva pintada, crescia no copo, o
autocarro surgiu ao longe a contornar a praceta. O soldado
apertou os punhos com força (a pele do sangue batia como
uma guelra) e disse muito depressa, como quem se lança de
uma prancha sem saber se há água em baixo, Estou aqui desde
as nove porque me apetecia conversar consigo.
— Arranjava trabalho até às tantas para evitar deitar-me,
contou o tenente-coronel extraindo novo palito da caixa e
principiando a quebrá-lo meticulosamente em pedaços
exactamente iguais aos anteriores. Ou então lia os jornais sem
ver as letras, com as linhas a dançarem e a misturarem-se
numa confusão do caneco, ou passeava na parada, aos
pontapés às pedras, a escutar, distorcidas pela distância e os
mil ecos da noite, as gargalhadas e as conversas dos oficiais na
messe iluminada.
Mas se ia para a cama e apagava o candeeiro ela surgia à
minha frente, morta, amarela e magra como uma vela de
enterro, a culpar-me de a abandonar sem motivo, de a deixar
agonizar no hospital do cancro, de não obrigar, de pistola em
punho, o colega do liceu a salvá-la. De maneira que levei
semanas a trotar no edifício deserto do quartel, atravessando
como um espírito as camaratas, os gabinetes, as secretarias, até
que as janelas empalideciam, as árvores cresciam lentamente
da terra, varandas e postigos materializavam-se devagar nas
fachadas dos prédios. Então abria finalmente a porta do quarto,
despia-se, batalhava com o pijama e estendia-se de costas no
colchão, de travesseiro apoiado à cabeceira da cama, tenso,
rígido, de olhos redondos, a fumar. A Odete passou a pasta
para o sovaco livre e pesou-o com desconfiança:
— O que é que lhe deu na cabeça para fazer isto?,
perguntou numa entoação defensiva. (Era do género arisco,
meu capitão, explicou o soldado, das que chutam as pessoas à
primeira, sem aviso.)
A camioneta trambolhou a custo na direcção da auto-
estrada, embaraçada no trânsito como um gancho de mulher
nos cabelos em desordem. O aquecimento, avariado,
introduzia por debaixo do banco um bafo insuportável de
borracha queimada, havia um corno gigantesco pendurado do
espelho retrovisor, uma fila de postais ilustrados colada ao
tablier, a caixa de velocidades produzia um soluço oxidado, de
metais que se rasgam, sempre que o velho empurrava a
praguejar a alavanca, entraram no autocarro um atrás do outro
e a porta fechou-se num suspiro tumular. A Odete sentou-se do
lado da janela, a fitar o próprio reflexo, a três quartos, no
vidro, e o soldado pensou E agora o que lhe vou dizer?
— A gaja odiava-me, meu capitão, sussurrou o alferes. De
uma das gravidezes cacei-a a malhar com a boneca de pau na
barriga para abortar de propósito. Recusava-se a parir um filho
meu, filho de portuga, filho de branco: que culpa tinha eu da
guerra, conte lá? E o catequista, sempre tão amável, tão
simpático, tão subserviente, a dissolver-se em vénias, odiava-
me também, só a boca dele é que sorria, os olhos, senhor,
mantinham-se azedos e hostis. Um fulano a tratá-los bem, a
oferecer-lhes álcool, e eles em troca capazes de nos
envenenarem o almoço, toda a gente sabe que os pretos são
uns malandros do diabo.
As árvores da auto-estrada corriam para trás devagar: não
existia ninguém que não os ultrapassasse, verificou o soldado,
mesmo um ridículo triciclo amarelo a abanar-se e a sacudir-se
como um ganso que foge, pilotado por um homenzinho de
capacete às riscas. O velho, de cotovelo de fora, queixava-se
desta merda de chaveco que me entregaram para conduzir, em
que cada peça, por mais insignificante, pulava e vibrava numa
barulheira horrível, o motor explodia de quando em quando
pequeninos peidos aflitos, um fumo carbonoso invadia a
cabina. A rapariga considerava obstinadamente a própria
imagem, sacudindo a cabeça, num aceno de égua que bebe, a
fim de libertar os caracóis aprisionados entre a gola do casaco
e o pescoço: Não me liga porque daqui a uns anos é doutora e
eu continuo de móveis às costas como um galego, o cobrador
seguia espapaçado à frente, a adormecer de queixo no peito no
banco vazio, insígnias luminosas apareciam e desapareciam
num palpitar cardíaco: o rio ao fundo, a Marginal enxotada
pelas ondas, cardumes de gaivotas rente ao gume da muralha,
a claridade esbranquiçada de março às três da tarde. Tocou-lhe
o braço e perguntou humildemente:
— O que anda a estudar?
A cara da Odete apontada para mim, meu capitão
(Surpresa? Aborrecimento? Indignação? Desprezo?), as
sobrancelhas erguidas, a cicatriz da testa: assim de perto
possuía um rosto assimétrico, de traços antipáticos e duros,
boca sumida, ombros estreitos, peito liso de rapaz. Fiapos de
nevoeiro ascendiam da água, a chuva teimosa amarelecia as
casas, o velho lutava, resmungando, com o volante, Daqui a
nada, pensou o soldado, tudo isto explode num fogo de
artifício do caneco, lançando ao ar, como a máquina do tiro
aos pratos, parafusos, porcas, manivelas, chapas torcidas de
alumínio, as mãos do mudo tremiam-lhe tanto que a chama do
fósforo não tocava o cigarro, Odeiam-nos, meu capitão,
avisava o alferes, todos os cabrões dos pretos nos odeiam, o
das muletas, por exemplo, endrominava de certeza a miúda
contra mim, eu a oferecer-lhes peixe seco e eles a lixarem-me
os cornos sem gratidão alguma, alcançaram o Estoril, giraram
à esquerda e à direita, avançaram, recuaram, perderam-se em
áleas de vivendas de ricos, atrás de acácias, de muros, de
portões de grades e leões de pedra, acabaram por descer uma
inesperada vielazinha de pequenos comércios, rés-do-chão
manhosos, pensões decrépitas, empenadas carroças de couves
e de alfaces, o soldado apeou-se e mostrou o papel das
moradas ao dono de um café que veio à porta fornecer
explicações infinitas de palito nos dentes, o velho, irritado,
engrenou a primeira cuspindo palavrões baixinho e a
camioneta, engasgada, desatou a tossir numa sucessão de
espasmos, um jardim de baloiços desertos, uma igreja,
edifícios em construção reduzidos ao geométrico esqueleto do
cimento, e logo a seguir, de onde se via o mar, um renque de
prédios diante de um talude repleto de sacos, de ferramentas,
de pranchas, de blocos de marmorite junto ao casoto da
Companhia de Electricidade de que o dono do café falara, Pára
essa merda, os travões guincharam como bichos vivos que se
enforcam, é ali: a placa de botões assertoados da campainha,
um painel de loiça no vestíbulo, os dois elevadores gémeos
pintados de verde, a rapariga recuou indecisa (Descansa que
não te como, minha parva), exibiu-lhe fugidiamente as
lombadas dos livros, respondeu Ciências, e a voz, ligeiramente
turva, submergia-se no embalo do motor.
— Não sei o que considerar mais chato, meu capitão,
queixou-se-me o oficial de transmissões a raspar com o dedo
distraído o rótulo da garrafa de bagaço. Se disparar tiros na
mata, se ganhar bolor no segundo andar do Ministério, cercado
de sargentos à paisana, amarelos e puídos, de fígado estragado,
cheirando a remédio. Eu via-os da minha secretária e pensava
Se são estes infelizes que a Organização quer que eu doutrine,
como caralho se ensina o Marx a defuntos? As paredes
esfarelavam-se devagarinho em grumos de pó, fragmentos de
caliça despegavam-se do tecto, o soalho abaulado rangia: tudo
desbotado, monótono, sem vida, e o Tejo pela janela, também
pardo, gemendo igualmente o seu protesto manso se o
calcanhar de um barco o pisava. A revolução surgia-me de tal
modo impensável, de tal modo absurda num país carunchoso,
resignado e vago, que a minha existência se me afigurava
desenrolar-se como um sonho no interior de um sonho, no qual
flutuassem ao acaso fragmentos impalpáveis de palavras de
ordem e de bandeiras vermelhas.
— Eu também gostava de estudar, disse timidamente o
soldado, mas o meu pai meteu-me numa oficina aos doze anos,
apanhei a meningite logo a seguir e embruteci de vez. Se
aguentar este emprego o resto da vida é uma sorte.
O mudo fechou a porta do elevador, carregou no botão, e
quase instantaneamente (uma hesitação do tapete de borracha,
uma oscilaçãozita de cromados, o ligeiro, suave assobio do
maquinismo) a gaiola de metal imobilizou-se no sétimo andar
(a lampadazinha com o número sete inchava e desinchava,
histérica, numa cadência de pulso), saíram para o corredor,
desajeitados e enormes nos fatos-macacos das Mudanças
Ilídio, que os transformavam, à força de pano, em grandes
bichos musculosos, tocaram a campainha, uma música oriental
tilintou como na base de um poço, um senhor de cinquenta
anos, sandálias, colar de missanga e cabelo pintado de loiro
sorriu-lhes do vestíbulo. O soldado entreviu dezenas de telas
de rapazes nus encostadas às paredes ou penduradas de anzóis,
uma mesa coberta de folhas de jornal, latas de tinta, frascos,
pincéis, o retrato de um preto numa moldura de veludo,
prateleiras de livros, sofás obesos, um gato siamês a roçar-se-
lhe nas pernas, e no quarto ao lado, desfeita, em desordem,
com a bandeja do pequeno-almoço esquecida em cima, e uma
colcha semelhante a um xaile de franjas, quadrada, gigantesca,
exalando um perfume estranho, a cama.
— Devíamos ter feito muito mais baixas, meu capitão,
afirmou o alferes a repetir o bagaço, portámo-nos como idiotas
com aqueles cabrões. Nas palminhas, sobras do rancho,
repelente de insecto para o reumático, lições de leitura,
medicamentos, protecção dos turras. Dois contos por uma
selvagem que nem foder sabia é um autêntico roubo.
Entrem, convidou amavelmente o senhor loiro: um pau de
incenso ardia numa espécie de castiçal fininho, de prata,
patinhava-se até aos joelhos em tapetes de pêlo alto, de cores
indefinidas. Já havia imensos caixotes de madeira e de cartão
preparados para eles mas foi um sarilho que nem sonha
arrastarmos aquela tralha toda, escadas abaixo, do sétimo
andar para a rua, arrumá-la na camioneta com mantas e cordas
(uma chuva, como de bolhinhas de sabão, vogava no ar),
tornar ao apartamento a empurrar mesas e armários, e quanto
mais cangalhada trazíamos, meu capitão, mais me dava a
impressão de faltar, cadeiras, módulos, consolas, arcas,
cómodas, o velho suava, vítreo, cambaleando sob tanto lixo,
este saco de dicionários, esse volume de ripas, aquele fardo de
pratos e terrinas, Vai-lhe dar um desmaio, pensou o soldado,
vai cair aqui redondo não tarda, o mudo, de cigarro entalado
na orelha como um lápis de merceeiro, materializava-se e
desaparecia, incansável, à laia dos cucos dos relógios.
— Porque é que não se matricula no ciclo?, perguntou a
rapariga num distante interesse educado.
Acabaram de encher a camioneta e regressaram lá acima, ao
tapete hirsuto no qual se caminhava como numa espécie de
pântano, a mergulhar as botas no lodo espesso das crinas. O
senhor loiro, que possuía de certeza mais sessenta anos que
cinquenta, estalando numas apertadíssimas calças roxas de
cetim, disse hesitante Faltam as tintas, preciso de um de vocês
para me ajudar a embalá-las, apontou num requebro o retrato
do preto e acrescentou O Desiré está na vivenda à vossa
espera, os empregados das mudanças olharam uns para os
outros, indecisos, Tu aí por exemplo, sugeriu o loiro sorrindo-
me (e as pestanas flutuavam docemente como os cílios
pequeninos dos peixes de aquário), não me queres dar uma
mão, tufos grisalhos emergiam dos intervalos dos botões da
camisa, o mudo e o velho sumiram-se no vestíbulo, o som
duplo da porta que se abriu e fechou, o assobio remoto do
elevador, comecei a colocar as tampas nas latas, a embrulhá-
las em revistas antigas, a empilhá-las num canto, e o raça do
homem observava-me, meu capitão, sem deixar de sorrir,
usava no pulso uma coisa esquisita de prata a imitar uma
grilheta de forçado e um anel enorme com uma gravação
complicada, o autocarro imobilizou-se como um cacilheiro
atraca, estendi o braço para a Odete se segurar ao apear-se e
senti no tecido a gavinha rápida, alerta, dos seus dedos.
Seguiam a pé, lado a lado, sem encontrar palavras,
carrancudos como dois estranhos, o soldado procurou um
cordel para atar os pincéis, Devo ter um bocado de guita no
meu quarto, lembrou-se o das calças roxas, vem buscá-la
comigo, ao alcançarem a casa do tio puxaram ambos da chave
ao mesmo tempo, a alcatifa verde era ainda mais alta, mais
fofa, mais de algas e limos e tenras e aéreas substâncias do
mar, e logo à entrada o senhor loiro segurou-lhe no ombro,
Lindinho lindinho sussurrou ele à procura do fecho da ganga,
apetece-me chupar-te todo toma quinhentos escudos pela tua
ternura, a nota dobrada crepitou-lhe no bolso, empurraram a
porta e o escuro da casa era maior, mais denso e fechado do
que o escuro da noite, a respiração pedregosa do tio vibrava e
refluía ao longo das paredes invisíveis nas trevas, tal como a
água escorre, no inverno, dos muros muito antigos de Sintra,
Tanto dinheiro, meu capitão, fazia-me um jeito do raio nessa
época, o senhor loiro cheirava a terebintina, a remédio, a
velhice e a perfume de mulher, desabotoou-lhe o uniforme das
Mudanças Ilídio beijando-lhe o pescoço, os sovacos, o peito, o
ventre, Eu não sentia nada, meu capitão, pela minha felicidade
que não sentia nada, só cócegas e medo e ganas de me rir.
Aposto que não me convida a entrar no quarto dela, pensou o
soldado, aposto que vai trancar-se a estudar, entreviu a luz de
repente acesa, uma enciclopédia numa prateleira, uma mesa
escavacada e meio rosto da Odete na frincha Até amanhã, o
outro desatou-lhe os atacadores das botas de lona, tirou-lhe as
meias e principiou a lamber-lhe os tornozelos e a barriga das
pernas enquanto lhe estendia as unhas envernizadas para os
testículos, lhe encaracolava os pêlos, lhe afagava o pénis com
a palma polida por cremes e loções. Até amanhã, respondeu a
encaminhar-se para o esconso, sem coragem de a convidar
para o cinema, para o Jardim Zoológico, para passear na
Avenida, para atravessar o rio de barco, o loiro deitou-o de
costas na alcatifa como os náufragos na praia e procurou-lhe o
espaço de entre as pernas com a boca esticada, Com os
quinhentos escudos posso levá-la a jantar fora, oferecer-lhe
mariscos, vinho fino, meia lagosta, santola, as mulheres são
uma questão de dinheiro, Que bom o suor das tuas virilhas
meu tesouro, rosnava o da pulseira lá em baixo, a uma
distância, meu capitão, incomensurável de mim mesmo, Que
bom o sabor dos teus tomates queridos, o céu da janela
acastanhava-se devagar como uma aguada suja, um repuxo de
fios sem lâmpada descia por um buraco do tecto, as falanges
não cessavam, pacientes, de lhe torturarem as nádegas, Dois
contos, meu capitão, imagine só o exagero para dar o jeito a
uma escarumba. O soldado percebeu que o senhor se despira
também porque lhe sentia a carne nua contra a pele dos rins,
Amanhã compro-lhe um anel, um alfinete, um lenço, uma
prenda assim, amanhã tenho dinheiro para a trazer de táxi para
casa, me matricular na escola, arranjar um fato às listas que a
faça cair de cu apaixonada. A penugem da alcatifa cheirava-
lhe a cubata, vivia com o Desiré, meu capitão, um preto
gigantesco do Senegal, de argola na orelha, que esculpia pelos
cantos manipansos horríveis, a janela diluía-se a pouco e
pouco, os contornos das coisas diluíam-se a pouco e pouco, os
próprios ruídos se diluíam a pouco e pouco num zumbido
único de sons, Que músculos lindinho, e no preciso instante de
se vir escutou distintamente, no corredor, o trinco dela que se
fechava, lá atrás, nas trevas, como uma porta derradeira.
6

O tenente-coronel chegou à sua mesa na messe, e os dois


majores e o capelão, que o esperavam a conversar diante dos
pratos vazios, levantaram-se a compor a gravata numa pressa
desajeitada. Pelo arrastar disperso das cadeiras do refeitório
percebeu que os outros oficiais se colocavam em sentido
também, e distinguiu vagamente, desinteressado, rostos
conhecidos que o olhavam, dois ou três ordenanças de casaco
branco, os horríveis óleos da parede representando paisagens
africanas (queimadas, rios, cubatas, florestas), as janelas de
cortininhas de plástico diante do posto de socorros e dos
alojamentos dos soldados, tudo velho, poeirento, baço, sem
alma. Acenou o queixo em torno, sentou-se, escutou de novo o
som enervante das cadeiras no soalho de azulejo, pensou Puta
que vos pariu a todos, e inclinou-se para que lhe servissem a
sopa, Aquela água enjoativa do costume, lembra-se?,
perguntou-me ele, bolhinhas de azeite e folhas murchas de
hortaliça. O reboco do emblema da unidade desbotava as
insígnias bélicas sobre a sua cabeça, as vozes subiam e
desciam num zumbido de vagas, diluídas na areia quadriculada
das toalhas. Os de casaco branco recolhiam o caldo e
aproximavam-se com enormes travessas de cozido.
— Para mim a morte, disse eu às filas paralelas de
pauzinhos, não eram os quartos vazios, sem ninguém, de que o
meu tenente-coronel falou: eram as messes ao almoço e ao
jantar, homens de olhos de vidro mastigando, vencidos,
pedaços de batatas e de carne numa sala decrépita, à espera
dos enormes navios obesos que os transportassem para a
guerra.
— A gente via-os entrar, aflitos, enrascadíssimos,
implorativos, pela repartição dentro, com pastas cheias de
análises, de electrocardiogramas, de relatórios e de atestados
médicos debaixo do braço, explicou o oficial de transmissões
cujos pés-de-galinha se mantinham jovens e cépticos na
moldura dos óculos. Curvavam-se diante do azedume dos
sargentos, desdobravam-se em vénias, rodopiavam em círculos
obsequiosos, Interesse-se pelo meu caso, amigo, dê uma
espreitadela à minha ureia, tenho uma cirrose, um cancro, uma
doença de espinha, três comissões no bucho, não consigo
embarcar, arranje-me uma junta que me safe disto, uma
artimanha, um artifício, uma marosca, uma manobra qualquer,
suavam, alargavam o colarinho, repuxavam o blusão a exibir
as pregas trémulas do ventre, Repare só nesta miséria, na
barriga de água que a Guiné me fez. Esses velhos traziam
tanto medo da morte nas trombas que nos davam mais pena do
que nojo, meu capitão, mais desprezo do que raiva, e ei-los
que voltavam no dia seguinte, e no seguinte, e no seguinte,
com novas lamúrias, novas queixas, novas choradeiras, novas
provas: os sargentos aceitavam regiamente os papéis, Vou
apensá-los ao seu processo, meu coronel, vou enviá-los hoje
mesmo para o Serviço de Saúde, e logo que os tipos se
piravam, incrédulos e todavia esperançados, chinelando os
sapatos hesitantes nas tábuas da repartição, jogava-se no cesto
do lixo, rasgada, a ansiosa expectativa deles, e prosseguia-se
sem pressa, sem entusiasmo, sem calor, a batucar à máquina
monótonos e inúteis memorandos sem fim.
— Os capitães agitam-se, comentou um dos majores a
repetir o cozido, não aceitam a ideia do ministro sobre os
milicianos: para que serve a Academia, meu comandante, se
um gajo aparecido não se sabe de onde trepa quase tão
depressa como nós?
O tenente-coronel mastigava em silêncio, de cabeça baixa,
ouvindo a custo os oficiais como se a insónia da noite da
véspera houvesse interposto, entre as suas orelhas e as
palavras dos restantes, um vazio infinito que raras sílabas
desconexas e torcidas logravam dificilmente atravessar.
Acabou a carne, espetou a colher enfastiada no pudim, palpou
com a língua a falta recente de um molar, e bebeu, de olhos
fechados, duas chávenas seguidas de café, para encurtar um
pouco a incomensurável distância que o separava da
longínqua, quase inexistente presença gasosa dos outros.
— Reúnem-se à noite no quarto de um deles, levam horas e
horas a discutir baixinho, informou o capelão à procura, nos
bolsos, da latinha dos minúsculos comprimidos de açúcar dos
diabéticos, que depositavam na língua uma doçura
pulverulenta. Circula por aí um abaixo-assinado com centenas
de nomes e só peço a Deus que não se trate de uma traição dos
comunistas.
O mundo, à terceira xícara, principiou a tornar-se real,
palpável, nítido, desprovido dos fantasmas, das sombras e das
densas nuvens pesadas que o sono acumulara, e lhe pairavam
na cabeça de mistura com recordações prolixas, fragmentos de
namoro, piqueniques de verão, a mulher, então jovem, a sorrir
contra copas azuladas de pinheiros. Engoliu um cheirinho e o
gosto do álcool acendendo um rastilho de pólvora pelo
pescoço abaixo, acabou de plantá-lo na maçada morna do
quartel, na sala de jantar desconfortável da messe com uma
pavorosa jarra de flores em cada mesa (Mais feias do que estas
aqui, não acha?, perguntou-me enrugando-se sem vontade)
onde sujeitos condenados à guerra conversavam, discutiam ou
se calavam à espera que os recrutas reunissem na parada para a
instrução da tarde, num rumor preguiçoso de armas e de botas.
— Não se trata de comunismo, claro, disse o outro major,
mas não se pode negar que se passa de facto um esboço de
insurreição, haja ou não haja motivos de descontentamento. O
meu comandante reparou nas folhas policopiadas, nos
cadernos que os capitães entregam no bar, no desprezo
completo pelos canais hierárquicos obrigatórios?
Eu era capitão quando tu nasceste, pensou de súbito o
tenente-coronel, fora colocado em Vendas Novas, aos berros a
uma companhia de cadetes, mandaram-me chamar lá acima,
deram-me o passaporte, informaram-me Três dias e parabéns,
aguentei horas, fardado, na paragem da camioneta, com um
saco de lona na mão, a suar de alegria e de calor no meio-dia
de agosto, até que vi no aquário da maternidade uma coisa
amarela, inquieta, minúscula, de enorme boca
desmesuradamente aberta ululando sem som, tu. Vou começar
a chorar, temeu ele no corredor onde se multiplicavam
cochichos, visitas, homens que fumavam, de cigarro
envergonhado escondido na palma, enfermeiras sempre com
pressa, um senhor de bata e aspecto competente, vou começar
a chorar nas barbas desta cambada toda, a criança dormia
agora, de punhos fechados, igualzinha a mais meia dúzia de
bebés em berços gémeos, bateu embaraçado, tímido,
emocionadíssimo, à porta do quarto, e, sem esperar que lhe
respondessem, entrou.
— Eu não tive filhos na altura certa, meu capitão, disse-me
o oficial de transmissões a binocular o rótulo descolado, e
agora é tarde demais para o fazer. Há-de haver alguém, quando
eu esticar o pernil, que varra para a rua aquele lixo lá de casa.
O tenente-coronel ergueu-se, os majores e o capelão
ergueram-se, os oficiais estalaram as cadeiras numa pressa
respeitosa, passeou ao acaso pela sala um lento olhar sem
destino, caras sérias, cabelos curtos, fechados rostos militares,
atravessou rapidamente o bar, com a ordenança, também de
casaco branco, atrás do balcão, mesas de jogo ao fundo, sofás
de napa, bolorentas gravuras de batalhas, cheias de nódoas,
oblíquas na parede. O sol difuso iluminava as árvores do pátio,
com um lagozito de podres peixes vermelhos entre os limos,
um tenente barrigudo cumprimentou-o de longe. Subiu a duas
e duas as escadas para o gabinete, e o impedido, que dormitava
num banquinho à entrada, perfilou-se a abrir a boca. Das
bandas da secretaria escutava-se barulho tumultuoso de
intestinos: Carimbam, copiam autos, escrevem à máquina,
pensou o tenente-coronel, e sobretudo aborrecem-se como o
diabo a sonhar de quando em quando com a mulher do
cadendário antigo dependurado de um prego, onde os meses se
sucedem na mesma lisa chatice sem fim, a mulher nua e loira
cujo corpo se assemelha a uma risonha janela mamalhuda para
um vasto mar de carne. Rodou o manípulo, a mesa do
costume, os estandartes do costume, os armários do costume
repletos de pastas de cartão que não leria nunca, que se
recusava a ler, intermináveis relatórios confidenciais sobre a
Guiné, ou Angola, ou Moçambique, extensos comunicados
acerca da situação logística do Exército, autoritárias e
contraditórias ordens do ministro aos comandos das Regiões
Militares, Faça-se isto, faça-se aquilo e nada, compreende, se
fazia de facto, disse-me ele a encolher os ombros, a tropa era
uma espécie de máquina mole que se movia, vagarosamente
por inércia, nenhum sangue pulsava já no interior daquilo,
anos e anos de guerra tinham-nos empalhado, ressequido,
destruído, substituído o fígado, o estômago, os pulmões, os
nervos, por uma espécie, percebe você, de sumaúma sem vida.
E de ano a ano, foda-se, África.
— Ia lá de vez em quando, meu capitão, confessou o
soldado, se queria dinheiro para sair com ela, a levar ao
cinema, a uma esplanada, à praia. Uma ocasião estávamos nós
na cama, e nisto o preto apareceu em pêlo, a dançar, com
riscos e espirais de giz pintados no peito, e enfiou-se também
entre os lençóis, aos gritinhos: ganhei um conto de réis, por
aviar aquele casal de gatas que se arranhavam uma à outra,
tilintando pulseiras, apalpando-se as nádegas, mordendo-se o
pescoço, miando em francês. Claro que nunca falei disto à
Odete, sumia-me pelo chão abaixo se ela adivinhasse.
O tenente-coronel veio à janela, de mãos nos bolsos: os
pelotões evoluíam na parada, açodados pelos uivos ferozes dos
aspirantes, o vento levantava a espaços redemoinhos de pó que
embatiam contra as árvores, o muro, e os prédios em
construção a seguir ao quartel, de vidros marcados por grandes
cruzes brancas. Qualquer dia, pensou, os mestres-de-obras
logram assaltar o rio com os seus cubos sinistros, grávidos de
exaustas famílias sonolentas, que de manhã se reúnem em
montículos transidos na paragem do autocarro, onde as nuvens
de vapor de água das respirações se aparentam ao espaço
destinado às palavras das personagens das histórias de
quadradinhos. Um enorme tapete de horas desocupadas
desdobra-se, angustioso, à sua frente, o céu cor de café com
leite pressagiava chuva: grossos rolos escuros deslizavam
sobre os telhados desiguais, um cacho de furriéis jogava
futebol ao longe, no rectângulo de cimento rachado de mil
fendas, cercado pelos braços cor de prata dos plátanos. Um
cabo de muletas coxeou com dificuldade, pegado ao edifício,
na direcção do posto de socorros. O gabinete cheirava a cera, a
mofo, a papéis podres e a velhice: levantou o telefone,
guinchos, um clique rombo, uma voz masculina Sim?, O meu
carro na entrada principal, avisou com secura, vou descer
agora mesmo.
— De tempos a tempos olhava para mim, disse o soldado,
inclinava a cabeça e comentava Para quem arrasta móveis
andas alto de finanças. E eu Calhou-me a terminação na
lotaria, ou Recebemos uma gorjeta valente de um cliente
estrangeiro, ou Guardei este dinheirito para hoje, e oferecia-
lhe um sorvete no intervalo do filme, ou comprava bilhetes
para todos os carrosséis e todos os Castelos Fantasmas da
Feira Popular, os dois a comermos algodão de açúcar no meio
dos esqueletos de plástico e dos enforcados a fingir. O Desiré
adorava vestir-se de mulher e rodopiava na alcatifa, de unhas
compridas, sapatos de salto e cabeleira postiça, a fumar
cigarros americanos por uma boquilha de tartaruga, e o senhor
largava-me logo para se agarrar a ele, guinchando
excitadíssimo Je t’aime je t’aime je t’aime. Conheceram-se no
metropolitano, em Paris, meu capitão, o preto tocava flauta
numa plataforma inundada de barbudos a desenharem no
cimento para ganhar uns cobres, e o velhote apaixonou-se à
primeira vista e trouxe-o com ele para Lisboa, à custa de um
irmão rico que oferecia a alma para tapar o escândalo de um
paneleiro na família, um engenheiro importantíssimo, dono de
fábricas, de empresas, de negócios, com um cancro na tripa, a
cagar por um tubinho de metal enterrado no umbigo.
O engenheiro nunca o vi, meu capitão, só soube dele porque
comprava por esmola os mamarrachos que o senhor pintava e
os devia queimar a seguir ou oferecer aos pobrezinhos no
Natal, o tenente-coronel passou defronte do gabinete ainda
fechado do segundo comandante (Aposto que vai na quarta ou
quinta aguardente, lá em baixo, na messe, já rubro, já confuso,
já misturando as palavras e as mãos), desceu as escadas e eis o
automóvel preto, de condutor instalado ao volante e rádio aos
gritos como de costume, um cabo miúdo, magrinho, gingado,
chofer de táxi no civil, que sucedera ao ruivo do comandante
anterior, o qual acabara a tropa o mês passado. Entrou no carro
sem dar tempo de lhe abrirem a porta, e recostou-se, enjoado
pelo eterno cheiro de tabaco, contra o banco sujo. Talvez que
afinal não chovesse nessa tarde: nenhum vento agitava agora
as folhas largas das árvores, as sombras imprimiam-se,
móveis, no cascalho, aproximando-se e afastando-se numa
nitidez ondulante. As orelhas do condutor inclinavam-se para
trás como as dos cavalos de carroça, à espera de uma ordem
que tardava, os tendões (ou veias?) da nuca estremeciam, o
motor do Volkswagen, ligado, soluçava. O tenente-coronel
libertou a janela do seu lado, rodando o pedaço que sobrava da
alavanca quebrada, e respirou sem entusiasmo o ar seco e
poeirento do pátio: Para minha casa, mandou ele.
— Fazia isso muitas vezes nessa época, disse-me a
aperfeiçoar a posição dos pauzinhos na toalha. (Tantos cabelos
brancos, curtos e ralos, pensei, e a pelada a alargar na
moleirinha do gajo.) Se apodrecesse mais um minuto no
quartel rebentava, de forma que seguia até à Torre de Belém,
ou aos Jerónimos, ou ao Guincho, ou para o Cais de Alcântara,
e no resto da tarde, sem me levantar do banco, fumava cigarros
e olhava a água, os navios atracados, o limo das pedras, as
crianças. Não, nunca me preocupei com o que o cabo julgava,
que se fodesse o cabo. Anoitecia e eu ali, calado, a ver as cores
raiadas do crepúsculo, as fábricas da Cova da Piedade que se
afundavam no escuro, as luzes e o seu reflexo invertido,
estilhaçado, amarelo, a flutuar no óleo preto das ondas. E
depois, a pouco e pouco, comecei a entender-me com os
odores, o relento podre da maré baixa, o aroma livre,
selvagem, de crinas ou cabelos de rapariga nova, da enchente,
o odor de vagina de velha, ureico e áspero, da terra sem chuva,
o perfume de jacintos ou de cadáver em decomposição das
traineiras ancoradas. A brasazinha do cigarro que se agitava e
minguava, os fulanos à minha espera na messe, impacientes,
de colher na mão, espiando a porta na esperança de me verem
entrar de um segundo para o outro, Aquele cabrão na moinice
e a gente aqui a aturar-lhe as loucuras, o cabo, esse, nem piava,
de uma ocasião ou duas num ano inteiro pediu-me autorização
para mijar, vi-lhe a silhueta desfocada, filiforme, muito direita,
atrás de umas moitas, mas nessa tarde, inesperadamente, saiu-
me sem querer, pela boca fora, Para minha casa, e você nem
calcula os sarilhos que eu arranjei por causa disso.
— Não era a primeira vez que me acontecia, eu já topava o
jogo à légua, declarou o soldado que engrenara no medronho e
o bebia em grandes goles ávidos e zangados, mas por dinheiro
sim. Antes da tropa trabalhei numa oficina de bate-chapas em
Arroios, e havia quem arredondasse o ordenado no Cais do
Sodré, na Avenida 24 de Julho, na Praça da Ribeira: um
mangas encostava-se a um candeeiro e pronto, os maricas
desatavam a zumbir à volta como moscas no verão, duzentos
escudos, trezentos escudos, seiscentos escudos, os velhos bem
vestidos escorregavam um conto de réis em troca de umas
carícias murchas, silenciosas, aflitas, furtivas, com medo das
patrulhas da polícia ou dos secretas à paisana, no vão de
escada mais próximo. Os colegas convidavam-no para os
acompanhar, Anda gozar um bocado à pala dos xexés, mas
quedava-se a espiá-los de longe, entornado num banco, e
ajudava-os depois a trocar o dinheiro por cervejas e caracóis
nas espeluncazitas imundas da parte baixa da cidade,
frequentadas por estivadores, putas exaustas e mendigos
bêbados, à medida que a manhã lúgubre crescia do rio numa
claridade baça de espuma de sabão, tingindo as lívidas casas
oxidadas da margem do seu vapor indeciso.
Só em África, veja lá o que é a vida, meu capitão, é que
perdi os três e fui eu quem pagou.
O tenente-coronel não visitava a casa há um mês, e o prédio
afigurou-se-lhe mais pequeno e mais antigo do que a
recordação que conservava, um cubo de quatro andares logo
junto aos Bombeiros e ao seu aparato encarnado de camionetas
e de escadas, pegado a outros cubos idênticos, de aspecto
modesto, salpicados de mercearias, capelistas, retroseiros. O
sol a pino na rua desfazia as sombras, um grupo de rafeiros de
pálpebras chorosas perseguia com os focinhos moles um
traseiro altivo de cadela. Nos intervalos dos prédios cintilava,
sobre os telhados, a placa reverberante do rio, cruzes de
cemitério, arbustos microscópicos, edifícios minúsculos,
distantíssimos largos.
— Morei naquele sítio vinte anos, disse o tenente-coronel a
cravar no espaço entre os meus olhos as pupilazinhas escuras e
agudas, e parecia-me que nunca reparara no bairro até então,
que nunca notara os azulejos, os arrebiques de estuque das
fachadas, o jardinzito com coreto e as raízes anémicas
queimadas pelo chichi clandestino dos miúdos e dos gatos, as
apáticas caras desocupadas das pessoas. De modo que me
apeei do carro como num país desconhecido, estrangeiro, em
que se aterrou por acaso, a perguntar a mim mesmo Mas que
caralho é isto, onde é que eu vim parar?
Despediu o motorista com uma fugidia pomba de dedos a
caminho de nada (Torna a buscar-me às cinco) e permaneceu
por momentos imóvel, buscando reconhecer a forma e a
tonalidade dos sons, procurando em vão reunir lembranças
esparsas que sem cessar lhe fugiam. Como a gaita do tempo
nos escapa, pensou ele, que mesmo a imagem da mulher se
diluía e evaporava lentamente, substituída pela carranca dura e
autoritária da filha que o visitava de quando em quando no
quartel, Está lá em baixo uma menina, meu comandante, para
tomar conta dele, vigiá-lo, criticá-lo, ralhar-lhe do seu
descuido, da sua desarrumação, do seu desleixo, comunicar-
lhe que a porteira, a qual tinha o marido há anos em França na
construção civil e não parecia nada arreliada com o facto, se
ocuparia uma vez por semana da limpeza do andar até o pai
tomar juízo (Como se conversasse de uma estroinice, de uma
birra de miúdo, disse-me ele a aceitar um charuto, como se eu
andasse realmente na borga ou amuado com a família) e
resolver voltar.
— A minha filha tinha uma força dos diabos, rematou o
tenente-coronel desorganizando as três fieiras de palitos com o
cutelo da mão. Suponho que já decidira separar-se do marido
nessa época, porque sempre que se lhe referia punha uma cara
de figadeira que só visto.
O que venho aqui fazer?, interrogou-se, perplexo, a mirar as
frontarias, as lojecas, a relva acastanhada do parquezito que
um funcionário da Câmara penteava com o ancinho, o que é
que esta casa me interessa? Não conhecia os vizinhos excepto
o casal de reformados do segundo direito, melancólicos e
humildes, que uma noite, de chinelos, atropelando-se um ao
outro para conseguir falar, lhe pediram que protegesse o
afilhado das ciladas da tropa, lhe arranjasse uma colocação de
escriturário ou de faxina, olhasse por ele, senhor major
(porque era major nesse tempo, da mesma maneira que hoje, e
alargou-se numa espécie amarga de sorriso, aguardava por dias
a promoção a general), não consentisse que lhe distribuíssem
trabalhos muito duros ou o tratassem mal, o mandassem dar
tiros para África. O tenente-coronel, estupefacto, manteve-se
silencioso a conversa inteira, de Selecções nos joelhos, a ouvi-
los, e foi a mulher quem salvou a situação oferecendo um copo
de água à velhota e um anis ao senhor, cujo vestia um casaco
de quarto agaloado, no fio, e calças creme compridas demais
tombando em pregas sucessivas sobre as pantufas de xadrez,
enquanto lhes garantia que sim, que se fariam os possíveis
dona Inês vá descansada, o Artur é assim calado mas
preocupa-se imenso com as pessoas, se ajudou o neto da
proprietária da capelista o que não seria com eles, outro copo
de água, outro cálice de anis, só a morte não tem remédio
senhor Barbosa, não incomodavam nada, ora essa, o Artur até
se ofendia se não o procurassem. Agora sim, pensou a abrir a
porta, a chamar o elevador, a acender um cigarro, vinham-lhe
à memória as feições da defunta, a boca estreita, o pescoço
curto, o nariz, as sobrancelhas depiladas, vinham-lhe à
memória momentos, episódios, diálogos, lugares, o padrasto
fiscal das Finanças a medi-lo com animosidade, a mãe
provinciana, gorda, cúmplice, favorecendo encontros,
momentos a sós, inventando pretextos para os deixar sem mais
ninguém na sala, hirtos no canapé de palhinha, ele fardado de
cadete, ela a esticar a saia a mãos ambas, indecisos,
apatetados, mudos, sem se atreverem a tocar-se. Pisou o tapete
de borracha do elevador e encontrou um homem de rugas
fundas e patilhas grisalhas no espelho, nos traços opacos do
qual se prolongava, misteriosamente, algo da patética
inocência do cadete perdido, o homem que barbeava
diariamente agora e através de cuja garganta saía, por um
acaso estranho, a sua própria voz. O pai, de bengala ao colo,
instalado na poltrona de inválido, inclinou os beiços para a
orelha a fim de conseguir falar:
— Os anos passam, rapaz, os anos passam, regougou ele
numa satisfação satânica.
São os anos que passam, perguntou o tenente-coronel ao
homem das rugas e das patilhas grisalhas, que o fitava numa
careta indecifrável e hostil, ou nós nos aproximamos,
independentes do tempo, de uma cama qualquer numa clínica
qualquer, da nebulosa de dor que antecede o tranquilo vazio
completo da morte? Como o pai morreu, durante o sono, na
cadeira de orelhas (demos por isso pelo som de pauzinho de
mikado da bengala quando caiu no chão), como o queixo da
mãe desabou ao jantar no prato de esparguete e os olhos
permaneceram boiando, atónitos, sobre o queijo ralado, como
tu morreste entre moribundos e esverdeadas caveiras de
judeus, como os oficiais e os soldados morriam na guerra,
quando a poeira e os estampidos e o odor da pólvora se
dissolviam e se topavam os corpos ainda na cabina dos carros
ou ao acaso no capim, ameaçadoramente quietos, gritando sem
som ou protestando sem palavras, como nós morremos aqui,
nosso capitão, neste restaurante de bairro, instalados a uma
mesa interminável 1081 António Lobo Antunes cheia de
côdeas e de copos, a embebedar-nos da aguardente barata do
nosso próprio velório.
— Os anos passam, rapaz, repetia carnivoramente o velho,
de frágeis ombros de caniço protegidos por uma faixa rota de
xaile. Ah foda-se, rapaz, os anos passam.
O patamar cheirava a detergente e a cera, e para além da
porta combinavam-se ruídos enérgicos de limpeza, a digestão
eléctrica da máquina de lavar roupa, uma voz alegre que
cantava:
— Ainda me senti mais estranho com o barulho, disse o
tenente-coronel à procura de cinzeiro por entre a multidão de
louça devastada, e acabando por se servir, numa manobrazinha
dextra que me surpreendeu, do rebordo da chávena: o cilindro
de cinza descolou-se devagar e a brasa redonda, vermelho
pálida, do charuto aparentava-se, em pequenino, à difícil
laranja do sol no nevoeiro. Esperava o silêncio do costume,
explicou-me ele, o sossego de jazigo do costume, a
imobilidade dos objectos nos lugares do costume (a minha
filha até o periquito me levou), apetecia-me trotar por ali à
vontade, vasculhar gavetas, correr o dedo pelas porcelanas,
despir-me, estender-me nos lençóis, de olhos fechados, deixar-
me, sabe como é, boiar no colchão, de mãos na nuca, livre de
ideias, de projectos, de remorsos, e encontro uma autêntica
revolução num terceiro andar da Graça, água a correr, espuma,
a telefonia acesa, alguém que batia o tapete da entrada na
varanda, em grandes pancadas vigorosas de eficácia furibunda.
Hesitou, quis voltar para trás (a luz do elevador que o
transportara apagou-se, escutou o assobio do outro que se
punha sacudidamente em movimento), acabou por empurrar a
medo, como um gatuno, a porta do vestíbulo, por introduzir o
nariz pela frincha, por ver uma silhueta remexida de mulher
ainda nova ao fim do corredor, circulando entre o seu quarto e
o que fora dantes o da filha e se transformara agora numa
espécie de arrecadação no interior da casa, repleta de malas, de
pilhas de abajures rasgados, de um cesto de verga atulhado de
bonecas e de jogos (Os anos passam, rapaz, os anos passam,
prosseguia imperturbável a voz sardónica do velho), um
fragmento quebrado de talha, horrorosos manipansos
africanos. O andar (elucidou-me ele depois) cessara de ser o
andar que conhecia, o silêncio, a ordem, a ausência de pó, de
exaltação, de movimento, e excitou-o a curiosidade de
presumir o que poderia ter sido o seu longo tempo de casado,
se no lugar da morta uma criatura diferente habitasse com ele
o prediozito da Graça num rebuliço barulhento, excitou-o
calcular até que ponto a sua vida se modificaria, se tornaria
feliz ou infeliz se a cama do quarto uivasse jubilosos gritos de
batalha em vez do morno recato habitual, em que os corpos se
aproximavam, castos, de lâmpada apagada, tacteando-se a
medo para coitos imóveis de borboletas.
— Boa tarde, senhor tenente-coronel, desculpe a
desarrumação.
O sorriso (lembrou-se) com o dente de oiro à frente, o
grande peito espetado, o olhar seguro, irónico, desafiador: o
corpo da porteira enchera, as ancas fumegavam ainda como as
de um animal que estaca, calçava chinelos de plástico,
segurava o cabelo com um lenço de varina: Aos domingos via-
te sair para o cinema e as tuas coxas de égua e os teus firmes
flancos musculosos acendiam em mim como que uma tremura
de desejo, a tontura de quem se levanta depressa e sente a
cabeça, leve como uma bolha, a vogar, independente do
pescoço, na espessura do ar. O que teria sucedido ao filho?,
pensou o tenente-coronel recordando-se da criança magrinha,
pálida e séria, de gatas no chão, à entrada do prédio,
empurrando um comboiozito de madeira. Morrido, interno
num colégio, em França com o pai? Principiou a navegar ao
acaso nos compartimentos sem saber o que fazer (O que se
passa comigo, onde estou eu de facto?), ensurdecido pelos
tangos do rádio, vendo através das janelas o quartel dos
bombeiros, o parque, ruas que desciam, íngremes, na direcção
do rio, a manteiga do céu claro nos telhados, leves nuvens que
lhe circulavam igualmente no sangue, a comichão
envergonhada e agradável de se sentir acompanhado, de
partilhar aquele túmulo decorado de gravuras antigas e de
sofás cobertos nas costas e nos braços por mantas de crochet,
enquanto a porteira risonha, resplandecente e flexível
despejava um balde na retrete e limpava a banheira armada de
um enorme frasco de pó, apoiando no rebordo a curva da
cintura. A essa hora os pelotões de instrução formavam na
parada, e o major, de mãos atrás das costas ao lado do clarim,
ladrava ordens a uma floresta de espingardas.
— A gente andava há treze meses sem mulher, justificou-se
o soldado a afastar o cabelo da testa com os dedos áridos.
Treze meses, meu capitão, com a guerra, e os mortos, e a falta
de comida, e a falta de cigarros, e o paludismo, e os ratos na
caserna, diga lá se não é tempo a mais aos vinte anos. (Mais
meia hora e estás grosso, pensei eu, o briol caiu-te
atravessado.) Hoje, para sua informação, aguentava um século:
um sócio caleja-se, ganha chifres no cu com os coices que
apanha. De maneira que se a tesão me apertava ia ao posto de
sentinela da sanzala, chamava o primeiro preto que aparecia,
dava-lhe vinte escudos e mandava-o arriar as calças ali
mesmo, atrás do zinco e da madeira. De metralhadora na
direita e nota na esquerda não há quem não obedeça ao que lhe
mandam, pianinho, calados, e para a frente que é serviço.
Vinte escudos, meu capitão, vinte escudos para me vir na
peida de um escarumba apatetado, os dois a tremermos, como
folhas, de raiva e de nojo. (E o silêncio da mata, disse-me eu, o
aroma de sovaco podre da terra, as capas de oleado sobre os
canhões sem recuo, homens fardados vagueando ao acaso
pelas cabanas de palha, uma negra antiquíssima, de cócoras,
embrulhada num pano, a cozer lagartos em brasas exangues.)
De cada vez que me lembro (a pele esticou-se nas têmporas,
uma veia arroxeada pulsou-lhe na testa) por pouco, seja cego,
que não desato a vomitar.
O tenente-coronel cirandou um pedaço no apartamento,
atemorizado, perdido, tentando despertar o mínimo barulho
possível (mas as tábuas rangiam, mas as solas rangiam, mas as
articulações se calhar rangiam, e a sua respiração de súbito a
ferver, rangia, ocupando por inteiro o espaço do andar),
enquanto a porteira, de joelhos, nua por baixo do vestido,
esfregava os azulejos, a sereia dos bombeiros desenrolava o
seu apelo, calava-se, tornava a tocar, Onde será o fogo?,
perguntou a mulher em voz alta levantando a cabeça para ele,
os peitos subiam e baixavam, inchados, sob a roupa, Ainda
serei capaz, interrogou-se o tenente-coronel, ainda
conseguirei?, os olhos mediam-no a desafiá-lo, a sereia
afogava as palavras e os gestos no seu uivo espiralado, as
cadeiras estremeciam, os armários estremeciam, as fotografias
estremeciam nas molduras, as mesinhas de cabeceira
estremeciam, a própria cama estremecia e nós estremecíamos
ambos, disse-me ele, desajeitados, confusos, aselhas nos
lençóis, sobravam pernas, dedos, pregas de barriga, beijos, o
fôlego faltava-me, o pai rejubilava na poltrona de inválido, os
anos passam, rapaz, os anos passam, os calcanhares da
empregada apressavam-me os rins, Ande lá ande lá ande lá, o
braço fincado no pescoço obrigava-me a lamber a almofada,
Vou morrer, pensou o tenente-coronel em pânico, uma mola
qualquer vai-se quebrar em mim, fechou as pálpebras e a
esposa e a porteira sobrepunham-se numa única imagem
vacilante, a sereia curvou-se em torno de si mesma e cessou,
num suspirozinho, como uma luz se apaga, e ao voltar-se no
colchão para se levantar, ao sentar-se com o sangue ainda aos
pulos no ventre, distinguiu, primeiro ao espelho do guarda-fato
e logo depois, rodando a cabeça, na moldura da porta, a filha
que os mirava do umbral, cobrindo a boca aberta com a mão
numa infinita surpresa de criança.
7

Ninguém trabalhava de farda na repartição, e se não fossem


os poucos soldados que aguardavam ordens nos corredores
pestilentos, lendo o jornal, instalados em cadeiras de bispo,
diante de largas secretárias majestosas, poderia julgar-se em
qualquer velho e poeirento escritório nas imediações do rio,
com os cacilheiros e as gaivotas a esbarrarem, enormes, contra
as varandas fechadas, e a língua de água suja do soalho,
carregada de detritos, baloiçando para trás e para a frente
gemidos desencontrados de tábuas. A estátua do rei D. José, ao
centro da praça, trotava imóvel na direcção da Índia, em busca
de concubinas de oito braços. Mendigos cegos vendiam
inutilidades debaixo das arcadas, fitando as pessoas com o
pasmo lirial das órbitas, e a cortina do céu pianolava na outra
margem os dedos de luva das nuvens.
— O meu trabalho lá, meu capitão?, perguntou o oficial de
transmissões a bater no copo de vinho com a colher do leite-
creme. Levantava processos e autos, arquivava fichas, coçava-
me, aborrecia-me de morte, tentava doutrinar cautelosamente
alferes e sargentos mongolóides e idosos instilando-lhes nas
ervilhas das cabeças doses homeopáticas de marxismo. E
contribuía para a sociedade sem classes a esfalfar-me a
explicar, ao major na reserva, à hora do almoço, as vantagens
das democracias populares.
Comiam nos becozitos estreitos que rodeavam a praça,
semelhantes a um novelo de veias embrulhando o inchaço de
um tumor, em restaurantes minúsculos, malcheirosos, mal
iluminados, de ementa escrita a giz na ardósia da parede e um
zumbido constante de vozes nadando na penumbra. O dia
cessava por completo de existir nessas brumas de fumo onde o
odor do assado se prendia, como uma tarântula de mil patas
oleosas, às mechas do cabelo, o major escutava-o, abúlico, a
palitar os dentes, um coxo de ademanes grandiosos e cravo na
lapela cirandava de mesa em mesa exibindo em vão harmónios
de lotaria, o empregado retirava o lápis da orelha para somar a
conta na toalha, puxava, de uma espécie de bolsa de pano sob
o avental, as notas amachucadíssimas e desbotadas do troco: e
de novo as arcadas, a estátua, os naviozitos gordos que
atracavam e partiam com as cigarrilhas das chaminés
enterradas na boca, um sujeito manhoso a tocar acordeão, de
boné sem moedas aos pés. O conceito de democracia, meu
major, existe desde os Gregos que o mesmo é dizer há que
tempos, foram até os gajos por sinal que inventaram a palavra,
imagine, velhas a pedirem esmola, crianças sujíssimas,
ciganos deformados exibindo silenciosamente a miséria dos
cotos ao povo que trotava, apressado, para os barcos, ou seja o
governo da maioria, entende, o nosso governo, e dali a um
quarto de hora compulsava desconsoladamente papéis, tomava
notas, batia à máquina, talvez que se pudesse recuperar o
furriel magrinho lá do fundo, talvez que o tenente que de
tempos a tempos inclinava a calva para trás e vertia em cada
narina, como se executasse um exercício de circo, três pingos
contra a sinusite, não fosse por completo fascista. Porque
continuava a acreditar, meu capitão, porque continuei a
acreditar, palavra de honra, durante uns anos mais, e agora,
que não creio em nada, a que é que um tipo se segura?
— Meses e meses, lamentou-se o oficial de transmissões, a
almoçar em tascas de má morte que me foderam o estômago e
as tripas na companhia de desgraçados tiranizados pelo sangue
das hemorróidas e por vinte ou trinta anos de sopa de legumes
com feijão, que aos domingos, de pijama e cara fosca de
barba, regavam as flores da varanda sonhando com a absoluta
imobilidade da reforma. Sentado à secretária, aturdido no meio
das respirações ovinas dos colegas e dos seus repugnantes
suores pegajosos e turvos, o oficial de transmissões imaginava
vastas searas de camponeses de punho belicamente erguido,
rudes, responsáveis, sérios, capazes de tornarem o universo em
qualquer coisa indefinida mas obviamente estupenda, um
pouco do mesmo modo, percebe, que os paralíticos anseiam
por um recorde de velocidade. E no entanto a irremediável
presença sonâmbula do rio, o quotidiano vaivém dos
cacilheiros, a chusma dos mendigos nas arcadas, insinuavam
nele, de quando em quando, o novembro de uma dúvida ácida:
e se não fosse possível, e se não conseguíssemos nunca, e se o
tio Marx se tivesse, meu capitão, enganado? Nesses dias os
folhetos que lhe entregavam para distribuir, depois do serviço,
nos gabinetes despovoados, afiguravam-se-lhe toscos e tolos
contos da carochinha para aldrabar ingénuos, o trabalho do
Olavo, do Emilio, do Careca surgiam-lhe como tarefas sem
sentido, e regressava para casa a pé, de mãos nos bolsos, a
tropeçar nos candeeiros e nas pessoas, de noite a descer
lentamente dentro dele como nas avenidas da cidade, primeiro
apenas um vago, hesitante traço rosa e azul escuro por cima
das gengivas dos telhados, depois uma imperceptível alteração
na tonalidade do ar e os sons mais agudos, mais estridentes,
mais sólidos, mais nítidos, a seguir uma penumbra vaga
tombando nas coisas à maneira de um véu de organza muito
ténue, a qual principiava a dissolver as árvores e as arestas das
casas, a aumentar a largura das ruas e a profundidade das
praças, e finalmente as lâmpadas dos candeeiros que se
acendiam, as silhuetas de súbito multiplicadas por duas, ou
quatro, ou cinco, ou oito, no passeio, o andar da tia, a mesa
posta, a Esmeralda na cozinha, a cadela a farejar-lhe os
sapatos, a melancolia apodrecida das salas, o oratório da velha
ao meio do corredor e a incrível multidão de santinhos de
barro em atitudes piedosas, disseminando em torno sorrisos de
retrós.
— O que nessa época custava mais na militância política,
meu capitão, disse o oficial de transmissões abandonando a
colher do leite-creme na toalha para avaliar as borbulhas do
queixo, era a falta de contactos, de amigos que nos
acompanhassem, da orientação dos camaradas. Cada um
esperneava para o seu lado, entende, longe dos outros, nunca
nos víamos, nunca nos falávamos, podíamos estar presos ou
mortos que só o sujeito invisível e desconhecido que nos
coordenava sabia, largávamos as informações, num envelope,
no balcão de uma pastelaria ou de um café mas não
obtínhamos resposta, nenhuma carta, nenhum sinal, nenhuma
voz ao telefone, nenhum fulano convicto e grave, de cara
enviesada, nos procurava, e tudo isso somado, caralho, dava
uma solidão do caneco.
Jantava à pressa o besugo sem sal da dieta da tia, sorrindo
vagamente, sem falar, às perguntas da velha em cujas
bochechas amarelas cresciam duros pêlos de homem (com o
andar das coisas qualquer dia ou te transformas em javali ou
morres e eu tenho de gramar o peixe inteiro sozinho),
introduzia o guardanapo na argola hexagonal de plástico, pedia
licença e fechava-se no quarto, estendido na cama, vestido,
sem desapertar os sapatos, a olhar as nódoas do tecto no
azedume fixo dos defuntos, ou a observar pela janela as luzes
da Feira, as barquinhas metálicas da Grande Roda que
balouçavam numa dignidade pausada muito acima das
varandas dos prédios, as vagonetas da Montanha Russa
rodopiando estrepitosamente nas calhas pouco firmes, erguidas
sobre uma espécie de andaimes, entre os guinchos de medo
deliciado dos viajantes. Até que de repente, uma manhã, ela
apareceu.
— Ela?, perguntou o tenente-coronel, surpreendido.
— Ainda fiz vários biscates na Feira, contou o soldado cujo
cabelo se despenteava a pouco e pouco em grandes mechas
grisalhas. Transportar a mobília de restaurantes inteiros,
mesas, cadeiras, balcões-frigoríficos, acarretar as pranchas e
os ferros dos Discos Voadores Electrónicos, atulhar a
camioneta com as girafas e os elefantes e os cavalos do
carrossel do oito, levar e trazer, desmontado, o Poço da Morte,
em que uns sujeitos de bigodinho e botas altas viajavam de
motorizada lá dentro. O mudo delirava sempre que havia um
trabalheco desses, especava-se pasmado defronte da tenda da
Ciganita Dora, onde uma mulher volumosa, sentada à porta, de
turbante na cabeça, assava sardinhas na brasa ou
vagabundeava connosco nas ruelas da Feira, nas quais os
artistas e os empregados, de camisa de ganga, ajustavam peças
e tubos em grandes marteladas enérgicas, e almoçavam à
sombra de um pedaço esburacado de lona, a pescar com o
garfo ossos de frango de marmitas amolgadas. Assim de dia,
com o sol a exibir cruelmente os remendos, a sujidade, a falta
de pintura e as chagas de miséria que as luzes disfarçavam,
tudo parecia mais pequeno, mais feio, muitíssimo deprimente
e desoladoramente pobre. Cães e galinhas trotavam por todo o
lado, garotas estendiam roupa nas traseiras decrépitas do
Mundo da Ilusão, e se havia vento um pó arroxeado erguia-se
em volutas do chão, e colava-se aos rostos e aos gestos,
sufocante e pegajoso. Perdia-se a vontade de comprar senhas à
noite, meu capitão, quando abriam os orifícios das bilheteiras,
a música se multiplicava nos altifalantes amarrados às árvores,
no Dancing Mónaco, por cima do salão de jogos, se
distinguiam ternas silhuetas estreitas de rapariga, criaturas
encafuadas em guaritas minúsculas vendiam perucas de açúcar
espetadas num pau, cabelos doces que se dissolviam na boca
numa brumazinha de fios. O mudo, a quem aquelas maravilhas
defuntas encantavam, petrificado numa fascinação imóvel
diante das jaulinhas do Rola-Rola ou das bruxas de pasta do
Castelo Fantasma, que mexiam as órbitas e bambeavam as
ancas empurradas por um inexplicável mecanismo qualquer,
acabou por chegar à fala com a Ciganita Dora, que os
convidou a comer no interior da tenda, luxuriante de
estrelinhas de papel prateado, ossadas de plástico e reposteiros
negros. A Ciganita Dora, de nome verdadeiro Alice da
Purificação Fialho Cruz, tirou a bola mágica do centro da
mesa, largou-a no chão como um objecto qualquer e o velho
recuou, intimidado, até à porta: Ela, insistiu o tenente-coronel
a apontar o garfo ao oficial de transmissões, quem era ela?
Calmaria, não tenha receio, disse-lhe a dona Alice, é um
bocado de vidro que não vale um traque. Deu um prato de
bordas rachadas a cada um, meu capitão, trouxe uma travessa
de sardinhas, e instalaram-se os quatro a mastigar, com os
cotovelos nos signos complicados do Zodíaco. Um vestido de
cetim, com planetas bordados, pendurava-se de um cabide de
plástico. A cartomante, régia e lenta, de duplo queixo, peito
imenso e carrapito antiquado, assemelhava-se às damas de
baralho, e o mudo encostava-se a pouco e pouco a ela como os
macacos pequeninos à barriga de feltro das macacas grandes.
O velho, desejoso de se pôr a andar, chupava cartilagens a
medo, agitado, inquieto, aflito, o tinto amolecia-nos as veias,
apalpávamos e beliscávamos os seios da dona Alice a pretexto
de a salvar da multidão de moscas que cirandava com
inalterável insistência entre rabos e espinhas, o mudo, já sem
firmeza, acompanhou a astróloga lá dentro, atrás de um
reposteiro de argolas, em busca da salada de pimentos,
escutou-se a cascata de um alguidar que se despeja, o tombo
de um banco, e dali a nada, meu capitão, começámos a ouvir
uns arquejos, uns suspiros, repuxar de tecidos, a tosse ansiosa
do gajo, cochichos que subiam e desciam no ar saturado da
tenda, o velho puxava o cotovelo do soldado Vamos dar o pira,
vamos embora daqui enquanto é tempo, a cigana amanda-nos
um mau olhado qualquer e ficamos cegos ou paralíticos das
pernas, o oficial de transmissões secou a testa e o queixo com
o guardanapo, escondeu-o de novo nos joelhos, desenrugou os
punhos da camisa, endireitou-se no espaldar da cadeira e
arredondou a boca como se fosse gritar:
— Ela, explicou baixinho. O contacto de que o Olavo me
prevenira, lembra-se?
Não esperava que fosse uma mulher, não esperava que fosse
dessa forma: habituara-se, no decurso dos secos anos
clandestinos, a homens diagonais e puídos, de discurso
demasiado circular ou excessivamente preciso, telegráfico,
lançado à pressa numa esquina, aos velozes maços de papéis
que lhe entregavam, sem o olhar, em inofensivos cafés
suburbanos em que senhoras viúvas beberricavam chás de
limão e debicavam rissóis, habituara-se a reuniões soturnas,
desfocadas de fumo, nas quais participavam, de tempos a
tempos, feiíssimas estudantes de Direito ou Medicina ou
Matemática, sectárias e ferozes, que destruíam
implacavelmente todos os argumentos com intermináveis
citações de Lenine. De modo que quando ela entrou na
secretaria, transportando uma pasta num dos sovacos e no
outro o livro de aventuras (O Regresso da Bisneta do Capitão
Blood) que servia de senha entre os membros da Organização,
de coxas a estalarem nos jeans apertadíssimos, de uma jovial
simplicidade desarmante, cumprimentando os sargentos que já
conhecia e se liquefaziam de vetusto prazer nas suas mesas
carunchosas, o oficial de transmissões, incrédulo, de boca
aberta, pensou Ou encarregaram os camaradas do concurso de
Miss Portugal ou a canja do almoço caiu-me na fraqueza.
— E no entanto, meu capitão, lá fora, pela janela, contou ele
ainda perplexo, ainda confundido, ainda atónito, o rio, a praça,
a estátua, as casas continuavam os mesmos do costume, os
semáforos da avenida para a estação dos comboios acendiam-
se e apagavam-se, indiferentes, um petroleiro gigantesco
descia na direcção da foz, e ela ali a brincar com um tenente
marreco, a dar pancadinhas nas costas de outro, a perguntar,
com ar faceto, pela mulher a um terceiro, a sair sem o olhar
sequer enquanto as nádegas subiam e baixavam, alternadas,
como alcatruzes de nora. O cabelo comprido encaracolava-se
nas espáduas, as unhas compridas escorregavam depressa na
capa do livro à medida que eu decifrava a custo a mensagem
dos seus dedos Estação do Metropolitano, Seis Horas, Hoje, o
coração apatetado parando de repente, recomeçando, parando,
e o oficial de transmissões a perguntar-se surpreso Que é isto?
Que é isto? Que é isto? Acabaram por abandonar a tenda da
Ciganita Dora quando o mudo regressou da cortina a compor
orgulhosamente a breguilha, depois de um silêncio infinito em
que se prolongavam como que ecos de gemidos, o soldado
despediu-se da futuróloga que armava o carrapito segurando
os ganchos com os beiços apertados, Muito obrigado minha
senhora, agradeceu ao cheiro de sardinhas em que ondulavam
dois olhos escuros e um avental sujo de pintinhas, o velho
acelerava a camioneta, irritadíssimo, a chamá-los, Nem quero
imaginar o que me vai acontecer logo à noite, resmungou ele a
caminho do armazém, travou de súbito para evitar um cão,
voltou a acelerar, espirais de areia dançavam-lhes em torno, os
penduricalhos do espelho baloiçavam, o tablier tremia de
sezões, e o mudo feliz, de olhos fechados, recostado para trás
no banco, afagando os tomates satisfeitos.
— Nunca provei uma ilusionista, queixou-se o alferes a
desenhar arabescos no cinzeiro com um pau de fósforo. A
gente a suar como uns perdidos em cima e a gaja a decifrar
mapas astrais enquanto não se vem: Mercúrio em Sagitário,
Marte no Carneiro, e a Lua em cheio em Escorpião. Ciganita
Dora, dizes tu?
O oficial de transmissões sentia invariavelmente uma
claustrofobia horrível no metropolitano, naquela eterna aurora
subterrânea de néon povoada de cartazes publicitários
rasgados, que os comboios atravessavam tumultuosamente
numa sucessão quase instantânea de rodas, para
desaparecerem em grandes túneis negros, pontuados de
lanternas de mineiro. Chegou dez minutos mais cedo segundo
o grande relógio redondo da plataforma, cujo enorme ponteiro
se deslocava de traço em traço em pulinhos curtos de
reumático, e encostou-se à balança logo junto às escadas, à
espera, observando as criaturas que compravam maços de
cigarros ou barras de chocolate nas máquinas automáticas,
aparatosas de cromados e de reflexos de vidros. Vagas de
pessoas inundavam o cais, sumiam-se nas carruagens
iluminadas e eram de imediato substituídas por nova fornada
de viajantes, cavalheiros de pasta, mulheres apressadas,
garotas arrastando os sacos do liceu no chão imundo, velhotes
dignos de alfinete de gravata, rostos sérios, rançosos,
uniformes, solitários: Como será a vida deles, o que fazem, o
que pensam, onde passam as férias? Fumou dois cigarros,
abraçado à balança, numa ansiedade que crescia: pés suados,
picadas no estômago, a gana de mijar que lhe torcia as pernas
na véspera dos exames, muito frio, muito calor, muito frio
outra vez. Reviu as ancas largas movendo-se, a gargalhada
solta, o morse das unhas na capa do livro, reviu os tropas
curvados para as secretárias num silêncio ulceroso: Terá
marido, um homem a cujo lado se deite noite após noite, assim
alegre, jovial, feliz, libertando no jazigo do quarto o seu riso
sem manchas? Um empregado de boné de pala, metido numa
farda demasiado grande para ele, tentava em vão, nos
intervalos das enxurradas de passageiros, limpar a plataforma
com uma vassoura e uma pá, as beatas, os pedaços de papel, as
cascas, os caroços, o brilho gorduroso dos escarros, os
comboios apinhados chegavam e partiam, os viajantes
empurravam-se com ferocidade para entrar, de quando em
quando havia insultos, gritos, palavrões, caras amarrotadas
num rodopio de ameaças, lábios que se encolhiam descobrindo
os aguçados dentes infindáveis. O velho saiu o portão da Feira
num salto de latas, A esta hora já nos deitou as cartas, nos
rogou uma praga, nos fodeu a vida, o bonequinho de ráfia
dependurado do retrovisor por uma guita dançaricava em
todos os sentidos. Julgou vê-la, avançou um passo, um rosto
desconhecido olhou-o com espanto e o oficial de transmissões
recuou atarantado Desculpe desculpe desculpe: ao fim de vinte
minutos confundia-a com cada rapariga que enxergava, Não
vai vir com certeza, enganei-me na estação, na hora, no dia,
percebi ao contrário todos os sinais dos dedos, apertou
desanimadíssimo o mostrador da balança com a manga, e nisto
uma voz Dá-me licença que me pese, voltou a cabeça, uma
composição imobilizava-se a fungar na plataforma, as pessoas
acotovelavam-se junto das portas automáticas que se
descerravam numa espécie de suspiro, e, tal como a tinha visto
na repartição, jovial, sorridente, irónica, tranquila, ela.
— Vocês, os civis, atreviam-se a conspirar no interior do
Exército?, perguntou o tenente-coronel num tom lento, difícil,
ultrajado. Vocês tentavam minar o que nos deu tanto trabalho a
construir?
— À saída do Ministério tropecei numa tipa que andou
comigo no liceu, justificou-se a moça, não consegui
desembaraçar-me mais depressa. É sempre quando há tarefas
marcadas que estas coisas me sucedem.
Os olhos verdes, ou castanhos, ou castanhos e verdes, as
mãos e os pés grandes demais para o corpo, as ancas que lhe
acendiam uma espécie esquisita de fome, o leve cheiro
espumoso da carne, como se o sangue, os músculos e os
tendões subissem em bolhinhas róseas de champanhe na
direcção da pele, como se fosse construída da própria matéria
ígnea e gasosa dos sonhos: que feio eu sou, pensou o oficial de
transmissões, como ela me deve achar desagradável, patético,
ridículo, o fato usado, as unhas quebradas, os óculos, um
ramalhete de canetas e de lápis no bolso do casaco.
Desprendeu-se da balança numa guinada pretensamente
casual, sentindo-se idiota palavra a palavra, gesto a gesto, e
principiaram a caminhar devagar ao longo do chão de cimento
da estação, tu assim com saltos um bocadinho mais alta do que
eu, e envergonhei-me disso igualmente embora ninguém
reparasse em nós excepto um cego sentado num banquito com
a caixa do violino aberta à frente, a tocar tangos e boleros
numa desafinação teimosa, e as lentes escuras do tipo
perseguiam-nos, implacáveis: Será da Pide? Alcançaram o
armazém com o velho ainda a tremer de medo, e o tio, de
mãos na cintura, a bufar a sua cólera eterna, uivou-lhes logo da
porta Com que então a laurear a pevide, seus caralhos.
— Há séculos que esperava este contacto, disse o oficial de
transmissões, garantiram-me que havia mais camaradas a
trabalhar comigo no Ministério.
— Uma rede completa, ganiu o tenente-coronel,
estupefacto. Uma rede completa de bombistas, treinados do
estrangeiro, destinados a esfacelarem o moral dos militares.
O oficial de transmissões arredou-se um pouco para deixar
passar homem da pá e da vassoura: o anúncio de uma marca
qualquer de detergente, encaixilhado a alumínio na parede
curva da estação, derramava sobre eles um jorro de cores
misturadas e brilhantes, vermelho, branco, verde, azul, um
amarelo intenso como um bafo de paixão. A rapariga procurou
as pastilhas na carteira, por entre uma indescritível confusão
de lenços, bolsinhas, agendas, estojos, tubos de comprimidos,
papelada.
— As precauções do costume, sabes como é. (Uma voz
lavada, clara, adolescente, e no entanto segura, autoritária,
pronta a naufragar, cantando A Internacional, no Titanic do
marxismo-leninismo-maoísmo. Possuía mais tomates do que
eu, acreditava mais do que eu, meu capitão, e aposto que
continua a acreditar, a reunir-se em caves esconsas, a defender
labirinticamente os Chineses.) O Olavo preveniu-te de certeza
de que a Organização não pode permitir-se brincar em
questões de segurança: Sempre a mesma conversinha, pensou
ele, sempre a mesma merda de conversa e com tantos panos
quentes acaba por não se fazer de facto nada de útil, nada que
arranhe, que magoe, que ponha em causa o caralho do regime.
A Pide refina a perseguir-nos e nós, em resposta, cosidos de
cagaço, dobramos de cautelas.
Introduziu duas pastilhas na boca e o ar fétido, de suor e
porcaria e óleo e lixo da plataforma, adquiria, quando ela
falava, uma insuspeitada frescura vegetal:
— Chegaste há pouco tempo de África, não sabes o que se
passa aqui ultimamente. (A voz agora adulta, catedrática, um
tudo-nada irritada, meu capitão, pela minha infinita ignorância
da realidade do país: se calhar considerava-me um garoto
idealista e primário, ansioso por manifestações utópicas, por
impensáveis movimentos de massas, pelo tombo do fascismo
através do berreiro dos estudantes de liceu. Se calhar opusera-
se no comité a que me dessem trabalho partidário, se calhar
preferia que eu permanecesse de geleia anos e anos, em
observação, à espera: e uma dúvida amarga na cabeça, uma
comichão nas orelhas, um visco zangado nos dedos.) Para
mais neste momento, acrescentou a rapariga evitando a lua de
um escarro, em que finalmente qualquer coisa de importante
se prepara.
— Seja cego se não é a última vez que preguiçam, ameaçou
o tio a rodopiar, ultrajado, no seu cubículo de vidro, a abrir a
gaveta da secretária onde guardava a bomba para a asma, a
premir a pêra de borracha numa zanga frenética. Seja ceguinho
se não lhes fodo a vida, seus cabrões.
— Não são só abaixo-assinados, meu comandante, insistiu o
capelão, alarmado, são conversas, são provocações, são
autênticos atentados ao regulamento.
— Tens de abrir bem os ouvidos e os olhos, aconselhou ela,
tens de intensificar a tua acção: queremos pelo menos um
relatório por semana a partir de agora, a panela vai aquecer
como o diabo. Os capitães inquietam-se, há um
descontentamento generalizado, uma onda de protesto, e tudo
isto começa a aglutinar-se a pouco e pouco numa contestação
global ao governo. Bem enquadrados politicamente,
devidamente orientados no sentido de promoverem a defesa
intransigente da classe operária e dos seus interesses, os
oficiais mais lúcidos podem apoderar-se com facilidade da
situação e provocarem o estoiro do fascismo.
— E se à saída daqui fôssemos às putas, meu capitão?,
sugeriu o alferes, de pupilas minúsculas a brilharem como
pontinhas venenosas de metal. O vértice torcido da gravata
mergulhava no pires de leite-creme, a camisa, aberta a meio do
peito, revelava o fio, tufos de cabelos, uma nesga
esbranquiçada e gelatinosa de pele.
— O quê?, exclamou admiradíssimo o oficial de
transmissões. O quê?
Um bêbado, espapaçado num banco perto deles, discutia
com veemência, laboriosamente, consigo mesmo, às bofetadas
nos joelhos, um grupo de miúdas do liceu unia-se numa pinha
de cochichos, de risos, de orgulhosos seios minúsculos, o
ponteiro do relógio redondo saltitava os seus impulsozinhos
por cima de uma maré alta de cabeças: Tudo me passa ao lado,
pensou o oficial de transmissões, porque catano nunca me
falam nestes assuntos, porque guardam a carne para eles e me
abandonam, de esmola, uns ossitos, umas peles, umas
gorduras, uns restos inúteis? A rapariga (Chama-me Dália,
trata-me por Dália, e ele, ressentido, O nome de guerra do
costume, o nome de código da puta que te pariu,
provavelmente és Fátima ou Ana ou Isabel) conseguiu um
balão translúcido, cor-de-rosa, de pastilha elástica, e recolheu
com a língua a espuma de goma para o interior da boca. A sua
voz de garota permanecia professoral e enervante, e discursava
como se recitasse uma matéria sabida e ressabida: Encontras-
te com o gajo, topas, dizes-lhe isto e isto e isto e não te desvias
um milímetro do que combinámos, não descais um só
pormenor, uma informação mais detalhada, um nome, um
projecto, uma matéria excessivamente concreta que nos deixe
em perigo: feições trágicas, cinzeiros atulhados, montes de
prospectos para enfiar de madrugada nas caixas do correio de
Lisboa, a exaltante, exultante, catecúmena atmosfera
clandestina, em que as palavras ardiam de angustioso
entusiasmo. A rapariga deu-lhe o braço e o oficial de
transmissões sentiu o pulso leve, premente, no tecido do
casaco:
— É melhor assim, elucidou ela, as pessoas supõem que
somos namorados e desconfiam menos. Há bufos por toda a
parte, talvez que nos conheçam a cara.
— Vão para a estiva que se lixam, ameaçava o tio a bater na
secretária o punhozinho obeso, a agitar facturas em adeuses
sem nexo, a despejar a eterna flor habitual para o cesto de
verga num arrebatamento que o desequilibrou, o fez entornar a
água da jarra, o obrigou a agarrar-se a uma das prateleiras de
metal para não se despenhar, de costas, no soalho. Desconto-
vos as horas no ordenado, desgraçados, ninguém vos aceita em
emprego nenhum.
— Eu contacto contigo sempre que possível, consolou-o a
Dália (a pastilha elástica já não cheirava agora, reduzida a uma
substância repelente e mole que lhe ocultava os dentes).
Prepara-te para novidades porreiras nos meses mais chegados.
As bandeiras vermelhas, os hinos revolucionários, gente a
correr, gases lacrimogéneos, tiros, pedras da calçada, sangue,
cânticos, slogans, propaganda, a luta firme, intransigente,
vitoriosa, contra os revisionistas de Moscovo, os
manipuladores dos camponeses, os subtis, burocratizados
traidores da classe operária, a Organização operando na
legalidade junto dos bairros da lata, dos sindicatos, das
comissões de fábrica, dos estudantes, o Olavo, o Emílio, o
Careca, eu, com um cartão qualquer pregado na lapela, em
cima de um estrado, a perorar entre aplausos, gritos,
confusões, a agressividade ou o contentamento dos rostos
obedientes que nos escutavam: mais um ano, garantia-lhe a
rapariga, e o fascismo rebentava como um furúnculo, a polícia
secreta dissolvia-se, a tropa abandonava as colónias e unia-se
aos verdadeiros comunistas, mais um ano de paciência, mais
um ano de luta (os olhos brilhantes de esperança, o sorriso
infantil, a mão a apertar-lhe os ossos magros do braço como
um feixe de fósforos) e seremos, estás a ver, sovietes,
cooperativas agrícolas, autogestão, felizes.
— Eu sentia o Estado Novo podre mas firme, meu capitão,
disse o oficial de transmissões, de pálpebras descidas,
bafejando os óculos com o hálito. Estávamos fartos da guerra,
fartos das perseguições, fartos da Pide, fartos das promessas
não cumpridas, mas não entendia muito bem como aquilo
acabaria, como poderia alguma vez acabar de tal forma se me
afigurava eterno, imóvel, molemente pétreo. Mesmo o senhor,
que esteve dentro, acreditava?
Diante da casa da tia, ao longo do muro da Feira, abriam as
bilheteiras com cabeças curvadas no interior, as primeiras
luzes acendiam-se, o halo esbranquiçado do néon reduzia as
árvores a perfis de papel recortado, sem espessura, e
desenhava uma espécie de cúpula por cima das barquinhas
paradas da Grande Roda, que oscilavam docemente no ar
suspensas dos seus varões de ferro. Trepou as escadas que
rangiam e se dobravam sob os pés à laia de antigos ramos sem
vigor, e no patamar espalmou-se contra a parede com acne
(um cortejo de formigas trepava ao longo de uma nódoa) para
ceder passagem à abundante viúva de bengala que morava em
frente, e ensinava clarinete no Conservatório: Vamos correr
com os burgueses, minha senhora, vamos ser livres finalmente,
e o punho fechado da mestra erguia-se num aceno cúmplice, as
gigantescas ancas desiguais cambulhavam de júbilo festivo, o
sapato defeituoso esmagava vingativamente as tábuas dos
degraus. Amotinaria o prédio na altura própria, constituiria um
núcleo marxista de moradores esclarecidos, encabeçaria a
célula de defesa do bairro destinada a orientar e a prevenir
possíveis desvios conservadores, a lutar contra o
obscurantismo da população desinformada, contra os recuos
direitistas, contra o perigoso canto de sereia da social-
democracia em pânico, contra a vertiginosa tentação
capitalista. Mas a professora de clarinete desapareceu lá em
baixo a coxear, alheia às ciclópicas reformas do país (Temos
de avançar por fases, avisaria inevitavelmente o Olavo, a
limpar com o corta-unhas os dedos discutíveis, devemo-nos
mover com precaução), os altifalantes da Feira jorraram um
pasodoble distorcido que parecia filtrado por sucessivas
camadas de calcário, o fumo das sardinhas, das farturas, dos
frangos assados, ardia nos olhos e enrolava-se em elipses
vagarosas em torno dos candeeiros: Em lugar da revolução
porque não vens comigo na Montanha Russa, Dália, porque
não passeamos de mão dada, a lamber gelados, nos pavilhões
de artesanato (samarras, mantas, cabaças, bolsas de cabedal),
porque não me deixas, porra, acompanhar-te a casa? Esfregou
as solas na língua do capacho (Bem Vindo), entrou, e a cadela
não rebolou na sua direcção a mordiscar-lhe os calcanhares, a
puxar-lhe os atacadores, a deitar-se languidamente de costas
para que lhe afagasse o anafado ventre branco e preto,
percorrido por duas fieiras de mamilos.
— A conversa no metropolitano foi no dia em que a Lady
morreu, meu capitão, disse o oficial de transmissões a folhear
a memória na atenção melancólica que se dedica aos álbuns de
retratos da infância. (Também tu envelheceste, pensei eu,
também perdeste o entusiasmo e as ilusões, também tens
cabelos brancos no bigode.) Dá sempre pena ver morrer um
animal que se conheceu de pequenino, praticamente o único
ser vivo de quem me achava próximo lá em casa.
– A Organização mandou-me informar-te que mais do que
nunca a tua actividade é importante, estimulou-o a Dália,
corando. (Não sabes mentir, cretina, queres-me ajudar e metes
água.) Desenvolves uma tarefa utilíssima ao nível da
repartição, do Ministério, e é absolutamente necessário que te
não desvies das directrizes que te foram dadas.
E muito baixinho, numa espécie de cochicho cúmplice:
– Isto está por pouco, palavra.
Estendida no chão da cozinha, sem se mover, a vomitar, a
suspirar, a fitá-lo com a geleia húmida das órbitas, de baba
roxa pendurada da boca, a respiração da Lady diminuía
devagar, as pupilas anoiteciam, os quartos traseiros agitavam-
se, de quando em quando, arrepiados, a cauda raspava aflita no
sobrado. A Esmeralda torcia o avental com os polegares, a tia,
encostada ao fogão, envelhecera um século de repente:
— Já a mandei telefonar ao veterinário, eu não falo com ele
porque não oiço. Arranja desculpas, diz que não pode vir, que
não tem ninguém que mande cá: um balido de cabra a tremer
de insegurança, de angústia, e o oficial de transmissões
pasmou-se de descobrir uma menina indecisa sob a casca
gretada daquela septuagenária rígida, que tratava os anjos e os
santos do oratório com altiva superioridade. Deu-lhe uma
trabuzanada qualquer esta manhã, uma embolia, uma cólica,
um enfarte, coitada, tem estado a murchar o tempo todo. Não
há ao menos um centro de enfermagem aqui perto, não lhe
podem ao menos aliviar o sofrimento?
– Às putas depois dos discursos, meu capitão?, aliciou o
alferes a rebolar comicamente os olhos e a correr a ponta da
língua pelo contorno dos lábios. Para lembrar os cabarés dos
dias de licença, para desenferrujar o martelo como quando se
voltava da mata e enchíamos a mesa, lembra-se, de garrafas de
champanhe.
Mulatas de vestidos espampanantes encostadas às paredes
nos ângulos mais sombrios da boite, mulheres de meia-idade
extenuadas por noites e noites sem dormir, o strip-tease
patético de uma criatura desajeitada, sem ritmo nem graça,
anunciada por um locutor paneleiro, de lacinho, entre rufos de
tambor, as nossas palmas avaliando, tocando, beliscando,
palpando joelhos sob as mesas, amarinhando ao longo das
pernas numa avidez de centopeias, e tantos mortos a
protestarem silenciosamente no meu sangue: cerrávamos as
pálpebras e eles reapareciam, teimosos, insistentes, inertes,
dormindo de olhos abertos nas margens do capim, insinuavam-
se no perfume espesso das raparigas, no sabor de
desodorizante do uísque, na ansiosa fúria do desejo: saiu para
a rua, dobrou dois quarteirões, virou à esquerda, e distinguiu
de longe a insígnia luminosa, rectangular, opalina, entre outras
letras, desenhos, arabescos, que pulsavam: Centro Médico-
Cirúrgico São Roque, Serviço Permanente. De alguma coisa
vale, pensou o oficial de transmissões, conhecer a centímetros,
de tanto andar a pé, a chiça deste bairro. Tocou a campainha,
esperou um nada, voltou a tocar, e o som parecia zunir, lá
longe, sem resposta, numa caverna de zinco, até que por fim
um sujeito de bata, meio corcunda, lhe abriu enfastiadamente a
porta a espreguiçar-se de maçada ou de sono.
— Se não apanho este metropolitano estou frita, soprou a
Dália antes de correr para o comboio onde as pessoas se
empurravam umas às outras, enervadas, protestando. Não
tomes iniciativa nenhuma que eu procuro-te.
— Sim?, perguntou o marreco a observá-lo irritadamente,
quase sem mexer a boca, com uma das faces inchadas pelo
abcesso de um molar. Você está nervoso, gaita, confesse-se
aqui na sala de espera.
Cadeiras de fórmica forradas de pano de xadrez, revistas
numa mesinha manca, quadros de moldura de esmalte com
crianças e paisagens de cisnes nas paredes, grossos cinzeiros
de vidro, uma esteira barata, das que se vendem aos domingos
no Guincho, a servir de tapete, um aparatoso candeeiro de
latão pendurado do tecto. Cheirava a halibut, a desinfectante e
a suor, um gira-discos berrava na sala ao lado, o corcunda
bramou, cobrindo a música, Baixa-me o som dessa merda,
Emília, e quase imediatamente seguiu-se um silêncio aterrador.
— Às putas, meu capitão, encorajava o alferes entornando
na toalha, sem o notar, um pedaço de vinho branco que
alastrou rapidamente como um vómito de pus. Invadimos uma
espelunca qualquer, metemos o mulherio por nossa conta,
organizamos uma farra como antigamente.
— Então o que há?, indagou o da bata num tom
profissional, a limpar uma nódoa da manga com o indicador
molhado em cuspo. (E conseguiu avistá-la ainda, por um
segundo, esbracejando num novelo de vultos, antes de as
portas se fecharem, soar um apito, e a composição se colocar
em movimento na direcção de um túnel escuríssimo,
irrevogável, sem fim.)
— O senhor é o médico de serviço?, respondeu o oficial de
transmissões a secar a nuca com o lenço. (Um segundo, uns
instantes apenas, mas era como se a mão dela, percebe,
continuasse agarrada ao meu casaco, como se a voz docente
prosseguisse, imperturbável, articulando as suas ordens
infantis: Onde é que moras, Dália, dá-me o teu número de
telefone, deixa-me ligar-te a meio da noite se não puder
dormir, deixa-me ouvir o teu riso, côncavo como um ventre,
nas minhas longas auroras de insónia, antes da primeira,
vacilante, ténue luz sobre os telhados desta cidade que detesto
até à náusea, destas catalépticas, insuportáveis ruas da manhã.)
O marreco, desinteressado, resvalou por ele os olhos
amarelos e miúdos, avançou na carpete um passinho torto de
lacrau:
— Não há médico a partir das seis da tarde, amigo, só cá
estou eu para as injecções, os pensos, a tensão, um ou outro
comprimido para os nervos. O gira-discos recomeçou, agora
um tudo-nada mais discreto, o marreco abriu a boca, eu recuei
um metro no receio de outro latido apavorante, um aroma de
guisado chegava, flutuando, pela porta, e o tenente-coronel
disse, a escarafunchar o intervalo dos dentes com a unha:
— Quando um sujeito se enrola com a mulher-a-dias é o fim
do mundo para se desembaraçar dela.
A última carruagem evaporou-se no túnel sob a forma de
uma lâmpada redonda que se afasta, as paredes, os painéis
publicitários e o cimento do chão cessaram de vibrar, o tropel
de passos de uma nova carga de viajantes descia
desordenadamente as escadas, e o oficial de transmissões
imaginou, como nos documentários do cinema, centenas de
galhos, de chifres, de cornos entrechocados de renas
galopando com desespero numa extensa planície de neve,
povoada por raros pinheiros vermelhos de balanças. Os
compridos tubos de néon do tecto deram progressivamente
lugar ao tenebroso candeeiro da sala de espera, cuja claridade
se diria filtrada por um pudor eclesiástico de cílios de pano, e
ouviu a sua própria voz, tímida, canhestra, a tropeçar nas
sílabas como um menino do coro na bainha da opa:
— Não pode dar um jeito numa cadela a morrer?
O gira-discos emudeceu com a agulha a chiar nas espiras, o
marreco fitou-o com espanto (A cadela? Uma cadela? Você
anda a mangar?), alguém gritou através de uma cortina
Despacha-te Amílcar que vai a sopa para a mesa, escutavam-
se ruídos desencontrados de pratos e talheres, cadeiras
arrastadas, choro de crianças, ralhos, e o corcunda,
encapsulado na bata, continuava a examiná-lo numa surpresa
infinita, como diante de um vitelo de duas cabeças ou de um
crocodilo com acne:
— Uma cadela, caralho? Foi mesmo numa cadela que você
falou?
— Amílcar, insistiam os gritos, ou vens depressa ou fica
tudo frio.
O marreco acabou por lhe introduzir no bolso, à força, um
frasco de líquido azulado (Uma colher de chá a cada refeição e
desampare-me a loja
AMÍLCAR!
senão quem ainda morre sou eu), enxotou-o no sentido do
vestíbulo (consolas precárias, um espelho fosco numa moldura
trabalhada a fingir talha, objectozinhos de verga, mais revistas)
e daí para o patamar onde o odor de desinfectante e de
farmácia se diluía quase por completo no mofo do ar, Não se
esqueça, recomendava o enfermeiro, uma colher de chá
AMILCAR!
a cada refeição, os gritos protestavam As favas já estão sem
graça nenhuma, o oficial de transmissões desceu
atabalhoadamente os degraus a sentir o peso do xarope no
casaco, e cá fora era noite completa, pretíssima, opaca, triste
de chuva: não se distinguiam as caras das pessoas a vinte ou a
trinta metros de nós, halos de luz aproximavam-se e
afastavam-se estirando sombras esguias nas fachadas, pessoas
reduzidas a vultozinhos insignificantes acenavam do topo da
Grande Roda para as famílias pasmadas, e ao chegar a casa,
meu capitão, a Lady tinha morrido e atirei o líquido azul para
o lixo. Fui buscar um cartão de chapéus ao quarto dos
armários, despejei numa gaveta os alfinetes, as rendas, os
pedaços de feltro, as joiazinhas falsas lá de dentro, a tia
continuava encostada ao fogão sem se mover, com o beiço
inferior estendido, a Esmeralda, refugiada na marquise,
enxugava as pálpebras ao avental, pegou na cadela ao colo e o
corpo miúdo, babado, e mole e quieto enojou-o, deitou-a na
caixa e a crepitação do papel de seda fez estremecer as velhas,
cobriu-a de jornais, regressou à rua, hesitou junto ao contentor
logo à entrada da porta, no passeio oposto haviam construído
um renque de prédios num baldio a seguir a um lar de
estudantes e a uma igreja evangélica, pediu uma pá
emprestada ao guarda das obras que se aquecia a esfregar as
mãos a um fogo de tábuas, e ao enterrar a lâmina na areia, nas
ervas, nas raízes, nos caroços, nas pequeninas pedras do
talude, ergui a cabeça, vi os dois vultos muito unidos delas
seguindo-me, quietos, da varanda, e para lá dos vultos os
carrosséis e as vagonetas de ferro da Montanha Russa girando
no meio do fumo e das ampolas coloridas, da música, da
propaganda hiperbólica do Poço da Morte, das tétricas
gargalhadas e dos miados de terror postiço do Castelo
Fantasma, e não sei se o meu capitão entende mas veio-me à
ideia, ou à vesícula, ou ao fígado, ou às tripas, ou ao caralho
que me foda, uma raiva do catano de nós todos.
8

— Logo que desembarquei, disse o alferes (já escarlate do


vinho, dos bagaços, do projecto das putas, do ar cada vez mais
enjoativo e rarefeito do restaurante, que uma ventoinha junto
ao tecto remexia em vão num vagar de preguiça) as coisas com
a Inês começaram a correr mal, não sei porquê. Se calhar
tínhamo-nos desabituado um do outro, meu capitão: não nos
víamos há que meses, funcionávamos como dois estranhos,
perdêramos o hábito da vida em comum, deixáramos por
completo de nos conhecer. (As pás da ventoinha agitavam-se
lentamente, como colheres, no creme espesso do fumo, uma
espécie de irradiador de cilindros azuis, suspenso da parede,
afugentava os mosquitos gordos do verão. Pela porta aberta a
noite de Lisboa e a noite de Lourenço Marques aproximavam-
se e fundiam-se à laia de corpos despidos que se tocam, os
prédios do pólo oposto da rua assemelhavam-se ao mar do
Índico ao longe, com as luzes de barco das janelas a vogarem,
fixas, no escuro. O alferes, crispado, tenso, atento, curvado na
cadeira, fixava os quadrados da toalha como quem segue um
trilho de guerrilheiros pela mata: a gente, em África, pensou
ele, desaprende de estar com as pessoas, transforma-se numa
espécie de bichos irascíveis e aflitos, cruéis, amedrontados,
estranhos animais carnívoros, agarrados com desespero às
bengalas de inválidos das metralhadoras.)
Dois, três, às vezes quatro dias por semana, ao chegar a casa
gasto do trabalho, farto do banco, nauseado de reuniões, de
empreendimentos, de estudos de mercado, de números,
desejoso de silêncio e sossego, sentava-se, exausto, de perna
traçada, no sofá, abria, sem ver as letras, o biombo do jornal, e
nisto, quando principiava a adormecer (Faltam duas horas para
o jantar, posso perfeitamente descansar um bocadinho), o
telefone desatava aos guinchos e cada lamento doía-lhe
minuciosamente, como uma faca, nos ouvidos, no peito, na
cabeça. Levantava os braços, entontecido, para cobrir as
orelhas com as mãos, e de repente um silenciozinho, a voz
cerimoniosa da mulher Está lá?, e logo a seguir, adoçada,
cúmplice, quente, Sim, mãe. (E ele a pousar o jornal nos
joelhos, a sentir os músculos dolorosos e inchados, o crânio
ainda vesgo dos sons, os olhos que as pálpebras cobriam
dificilmente, idênticas a cortinas sulfúricas que subiam e
desciam: Porque é que nunca conversas comigo, porquê esta
indiferença, esta distância, este azedume?)
— Que culpa tenho eu que não gostes dos meus pais?,
perguntou a Inês, furiosa. Quando casaste comigo já sabias
como eles eram.
Não, mãe, vem mesmo a propósito jantar aí, poupa-me
imenso trabalho, nem vale a pena falar-lhe que o Jorge adora
com certeza: a silhueta agachada sobre a mesinha baixa do
telefone, os cabelos caídos, os dedos míopes que procuravam
às apalpadelas o cinzeiro mais próximo, a criança adormecida
às tantas no banco de trás, transportá-la ao colo, a chorar de
sono, para casa: Odeio-te, Inês.
— A gaja prometeu-me aquilo tudo, meu capitão, disse o
oficial de transmissões recolocando cuidadosamente os óculos
no nariz, a revolução, a queda do fascismo, o povo em armas,
a liberdade, o caneco, e eu multiplicava-me em notas, em
memorandos, em cartas, empenhava-me, calcule, a seduzir
sargentos nas tintas, mas o certo é que no Ministério tudo
permanecia igual: o mesmo arrastar sem esperança de pés, a
mesma inutilidade poeirenta, os mesmos coronéis suplicantes,
a mesma imobilidade sem ruído, os cacilheiros que iam e
vinham contra o bolor dos vidros das janelas. Nessa época o
marxismo surgia tão utópico como agora, e no entanto,
imperturbável, férreo, idealista, eu continuava a acreditar.
— Vou-me arranjar num instantinho para jantarmos em
Carcavelos, avisou a Inês passando a correr a caminho do
quarto. Importas-te de guardar na alcofa as coisas da miúda?
Fraldas que regressariam num saco de plástico a cheirarem
desalmadamente a merda, a chupeta, grinaldas de guizos, um
coelho de borracha sem focinho, e roído por meses de
dentadas. A criança protestava aos sacões e o alferes
resmungou Deves estar doida de fome, aposto que a tua mãe
não te deu de lanchar, que levou a tarde ao telefone, a beber
uísque e a gargalhar parvoíces com as amigas. Ao debruçar-se
para tirar o bebé do parque todos os seus ossos rangeram e se
quebraram, as juntas latejaram-lhe de dor, um torno torceu-lhe,
em apertos sucessivos, o interior do tórax, a campainha
continuava sem descanso a massacrar-lhe os ouvidos. Pela
porta da casa de banho avistava a mulher em bicos de pés ao
espelho, aumentando as pálpebras com frasquinhos e pincéis,
transformando a boca numa ferida desdenhosa, escondendo
uma borbulha do queixo com um dedo de creme. Que existe
de comum entre nós dois, pensou ele, por que raio de ideia nos
casámos? Íamos ao cinema em grupo, íamos às festas em
grupo, íamos jantar fora em grupo, íamos jogar ténis em
grupo, fazíamos ski aquático em grupo, eu faltava
pontualmente às aulas do primeiro ano de Económicas, tu não
punhas os pés na lição de ballet da professora húngara nem no
curso de francês da Alliance, agradavam-me os teus modos
patetas, a maneira esparvoada de te rires, de encolher os
ombros, de dançar, o teu entusiasmo um pouco tonto, sem fito,
a tua forma de chilrear vulgaridades simpáticas, agradava-me
o luxo da vivenda dos teus pais, os móveis, os quadros, as
casquinhas, a irrepreensível profusão de criadas trotando para
aqui e para ali numa obstinação de formigueiro. Um sábado
ficámos por acaso ao lado um do outro no Cinema Condes (No
Condes?, exclamou o soldado, surpreendido, eu imaginava que
os meninos bem frequentassem o Tivoli), uma fita chatíssima
passada na Idade Média, com fulanos de barbas a discursarem
interminavelmente, não conseguimos bilhetes para o São Luís
e a plateia tresandava a perfume reles, a meias de nylon e a
suor, uma planície de pedras redondas e escuras de cabeças
desdobrava-se-lhes à frente até ao gigantesco rectângulo
colorido do écran. A Inês agitava-se na cadeira,
aborrecidíssima, o vestido gemia a cada gesto, e era como se
eu lhe sentisse no fundo dos testículos, meu capitão, todos os
poros do corpo, todos os centímetros da pele, o atrito suave da
roupa, nas coxas, uma de encontro à outra: apetecia-me
chegar-me a ti, apetecia-me dar-te a mão, e de súbito, sem eu
esperar, quando na tela se iniciava uma delirante batalha de
espadas de lata, o teu joelho encostou-se com força às minhas
calças e eu quedei-me absolutamente imóvel, incrédulo,
maravilhado, a pensar Foi por acaso, não pode ter sido de
propósito, é mentira, na esperança, sabe como é, de que aquilo
durasse para sempre.
— Estou pronta, gritou a Inês a arrumar à pressa, numa
prateleira invisível, potes, boiões, tubos de rímel, escovas, o
espelhinho de aumentar que deformava o rosto e o
metamorfoseava numa deformada carantonha ameaçadora.
Podes ir descendo com a Mariana para o carro. Na semana
seguinte reuniu a pouca coragem que pôde, e após inúmeros
rascunhos idiotas acabou escrevendo um soneto trôpego a
pedir-lhe namoro: esperou quase um mês pela resposta, as
raparigas do grupo fitavam-no de banda, cochichavam
frasezinhas divertidas à Inês (Já toda a gente leu, vão fazer
uma troça do caraças de mim), não se atrevia a aproximar-se,
mantinha-se afastado, trombudo, coradíssimo, a Inês Olá, e o
alferes, inaudível, Olá, até que uma noite, num baile, ao ir-se
embora, encontrou um papel quadriculado de caderno dobrado
no bolso da gabardina. Só deu por ele na luz fosca do eléctrico
para casa, o condutor esperava de pé a estalar o alicate, o meu
nome por fora numa letra gorda e redonda, abriu-o a tremer e,
lá dentro, Sim. Vou desmaiar, pensou, isto é tão porreiro que
não me aguento nas canetas.
— Ainda devo conservar isso num sítio qualquer lá em casa,
meu capitão, confessou o alferes à cata do medronho na
multidão de garrafas vazias e cheias sobre a toalha. Uma folha
arrancada aos sumários do colégio, uma caligrafia infantil: e
eu que durante anos a fio considerei aquele bilhete a coisa
mais exaltante deste mundo.
Instalou a filha na cadeira presa ao espaldar do banco de trás
por dois grampos cromados, e os focos que iluminavam a
fonte da Rua da Mãe-d’Água aclaravam as paredes e as
árvores vizinhas de uma fundura de mistério, onde remexiam
troncos e se torciam sombras. Arrumou a alcofa na mala, e
para baixo, na Praça da Alegria, escutava-se o habitual e
desencontrado concerto de buzinas irritadas. De vez em
quando um vestíbulo acendia-se, saíam pessoas conversando, e
daí a nada um carro destacava-se às arrecuas da fila de
automóveis estacionados. Puxou um botão, introduziu a chave
na ranhura do volante (Nunca mais desces, pensou o alferes,
furioso, deves estar a atender outra chamada), e o motor
principiou a trabalhar em surdina, zunindo nos vidros pouco
asseados do carro. A mastigar um cigarro, de mãos apertadas
no volante, assustando de tempos a tempos o Fiat de
acelerações espasmódicas, zangado com a indiferença de Inês
e a sua própria subserviência mole, esperava.
— Você já realizou, acotovelou-me o tenente-coronel, cuja
voz prolongava as sílabas em guinchos inseguros de bêbado, o
que é ser-se apanhado pela própria filha, completamente nu, a
dar à bomba em cima da mulher-a-dias?
E agora o que é que eu lhe respondo, reflectiu o alferes,
apavorado, o que é que eu digo quando a vir, como é que é ter
namoro? No fim-de-semana seguinte, em lugar de aparecer no
grupo, como de costume, à entrada do cinema, expectante e
acanhado, permaneceu fechado em casa numa indecisão
horrível, a fumar, a passear-se pelos quartos, a recusar o
almoço, o lanche, o jantar, de nariz franzido, lavando
constantemente as palmas azeitadas, respondendo por caretas
vagas ao que os pais ou a irmã, intrigadíssimos, lhe
perguntavam, mirando com ferocidade, como se os visse pela
primeira vez, as gravuras, os trastes, o pedaço de praceta que
se percebia da varanda, traseiras de prédios, marquises, uma
assimetria de chaminés fuliginosas. Às nove da noite o
telefone tocou, a mãe que tricotava junto ao aparelho atendeu,
Um momento, procurou-o pela sala, chamou-o com o queixo,
Jorge, o pai deixou o livro aberto na cadeira e saiu, ouviu o
fecho metálico do quarto de banho rodar no habitual estalido
empenado de sempre e logo a seguir um jorro abundante de
torneira, Uma rapariga, anunciou a mãe, as pernas começaram-
me a vibrar, a hesitar, a vergar-se, as tripas rebolavam-me na
pança (Mas que grande maricas que o meu alferes me saiu,
disse o soldado), Vou fazer figura de parvo, pensou ele, vou
fazer figura de cretino, a mãe (O que é que se passa?) estendia-
lhe o aparelho sem compreender, aproximou-o do ouvido
fixando, aparvalhado, o retrato antigo de um bebé na parede, a
sua respiração inchava e desinchava os folhos das cortinas,
tossiu para o interior do bocal, e a voz dela, pequenina, nítida,
hesitante, perguntou do outro lado És tu.
— Não, a sério, insistiu gelatinosamente o tenente-coronel,
um velho a dar à bomba em cima da mulher-a-dias na presença
da filha, observe-me a cena. Andei semanas e semanas à
brocha, a fugir da miúda. A luz do nosso vestíbulo acendeu-se,
revelando as moribundas plantas pífias da entrada, o elevador,
o corpo alto da Inês a galgar rapidamente os degraus.
Cumprimentou a porteira que conversava, encostada às caixas
do correio, com a senhora do terceiro esquerdo, num
movimento evasivo da cabeça, fiz-lhe sinal com os faróis e a
mulher, ainda a vestir o casaco, instalou-se pesadamente no
banco e carregou de imediato no isqueiro do automóvel.
Desaparecera por inteiro o encantamento de outrora, meu
capitão, o entusiasmo de outrora, a febre de outrora, a
inextinguível vontade de a abraçar, de a beijar, de lhe afagar os
seios, de outrora: um leve aborrecimento, uma maçada, um
ritual que se esvaziava cada vez mais de significado, de
sentido. Desabotoou o colarinho, alargou o nó da gravata (É a
espinha, ou os músculos, ou trezentas articulações ao mesmo
tempo que me doem?):
De que é que estás à espera, interrogou a Inês com secura.
Ergueu depressa de mais o pé da embraiagem, o Fiat pulou,
soluçou, emudeceu (Nunca vi ninguém tão aselha, observou
ela sem nenhum afecto), acabaram por subir dificilmente o
Príncipe Real a fim de apanhar a Auto-Estrada, ultrapassaram
o Liceu Francês a aumentar de velocidade, com a miúda a
chorar lá atrás (Dentes?), e para além do Viaduto a mancha
imóvel de Monsanto confundia-se com as nódoas, também
paradas, do céu, que o sílex das estrelas ponteava. Rugas de
nuvens dobravam-se por cima do rio, semelhantes às pregas de
um lençol amachucado.
— O que me faz mais impressão, meu capitão, disse o
alferes a empurrar o cabelo para trás, é tudo ter mudado na
minha vida sem eu dar por isso, é nada ser igual ao que era
dantes, as pessoas, os sítios, a minha própria idade,
exactamente o que eu necessitava que não alterasse nunca.
Como se o norte fosse agora o sul e eu à rasca, sem bússola, à
procura de qualquer coisa que me guie. Esta certeza, entende,
de que é tarde de mais e perdi o caminho para casa, ou, se der
com ele, malho com os cornos numa parede, numa esquina,
num beco sem saída.
Encontraram-se dois ou três dias depois, nas redondezas da
Alliance (um prédio imponente, venerável, de mastro de
bandeira na fachada, tectos altos de estuque, quadros pretos,
carteiras de escola) e o sorriso da Inês, infantil, contente,
enternecido, deslumbrou-o como os texugos dos desenhos
animados quando se apaixonam por texugas pestanudas, e se
lhes soltam crescentes coraçõezinhos vermelhos por todo o
corpo, a cantarem como molas de colchão. Passearam uns
quarteirões ao acaso, sem falar, até eu me atrever a procurar-
lhe o braço, a dar-lhe a mão, a sentir a palma tenra dela na
minha palma, os dedos que se intervalavam, estreitos, nos
meus, e eu, logo, Quantas centenas de vezes já fizeste isto,
quantos filhos da puta namoraste antes de mim? Não falava
porque se falar se calhar estrago tudo, a Inês não vai achar
graça nenhuma às palermices que eu digo: e sentia tonturas,
calor, frio, cólicas incomensuráveis, as orelhas transformadas
em labaredazinhas de carne, chamuscando-lhe os cabelos das
têmporas. As pessoas com que se cruzavam surgiam indecisas
e disformes, iluminadas pelos candeeiros ou pelas montras das
lojas, um senhor muito direito, de pupilas vorazes, ao mesmo
tempo rígido e equívoco, aguardava pacientemente que o
caniche que levava à trela acabasse de cheirar, milimétrico, um
tronco de árvore, o trânsito escoava-se na avenida numa
cintilação de fulgores e de perfis.
— Não, não estive na aula, explicou a Inês, vou o menos
possível às aulas. Achei que era bom encontrar-me aqui
contigo porque é longe da casa de Lisboa dos meus pais: não
há perigo que ninguém nos veja.
Uma voz igual à do telefone, ainda retráctil, ingénua,
buscando o seu caminho, como um fio de água, através das
plantas, mas maior, mais clara, mais de carne, e o alferes
voltou a sentir a flacidez das pernas, as tripas contraídas de
prazer, a combustão dos ouvidos, e lembrou-se por um
segundo da cara da mãe a estender-lhe o aparelho, É para ti.
— O que eu queria era ser bailarina autêntica, revelou a Inês
num tom de confidência pomposa, mas o meu pai é muito
esquisito nessas coisas: por vontade dele nenhuma de nós saía
à rua.
Começou a subir a Auto-Estrada, pegado a uma furgoneta
que largava imenso fumo pelo escape, os arbustos da berma
protestavam ao vento, e pensou, engrenando uma segunda,
Disseste aquilo e eu imaginei uma espécie de monstro de um
só olho, hirsuto de cerdas e escamas, a fechar a família,
ladrando carantonhas terríveis, nos armários dos quartos, e
receei que nesse momento rasgasse a minha carta em mil
bocados, ziguezagueando de fúria, abrindo e fechando as
gigantescas garras agudas, coxeando à minha procura,
disforme, simiesco, sangrento, nas avenidas alarmadas da
cidade.
— E afinal, meu capitão, disse o alferes a pedir um cigarro
ao furriel vizinho, que fumava uns cilindros estrangeiros,
pestilentos, sem filtro, saiu-me um homenzinho simpático,
apagado, vulgar, inofensivo, tiranizado pelo desprezo da
mulher, pelo dinheiro da mulher, pelas curtas ordens militares
da mulher, completamente mudo num canto da sala enorme,
oculto pelo piano idêntico a uma ceifeira abandonada, de
punhos no queixo diante da claridade de capela do aparelho de
televisão.
Foi mais ou menos um ano depois que o alferes o conheceu,
que entrou pela primeira vez, sem lugar para o corpo e para as
mãos, na casa de Carcavelos, amedrontado logo à entrada pela
quantidade de automóveis no pátio, pelo tamanho do jardim,
pela água da piscina onde se apagavam e se acendiam
cardumes de reflexos, pelos painéis de azulejos da fachada,
cobertos de madeixas de glicínias, pelo enjoativo odor
remotamente agradável do dinheiro: companhias de seguros,
prédios, terras no Alentejo, dois centros comerciais, várias
firmas, interesses num banco. E lá dentro uma multidão de
pessoas circulando de prato em riste, que se aglutinavam, se
dispersavam, conversavam, riam, beijavam a Inês e o
ignoravam por inteiro ou lhe concediam, se tanto, um
hipermétrope interesse distraído, se debruçavam, como
galinhas curiosas, para as travessas de prata, em torno da
grande mesa oval com um aparatoso objecto de cerâmica ao
centro. (Havia outras mesas na relva, um court de ténis,
bandeirinhas de golfe, e ao fundo crianças loiras que jogavam
à bola.)
— O Jorge, apresentou a Inês à mãe, que deixou de ouvir
uma senhora idosa, para o examinar numa súbita atenção
aguda. Os seus olhos claros mediram-no, avaliaram-no,
calcularam-no, tomaram-lhe o peso e jogaram-no fora:
— Se ainda não almoçou sirva-se, ofereceu ela sem
amabilidade alguma. Ó Inês, veja lá a menina do que é que o
seu amigo gosta.
— Bem me parecia, cacarejou vitoriosamente o oficial de
transmissões numa gargalhadinha perversa, que cedeste à
tentação do capital.
A medida que mastigava, encostado a uma cómoda, ia
observando os óleos, os reposteiros, as consolas, os tapetes, o
pesado luxo impositivo da casa, os criados que rodopiavam
com bandejas, três ou quatro bassets, incessantemente pisados,
guinchando sob os aparadores: Não tenho nada em comum
com esta gente, pensou ele, caí aqui como a Alice no outro
lado do espelho, e sorriu à Inês que se aproximava com dois
copos de sangria nas mãos: O princípio do fim, meu capitão,
murmurou desolado, vinte e um anos, cem por cento parvo, o
quartel de Mafra à minha espera.
No termo da Auto-Estrada, após as bombas de gasolina,
surgiu de súbito a Marginal com o rio em frente, cor de
alcatrão para além da muralha, semeado de uma constelação
de barcos ancorados.
— Não podes acelerar um bocadinho?, comandou
rispidamente a Inês. A mãe está há que séculos a jantar.
Entregou-lhe o copo, beliscou-lhe a bochecha e o alferes
pensou Como é que gostas de mim se me visto pior do que
estes gajos, se possuo um ar menos polido, mais saloio, uma
cara menos delicada do que as deles, se não conheço as
pessoas que frequentam, nem os hotéis em que se hospedam,
nem as cidades de que falam, se o meu pai trabalha como
adjunto do gerente de uma tipografia de segunda ordem,
carbonosa e suja, se não sou conde, nem milionário, nem
artista, nem célebre, se reprovo sem glória o primeiro ano de
Económicas e moro num andar, em Marvila, onde nenhuma
peça de mobiliário vale um chavo. Como se houvesse um erro
gigantesco naquilo tudo, meu capitão, um equívoco que
acabariam fatalmente por descobrir, um engano que
deslindariam entre expressões de espanto, gargalhadinhas,
dichotes, troça. Engoliu a custo uma garfada de bacalhau,
respondeu com uma careta embaraçada ao sorriso da Inês,
notando que um padre careca e uma dama lânguida, soterrada
de jóias, reparavam nele, Vão mandar-me sair daqui a nada, de
dedo espetado, pela porta da cozinha, mas os vultos confluíam
e desvaneciam-se, distraídos, obsequiosos ou vagamente
amáveis, grandes pálpebras pintadas, elásticas bocas sem fim,
seios moribundos, calvícies impositivas, acabou o bacalhau e
permaneceu de prato vazio na mão, acanhadíssimo, sem se
decidir onde o pousar, a Inês afastara-se para cumprimentar
um casal que lhe acenava de longe, e o alferes, desprotegido,
encostado ao papel da parede como um condenado ao muro do
fuzilamento, pensava aterrorizado É agora, vão ajoelhar na
alcatifa, premir o gatilho, disparar. E no entanto, meu capitão,
regressei no domingo seguinte, e no seguinte, e no seguinte,
aprendi a beijar a mão às mulheres e a falar urbanamente, de
igual para igual, aos homens, simpatizou com um primo dela,
excessivo, olheirento, inchado, sempre no limiar da bebedeira
como num rebordo instável de piscina. O primo trabalhava
(Trabalha ainda?) no banco da família e de vez em quando
telefonava-lhe para ruidosas festas com bailarinas do Casino,
ou manequins belgas, ou criaturas sardentas (jogadoras de
ténis?) em trânsito por Lisboa, pescadas antes do jantar nos
bares dos hotéis de estrangeiros, onde os empregados o
recebiam com vénias respeitosas de servos.
— O capital, meu filho, engendra inevitavelmente o vício,
grasnou o oficial de transmissões a imitar o tom de um cónego
no confessionário. Rezarás de penitência cinco Salve Rainhas
a favor da sociedade sem classes.
As ondas da maré alta explodiam contra a muralha e subiam
nas trevas numa renda de espuma, os automóveis circulavam
devagar no piso molhado, vivendas às escuras amontoavam-se
sem ordem junto à via férrea. A Mariana, no banco de trás,
gemia de impaciência, de cansaço, de fome: Jantar, tornar o
mais depressa possível para casa, engolir um comprimido,
adormecer. Os olhos consumiam-se-lhe, quase não sentia as
pernas, uma palpitação dolorosa dissolvia-lhe a metade direita
da cabeça, pisava-lhe os miolos, alastrava pelo pescoço, pelo
braço, em guinadas desagradáveis e aflitivas, que a voz da Inês
furava num rancor monótono:
— Aposto que já vão na sobremesa.
— A miúda mora ou morava com a mãe, meu capitão,
declarou o alferes numa voz branca de que todos os
sentimentos amarguradamente se excluíam. Tinha-a comigo
aos sábados, de quinze em quinze dias, e mais tarde visitava-
me para me pedir dinheiro. A outra semana, sabe como é,
entrou-me em casa com um tipo de bigode que me
cumprimentou com um grunhido, deixou-se cair no sofá da
sala, acendeu um cigarro, Engravidei aqui do Hélder, preciso
de dez contos para o aborto, e eu a olhar para ela, sem
resposta. Isto aos catorze anos, veja lá.
Procurou desolado o retrato da filha na carteira,
inspeccionou compartimentos minúsculos repletos de cartões,
de calendários, de capicuas, de papelada avulsa, e exibiu por
fim uma fotografia antiquíssima, cheia de nódoas amarelas,
com uma garotinha de tranças e vestido branco foscamente
abraçada a um cão.
— O Hélder, disse o alferes numa entoação morta, toca
bateria nos Endiabrados do Ritmo, joga boxe nos Andorinhas,
e assistia à cena numa tranquilidade de zebu, a remexer no
bigode com os dedos quadrados. (Como se estivesse ali para te
proteger de mim, pensou ele, como se viesse avisar-me de que
A situação é esta e desliza o bago porque os sentimentos não
me interessam um corno.) Parece que vivem num prédio do
Martim Moniz com mais vinte ou trinta cretinos como eles, a
injectarem-se heroína, a ouvir música aos berros, a coçar a
barriga e a acharem-se eleitos. Nunca mais lhes pus a vista em
cima, sei da Mariana por aqui e por ali. Nem sequer me
informaram, meu capitão, se chegou a nascer, se é rapaz, se é
rapariga, o peso, a saúde, o cabelo, ninharias assim. Talvez que
se me não divorciasse tudo fosse diferente para ela,
continuasse a estudar, lavasse os dentes, fosse ainda virgem,
que caralho.
Mais ou menos dois meses antes de entrar na tropa
convidou os pais a conhecerem a Inês (por essa época a velha
já lhe estendia o telefone sem uma palavra, segurando com a
frouxa, recriminativa mão livre as agulhas de tricot) e levou-os
a comer pizza num restaurante italiano junto ao parque, repleto
de cheiro a esturro e fumarada, onde as pessoas se moviam
como se nadassem custosamente num aquário de névoa. Seis
chineses todos iguais ocupavam a mesa vizinha, sorrindo-se
uns aos outros por cima das gravatas de pintas, parcimoniosos
e educadíssimos, o suor do empregado pingava na salada. Não
quisera ficar em casa por vergonha, receava que a Inês
comparasse o luxo de
Carcavelos com o modesto, heteróclito, poeirento andar de
Marvila, por cujos móveis lascados a mãe passeava de ano a
ano, de terço enrolado no pulso, um espanador sem energia, e
onde as molas estragadas dos sofás doíam nas nádegas como
pontas de anzol. O pai, de gola manchada de caspa, mastigava
obstinadamente, em silêncio, submergido no prato,
respondendo com mugidos de boca cheia às perguntas
desesperadas do filho. A mãe assentava na Inês as lantejoulas
tímidas das pupilas, entrançando, hirta de acanhamento, a
bainha da saia (um vestido exagerado e barato, de ramagens,
que provocaria a hilaridade de toda a gente em Carcavelos), e
tu olhavas para nós os três de uma incomensurável distância
de microscopista, num espanto indefinível, sem falar,
introduzindo pedacinhos de pão na boca pintada em gestos
precisos de metrónomo. Mas não acabaste o namoro
(Porquê?), não te afastaste de mim (Porquê?), o telefone
continuava fielmente a tocar, à noite, no silêncio carunchoso
da sala (Porquê?), o grupo continuava a reunir-se para o
cinema, para a boîte, para as festas, o namoro oficializava-se
morosamente, lentamente, continuava a viajar de comboio, em
segunda classe, para Carcavelos, se não conseguia extorquir ao
velho o antiquíssimo Ford em ruína permanentemente imóvel
à porta e coberto por um pano de listras, cujo radiador, furado,
obrigava a amontoar no banco traseiro uma tilintante multidão
de garrafões.
— Um golpe de Estado, anunciava ela, murmurou o oficial
de transmissões a abanar a cabeça incrédula. Com aquele
sossego do catano na rua, nas fábricas, nas conversas do
autocarro, só um lunático como eu, meu capitão, acreditava
nisso. E no entanto, de repente, pumba, o povo no Carmo,
tanques na Baixa, soldados de metralhadora nas esquinas, a
Pide engaiolada, o Governo de pantanas, títulos gigantescos
nos jornais.
A Inês deixava-o acariciar-lhe o corpo, o peito, o intervalo
das pernas, afastar as cuecas para lhe mexer nos pêlos, farejar-
lhe o cheiro do pescoço com o nariz de javali, tocava-o
também, inclinava a cabeça para trás, gemia, e o perfil dela,
nítido contra o azul espesso do sofá, a respirar muito depressa
como um animal cansado, adquiria o encanto róseo das
actrizes de cinema nos cartazes. O alferes ouvia as vozes das
criadas na cave, a máquina de cortar relva a barbear o jardim,
a garganta da piscina que se enchia, o silêncio alcatifado do
corredor. As calças humedeciam-se-lhe de desejo: não
imaginava, não raciocinava, apalpava-a só, as mãos subiam e
desciam, amarrotando o vestido, tentava desabotoar a
breguilha com os dedos urgentes, atrapalhados nos botões:
Espera aí, deixa-me ajudar-te, segredou a Inês, e eu claro, meu
capitão, para dentro de mim, Ai que experiência, ai que puta
sabida, porque me apaixonei como um vitelo, percebe, tudo o
que possa supor de mais apaixonado e imbecil, e afinal, que
quer, não era a primeira vez, o seu à-vontade, a sua
desenvoltura, os seus ares mundanos desvaneceram-se por
completo, e no pinhal uma garota aterrorizada surgiu na cara
dela, Toma cuidado, toma cuidado, não me faças doer, mas fiz
e gritou um ou dois soluços ou balidos breves a morder-me
com toda a força o ombro, os músculos da vagina expulsaram-
me brandamente o pénis, e lá estava, na ponta, a gotinha de
verniz encarnado de uma pincelada de sangue.
— Agora, velho, meu capitão, disse o soldado a chupar e a
palitar os dentes com a língua, o negócio das mudanças não
me interessa: se eu me empenhasse a sério naquilo era
milionário a esta hora, andava por aí de Mercedes, gordíssimo,
a arrotar postas de pescada, presidia a associações recreativas,
punha uma amante por conta no Restelo. Assim, olhe, trabalho
o menos que posso, bebo as minhas cervejolas aos domingos,
jogo dominó com um ou outro amigo que aparece: a chatice
habitual, o costume, a porra dos quarenta anos, o dobrar da
espinha, a desistência, o meu capitão conhece como é. Aqui há
meses atacou-me uma flebite numa perna, e desde então não
me apetece nada.
— Que culpa tenho eu que não gostes dos meus pais?,
protestou a Inês a remexer-se no banco. Não chegámos a Santo
Amaro e já levas uma tromba de palmo: querem-te arrancar as
unhas sem anestesia?
Árvores, o despeito irado do mar, comboios que brincavam
às escondidas na noite, a mancha do céu por sobre as casas,
pesada de chuva da banda da serra: Não era que não gostasse
dos velhos dela, meu capitão, o pai sobretudo metia-lhe pena,
tão nulo, tão pateta, tão inútil, tão apagado, condenado a
passear-se como uma sombra pelas salas enormes ou a
escorropichar uísques melancólicos diante do televisor
defunto. Não se tratava de uma questão de gostar ou não
gostar, era que se sentia parvamente, sem saber porquê, a trair
coisas imprecisas, indefinidas, vagas, mas terrivelmente
importantes, os tipos das máquinas na tipografia, o sujo pó de
chumbo nas frestas das janelas, a minha mãe a servir a sopa no
living escavado, cujos móveis inacreditáveis pertenceram já
aos meus avós e aos meus tios, a trair sucessivas gerações de
comerciantes anónimos nas suas molduras de loiça, ou então
algo para o qual nunca encontrei palavras, ou simplesmente
nada, nada, nada, só um mal estar anónimo sem consistência
nem causa. Deitados um ao lado do outro, abraçados,
escutavam os ruídos domésticos da casa, o aspirador, telefone,
vozes, e para lá das vidraças, muito longe, o mar.
— Casei-me cinco ou seis meses depois, no fim da recruta,
disse o alferes a coçar a cicatriz da testa com o pulso. Música
na igreja, toneladas de flores, quatrocentos convidados, um
charivari do camandro. A Inês a esconder a gravidez de três
meses no vestido branco, e nunca a achei tão bonita como
nesse dia.
Semanas antes convocaram a família do alferes a
Carcavelos, e o velho, apesar dos esforços do pai da Inês,
mantivera-se carrancudamente mudo, a fitar um canto de
moldura encolhido no fato cor de grão: Queremos que o seu
filho trabalhe connosco: e o sorriso humilde, servil,
agradecido, da mãe, um esgar de costureira que desencantara
de uma gaveta do armário um broche complicadíssimo e
obviamente falso, rebentando como um aneurisma no decote
do vestido. A tua mãe, os irmãos da tua mãe, os amigos da tua
mãe olhavam para nós, para a pequena ilha assustada que
formávamos, como para uma espécie esquisita de bichos em
extinção, e eu percebia que os velhos, se pudessem, se
safavam para a cozinha a comer com os criados, percebia,
estagnado nas pupilas da velha, o pedido de desculpa de ter
nascido na Amadora, de circular de pantufas em casa o dia
inteiro, de não jogar às cartas, de adorar magazines baratos, de
desconhecer quem toda a gente conhece. Mas os pais da Inês
faziam de conta que não entendiam, os pratos sucediam-se
sem uma frase cataclísmica (Por amor de Deus aguentem-se
mais um bocadinho, suplicava eu em silêncio, aguentem-se
sem erros de gramática, sem palitos, sem os verbos trocados,
sem mirar de baixo para cima o empregado que os serve em
soslaiozinhos cúmplices de igual para igual) e quando tudo
aquilo terminou a tua família veio despedir-se à porta,
tomámos um táxi para casa e não calcula o alívio que senti,
meu capitão, a possibilidade de respirar serenamente outra
vez.
— As putas como dantes, rosnou pensativo o tenente-
coronel para o interior do copo, às putas para lembrar a guerra.
Se levamos uma vida tão idiota porque é que não se há-de
fazer isso, conho?
— E nem sequer te davas conta que a revolução se
aproximava, perguntou o oficial de transmissões,
surpreendido, nem sequer que as cuecas do país rebentavam
nas costuras?
Bom, não se dava conta ao certo mas ainda faltavam uns
anitos, não? Fora à guerra, voltara da guerra e népia: não se
falava disso em África, não se falava disso em Lisboa, a Inês,
nas cartas para Moçambique, quase só se limitava à Mariana,
às gracinhas da Mariana, às primeiras palavras da Mariana, às
otites e anginas e vómitos e fastios da Mariana, a mãe
lamentava-se da doença da espinha e garantia que o pai não
escrevia porque Já o conheces, mas que pensava nele o tempo
inteiro, És o único filho que nós temos, agora da revolução não
se apercebera de nada, só já muito perto quando a família da
mulher começou a transferir à pressa dinheiro para a
Alemanha e para a Suíça, a desembaraçar-se das companhias
por tuta-e-meia, a querer negociar o banco, quando lhes notava
um luar de aflição na cara e os fixava perplexo, interrogativo,
sem entender, até que o sogro o chamou de parte ao escritório,
desligou o televisor, voltou-se de costas para o armário de
acaju do bar e as pedras de gelo do copo de uísque
castanholejavam-lhe na mão, indicou-lhe uma das poltronas da
biblioteca repleta de enciclopédias e de gravuras de caça,
inclinou para ele o inofensivo troncozito abundante, e
segredou, na voz estrangulada e doída do costume, Estamos
lixados que vêm aí os comunistas.
— Acho que sim, às putas, quando o major Ribeiro acabar
de discursar, soprou o tenente-coronel para o cálice de
medronho. Uma noitada como as de Moçambique e a pistola
apontada aos colhões do porteiro, Se alguém de fora entrar
aqui já sabes.
Apoiado no cotovelo, junto ao corpo nu e curvo, sem
arestas, da Inês, o alferes ouvia os passos de toneladas do
caseiro no saibro por baixo da janela, o giro sacudido dos
irrigadores de relva, os cochichos e as conversas das criadas na
copa, a respiração agora serena, em paz, da rapariga (Deixa-te
ficar nas calmas, amor, até às sete não vai vir ninguém), os
vagidos incomensuravelmente distantes do mar, que
imaginava morrendo, em soluços sucessivos, na praia por
limpar, ainda sem os toldos de abril, vigiada pela multidão de
abutres de cartolina das gaivotas. Como em Sesimbra, meu
capitão, com a Ilda, a secretária do banco que trabalhava
comigo, uma magrinha solteira e apagada, com borbulhas, que
morava em Algueirão com os tios, ia aos sábados à Caparica
com um enxame de amigas também solteiras e apagadas
dentro de um Citroën solteiro e apagado, comprava revistas
pífias de cinema e apaixonava-se platonicamente por
sucessivos economistas solteiros e apagados que nunca
repararam nela, nas suas costelas salientes, no hálito de
rebuçado peitoral, nas bochechas chupadas, nos vestidos
estritos de viúva. Como em Sesimbra, no hotel, meu capitão,
onde de tempos a tempos passávamos dois dias à socapa a
pretexto de viagens de trabalho, de contactos com
estrangeiros, de negócios complicados e urgentes. A Ilda
despia-se no quarto de banho e obrigava-me a fechar os olhos
até puxar o lençol à altura do nariz comprido de tucano
constipado, ocultando os seios inexistentes e o acne em fogo
do pescoço. Os joelhos e os tornozelos agudos magoavam-me
as pernas, o corpo de lombriga lunar grudava-se, desagradável,
contra o meu, engolia pastilhas para a tiróide e o coraçãozito
de pássaro latia, desabalado, no meu peito. Passeávamos na
areia, conversávamos de mãos nos bolsos, eu falava-lhe do que
me preocupava, das chatices com a Inês, das porras do
emprego, das pequeninas merdices do quotidiano, pensava Se
me casasse contigo enfiavas-me em três assoalhadas no
Cacém, sem telefone, decoradas de bibelots baratos e de
móveis de saldo, lia o jornal na cama, usava desodorizante em
pó, os meus pais sentiam-se no mesmo comprimento de onda
que a nora e eu andava, por assim dizer, porreiro. A minha
mulher nunca me perguntava nada quando eu voltava a casa,
meu capitão, escorregava-me um beijo fugidio na testa e
galopava a retocar a maquilhagem enquanto eu me aboborava
na cadeira da sala, Porque não irmos às putas?, porque não
comemorar os dez anos de guerra?, o pintor de aspecto
esquisito do edifício em frente assomava à varanda de paleta
na mão, uma máquina de cortar relva zunia-lhe, persistente, no
fundo da memória, vozes de cozinheiras, ecos, as botas do
caseiro no saibro do jardim, eis a vivenda de Carcavelos a
seguir ao portão ferrugento, as enormes pupilas vermelhas dos
cães a saltarem no escuro, eis a maçada morna do costume, a
lassidão morna do costume, Quieto Roy, quieta Bazooka,
quieto Bruce, as cabeçorras de língua de fora a entrarem pela
porta aberta do carro, a Inês a subir os degraus do alpendre, a
tocar a campainha, a desaparecer com a filha ao colo no
vestíbulo iluminado, se as putas ajudam a esquecer chiça
vamos às putas, e eu quieto ao pé do automóvel, meu capitão,
de punhos enfiados nos bolsos, a compreender pela primeira
vez o opaco, impenetrável, quase sólido, silêncio sem
esperança do meu pai.
9

— À mulher do meu tio deu-lhe a trombose no ano em que


viemos da guerra, explicou o soldado a acender com um
fósforo precário, ziguezagueando de vinho, o cigarro do oficial
de transmissões. Estávamos muito bem à mesa e nisto pumba,
ouvimos um estardalhaço do caraças na cozinha.
O tio, em camisola interior de alças, de cara encoberta pelo
candeeiro de vidrinhos, que tilintavam se alguém abria a janela
como sinos microscópicos, sacudia e espumava à cabeceira a
habitual raiva de trezentos e sessenta graus, dirigida contra a
óbvia e colectiva canalhice do mundo, a Odete arrumava com
a faca a pele e as espinhas do peixe no rebordo do prato, de
modo a conseguir um espaço em meia-lua para as cascas da
fruta, os móveis desemparelhados respiravam brandamente na
sombra, soprados pelos pulmões de renda das cortinas, o
retrato da mãe iluminava-se e apagava-se no aparador, a tia
Isaura esfregava tachos na cozinha, cuja claridade se
derramava, rastejando, nas tábuas desajustadas do soalho,
numa espécie fosforescente de leite, e de repente, meu capitão,
escutou-se apenas o rumor da água na pia, um silêncio
côncavo, ritmado, pelo velho, dos assobios da asma e dos
roncos da sua fúria sem limites, e a seguir uma panela
despenhou-se no chão de pedra, uma cafeteira rebolou
irregularmente, a coxear na asa, quase até aos meus pés, e do
mesmo modo que nas derrocadas do cinema, meu capitão,
primeiro a ameaça de um torrãozinho a saltitar nas pedras,
depois outro torrãozinho, fiapos de areia, e por fim uma
imensa e tumultuosa cortina de terra a cambulhar outeiro
abaixo numa tempestade de pó, veio o som de latas, de
estanhos, de alumínios amolgando-se nos azulejos, uma pilha
de loiça a desfazer-se no chão, o meu tio libertou-se da cadeira
com uma patada, atirou a bola do guardanapo para a toalha de
oleado, um copo de vinho tombou e o líquido pingava no
sobrado, a Odete seguiu-o sem largar a faca, e toparam com a
dona Isaura estendida na cozinha, de olhos abertos, com o
nariz na pedra, vidrada de bílis, ou ranho, ou cuspo, ou um
sopro de vómito, cercada de cacos e pandas.
— Nunca vi tanto lixo ao redor de uma pessoa, meu capitão,
disse o soldado a limpar a cera da orelha com o fósforo
apagado. Perdera os chinelos, os joelhos gordíssimos
abanavam, à porta do quintaleco das traseiras assomavam
couves pálidas, o céu castanho, uma ou duas árvores
indistintas, galinhas a rasparem o capacho da terra com as
unhas.
— De que é que estás à espera para chamar um táxi?,
berrou-lhe angustiadamente o tio, à procura do casaco entre os
panos da loiça, pendurados de uma tira de madeira eriçada de
pregos ferrugentos, arqueados numa espécie de anzóis: Nem
sabes a quantas andas, pensou o soldado, só te falta pescar os
sapatos na gaveta dos talheres.
Correu até à esquina com a Gomes Freire, onde um jorro
ininterrupto de trânsito subia e descia a avenida mugindo
como renas, e postou-se junto ao corcunda dos jornais que o
mirou com espanto, fazendo desesperados sinais com os
braços aos automóveis que passavam. Imaginou a
concentração das vizinhas, chamadas por um esquisito
tropismo de girassóis fúnebres, o tio e a Odete a arrastarem o
corpo desengonçado para o tapete de ráfia da entrada, a pressa
de o verem chegar no tumulto de tripas do gasóleo, a tia Isaura
a babar-se, de olhos cerrados, espojada num banco: mas
nenhum carro obedecia aos seus acenos, camionetas e
eléctricos roçavam-se por ele a tilintar, oscilando e sacudindo-
se, cachos de pessoas apressadas, neutras como manequins,
tentavam em vão atravessar a rua, um polícia de mãos atrás
das costas inchava a crista majestosa do boné diante dos
piaçabas e garrafas de uma drogaria. Mais abaixo, um sujeito
de boina que o espiava com ódio caçou sorrateiramente um
táxi e sorriu-lhe, refastelado, lá de dentro, um vingativo
risinho triunfal: Lixou-me à má fila, meu capitão, plantou-se
na outra esquina e papou-me. Atirou-lhe um manguito
inofensivo quando o carro já ia suficientemente longe para que
o da boina não visse, e um tipo corpulento, de pasta, fardado
de contínuo, a bater a sola no rebordo do passeio, rosnou um
palavrão cúmplice crescendo para um autocarro cuja porta
automática se descerrava num longo vagido de metais. Se
arrasassem os prédios que desciam sinuosamente para o
Martim Moniz percebia-se o Tejo, pensou o soldado, os
contentores, os guindastes, os ferrugentos barcos de carga
encostados à pedra escura do cais, e assaltou-o de súbito a
vertiginosa sensação do alheamento do mundo a seu respeito,
Dá-me uma coisa qualquer, bato a bota, e amanhã é dia e eu
morto, a malta, nas tintas, continua a caminhar para os
empregos, as horas rodopiam nos relógios, as maternidades
enchem-se de grávidas aos gritos, e eu morto, que injustiça,
morto como os mortos da guerra nos caixões do vago-mestre,
selados a chumbo na arrecadação pelo maçarico do
carpinteiro, aguardando em pilha, num canto, transporte para
Lourenço Marques, e aí, e em armazéns a abarrotar de fardas,
de sementes, de volumes de tabaco, de poeira, o navio
velhíssimo que largava a apitar lamentosamente, nas manhãs
de cacimbo, na direcção de Lisboa.
Já observou os olhos dos finados, meu capitão?, perguntou o
oficial de transmissões entornando um paliteiro com a manga.
Não reflectem nada, amigo, são lâmpadas fundidas, globos de
vidro incapazes de luz: imagine-me só o que é ficar assim de
repente, esticado de colete para o ar, de mãos na barriga, com
um lenço na cara como a mobília no verão. Não sei como é
com os outros, mas se começo a empreender nisso dou em
droga.
— No enterro da minha mulher, anunciou o tenente-coronel
a estrangular um bocejo na palma, apareceram umas vinte
pessoas no máximo. No máximo. No máximo dos máximos. O
padre andou a galope com o latinório o tempo todo, e veio no
fim pedir-me desculpa de apressar a cerimónia porque tinha
uns oito baptizados a seguir e o médico recomendou-lhe que
poupasse a tensão. Seja como for descanse, garantiu-me ele às
pancadinhas nas costas, que com as rezas que lhe amandei
seguiu para o céu direitinha que nem um fuso: talvez que tenha
visto o Purgatório à distância mas nenhuma labareda, posso
jurar-lhe, a chamuscou.
Se continuam a beber, e vão continuar a beber, pensei eu
observando-lhes os cabelos despenteados, as caras oleosas de
suor, os membros frouxos, sem força, que se moviam na toalha
pendentes como trombas inertes, daqui a nada anda tudo de
gatas sob a mesa, a vomitar restos de febras para cima uns dos
outros, a tropeçar, a arrotar, a empurrarem-se em marradas
cegas de bode, a rebolarem na alcatifa sujíssima do chão, entre
grunhidos, miados, arranhadelas e roncos. Um táxi parou
finalmente, o soldado disputou-o a pulso com duas colegiais
tenazes, uma delas estrábica, que borboleteavam como pintos,
acabou por abrir a porta da frente (o letreiro Não Fumar
saltou-lhe para os olhos como um cisco de braseiro), por se
instalar no banco de plástico verde, junto do contador que
vibrava tiquetaqueando, por mandar seguir para a Rua da
Alameda numa voz baça, exausta.
— É para levar uma doente ao hospital, explicou ao chofer,
insecto desconfiado que se afadigava, torcido no assento, a
guardar a caixa de charutos do dinheiro debaixo das pernitas
magras. A mulher do meu tio teve uma pataleta agora mesmo.
— Ainda está viva, ao menos?, questionou o outro a
engrenar, abraçado ao volante, uma primeira difícil, que
produzia o ruído, de zinco contra zinco, de uma colher a raspar
a custo bossas de caçarola. Se querem safar-se da autópsia
aviso-o já que não guio carretas funerárias.
Claro que foi o costume, meu capitão, que era sempre o
costume, disse o alferes encolhendo os ombros resignados. A
criança a rabujar até às tantas e eu a conduzir em silêncio, com
uma gana dos diabos de as estrafegar às duas, de lhes pregar
com a manivela no toutiço, de ver o sangue a correr pelos
buracos das orelhas. Tão zangado que nem enxergava a estrada
à minha frente.
À entrada do beco levedava já um monte de vizinhas de
avental, de vendedores ambulantes, de clientes da taberna
próxima, dispensando, de cigarro na boca, advertências e
conselhos. Os tipos de blusão amarelo que despejavam grades
de uma camioneta de refrescos assistiam, de caixote ao ombro,
fornecendo explicações pormenorizadas a um senhor de
chapéu, o qual amansava o suor da testa com o lenço. As
viúvas das janelas, de cabeça à banda, trinavam como
periquitos. E ao longo da travessa, em minúsculos largos de
que se distinguiam flores, postigos estreitos, cordas de roupa,
homens muito idosos balouçavam devagar, de pantufas, em
cadeiras de vime.
O táxi imobilizou-se sem desligar o motor, enquanto o
chofer desembrulhava um rebuçado para a tosse numa
trovoada de papel, as pessoas abriram em silêncio uma espécie
de alas até à porta da casa, as viúvas calaram-se por momentos
fixando-o com o agudo verniz de pássaro dos olhinhos, o
senhor do suor, de risca do cabelo na orelha, tirou
respeitosamente o chapéu, e o tio surgiu no vestíbulo, com um
casaco de gola levantada sobre a camisola interior, a abotoar a
breguilha das calças em equilíbrio sobre os chinelos de verão.
— Vimo-nos gregos para a enfiar no automóvel, contou o
soldado a abrir e a fechar a caixa de fósforos num meio sorriso
gasoso: o meu capitão não calcula o peso que aquela velha
tinha. E depois sobrava constantemente um braço, ou uma
perna, ou a cabeça, foi um sarilho de todo o tamanho para a
entornarmos no assento: se os gajos dos refrigerantes não
colaborassem ainda a esta hora lá estávamos.
Mas coube de facto a família inteira, ele e a Odete atrás com
a doente, a molhar-lhe a nuca com um pano húmido, e o dono
das Mudanças Ilídio à frente, de suspensórios caídos ao longo
das calças bambas, junto ao chofer que arrancou de um pulo,
quase atropelando o rapaz da taberna que comentava
minuciosamente a infelicidade para dois soldados
estupefactos. Virou-se e distinguiu pelo vidro o beco que se
desvanecia no escuro, enquanto o garoto, postado no meio da
calçada, ultrajado, lhes enviava a duas mãos caralhadas
frenéticas.
— Está viva?, perguntou, inquieto, o chofer de táxi ao tio, a
tocar por precaução na figa de chifre do espelho. É que se não
está perco um tempo do caneco no hospital, a dar o nome, a
mostrar os papéis do carro, a sacudir-lhes o alvará no nariz, a
aturar o polícia da entrada.
A dona Isaura, atravessada em cima de nós, assobiava como
uma vaca em coma, e estrebuchava de quando em quando
furando-me os ossos da barriga com a aresta aguda do
cotovelo. A Odete, comprimida entre a mãe e a porta,
escoceava uma nádega gigantesca para lograr respirar, e a
cabeça grisalha da enferma oscilava como um chinês de
porcelana rente ao tapete do táxi.
— Viva?, exclamou o tio com um murro de protesto no
peito, que lhe provocou de imediato um acesso de tosse. A
gente só a leva ao hospital de carro a analisar o chichi,
percebe?, é uma mania aqui do bairro que nós temos.
A Gomes Freire de novo, o Campo Santana rodeado de uma
muralha de assimétricos edifícios desconjuntados, a estátua, a
pompa grega da Faculdade de Medicina com as suas colunas
sem beleza, um troço de rampa, um túnel, um homem de farda
que os mandou parar, e se aproximou do automóvel numa
marcha pausada de cardeal ou de avestruz. O tio quis descer o
vidro mas a manivela, solta, ficou-se-lhe na mão, e acabou por
debruçar-se de mergulho atropelando o condutor magrinho, o
qual exibia um aspecto de mártir de retábulo,
conformadamente disposto a todas as desgraças:
— Trazemos ali a agonizar a esposa do comandante da
Guarda, segredou o asmático numa confidência de Estado.
Viemos à paisana porque somos da secreta: a família não quer
que isto se saiba.
O avestruz recuou um passo, atónito e respeitoso, a Odete
conseguiu aliviar-se da nádega com um puxão mais forte, e o
corpo escorregou como um odre mal cheio, até se entalar no
intervalo dos bancos num débil ganido de protesto. O da farda
concedeu-lhes passagem numa continência cúmplice, o táxi
tornou a saltar como se os calcanhares do chofer se eriçassem
de esporas, o tio, irado, jogou a manivela para a rua (Que
merda de carroça você foi arranjar, caramba) sem que o
condutor, à espera, sem dúvida, que um de nós o apunhalasse
pelas costas, se atrevesse sequer a uma queixa e surgiram, à
esquerda e à direita, os pequenos edifícios sem pintura dos
laboratórios e das enfermarias, criadas de bata quadriculada,
taludezinhos semeados de flores escleróticas que tentavam em
vão sobreviver nos canteiros sem água. Um monte de detritos
elevava-se contra um muro desfeito, cães amarelos farejavam
detalhadamente o bouquet das sarjetas.
— Falta muito?, perguntou o soldado aos ombros estreitos e
imóveis do chofer. É que a doente esmigalha-nos os pés.
Ambulâncias com lâmpadas azuis no tecto, mais táxis,
bombeiros que carregavam macas desocupadas de lona, é ali:
uma porta larga, uma névoa sombria onde se remexiam
sombras, magotes de pessoas fúnebres à entrada: Chega-se a
esperar cinco e seis horas, meu capitão, dá para um homem
morrer à vontadinha.
— Cinco e seis horas na peida, urrou o tio a fungar
furiosamente, na entoação de lodo de quem não tem pulmões,
só duas guelrazinhas duvidosas de pargo. O amigo vai ver
como eu resolvo isto num fósforo: é para internar interna-se, é
para casa passa-se a receitinha e toca a andar. Agora na
conversa dos doutores, puta que os pariu, não embarco. E, se
quando eu voltar, o carro não estiver aqui, o meu rapaz faz-lhe
a barba à bofetada, que a matrícula já cá canta na cabeça.
Arrumaram-se atrás de um Volkswagen da polícia com três
cachuchos de ar solene refastelados na napa, e começámos a
parir em vão a dona Isaura para fora: o corpo, encaixado entre
os bancos, resistia, o carrapito grisalho desfazia-se numa
chuva de pinças e madeixas sujas, que meneavam diante da
cara como agulhas tesas de arame. À volta deles anoitecia,
lâmpadas esparsas acendiam-se nas janelas de estores
rebentados e soltos, os contornos esborratados dos edifícios
adquiriam uma desconhecida espessura, os rostos das pessoas
misturavam-se numa amálgama inextrincável de feições. A
Odete libertou um dos braços da mãe (dedos como chouriças,
unhas roxas, uma aliança fininha a comprimir-lhe a carne), um
bombeiro adolescente empurrava solícito pelo outro lado, um
dos polícias pipilava ao microfone juras de amor eterno para o
cabo-de-esquadra, criaturas de membros engessados
tropeçavam para as grades da saída, escoltadas pelo desgosto
da família.
— Uma ajudinha, sócios, ordenou o tio a um par de
indivíduos de branco (casaco branco, calças brancas, sapatos
brancos) que se cruzavam com eles no sentido da lixeira. Ou
vocês desejam, caralho, ler amanhã no jornal que os doentes
morrem encravados à porta do banco de São José?
Os da ambulância emprestaram a maca (objecto complicado
e pesadíssimo, com rodas e correias), e acabaram por extrair à
martelada o teimoso corpo da velha do interior do táxi, um pé
calçado e o outro descalço, as varizes das coxas à mostra, a
boca torta a suspirar ganidos sem ritmo, um fedor amoniacal
evaporando-se da roupa. A Odete compunha, agachada, a
blusa da mãe (Que boa que tu és, marota, pensou
instantaneamente o soldado), o miúdo tapou a velha com uma
manta coberta de nódoas de vomitado e de sangue, e a dona
Isaura ganhou logo um aspecto digno de moribunda a sério,
estendida na lona como um elefante abatido, de olho direito
aberto e olho esquerdo fechado, numa careta de tiro aos
pombos.
— Só a parte do táxi foi uma tourada que o meu capitão não
calcula, disse o soldado a enxotar o cabo quarteleiro bêbado,
que se lhe queria sentar à força no colo. Juntou-se mais gente
para assistir do que numa feira, cada qual puxava um bocado
de carne ou de roupa para onde calhava, por milagre não se
partiu logo ali a mulherzinha em estilhas. E o meu tio a dirigir
a operação aos gritos, entusiasmando uns, ralhando com
outros, insultando os restantes, como se comandasse, entende,
a extracção de um piano de cauda de um quarto minúsculo,
vem vem vem, um nadinha à esquerda, alto, rode tudo, já está.
Se a velha não tivesse tido um ataque antes dava-lhe de certeza
uma solipanta nesse instante, com aquelas manobras, aquela
berraria, aquele pandemónio, as muletas e as pernas
engessadas aumentando sempre de número, a binocular a cena.
O tio mobilizou imediatamente, para levarem a maca, o
chofer de táxi e um espontâneo colhido de surpresa, ao acaso
(Eu? eu? eu?) no grupo interessadíssimo dos assistentes (Em
lugar de armar em parvo venha ao menos ajudar uma infeliz) e
irrompeu marcialmente pela urgência do hospital, seguido do
bombeiro, da Odete e do meu espanto siderado. Cá fora
anoitecera por completo, os prediozitos das enfermarias
sumiram-se de vez no escuro, o contorno das árvores não se
distinguia contra o céu sem estrelas, vultos indecisos nadavam
de quando em quando por detrás das persianas (e o soldado
imaginou cirróticos sonâmbulos flutuando, de pijama às riscas,
em compridíssimos e apavorantes corredores vazios), o motor
de um gerador eléctrico trepidava em qualquer parte, como em
África, meu capitão, se as luzes se apagavam, lembra-se?, e
esbarrávamos às apalpadelas de beliche em beliche à procura
da cama, ou da porta da caserna para urinar em cuecas, ao
relento, farejados pelos cachorros miseráveis do quartel.
— A mim os hospitais recordam-me a enfermaria da Pide
em 73, disse o oficial de transmissões, com tipos fechados à
chave a uivarem de dor a noite inteira.
Uma espécie de claustros gelados, irreais de néon, doentes
por toda a parte, cobertos de compressas, sentados no chão,
olhando-nos na distantíssima altivez apática do sofrimento,
macas, cobertores e camas amontoados numa confusão
indescritível, arrastadeiras, algálias, algodão, tribos acocoradas
de ciganos comendo em silêncio, funcionários transportanto
papéis, bêbados a ressonar em longos bancos de pau, gemidos,
queixas, suspiros, arrancos de vómito, dois arcos de pedra,
munidos dos letreiros Homens e Mulheres, a seguir ao relento
das retretes, onde as fezes acumuladas se aparentavam a certos
rochedos da vazante, e lá dentro, activíssimos em torno de
marquesas vazias, médicos de estetoscópio pendurado ao
pescoço como correntes de escanção, examinando, com uma
prega douta na testa, radiografias de ossos contra foscas
superfícies cintilantes. Pousaram a velha, de boca cada vez
mais torta, junto ao lavatório onde os hipócrates se uniam em
concílios cabalísticos, e estes, envoltos em longas abas alvas
de papa, miravam-nos como se fôssemos completamente
transparentes, ali de pé defronte deles, como se não
existíssemos de facto, unindo as enormes cabeças sérias para
estudar o inchaço redondo de um joelho ou o ângulo
antediluviano de um maxilar, a discutirem em voz pausada
fracturas e tumores. (E a claridade baça e doce, pensou,
impregnava a sala de uma atmosfera de altar-mor depois de
um massacre de cristãos, que um balde cheio de pensos,
amarelados de pus, incensava.)
— Claro que não nos ligaram nenhuma, meu capitão, disse
o soldado a guardar finalmente a caixa de fósforos no bolso
das calças, claro que se cagaram em nós. O meu tio bufava de
raiva, tocava, subitamente delicado, nas costas deste e daquele,
o chofer e o bombeiro acabaram por se escapar à sorrelfa, a
Odete sentou-se num ângulo de banco, de mãos no queixo, ao
lado de uma rapariga que gania, a apontar o tornozelo
desarticulado. Por fim um sujeito trombudo despegou-se
molemente do concílio, ordenou Tirem-lhe a manta, comentou
entre dentes para a parede atrás dele A mania das mantas que
esta gentinha tem, vibrou umas marteladas cansadas nas
pernas e nos braços da velha, picou-lhe com um alfinete a
planta de xisto dos pés, observou-lhe as pupilas com uma
luzinha minúscula, escreveu à pressa numa folha de bloco de
receitas, rasgou-a num movimento rápido, endireitou-se a
sacudir a bata de migalhas invisíveis, entregou o papelinho ao
meu tio, disse Trombose, não há vaga aqui, levem-na para casa
e um comprimido disto a cada refeição. O tio abriu a boca
(para protestar? para pedir? para invocar uma hipotética cunha
qualquer, uma recomendação, um aviso importante, uma
ordem expressa, Internem-na, do comandante da Guarda?),
mas o médico, já longe, esquecido, inatingível, palpava a
barriga de uma miúda em prantos, esticada como um bacalhau,
e acabou por se quedar a meio caminho, emparvecido e mudo,
a expulsar a custo a sua asma pela garganta opressa de robalo.
O soldado veio sozinho à entrada à cata de transporte,
passando cautelosamente por cima de um melancólico inferno
de tipos deitados que chiavam, e a textura quase sólida da
noite, que destruíra por completo as casas, as árvores, a
cidade, e em que se pressentia uma ameaça amarga de chuva,
balizada pelas lâmpadas coloridas das ambulâncias e os faróis
dos automóveis dos doentes, fê-lo sentir-se uma toupeira
cavando subterraneamente o seu caminho no labirinto de lama
das trevas. A suspeita de um anúncio luminoso boiava de leve,
adornada, na distância, e não existia nenhuma janela acesa em
qualquer parte.
— Pintei um quadro assim, disse o pintor, nu, de costas na
cama, cercado de prateleiras de esculturas africanas, a
acariciar o antebraço do soldado. Chama-se Negro sobre
Negro, e vendi-o à Embaixada da Bulgária.
Que velho é este gajo?, pensou com desgosto o soldado
espiando o corpo gordo e desagradável do outro, os pés de
periquito, de dedos torcidos, lá ao fundo, as raízes dos
tornozelos que se alargavam a pouco e pouco até às nédias
coxas derramadas no lençol e ao grisalho tufo moribundo do
púbis afogando a pila no seu buxozinho oxigenado, e depois o
ventre saliente, os mamilos de mulher, a ausência arredondada
de músculos. O preto dormia, enrolado numa esteira, no chão,
entre telas, cavaletes, frascos de terebintina, manchas e latas
de tinta, exalando no seu sono, pelo orifício de polvo
desdentado dos beiços, frases incompreensíveis em francês. O
soldado distinguia mal a sua própria roupa misturada na
penumbra com a roupa dos dois, o fato-macaco das mudanças,
as meias, os sapatos pingados e sujos, as pulseiras do pintor
tilintavam ao tocá-lo, usava vários colares no pescoço e o
rímel desfeito dos olhos escorregava ao longo das rugas das
bochechas. As três notas do costume esperavam, dobradas, na
mesinha de cabeceira, presas pela fotografia de um levantador
de pesos e halteres apocalíptico (Ao meu bichaneco querido do
seu Kid Gomes que o não esquece), emoldurada numa
esquadria de metal. Pego no meu dinheiro, pensou o soldado
buscando ver as horas, à socapa, no pulso do artista, e piro-me
da Rua da Mãe-d’Água o mais depressa possível: talvez que
ainda chegue a tempo de a ir buscar à escola, talvez que
possamos conversar um niquinho no autocarro para casa. O
oficial de transmissões abanou a cabeça, admiradíssimo,
desiludido, descoroçoado, girando a ponta acesa do cigarro no
rebordo do pires:
— Eu a lutar pela revolução como um parvo, e vocês todos
preocupados em safar-se o melhor que podiam.
Acabou por arranjar um táxi do qual acabava de
desembarcar a custo um homem dobrado para a frente,
agarrado ao estômago, escoltado por dois amigos ou acólitos
ou colegas ou cunhados, que o amparavam pelos sovacos do
casaco. O chofer contava o troco inclinando-se para a
esfumada ampola pálida do tablier: um gajo forte, mal
humorado, com bexigas e marcas de cicatrizes de furúnculos
no pescoço. Trouxeram a velha na maca dos bombeiros,
esbarrando ao acaso em pernas, troncos, cabeças, ventres
moles que protestavam, semelhantes às buzinas dos umbigos
das bonecas, os médicos continuavam a estudar radiografias e
a fumar numa exasperação entediada, balões de soro
ascendiam à deriva no ar, doentes com tubos no nariz
deslizavam para um lado e para o outro em grandes camas
com rodas, e tiveram, à porta, de segurar na mãe da Odete em
peso para a instalar no carro, de queixo a bambolear de ombro
a ombro, enquanto o das bexigas, cego para os esforços deles,
e cuja má disposição enérgica ganhava por vários
comprimentos à do tio, acelerava o motor numa impaciência
ácida. O mecanismo eléctrico calara-se, e adivinhava-se o
trinar de grilos, de sapos ou de ralos, interrompendo-se e
recomeçando num morse intraduzível e sem fim.
— Adoeceu na pior altura, meu capitão, disse o soldado a
coçar o cabelo com as falanges compridas, maltratadas. O
negócio crescia, alugáramos um segundo armazém ainda com
mais ratos e baratas e teias de aranha e caixotes que o
primeiro, metemos pessoal, pagávamos as letras da camioneta
nova. Trabalhávamos doze e treze horas por dia, o velho
entregava-me aos poucos as contas do escritório, e logo numa
altura dessas, veja só, é que ela se foi lembrar da trombose.
O pintor voltou-se de lado na cama para lhe beijar o pescoço
(Três notas é quase o preço daquele vestido que tu devoras
sempre, na montra ao pé da escola) as molas do colchão,
igualmente decrépitas, rangeram desabridamente os seus
metais, o candeeiro do tecto aclarava-lhe as madeixas ruivas
(Deixo-o fazer a coisa, deixo-o entreter-se um bocadinho e
vou-me embora), o chofer ajeitou-se no assento, apontou com
o polegar gigantesco (faltavam-lhe dois dedos nessa mão) a
porta do hospital, e informou numa voz que rebolava como um
pedregulho por uma encosta abaixo:
— Não há nenhum doutor que não seja filho da puta
rematado.
— A levar a infância no banco de trás do Fiat, disse o
alferes com amargura, no que é que o meu capitão queria que a
miúda se tornasse?
Empilharam-se no carro segurando a velha que dançaricava,
sem forças, bolsando vómitos aguados para cima deles, e os
meus ombros roçavam de vez em quando os teus, os meus
joelhos encostavam-se-te, nas curvas, à saia, a tua anca
friccionava-se na minha, e as ruas da noite de Lisboa
desdobravam-se uma após outra como os tubos de um óculo,
fachadas de cartão, saguões fantasmagóricos, largos desertos,
numa aurora de sangue no perfil desigual dos telhados. O frio
que antecedia a manhã barbeava-lhes as costas, furando a
grossura da roupa de centenas de estiletezinhos gelados.
— Não quero nada com aqueles cabrões, explicava o chofer
ao tio, jogando grandes palmadas ao volante. Se alguém
adoece lá em casa, amigo, tratamo-nos com os chás de
ervanária.
Daqui a pouco é dia, pensou o soldado, as sombras vão
evaporar-se obrigando os edifícios a emergir do escuro
idênticos a rochedos da vazante, despertadores de folha
esguicham como artérias brutalmente rasgadas por uma faca
súbita, a luz do candeeiro apaga-se devagar e uma cinzentura
indecisa, uma névoa de cansaço, uma repentina e limpa nitidez
sem cor, aumenta os ramos, descobre nas frontarias
pormenores esquecidos, transforma as tabuletas em palavras
que gritam e queimam se as olhamos. A cara amarrotada da
Odete, pegada ao vidro, observava sem curiosidade o desmaio
das lâmpadas, o brilho das calhas dos eléctricos, os homens de
colete amarelo de borracha que lavavam a rua com o auxílio
de compridas mangueiras que se dobravam e enrolavam,
intermináveis, no asfalto, pisadas pelos pneus em pequeninas
gingadelas desajeitadas de ganso. Daqui a nada é dia, pensou o
soldado a acender um cigarro, os arbustos da mata agitam-se
de leve, o cabo do rádio, agachado, recolhe o pano de tenda, as
folhas segregam um suor transparente de humidade, o preto
vai acordar na sua esteira e fazer café para nós os três, o
pintor, desperto, percorre-me de novo o corpo com as
demoradas mãos macias de mulher.
— E pode saber-se por onde o cavalheiro anda a dormir?,
perguntou o tio, já vestido, de navalha na mão, metade do
queixo barbeado, metade por barbear, enfrentando-o no
vestíbulo com um sorrisinho de mau agoiro na espuma de
sabão.
— Chazinhos de ervanária e é um pau, repetia o condutor
imperativo e convicto. Sementes de girassol, manteiga de
amendoim, comida medicinal, foda-se, comida pura.
E num berro, como se aliviasse aos quatro ventos um
segredo tremendo:
— Eu não tenho medo de falar, meu amigo, sou naturista,
não alinho em pastilhas.
— Pode não acreditar, meu capitão, admitiu o oficial de
transmissões em tom de confidência, porque se agitavam
cadeiras e preparavam discursos lá ao fundo, mas durante esse
tempo todo, até ser preso, foi praticamente só com ela que
mantive contactos, de tal maneira que me chegava a perguntar
se a Organização, o Olavo, o Careca, a malta inteira,
continuava a existir. Trabalhava, ia ao cinema às segundas e às
quintas, chateava-me de morte, trancava-me no quarto, aos
domingos, a ler folhetos mal impressos, de letrinhas
minúsculas, de Engels e de Marx.
— Prósperos como nunca estivemos nem voltámos a estar,
disse o soldado. A gaita é que a época de oiro das Mudanças
Ilídio foi sol de pouca dura, com o ataque da velha o
entusiasmo do meu tio desapareceu, ralhava muito menos,
alheava-se, cessou de perseguir os empregados, de usar a
bomba para a asma, de gritar. O lixo do escritório desvaneceu-
se, as jarras de flores multiplicavam-se nas estantes à medida
que diminuía a papelada, a contabilista principiou a vir de
manhã ajudá-lo a dirigir a empresa, a corrigir as parcelas, a
ladrar ordens aos motoristas, a combinar fretes, a responder ao
telefone, uma mulher sem idade, de óculos, que os observava
com principescos ares proprietários e se aferrolhava com o
velho no cubículo de vidro, toda sorrisos, toda ademanes, toda
carícias, dando pequenos puxões, ridiculamente atrevidos, nas
bochechas do tio. E os negócios de que ele me encarregava,
meu capitão, a partir desse momento viste-os: quer-se dizer
que também eu perdi com a doença dela, não acha?
— A gente com os médicos, explicava o chofer na voz sem
voz das quatro da manhã, empestada de bronquite e de tabaco,
entra assim e vem nas lonas. Olhe, mataram-me uma afilhada
de meningite na Estefânia, e ainda por cima a retalharam para
a autópsia como frango em cozinha de restaurante, pesaram-
lhe o fígado na balança de carniceiro deles, serraram-lhe a
cabeça para tirar os miolos lá de dentro: gostam de fazer mal
às pessoas, sócio, enquanto não destroem um gajo não
descansam. Agora o chá de tília, hã, já viu alguém deitar
sangue do cu por o beber?
Pararam à porta de casa (os flancos do táxi roçavam os
caixotes do lixo despejados da aurora e as bermas apertadas
dos passeios), o tio retirou um maço de notas do bolso das
calças e folheou-as avaramente, de indicador molhado na
beiçola de baixo, a mãe da Odete soltou da couve das saias um
metralhar de peidos (Já nem a merda segura, coitadinha,
comentou o chofer penalizado: abriu o cofre do carro, exumou
do interior de panos e detritos uma embalagem de plástico de
grão-zinhos negros, Obrigue-a a engolir uma colher e conte-
me depois os resultados), o tio enfiou o cartucho na algibeira
engrolando um agradecimento indistinto, levaram a velha de
rojo pelo corredor fora até à cama, tropeçando nos tapetes e
chocando nos móveis, o das bexigas seguia atrás
multiplicando-se numa propaganda entusiástica às ervanárias,
a boca torta da dona Isaura, que a ausência de dentadura
postiça pregueava de folhos concêntricos e moles, cuspia sobre
eles vagas frases sem nexo, a claridade ferida da manhã
dilatava o tamanho da desgraça e dos armários, Que corpo tão
inacreditavelmente grande nos lençóis, meu capitão, que
pernas, que pestanas, que nariz enorme, olhei para a Odete e
pensei É hoje que te como, é hoje que te rebento toda com a
pila, acabam-se a educação e os bons modos e aqui vai disto à
charolês, o tio Ilídio barbeou-se no espelhinho redondo do
quarto, que aumentava numa face e não aumentava na outra, e
onde a madrugada se reflectia num magro círculo triste, e
disse, depois da partida do chofer, Aguenta aí que eu vou à
farmácia comprar os remédios do doutor, seguiu com um
pedaço de sabão agarrado à orelha e um suspensório tombado,
ao lado da cama havia um capacho de franjas com desenhos de
veados dos que se compram no porta a porta a ciganos
flexuosos e equívocos, uma espécie, pensou o soldado, de
Testemunhas de Jeová do contrabando, a Odete, encostada à
janela, aclarada de perfil como nas fotografias das noivas,
espiava a ausência de vozes da rua, o nada da respiração de
passos da noite agonizante e eu, para mim, Depressa antes que
o velho volte, carregado de embrulhos, num odor de algodão,
de desinfectante, de éter, levantar-lhe as saias, repuxar as
cuecas, entrar, meia dúzia de suspirozinhos, já está, ela a
compor à pressa o cabelo e a roupa com os braços aflitos, a
doente agitava as pernas na colcha de quadrados de crochet, o
fecho éclair da breguilha para cima, o riso satisfeito, vitorioso,
discretamente triunfal, Chove, disse Odete da janela e eu
pensei, a coçar os tomates no bolso,
Não sou capaz, não sou capaz, não sou capaz, ergo a cabeça
dos veados do tapete e dou com os coléricos sapatos
reprovadores do tio Ilídio pegados ao nariz, os atacadores
sebentos eternamente deslaçados, os dentinhos minúsculos da
chuva mordiam, carnívoros, as telhas, pingavam em fio nas
tábuas do soalho por um intervalo do tecto, vou buscar um
balde de plástico, uma cafeteira, uma panela, o cão do vizinho
latiu como se estivesse no quarto, atrás da cómoda, ali
presente, de assustadores olhos azuis no meio deles, apetece-
me beijar-te ora que porra e não consigo, apetece-me tocar-te e
não consigo, apetece-me comer-te e não consigo, um retrado
da dona Isaura e do tio, de braço dado, considerava-o com
reprovação do naperon oval da mesa de cabeceira, junto de um
copo de água tapado com uma rodela de cartão, o
compartimento cheirava a bafio, a fechado, a suor, a falta de
sabão, Repara como chove, disse-lhe a Odete, e o soldado
aproximou-se dos caixilhos e do teu corpo direito encostado às
cortinas, explica-me aritmética, ensina-me francês, faz-me
sentir menos cansado nesta aurora que sangra como um golpe
na cabeça, E a revolução?, perguntou o oficial de transmissões,
irritado, vocês cagavam todos na revolução?, Se calhar gosta
de mulheres, pensou o soldado, se calhar não lhe agrado, os
cabelos húmidos da rapariga desciam pela testa como limos
baços, espreitou para fora, ergueu o cotovelo para lhe tocar no
ombro, as casas afogadas no nevoeiro ascendiam lentamente
do asfalto, e esta cor do céu, meu capitão, o fio angustioso da
manhã, e quando eu ia apertá-la, calcule o meu azar, o tio
Ilídio a meter a chave à porta, a atravessar o corredor como um
rinoceronte que ataca, e a aparecer-nos à frente, de órbitas
perdidas, silencioso e derrotado, os embrulhos dos remédios
empilhados contra o peito como presentes de Natal.
10

A ordenança bateu à porta as duas suaves pancadinhas do


costume (Porque não uma, ou três, ou uma saraivada de
coices, de impropérios, de murros?), ele subiu as sobrancelhas
dos papéis, disse Entre, e a figurinha de loiça do cabo surgiu
em contraluz no limiar, efeminada e magra, na eterna, irritante
postura equívoca de sempre. Um sargento passou no corredor,
a transportar adiante de si o enorme duplo queixo da barriga:
Até que idade, pensou o tenente-coronel, gramarei estes gajos?
— O nosso capitão Mendes, meu comandante, anunciou a
ordenança numa vozita de oboé, cuja cumplicidade lhe
desagradava.
— Recebi-os uma vez, recebi-os duas vezes, recebi-os três
vezes, disse-me ele no seu tom desiludido e avelhentado, de
palavras caducas e frases repletas de rugas de cansaço, e não
havia maneira de me decidir. Tinha medo de perder a merda
que ganhara nesses anos todos, percebe, o comando, o quartel,
as promoções, a certeza de não morrer de fome, a vidinha do
costume a que me habituei, sem complicações, sem gaita, sem
chatices.
O capitão Mendes avançou uns passos pela alcatifa fora e
permaneceu à espera: Eu há quinze, vinte anos, pensou o
tenente-coronel, eu idealista e imbecil com algumas
esperanças ainda: descansa que perdes as ilusões num instante,
meu pateta, descansa que depressa te transformas num
cagalhão defunto como eu. Levantou-se e antes de se dirigir à
janela exibiu ao outro um maço de folhas policopiadas, numa
estreita letrinha conspirativa eriçada de emendas:
— O que significa esta discursata, nosso capitão?
O vento a erguer terra amarela da parada, canteiros, os
edifícios de cimento em forma de troncos de pirâmide, ou
paralelepípedos, das casernas, jipes de brinquedo rolando junto
às árvores: Há vinte anos metia-me nisto de certeza, acreditava
nas pessoas, nos camaradas, na possibilidade de mudar: agora
não, filho, já nenhuma aventura me convence. O capitão
Mendes, feio, alto, desengonçado, examinou rapidamente os
papéis:
— O estudo da nossa situação comparada com a dos
milicianos, meu comandante, explicou ele num tom
aparentemente opaco, superficial. E em adenda meia dúzia de
comentários críticos acerca da situação geral do país, do
ultramar: como pode ver quase todos os oficiais subscreveram.
As árvores, o muro, e para além do muro a cidade:
minúsculas casas económicas, o trânsito de Vila Franca,
fábricas, o começo incipiente da província.
— Duzentos e tal nomes para já, meu comandante, anunciou
o capitão Mendes de pé no meio da sala, girando em volta os
olhinhos descorados de polvo. Espera-se que os que não
assinaram o façam dentro em breve.
— Trata-se, sintetizando, de uma rebelião pura e simples,
respondeu o tenente-coronel a percorrer com as palmas o
peito, os flancos, as nádegas, as pernas da mulher-a-dias, de
que a cara se alargava num sorriso mudo, carnívoro, enquanto
o major descompunha no corredor, aos berros, o silêncio
obediente de um faxina: os teus pulsos chamam-me, os teus
joelhos prendem-me, a tua boca pede. Suponho, acrescentou
ele pensando Não vou conseguir penetrá-la, que isto circula
livremente por aí.
Opus-me a que a minha filha arranjasse outra empregada,
suportei os seus ralhos, advertências, ameaças, exigi que a
porteira continuasse a trabalhar para mim, aplicam-me
semanalmente no posto médico uma injecção de vitaminas,
uma espiral do meu sangue ascende, escuro, na seringa. Há
vinte anos, caralho, eu tremia de paludismo na Índia, a
violência da chuva derrubava as madeiras precárias da
varanda, osgas gigantescas patinhavam com preguiça junto ao
tecto. O capitão Mendes pousou o maço de papel na secretária
num gesto cuja delicadeza o surpreendeu, como o de certas
hastes mecânicas manipulando fragmentos insignificantes de
metal:
— Solidariedade activa de todas as unidades do país, meu
comandante. Majores e capitães mas também bastantes
tenentes-coronéis e oficiais subalternos.
Céu cinzento, construções cinzentas, estradas cinzentas,
nevoeiro cinzento: porra de inverno, primavera sem graça,
gotas de chuva a badalar no ar: mesmo o verde dos ramos se
lhe afigurava pardo essa manhã, os rostos pálidos e sem viço,
os movimentos gordurosos de desalento, de desânimo. Rasgou
o manifesto em dois e lançou-o no cesto de verga sob as
bandeiras:
— Espero ao menos que conheçam bem o que andam a
tramar, afirmou sem convicção nenhuma à medida que se
deitava sobre a mulher-a-dias, pensando Deus queira que desta
vez consiga, Deus queira que desta vez seja capaz. Os
ponteiros luminosos do despertador esbracejavam, o retrato da
mulher, perto dele, encorajava-o, muito séria, sob o penteado
armado. A seguir à chuva a sufocação da humidade, de modo
que se instalava no que restava da varanda, a abanar-se com
um pedaço rasgado de jornal. A farda branca, suspensa de um
cabide de arame, pingava, tesa, na parede.
— O meu comandante dá-me licença?, solicitou o capitão
Mendes crescendo um tosco passo de lagosta na alcatifa.
Portas batiam, a máquina de lavar roupa trabalhava aos
soluços, os restantes compartimentos da casa aproximavam-se
e afastavam-se ao ritmo das descompassadas batidas do seu
sangue, o sorriso da mulher-a-dias transformava-se a pouco e
pouco num gemido contínuo, gutural, os calcanhares dela,
escamosos e duros, comprimiam-lhe as nádegas. Imobilizou-se
a meio do gabinete, à espera: Há vinte anos eu teria coragem
se me aliciassem, acompanharia os outros numa doidice
destas? O capitão Mendes tossiu para apurar a voz, e esticou
na sua direcção o peito assimétrico, onde as costelas
formavam pequenos nódulos sob a camisa. Uma artéria do
pescoço latia brandamente entre tendões:
— Gostávamos de saber se contamos com o apoio expresso
do meu comandante: Ao menos, valha-nos isso, um olhar
respeitoso, o sentido das hierarquias, caramba. Como vê
muitos oficiais superiores já assinaram, o facto de se juntar a
nós nunca poderia ser considerado uma atitude isolada. E o
lilás do anoitecer, trovoadas longínquas, a agitação da mata, a
rapariga que viria, pelas traseiras, enfiar-se-lhe
silenciosamente, idêntica a uma lagarta enorme, besuntada de
cremes e de óleos, na cama. O tenente-coronel virou as costas
ao capitão para mirar, distraído, a vitrina de estandartes e
troféus da unidade. A fotografia do almirante de branco
pasmava-se do alto numa expressão de estupidez absoluta.
— O puzzle não está completo, faltam-me dados, retorquiu
com prudência o tenente-coronel, abraçado como um feto ao
corpo enérgico da mulher. E depois, confesse-me lá, onde é
que isto tudo vai levar?
— Uma revolução de chacha, meu capitão, lamentou-se o
oficial de transmissões cujos óculos, embaciados, adquiriam
cambiantes de nevoeiro marinho sem os peixes das pupilas
dentro, uma autêntica revolução de chacha. Um golpe
pequeno-burguês controlado pelos revisionistas de Moscovo,
que infiltraram o Exército com o canto de sereia da social-
democracia. O que nós pretendíamos era uma verdadeira
sublevação popular conduzida pelos camponeses, pela classe
operária, pelos oprimidos em geral, a caminho de um
socialismo absoluto.
Uma lagarta grande e escorregadia que não falava nunca,
eternamente embrulhada em longos panos verdes, membros
escuros quase inertes, ausência de seios e cara sem bochechas,
o sílex, ou nós salientes da madeira, ou metal convexo, das
órbitas cintilando na fronha. E nem um grito, nem um suspiro,
nem uma festa, uma indiferença enigmática e passiva: Deve
ser hoje uma velha, pensou o tenente-coronel, uma velha
instalada à porta da sua casa de adobe, na aldeia, de risca ao
meio, pinta na testa e cabelos grisalhos escorridos, vendo a
chuva dissolver furiosamente os alpendres e as palmeiras.
— Está tudo aí escrito, meu comandante, argumentou o
capitão Mendes a gingar nas pernas compridíssimas,
sinceramente ignoro que dados lhe faltam para nos conceder
ou não o seu apoio. Andamos fartos de servir de bode
expiatório, gostaríamos de contribuir para uma solução
pacífica e construtiva do problema. Entre militares o meu
comandante concorda decerto que a guerra do Ultramar não
tem saída. O nosso general Spínola, por exemplo, advoga uma
solução federativa.
Nem sequer falou quando me despedi dela, de manhã, na
vivenda desfeita sob uma trovoada enorme, em que mãos
invisíveis torturavam as nuvens como massa de pão. As
árvores remexiam-se de tiques, a claridade de enxofre conferia
aos raros móveis díspares rápidas fulgurações cor de cobre.
Nenhuma palavra, nenhum som, os dedos húmidos estendidos,
a absoluta inexpressibilidade das feições, o jipe a partir,
inseguro, no vendaval, batido por folhas soltas, detritos,
rajadas de água, espirros de lama que as rodas levantavam,
idênticos a jactos de cuspo. Através do corpo, das frases, do
rosto, do blusão do capitão Mendes, viu a casa apequenar-se
na distância, a inquietação do rio, a angústia da floresta, o seu
próprio coração, microscópico, vibrando. Agora assistes ao
cair da chuva numa vilória qualquer, cozinhas numa panela de
três pés sobre um conezinho de brasas e de achazinhas
retorcidas, morreste de febres na monção passada, e engordas
a terra com as cartilagens transparentes dos teus ossos. O
tenente-coronel passou a mão aflita no cabelo:
— Comunicar-lhe-ei oportunamente a minha decisão,
informou a abrir a porta do gabinete, e a mulher-a-dias rodeou-
lhe o pescoço com os membros ávidos: Que olhos de geleia
que tu tens, que curva da ore lha que tu tens. Como calcula um
assunto destes não se resolve em segundos (A sentir-me
ridículo, percebe, a insultar-me por dentro, a achar-me o pateta
dos patetas), há inúmeros factores a ponderar. (Por exemplo:
caso com a mulher-a-dias ou não caso, levo-a ou não a uma
boutique para se vestir melhor.)
O capitão Mendes deslocou dois ou três centímetros um
cinzeiro de lata, recolocou-o no lugar, deslizou o dedo
distraído numa superfície plana como se procurasse pó, ajeitou
as insígnias da camisa, palpou às cegas a fita de condecorações
do bolso esquerdo:
— Julgávamos que podíamos contar consigo, meu
comandante, confessou numa entoação subitamente firme,
inesperada naquele homem que se diria incompleto, anémico,
construído de arame e de estearina. Amanhã participarei aos
camaradas que nos enganámos.
E ao cinema, pensou o tenente-coronel, nas noites de
semana em que não vai ninguém? Imaginou-se de braço dado
com a porteira a examinar as montras no intervalo,
compassados e atenciosos, discutindo cores e preços, os
cartazes do próximo filme, conheço aquele actor, aquela actriz,
talvez para a semana haja tempo. Uma companhia surgiu
marchando na parada, sujeitos microscópicos, de espingarda
ao ombro e camuflado, girando os bracitos a compasso.
– Não, não se enganaram, disse o tenente-coronel muito
depressa, erguendo as saias da empregada de modo a
conseguir tocar-lhe na pele rija do ventre. (Isso, pensou ele,
exactamente isso, nada de sins ou de nãos definitivos, veredas
diplomáticas em suspenso para as diversas hipóteses.) A
questão, compreende, é que se trata de um problema
importante demais para se encarar de ânimo leve, para nos
deixarmos arrastar por decisões emocionais que já tanto nos
custaram no passado. Não quero sobretudo que julguem que
lhes fecho a porta. (Tocar-te os peitos, pesá-los na mão, descê-
la ao longo da praia lisa da barriga até ao estranho, húmido
ouriço final, ao meio das pernas, ao bicho vivo e salgado do
teu púbis.) A avaliação que os senhores efectuam da situação
militar é igualmente a minha (E porque não, de facto, casar,
sentá-la à sua mesa na messe, em soutien e calcinhas de renda,
no meio dos oficiais siderados, mandar-te rodar, para um lado
e para o outro, as enormes, provocadoras mamas cor de âmbar,
cantando, de perna cruzada, pelos lábios demasiado pintados,
um chilreio insólito de pássaro?), podemos, quando muito,
divergir nas soluções encontradas: Autodeterminação,
federação, independência, vocês meditaram por acaso no
alcance disso? O general Spinola pode falar no que quiser
porque está lá em cima, no topo, não há quem se atreva a
mexer-lhe, se der cambalhotas no Rossio o Estado-maior
aplaude: connosco a música é outra, ninguém se ensaia para
nos lixar a vida, sempre são menos uns tantos a encalhar as
promoções. (Agora circulando sobre as toalhas, movendo
exageradamente as nádegas, sacudindo o cabelo comprido
pintado de cenoura, enviando-lhe beijos, fumando por uma
interminável boquilha prateada.) Uma comissão de castigo na
Guiné é o mínimo que se apanha, e daí a necessidade de
estudar o assunto a fundo, medir os prós e os contras, as
vantagens e desvantagens, as consequências possíveis para
nós: sou uma raposa velha, meu amigo, aprendi que se pagam
caro as brincadeiras.
O capitão Mendes batia de leve nas costas dos sofás (ou nas
nádegas esféricas da mulher-a-dias?), dobrava
impacientemente o tronco para trás e para a frente (Estás a
montá-la, malandro, estás a gozar no corpo dela), fungava a
limpar os lados do nariz com o indicador e o polegar. Mas
nenhuma saliência sob as calças, a ausência de relevo do pénis
na braguilha, nenhuma nodoazinha húmida de esperma:
impotente também? inibido? a vergonha de fornicar em
público, de se vir aos arrancos, mugindo como um boi, perante
mim?
— O meu comandante desculpe, interrompeu numa voz
perfeitamente normal (Será que o sexo não lhe interessa?,
perguntou-se, intrigado, o tenente-coronel. Eunuco, sem
hormonas, invertido na melhor das hipóteses?), mas as suas
objecções não colhem porque são as pessoas como nós que
detêm o poder operacional, que comandam na realidade os
batalhões. As estrelas dos generais, sabe isso muito bem, não
valem nada, podemos fazer do país o que quisermos. Guiné,
Angola e Moçambique concordam connosco, um ou outro
regimento reticente há-de aderir, por autodefesa, à última da
hora. Temos o Exército, a Aviação, as Tropas Especiais e uma
boa parte da Marinha. (Masturba-se sozinho, no quarto de
banho, acocorado na retrete, decidiu o tenente-coronel, tem um
medo danado das mulheres.) Garanto-lhe que se o meu
comandante não aceita o batalhão avança na mesma se for
preciso avançar, por ordem do oficial mais graduado, este ou
aquele, e a carreira e as promoções e a reserva, o que quiser,
escapam-se-lhe dos dedos, ainda para mais longe de si.
As companhias formavam agora laboriosamente na parada,
os homens seguravam as espingardas pelos canos, o clarim, à
ilharga do major, soprava baixinho o instrumento, à medida
que a mulher-a-dias, de gatas no colchão na luz coada da tarde,
tentava debalde excitá-lo com a boca, olhando de revés a
inutilidade dos seus esforços: uma coisita mole e triste, uma
trombazinha insignificante, um pedaço de pele cilíndrica, sem
préstimo. Porque é que umas vezes sim e outras não, canudo,
porquê este angustioso, inexplicável funcionamento
intermitente? A idade, pensou ele, a idade de certeza, quarenta
e oito anos não perdoam. O capitão Mendes afastou-se, nos
seus esquisitos passos de lagosta, na direcção da porta:
— Transmitirei aos camaradas as suas palavras, meu
comandante, garantiu numa solenidade despropositada, como
se usassem ambos espadas à cintura, bigode de Aramis,
chapéu de plumas e gigantesco cinto de fivela, tocando agora
um feiíssimo boneco de bronze representando um negro de
cócoras, com uma tigela nos joelhos desiguais. Como estes
sacanas gostam dos lances heróicos, pensou o tenente-coronel
a observar vagamente o destroçar do batalhão, idêntico a um
grande corpo que explode, das gloriosas tiradas, das réplicas
de teatro, das frases inúteis. O capitão Mendes, apalpando as
abundâncias da mulher-a-dias, que se lhe sentara no colo e
roçava pelo seu queixo os inacreditáveis caracóis cenoura,
ergueu a boca ao tecto como se fosse uivar e exclamou,
pateticamente monocórdico, Dentro de horas informarei os
conjurados da ideia de Vossa Alteza; ah, D. Artur, será
demasiado tarde para que mudeis de intenções?
O barco principiou a afastar-se de Goa na manhã cor de ocre
(céu ocre, terra ocre, árvores ocres, relâmpagos ocres, gente
ocre), a cara molhada pela chuva dissolvia-se em pedaços
castanhos de feições, os balouços do convés empurravam-nos
uns contra os outros como fragmentos quebrados de barro, a
rapariga indiana, envolta nos seus trapos, rodopiava de
palmeira em palmeira, a minha casa da Índia, lentamente,
morria, com os seus cómodos desemparelhados que a água
empurrava e destruía.
— É isso, disse o tenente-coronel olhando, de mãos atrás
das costas, a parada deserta, o miserável fim de tarde de
março: Comunique-lhes que dentro de dois ou três dias, no
máximo, lhes participo a minha resposta final.
— O meu tenente-coronel jogava em dois carrinhos, riu-se o
soldado a furar-lhe os rins com o cotovelo faceto. O meu
tenente-coronel ficava-se por cima fosse qual fosse o
resultado.
Um tipo discursava à cabeceira da mesa, constantemente
interrompido por aplausos, gritos, gargalhadas, e eu mandei
chamar, pelo telefone do gabinete, o automóvel para me levar
a casa. A ordenança em sentido, furriéis, sargentos esquivos, o
som agudo das máquinas de escrever da secretaria, o rombo
cheio de suor dos corredores, a larga escadaria sem beleza, de
uma majestade rígida de igreja, o portão do quartel, o trajecto
conhecido, o bairro do costume, o quartel dos bombeiros, a
casa. O capitão Mendes aparecia a cada segundo, galgando o
tapete nos seus impulsos de crustáceo, dirigindo-se a ele com
veemência contida: o regime apodrece, meu comandante,
reunimos todas as condições para tomar o poder: e depois uma
veloz, meteórica promoção a general, a chefia do Estado-
maior, ou da Guarda, ou da Polícia, quatro estrelas, sem
esforço, no ombro, sem riscos, sem maçadas, sem dar o corpo
ao manifesto, condecorações, mulheres, jantares, uma
embaixada, comendas estrangeiras, a hipócrita adulação
obsequiosa dos políticos, um gajo fardado à porta, a
consideração dos vizinhos.
— Mas o regime podia não cair, não é?, disse o soldado. A
manobra podia dessincronizar-se, as unidades não serem
avisadas na devida altura, o Governo resistir através da Pide e
dos quartéis fiéis, os hesitantes tombarem para o lado oposto e
eis a reserva compulsiva, a reforma, um chocho final sem
mercês nem vantagens, a sua filha a descompô-lo pela sua
ingenuidade incurável, pela sua parvoíce sem remédio. Que
raio de escolha, meu tenente-coronel, que grande merda de
opção.
Um empregado de chave inglesa consertava os elevadores
no vestíbulo (só propaganda do Reader’s Digest na caixa do
correio), gritando instruções para um comparsa qualquer lá no
alto, decerto embrulhado num mecanismo complexo de
roldanas, e trepou a pé os patamares até ao andar às escuras
(Transmita aos camaradas, se faz favor, o meu cansaço,
transmita-lhes que sofro de um medo sem fim de perder o
pouco que ganhei), abriu a porta, enrolou os estores da sala,
caiu no sofá e a mulher defunta não veio, e a mulher-a-dias
não veio, nenhum copo de água numa bandeja, nenhum
calmante, nenhuma mão no ombro, só a pesada hostilidade dos
objectos familiares (Nunca nada aqui gostou de mim) e o
imenso silêncio dos quadros na penumbra. Pegou no
animalzito de baquelite do telefone e para se sentir
acompanhado marcou o número incansável que recita as horas,
voz feminina engolindo assustadoramente o tempo, e depois
outro ao acaso que permaneceu chamando no vazio de um
apartamento desconhecido, sem que nenhuma voz lhe
respondesse. A quem pertenceria?, pensou o tenente-coronel
que se esquecera, entretanto, da série de algarismos. Imaginou
uma velha entrevada, de cabelo em desordem, numa poltrona
de pintas, com um pedaço de oleado nos joelhos. Pousou o
auscultador no poleirinho metálico, abriu a torneira do quarto
de banho, deslaçou a gravata, retirou o blusão, e amassou a
plasticina das bochechas, do queixo, da testa, do pescoço, no
jorro quente da água: fazer coisas com as mãos, mexer os
braços, não parar, ocupar-se. E depois não tenho ideais
políticos, foda-se, não me interessa a ponta de um chavelho
passar meses de forte, aparecer o meu retrato nos jornais, dar
abébias à minha filha para me chatear, me moer o juízo, me
entrar com o paspalhão do marido às horas de visita, solene,
compungido, obedientemente recriminativo.
— Quando o golpe das Caldas falhou, disse o oficial de
transmissões a iniciar outro bagaço, seja cego se não jurei a
pés juntos que era o fim de tudo: a Pide a pau com a escrita, o
Governo a redobrar de cuidados, mudanças do catano nas
unidades, acabou-se. Para mais a Dália levou sumiço e
passados dias, de manhã, foram buscar-me a casa.
— O pai palavra de honra que não tem a mínima vergonha,
gritou-lhe a filha, de mãos na cintura, à entrada da cela,
examinando desgostosamente a cama, o bidé de esmalte, o
lavatório, a cadeira, o livro policial aberto sobre a mesa. Assim
que eu viro as costas sai asneira pela certa.
— Se aderisse a nós, murmurou, penalizado, o capitão
Mendes, afagando, instalado no rebordo do colchão, o
homenzinho de bronze, o meu comandante não se achava hoje
na triste posição em que se encontra.
— Quando me divorciei, tinha ele cinco anos, os senhores
não calculam o que me custou educá-lo, baliu uma velhota de
olhos astutos e nariz verrugoso, sentada com a maior das
naturalidades no próprio caixão. Costurei para fora quase vinte
anos para lhe dar um curso, um primo meu, brigadeiro,
aconselhou-me Mete-o na tropa e ficas sossegada, eu dou um
jeito para ajudar o rapaz, esteve na Índia, esteve em África,
mas ele nunca se puxou muito, percebem, casou com uma
dactilógrafa aqui do bairro, uma garota boazinha mas sem
posses, chamei-o à razão e nada, ameacei-o e nada, e o
resultado (a manga traçada do vestido varreu a atmosfera
empoeirada da sala) está à vista.
— Mãe, pediu o tenente-coronel a enxugar-se com a toalha,
não se vá embora, mãe.
— Eu li no jornal das Caldas, disse o soldado a aplaudir o
discurso do tipo do fundo, e não acreditei nem meia. Lixo nos
olhos da gente para subirem de novo o preço das coisas, pensei
eu. O meu capitão lembra-se quanto custava um quilo de
açúcar nesse tempo?
— Mais dois ou três discursos, soprou o alferes, a teimar no
Cartaxo, e piramo-nos à papo-seco, a rastejar se for preciso.
Juro que ninguém dá por nada.
O tenente-coronel espiou sem sucesso a banheira, os
azulejos, o roupão turco atrás da porta: a mãe desaparecera
num eclipse desiludida, e contudo veio-lhe a impressão
esquisita, ao fechar a tampa de plástico da retrete, que cerrava,
com um simples gesto de mão, uma urna irrevogável: Matei-
te, afoguei-te na água amarela, espumosa, da sanita, desces
agora para o rio através de uma complicada geometria de
canos. Às vezes, em pequeno, encontrava na saleta um senhor
de idade a cheirar a brilhantina e a sabão de barba, segurando
contra o peito um ramo de flores embrulhado em papel
celofane como se exibisse um troféu. A mãe, muito risonha,
conversava com ambos, distribuía doces palmadinhas
equitativas, requebrava-se em frases que o enfureciam
(Sinceramente não decidi ainda qual dos dois prefiro), deitava-
o e quando se debruçava para o beijar o tenente-coronel sentia-
se submergido por um perfume desconhecido e violento, que
lhe provocava uma difusa sensação informe de desejo. E daí a
minutos escutava, vindo do quarto ao lado, gargalhadas,
rangidos, ternos protestos, a tosse aflita do senhor de idade,
beijos repenicados, cicio de palavras graves e agudas, ofegos,
longos haustos, e por fim um enorme silêncio convexo,
recheado do cansaço de dois corpos.
Voltou à sala e estudava de mãos nos bolsos, pela varanda, a
demolição do prédio fronteiro, quando a voz do capitão
Mendes soou, com inesperada energia, na sua nuca, vinda de
um móvel de canto carregado de enciclopédias e retratos:
— O meu comandante recusa-se portanto a contribuir para
derrubar a ditadura?
Os senhores sucediam-se, cada vez menos bem vestidos e
amáveis, o papel da parede, escurecido, despegava-se, o
autoclismo permanecia semanas a fio avariado, com a água a
correr, tumultuosa, no seu sono, até que uma ocasião começou
a surgir, quase diariamente, um homem bastante mais novo do
que a mãe, de bigodinho e fato claro, todo triques, chamado
Gonçalves, que a apalpava sem vergonha à minha frente, lhe
lambia o pescoço, a abraçava pela cintura à procura do peito, e
a partir da semana seguinte as louças, as pratas, os quadros,
deram inexplicavelmente em se evaporar a pouco e pouco,
seguidas do melhor sofá, da cómoda do quarto, do tremó e da
máquina de costura. A mãe passou a trabalhar à mão até que o
senhor Gonçalves se desintegrou por seu turno, dando lugar a
um cavalheiro idosíssimo ao qual a mãe se queixava a chorar e
que a consolava dando-lhe pancadinhas castas no ombro com a
mão cheia de pintas sardentas da velhice, e na sequência disso
dois homens silenciosos, de beata apagada na orelha,
trouxeram a máquina de volta, alguns móveis mais modestos
mas mais vistosos, reluzentes de verniz, substituíram os
anteriores, quadros feitos de tampas de caixas de bombons,
com molduras de esferovite, penduraram-se nas paredes, o
senhor, que era um sargento reformado da Manutenção,
alagava as sobremesas de bolinhos de ovos, de dedos
atrapalhados nos cordéis dos embrulhos, oferecia-lhe soldados
de chumbo e aviões de guerra de madeira e aconselhava-lhe o
Exército, Daqui a nada és general, rapaz, mas o que lhe calhou
em sorte foi mata e paludismo e chuva, a miséria das messes
isoladas, a morte quotidiana, as insónias, a ansiedade, O
senhor, para as vizinhas, era primo e brigadeiro mas ninguém
acreditava na aldrabice, disse-me ele a partir palitos na toalha,
toda a gente no bairro sabia perfeitamente que se tratava,
compreende, do amante dela, a mãe pintava freneticamente o
cabelo de loiro no intuito de enganar os anos, usava vestidos
cada vez mais espampanantes e baratos, vistosos colares de
pacotilha, anéis com grandes pedras de vidro, imitava as
actrizes de cinema e escurecia as pestanas, e uma tarde de
domingo o primo brigadeiro lia o jornal no sofá, e de súbito
olhou para eles sem dizer nada, abriu a boca, uma
espumazinha desceu-lhe pelo queixo e ficou quieto, parado na
página dos desastres, na mole expressão aborrecida com que o
enterraram dois dias depois, após um velório acidentado pela
aparição da família legítima, filhos, netos, sobrinhos, uma
rapariga que nos insultou aos dois diante das flores e do
cadáver, encostados um ao outro, lá no fundo, envoltos num
luto discreto.
As mãos batiam como pássaros aplaudindo o discurso, um
oficial vermelhíssimo berrava de entusiasmo, o orador,
confundido, bebia um copo de vinho branco para afastar a
emoção, uma espécie de tanque de assalto, eriçado de dentes,
mordia com tenacidade as paredes do prédio a demolir,
zebrando-o de rachas e de fendas, o tenente-coronel estendeu-
se no sofá e estendeu os braços, empurrando fantasmas.
— A atitude típica dos pequeno-burgueses, segredou-me o
oficial de transmissões. O terror de perder os privilégios que
os impede de agir.
— Mais um quarto de hora, prometeu o tenente-coronel ao
alferes, e safamo-nos daqui. Para o cinema, para uma igreja, às
putas, onde você quiser.
Os empregados dos elevadores deviam ter terminado a
tarefa porque se escutava um leve assobio de cabos no
patamar, vozes, o ruído de biombos metálicos das portas que
se encolhiam e distendiam, como guelras, no silêncio: Porque
é que não vens hoje, porque é que não entras cá em casa, de
avental e espanador em punho, a jogar o anzol rápido da mão
para o dinheiro em cima do frigorífico da cozinha?
— É claro que devia ter aderido à revolta, opinou o senhor
de idade, de jornal nos joelhos e a baba endurecida de caracol
a cristalizar-se-lhe no muro do queixo. As principais
qualidades do militar que se preza são a avaliação cabal dos
meios de que dispõe e a rapidez de decisão.
A mãe, esfuziante de plumas e pulseiras, com meia cara
escondida atrás de um leque imenso, tocou atrevidamente com
a ponta da luva no peito do capitão Mendes.
— Adorávamos, palavra, que nos visitasse esta noite,
convidou ela num sussurro suave, exibindo o início dos
joelhos. Ajudava tanto o meu rapaz, coitado, no dilema em que
se encontra.
— Dilema, meu capitão, troçou o soldado a saltar como um
canguru para as garrafas de aguardente. O mal do nosso
tenente-coronel, desculpe o atrevimento, era uma cagufa que
não se aguentava nas canetas.
— Perdi um lugar de director-geral por sua culpa, acusou-o
o genro. O secretário de Estado sabe que casei com a sua filha,
já é uma sorte continuar no Ministério a marcar passo.
— Diz que não entendia bem o que esvoaçava no ar,
explicou o alferes com uma careta. O meu capitão acredita que
ele não soubesse nada?
— Sentia-me encurralado, protestou o tenente-coronel a
servir-se de gin no pequeno bar da sala faiscante de vidros, a
intimação do Mendes deixou-me positivamente à rasca. A
mim, no fundo, tanto me fazia quem estivesse no poder desde
que me promovessem na devida altura, me atribuíssem lugares
que não me desagradassem, me garantissem a reforma.
— E no mês seguinte às Caldas, exultou o oficial de
transmissões, o golpe a sério, os cânticos, as palmas, aquela
gente toda a libertar-nos. Embora a Pide tentasse não houve
tempo para amargá-las muito: uns interrogatoriozitos, uns
bofetões, mais nada.
Um outro combatente principiou a falar, depois de extrair do
bolso um imenso maço de folhas dobradas em quatro, em
frente do andar da mãe o tanque de assalto destruíra já por
inteiro uma parede e as correntes derrapavam por cima do lixo
poeirento das ruínas, enquanto o motor lançava uma grossa
fumarada escura sob o banco do chofer. Um grupo de mirones
seguia curiosamente a operação, quadrados de céu divisavam-
se através das janelas rebentadas, o tenente-coronel descansou
o copo no braço do sofá e nesse instante o telefone tocou: A
minha filha, o meu cunhado, tu? Alguns mendigos farejavam
os detritos, um homem de boné fazia sinais para o tractor, uma
sereia enrolava-se e desenrolava-se, mais longe, no edifício
dos bombeiros.
— Sim?, perguntou ele ao aparelho num suspiro cansado,
com o gosto desagradável do álcool no tubo da garganta.
Cessara de chover e o barco corria agora mais depressa nas
águas de barro, sem sobressaltos, afastando-se da Índia, das
palmeiras da Índia, do teu silêncio morto, a caminho de nada.
Sentada no caixão, a meio da sala, a mãe considerava-o com
desdém.
— Meu comandante?, articulou-lhe no ouvido uma vozita
sem inflexões. Daqui o capitão Rodrigues, o oficial de dia.
Desculpe incomodá-lo em sua casa (Porque não vens cá
acima?) mas saiu agora mesmo uma coluna do regimento das
Caldas da Rainha na direcção de Lisboa, e pedem auxílio a
todas as unidades para que a ajudem a derrubar o regime. Por
outro lado (Cá acima só um bocadinho, normalmente com um
ou dois gins sou capaz) chegaram também instruções em
sentido contrário do Ministério da Defesa. A maior parte dos
homens estão no quartel, as opiniões dos oficiais dividem-se, e
atendendo aos últimos acontecimentos queria que o meu
comandante me ordenasse o que devo fazer.
A mãe, muito velha já, penteava cuidadosamente os cabelos
brancos compridos com os patéticos, teatrais gestos trémulos a
que se habituara no passado, enfeitava-se de ganchos, de
pulseiras, de colares, de pantagruélicos anéis falsos, de rendas,
subia a saia a exibir as pernas magríssimas, calçadas de
espectaculares meias pretas e azuis, enfeitadas de rosetas
transparentes, que se lhe dependuravam, soltas, dos ossos, e o
tenente-coronel julgou distinguir, por momentos, os fios
grisalhos do púbis, cujos lábios se fechavam, salientes como
uma boca que amua. Uma segunda parede tombou
ruidosamente, numa nuvem de tijolos e caliça, e os senhores
de idade surgiram por trás dela, sorrindo, conversando,
oferecendo-se cigarros, aplicando-se palmadas nos joelhos,
mirando-o com dó, a abanar os turíbulos de água de colónia
das cabeças numa reprovação profunda. O tenente-coronel
sorveu devagarinho, ganhando tempo, outro gole de gin:
— O major Ferreira não está?
— Descia as escadas da prisão no meio dos aplausos e dos
gritos, disse o oficial de transmissões, e não acreditava no que
acontecia, meu capitão. A queda do fascismo, percebe,
tornara-se para mim numa espécie de sonho, numa meta
ilusória.
— É também por isso que lhe telefono, meu comandante,
retorquiu a vozita na sua determinada entoação cega. O major
Ferreira está no gabinete a dormir, com tal dose de bagaço,
com sua licença, que não se acha capaz de qualquer decisão.
De resto nem com dúzias de baldes pela cabeça abaixo o
acordávamos: neste momento não se pode contar com ele para
o que quer que seja. E o major Osório não se encontra em
casa. Quer o Ministério da Defesa quer o regimento das Caldas
solicitam resposta imediata. Que lhes informamos nós, meu
comandante?
Os senhores de idade sacudiam delicadamente o pó dos
ombros, a mãe, instalada no caixão, pregava no decote uma
gigantesca, quase obscena rosa de pano, de pétalas idênticas a
línguas sobrepostas. O homem do bigodinho, de pé por trás
dela, massajava-lhe os ombros e sorria. O fim da tarde de
março esfarrapava as casas. A porteira meteu a chave à
fechadura, espirrou no vestíbulo, e surgiu de chinelos no
limiar:
— Olá riqueza.
— Informe, respondeu o tenente-coronel inclinando-se para
o alferes com uma piscadela de olho, que seguimos daqui a
nada para as putas.
11

— De manhã?, perguntou o alferes, a pensar no cabaré, ao


oficial de transmissões que punha pó de talco, de braço
esticado, numa nódoa da manga. Foste preso de manhã, como?
— E eu que era para ficar em África, meu capitão,
empregar-me, montar um comércio, casar com uma mulata,
disse-me o soldado a arredondar as pálpebras alaranjadas de
vinho. Veja lá as chatices de que me livrei.
Não sei bem como foi, pensou o oficial de transmissões, não
me recordo ao certo, faltam-me bocados disso na memória
como um retrato de grupo sem caras, ou um desenho
incompleto, ou aqueles jogos de pontinhos numerados que é
necessário unir para formar um boneco, um perfil, uma
paisagem. Estava a dormir e a campainha da porta invadiu de
repente o seu sono, alastrou numa mancha monótona,
incansável, estridente, a cabeça subiu-lhe a caminho do tecto,
ouviu a tosse da Esmeralda no compartimento ao lado, o cão
do andar de cima ladrando sem cessar, abriu os olhos e uma
névoa azul inchava nas cortinas, as casas pareciam sublinhadas
por um lápis tosco de carvão, as lâmpadas dos candeeiros
hesitavam como chamas de óleo, a Esmeralda tropeçava
corredor fora a protestar, e sempre aquele anzol de som a
torturá-lo, a impedi-lo de encostar a bochecha a uma agradável
bochecha de silêncio, a obrigá-lo a procurar uma nova postura
nos lençóis que o defendesse da raivosa perseguição da
campainha, a qual o buscava por todo o espaço do colchão
para o proibir de adormecer. Compreendeu que a tia se
levantava também (as madeiras da cama de bilros soluçavam),
escutou vozes distantes de homem como que difractadas por
uma ondulação de água, os protestos agudos da empregada, as
vagonetas da Grande Roda suspensas dos baloiços de ferro
num vazio de nuvens, nítidas até ao mínimo detalhe como os
ramos das árvores ao escurecer. Tenho de enfiar o roupão,
pensou o oficial de transmissões, tenho de ver o que é, mas as
pernas flácidas não lhe obedeciam, mas os músculos não lhe
obedeciam, mas o tronco, sem ossos, não lhe obedecia, como
nos ataques ao aquartelamento em Moçambique, lembra-se?,
quando os morteiros começavam a cair no arame, a abrirem-
se, idênticos a grandes flores de luz, na surpresa da noite, e a
gente, enrolados nos cobertores do beliche, sem força para
rastejar da caserna ao abrigo, pensava Que se foda os
estilhaços, que se foda a guerra, tomei há um niquinho duas
pastilhas de calmante, deixem-me em paz, caralho, preciso de
dormir.
— O regimento não embarcou no golpe das Caldas,
elucidou o tenente-coronel, e o capitão Mendes agradeceu-me
dias depois a minha adesão tácita à pureza de ideais do
Movimento. Só que no 25 de Abril, para variar, meti água no
costado todo.
— Vê o que pode o medo, meu capitão?, segredou-me o
soldado a apontar o velho com a boca. Pelo menos durante
uma semana o nosso tenente-coronel foi um herói.
As vozes aproximaram-se, pisando com rápida aspereza a
passadeira (É o meu peito que esmagam, pensou o oficial de
transmissões a retorcer-se na cama, é ao longo das minhas
costas que caminham), a tia e a Esmeralda lamuriavam, atrás,
tímidas, indefinidas queixas, a porta descerrou-se de estalo
embatendo com violência na estante dos livros, dedos
apressados procuraram o comutador na parede, a lua,
semelhante a uma estreita apara de unha pintada de verniz
acinzentado, evaporava-se, como a espiral dos filamentos das
lâmpadas, na transida imobilidade da manhã, o oficial de
transmissões sentou-se, tacteou as pantufas com os pés, e nisto
o candeeiro do tecto cegou-o, os móveis ergueram-se
brutalmente da penumbra, dois homens aproximaram-se dele
(Estou lixado), a Esmeralda, em camisa e terço no pulso,
chiava em vão à entrada do quarto, a tia, de cabelos desfeitos,
apoiada à bengala, mirava-os com órbitas gigantescas de
insónia ou de surpresa, Veste umas calças e um casaco meu
rapaz, comandou um sujeito careca, mais idoso, surgido como
que por milagre das omoplatas dos restantes dois, Não se
assustem, minhas senhoras, isto é uma brincadeira, uma
partida, somos compinchas dele, uma calma tranquilizadora,
um amável sorriso respeitoso, e a cara de repente tensa, de
repente autoritária, Somos ou não somos teus amigos, ó
sócio?, as velhas agitavam-se no quarto como galinhas,
esbarravam na secretária, derrubavam o cesto dos papéis,
espalmavam-se contra as pegas do armário, os dois tipos
percorriam as prateleiras, jogavam livros ao chão,
vasculhavam gavetas, arrancavam os posters dos pregos, A
reinar às revoluções, seu herói, comentou o chefe recuperando
o sorriso, a armar aos Guevaras, seu malandro, uma
palmadinha paternal nas costas, um folheto enfiado num saco,
O sobrinho de vosselência, minha senhora, é um moço mexido
e eu gosto dos moços mexidos, os animais de pau do carrossel
emergiam, de pestanas pintadas, da névoa da manhã, a girafa
espiava-o, quietinha, do peitoril, as fotografias dos artistas do
Poço da Morte ondulavam na lona, o oficial de transmissões
apanhou da cadeira as calças e o casaco da véspera, enfiou-os
sem despir o pijama, procurando que a cabeça, confusa,
trabalhasse, De onde veio a denúncia, quanto tempo aguento, o
que irei acabar por confessar, os fulanos separavam
prospectos, examinavam a correspondência, procuravam
fundos falsos nos móveis, o careca, persuasivo, continuava a
serenar a tia e a Esmeralda, por amor de Deus, ora essa, umas
perguntinhas de cacaracá e a meio da tarde cá o têm, e
entretanto mais Marx, mais Engels, mais Lenine para o saco,
folhas volantes, livrecos ordinários, revistas, comunicados,
fotocópias, Como é que o Olavo se desenrascava num sarilho
assim?, pensou o oficial de transmissões observando, ainda
tonto de sono, a desordem do quarto, um saco, dois sacos, três
sacos de plástico de revolução, atados com cordéis, nas unhas
dos polícias, os candeeiros da rua apagaram-se numa agonia
lenta, os prédios, agora diurnos, possuíam o mesmo tom
pálido, incrédulo, das velhas, um beijo a uma um abraço a
outra, Reparem como o rapaz é educado, disse o chefe aos
colegas como se os repreendesse, como se lhes chamasse a
atenção para que o tomassem como exemplo, e eis o corredor
comprido semeado dos sinais de trânsito dos oratórios, as
pupilas de verniz beato dos santos, a cambulhada pelos
degraus abaixo com as velhas lá em cima, aflitíssimas, a
abanarem as asas no poleiro do patamar, o frio da rua, o
automóvel à porta, encostado ao passeio, Até te trazemos
chofer, meu vaqueiroso, a rasteira que o jogou de roldão para o
assento, estalo de portas, cheiro de tabaco, os semáforos sem
brilho da madrugada, avenidas desertas, esboço de ramos,
montras que viajavam velozmente para trás, o ronco sempre
igual do motor, e a seguir uma entrada larga, o careca a pedir-
lhe Apeia-te lá Robespierre, pinças que lhe agarravam, que lhe
apertavam, que lhe magoavam os sovacos, um contínuo a
cabecear a uma secretária com telefone, três ou quatro gajos
discretos encostados pelos cantos no vestíbulo, escadas, uma
espécie de gaiola de vidro com cadeiras, um cubículo sem
móveis, Entra aí, uma chave a rodar, uma janela demasiado
alta, o céu uniforme cor de ranho, estou feito.
— Lembra-se da Pide em África, meu capitão, dos
quarteizitos deles, parecidos com bunkers, encostados às
sanzalas, dos agentes que vinham às vezes à messe, de arma à
cintura, tomar café connosco?, perguntou-me o oficial de
transmissões raspando uma mancha nas lentes dos óculos.
Desprovido da sua habitual máscara de vidro perdia o aspecto
de professor de matemática do costume, as feições adquiriam
uma inocência insuspeitada, um sorriso de criança hesitava-
lhe, como as bolhas dos níveis de ar dos carpinteiros, entre a
boca sem beiços e o nariz incompleto, arredondado, de bebé.
(E tu na política, pensei eu, incrédulo, e tu a conspirares, a
correr riscos, a esconder papelada, a escrever nas paredes,
movido por um ideal prolixo que se cristalizava num spray de
palavras de ordem imperativas.) Eu costumava passear na
aldeia, à tarde, perseguido pelo silêncio atento dos cães, a
imitar os gestos da minha própria sombra, que se me estendia
aos pés como um tapete, subia junto ao quartel dos gajos e
havia inevitavelmente um ou outro tipo, amparado ao muro, ou
a brincar com os cachorros, ou a conversar com camionistas,
que me convidava a entrar, que me oferecia uísque, ou licor ou
uma bebida qualquer numa sala forrada de grandes mapas
marcados por bandeirinhas de plástico, com um crucifixo e o
retrato do almirante na parede. Fui conhecendo os calabouços,
os rádios enormes, recolhendo informações, sabendo
pormenores dos efectivos, compreendendo um bocado como
aquela máquina estranha funcionava, e de uma ocasião,
percebe, o subinspector, o fulano mais suado que até hoje
conheci, a enxugar constantemente a testa com o braço tatuado
de lutador de feira, mostrou-me o compartimento dos
interrogatórios, onde um negro, de joelhos em cima de uma
vara de ferro muito fina que segurava com os dedos, levava
uma imensa carga de porrada do guarda dos calabouços, que o
pontapeava e lhe batia com uma corrente de anéis pequeninos
de metal, soluçando a cada golpe como os lançadores de peso.
Os lábios rebentados do prisioneiro sangravam, as narinas
esfarelavam-se à laia de uma romã de carne, fundos vergões
oblíquos cobriam as costelas, e eu pensei de súbito, aterrado,
Se calhar conhecem quem eu sou, se calhar sabem da
Organização, dos panfletos, do Olavo, dos projectos de
bombas, se calhar quando o preto cair, num monte de
músculos desarticulados, metem-me lá a mim e recomeçam,
mas qual, meu capitão, lá veio a limonada ou o uísque do
costume, os amigáveis apertos de mão dos agentes que se
cruzavam connosco, os usuais protestos diários acerca do
isolamento, do paludismo, dos eczemas, do calor, dos
ordenados minúsculos, da guerra, o jogo de damas até à hora
do jantar, perdi as partidas todas porque dentro da minha
cabeça um tipo me zurzia e pontapeava sem descanso, porque
as trancas dos calabouços se me cerravam nas costas, porque
nasciam perguntas de todas as bandeirinhas dos mapas, Quais
são os teus contactos? Qual o vosso sistema de mensagens? O
endereço da tipografia que cospe esta merda contra o senhor
Ministro?, e eu de joelhos, com uma vara de ferro sob os
dedos, a pensar, apavorado, Com o primeiro coice quebram-
me os dentes todos, desfazem-me a mandíbula, como será a
dor dos úmeros em migalhas?
Permaneceu no cubículo horas sem fim, primeiro em pé,
depois de cócoras, encostado à porta, e finalmente sentado no
chão sujo de tacos, empilhando ideias, preparando respostas,
inventando desculpas, enquanto calculava aproximadamente
as horas pela cor do céu no rectangulozinho do postigo junto
ao tecto, o papel vegetal espesso da manhã, as pequenas
nuvens à deriva do meio-dia, a sombra de pombos da tarde,
Quando é que me chamam?, Quando é que me dão de comer?,
apetecia-lhe urinar e não havia aonde, uma única frincha, um
buraquinho, um ralo, retinha com toda a força o mijo na
bexiga, a suspeita de pombos deu lugar às ténues cores escuras
do crepúsculo, a menos de cinquenta ou cem metros as pessoas
voltavam do emprego para casa e eu aqui, eléctrico, jornal,
jantar, famílias inteiras odiando-se à mesa, as velhas
cochichavam o décimo terço pelo menos, cambaleavam no
corredor, ajoelhavam-se nos oratórios, aflitas,
preocupadíssimas, sem descanso, a tia tentava em vão
conversar aos gritos, ao telefone, com um parente director-
geral, que segundo a sua fantasia possuía imensos
conhecimentos na polícia, a Grande Roda principiava
devagarinho a girar, os bichos do Carrossel do Oito apareciam
e desapareciam num estrondo de música e de risos, o cheiro
dos frangos e das sardinhas assadas flutuava, compacto, no
quarteirão, agora um negro absoluto no postigo, uma estrela
minúscula, e de súbito uma ampola de néon, muito fraca, acesa
atrás de uma placa fosca num ângulo inacessível, Tenho fome
e nem um só ruído de passos, de gente, uma respiração ao seu
lado, comer, mastigar peixe, mastigar carne, mastigar fruta,
engolir um caldeiro de sopa de legumes, sob a direcção da
classe operária e dos seus mais lúcidos e corajosos elementos
democraticamente eleitos construiremos em Portugal uma
pátria igualitária e socialista, Não conheço a Organização, não
conheço o Olavo, não conheço a Dália, não conheço o Careca,
ignoro do que é que o senhor está a falar, sou oficial do
Exército e exijo o cumprimento integral das minhas
prerrogativas, não sei nada de bombas, não sei nada de armas,
não sei nada de panfletos clandestinos, esperam-me para jantar
e é tão tarde, subiu a gola do casaco, aconchegou as pernas
contra a barriga inchada, o verdadeiro comunista deve ser forte
na adversidade, Trata-se apenas de uma questão de tempo,
disse ela, preparam-se grandes coisas para breve, disse ela,
Um caldo verde por exemplo, só uma colher de caldo verde, e
lá fora, do lado oposto da porta, ruídos de solas, chaves que se
agitam, diálogos de vozes diferentes, uma piada gritada para
longe, a tia, desesperada de surdez, urrava ao telefone os seus
lamentos, o fecho abriu-se, uma silhueta larga assomou em
contraluz no limiar, o humor pesado do careca Vamos a uma
conversazinha, Fidel?, a bexiga esvaziou-se como um pneu
furado, e escapando ao seu controlo, torrencial, furioso,
cataclísmico, cómico, um jacto quente de urina desatou a
escorrer-lhe, incoercível, pelas pernas abaixo.
— Alguma vez foi chamado para um interrogatório, meu
capitão?, perguntou-me o oficial de transmissões a recolocar
cuidadosamente os óculos no nariz num gesto lento de
relojoeiro, que o álcool tornava ainda mais pomposo e
demorado. (E eu pensei Quanto vinho é que este gajo mamou,
até que ponto é que está grosso? Um ex-revolucionário bêbado
a falar da revolução é pior que um antigo padre a dizer mal do
Vaticano.) Juro-lhe que se passavam uns momentos do caraças
naquele prédio do Chiado. Entrei lá em serviço depois do 25
de Abril e tudo se me afigurou pequeno, inofensivo,
assaloiado, uma espécie de Castelo Fantasma de dia,
escancarado e ridículo. Talvez mesmo que já fosse isso antes
do golpe, talvez que só servisse para meter medo a anjinhos
como eu, mas garanto-lhe que se sofriam por lá uns maus
bocados valentes. Fiz uma data de processos a agentes,
inspectores, informadores, guardas, e perguntava-me, com os
tipos sentados à rasca em frente à minha secretária, Como é
que tive medo destes gajos, como foi possível que meia dúzia
de cretinos me aterrorizassem? O meu capitão, por exemplo,
não tinha miúfa deles?
O mijo colava-lhe as calças às pernas e dificultava-lhe os
movimentos, obrigando-o a correr em passinhos miúdos de
saia travada ao lado do chefe calvo (o verdadeiro comunista
deve ser forte na adversidade, o verdadeiro comunista deve ser
forte na adversidade, o verdadeiro comunista deve ser forte na
adversidade), através, primeiro, de um corredor muito mais
comprido que o da casa da tia, só que sem passadeira, nem
oratórios, nem o cheiro a queimado das lamparinas de azeite
dos santos, com um paviozinho triste a flutuar numa chávena,
e depois (Nota-se perfeitamente a mancha das calças, que
chatice) de gabinetes repletos de activos sujeitos em camisa,
semelhantes aos da noite anterior, trabalhando sob relógios
redondos, de parede, que acompanhavam a fotografia do
almirante. Dez horas, verificou o oficial de transmissões, há
quase um dia inteiro que não como, treparam uns degraus
semiocultos num canto de saleta, uma corrente de ar tornou-
lhe a marcha mais pegajosa e difícil, a peúga, molhada,
colava-se ao sapato, novo cubículo mas desta feita com mesa,
máquina de escrever, papel, dossiers, duas ou três cadeiras
desemparelhadas, um ventilador no tecto, uma lâmpada acesa
a comunicar aos objectos em volta lucilações amareladas, e os
obtusos hércules de feira que lhe haviam despejado as gavetas
e roubado os livros a conversarem um com o outro os seus
grunhidos primitivos. O careca instalou-se com um suspiro
diante do teclado, convidou-o a sentar-se num gesto urbano e
amigável, abriu a cara em duas num feroz sorriso gigantesco,
colocou uma folha entre os rolos da máquina, e a curiosidade
do soldado Como era ele meu tenente, deram-lhe muita
porrada meu tenente?, a ondular 1195 lenta, para cá e para lá,
sobre uma vazante de garrafas. Um homem vulgar, pensou o
oficial de transmissões, aspecto de funcionário público, de
contabilista, de fiel de armazém, de professor primário,
cinquenta, sessenta anos no máximo, sardas na calva e
membros curtos de lagarto, se calhar tomava remédios para a
úlcera ou a próstata ou a asma, se calhar hemorróidas, fístula
do ânus, enxaquecas, anginas, a mulher em casa a enfrenesiar-
lhe a vida. Os hotentotes postaram-se, de mãos nos bolsos, um
de cada lado da minha cadeira, o careca consultou um dossier
respigando notas ocasionais num bloco numa letrinha penosa,
juntou as mãos grossas numa bênção de padre, voltou a sorrir
numa simpatia inquietante, fixando-o com os sarcásticos
olhitos minúsculos, e inquiriu na sua voz habitual de troça,
arrastando as frases, Então como vai isso de revoluções, ó
camarada?
— A minha cabeça achava-se à altura dos rins dos outros
dois, meu capitão, disse o oficial de transmissões a esfarelar
uma rolha, e eu sentia-lhes os bafos enormes, a mínima
ondulação da pele, o jogo dos tendões, e transpirava de pânico,
pensava Não tarda nada começam a bater-me, um punho
fechado avançava-me na direcção do peito, uma matraca de
borracha trabalhava-me no estômago, o verdadeiro comunista
é forte na adversidade mas que faria o Lenine no meu lugar?, o
mijo evaporava-se-lhe das pernas, o careca estalou as falanges
(uma aliança achatada e um anel com as iniciais à frente),
dobrou o tronco obsequioso, e recordou, numa boa educação
irónica, O nosso assunto, meu menino.
— Não sei a que é que o senhor se refere, gaguejou o oficial
de transmissões numa tosse insegura, vacilante de
desconfiança, de medo. (Está? Está? Está?, piava a tia ao
telefone, chamando a Esmeralda por gestos a fim de que lhe
traduzisse o silêncio, decerto recheado de explicações
salvadoras, do parente importante.) Pertenço ao Exército, não
me interessa a política, não há o direito de me prenderem aqui.
Há vinte e quatro horas que não tomo uma refeição que seja,
tudo isto é uma ilegalidade pegada.
— O meu tenente arreou-lhe dessa forma?, perguntou com
admiração o soldado, o meu tenente amandou-lhe esse
discurso à tromba?
O calvo coçou a bochecha à medida que o sorriso se
estendia até lhe dar a volta completa à cabeça, nuca incluída,
como a linha do equador nos globos das escolas: assemelhava-
se a um pai pachola, meu capitão, contentíssimo com a
esperteza do filho:
— Muito bem, aprovou ele com entusiasmo, a liçãozinha na
ponta da língua como eu gosto. Vamos a ver se com a segunda
pergunta aguentas os vinte valores do exame: qual é o teu
papel na Organização?
O da esquerda passou-lhe a mão pela bochecha, numa festa
elogiosa primeiro, numa bofetada depois: a cadeira
despenhou-se para um lado, o oficial de transmissões para o
outro, uma dor violenta no cu, Devo ter quebrado o cóccix
com o espalhanço, o careca esticou o rosto aborrecido para o
polícia do estalo:
— Pela tua saúde, Edgar, que termos são esses? Ajuda aí o
Che Guevara a levantar-se e lembra-te que a má educação é
uma coisa feiíssima.
Repuseram a cadeira no lugar (Bonitos meninos, bonitos
meninos, estimulou o careca), apanharam-me pelos fundilhos e
despejaram-me no assento como um palhaço morto. A espinha
latejava-lhe, chocara com o pescoço no rodapé do gabinete, os
ombros e as coxas tremiam (Da falta de comida? Da pancada?
Da miúfa?), o Guevara ficou um bocado mortiço, dêem-lhe
umas palmadinhas para o animar, e os gajos, meu capitão,
moeram-me o canastro que só visto, com o chefe a assistir,
repimpado à secretária, inalteravelmente jovial.
— Faltam dez minutos para zarparmos daqui, segredou o
alferes a consultar o relógio. Em que carro vamos?
O calvo ergueu o braço cheio, cessaram de lhe arrear
porrada, o novo discurso, monocórdico, mole, sem veemência,
não acabava nunca, as páginas pareciam aumentar cada vez
mais, o tenente-coronel media estrategicamente a distância
entre o lugar e a porta, Temos de rastejar a partir daqui, e eu
pensei, contrariado, Por cima dos restos, das cascas, das
tampas torcidas de cerveja, das migalhas?, o verdadeiro
comunista é forte na adversidade, ninguém me está a tocar,
ninguém me está a fazer mal, o sorriso esticou-se, cúmplice,
para ele, Qual é o teu papel na Organização, queridinho?, e as
órbitas vermelhas do negro a fitarem-nos por uma ranhura das
pálpebras inchadas, os gomos desfeitos dos lábios dilatando-se
e comprimindo-se devagar como corolas marinhas, a bota,
eriçada de taxas, de um agente subiu-lhe às carótidas num
vagar angustiante, um som mate e o homem a enrolar-se no
cimento, de membros trocados, num volume de farrapos que
se aquietaram lentamente como as penas de um peru defunto.
— A Organização?, perguntou o oficial de transmissões,
que perdera os óculos na queda e para quem o que o cercava
dera lugar a um funil de manchas coloridas, no qual giravam,
estirados, vultos uniformes como que percebidos por detrás de
uma cortina de anémonas. Mudaram-me para Caxias dois dias
depois, meu capitão, com um molho de prisioneiros tão
amassados como eu, tão lixados dos cornos como eu, a
badalarem e a badalhocarem com os solavancos do trajecto,
não conhecia nenhum tipo na cadeia, as pessoas formavam
grupinhos e cagavam-se em mim, ninguém contactou comigo,
ninguém me veio falar, e de tempos a tempos, já se sabe,
chamavam-me à administração para as perguntas do costume,
para o arraial de patadas e bofetões do costume.
— E os seus camaradas, meu tenente, indignou-se o soldado
a combater um arroto, não fizeram nada por si nessas
semanas?
— Agora, mais acordadinho, vamos voltar ao princípio,
minha jóia, ordenou pacientemente o careca. Qual é o teu
papel na Organização, como é que essa geringonça funciona?
Não, pensou o oficial de transmissões, ninguém fez nada
por ele, ninguém o ajudou, explicaram-me depois que
andavam vigiadíssimos, que a Pide semeara bufos em cada
canto, que não podiam, que não deviam sacrificar os supremos
interesses da classe operária arriscando-se burguesmente por
um único militante em perigo, e talvez começasse aí a minha
descrença, e talvez começassem aí as minhas dúvidas. Porque
para mim, meu capitão, o comunismo era isso mesmo, uma
solidariedade completa, percebe, uma partilha que me
oferecesse o que eu não tinha em casa, um ideal de
cumplicidade que me ajudasse a aguentar a solidão da minha
vida, que apenas as girafas do Carrossel do Oito, a
rodopiarem, fosforescentes, no tecto, visitavam.
— A rastejar conseguimos, calculou o tenente-coronel,
turvo de vinho, a desenhar um esquema complicadíssimo na
toalha de papel, se nenhum de nós se levantar mais de trinta
centímetros acima do soalho, e puser um ar casual para não
dar nas vistas. Pelo sim pelo não o melhor é guardarem nos
bolsos relógios, anéis, fios, pulseiras, objectos que brilhem.
Você, nosso capitão, entregue-me as chaves do seu carro: eu
sigo à frente, sento-me no lugar ao lado do volante e destranco
as portas. Em oito minutos quero todo o pessoal na viatura,
devidamente fardados e municiados, prontos para o ataque
final. Há quem queira esclarecer alguma dúvida?
O oficial de transmissões deu-se conta de súbito de como
que pedritas de arroz na língua: cuspiu-as para a palma e eram
fragmentos de dentes, a saliva coalhada de sangue, o nariz
completamente anestesiado pelo éter dos murros. O careca,
gentilíssimo, apressou-se a ralhar aos colegas (Não sei que
educação vos deram na escola que não sabem portar-se como
indivíduos normais), ofereceu-se para lhe ir buscar um copo de
água, prontificou-se a fornecer o nome de um dentista amigo,
Um moço jeitoso que lhe endireita isso tudo, baratinho, num
instante. Eu apertava as gengivas com o lenço, perdera uma
das pantufas e o pé nu, muito branco, enrugava-se como um
verme esquisito no chão de pedra: Se não respondo estes
sacanas ainda me matam aqui, partem-me os braços, abrem-
me a cabeça ao meio, deixam-me a barriga num oito, o
verdadeiro comunista é forte na adversidade, aceitou a água, o
calvo saiu pressuroso, voltou logo a seguir com uma caneca de
alumínio, e em lugar de lha dar a beber fingiu tropeçar,
entornou-lhe de chofre o líquido na cara, e pela primeira vez o
sorriso afável do polícia torceu-se numa horrível, inesperada
expressão de ódio, as mandíbulas rangiam de fúria, as pupilas
verrumavam-no impiedosamente, os tendões dos malares
endureceram, uma voz de lixa raspou-lhe o ouvido Vais ou não
vais cantar meu cabrão, Se eles começarem muito amorosos,
prevenira-o o Olavo, descansa que a certa altura se lhes quebra
o verniz e depois aguenta-te no balanço que então é que a
música principia a sério, ao Emílio mantiveram-no seis dias de
pé e se as canetas lhe falhavam porradaria no lombo até se
endireitar de novo, a gente chama-lhe a estátua mas existem
mais especialidades na ementa, o tenente-coronel desenhou a
tracejado o caminho daquela ponta da mesa para a porta do
restaurante, e da porta do restaurante para a porta do carro,
comunicou num sopro confidencial de guerreiro Senha:
cabaré, contra-senha: putas, apertou a mão dos subordinados
desejando-lhes boa sorte e entornando cálices, pediu Não se
esqueçam de me cobrir a retirada, atirem pela certa e não
desperdicem balas, a água refrescava-lhe o rosto tumefacto,
lambeu o círculo dos beiços no intuito de se impregnar melhor
daquela agradável humidade, mas fecharam-lhe a boca com
uma cotovelada, puxaram-lhe os cabelos e daí a pouco estava
outra vez no chão. Hás-de cantar todas as músicas meu lindo,
profetizou o careca cuja voz, agora pequenina, se distanciava
lentamente, ainda te vão chamar o pintassilgo de Caxias,
regressava aos bordos à cela empurrado por um guarda,
permanecia horas e horas estendido no colchão, incapaz de
mexer-se, navegando numa espécie de sono povoado de
arestas dolorosas, acordando e adormecendo como um barco
aparece e desaparece nas marés vivas de setembro, não tocava
na comida, apanhou uma tareia suplementar por se borrar nas
cuecas, passou dias na enfermaria da prisão a sonhar com as
barquinhas da Grande Roda, um gordo de bata aplicava-lhe
injecções, o médico auscultou-o sem uma palavra, examinou-o
à radioscopia numa câmara escura que uma azulada atmosfera
de milagre alumiava, e eu a pensar nas girafas de carrossel,
meu capitão, eu a vê-las dançarem, oblíquas, nas paredes,
cavalgadas por gente que me apontava e que se ria, o Olavo, a
Dália, a Esmeralda, a minha mãe comigo pequenino ao colo,
em Odivelas, tantos anos depois tornei a sentir-lhe os braços, o
peito, o cheiro do pescoço, Três costelas partidas, resmungou o
médico, mas devia haver uma infecção qualquer porque
mijava sangue, de forma que me entregavam comprimidos
para engolir de seis em seis horas quando se lembravam disso
e poucas vezes se lembravam, tinham mais duas camas na
enfermaria, numa um tipo de barbas, pele e osso, ligado ao
oxigénio, sem conseguir falar, uma manhã o da bata tapou-o
com o lençol Morreu, na outra um rapaz com a bacia e as
pernas fracturadas, que comera de certeza uma arrochada
valente na cabeça porque cantava o tempo inteiro, de olhos
redondos de louco, o hino dos Bombeiros Voluntários do
Bombarral, o gordo da bata mandava-o calar-se e ele, mais alto
ainda, Terramotos e fogos combatemos, via-se o mar, pela
janela, naviozinhos insignificantes, frisos de espuma, O que é
que este sacrista ainda aqui está a fazer?, disse o médico,
indignado, a apagar o cigarro na sola do sapato, e enviaram-
me de regresso para baixo, tinha febre porque tremia tanto que
mal se aguentava nos joelhos e logo nessa tarde o careca
chamou-o, sentou-se pela milionésima vez na mesma cadeira,
na mesma, sala, Confessa aqui a tua paixãozinha ao inspector
que tu adoras e para te ires descontraindo fala-me lá da
Organização, Imaginam que somos muitos, pensou o oficial de
transmissões, imaginam que pomos realmente em perigo o
regime, e (o que nunca lhe acontecera antes) teve vontade de
rir, vontade de pinchar de gargalhadas diante daqueles três
rinocerontes cruéis que o insultavam e lhe batiam, vontade de
rir, mijando sangue, das frases pomposas que solenemente lhe
impingiram nas reuniões clandestinas, o verdadeiro comunista
é forte na adversidade, o que conta de facto é que me faltam
dentes, que me foderam a saúde, que fizeram de mim um
espantalho de medo, que entrei neste jogo do gato e do rato
sem me pedirem nada, automaticamente, como se por
definição eles fossem os carrascos e eu o escravo culpado, Nos
próximos meses vão acontecer coisas que tu nem sonhas,
avisara a Dália na estação do metropolitano, este país vai dar
uma volta do caneco, pá, Como manobra de diversão, planeou
o tenente-coronel, um de vocês dirige-se à casa de banho,
abrangendo dessa forma aquele ângulo da mesa, Ainda bem
que achas piada a isto, ainda bem que me aprecias,
congratulou-se o careca, sempre gostei de paneleiros com
sentido de humor, ergueu-se, contornou a secretária, extraiu os
anéis do boxe da algibeira, disse Segurem-no que veio da
enfermaria, levou o braço acima e começou a malhar, a sua
boquinha redonda aumentava e diminuía, à procura de ar,
como a dos peixes encarnados nos aquários esféricos da
infância, E os seus camaradas nada, meu tenente, admirou-se o
soldado, os seus camaradas calados e quietos como ratos, mas
não só os camaradas, pensou ele, as velhas também, nem uma
carta, nem um volume, nem uma visita, toda a gente se
desinteressou de mim, o marxismo-leninismo-maoísmo é uma
porra, com a ajuda de cálices e copos e cinzeiros o tenente-
coronel tornou a explicar a operação, um pires de azeitonas
despenhou-se no soalho e as esferazinhas brilhantes, pretas e
verdes, rebolaram em diversos sentidos num silêncio oleoso,
Estão grossos, pensei eu, estão irremediavelmente grossos e
agora até ao fim da noite será o cabo dos trabalhos com estes
tristes guerreiros envelhecidos, os dois polícias seguravam-no
com força, via-lhes as falanges brancas na camisa, o careca
guardou o boxe e prosseguiu a pontapé, Cuidado com os
colhões do homem, senhor inspector, que o mata, mas o outro,
possesso, Achas piada, minha puta, achas piada, vais achar
muito mais graça quando eu te foder de vez, te transformar os
ossos em esparregado de bebé, o oficial de transmissões sentiu
sem qualquer preocupação que uma peça se lhe soltava no
ventre e flutuava ao acaso nas águas da barriga, O sangue é
doce, pensou ele, espantado, com a mandíbula em pedaços,
engolindo-se a si próprio numa espécie de prazer, o sangue é
doce e grosso como geleia, o alferes, de cigarrilha na boca,
ofereceu-se de imediato para a manobra de diversão da retrete,
Serás condecorado postumamente pelo chefe do Estado-maior
em pessoa 202IAntonio Lobo Antunes com a ordem de
Santiago da Espada, prometeu o tenente-coronel, a Pátria
recompensa condignamente os filhos que por ela se sacrificam,
as lâmpadas da feira acenderam-se todas, as motos do Poço da
Morte aceleravam num ruído infernal, as vagonetas do Castelo
Fantasma partiam, oblíquas, para um percurso às escuras entre
caveiras e caixões, as girafas do Carrossel do Oito galopavam
no seu chão de tábuas mal assentes, empurradas por uma
cremalheira enorme, nas ruazinhas dos restaurantes os cheiros
de comida prendiam-se, como polvos, aos cabelos, a Grande
Roda principiou a girar, balouçando de leve as barquinhas de
metal, o alferes afastou a cadeira e colocou-se de cócoras,
prestes ao sinal do tenente-coronel, que erguera o braço de
olhos no relógio, o careca recuou para ganhar impulso,
Atenção aos tomates, senhor inspector, que o homem já não
aguenta nem um sopro, A laracha que vais achar agora, meu
caralho, disse o outro, baixou a calva e enterrou-lha
furiosamente no estômago no meio dos gritos, das
gargalhadas, das conversas, dos focos, da música, e o corpo
tumefacto e mole do oficial de transmissões tombou lá de
cima, de uma das barquinhas do topo, de onde se viam as
casas, e os telhados, e os anúncios da cidade, e amontoou-se
junto à tenda da Ciganita Dora numa confusa mistura de
trapos.
12

Uma ruazita inclinada do Intendente, automóveis


estacionados, o anúncio luminoso a piscar Bar Boite Madrid,
Bar Boite Madrid, Bar Boite Madrid, ao lado de uma
mercearia fechada, o porteiro, o eterno polícia e o cartaz com
fotografias de mulheres aclarado por uma lâmpada vermelha
que derramava no passeio o seu sangue gasoso. O porteiro
puxou do bolso um livrinho de senhas e disse Duzentos
escudos por caveira, enquanto o polícia nos observava em
silêncio através da pala do boné. Arrumei o carro entre uma
camioneta pequena que cheirava a galinhas e um táxi vazio,
diante de um prédio de azulejos onde velhotas de muletas
recebiam hóspedes bancários e cartas de netos da Venezuela
cheias de selos e carimbos, o céu, cor de interior de caixa de
sapatos, esmagava os telhados, as janelas fitavam-me na
atenção inquietante das órbitas vazadas, e se colasse o ouvido
às frontarias com eczema escutaria decerto dezenas de fiéis de
armazém ressonando em uníssono, num orfeão de camisolas
interiores de barriga para cima. Um bolero desafinado
escapava-se pelas frinchas do cabaré como o fumo das
panelas. O tenente-coronel exibiu a carteira ao polícia que se
perfilou numa continência mole, e o porteiro, surpreendido,
enterrou discretamente, à cautela, as senhas na algibeira: Se
calhar, pensei eu, julga que somos dos Costumes, se calhar
julga que viemos perder tempo a fiscalizar este barraco. À
vontade, concedeu o tenente-coronel ao guarda sonolento e
para nós, marcial, Em frente batalhão. Marchámos a tropeçar
uns nos outros, ainda sujos da serradura e das cascas do chão
do restaurante, o bolero aumentou de intensidade e havia uma
orquestra ao fundo, com um fulano de casaco
branco e sobrancelhas circunflexas sussurrando ao microfone
dramáticas confidências em espanhol, imensas mesas vazias,
as damas do cartaz, quase todas loiras e gordas, instaladas nos
bancos pernaltas do bar em atitudes friorentas de cegonhas
doentes, e um senhor grisalho, de calças de fantasia,
circulando com ares proprietários na espelunca miserável,
enquanto um odor de perfume, denso como raticida, nos
obrigava a vacilar na atmosfera polar, percorrida por um foco
vagabundo, parecido com um olho agudo de dentista, à cata de
cáries numa boca aberta. O senhor grisalho aproximou-se,
oblíquo, arvorando um sorriso profissional de diplomata
benévolo, o tenente-coronel curvou-se em posição de ataque, e
nós formámos de imediato à sua volta como para o assalto a
uma sanzala. O inimigo, espantadíssimo, recuou de sorriso a
definhar-lhe nas bochechas à laia de um jacinto numa jarra,
um criado surgiu da sombra e cochichou qualquer coisa na
orelha do embaixador, que compunha a gravata cor de pérola
com os dedos inseguros, Faz favor meu tenente-coronel por
aqui, aconselhou o empregado a apontar um círculo de
cadeiras infinitamente distantes, o tenente-coronel,
cambaleando como um sempre-em-pé, virou a cabeça por
cima do ombro e ordenou-nos Sigam o guia indígena, uma
tampa torcida de garrafa de cerveja pegava-se-lhe ainda ao
cotovelo poeirento, o proprietário e o criado avançavam à
arrecuas, gesticulando como os arrumadores que orientam as
manobras nas garagens, o oficial de transmissões pisava-me os
sapatos, o soldado empurrava-me as costelas com a arma
invisível, o alferes, de joelhos, protegia-nos de longe atrás de
um reposteiro, a fazer Pum pum pum pum pum pum pum pum
com a boca, alcançámos a mesa ao cabo de uma viagem
tormentosa, que o perigo das minas antipessoais escondidas no
soalho prolongou consideravelmente, o tenente-coronel bateu
os calcanhares para o senhor grisalho e declarou com modéstia
Missão cumprida meu general, o alferes apareceu de gatas,
instalou-se dificilmente junto a mim e gritou ao empregado
Champanhe para os homens rápido, o circunflexo dos boleros
abraçava-se, lancinante, ao microfone, numa paixão
contranatura pelos amplificadores, Que gaita do caraças,
pensei eu, em que raio de chiça me enfiei, um grupo de
naturais, de patilhas e cabelo empastado, mamava cervejas
num canto, espreitando-nos com a absoluta impassibilidade
dos negros lisboetas, um segundo servo colocou uma vela ao
centro da mesa e os nossos rostos emergiam do escuro tal as
máscaras ossudas e pálidas de um filme de terror, o foco
vagueante arrancava das trevas outros corpos, outros ombros,
outras criaturas imóveis, uma portinha que anunciava Damas,
uma vitrina repleta de caixas de chocolates de antes do
Dilúvio, o músico de óculos escuros que martirizava o piano
com as cruéis aranhas das falanges. Tudo isto, pensei, é ser
triste e pobre e pretensioso como uma carreta funerária sem
caixão, estes véus, estas cortinas, estas estrelas de papel
prateado, estas cintilações falsas e estes brilhos mentirosos,
Creio interpretar correctamente o sentir do comandante-chefe,
afirmou o tenente-coronel, ao prometer-vos desde já um
louvor colectivo e uma cruz de guerra a cada um, para além de
cinco dias de licença em Lourenço Marques, acompanhados
por lindíssimas mulheres extasiadas pela nossa bravura militar,
senhoras da melhor sociedade desta querida província
ultramarina que tão galhardamente defendemos, e de facto,
deslizando dos bancos pernaltas do bar na avidez sem pressa
dos insectos, avizinhavam-se de nós, tortas como caranguejos,
em equilíbrio precário nas andas dos saltos, criaturas obesas de
impressionantíssimas cabeleiras platinadas, dentes de oiro
carnívoros na sombra, decotes fundos como poços hertzianos,
peitos e ancas desmesurados sobejando das cintas em
borbotões de carne, brincos que tremiam como lanternas de
comboio. Plantaram na toalha vários pires de pipocas e dois
baldes cromados que suavam, os gargalos das garrafas de
champanhe apontavam ao tecto as suas balas de rolha, o
gerente, de mãos atrás das costas, enxotava as raparigas na
nossa direcção com imperativos acenos de queixo de domador,
o dos boleros mordia agora o osso de um tango em latidos de
rafeiro, as primeiras mulheres abalroavam a mesa no tilintar
das pulseiras de lata e dos colares de baquelite, instalavam-se
nas cadeiras livres como sapos no rebordo de um charco,
entornavam nas goelas tacinhas inteiras de batatas fritas, de
amendoins, de pevides, que mastigavam numa placidez
impassível, o tenente-coronel ergueu-se para urinar e afigurou-
se-me de súbito, assim curvado e hesitante, um frágil,
indefeso, melancólico cavalheiro de idade, sem nenhuma
esperança, apoiando-se aos espaldares na direcção da retrete.
Chamo-me Abílio e a menina?, perguntou o soldado a uma
mulata gigantesca que comungava pipocas numa indiferença
mole, o gerente, mais tranquilo, vigiava o nível do álcool com
a varinha de metal dos olhos, o cavalheiro de idade acabou por
desaparecer, de pernas difíceis, numa curva do balcão. Já
seríamos desta forma há dez anos?, perguntei-me eu, já
estaríamos tão mortos como agora, tão definitiva e
inapelavelmente mortos como agora?: o foco lambeu os óculos
do oficial de transmissões que se multiplicava em cochichos
delicados ao ouvido de uma rã na menopausa, a segurar
vegetalmente o copo com as unhas imensas. Dentro de dez
minutos, prometeu uma voz tumular, apresentaremos o nosso
fabuloso show internacional e o primeiro apontamento de
strip-tease a cargo da conhecida artista italiana Melissa, vice-
campeã da Europa nesta dificílima especialidade, vinda
expressamente de Milão num rigoroso exclusivo do Bar Boîte
Madrid. Os tangos deram lugar aos pasodobles, o músico do
saxofone retorcia-se no estrado como uma centopeia de costas,
bateram à porta do gabinete, o alferes disse Faz favor sem
deixar de ler, munido de um lápis vermelho, o maço de papéis
que tinha à frente, passinhos rápidos cada vez mais perto, o
vocalista brandia funebremente um par de castanholas,
Trabalho no negócio das mudanças, explicava o soldado,
Devia tê-los despejado aqui e largado para casa que amanhã
entro na repartição às nove, pensei, já zangado comigo, a
mexer a lixívia do espumante com o dedo, o alferes levantou a
cabeça e deu com o eterno vestido de professora primária e o
penteado de catequista da Ilda, uma ruiva meio corcunda
afagava-me diligentemente a nuca, Quem manda vir uma
garrafinha só para nós dois, quem é?, o nariz curvo debicava-
me de córneos beijos agudos de madrinha, uma palma
molhada apertava-me a breguilha, fechando-se e abrindo-se, à
maneira de uma ostra sobre os meus testículos em pânico, o do
piano esborrachava furiosamente as notas como quem esmaga,
à noite, baratas com o chinelo no quarto de dormir, o tenente-
coronel, ao fundo, voltava para a mesa remando contra as
correntes contrárias do vinho, Se o Olavo me visse, disse o
oficial de transmissões, mandava-me decorar durante um ano
trezentas páginas de Lenine por dia, o alferes pousou o lápis,
afastou as folhas com o cotovelo, Há umas poucas semanas
que não estávamos juntos, meu capitão, falava-lhe de longe no
refeitório do banco e mais nada, a Ilda hesitou, colou o umbigo
à mesa, pareceu ganhar balanço ou coragem ou o que fosse no
interior de si mesma, verificou o fecho da carteira, limpou as
migalhas de bolo de arroz da manga e de repente inclinou-se
para ele Estou grávida, o alferes O quê?, e ela mais segura,
menos trémula, mais alto, Ouviste muito bem, estou grávida.
— Se você é dos que lavam as mãos, segredou-me o
tenente-coronel recuperando aos apalpões o seu lugar, depois
de esbarrar vezes sem conta, teimosamente, nas paredes, à laia
de um automovelzinho de brinquedo no final da corda, não
perca a miúda em biquini que estende à gente o sabonete e a
toalha: doze, treze, catorze anos no máximo, mas cada mama,
cada anca, cada perna capazes de porem em pau um cemitério
inteiro. Quando a gaja me sorriu fiquei com os ossos em
espuma.
— Na Suíça ou no Luxemburgo tanto se me dá, disse a mãe
da Inês, o que eu quero é o dinheiro fora daqui o mais
rapidamente possível, depois se vêem os juros.
A música interrompeu-se, Dentro de minutos o nosso
primeiro apontamento de strip, e recomeçou a custo num
solavanco de comboio puxado pela locomotiva penosa do
saxofone, trepando aflito uma encosta de bemóis. O
champanhe fazia-nos levitar nas cadeiras, tornava-nos capazes
de caminhar biblicamente sobre um lago de águas minerais, de
esvoaçar entre as luzes e o fumo, como esquisitos pássaros
bêbados, chocando uns com os outros no ruído de penas dos
casacos. O quê?, repetia o alferes espantadíssimo, o quê?,
corpos abraçados na pequena pista de dança circular, homens
insignificantes prestes a serem devorados por tantas madeixas
loiras, tantas nádegas antropofágicas, tantos peitos nus: Era
uma altura lixada, meu capitão, a gente na banca pressentia
que qualquer coisa de grave estava a acontecer, que o Exército
se agitava, que a polícia política não controlava a situação, que
os grupos económicos se descartavam, que o Governo assistia,
impotente, a tudo aquilo, a família da minha sogra vendia
companhias e acções por tuta-e-meia, a mulata devorava o
soldado ao ritmo de dentes que mastigam, que trituram, que
quebram, das castanholas, e o tronco dele dissolvia-se a pouco
e pouco no vestido cintilante, talvez que sobrassem uns
pedacinhos de osso por aqui, por ali, no chão, que a
empregada da limpeza varreria no dia seguinte, de mistura
com o lixo e as beatas, na direcção da rua à hora a que o
merceeiro descerrava a porta do seu acanhado império de
detergentes e batatas, a Ilda observava, lá em baixo, a dona da
capelista, de pernas manuelinas de varizes, a lavar a montra,
empoleirada num escadote, no meio dos mendigos, dos
cauteleiros, dos vendedores ambulantes e das apressadas
pessoas ferozes, de pálidos olhos assassinos, da Baixa. No
extremo da avenida, após sucessivas árvores geométricas, cada
vez mais pequenas, de semáforos, distinguia-se um losango
magro de rio que os autocarros e os eléctricos, a coxearem ao
longe, ocultavam e descobriam em passes de mágica sem
mistério. Catorze anos e nenhuma ruga, sussurrava o tenente-
coronel, tudo rijo, tudo firme, tudo sem gordura, só os
músculos de égua nova do dorso, só os pelinhos tenros da
barriga: imagine-me o cuspo sem tabaco, os olhos sem
remelas, os gemidozinhos excitados de hamster. O alferes
nervosíssimo acendeu um cigarro pela ponta do filtro, um
gosto horrível de queimado encheu-lhe a boca e o nariz,
apagou-o à pressa no cinzeiro quadrado de mármore,
abandonou a secretária a abanar o leque enjoado da mão para
afastar o fumo, o telefone tocou, Não, não me esqueci,
obrigado, mande-os entrar para a sala de reuniões e o Dr.
Costa Nunes que vá começando enquanto eu não chegar: o
sacana rechonchudo, de camisa de terilene e pavorosos botões
de punho de uma fealdade angustiante, discursando com o seu
trilar amaneirado e os seus modos oleosos de cónego para uma
plateia de executivos submissos.
— Ilda, hã?, gargalhou sarcasticamente a Inês, se ela se
parece com o nome que horror.
Não tinha culpa, não queria, usou sempre as precauções
habituais menos a pílula que a médica não deixava pelo risco
das veias demasiado fracas, das hemorragias, das tromboses,
das varizes, nunca houve chatices destas, pois não?, sabia lá
por que motivo acontecera agora, e o alferes, por trás dela,
olhava também os mendigos e os bêbados da rua, a dona da
capelista que achatava o escadote e se sumia na penumbra de
revistas velhas e de antigos narizes de carnaval, com elástico
para a nuca, da loja, o gesso pintado, imóvel, do Tejo, e o céu
quase branco pegado às testas tensas, exasperadas, medrosas,
das pessoas: A cidade caçou-nos como ratos, pensou ele, as
camionetas da Câmara recolherão de madrugada os nossos
inchados, repugnantes, pútridos corpozinhos cinzentos.
— Sónia, palavra?, maravilhou-se o oficial de transmissões
a oferecer lume em torno com o isqueiro pressuroso. Se eu
confessar à menina que o meu sonho de sempre é casar-me
com uma Sónia, acredita?
O Dr. Costa Nunes tomava notas lentas num bloco depois de
convidar os subordinados a exprimirem, um após outro, as
suas imaginações bancárias, os seus delírios financeiros de
títulos e moedas, enquanto o alferes o odiava minuciosamente
e o soldado, na aparência intacto, regressava à mesa
escoltando com orgulho a mulata imensa, que retocava o baton
a afunilar beijos para um espelhinho redondo, à medida que as
sucessivas pregas de gordura se acumulavam, se somavam
duplo queixo a duplo queixo fora, até aos minúsculos olhos
atentos de camaleão impávido, prestes a enrolar a sua mosca
no embrulho de vidro da saliva. A corcunda beliscava o
umbigo do tenente-coronel introduzindo a mão num intervalo
da camisa, a menina das toalhas movia-se de lado, como as
tarantulas, na sua teia de piaçabas e urinóis, a Inês meneou-se
no banco do carro, batido pelas ondas da Marginal que
pulavam a muralha como se alguém arremessasse
furiosamente do escuro gigantescos baldes de água desfeitos
no alcatrão numa poeira de gotas:
— Uma namorada no emprego como qualquer pacóvio, riu-
se ela de nariz franzido, a retalhá-lo sem piedade com as
navalhas das pupilas. A mim o que me surpreenderia era que
arranjasses imaginação para mais.
Quando a menstruação faltou não se afligiu muito, era
habitual nela, ora se adiantava ora se atrasava, mas passados
dias vieram-lhe enjoos, tonturas, vómitos, indisposições de
manhã, punham-lhe uma chávena de chá à frente, subia uma
coisa por mim acima e zás, antes das onze não engolia nada e
o sangue não havia maneira de chegar, mal acordava ia
examinar as cuecas e pronto, limpas, começou lentamente a
não entender, a preocupar-se, a afligir-se, comprou
envergonhadíssima a embalagem da análise na farmácia, uma
que anunciavam na televisão e a prima, socorrista, mãe de três
filhos, utilizava, mas não se atrevia por medo a experimentar,
meteu atestado, não saía de casa com os nervos, vinham-lhe
insónias, pavores, sonhos estranhos à noite, julgava ouvir
gritos de criança no corredor deserto, choros, chamamentos,
soluços de bebé, ao segundo mês os vómitos e a indisposição
atenuaram-se e no entanto nem dores de cabeça ou nos ovários
nem uma babação cor-de-rosa nos pensos, acabou por pingar
um fiozito de urina no tubinho, esperou umas horas terríveis,
com três calmantes inúteis no bucho, a folhear para trás e para
a frente um romance de súbito ilegível, espreitou, viu o círculo
castanho na base do líquido, tornou a decifrar o papel das
instruções, tornou a examinar o tubo, sacudiu-o na esperança
que o círculo se diluísse e nada, consultou de novo, já sem
ilusões, o papelinho, Gravidez.
Agora nenhum autocarro, nenhum eléctrico proibia o rio,
um cargueiro amarelo claro deslizava no sentido da foz, o céu
deslocava-se e decompunha-se em sucessivas camadas de
nuvens, uma promessa de azul aguarelava os telhados: a
mulata entalou o gargalo nos dentes e verteu na tripa meio litro
de champanhe, a bateria rebolou como nos saltimbancos da
infância anunciando o espectáculo, o foco imobilizou-se sobre
a pista de dança vazia, o embaixador grisalho, de smoking,
nasceu das trevas a arrastar um microfone, aplicou-lhe umas
pancadinhas experimentais com o dedo que ecoaram
monstruosas na sala como o pigarro do Juízo Final, e
agradeceu as palmas que ninguém lhe dera: Damas e
cavalheiros boa noite a todos e os sinceros desejos de uma
soirée bem passada, eis os votos do Bar Boite Madrid que se
honra de apresentar perante vosselências a primeira parte do
seu extraordinário show internacional, inteiramente preenchida
por artistas de reconhecida categoria e méritos firmados,
expressamente vindos dos casinos de Londres, Nova Iorque,
Paris, Monte Carlo, Roma e Singapura, num rigoroso
exclusivo que em nenhuma circunstância poderá, lamentamos
dize-lo, ser televisionado. E a abrir o nosso fabuloso desfile
temos o prazer de contemplar ao vivo (fundo desafinadíssimo
de piano e acordeão) o incomparável equilibrista sueco
Charles e a sua formosíssima partenaire Janete,
desembarcados esta madrugada de Las Vegas para nos
provarem, através da sua suplesse sem igual, que a lei da
gravidade se transformou, damas e cavalheiros, numa
invenção ultrapassada.
— Não acredito nem um bocadinho nesses remédios da
televisão, respondeu o alferes a contemplar a mancha
longínqua do navio, apertada pelas vértebras pombalinas das
casas. Mesmo por baixo da janela o inválido do costume
instalava-se no passeio sobre um pedaço de manta, colocava a
boina suja entre as pernas, tocava as calças das pessoas com as
cicatrizes repelentes dos cotos. Bebex, o São Gabriel Químico
do Século Vinte: como é que ainda engoles mentiras idiotas?
— Suíça, Luxemburgo, Alemanha, onde você quiser,
esporeou-o a sogra num ganido urgente, mas despache-se que
já me cheira a comunismo por aqui.
Não, não era idiota, lá estava ele a teimar com a rigidez
habitual, depois da análise abriu-se com a prima socorrista,
entre parênteses podes ficar descansado que não mencionei o
teu nome, acabou por consultar nessa tarde um médico
desconhecido no extremo oposto de Lisboa, pagava-se
adiantado à enfermeira, o doutor mandou-a deitar-se na
marquesa, amarraram-lhe as pernas a uma espécie de ganchos,
uma luva avançou para mim a remexer as salsichas amarelas
dos dedos, o abajur do tecto era com franjas e pintinhas, as
salsichas deslizaram para dentro do corpo numa destreza
suave, a prima socorrista segurava-me a mão, uns apalpões no
ventre, uma fita métrica a medir os ossos, faça o favor de
levantar-se, a caneta que preenchia uma ficha, pancadinhas
amáveis no ombro, Vamos marcar vinte e dois de Dezembro
como data do parto, três ou quatro raparigas barrigudas
aguardavam na sala de espera minúscula, idênticas a bonecas
espanholas num quarto de criada, a porta cerrou-se-nos,
pumba, nas costas, e havia um cartório no primeiro andar,
funcionários atrás de guichets e uma bicha de muita gente nos
degraus, cada qual com a sua folha de papel selado e os seus
pacientes olhinhos sem luz, e cá fora o sol da tarde nos
azulejos das fachadas e os telhados da cidade atropelando-se
na direcção do cais, entre pombos obesos, gaivotas magras, os
braços congelados dos guindastes e os armazéns piorreicos da
margem, abandonados e vazios como as vivendas dos mortos.
O incomparável equilibrista sueco Charles pinchou aos
saltinhos do escuro, apertado num babygrow amarelo,
reluzente de lantejoulas e vidrilhos. Era baixo, moreno, de
patilhas, tipicamente nórdico de Marvila, e quando a certa
altura se enganou escapou-se-lhe da ramagem preta do bigode
um impetuoso Foda-se de viking. A bela Janete, minúscula e
rabuda, de longos cabelos pontuados de palhetas a
encarapinharem-se em desordem nas espáduas, rodopiava em
torno do artista o qual se multiplicava em pinos lamentáveis,
sublinhados pela orquestra de compassos trágicos de
catástrofe.
— Não interessa o que é que eu soube, como é que eu
soube, quem me contou, gritou a Inês, furibunda, o que me
importa é que tens uma amante no banco.
A Ilda encostou a testa ao caixilho e principiou a chorar, e o
alferes, pensou, sem afecto, És feia, desleixada, pouco
feminina, com caspa na gola, como é que consegui dormir
contigo, caramba, como é que fui capaz? Não a conhecia bem,
meu capitão, nunca a conheci bem, os sarilhos que ela me
pudesse arranjar apavoravam-me, os inevitáveis cochichos da
secção apavoravam-me, se a Inês sonhasse, se a família da
Inês sonhasse, e os bustos do avô aumentavam
desmesuradamente de tamanho nas peanhas de ébano,
retorcendo-se em caretas de zanga, em ameaças convulsas. O
dia mudou de cor, as tripas borbulhavam, o ar era um sólido
irrespirável, pesadíssimo, o categorizado Charles desapareceu
às cambalhotas, regressou por momentos, de braços abertos, a
fim de agradecer o nulo entusiasmo do público, a formosa
Janete seguia-o abanando as imponentes nádegas de perua, a
voz soltou-se-me da boca sem eu dar por isso à maneira de um
peido incontrolável, E quem é que me garante que a criança é
minha, e mal acabara a frase, percebe, Meti água. A orquestra
calou-se, o embaixador arrastou de novo o microfone para o
centro da pista, regulou cuidadosamente a altura, com a
sombra das pestanas tombando nas bochechas, E depois de
Charles e Janete que nos brindaram com uma actuação
inesquecível, o Bar Boite Madrid traz-vos a leveza, o encanto,
a graciosidade da consagrada artista francesa Madame
Simone, coqueluche do Moulin Rouge de Paris, que nos exibe
as suas comoventes avezinhas amestradas para alguns minutos
de sonho, poesia e meticulosa precisão. Agora era só o piano
que tocava, de leve, repuxos de semifusas crescentes e
decrescentes semelhantes a suspiros de menino, a silhueta do
músico debruçava-se para as teclas como se as fosse jantar, a
marreca solicitou ao empregado um suplemento de pipocas, a
Ilda voltou-se num ímpeto tão colérico que o alferes,
assustado, recuou um passo, Nunca te julguei tão ordinário,
nunca calculei que pudesses ser tão reles. A Madame Simone,
velha gorda perigosamente decotada, de sumptuoso vestido
comprido a arrastar pelo chão num murmúrio suave,
acompanhava-se de várias gaiolas de pombas ou de rolas ou de
passarocos do género, que remexiam, ao bater as asas, a
atmosfera fumarenta, e lhe poisavam na cabeça e nos ombros
para cuspirem, de entre as patas rosadas, os rápidos escarros
moles das fezes numa intimidade incómoda. Um tipo de
lacinho e casaco encarnado colocava na pista carrocitas de
folha que os bichos, de pupilas sérias e estúpidas, empurravam
com o bico, obstáculos que transpunham numa facilidade sem
júbilo, um comboio eléctrico no qual percorriam aos
solavancos, muito direitos, umas voltas de calhas, espalhando
em redor penas soltas, cascas transparentes de comida e odor
de cocó, e empoleiravam-se todos por fim, imóveis, na árvore
de metal que a Madame Simone segurava com a boca,
enquanto o tipo de lacinho, de pernas curvadas e sobrolho
feroz, preparava mentalmente o churrasco de quem
desobedecesse. A orquestra celebrava a proeza num frenesim
desencontrado de compassos, e os afortunados espectadores do
Bar Boate Madrid, primeiros e únicos portugueses a possuírem
a dita de assistir às indiscutíveis leveza e poesia das
comoventes avezinhas, revistavam, soprando as penas brancas
que ondulavam um pouco por toda a parte e teimavam em se
lhes introduzir, comichosamente, no nariz e na garganta, as
fantásticas coxas das mulheres loiras, apertadas por
meridianos de ligas, como quem busca tristes tesouros
domésticos nos intervalos das almofadas de um sofá.
As trevas, aliás, haviam-se convertido numa espécie de
grande gaiola malcheirosa percorrida ao acaso por frémitos de
asas, por arrulhos, por suspiros, por pios, por perfis flutuantes,
e de tempos a tempos grossos pingos de merda tombavam nas
toalhas, despenhadas dos reposteiros e das franjas do tecto
onde pombos perversos se anichavam, debicando o milho azul,
amarelo, verde, castanho, branco das luzes, depositando ovos
nas dobras das cortinas, fornicando de roldão na caixa do
piano, escapulindo-se porta fora, para o interior da noite, na
esperança de uma estátua equestre onde ancorar, entre os
testículos de bronze dos cavalos ou as órbitas dos regicidas,
abrigados do frio por algas de ferrugem. A Madame Simone,
de mão dada com o sujeito de casaco vermelho, tornou à pista
rolando o corpo antiquíssimo numa graciosidade de
locomotiva, e dobrou-se numa vénia perra que fez saltarem as
vastas mamas murchas do decote à maneira de cabeças
cartilagíneas de gémeos assomando e dependurando-se no
decurso de um parto. Endireitou-se num novo guinchar de
dobradiças (Qualquer coisa, pensei eu, uma roda dentada, uma
mola, uma biela, o motor, se vai avariar irremediavelmente no
interior da coqueluche do Moulin Rouge), ofereceu beijos, de
dedos em pinha, à assistência muda, o gerente grisalho
estendeu-lhe o mesmo ramo de gladíolos falsos, cheirando a
plástico e a repolho, que oferecera momentos antes à formosa
Janete, e a Madame Simone evaporou-se a sacudir, como um
cavalo idoso, as abundantes crinas prateadas, seguida do
ajudante de lacinho que era, descobri-o de repente, o cantor
tumular de tangos e boleros. A Ilda vasculhou a carteira de
verniz, extraiu um amachucado, interminável lenço de homem
lá de dentro, enxugou a cara de bode em cujas
anfractuosidades de rocha apodreciam charcozinhos de
lágrimas estagnadas, verificou os milhares de ganchos do
carrapito, afastou o alferes que a procurava abraçar num afecto
postiço, Vim só avisar-te, não necessito da tua ajuda para nada,
e ele, a engolir a gana de lhe apertar o pescoço, Mas que mal
faz falarmos, que mal faz conversarmos um bocado, não sejas
tola, senta-te aí uns minutos, desculpa lá o que eu disse, foi
sem querer, saiu-me.
— Jorge?, perguntou a sogra, autoritária, e assaltou-o a
impressão que um dos antipáticos bustos de gesso o
interpelava, dobrando para baixo os ângulos salientes da boca.
Até que enfim, caramba, você é mais difícil de apanhar do que
um ministro. Quero que me arranje maneira de me trocar trinta
mil contos em dólares até amanhã, tenho um portador de
confiança para Londres.
Isto no fim de março, meu capitão, menos de um mês antes
do golpe, o banco em polvorosa surda, os principais
accionistas a tirarem à pressa as castanhas do lume, o valor das
acções cada vez mais fictício, o presidente do Conselho a ler
discursos de rabo a arder para uma cambada de generais que
nem com o peso das estrelas podiam, a Inês a fazer-me cenas
noites seguidas, não por amor, entende, por orgulho, por dor
de corno pura, gritos, insultos, enxovalhos, piadas, e como se
não bastasse cai-me de repente um filho, e da Ilda, no meio
deste novelo de sarilhos. Não, a sério, escute, como é que o
meu capitão se desenrascava no meu lugar?
— Treze anos, rosnava o tenente-coronel, sozinho, para o
interior do copo de champanhe. Algum gajo velho se
aguentava com uma cabritinha daquelas?
— Não faço nenhum aborto, afirmou a Ilda. E sossega que
não armo escândalos, que não te chateio, não te comprometo,
não te peço dinheiro.
À Madame Simone seguiu-se o genial ilusionista búlgaro
Mikael Mikaelov, que despejava jarros de leite em cones de
papel de jornal que se transformavam na bandeira portuguesa e
solicitava a colaboração do público com o sotaque do Porto
típico dos Eslavos, as irmãs Smith, da Califórnia, numa gentil
cedência do Casino de Nova Iorque, em exercícios de forças
combinadas, um par de garranas musculosas (uma delas, de
resto, era a lindíssima Janete, a acompanhante do equilibrista
sueco de há pouco) desfazendo-se em cambalhotas e mortais,
Marina Madragoa, a mais recente descoberta do fado,
acompanhada do seu conjunto privativo (o torcionário do
piano e a lombriga do saxofone, que mudaram de casaco para
a circunstância) e após alguns minutos de nula expectativa e
absoluto alheamento (Preparai-vos, damas e cavalheiros, para
o número sem par que se vos reserva), a campeã do strip-tease
Melissa, inveja das mais célebres estrelas do cinema italiano, e
singularmente parecida com a deusa do Fado com a diferença
de se manter em silêncio ao passo que a cantora, descomposta
pela inspiração lírica, urrava pelo gregório ao microfone,
como as sereias dos bombeiros, num terramoto de nádegas. O
soldado, de cabeça encostada à planície do braço da mulata,
beijava-lhe com arrebatamento a cicatriz sensual da vacina da
varíola. O oficial de transmissões afogava-se tossindo, depois
de guardar os óculos no bolso do casaco, numa espessura loira
que o devorou prontamente como as areias movediças dos
filmes de aventuras, deixando no ar a derradeira hipérbole de
um aceno.
Mas não quis sentar-se, meu capitão, não quis falar comigo
acerca da minha proposta de aborto, da minha proposta para
que reflectisse, que pensasse melhor, olhava-me como se eu
fosse um estranho, afastava a cara se me aproximava, sorria
com escárnio ou indiferença ou piedade, ali de pé no meio do
gabinete, segurando adiante da barriga aquela carteira de
verniz de tia que a acompanhava sempre, e a meio de uma
frase minha abriu a porta e saiu sem um adeus sequer, não por
raiva, compreende, não por ódio, mas porque eu deixara
realmente de existir para ela, me perdera em definitivo no seu
passado distante, nas antigas coisas desagradáveis e tristes que
a pouco e pouco se desbotam até se esvaziarem do sentido que
o sofrimento lhes dava, o único, afinal, que realmente
possuíam: ainda me cruzei duas ou três vezes com ela nos
corredores do banco, não me cumprimentou, não a
cumprimentei, telefonei-lhe e desligava-me o aparelho nas
trombas, e logo a seguir a revolução, a minha ida, à pressa,
para o Brasil, na enxurrada da família da Inês, e quando
regressou, cinco anos depois, tentou procurá-la e na secção de
pessoal informaram-na que Fulana Assim Assim deixara de
trabalhar no banco, a casa comprou-a um engenheiro
agrónomo muito prestável e cheio de boa vontade mas que
ignorava por completo a direcção da locatária anterior, não se
atreveu a entrar na secção e a abordar alguma amiga da Ilda, se
é que por acaso sobravam uma ou duas, que o ajudasse, de
maneira que não só não a tornou a ver como nada soube do
filho ou da filha que ela trazia na barriga, se nascera, se não
nascera, se se parecia comigo, e não há semana que não sonhe
com uma criança, de chupeta, a acusar-me, Nunca imaginei
que se pudesse ser tão ordinário, nunca imaginei que se
pudesse ser tão reles. O meu capitão não calcula o que é uma
pessoa ter um filho de que não conhece a cara.
— Treze anos, caralho, cochichava sozinho o tenente-
coronel a afagar o copo, quem não gostava de meter o prego
numa miúda assim?
A campeã da Europa libertou-se finalmente das cuecas,
lançou-as num gesto amplo para a nossa mesa, a pele das
mamas reluzia, os flancos rechonchudos ondulavam, as
nádegas tremiam. O alferes baixou os olhos, aparou um arroto,
e sorriu em torno, envergonhado, a desculpar-se:
— Difícil aguentar tanta merda, não acham?
segunda parte
a revolução
1

Os gritos da Odete e os pedregosos arrotos asmáticos do tio


acordaram-no com a mesma angústia instantânea, subitamente
alerta, com que outrora despertava na mata, ao primeiro
mínimo rumor insólito, à primeira ordem ciciada, ao primeiro
disparo. Escorregou rapidamente para o chão, a suar,
atrapalhado nos lençóis, palpando o espaço em volta à procura
da arma, o candeeiro da rua iluminava a casa em frente e um
pedaço do cubículo (o armário da roupa, o lavatório de
espelho, a Santa Filomena da dona Isaura na parede), a
pegajosa clara de ovo da aurora crescia como algas nos
telhados. Da sala vinham marchas militares, guitarras, vozes
de homem que cantavam, um locutor lia de tempos a tempos
um pequeno discurso, e a seguir, após um breve silêncio
interminável durante o qual o sangue estancava, suspenso nas
veias, à espera, mais marchas, mais hinos, mais orfeões, mais
música. Sentou-se no soalho, acendeu a lâmpada do quarto, e
os dedos dos pés surgiram, no fim das calças do pijama,
esticados e pálidos como os dos defuntos. As nódoas de
humidade do inverno anterior grelavam no tecto, o caixote
cheio de revistas de caubóis que servia de mesinha de
cabeceira aconselhava ao soldado uma marca de vinhos: não
havia árvores, nem arbustos, nem capim, nem negros de
camuflado empunhando espingardas checoslovacas, a fitarem-
no de repente com a compota de morango dos olhos: só a
Odete e o tio que conversavam, ou se entusiasmavam, ou
discutiam na sala, os esguichos insólitos do rádio, o imenso
arfar da velha na cama de casal, agitando a sua metade viva
em espasmos desencontrados de caranguejo. Molhou as mãos,
a nuca, a cara (um tipo cruzou a janela a correr na direcção da
Gomes Freire, perseguido pelo eco dos próprios sapatos no
alcatrão), enxugou-se a fungar ao cobertor, calçou um dos
chinelos, suspendeu no ar o outro tornozelo, indeciso, Deito-
me, não me deito, vou lá dentro espiar o que se passa, a
telefonia do vizinho de cima transmitia o mesmo discurso, as
mesmas canções, os mesmos hinos, pessoas chamavam-se de
varanda a varanda, olhou o relógio, Seis da manhã e tanta
agitação o que é isto, acabou por sair do cubículo com um
chinelo só, a coxear, compondo à pressa os botões da
breguilha, pela porta aberta do quarto viu a dona Isaura a
resfolegar no colchão sob o enorme terço pendurado de um
grampo, frasquinhos de remédios, uma segunda Santa
Filomena, de palmas unidas, cercada por uma multidão de
serafins, e a luz do corredor acesa, e a luz da casa de banho
acesa, e a luz da copa acesa, Vão pagar uma conta calada de
electricidade ao fim do mês, pensou ele, tiraram a sorte grande
ou estão malucos, deteve-se no limiar da sala a coçar a barriga,
perplexo, o tio, em ceroulas e camisola interior, tossia no sofá,
a Odete, despenteada, de roupão, manejava os botões do
antiquado aparelho imenso, duas fatias de naperon a
ensanduichar uma cantiga, o ponteiro deslizava ao longo do
mostrador mas só um posto funcionava, as pálpebras dos
abajures inclinavam para o chão castos ovais amarelos que se
tocavam e pisavam à laia das pupilas convergentes dos
estrábicos, mostrando os desenhos apagados do tapete, veados
esquemáticos repetindo-se numa monotonia incolor, e nisto a
Odete levantou o queixo e viu-o, Chega aqui depressa que
estão a deitar abaixo o Governo.
Deve ser uma brincadeira da emissora, pensou o soldado, já
não sabem o que hão-de inventar para nos impingirem as
chatices dos anúncios, a porcaria de música que nos obrigam a
engolir, ou então um imaginoso maduro qualquer que
embarafustou na estação com um maço de papéis, Tive uma
ideia do camandro, embora assustar as pessoas com isto.
— Que não podemos sair? Que não podemos sair?, ganiu o
velho indignado com a Última Ceia, em relevo, ganha nos
sorteios do prior. Era o que me faltava, menina, tenho uma
porção de fretes para hoje. O soldado sentou-se numa das
cadeiras desconfortáveis, de rabo de bacalhau, da mesa de
comer, apoiou a cara na superfície fresca da toalha de oleado,
cerrou os olhos e a Odete e o tio afastaram-se, a queda do
Governo afastou-se, a tosse do velho soava baça, sem eco,
muito longe, a apequenar-se na gruta incomensurável da sala,
as lâmpadas dos candeeiros enrugavam-se e murchavam-lhe
no interior das pálpebras, Dormir e de súbito o tom impositivo
do locutor a enxotá-lo brutalmente do seu sono e os latidos
ultrajados do tio Isto é uma parvoíce pegada, caramba, se esses
caralhos julgam que me impedem de trabalhar enganam-se,
vai-te vestir meu estúpido que começamos mais cedo.
— E foi a primeira vez, contou-me o soldado, que
chegámos juntos ao armazém, esbofeteados ao longo das
travessas por centenas de telefonias aos gritos. Homens de
barba por fazer debruçavam-se das janelas como bichos de
buracos de maçãs, os cães derrubavam os caixotes do lixo
esquecidos, o porteiro do hospital dos doidos, de pé junto à
entrada, colava o transístor à orelha como se escutasse o mar
nas espiras de um búzio, um friozinho acre enregelava as
pernas, o tio bufava Se atiram o Governo de pantanas não
descansam até arranjar outro ainda pior e nos porem de tanga a
pedir esmola, Posto de Comando do Movimento das Forças
Armadas, e o senhor Ilídio, amargo, Olha para os gajos, olha-
me só para a alegria deles, caneco, até parece que vão salvar o
mundo, eram sete e meia da manhã e os empregados não
tinham vindo ainda, ninguém os esperava diante do cadeado
da porta, o velho procurou a chave no molho enorme do bolso
das calças que formava como que um relevo de hérnia e
enganava-se sempre com os nervos, que merda, som de metais
oxidados que protestam e o harmónio de ferro a encolher-se
com um pontapé, Aposto que os sacanas aproveitam o
sarrabulho para escapar ao serviço como se quedas de
governos e marchas da tropa na rádio desculpassem alguém,
traz-me é a camioneta carregada lá de baixo que tratamos nós
os dois do serviço e sossega que na volta fodo a vida aos teus
colegas. O soldado desceu cautelosamente a ladeira de
cimento a escorregar em manchas de óleo e poças de água,
içou-se para a cabina, colocou o motor a funcionar, havia mais
duas furgonetas e um Mercedes a cair de podre desfazendo-se
de ferrugem na penumbra, sem contar com a complicação de
mobília do costume, a clarabóia lá no vértice e pó e teias de
aranha em toda a parte, os pneus dançavam no piso molhado,
derrubou qualquer coisa que se escacou com estrépito até
acertar com a rampa, o tio, congestionado de zanga, pendurava
um cartão Volto Já na porta do escritório, Para a Baixa, urrou o
velho, e cuidadinho não me estampes essa merda que lhe
caducou o seguro o mês passado, a partir de certa altura
começaram a encontrar infantaria nas esquinas, carros de
assalto, militares de capacete de bazooka ao ombro, quase
nenhum automóvel circulava nas ruas, um tenente novinho
mandou-os parar, Trânsito cortado, amigos, Tenho uma
entrega urgente no Chiado, respondeu o tio, não é a nossa
camioneta que vos vai estorvar, mas o outro já lhes virara as
costas e decifrava o papel que um cabo esfalfado, de boina às
três pancadas, trouxera a correr, recuaram, deram meia volta e
meteram pelo Entreposto, pelo Rato, pela Escola Politécnica, o
soldado ligou a telefonia e as marchas e as cantigas à viola
atroaram a cabina onde tudo vacilava e vibrava, solto, prestes
a uma explosão cataclísmica, a música interrompeu-se, a voz
locutora recomeçou a falar, Cala-me essa porra, minha besta,
rugiu o tio, possesso, apalpando a bomba para a asma no
casaco, edifícios dignos, antiquários, o Jardim do Príncipe
Real cintilante de luz e quase logo a seguir um tanque
atravessado no pavimento, homens fardados, morteiros,
viaturas da tropa, e agora um sargento a aproximar-se,
abespinhadíssimo, de pistola na mão, Desapareçam daqui
antes que eu lhes pregue um tiro, A gente espantava-se, meu
capitão, nunca tínhamos sonhado aparato de guerra nas ruas de
Lisboa, o senhor Ilídio, estupefacto, nem abria a boca, alguns
camuflados, em pinha num banco, escutavam de cabeças
juntas os hinos bélicos da emissora, o sargento, de queixo à
altura da porta como um roberto de feira, mirava-nos com as
minúsculas pupilazinhas fixas de pássaro, rodei o volante
enquanto os penduricalhos do retrovisor abanavam de sezões,
engrenei a primeira, a marcha atrás, a primeira de novo, as
solas não agarravam os pedais, as rodas obedeciam mal, o
sargento fitava-nos numa desconfiança veemente, Vamos
embora vamos embora vamos embora, sibilou o senhor Ilídio
aterrado, e dali a dez minutos entravam aos solavancos no
armazém, com a caixa da camioneta repleta de móveis que se
chocavam e fundiam, ao subirem o relevo do passeio que dava
acesso à porta. Um bando de pombos, pousado no murito em
frente, levantou voo nesse segundo, cortou em diagonal as
árvores de uma espécie de parque, sumiu-se nos telhados do
laboratório, a contabilista, instalada com ar proprietário à
secretária a separar facturas, acenou amistosamente ao tio por
cima de uma jarra de gladíolos (Já nem te escondes, minha
cabra, pensou o soldado, ultrajado), o velho, o mudo, o mulato
Isidoro e um outro a quem chamavam de Espreita por ser
vesgo cirandavam como morcegos trôpegos no meio dos bidés
e dos pianos, o mulato Isidoro brandia um rádio microscópico,
informava aos gritos os restantes Têm tudo nas unhas,
cercaram o presidente e os ministros no Carmo, mas o senhor
Ilídio, carrancudo, tirou-lhe a alegria num ai, Quero lá saber
dessa merda, os ralaços que faltaram hoje não trabalham mais
aqui.
Às onze horas apareceu o Carmindo, de motorizada, um de
bigode que entrara à experiência em março e vivia com a
afilhada da contabilista, tirou o capacete e os cabelos puseram-
se-lhe todos em pé, Foi um sarilho das Arábias para me
deixarem passar, senhor Ilídio, até barcos de guerra andam no
Tejo de um lado para o outro, não querem que ninguém se pire
de casa, e uma onda incontrolável de pessoas sobe o Chiado na
direcção da Pide, na direcção do Carmo, se não fosse um
major tinham desfeito à porrada um agente da Secreta que se
calhar nem era, um gajo de meia-idade, com a cara num bolo,
a chorar, e o tio, da gaiola de vidro do escritório, Mesmo com
essa canção do bandido desconto-te duas horinhas no final do
mês e já é uma sorte se não te fores embora, mandou-os
carregar as furgonetas e a tosse dele soluçava, abafada, através
dos caixilhos, extraía a bomba das calças e premia a maçã de
borracha para as goelas aflitas, percebia-se que a contabilista o
repreendia, enternecida e risonha, o velho e o mudo partiram
na Peugeot nova, ficámos a coçar as costas nas paredes
sarnosas, os ratos galopavam nos fundos do armazém, e dali a
nada o barulho do carro outra vez, o largo focinho branco a
assomar lá em cima, Não nos consentem circular, senhor
Ilídio, nem calcula o pandemónio do caraças que encontrámos,
o meu tio abriu a gaveta da secretária, afastou rolos de cordel,
papéis enodoados, dobradiças, apara-lápis, caixinhas de
parafusos e de pregos, uma maquineta de fazer buracos nas
folhas, várias chaves de fendas, um par de óculos quebrados,
uma moldura vazia, alcançou finalmente um tubo de
comprimidos, colocou uma rodela na língua, lançou as flores
para o cesto de verga e bebeu a água da jarra a empurrar a
pastilha, tombou sem fôlego, de olhos perdidos, numa cadeira
de pau, mastigando deduções indecifráveis, o locutor ia-se
tornando, de comunicado para comunicado, mais optimista,
mais vitorioso, mais triunfal, prometia a cada instante o
derrube do Governo, a Democracia, a Liberdade, as pilhas
gastas do rádio do velho tornavam difícil compreender o
palavrório: amontoados num destroçado canapé de veludo
escutávamos intrigados, sem alcançar muito bem, a
contabilista bateu os nós dos dedos nos vidros a chamar-me,
pintava agora os olhos e a boca, usava vestidos justos, laca no
cabelo, e um odor de saquinho de alfazema que me recordava
o inverno, a chuva, tardes desocupadas de domingo, em casa,
com a água a tombar, monótona, dos vértices quebrados das
telhas, trepei aos pulos os degraus riscados de cimento, a
contabilista repunha amorosamente as flores na secretária, e o
meu tio, convulso, de punhos na testa, levantou para mim um
apavorado queixo que tremia, Chega lá fora depressa a saber o
que há e vem-me aqui dizer, porque não percebia puto, meu
capitão, porque tudo se lhe afigurava um pesadelo esquisito,
uma mentira formidável, o mundo de repente ao contrário, um
dilúvio, um naufrágio, um cataclismo, uma ameaça tremenda,
a vida, do avesso, impossível de viver-se, a todo o momento
exumava a bomba do forro, encostava o tubinho de vidro às
gengivas e pfffft pffffft pffffft, se calhar imaginava que o
remédio metia outra vez tudo no lugar como era dantes, que a
ansiedade desaparecia, que a angústia acabava, que as bússolas
se petrificavam nas cabeças, Vão prender os ministros,
anunciava o mulato Isidoro, que alisava o cabelo com quilos
de brilhantina desesperada, vão misturá-los com os ursos e os
macacos do Jardim Zoológico, nas redondezas nem a taberna
abrira, não se avistavam mulheres na rua que chatice, o
soldado levou do armazém a furgoneta pequena, tentou um
trajecto complicado no sentido da Baixa mas a certa altura
notou ao longe uma Berliet do Exército carregada de tipos de
camuflado de modo que encostou, com duas rodas em cima do
passeio, numa transversal estreitinha e prosseguiu a pé, rente
às paredes, na direcção do Camões, onde a tropa se adensava,
pessoas aplaudiam os soldados, ofereciam-lhes comida,
cigarros, leite (Mas o que é isto?, pensou ele siderado, o que é
isto?), estalaram tiros para as bandas do São Carlos, Todos à
Pide, berrou um rapaz muito alto, despenteado, com uma
camisa aos quadrados de amador teatral, homens façanhudos
trotavam para aqui e para ali de pedras da calçada na mão,
oficiais discutiam junto à estátua, não havia nem um pombo no
largo, um pelotão de fuzileiros navais marchava para o quartel
da Secreta, comandado por um tenente de gestos decididos
agarrado ao coldre da pistola. Matem-se aqueles sacanas,
propunha o rapaz, matem-se aqueles cabrões, uma leva
desordenada de corpos arrastou-o para diante de um prédio
grande (e o rio e o céu, cinzentos, lá ao fundo), cercado de
uma multidão que gritava, que insultava, que lançava garrafas
e calhaus contra os vidros das janelas, os fuzileiros
aproximavam-se cautelosamente do portão, e nisto um fulano
de meia-idade saiu a correr lá de dentro, de braços erguidos, e
logo um cacho de gente tombou em cima dele batendo-lhe
com os punhos, com os sapatos, com pranchas de madeira,
rasgando-lhe a roupa, fazendo-o estatelar-se no alcatrão, o
nariz, o queixo, a boca, as sobrancelhas do homem sangravam,
até que o tenente o segurou pela manga desfeita (mais um
pontapé, mais dois pontapés, mais um soco nas costas), o
entregou a um sargento Guarde-o no jipe com os outros,
alguém disparava do interior do edifício, um corpo escorregou
ao longo do muro fronteiro até tombar sentado numa
expressão de espanto, os marinheiros entravam na casa de
espingarda apontada, uma camioneta militar abriu caminho,
buzinando, para a fachada do cinema vizinho, estampidos de
tiros idênticos a bolhas insignificantes que estalam, gemidos,
protestos, palavrões, Jogamos fogo a esta merda toda,
queimamos esses filhos da puta como ratos, um marujo de
galões (Um capitão-de-mar-e-guerra ou assim, troco sempre os
postos da Armada) surgiu num peitoril de segundo andar
recomendando calma a acenar os braços para cima e para
baixo à maneira de um pássaro que se esquecesse de voar, e
pouco depois, escoltados pelos fuzileiros, algumas dezenas de
gajos a quem as pessoas chamavam nomes, cuspiam,
procuravam agredir, foram conduzidos para a camioneta que
partiu a buzinar sempre, virou à direita ao fim da rua,
desapareceu, penetrámos de roldão no prédio, indiferentes à
zanga e aos protestos dos furriéis, e demos com o que se me
afigurou uma repartição pública vulgar, igualzinha às outras,
secretárias, cadeiras, dossiers nas paredes, a eterna fotografia
do almirante porcino, fardado de branco, de faixa azul e
imensas medalhas na barriga, máquinas de escrever, cestos de
palhinha, papelada em desordem, casacos vazios a baloiçar
dos bengaleiros.
— Só isso?, perguntou o Espreita a atirar um castiçal de
talha a uma ratazana enorme. Queres-me fazer acreditar que a
Pide era só isso?
Não, claro que não, pensou o soldado, mas pouco mais
afinal: ficheiros, aparelhos de rádio, máquinas fotográficas,
gabinetes sem móveis, de portas grossíssimas, com
lampadazinhas atrás de placas de vidro junto ao tecto (É aí que
torturam, explicou o mudo, é aí que torcem os tomates à malta
com uma espécie de pinças), e nem um prisioneiro
magríssimo, nem ossadas pelos cantos, nem caves para os
suplícios como nos filmes do Odéon, ferros em brasa,
grilhetas, bolas de chumbo, instrumentos terríveis. As pessoas
apeavam das paredes os retratos do almirante, deixando
rectângulos mais claros na caliça, disputavam ferozmente
lembranças irrisórias (canetas, borrachas, carimbos, blocos
timbrados), tombavam mesas, escavacavam prateleiras,
entupiam as sanitas com rolhões de mata-borrão e
desperdícios, de vez em quando escutava-se, numa sala
qualquer, um estridente uivo carnívoro Este é da Pide este é da
Pide, e desatava-se a malhar nuns ombros curvados que
protestavam, que ganiam, que procuravam fugir, que
acabavam por se estatelar, chorando, no soalho, até que
começaram a chegar mais marinheiros, de coronha em riste,
num tropel de solas, e nos enxotaram a todos para a rua, o
tenente enérgico explicava em voz grossa Deixem-nos limpar
isto, deixem-nos trabalhar como deve ser, as pessoas
dispersavam a contragosto transportando os seus
tesourozinhos inúteis, dois gajos discutiam a murro um
fragmento de cadeira, um senhor de bigode e gravata fora do
colete urrava Abaixo O Estado Novo Viva A Liberdade, mas
um calmeirão de olho desconfiado perguntou Não serás da
Pide por acaso?, e ele calou-se logo como uma flor se fecha,
dissolveu-se apavorado no meio da gente que trotava agora
para o Largo do Carmo chamada por um altifalante invisível,
Todos A Derrubar O Governo, carros de combate, multidão,
soldados, uma confusão imensa, garotos pendurados nas
árvores diante do quartel da Guarda Republicana, os cubículos
das sentinelas sem ninguém, oficiais nos tejadilhos dos
automóveis, de megafone na boca, impedindo o povo de
rebentar a entrada, de forçar as portas, de cirandar aos
tropeços, como baratas cegas, na parada. O que diria o meu tio
se visse isto, pensou, o que camandro julgaria o velho, um
capitão intimava as fieiras de janelas desertas a renderem-se,
tanques de guerra chegavam e partiam, lentamente, por entre
um vociferante emaranhado de línguas, cantavam-se slogans
díspares, desordenados, incompreensíveis, que amadores
teatrais de camisa aos quadrados como o rapaz da Pide
procuravam unificar agitando os braços à laia de maestros de
orfeão, Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De, Uma
questãozinha de horas, informou-o alegremente um entusiasta
de pêra, amanhã vá vê-los baloiçar nos candeeiros da avenida,
mas não houve execuções, meu capitão, não houve sangue,
não houve uma revolta a sério, os que mandavam antes
ocupam o poleiro outra vez, depois de uns anitos de exílio,
depois de umas semanas de cadeia, de forma que continuamos
na mesma nesta terra de merda, tanta felicidade, tanto
trabalho, tanta chinfrineira para quê, acabou por chegar um
general de monóculo num carro que a multidão ovacionava, os
tropas afastavam as pessoas com as coronhas, mais palavras de
ordem, mais hinos, mais gritos, a mão do tio a convocá-lo ao
escritório envidraçado, a sua cara melancólica, desanimada,
agónica, a contabilista instalada à secretária, de esferográfica
suspensa, à espera.
— Então, rosnou o senhor Ilídio num murmúrio, já
começaram o saque, já começaram a roubar as pessoas
honestas?
Mandara os empregados embora, farto das suas inquietas
expressões interrogativas, perplexas, dos seus conciliábulos
cochichados, das suas olhadelas furtivas, que voltassem
amanhã para os fretes da véspera, as lâmpadas oscilavam de
leve das vigas podres do tecto, o crepúsculo insinuava-se,
oblíquo, pelos postigos esventrados, o céu cor de sangria
devorava as chaminés, e não houve saque, e não houve roubo,
e continuámos até hoje o negociozito das mudanças, e isto há
quase dez anos e eis-nos de novo na estagnada, serena,
cadavérica, imutável tranquilidade de outrora. O general do
monóculo apeou-se, as condecorações e as estrelas brilhavam
ao sol, desapareceu no prédio grande do Carmo acompanhado
por dois ou três civis muito dignos, muito compenetrados, de
gravata, uns segundos de expectativa, uns minutos elásticos
que se eternizavam, mais sujeitos que trepavam para as
árvores, os telhados dos edifícios em volta repletos de pessoas,
os maestros recomeçaram a mover os braços, agora com mais
energia, Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De, pareceu-
lhe ver a Odete encostada a um moço de óculos com uma
bandeira mas não, não era ela, era uma rapariga mais baixa e
mais feia, de estojo de viola aos pés, o capitão do megafone
conferenciava de quando em quando com alferes e sargentos
que se equilibravam nas biqueiras para lhe falar, um atlântico
de cabeças encolhia-se e distendia-se, a fervilhar uma espuma
de olhos, de gengivas, de narizes, de queixos, o tio levantou-se
da cadeira, veio cá fora, de mãos nos bolsos, espiar a noite, as
luzes que se acendiam no jardinzito lúgubre, os cães vadios,
uma ambulância que abandonava o Hospital dos Capuchos, lá
em baixo, voltou para dentro, engoliu outro comprimido e
garantiu, funebríssimo, de pupilas presas ao enodoado
calendário Mobil da parede, Vai ser uma rebaldaria do caralho
nesta terra, estamos fodidos.
— Via o negócio lixado, a adornar, a afundar-se, a perder-se
sem remédio, explicou o soldado, os móveis a desfazerem-se
na arrecadação sem que ninguém os reclamasse, as Mudanças
Ilídio sem encomendas nenhumas, em ruína, e não só as
Mudanças Ilídio, meu capitão, bichas intermináveis para a
carne, para os legumes, para o leite, gente magrinha, mal
vestida, com cara de fome, matilhas de gatunos de barba
crescida roubando as pessoas honestas nas esquinas, jipes
militares que disparavam, depois da sereia de bombeiros do
recolher obrigatório, ondulando imperativa pelas ruas sem luz,
sobre vultos furtivos tombando de bruços, sem ruído, nos
passeios, farejados por enormes cachorros desgrenhados e
cinzentos. A gasolina desaparecera, milicianos de caqui
removiam os automóveis com guindastes ferozes, circulava-se
em escavacados autocarros trémulos apinhados de viajantes
aflitos e sérios, tropeçava-se em cadáveres malcheirosos nas
escadas das caves, nos vestíbulos, nas imediações das
embaixadas, nas raras lojas ainda abertas, de vitrines ausentes,
com caixeiros semiescondidos por detrás dos balcões vazios. E
os hospitais inundados de feridos, cobertos de pensos e
ligaduras sujas, milhares de pessoas aprisionadas nos estádios
e nas praças de touros, pelotões de fuzilamento empurrando
tipos de braços amarrados atrás das costas contra as peanhas
das estátuas, as metralhadoras, os protestos, os choros, os
pedidos, bandeiras vermelhas nos edifícios públicos, russos e
chineses por toda a parte, a darem ordens, a ocuparem o
palácio do Governo, a passearem-se com ares proprietários na
cidade, e a Odete Mas que mania a sua, mas que ideia fixa,
acaba o Estado Novo e a polícia política, mais nada, e o senhor
Ilídio, desesperado, Quando tiveres de comer a própria merda,
quando te amigarem à força com um checoslovaco vem
conversar comigo, isso de partidos é a treta de que eles se
servem para nos enrabar melhor.
O general de monóculo saiu por fim do quartel da Guarda,
sem se emocionar com o entusiasmo, sem corresponder aos
aplausos, instalou-se, com os senhores solenes, no carro que
de imediato principiou a rodar para fora do largo, fendendo
troncos, gestos, letreiros, vitoriosos sorrisos, a multidão batia
com os nós dos dedos nas portas, cumprimentava-o, gritava,
iam chegando mais tanques de guerra que apontavam os
canhões ao prédio deserto, mais oficiais, mais tropa, um
fulano, munido de uma alcofa, distribuía cravos, e de repente o
soldado lembrou-se A casa da minha avó era aqui perto,
naquela rampa onde se vê o Tejo, e surgiu-lhe, intacto, na
memória, o idoso, quase miserável, primeiro andar da velha, o
quadro imponente do Sagrado Coração de Jesus no vestíbulo,
o enodoado soalho desigual, a eterna profusão de baratas pelos
cantos, raros sofás hirsutos de palhinha, mulheres gordas, de
avental, a remexerem caldeiros na cozinha enorme, a mesa
comprida da sala de jantar, de toalha de oleado, e uma ou duas
dezenas de raparigas excessivamente pintadas, excessivamente
extravagantes, excessivamente sonolentas, algumas em
combinação e chinelos de quarto, outras de pestanas postiças
descolando-se, a aguardarem a terrina da sopa a pintar as
unhas ou os lábios, a discutir, a conversar, a escovar os
cabelos, mostrando, pelos intervalos dos decotes, as
gigantescas esferas desmaiadas dos peitos. Eu almoçava no
meio delas, meu capitão, deslumbrado pelas roupas, pelos
perfumes, pelas longas coxas peludas e lisas, pelos ouricinhos
de picos que adivinhava logo abaixo do umbigo, pela redonda
humidade dos corpos muito juntos, pelo rumor marinho das
conversas, pela minha avó que me puxava de vez em quando a
orelha, que escorregava pelas mulheres um olhar em círculo,
benevolentemente autoritário, que usava no pescoço gordo um
terço de marfim, que me proibia de brincar no corredor da
casa, com portas numeradas de cada lado e litografias
representando frades de sandálias com meninas nuas ao colo:
A tua mãe, tio, a mãe da minha mãe, a que se indignava com
os vossos casamentos, não queria ouvir falar de vocês,
insultava a dona Isaura (o sol da tarde arrastava-se no soalho
como um verme amarelo, descobrindo novas falhas, novos
defeitos, novos buracos na madeira), a de densas pupilas
ferozes, que imobilizava as raparigas num pânico respeitoso.
— Se levaram o presidente do Conselho num carro blindado
estamos perdidos, lamentou-se o senhor Ilídio com a cabeça
entre as mãos. Não tarda nada vêm-nos buscar, de pistola, aqui
ao armazém.
As consolas confiscadas, os bidés confiscados, os pianos
confiscados, toda aquela velharia inútil, apodrecida, mesmo o
pó e os ratos e as teias de aranha confiscados, a loja selada por
milicianos vesgos, a contabilista a esbracejar com desespero,
agitando a carteira, por detrás de umas grades. Aprovarias
esta, a dona Emilia, avó, pertencia à tua raça de tarântula
falsamente tranquila, falsamente generosa, quando a despedi
ameaçou-me com a polícia, quis-me bater, arrastar por
tribunais, mandou o filho, um tipógrafo grandalhão, oferecer-
me pancada.
— Deves estar doido, disse a dona Emilia com secura. (Se
mandasses numa casa de pegas, pelo menos fornicava-se bem
em Portugal.) O que é que tu fizeste para te prenderem?
O número de pessoas no largo não cessava de aumentar,
muitas delas munidas de bandeiras e aparelhos de rádio como
nos desafios de futebol, as árvores eram novelos de pernas e
de braços e de olhos atentos, expectantes, vorazes, um tanque
destacou-se da multidão, avançou para o quartel, bocas
abertas, centenas de dentes rebrilhando ao sol na espuma verde
coada pelas folhas, cotovelos que me empurravam, membros
que se colavam aos meus, hálitos azedos que me sopravam no
pescoço, um suor entusiástico nas narinas, e de súbito, meu
capitão, senti-me de novo com quatro, cinco, seis, sete anos,
submergido pelas fantásticas, espessas, terríveis proporções
dos adultos, a praça transformou-se na interminável sala de
jantar da avó, recheada de pagelas de santinhos e de ninfas
duvidosas, ocupada por centenas e centenas de raparigas
estremunhadas, espalhafatosas, lânguidas, seminuas, que
escureciam as pálpebras com pincéis, limavam os calos dos
pés, gritavam mecanicamente, a espaços, Li-Ber-Da-De Li-
Ber-Da-De Li-Ber-Da-De, passeando-se defronte do quartel do
Carmo em roupões transparentes ou em toalhas de banho, com
os ombros a luzirem de gotas, acenando-me de longe cómicos
adeuses divertidos, soslaios irónicos, gestos facetos de graça,
como se eu não percebesse, meu capitão, como se eu fosse
uma criança ridícula, meio idiota, apalermada, como se eu não
espreitasse às escondidas os quartos do corredor e as não visse
estendidas na cama, de coxas abertas, depois de se despirem
numa surpreendente rapidez, de afastarem a colcha, de
dobrarem a roupa, acompanhadas por magalas, por sujeitos de
idade, por aflitos rapazinhos envergonhados, de gravata e fato
dos domingos, como se eu não lhes espiasse os corpos
naufragados nos colchões, as reptações das ancas e das
nádegas, as amêndoas escuras do púbis que lavavam a cavalo
no bidé com o líquido dum garrafão de palha, o tio abriu outra
vez a gaveta da secretária, remexeu o lixo lá de dentro, extraiu
o frasco das pastilhas, meteu um comprimido à boca e ergueu
para eles, do fundo da cadeira, os olhos decompostos de medo:
— Todos na choça em menos de um fósforo, vais ver,
requisitam-nos as camionetas para o serviço deles, obrigam-
me a hospedar engenheiros búlgaros e espiões polacos,
mandam-me dormir no chão da sala, embrulhado num cobertor
antigo, a tiritar.
E a dona Emilia para mim, indignada, Veja, veja,
endoideceu, está maluco, avariou-se-lhe um parafuso qualquer
na cabeça, bebe-me a água das jarras, encharca-se de pílulas,
engole sem querer as folhas dos gerânios, você que é da
família marque-lhe uma consulta de urgência, um primo meu
andou assim meses a fio até lhe baixarem a tensão com comida
sem sal e ficou fino, os gritos aumentaram de intensidade, a
multidão ondulou como o rastro de espuma de um barco, o
blindado, semelhante a uma lata de conservas, atravessou o
portão do quartel, não se distinguia nada pelas frestazinhas
muito estreitas das janelas, talvez uns vultos, umas sombras,
umas silhuetas imprecisas, Ao menos aqueles cabrões já não
chateiam mais, disse um velho de boina e cravo na lapela
mesmo ao lado do soldado, A mim nunca me chatearam puto,
meu capitão, era-me igual, tanto me fazia esses como outros
desde que houvesse trabalho e algum dinheiro ao fim do mês
para convidar a Odete a ir ao cinema ou à praia ou aos bailes
do Clube Estefânia, um primeiro andar, uma orquestra, mães
ferozes pastoreando as filhas, sentadas ao redor da sala de
sobrolho intransigente, alguns rapazes ameaçavam o carro
blindado com os punhos, cuspiam nas janelinhas, insultavam
os vultos lá de dentro, Fascistas, cabrões, filhos da puta, as
pessoas recomeçaram a berrar Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De
Li-Ber-Da-De obedecendo à voz de zinco de um microfone
invisível, as sílabas confluíam num rugido enorme, a tropa
protegia agora o quartel da Guarda, os tipos empoleirados nas
árvores escorregavam pelos troncos abaixo e começámos a
pouco e pouco a dispersar, de tempos a tempos um aviso É da
Pide, é da Pide, e correrias, puxões, pancadas, murros, um
homem, a sangrar da cabeça e da boca, a debater-se em vão no
centro de um torvelinho irado, parecia-me avistar a Odete em
toda a parte, até nos manequins das montras, e enganava-me
sempre, Se calhar apaixonei-me, pensei eu, se calhar se ela
desaparecesse andava a marrar com os cornos nas paredes, à
brocha, acabámos por convencer o meu tio a regressar a casa e
havia imensa gente a conversar nos passeios ou de varanda a
varanda, deixámos a contabilista na paragem do autocarro,
debaixo de um toldozinho verde de metal, e o soldado topou
nos olhos do tio a dificuldade, o desespero, a angústia de se
afastar dela, Aconteceu-lhe o mesmo que a mim, calculou ele,
espantado, que esquisito suceder isto aos velhos, têm rugas e
doenças e pedras na vesícula e não seguram o mijo e mesmo
assim persistem, comandos de metralhadora por aqui e por ali,
nas esquinas, com um cravo enterrado no uniforme, flores de
muitos lábios que murchavam, anoitecera por completo e os
cães de sempre farejavam numa volúpia lenta os contentores
do lixo, os automóveis afocinhavam, tristes, na margem dos
jardins, homens já bêbados conversavam e discutiam sobre a
revolução nas leitarias apinhadas, com garrafas de anis e
chocolate nas vitrines sujas, a contabilista ficou lá para trás,
sozinha, a fitá-los com melancólicas pupilas apreensivas, de
súbito tão desamparada que o soldado sentiu como que uma
espécie de pena pela solidão dela, imaginou um quarto
alugado no fundo de um beco, uma cama antiga que rangia,
vestidos ocultos por um traçado reposteiro de pano, mas o tio,
a ofegar, embarafustou por uma taberna de esquina mesmo ao
lado de um barbeiro, enxotou as pessoas com os cotovelos de
rã, assentou uma palmada no balcão de pedra marcado por
círculos roxos de copos, o dono, de mangas arregaçadas,
aproximou um oblíquo sorriso inquiridor, e o senhor Ilídio, a
binocular as formas de ampulheta da rapariga nua do
calendário, Duas branquinhas para levantar o moral. Como
seria a dona Emília sem roupa?, pensou o soldado a tossir,
cego das lágrimas do bagaço, enquanto os ossos, agora de
borracha, se lhe inchavam de álcool: ainda desejável, sem
rugas, o peito um bocadinho descaído, a barriga lisa, ou, então,
repugnante, cheia de pêlos, joanetes enormes, grandes nádegas
moles, caroços de celulite pelas coxas? O tio engolia cálice
após cálice, e como encomendava sempre aos pares o soldado
metia também ao bucho aquele líquido transparente e grosso
que acendia um doloroso pavio de estearina em cada ângulo
das tripas, enquanto o velho se ia introduzindo a pouco e
pouco no diálogo entre um servente de hospital e um carteiro
com um defeito na fala, fornecia pontos de vista, apartes,
previsões, o servente de hospital era a favor da liberdade, o
carteiro nem por isso, aproveitavam a revolução para beber
uns copos fora do domingo habitual, a páginas tantas o dono
da taberna cobriu a rapariga do calendário com a bandeira
nacional e escreveu na caliça pouco limpa Viva A
Democracia, Que caralho será democracia?, pensou o soldado
cujos sapatos se principiavam a erguer, sem peso, do chão,
cujos braços flutuavam como os cabelos das algas, cuja cabeça
se libertava de preocupações e chatices e ascendia no ar
fumarento da taberna como um balão de gás, o senhor Ilídio
explicava prolixamente ao carteiro o funcionamento da bomba
para a asma e vários curiosos espremeram a pêra de borracha,
como se enchessem pneus, para o interior das bocas, Abram os
pulmões, camaradas, anunciava o tio, tropeçando nas cadeiras,
a incensar os clientes com o aparelho, abram os pulmões à
primavera, alguém o empurrou, agastado, e o tio tombou de
bruços numa mesa de dominó onde quatro velhinhos,
chupados das carochas, que escondiam ciosamente as pedras
da curiosidade míope uns dos outros, desataram a grasnar de
indignação pelas gengivas sem dentes, o soldado, de pernas
bambas, ajudou-o a levantar-se, remando no vácuo, e
regressaram aos cálices, Viva a Democracia, Viva a Liberdade,
uivou o senhor Ilídio num uivozinho chocho, os velhos
tentavam em vão reconstituir o jogo praguejando um cuspo
incompreensível de obscenidades, o senhor Ilídio chamou o
tasqueiro com o anzol do indicador, ordenou Tinto para todos
em nome da Revolução, e quase instantaneamente, sabe como
é, mesmo levantado, mesmo desconfortável, mesmo
constantemente sacudido pelos ombros, pelos flancos, pelas
vozes, pelos joelhos das pessoas, desatou a ressonar.
O carro de assalto, meu capitão, acabou por desaparecer
seguido de um enxame de gente, e passados momentos a
multidão abandonou o largo, entoando os hinos e as cantigas
da rádio que ele nunca ouvira antes (Prefiro música romântica,
confessou depois à Odete num intervalo de cinema, a olharem
uma montra com roupa cor-de-rosa de bebé, coisas espanholas
que arrepiam a espinha porque falam de amor), a tropa retirou-
se igualmente da praça à excepção de sete ou oito gajos de
metralhadora e camuflado que protegiam o quartel contra o
friozinho do crepúsculo, o soldado sentou-se num banco, de
mãos nas algibeiras, a ver crescer a noite, já não se percebia o
rio e a outra margem eram umas trémulas luzinhas acesas a
cintilar no nada, os prédios enovelavam-se e torciam-se
primeiro para a seguir se alargarem, gigantescos, entre as
árvores magras, Tenho cinco, seis anos e daqui a horas o
estabelecimento da minha avó começa a funcionar, os
primeiros sujeitos tocam a campainha, as raparigas, pintadas,
de vestido curtíssimo e saltos altos, aguardam, muito
compostas, naquela saleta de tecto a cair repleta de veludos
rebentados e de espelhos, sorvendo pelo bico dos lábios
martinis a fingir, a velha, de avental e chinelos, despenteada,
verifica os quartos um por um, as colchas, os bidés, os
garrafões de desinfectante atrás da porta, um odor violento de
água de colónia e de cozido entontece-me, as tíbias compridas
das mulheres entontecem-me, os grandes peitos quase à mostra
entontecem-me, os mamilos escuros, os pescoços, as nucas, os
cotovelos redondos entontecem-me, os espelhos que jogam as
imagens umas de encontro às outras entontecem-me, O sacana
do Ilídio só me desconsidera, não o quero cá, resmungava a
avó na direcção das cortinas, os cabrões dos meus filhos não
sabem fazer outra coisa que não seja desconsiderar a mãe,
quem os conheça agora há-de imaginar que os eduquei assim,
o imenso Sagrado Coração de Jesus recebia vagas de
cavalheiros calvos no vestíbulo num sorriso obsequioso de
mordomo, acabaram por arrastar-se, o tio e ele, abraçados,
para casa, cumprimentando todo o mundo, mijando em cada
candeeiro, gaguejando marchas, resmungando em uníssono Li-
Ber-Da-De Li-Ber-Da-De Li-Ber-Da-De, a Odete ficou a
olhar-nos, de boca aberta, no tapete de ráfia, sem responder ao
Olá que nenhum de nós lhe disse, Calma rapariga, aconselhou-
a patrioticamente FADO o meu tio, abaixo o fascismo e a
opressão, a dona Isaura roncava nos lençóis, um locutor
triunfal anunciava na telefonia a vitória completa do
Movimento das Forças Armadas, abateram-se, de breguilha
aberta e fralda da camisa de fora, no sofá junto à toalha de
oleado, e ao fechar os olhos doridos e vermelhos, meu capitão,
um remoinho de putas e de tropas desatou-me a girar no
interior da cabeça, chamando-me, acusando-me, insultando-
me, até que depois de três ou quatro peidos ou soluços ou
arrotos, com sua licença, adormeci.
2

O telefone tocou e momentos depois o braço do tenente-


coronel movia-se no escuro, às cegas, tacteando a pele
grumosa da alcatifa à procura do auscultador: os dedos
tropeçaram num chinelo, numa espiral de fios, num livro
caído, aberto como uma ferida nas trevas, sangrando letras: o
som prosseguia indiferente, numa tenacidade mecânica, estrias
mais pálidas azulavam os intervalos das persianas,
distinguiam-se volumes achatados de móveis que se
solidificavam e dissolviam como as ondas do mar, o coração
metálico do relógio batia levezinho, ansioso, nos breves
silêncios ritmados na campainha, a palma encontrou
finalmente a superfície de plástico polido, ergueu-a à altura da
boca, e escutou-se resmungar, através de sucessivas cortinas
de saliva e de bronquite, Está.
— Artur?
A sombra cheirava ao corpo moreno da mulher-a-dias, à
densa, violenta mistura de suor e água de colónia barata de que
era feita, suspiros moles rastejavam ainda na almofada,
compunha o cabelo sentada na borda do colchão e ria-se: a
vozita insistiu-lhe, enervada e hesitante como um cão pequeno
que estrebucha, no funil entontecido da orelha:
— Artur?
Uma camioneta passou na rua e o tenente-coronel agitou-se
nos cobertores incomodado por tantos sons que o empurravam
e puxavam, lhe esquartejavam os membros, lhe retalhavam as
tripas. Apoiou, ainda confuso, a outra bochecha na fronha, os
ossos da cara afundaram-se, deliciados, na espuma do recheio,
e de novo a respiração no seu ouvido, a angústia da vozita que
o perseguia, tal um furão, com a sua pressa aflita:
— Artur? É o Ricardo, falo-te do Ministério da Defesa.
(Adivinhavam-se ruídos, tosses, ordens, passos apressados,
discussões.) Uns tantos palermas andam por aí a brincar às
revoluções, e é preciso que vás à tua unidade o mais depressa
possível, que os chames à razão, que os enfies na ordem: não
podemos sujeitar-nos a aventuras deste género.
O tenente-coronel aspirou o odor grosso da porteira, que se
soltava lentamente da roupa e pairava sobre si em volutas
sólidas de carne, remexeu-se de novo, amparou a nuca no
espaldar da cama, e despediu-se da empregada que lhe
acenava da porta, a abotoar o casaco de malha, num adeusinho
divertido:
— Até logo, bichano.
— O quê?, perguntou o coronel Ricardo, perplexo.
— Nada, não ligues, estava a conversar sozinho, murmurou
ele muito depressa. Que horas são?
— Quase quatro. O secretário de Estado diz que não temos
tempo a perder, que é necessário meter essa cambada de
miúdos nos eixos, a bem ou a mal, antes que aconteça um
disparate qualquer, uma bronca impossível de remediar
discretamente. O teu quartel controla a entrada em Lisboa de
quem venha do Norte, bastam meia dúzia de carros de assalto
por aqui e por ali, umas dezenas de homens de confiança,
decididos, capazes. Tens de jogar com o teu prestígio junto dos
oficiais mais novos, e é escusado sublinhar que todos
contamos com isso, que te pedimos que ajudes a evitar custe o
que custe uma asneirada infantil.
— Caralho, queixou-se o tenente-coronel a acenar sorrindo
para a porta deserta, vocês nem dormir me deixam.
Permaneceu sentado no escuro, com o aparelho, idêntico a
um passarinho morto, desligado na mão, até que premiu a
contragosto a lâmpada da cabeceira (a claridade fê-lo enrolar-
se sobre si mesmo como um verme) e olhou o relógio
quadrado cujas molas palpitavam rápidas como o pescoço de
um pombo: três e meia. Ou esta merda se atrasa, pensou ele,
ou o Ricardo me mente para me apressar. Lá estavam,
escolhidos por ti, os tarecos do costume, a roupa na cadeira, a
fotografia da defunta na moldura de prata, a examiná-lo com o
eterno sorriso alarmado, apreensivo. Talvez que devesse ter
avisado o Ministério das intenções do capitão Mendes, talvez
que devesse ter feito alguma coisa antes, talvez que com um
pouco de tacto se contornasse esta maçada: quantas colunas da
província, quantos blindados, quantas companhias, quantos
índios em pé de guerra? Foi à casa de banho urinar e correr os
cabelos por água, entontecido pela luz demasiado branca,
fardou-se a enganar-se constantemente nos botões (Que
estranho viver sozinho, em que gigantescos compartimentos
estas salas se tornaram), procurou de gatas um dos sapatos
debaixo da cama, de cabeça congestionada de sangue e um
zumbido agudo nas têmporas, apertou sem energia o nó da
gravata frente ao espelho da cómoda, lutando com a lânguida
vontade inerte de tornar para o colchão, de fechar os olhos
exaustos na almofada, de se cobrir com a manta e adormecer:
o telefone tocou novamente (Mais ordens? Mais avisos? Mais
alarmes?) sem que o tenente-coronel atendesse, a pensar Este é
o caminho por onde tu sais todas as noites depois de te
despedires de mim, os teus chinelos a trotarem na alcatifa, o
teu enérgico tronco direito, o decrescendo alegre do teu riso, o
elevador demorou imenso a chegar, gingando e baloiçando nos
cabos apodrecidos, carregou no botão sem se atrever a olhar
para si mesmo no espelho rectangular do fundo, cheio de
defeitos e de riscos (Uma cara de desenterrado, uma cara
pregueada de velho), os tipos do lixo corriam para as
camionetas verdes, com faixas diagonais, vermelhas e brancas,
nas traseiras, o frio da noite engelhava-me no interior da farda,
os testículos eram duas amendoazinhas transidas enterradas no
ventre, a barba, que crescia, restolhava no escuro à laia dos
arbustos junto ao mar, defendendo-se das ondas no côncavo
das pedras. Cansados anúncios luminosos piscavam por aqui e
por ali, o halo amortecido dos candeeiros deslizava a mão sem
força no lombo dos automóveis estacionados, cujos flancos se
orvalhavam de um nevoeiro gelatinoso de humidade. Os
prédios, tortos, afundavam-se lentamente no asfalto.
— Artur?, articulou-lhe na cabeça a vozita angustiada de há
pouco. É o Ricardo, falo-te do Ministério da Defesa, uns tantos
garotos andam a brincar às revoluções por aí. E enquanto
procurava, de dedos perros, ainda grossos de sono, as chaves
do Volkswagen nos bolsos, lembrou-se do pequeno vulto loiro,
sempre inquieto, do outro, das mechas ralas, cor de vinho, da
testa vermelha, pontuada de sardas que se incendiavam
alternadamente de medo, de indignação, de espanto. A
camioneta do lixo devorava caixotes atrás de caixotes em
gorgolejos impávidos, os empregados, quase todos da Beira,
repunham barulhentamente os contentores vazios no passeio,
penduravam-se no estribo, avançavam dez, quinze, vinte
metros, voltavam a saltar, a correr, a aplicar os caixotes nas
plataformas móveis, semelhantes a musculosos bíceps de
ferro, que subiam e desciam levando à boca os grandes copos
escuros de plástico, a bateria do automóvel recusava-se a
trabalhar, uma luzinha ténue estremecia no painel, Tens de
jogar com o teu prestígio junto dos oficiais mais novos, é
absolutamente necessário que ajudes a evitar uma patetada
infantil, e a preocupação, e o receio, e o pânico na voz dele, as
sardas em fogo na indecisa testa apavorada, sargentos a
cruzarem-se apressados com mensagens na mão, os
operadores de rádio a codificarem ordens, o secretário de
Estado reunindo generais graves no gabinete, empurrou o
Volkswagen ajudado pelo guarda-nocturno perdido de bêbedo,
que se lhe dirigia sempre em continências complicadas e a
quem o enorme chanfalho inútil atrapalhava, embaraçando-se
nas pernas, para uma ladeira íngreme junto ao quartel dos
bombeiros (Porque não fazem os golpes de Estado às três da
tarde, porque camandro não existem funcionários públicos da
revolução?), e eis os soluços renitentes do motor, os pulos dos
cilindros, e por fim o trabalhar áspero, contínuo, a claridade
dos faróis mais forte, fachadas, janelas, portas, a aparência de
fórmica das casas (Aposto que por trás das paredes não existe
nada a não ser uma carpintaria esquemática de tabuinhas, latas
de tinta, aparas, nódoas, despenteados rostos fugazes, a
confusão habitual dos bastidores), sentiu o odor da porteira no
banco ao lado e olhou atónito o lugar vazio, um cheiro ao
mesmo tempo rústico e pretensioso, sardónico e enternecido
(Como te habituaste depressa, sem protesto, aos meus
silêncios, aos meus raros grunhidos, à minha cara fechada, à
rígida ausência de afecto do meu corpo), lâmpadas verdes,
amarelas, vermelhas que o obrigavam a parar, a arrancar, a
parar, a arrancar de novo, passou a palma no assento, Não é aí
que está o aroma, é em mim, o picante dos sovacos, das
virilhas, as longas cerdas de mamute de livro de ciências
naturais da vulva, o pequeno aparelho de rádio engastado no
painel não funcionava, silvos, guinchos, arrotos, um puré
incompreensível de palavras, os dedos diligentes dela no meu
pénis, para baixo e para cima numa cadência acelerada, Que
cidade tão vazia à noite, tão desabitada, tão morta, e a seguir à
Rotunda da Encarnação, semeada de uma cercadura de
ampolas como um bolo de sombra, o muro comprido, pintado
de branco, do quartel, com duas ou três fieiras de arame no
topo, a torre de cimento de holofote apagado, idêntico aos
candeeiros redondos dos dentistas, e o portão da entrada,
cerrado, lá ao fundo, obscurecido por um novelo de trevas: O
Ricardo não está bom da cabeça, quem é que quer agora
meter-se em chatices. Parou o automóvel, buzinou, um ou dois
vultos turvos, de camuflado (De camuflado?) assomaram a
espreitá-lo, e por fim, do cubículo do sargento de dia, emergiu
a trote um perfil quadrado de pistola em punho (O alferes
Baptista?), que se debruçou de mão em concha para o vidro da
janela, abriu a porta e disse num tom rápido, inseguro, O meu
comandante está preso, faça o favor de se apear. Soldados
armados tinham rodeado o Volkswagen, alguém accionava os
gonzos difíceis do portão, escutavam-se gritos e ruídos de
blindados nas bandas das casernas, um jipe, a oscilar,
atropelava a relva e os malmequeres da messe com as grandes
botas redondas dos pneus.
— Que foda é esta?, perguntou o tenente-coronel, irritado,
observando as escuras sombras acusadoras e tímidas que o
cercavam. E afastem-me as espingardas que ainda se aleijam
por engano, enquanto pensava Voltar para casa, deitar-me na
cama, adormecer, cagar nisto, e depois, à medida que o som
dos blindados aumentava e os edifícios do regimento se
animavam prolixamente nas trevas, O Ricardo tem razão, estes
gajos são doidos, uma revolução a sério não se faz assim.
Os tropas hesitaram confundidos, um ou dois recuaram a
culatra das espingardas para extrair a bala (Dormir), mas o
alferes Baptista, sempre de pistola apontada, determinado,
pequenino e grosso, com as órbitas desmesuradamente
aumentadas pelo vidro dos óculos, rosnou em torno O que é
que eu lhes disse seus cabrões?, e para o tenente-coronel,
piscando as pestanas enormes que se agitavam como um leque
de fios rígidos de metal (Até a minha boca cheira à tua boca,
que estranho), Faça o obséquio de me acompanhar lá acima.
— O Baptista, imagine-se, sorriu ele com uma
empreendedora mulher de cada lado, a abanar as tristes orelhas
compridas por cima da taça de champanhe. Gordinho, ridículo,
tímido, sempre sozinho pelos cantos, a ler, nunca dei um
chavo por ele.
Um cabo desapareceu com o Volkswagen no saibro da
parada (a borracha rangia e cantava como solas novas), as
silhuetas no gabinete do sargento de dia acalmaram-se a pouco
e pouco como galinhas num poleiro, as asas de pano das fardas
aquietaram-se, os uivos do rádio chegavam pela porta
entreaberta, o alferes Baptista tocou-lhe de leve com a pistola
na ilharga (Mesmo o uniforme cheira, mesmo o ar em volta
cheira), e principiaram a caminhar no escuro, um ao lado do
outro, tropeçando no ruído contraditório dos próprios passos,
no sentido do prédio manhoso da secretaria, por detrás de
cujas janelas cirandava uma claridade mortiça de pesadelo,
idêntica às dessas indecisas auroras de desastre que a insónia
inventa: Como quando acordo a meio da noite, pensou o
tenente-coronel, com o teu musculoso corpo enérgico de égua
molemente entrelaçado no meu, uma perna sobre as minhas
pernas, o cotovelo agudo a furar-me o pescoço, e nada
empalidece os estores, o quarto é um cubo completamente
negro que se encolhe e aumenta ao ritmo dos pulmões da
empregada e do seu imperativo mau hálito, do terrível, feroz
odor dos sovacos, semeados de tufos miudinhos de algas,
como se outras duas bocas crescessem sob os braços,
reduzidas à esponja das gengivas. Despertava, desembaraçava-
me do denso peso de granito das tuas coxas, apoiava a
almofada contra o espaldar da cama, sentava-me no colchão, e
as pupilas cresciam-me de tamanho apalpando os móveis e o
silêncio da casa, o pingo remoto do lava-loiças, as tábuas do
soalho que estalavam, vivas, se um gás de fantasmas as pisava.
Tomo o comprimido, não tomo o comprimido, escorrego por
uma ladeira química na direcção do coma, e nisto o
despertador desata a soluçar (Cinco da manhã que merda), a
porteira remexe-se, incomodada, ao meu lado, conversando
ainda com os esquisitos animais fantásticos dos sonhos,
protesta, debate-se, o mau hálito aumenta, o perfume azedo
dos sovacos ocupa o quarto inteiro, à laia de um par de
texugos gémeos fedendo em uníssono relentos de jazigo, e
logo o candeeiro da mesa de cabeceira aceso aos apalpões,
claridade súbita que estilhaça os objectos e rebenta os miolos,
e depois o compartimento a reconstituir-se devagar,
penosamente, roupa no tapete, caixilhos, um pedaço de
estuque lascado junto ao tecto, o carrapito da mulher a
emergir, povoado de ganchos, dos lençóis, as míopes pálpebras
estremunhadas, a careta contrariada do costume, Tenho de me
ir embora, riqueza, e eu sem entender se a detestava ou se
gostava dela, se a estimava de facto ou necessitava somente de
uma companhia qualquer, não importava qual, uma mulher,
um gato siamês, um cachorro, um periquito, algo de vivo e
quente e móvel que o fizesse sentir-se vivo também, a odiá-la
e a querê-la enquanto a beijava à despedida, encolhido nos
cobertores como um bicho (Tenho de mandar-te sem falta ao
dentista esta semana, tenho de pedir-lhe que te limpe os
dentes), e a fitá-la desconcertado comigo mesmo enquanto
chinelavas quarto fora para o patamar a abotoar a camisa, a
enfiar o casaco de malha, a apalpar os ganchos, a transportar
consigo aquela repugnante soma de odores, a porta da rua
bateu e o eco, rombo, ficou soando muito tempo pelas salas
desertas, o tenente-coronel colocou o soporífero na língua,
engoliu-o sem água e sentiu a pastilha descer-lhe, a hesitar,
pela garganta, apagou o candeeiro e permaneceu muito tempo
quieto, de olhos abertos como um cachorro acossado, atento à
suave e enervante textura do silêncio.
À medida que o alferes e ele se aproximavam do edifício da
secretaria, cuja sombra azulava buxos e caules secos de flores,
o entorpecimento do sono ia-se dissipando vagarosamente do
cérebro, do mesmo modo que o nevoeiro se desvanece, um
resto de nuvens confusas nadava-lhe ao longe, no fundo da
íris, uma coluna de blindados formava na parada e o tenente-
coronel pensou, aborrecido, O Ricardo tem razão, os tipos do
Ministério têm razão, é uma revolta mesmo, vendo os tropas
armados, inesperadamente bélicos, enxamearem os carros,
ordens, contra-ordens, gritos, balbúrdia, uma febre agitada,
sulfúrica, no ar.
— Entre para aí, comandou sem respeito nenhum o alferes
Baptista, a empurrar-lhe as costelas com a pistola. Deviam ser
quase seis horas, um halo sujo, esbranquiçado, viscoso de frio,
principiava a aguarelar as árvores, os contornos das paredes, o
amplo vazio do aeroporto na distância, muros, casinhotos,
nenhuns pombos, chaminés. Quase seis horas, pensou ele, a
cidade a elevar-se do escuro, confusa e branda, como um suflé
da sua forma de vidro, janelas escancaradas que estalavam,
uma azáfama estranha na messe: Estou realmente aqui ou
apenas a sonhar com isto, o telefonema do Ricardo, a sua
pressa ansiosa, a ameaça idiota de golpe militar que ele
inventou, subiu as largas escadas de pedra à frente do alferes
Baptista, que lhe respirava com força à altura dos rins, e no
gabinete do segundo comandante, guardado por um cabo de
metralhadora, encontrou alguns oficiais de olhos perdidos, a
fumarem em silêncio com grandes vincos de preocupação nas
testas amarrotadas. O padre, amparado aos caixilhos,
observava de terço em punho as manobras das camionetas
pardas lá em baixo, os pelotões de capacete, munidos de
morteiros e bazookas, trepando como insectos para o interior
das Mercedes, um fulano de joelhos no cascalho a sintonizar
um emissor portátil, à medida que a manhã levedava entre
camadas sobrepostas de nuvens, as árvores se tornavam
árvores de facto e as silhuetas se transformavam em pessoas,
os sons adquiriam o rouco timbre habitual, o alferes Baptista
rodou a chave na fechadura pelo lado de fora e ali estávamos,
presos, os contra-revolucionários, os fascistas, os burgueses,
os nazis, eu, dois majores, o capelão do terço, de dedos macios
de costureira, meia dúzia de capitães e subalternos apavorados,
uns de farda, outros à civil, outros ainda numa insólita mistura
de roupa pacífica e guerreira, como se aguardássemos um
julgamento sumário no pátio por detrás das casernas,
conduzido por um esquerdista vociferante e barbudo, erguendo
a todo o momento o punho acusador. As Mercedes partiam em
fila, abanando-se no cascalho, precedidas por dois ou três jipes
caquéticos, cor de ferrugem, cujos motores falhavam como os
corações dos velhos, e um primeiro sol tímido, difuso, sem
origem, espalhou em leque nos canteiros os dedos abertos,
idêntico à ácida e estelar luminosidade triste dos aquários. O
tenente-coronel sentou-se na cadeira do segundo comandante,
com os majores e os capitães a olharem-no esperançadamente
como se aguardassem alguma coisa dele, uma ordem, um
sorriso, uma chamada, uma explicação definitiva, apoiou os
cotovelos na secretária, afastando dossiers, e principiava já a
adormecer, a envolver-se num casulo de tecido pegajoso onde
tudo se estirava e descoloria, a afundar-se num cotão mole e
côncavo que retirava arestas e espinhas aos seus gestos,
quando a chave tornou a girar dolorosamente na fechadura (Ou
no interior do meu crânio?), passos apressados rebolaram na
alcatifa, escutou de muito longe a voz do capitão Mendes,
descerrou as pálpebras numa dificuldade empenada de ostra, e
distinguiu três ou quatro homens de camuflado e espingarda,
de botas imóveis cravadas na orla do tapete, enquanto os
cativos se aproximavam em silêncio, de viés, vagarosos e
sonâmbulos como condenados à morte: Não pode ser, pensou
através de uma cortina ondulante de nevoeiro, de um grosso
tule invencível de desistência e de cansaço, não entendo nada,
existe qualquer coisa de errado nisto, é tudo engano de certeza.
— Como provavelmente sabem, avisou o capitão Mendes
subitamente imperativo, autoritário, a alojar o cano da arma no
sovaco como um termómetro, o Movimento das Forças
Armadas desencadeou desde há horas uma série de patrióticas
operações militares que visam a queda do actual Governo e a
sua pronta substituição por um regime que responda às
legítimas aspirações dos Portugueses. (Sempre o mesmo
discurso, disse-me espantado o tenente-coronel, sempre a
mesma merda de frases, agora inclusive os tropas desataram a
falar como os políticos.) Dou-lhes a minha palavra de honra
que antes do anoitecer a ditadura marcelista chegou ao fim.
— E que ditadura vem a seguir, confesse lá?, guinchou o
capelão badalhocando o terço. O comunismo ateu?
Afundado na cadeira numa espécie de torpor lânguido de
alga, que lhe reduzia os ossos a uma correnteza ininterrupta de
bolhas, o tenente-coronel espiava pela janela o sol agora
enérgico da manhã contra os escalavrados edifícios já sem
mistério do quartel, as exaustas árvores diurnas, desprovidas
de sombra, esbracejando pateticamente no excesso de luz, a
pequena enfermaria deserta, escancarando amígdalas de
camas: Até os doentes andarão por aí a assaltar ministérios, a
prender deputados, a fuzilar governadores civis? A mãe, de
vestido preto com decote, que cirandava de carbonoso, fatal
olhar avaliador, por entre os oficiais estupefactos, tocou nas
costas de um dos majores e designou-o amargamente com o
leque:
— Assim que ele nasceu pressenti logo que nunca iria
passar da cepa torta.
O capitão Mendes oscilou nas infindáveis pernas estreitas
de tarântula, retirou o termómetro da espingarda do sovaco:
Quantos graus marcará, pensou o tenente-coronel na sua
bruma sonolenta, quanta febre bélica este gajo tem? Não
parecia inteiramente à vontade, procurava com as pupilas
aflitas um objecto qualquer onde mexer, onde tocar, uma
irrisória muleta contra a própria timidez, a própria surpresa de
se achar de súbito um revolucionário, um conjurado, um
conspirador. Um sujeito entroncado, sem galões, de barba por
fazer, que envergava o uniforme da Força Aérea, colocou-se,
de ferozes mãos atrás das costas, ao lado do capitão Mendes, e
deslizou pelos presentes uma cara rápida, apressada, devastada
de insónia:
— Todas as unidades e praticamente todos os oficiais
aderiram ao Movimento, preveniu ele numa careta enjoada que
lhe arroxeou as pálpebras tensas sob os olhos, os senhores
constituem algumas das poucas excepções de que temos
notícia. Por mera precaução, e repito, por mera precaução
(pronunciava as sílabas como se todos os dentes da boca lhe
doessem) somos obrigados a conservá-los aqui até ao termo
das operações em curso. Uma vez concluídas estas informá-
los-ão sobre o vosso destino, que será cuidadosamente
ponderado caso a caso. Para já, e a título provisório, o
comando do regimento encontra-se entregue ao capitão
Mendes.
— Diga-me uma coisa, perguntou o capelão de terço em
riste, numa atitude de mártir. Você é bolchevista?
— E tudo aquilo, entende, explicou-me o tenente-coronel a
afastar uma das mulheres gordas da boite, que porfiava em se
lhe dependurar do pescoço, rosnando teimosas meiguices
incompreensíveis pelo espesso gargalo da boca, se me
afigurava, os bélicos e os não bélicos, os carcereiros e os
presos e, mais do que isso, a atmosfera idiota em que
vivíamos, uma ficção ridícula, uma cena de robertos, uma
farsa pegada, a idiotice ao quadrado, ao cubo, à décima
potência, que um pouco de disciplina e de bom senso, da parte
do Ministério, resolveria num instante.
— Bolchevista?, murmurou o da Força Aérea, de
sobrancelhas unidas, intrigado. Bolchevista, que é isso?
E ele imaginou operários rotos, sujos, magrinhos, vítimas
inequívocas do Estado Novo, de caras encovadas e unhas
imundas, entoando A Internacional em minúsculas salas
modestas, ardentes de fumo de cigarro e emoção, vermes em
farrapos, roídos de doenças, que abandonavam a coxear os
bairros da lata para assaltarem, entre miados de júbilo, as
caixas das esmolas das igrejas, as coroas de prata das santas,
os paramentos da cómoda de pau-preto da sacristia, Tens de
jogar com o teu prestígio junto dos oficiais mais novos, o
capelão ajoelhou-se entre prateleiras de dossiers, mapas e
armários de rede, e desatou a orar, de olhos fechados, em voz
alta, como os peregrinos de Fátima, cuidava que ia morrer,
percebe, cuidava que ia ser fuzilado pelo Lenine em pessoa, Ó
padre Nunes acabe lá com as mariquices, aconselhou
chocadíssimo o major de instrução, com um bigode de suor
pegado ao lábio, o tule de cansaço e de sono que o separava do
mundo não se dissipava, ondulava, verificou o tenente-coronel
numa ligeira, quase deliciada surpresa, Devem estar à espera
que eu fale, que aprove a operação, que os encoraje a
continuar, devem querer que eu lhes ofereça de mão beijada o
meu nome a fim de convencer oficiais relutantes, os para-
quedistas, por exemplo, os fuzileiros, alguns amigos do
Exército, e eu ali, estendido na cadeira, indiferente ao
Ministério, indiferente ao Movimento, indiferente à confusa
agitação à minha volta, alheado, sem peso, vagamente risonho,
flutuando no interior de mim próprio como um perfume sem
gosto, enquanto as pessoas me miravam em silêncio,
espantadas, de rostos convexos, torcidos, deformados pelo
vidro de aquário do meu torpor.
— O meu comandante está ainda a tempo de se juntar a nós,
disse o capitão Mendes numa tonalidade oca, casual, a ajustar
melhor, de cabeça baixa, a fivela do cinto, procurando uma
inflexão neutra, um seco osso duro de palavras.
Como o coronel Ricardo, pensou, como o secretário de
Estado, como os gajos que neste momento se borram de medo
no Terreiro do Paço, agarrados aos telefones, aos rádios, às
cumplicidades que de súbito se desprendem de nós, evasivas
como as folhas das árvores: e dá a ideia que todo o mundo
descobriu estranhamente, ao mesmo tempo, que eu sou um
tipo fixe, um gajo unhaca, e imaginou o careca sardento a
explicar a um grupo preocupado de generais Os senhores vão
ver, pelo lado do Artur estamos seguros, não existe problema,
e o odor da empregada sempre colado à minha pele, o mau
hálito dela a crescer-me sua áspera flor murcha na boca, a mão
a despedir-se entre o quarto e o corredor, Chauzinho.
— Eu adiro foda-se, proclamou um tenente idoso, do
Serviço Geral, encabritando-se num pulinho como se o
sobrado o queimasse. Os dedos iam-lhe e vinham-lhe,
inquietos, nos bolsos do blusão: É preciso assinar um papel?
Alguém tem meia folha selada que me empreste?
— Não param de telefonar para si, disse-me o capitão
Mendes sem ouvir o outro, o qual remexia afanosamente as
gavetas, tombando coisas, à cata de um selo de cinquenta
escudos, de um rectangulozinho dentado que o salvasse.
Mandei ligar a chamada aqui para cima, desejaríamos que o
meu comandante deixasse o assunto em pratos limpos com o
ministro.
O tenente do Serviço Geral aplicara uma folha contra a
parede e escrevia trabalhosamente, de língua ao canto da boca,
uma declaração complicada: mais camionetas roncavam na
parada, mais gritos, o som de fardos moles tombando.
Cadáveres?, pensou ele confuso, haverá mortos? O da Força
Aérea cochichou uma frase qualquer ao ouvido de um dos
centuriões de camuflado, partiu a galope comendo a própria
sombra com as botas gigantescas, e os ecos dos passos
carambolavam e combatiam-se no corredor sem fim, a
caminho das escadas de pedra.
Um dos majores acendeu dois cigarros ao mesmo tempo e
ficou a olhá-los numa careta estúpida, indizível, o segundo
major flutuava ao acaso, por aqui e por ali, esbarrando nas
cadeiras como um pássaro coxo, ninguém falava, uma densa,
surda tensão dilatava-se no gabinete, e nisto a campainha do
telefone principiou a soluçar em ganidos sucessivos, insistente
e teimosa como um cachorrito com fome. A voz do coronel
Ricardo parecia chegar de Saturno, refractada e diluída por
espessas, inumeráveis, coloridas toalhas de água. Devia haver
escutas por toda a parte, interferências, silvos, ebulições,
tosses mecânicas engoliam e afundavam as palavras, que
regressavam à tona de repente, esbracejando numa desordem
de insectos.
— Artur?, perguntou o ruivo. Artur? Caramba até que enfim
que te apanho, és mais difícil do que o papa, dizem-me sempre
que não estás, que acabaste de sair, que não chegaste ainda,
que me telefonas depois, as desculpas do costume, as mentiras
do costume, chiça. Aqui a garantirem-me que te meteste no
golpe, que a tua unidade fornece apoio logístico a esses
inconscientes, a esses lunáticos, e eu a defender-te como um
doberman, a jurar-lhes que és fiel ao regime, que tens os
homens na mão, que mais tarde ou mais cedo apitas a acalmá-
los, que os teus blindados vêm a caminho do centro, que
resolves a tua parte da questão num rufo.
A voz naufragou, voltou ao cimo, tornou a submergir-se,
inclinada como um transatlântico moribundo, chamou com
desespero:
— Artur? Artur? Não cortaste a comunicação, Artur? Vou-te
passar o nosso general Mendonça (O quê?, pensou ele, aquele
cretino?) que gostaria de te transmitir em pessoa as directrizes
do Estado-maior.
Um silêncio e depois de novo guinchos, uma espécie de
arrulhos, a tosse mecânica de há pouco, os fios a crepitarem,
chapas e parafusos dissolvidos numa papa prolixa de sons.
— Coronel Esteves, daqui o general Mendonça, anunciou
inesperadamente perto, no meio de uma clareira de
interferências, um timbre lúgubre de papagaio enrouquecido.
As instruções são as seguintes, ora queira tomar nota por
favor. Não tem importância que nos escutem porque se o
senhor for suficientemente rápido apanha-os pelas costas
façam eles o que fizerem.
Seguiu-se uma furibunda tempestade de barulhos, em que
vogavam ainda frases soltas, idênticas a botes à deriva, e não
só frases soltas, amigo, conversas em cifra, chamamentos,
canções, de tal forma violenta que afastou uns centímetros o
telefone da orelha, a aspirar o teu cheiro nos uniformes dos
oficiais, nos armários de rede, nos estandartes encostados à
parede, nas manchas ocres, cor de tabaco velho, da pintura do
tecto: Não me levantei, é cedíssimo, o despertador não tocou,
enfio mais meia pastilha no bucho e continuo a dormir, numa
inquietação de pesadelos agónicos, até ao acordar penoso, de
gelatina, das oito, e logo o pensamento inevitável, quotidiano,
lancinante, E agora?, que fica reboando, à laia de uma ameaça
de dor, pela casa deserta, mesmo se urino, mesmo se faço a
barba, mesmo à medida que visto as cuecas, a camisola, a
camisa, tento pentear o cabelo grisalho, esfrego os dentes e a
boca se me enche de uma espuma leve de hortelã, saio para a
rua, em jejum, com o teu corpo e a minha idade na ideia, a
tomar um café na pastelaria mais próxima, suja da serradura
nocturna e das beatas da véspera, que o empregadito enfezado
não varreu para a manhã triste, de azebre, desfocada e lutuosa,
da cidade: sempre inverno, caralho, por onde anda o sol nesta
terra? E os olhos grossos de sono dos clientes, e os gestos
lentos de sono dos clientes, as roupas amarrotadas, os feios
rostos sem ânimo, a exasperação transida dos clientes. O
temporal amainou um pouco, as sílabas ao telefone, outra vez
sólidas, adquiriam de novo consistência e firmeza, e falavam-
lhe agora da Marinha, da importância estratégica da Marinha,
de navios, de canhões dirigidos, do rio, aos pontos chaves de
Lisboa. O tenente-coronel espreguiçou-se na cadeira, e puxou
para o pescoço um lençol invisível: comungar um ou dois
comprimidos, apagar o interruptor do sol, adormecer.
— Meu general, solicitou ele suavemente, aproveitando o
breve espaço relvado de uma pausa. (Como as minhas palavras
se evaporam, pensou, como tudo se evapora à minha volta.)
Não merece a pena gastar o seu latim comigo, não vou
cumprir nenhuma das ordens que me deu.
O tenente do Serviço Geral, a abanar a folha de adesão
revolucionária para secar a tinta, considerava-o estupefacto: o
bigodinho, igual às sobrancelhas, adejava de terror idêntico a
um membro preso, a garganta subia e descia, aflitíssima: Que
me deixem em paz, pensou o tenente-coronel, que me deixem
dormir.
— Endoideceu, ó Esteves?, questionou ultrajado o general
numa saraivada de arrotos, numa vaga de granizo eléctrico que
zumbia. (O capitão Mendes deu um passo em frente na
alcatifa.)
— Não, não endoideci e o senhor ouviu-me na perfeição,
meu general, explicou o tenente-coronel numa paciente doçura
didáctica de namorado. Não faço tenções de mexer uma palha
a favor do regime.
Largou o auscultador no descanso (a voz do general
Mendonça gritava Um momento um momento um momento,
entre explosões, traques de corrente alterna, bocejos de
baquelite e gorgolejos de ralo), fitou com os olhos cegos a
janela fronteira e espreguiçou-se sem pressa: só um esforço de
nada, estender a mão para a esquerda, apanhar o frasco, abri-
lo, deixar cair um daqueles círculos amarelos amargos na
boca, e esperar que o sangue espessasse e se imobilizasse a
pouco e pouco dentro dele até o corpo resvalar, inerte, para um
fundo pântano de lençóis e esquecimento, onde os seus dedos
tocavam por vezes rostos putrefactos, repugnantes, de
defuntos, aproximando-se e afastando-se, à deriva, com as
suas enormes pálpebras acusadoras e inchadas. O telefone
chorou um ou dois protestos oblíquos e calou-se, escutavam-se
constantemente ruídos de carros de assalto na parada, soldados
que se gritavam, as heróicas marchas militares da telefonia,
risos, o capelão recolhera-se a um canto, entre duas bandeiras,
murmurando discursos inaudíveis na carranca façanhuda de
quem se confessa, o dia parecia prestes a rebentar de luz,
furando as nuvens como um furúnculo mole, o fecho da porta
girou e o da Força Aérea entrou a sorrir no gabinete,
Praticamente temos tudo nas unhas, o tenente-coronel
desrolhou um frasco imaginário, entornou o conteúdo na
palma, ajeitou-se melhor na cama da cadeira, pôs a língua de
fora, o capitão
Mendes proferiu com solenidade, virado para mim, Em
nome do Movimento, meu comandante, agradeço-lhe a
colaboração que nos prestou, mas o tenente-coronel gelou-lhe
instantaneamente o discurso com um lânguido aceno de ombro
de polvo: Que noite tão escura, disse-se ele, que silêncio do
camandro nesta casa, que nenhum reflexo, nenhum brilho de
vida nestas trevas. A sua própria voz, independentemente dele,
ondulava, surgia e sumia-se também, crescia de repente,
diminuía de súbito, evaporava-se por vezes, à beira do
silêncio, em consoantes limosas, ganhava uma segurança
inesperada, desfalecia mais adiante, tornava a ossificar-se,
autoritária e azeda, logo a seguir, enquanto olhava para a
mulher-a-dias, meio vestida meio despida, desenrolando uma
meia do alto de uma pilha de dossiers, mesmo por trás de um
alferes monárquico, de anel de brasão, preocupadíssimo:
— Escusa de embandeirar em arco, Mendes, eu não adiro à
revolta exactamente pelos mesmos motivos que não adiro ao
Ministério, se fossem vocês a telefonar recebiam uma resposta
igualzinha pelas trombas: é tarde demais, tenho três ou quatro
hipnóticos dos tesos no bucho, a única coisa que me interessa
a sério é acabar com tanta claridade e descansar.
E o mais estranho, explicou-me ele a passear o braço
distraído pelas coxas redondas das mulheres do cabaré, era que
eu estava a ser sincero, não, a sério, oiça, completamente
sincero, que de certa forma continuo a pensar do mesmo
modo, que me cago nos golpes de Estado e é talvez por isso
que me vão empalhar em general, porque o que me importa é
não acordar durante a noite, não dar por mim a suar,
completamente lúcido, apavorado, sentado nos cobertores
desfeitos, perseguido pelos rostos terríveis dos defuntos e
agora também, desde que bebia mais, por enxames de ferozes
animaizinhos carnívoros, cobras, insectos, furões, sapos
globulosos devorando-se num cruel silêncio vegetal. Porque
desde África, entende, e sobretudo a partir do falecimento da
primeira mulher no hospital do cancro, daquela sua entrada, ao
chegar da guerra, no andar deserto, que esvaziava garrafa após
garrafa, a seguir ao serviço, pregado no sofá diante da
televisão, na esperança de apaziguar uma dolorosa, indomável
angústia das vísceras, sem localização nem origem definidas,
uma labareda móvel, sequiosas mandíbulas roedoras de
ferrugem, o lento ácido teimoso que o consumia. O capitão
Mendes deixou um aparelho de rádio, no qual alternavam
comunicações e canções, em cima do mata-borrão da
secretária, e durante muito tempo escutou o som decrescente
das botas no corredor, vozes imprecisas que se afastavam
como nuvens, o pigarro viril do piloto atarracado nas escadas
(um coronel tirocinado, soube-o depois, um tipo que morreu
passados anos, com a família toda, num acidente de
automóvel), o tenente do Serviço Geral continuava no mesmo
sítio, apalermado e em posição de sentido, com a sua folha
selada na mão, um sargento trouxe o almoço, trouxe um chá à
tarde, trouxe o jantar, sopa, carne, vinho, pão, e não toquei em
nada, o sono chegava-se e desaparecia de mim como a sombra
de um náufrago na maré da praia, as silhuetas dos oficiais,
confundidas, aumentavam, separavam-se umas das outras
numa preguiça infinita, alguém rodou o comutador do tecto e
mil ácidos pontos faiscantes enterraram-se-lhe nas pupilas, o
pescoço diminuiu nos ombros como um pólipo de aquário,
Adormecer, a porta abriu-se, viu o alferes Baptista no caixilho
da moldura a caminhar sem ruído para eles como no elástico e
sem substância interior de uma névoa, Terminaram as
operações militares, podem sair, vozes, suspiros, tosses,
comentários ciciados, perfis que se somem um a um, quer
pedir-lhes que apaguem a luz e nenhuma frase se lhe forma na
garganta, escuta longinquamente o capitão Mendes que se
diria chamá-lo e não o vê, a mão cheia de comprimidos
inventados empurra-o devagar para uma oca profundidade
desabitada onde se revolvem dificilmente palavras e
cintilações pálidas, tocam-lhe, sacodem-lhe com violência o
ombro, Meu comandante meu comandante meu comandante,
um bafo desconhecido arfa junto à sua orelha, O sacana do
velho adormeceu, a perna da mulher-a-dias estende-se,
preguiçosa, sobre as suas, o habitual cheiro morno dos sovacos
rebenta-lhe na cara, gritos e cantorias de soldados na parada,
grandes botas alegres, coronhas que se entrechocam, vibrações
metálicas, camiões, e eu, lá em cima, afundado na areia sem
peso do meu sono, a abrir e a estender as pinças cartilagíneas
dos braços, rebolando a custo na boca uma onomatopeia, um
chamamento, uma canção infantil a que ninguém responde.
3

Ao fim de um mês ou dois deixaram de o chamar para os


interrogatórios, cessaram de lhe bater e desinteressaram-se
dele, e o oficial de transmissões pensou, despeitado, Devem
ter conseguido informações mais frescas noutro sítio,
infiltraram na Organização um pide de barbas, de maoísmo
enérgico, alguém deu à língua e desmantelaram por completo,
com um piparote, a nossa cómica rede de celulazinhas
precárias, unidas pelos ténues fios de baba de controleiros
duvidosos. Da cela avistava-se um bocado de praia, a seguir ao
muro, o guarda de metralhadora numa espécie de trono de
cimento, casas distantes, automóveis minúsculos na estrada em
obras, árvores, baldios, cones de entulho, e as horas
longuíssimas, meu capitão, muito mais compridas do que na
tropa, dias sem fim, estirados como bassets intermináveis,
noites que cheiravam a urina e a suor e onde se confundiam,
no escuro, andaimes de beliches, vultos estendidos, insónias,
tosses, respirações, ruídos de ventosa, de pés descalços, a
cambalearem na direcção da fedorenta concha de loiça da
sanita. Ninguém o visitava, não recebia cartas, se calhar as
velhas não perceberam nada e andavam por aí, atarantadas, à
procura dele nos hospitais, nas clínicas, nos bancos, aqui não
está, minha senhora, não internámos quem quer que fosse com
esse nome, e a tia, surdíssima, a esticar o pescoço para a frente
Hã?, ou então não lhes permitiam conversar com o oficial de
transmissões, o qual imaginava a madrinha e a Esmeralda,
indefesas, insignificantes, aflitas, encostadas uma à outra à
porta da cadeia, com bolos que não lhe entregavam, com
cigarros que não lhe entregavam, com roupas que não lhe
entregavam, e a trotarem por fim, com os cordéis dos seus
presentes inúteis pendurados dos dedos, para a estaçãozita do
comboio, em que de tempos a tempos se imobilizava, chiando,
uma efervescência trepidante de janelas. Os presos, retraídos,
isolavam-se, não se falavam, não se sorriam, não faziam
perguntas, comiam em silêncio, desconfiadíssimos, tensos,
espiando-se de viés, e pelo menos uma parte deles, ia jurá-lo,
topavam-se à légua de certeza, conspiravam juntos nos
mesmos escritórios, nas mesmas faculdades, nas mesmas
companhias, discutiam em armazéns, em traseiras de garagem,
em restaurantes apinhados, em quartos cancerosos, o
socialismo autogestionário ou a viabilidade a médio prazo do
marxismo em Portugal, a luta armada sim, a luta armada não,
cervejas, discussões furiosas, iradas divergências, colocamos
uma bomba na Assembleia, assaltamos uma esquadra, o que é
que temos a menos que o Fidel?, e mais cervejas, mais
discussões, mais zangas. Só a Organização, entende, dava a
ideia de não existir de facto, de se tratar de uma invenção
engenhosa e sabia do Olavo, do Emílio, do Careca, destinada a
enganar os papalvos como eu, a caçar o dinheirinho das
quotas, as massas da venda da revista mal impressa cujas letras
se pegavam, fuliginosas, aos dedos, e iam depois os três, de
bolsos cheios de notas, comer à nossa custa santola e sapateira
e caranguejo à Portugália, ou ao Monte Carlo, ou à Império ou
à Trindade, dando-se grandes palmadas satisfeitas nas costas, a
aldrabice perfeita, o conto do vigário ideal, um andar em
Linda-a-Pastora para cada um, com quatro assoalhadas,
acabamentos de alumínio, aquecimento e marquise, e se nos
queixássemos à polícia éramos nós que nos fodíamos por
atentar contra a Pátria, o sagrado Ultramar, os inalienáveis
valores cristãos da sociedade ocidental. Ou então, quem sabe,
nada disto e aquele gajo fuinha, sempre com bronquite, na
ponta da mesa, é dos nossos, o mulato calmeirão que ocupa a
mesma correnteza de beliches do que eu é dos nossos, o
senhor de idade voltado a semana passada, de canadianas, da
enfermaria, é dos nossos, só que há de certeza secretas entre os
presos e não se aproximam de mim por causa disso, simulam
não me conhecer, miram-me com distraídos olhos
transparentes, qualquer dia acordo com uma mensagem em
cifra, Bom dia companheiro, no bolso, e as velhas,
confundidas e rígidas, sentadas uma ao lado da outra como um
par de catatuas num único poleiro, a fitarem o rápido desfile
de muralhas e vivendas, que se sucedem, cavalgando-se, na
direcção de Lisboa: daqui a nada abrem a Feira, música,
chamamentos, gritos, os motores doentes dos carrosséis, o
fumo das farturas, dos cachorros, dos pregos, as sombras das
girafas a rodarem no Oito e o Olavo que lhe acena,
descomposto, despenteado, disforme, às gargalhadas num
elefante de madeira. Lentamente, obliquamente, sem dar por
isso, começou a odiá-los, não, a sério, a odiá-los, O que é que
eu faço aqui?, O que é que eu vou fazer quando sair daqui?, o
Emílio e o Careca ocupavam-lhe os sonhos, mascarados de
palhaços, a apontarem-no com as gigantescas luvas brancas e a
troçarem dele, a esguicharem repuxos de lágrimas postiças
pelos olhos pintados, um foco impiedoso exibia-o à mancha
escura, circular, do público, acabava por fugir em cuecas, a
correr, ao longo da coxia, perseguido pela música desafinada
da orquestra, pela teimosia dos holofotes, pela troça da
assistência, despertava aos saltos no colchão e escutava no
silêncio, mesmo junto de si, acordes furtivos de urinadelas sem
fim, grandes bocas abertas ressonando, atritos de cobertores,
corpos naufragados nos lençóis, o agudo apito longínquo de
uma locomotiva nas trevas, a abrir o ventre, cheio de gente
deitada, da noite, com a faca aguda do seu berro, e mais
afastado ainda, surdo, lamuriento e triste, o mugido miserável
do mar.
— De modo, meu capitão, disse ele a acender
apressadamente o cigarro de ponta de cortiça de uma loira
esquelética e a verter-lhe no copo, em ademanes de mordomo,
o champanhe sulfúrico que há uma hora bebiam, de
estômagos, de tripas, de fígados reduzidos a torresmos
calcinados, que me habituara à ideia de envelhecer na prisão,
eternamente à espera do julgamento que não vinha, que não
viria nunca, a comer sopas aguadas, batatas cruas e pão
esponjoso da véspera, até darem comigo morto no colchão da
camarata, com o açúcar cristalizado de uma beiça de saliva em
torno do fruto podre da boca. E afinal, olhe, quando já não
esperava nada de nada, quando me tinha habituado, como um
rafeiro idoso, ao pátio deserto da cadeia e às suas três ou
quatro arvorezinhas mirradas, à estrada eternamente em obras
lá em baixo, percorrida por bicicletas microscópicas, carroças
cabisbaixas e raros automóveis escuros, aos dias bolorentos e
às tumultuosas noites em que as ondas, galgando descampados
e chaminés, se lhe desfaziam nos tornozelos num visco
moribundo de espuma, quando até à indiferença e ao silêncio
dos outros me acostumara, no dia seguinte à chegada do
Emilio à prisão, veio aquela confusão toda, os soldados, os
aplausos, os repórteres, a barulheira, a liberdade, a gente a sair
o portão encandeados por tantos abraços, tantos sorrisos, tanta
alegria, tanto magnésio de fotógrafos, tantas entrevistas, e eu a
pensar, puxado, empurrado, vitoriado, apertado, retratado,
Quero voltar para o beliche, tapar-me com a almofada
malcheirosa, embrulhar-me nos lençóis sujos, comer o peixe
podre dos domingos, continuar ali: a miséria só é difícil nos
primeiros tempos, meu capitão, umas semanas depois, como
na guerra, olhe, se nos vêm roubar os trapos, os percevejos, os
piolhos, os pingentes de merda do rabo, temos uma saudade
disso que nem quê. E não me apetecia a ponta de um corno
regressar à estafadeira da militância política, às leituras do
Lenine e do Mao Tsé Tung, às argumentações exaltadas,
enjoado de luta de classes e de cigarros, ao emprego no
Terreiro do Paço, com os cacilheiros a deslizarem soluçando
rente aos vidros das janelas, idênticos a grandes e gordos
bodes fatigados, arquivar processos, anotar processos,
desarquivar processos, um cinema de raro em raro, um copo
envergonhado num bar, e a ida a pé para casa, de mãos nos
bolsos, através de ruas de janelas e montras e anúncios
luminosos apagados, sonhando vagamente projectos
contraditórios, veementes e estúpidos, haver uma mulher de
rolos na cabeça, feia ou bonita, que se lixe, a Dália, por
exemplo, de roupão à minha espera, ler livros policiais na
cama, de barriga para cima, a tocar ternamente com o pé um
tornozelo que não é o meu. Talvez que eu não passasse, já
nessa altura, meu capitão, de um social-democrata falhado, de
um perigoso individualista obsessivamente preocupado com a
sua miúda felicidadezita inútil, de um privilegiado com má
consciência, roído pelo sentimento de culpa de não ter tido
fome, nove irmãos, uma barraca nas Galinheiras, um pai
bêbedo a vomitar pedaços de frango pelos becos, uma avó na
Mitra entre centenas de octogenários petrificados e imóveis,
movendo para trás e para a frente, em deglutições de jacaré, as
ferraduras esburacadas das gengivas.
Viu o Emílio no pátio, pouco antes do almoço, de cabeça
rapada, encostado ao muro, e reconheceu-o logo apesar dos
inchaços das feições, da órbita esquerda destruída, murcha e
pendente como um lírio, dos gomos de tangerina ferida da
boca. Pensou em falar-lhe, hesitou, avançou, hesitou de novo,
desistiu (Aposto que há um magote de cabrões a observar-nos
das torres de cimento, das varandas, das janelas, da entrada da
cozinha, daqui mesmo, até), descreveu uma larga volta de
mocho sob o sol pálido, sem brilho, embaraçado nas nódoas
gordurosas das nuvens, da manhã, passou como que
casualmente perto dele, a assoar-se e a espirrar altíssimo no
intuito de lhe chamar a atenção, de o acordar daquela espécie
de modorra de pugilista vencido, amparado ao cimento
esfarelado das cordas, mas nem uma pálpebra, nem um dedo
do Emílio se moveu: enorme, cúbico, de pupilas neutras,
desinteressadas, apagadas, defuntas, impregnava-se como um
girassol do calor que não havia, e tinha emagrecido, e
faltavam-lhe dentes à frente, e haviam-lhe quebrado um dos
pulsos nos interrogatórios, e as pernas oscilavam brandamente,
enfraquecidas, reduzidas às hastes curvas dos ossos. Nem da
mãe se lembraria se lha trouxessem aqui, disse-se o oficial de
transmissões, indignado, com uma multidão de frenéticas
bandeiras vermelhas a estalarem, renascidas, dentro dele, de
erguidos punhos iracundos, de sovietes em brasa, de operários
metalúrgicos avançando, de pedras na mão, contra as bombas
de água, e os escudos, e as viseiras, e os cacetes, e as balas de
borracha da polícia. Aproximou-se outra vez, em diagonal, a
acender um cigarro que tremia (de nervoso? de excitação? de
entusiasmo? de raiva?), a Organização não acabou, a
Organização, que caralho, continua, companheiros
desconhecidos reunidos em lugares desconhecidos embora
previsíveis, de uma inocência tocante e idiota, prosseguem
corajosamente, infantilmente, armados de livros, de folhetos,
de posters, a desafiar a ditadura, a imprimir comunicados e
jornais, a negociar pistolas, a armazenar explosivos, a
premeditar científicos assaltos que nunca se fariam a bancos e
a esquadras, os núcleos desdobram-se, amigo, as adesões
multiplicam-se, o Olavo, tonto de cansaço, circula à pressa de
reunião em reunião, aconselhando, ordenando, sugerindo,
Emílio, chamou o oficial de transmissões baixinho, plantado
diante do volume gigantesco do amigo, quase líquido e ígneo
na luz que crescia, Emílio, e nesse momento a sereia desatou a
tocar para a refeição numa sinuosa labareda de sons, os presos
começaram a mover-se, arrastando as sapatilhas, no sentido do
barracão do refeitório, Aposto que nos vão impingir a mesma
sopa, as mesmas batatas greladas, as mesmas costelas sem
carne, Emílio, a órbita pendente animou-se e fundiu-se como
uma lâmpada sem préstimo, Sentes-te mal, Emílio, os gomos
ou pétalas da boca formaram lentamente uma palavra
inaudível, aproximou-se mais de orelha alerta, alongou o braço
para o peito do outro, Quando é que te caçaram, Emílio, há
quanto tempo estás cá?, e os dedos dele, meu capitão, de unhas
roxas de pontapés, de pisadelas, de pancadas, tentaram agarrar,
sem o conseguir, uma das pedras soltas, salientes, do muro, os
joelhos flectiram um pouco, trazia crostas e manchas e
sujidade nas orelhas, e isto na véspera do golpe, imagine, os
sacanas trabalharam conscienciosamente até ao fim, cheirava,
como os velhos, a cocó seco e a remédio, a esses
desinfectantes de pacote que se dissolvem num bidé de água,
um pó branco no fundo que é preciso agitar e remexer com a
mão, e não só crostas e manchas mas também cicatrizes de
feridas recentes, grumos de poeira, teias de aranha, lixo, Em
que cubículo, perguntou-se o oficial de transmissões, em que
cave fedorenta o meteram?, o inspector careca, de matraca em
punho, recuava e batia grunhindo o seu zelo de funcionário
competente, Nos tomates caramba, deixem-me acertar-lhe ao
menos uma nos tomates, a sereia parou de repente de tocar,
éramos os únicos no pátio e o guarda da torre de cimento
ladrou lá de cima De que é que estão à espera, suas bestas?, o
sol vai soltar-se das nuvens, pensei eu, vai atingir-nos com a
instantânea velocidade de um murro, de um coice de luz, de
urna terrível, sólida bofetada de calor, mesmo ao lado do corpo
grosso do Emilio uma caravana atarefada de formigas sumia-
se e reaparecia nos defeitos da cal (São as formigas de Omar,
pensou espantado o oficial de transmissões, as formigas
encarnadas, carnívoras, de Moçambique que regressam), as
bochechas do Emílio amoleceram, as pernas dobraram-se
mais, uma bolha de saliva dilatou-se e rebentou sob o nariz, o
oficial de transmissões segurou-o com força pelas bandas
rasgadas do casaco, O que é feito dos outros, o que é feito do
Olavo, o que é feito da Dália, o polícia da torre de cimento
principiou a descer cautelosamente o caracol das escadas,
insultando-os de metralhadora apontada, eu gritava cada vez
com mais força, sem me dar conta, sem me importar,
indiferente ao pide, à arma do pide, às represálias do pide, A
Organização ainda existe?, A luta contra o regime ainda
existe?, Como estamos a trabalhar agora?, as formigas
encarnadas de Ornar trepavam pelo dorso, pelas costas, pelas
espáduas, pelos músculos do Emílio, como pelas chagas
abertas, infectadas, dos negros doentes nos degraus do posto,
pelos beiços das feridas, pelos irisados cristais de sangue que
incessantemente se formam e dissolvem, Que raio de merda é
esta, perguntou o guarda, não ouviram o aviso do almoço?,
mas o oficial de transmissões abanava, sem o escutar, os
ombros do amigo, O Olavo? a Dália? o Careca? porque é que
nunca entraram em contacto comigo? porque é que me deixam
aqui a apodrecer? porque é que todos se estão nas tintas para
mim?, o inspector procurava o ventre com a matraca e batia, a
lâmpada do tecto do sol, na extremidade de um fio entrançado,
cegava-o, o soalho ondulava, os dois agentes amparavam-no
pelos sovacos, o queixo do Emílio tombou, a alcachofra
deformada do nariz tombou de encontro ao peito, os dedos
tombaram ao longo da costura das calças, O que fez você ao
gajo, seu caralho?, perguntou o guarda a afastar-me com a
coronha, Deixem-me acertar-lhe nos guizos, pediu o inspector,
desorbitado, de cabeça perdida, deixem-me arrumar de vez
esse sacana, o guarda recuou um passo, eu recuei um passo, o
enorme corpo do Emilio pareceu querer avançar para nós, falar
connosco, abraçar-nos, as manápulas ergueram-se lentamente
como duas grandes asas sem préstimo, os joelhos oscilaram-
lhe, os quadris oscilaram, a sombra de uma claridade fugaz
reacendeu-lhe as pupilas, e o tipo baldou-se inteiriçado, de
tromba no chão, mesmo aos pés deles, sem um gemido,
idêntico a uma estátua de gesso que se abate. E como sempre,
para além das vivendas, das árvores, dos baldios, dos carris do
caminho-de-ferro e do edificiozito sarnoso da estação, para
além da praia repleta de detritos e gaivotas e das limosas bocas
dos esgotos, chegou inesperadamente até nós, surdo,
lamuriento e triste, vindo de todas as direcções ao mesmo
tempo, cercando-nos da gelatinosa, contráctil ameaça dos
informes polvos dos sonhos, o mugido miserável do mar. O
oficial de transmissões procurava em vão arrancar com os
dentes o brinco da orelha da loira, que se torcia de cócegas
divertidas:
— O pide puxou um apito do bolso, assobiou, e dali a nada
vieram mais três ou quatro guardas que disseram Está morto e
arrastaram o Emílio para fora do pátio puxando-o pelos
tornozelos e pelos pulsos como um touro abatido, e a mim
levaram-me de novo, aos encontrões, à sala dos interrogatórios
depois de tanto tempo de indiferença. Voltavam a dar-me
importância, meu capitão, voltavam a preocupar-se comigo, e
à medida que trepava as escadas eu pensava O próximo é o
Olavo, o próximo é o Careca, a próxima é a Dália, talvez que
daqui a duzentos anos, quando o regime acabar, ergam na
cidade que nesse tempo já não será cidade mas outra coisa
qualquer, que não concebo bem o quê, um monumento de
alumínio e plástico aos defuntíssimos heróis da resistência, aos
defuntíssimos e anónimos precursores do socialismo, talvez
que daqui a duzentos anos alguém se lembre de nós nos
compêndios de História e nas ruínas de Peniche e de Caxias
encontrem uma Pompeia de tíbias, pedaços de beliches, restos
de celas, e, do lado do mar, a planície gretada desocupada de
ondas, com uma traineira ferrugenta ao fundo, quase na linha
do horizonte, enterrada numa espécie de poeira eternamente
matinal.
Mas, em lugar do calvo feroz das outras vezes, o inspector
era um senhor magrinho, de meia-idade, sempre a aperfeiçoar
o nó da gravata com os dedos inquietos e a desembrulhar
pastilhas para a azia, que se limitou a umas perguntas
apressadas, garatujando num bloco amarrotado de menino de
escola, cheio de riscos e desenhos, extraído aos puxões da
algibeira do casaco. E não viu os dois volumosos agentes de
antigamente, substituídos agora por um fulano de aspecto
aborrecidíssimo, desprovido de qualquer tipo de zelo, de
fósforo ao canto da boca e cheirando impiedosamente a
martini, que nem sequer uma bofetada patriótica e cristã lhe
deu, limitando-se a tentar conter uma chuva de arrotos com a
palma da mão, e a conduzi-lo de regresso à camarata, sem
insultos, sem pontapés, sem ameaças, a coçar os pêlos da
barriga por um intervalo da camisa.
— Já deviam desconfiar da revolução, sugeriu o alferes cujo
braço vasculhante desaparecia no largo interior de um decote
como numa boca de aquário. Já deviam saber do que se
tramava e andavam todos borrados de medo, a tirar as
castanhas do lume, a preparar o salto. Querias tratamento de
comité central, meu lindo, tortura, pancadaria da boa,
isolamento, querias sentir-te importante, certificar-te que
existias mas já não tinhas nenhum interesse para eles, já não
valias nada para os gajos. Em certo sentido a revolução lixou-
te: fez-te compreender que quando toca a Santos ninguém dá
meio tostão furado por ninguém.
— Talvez que o meu capitão não perceba, ou se ria, ou ache
idiota, explicou o oficial de transmissões a cuspir
triunfalmente a bola prateada do brinco na taça de champanhe,
despertando o líquido adormecido que se apressou a ferver ao
longo das paredes do vidro como centenas de bichinhos em
pânico, mas entre os pides e nós, à força de vivermos juntos,
criara-se, por assim dizer, um namoro violento, uma
aproximação esquisita, uma espécie de relação conjugal com
as suas inevitáveis tolices, os seus ciúmes, os seus caprichos,
as suas reconciliações, as suas crises e invejas, as suas
aterradoras parvoeiras. Eles ordenavam nós obedecíamos, eles
batiam nós apanhávamos, eles tratavam-nos mal nós não
protestávamos sequer, eles insultavam-nos nós aceitávamos,
mas isso era um bocado, entende, a forma que estabelecemos
de gostar uns dos outros, o equivalente dos pequenos, ternos
actos domésticos dos casais, a exuberante manifestação da
nossa felicidade conjugal.
— O meu tenente desculpe, disse o soldado a deslizar na
cadeira na esperança de escapar à mulata monstruosa que o
filara pelo pescoço e lhe fazia cócegas nos sovacos, mas já
está bêbedo que nem um cacho. Se eu fosse a si mandava vir
um café forte, uma alka-seltzer, uma água das pedras, ou ia até
lá fora apanhar ar.
O oficial de transmissões apoiou as palmas no parapeito da
toalha, debruçou-se para mim e soprou-me na cara o vinagre
espesso do hálito:
— Não, oiça, se alguém comia porrada em vez de mim
sentia alívio e inveja ao mesmo tempo, se alguém ia aos
interrogatórios em vez de mim sentia alívio e inveja ao mesmo
tempo, se alguém era castigado e posto a dieta em vez de mim
sentia alívio e inveja ao mesmo tempo: na época não me
apercebia bem, é claro, faltava-me recuo, faltava-me distância,
mas nestes anos todos tenho tido tempo de sobra para pensar.
— Completamente grosso, repetiu o soldado, sufocado, a
afastar a duas mãos os braços insistentes da mulata. Podre de
grosso.
— E sabe aonde fui parar, meu capitão, sabe o que se me
tornou evidente depois de semanas e semanas de profundas,
obsessivas cogitações ininterruptas?, perguntou o oficial de
transmissões de nariz quase encostado ao meu, com os olhos a
aumentarem e a diminuírem como guelras por detrás dos
aflitivos círculos convexos das lentes, enquanto a loira,
alheada, bebia o brinco num gesto precioso. Fui parar a que foi
o melhor casamento que já tive, fui parar a que sem me dar
conta passei em Caxias o período de ouro da minha porca
existência, e que de repente, de golpe, sem aviso, brutalmente,
trucla, enviuvei.
— A sério que não quer que eu vá consigo lá fora, meu
tenente?, ofereceu-se o soldado. Apanhar fresco, ganhar cores,
distrair-se, variar um bocado desta merda? É que se o meu
tenente, palavra, visse a sua fronha ao espelho assustava-se.
— Se não fosse assim, oiça lá, por a gente se rebolar de
alegria quando é maltratado, quando é pisado, quando sofre,
argumentou o oficial de transmissões a furar-me as costelas
com o dedo, como é que o meu capitão julga que a ditadura se
aguentava em pé?
Havia ratos e aranhas e centopeias na camarata, as tábuas
estalavam doridamente toda a noite ameaçando quebrar-se, um
perpétuo, enjoativo mau cheiro flutuava entre os beliches
semelhante ao odor de cadáver das marés baixas de outubro e
à sua espuma de pus, fragmentos de caliça do tecto
desprendiam-se devagar idênticos a crostas de psoríase, o
Emilio afocinhava de chapa na terra escura do pátio, o guarda,
de cano da arma assestado em mim, levava o apito à boca num
lentíssimo gesto interminável. O oficial de transmissões não
almoçou, não jantou, compareceu tardio, indisciplinado, oco,
às formaturas do costume, respondendo ao próprio nome com
uma voz ausente, um desses ecos de infância que se arrastam,
perdidos, nas casas onde ninguém mora, sílabas como pombos
coxos poisados nos móveis velhos das gargantas, deitou-se
antes dos outros, sem tirar a roupa, nos caroços de palha do
colchão, e permaneceu a noite inteira de olhos abertos e
esféricos a boiarem nas trevas, cercado de suspiros, de
trôpegas respirações desencontradas, de bronquites
ressequidas, de vultos que inchavam e desinchavam como
fetos sob os cobertores manchados de vómitos e de urina, dos
desesperados roncos, quase inaudíveis, do farol a palpitar,
perdido, para as bandas do Guincho, na ponta aguda de uma
escarpa. De vez em quando um preso, paralítico de sono,
cambaleava a caminho do urinol entupido, patinhando no
amoníaco das lajes eternamente encharcadas, roçava por ele a
tossir, abatia-se, desanimado, nos lençóis: Se calhar, pensava o
oficial de transmissões, também mataram o Olavo, se calhar
também deram cabo do Careca, se calhar entornaram a Dália
em Peniche ou deportaram-na para Cabo Verde: apesar de tudo
devem ser mais brandos com as mulheres, se calhar amanhã ou
depois fecham-me para aí numa sala qualquer e pregam-me
um tiro na nuca, pumba, e nisto deu de repente fé da turva
claridadezinha esquiva da aurora, de um luar terroso na
moldura da janela, desse frágil silêncio de vidro que o menor
ruído quebra, acompanhou o soldado cá fora, encostou-se à
parede, perto dos caixotes do lixo e de um contentor grande de
metal, a insígnia do Bar Boîte Madrid acendia e apagava num
ritmo de variz, tingindo-me os sapatos da sua graxa azul, Já se
sente melhor, meu tenente?, já se sente mais calmo?, uma
ruiva afirmativa e um tipo de cabelo empastado encafuaram-se
num Peugeot amassado que partiu, soluçando, às arrecuas,
numa gincana ziguezagueante, a caixa de velocidades chiava
como as dos jipes em África, Muito melhor, pazinho, não te
preocupes, respondeu ele a limpar as lentes com o lenço, daqui
a nada já damos à perna outra vez, às sete a sereia não tocou,
nenhum guarda veio chamá-los aos gritos, os presos olhavam-
se espantados, não havia pides, que esquisito, nas torres de
cimento, nem a cirandarem, compenetradíssimos, de
metralhadora, pelo arame da cerca, o que se passa?, desceram
intrigados, em grupo, amparando mutuamente o seu espanto,
para o refeitório deserto, mesas de pedra, bancos, o servente
coxo e meio idiota de roda do cataclísmico fogão vetusto, odor
de café e numa prateleira, por cima do saco do pão, ao lado
dos púcaros de folha, um aparelho de rádio portátil a ganir
marchas militares e (o mundo virou-se do avesso) subversivas
cantigas proibidas. O cone de luz dos faróis do Peugeot (Vou
largar o jantar aqui mesmo) zebrava-se dos riscos inclinados
da chuva, o guarda-nocturno, abrigado por um chapéu do
tamanho de um pálio, verificava as fechaduras, táxis
chegavam e seguiam, lentos, em gorgolejos de motor:
— Fino, porreiríssimo, nem tonturas nem enjoos, disse o
oficial de transmissões ao soldado que o observava com
apreensão, de queixo brilhante, a enxotar os cabelos molhados
para trás. Não há como um bocado de água na tromba para
lavar as ideias.
Instalaram-se, calados, nos lugares habituais, diante das
carcaças e das canecas de café aguado, mastigavam em
silêncio, curvos, de boca rente ao tampo, enquanto as marchas
e os hinos se sucediam na copa, um locutor debitou um
comunicado indistinto, que as pilhas gastas transformavam
numa pasta incompreensível de ruídos, num rolo de carne de
sons, não, se quer saber não achei estranha a ausência de
polícias, de ordens, de gritos, continuava a imaginar o que
teria acontecido à Dália, ao Olavo, ao Careca, continuava a
pensar nos tipos que construíam bombas em segredo,
iluminados por uma Fé inoxidável, a pensar nas fervorosas
mobilizações de estudantes, a pensar na Organização, a ver
morrer o Emílio, a vê-los mortos a eles, buracos de balas nas
têmporas, flores de sangue como os cristais transparentes dos
caleidoscópios, continuava a ouvir a lenta e funda respiração
do mar e uma flauta de mijo tombando no mijo estagnado da
retrete, Não é que eu não goste de lhe fazer companhia, meu
tenente, afirmou o soldado a limpar com a manga a estalactite
do nariz, a encostar-se ao abrigo precário de uma montra, mas
o meu tenente não prefere ficar só?, o idiota aproximou-se
coxeando das mesas e segredou Estão todos reunidos no
gabinete do director, Todos?, perguntou um preso de bigode,
Todos os que não fugiram como lebres quando a revolução
começou, e nós admiradíssimos, Qual revolução, caramba?,
demos mais atenção ao transístor mas só marchas, só hinos, só
discursos sem nexo, ao acabarmos a lama choca do café
verificámos que as portas interiores da cadeia se encontravam,
contra o costume, quase todas abertas, que nem sequer tinham
tirado as máquinas de escrever das caixas na secretaria vazia,
que não havia casacos pendurados dos cabides, que uma
arrumação estranha presidia solenemente ao silêncio, podia-se
passear à vontade, sem que ninguém nos impedisse, nas salas,
nos corredores, nos gabinetes, nos próprios alojamentos dos
guardas, tomámos banho quente nos chuveiros deles,
ensaboámo-nos com os sabonetes deles, enxugámo-nos com as
toalhas deles, o do bigode carregava debaixo do braço o rádio
de pilhas do manco e de cada vez que a música se interrompia,
para um comunicado ou um discurso, apinhávamo-nos como
as vespas nos ninhos procurando em vão compreender o
borbulhar rombo das palavras, o que é que ele está a dizer, o
que é que ele disse, o que é que se passa, o oficial de
transmissões, de gola do casaco levantada e mãos nos bolsos,
fechou os olhos e os pasodobles chegavam até si amortecidos
pela chuva e pelos reposteiros da boîte, num rebuliço de
saxofones, acordeões e castanholas, um golpe de direita?, um
golpe de esquerda?, os presos, indecisos, acabaram passeando
ao acaso pela cerca numa cegueira trôpega de escaravelhos, e a
meio da tarde veio o ruído de diesel da multidão,
chamamentos, cantorias, slogans, o soldado afastou-se a trote,
de ombros curvados, a caminho da Andaluzia e do champanhe,
o porteiro batia desesperadamente com os pés no chão a
aquecer-se (Ainda fura o empedrado com as solas, ainda se
some pela terra dentro), um megafone de sorteio de cegos
encorajava-os aos uivos, os pides mantinham-se sumidos
algures num conciliábulo interminável, Se vocês vissem o
maralhal que está lá fora, disse o idiota, desatavam aos pulos
de contentes, mas a gente não sabia, meu capitão, se era para
nos soltar ou enforcar, nos pendurarem ali mesmo nas árvores
moribundas diante das ondas, o do bigode sugeriu que pelo
sim pelo não nos comportássemos como meninos do coro,
como noviças, como condenados modelo, quando anoiteceu
regressámos ao refeitório para jantar e o sacana do coxo
evaporara-se e nem uma côdea havia de comer, ora que porra,
e o banzé dilatando-se do outro lado do muro, e slogans, e
hinos, e megafones aos guinchos, íamo-nos a levantar das
mesas e apareceram dois majores e um civil à porta, É de
direita estamos fodidos, rosnou o do bigode, mas não, imagine,
Acabou-se finalmente a ditadura opressora, anunciou
beatamente o civil, de gravata torcida e fralda da camisa a
querer pular das calças, raiou hoje a tão ansiada aurora da
liberdade e da democracia, o vosso imerecido e terrível
cativeiro (e o que eu tinha naquele momento era fome e um
cansaço do camandro no lombo), meus senhores, terminou.
— Já não ouvia falar assim, meu capitão, disse o oficial de
transmissões a extrair uma poeira, um cisco preto das lentes
com a unha, desde a época em que ia à missa, em pequeno,
com a minha tia sempre a mandar-me ajoelhar, levantar, sentar,
e a bater-me com o missal de capa de madrepérola nas costas,
Ajoelha-te, levanta-te, senta-te, limpa as remelas, tens cera nas
orelhas, mais respeito, levanta-te, e o padre vinha ao muro de
pau da comunhão, conversar sobre o Paraíso, com centenas de
velhotas de véu, na linguagem florida e preciosa dos eleitos.
Os majores rodeavam o civil da homilia como dois acólitos de
opa, escutavam-no de cabeça baixa, imóveis, recolhendo
catecumenamente conselhos e advertências pias, Levanta-te,
ajoelha-te, senta-te, levanta-te, ajoelha-te, senta-te, limpa as
remelas, mais respeito, levanta-te, a insígnia do Bar Boîte
Madrid crescia e inchava sob a chuva, o vinho parecia
dissolver-se no interior de mim, refugiar-se, insignificante,
num ângulo, num buraco, num recesso oculto do meu corpo,
deixando no seu lugar um vazio inquieto, uma angústia branca,
uma solidão informe, a tua gigantesca, sonolenta indiferença
quando eu voltar mais logo para casa, o teu aborrecimento, o
teu desdém cansado, Construiremos uma nova Pátria, uma
Pátria sem calabouços nem grilhetas, perorava o civil, por
cima dos trágicos escombros da herança fascista, os majores
acenderam cigarros e incensavam com o fumo as capelas dos
dormitórios, os altares dos beliches, os prisioneiros varados, de
boca aberta, Ergueremos o autêntico santuário da Igualdade
neste formoso jardim sem par à beira-mar plantado, Este gajo
é doido, cochichava o dos bigodes, este gajo é definitivamente
doido, a chuva amolecia os prédios e a textura metálica, de
lâminas paralelas de chumbo, da noite, as janelas
arredondavam-se e pingavam devagar, como gotas de
caixilhos, ao longo das fachadas, as chaminés murchavam, os
painéis de azulejo descoloriam-se, os vasos das varandas eram
uma papa confusa, repugnante, de flores, Daqui a nada, pensou
o oficial de transmissões, as lombrigas dos candeeiros
arrastam a sua luz doente no alcatrão, se eu me sentasse um
bocadinho no degrau desta porta, se eu me sentasse só um
bocadinho no degrau desta porta, Considerai-vos desde já os
anónimos mas úteis carpinteiros que energicamente edificam o
Portugal melhor, Doido de todo, insistia o bigodes, Levanta-te,
ajoelha-te, senta-te, apareceram sargentos, furriéis, muitos
fotógrafos, tipos empreendedores, cabeludos, de sapatos de
ténis e microfone em punho, interrogando
indiscriminadamente toda a gente, o idiota assistia, pasmado,
àquela súbita intrusão, agarrado ao rádio como a uma última
bóia, desconhecidos sem uniforme abraçavam-nos com
grandes palmadas veementes, Quem são estes fulanos que me
cumprimentam?, pensou o oficial de transmissões, quem são
estes sujeitos tão felizes que não conheço?, se ao menos o
Olavo, se ao menos o Careca, Vinde, amigos, berrou o padre
com um gesto largo, que tarefas ciclópicas lá fora vos
aguardam, um borbulhoso hirsuto enfiou-me um microfone
pela boca abaixo, Especifique para os nossos ouvintes as
condições infra-humanas em que viviam aqui, um fotógrafo
ordenou-lhe Quietinho e cegou-o cruelmente com uma súbita
claridade branca, principiámos a andar, em fila, a caminho do
portão da saída, e atrás do muro bocas informes, que se
sentiam ebulir nas trevas, urravam, quis voltar para dentro,
correr à camarata, fugir, meter o lençol por cima da cabeça e
esquecer-me, acordar amanhã na azeda, familiar, imperativa
rotina do costume, beber o café aguado, comer, vaguear pelo
pátio, ouvir o mar e as lágrimas das gaivotas transviadas,
lembrar-me de quando em quando das ruas da cidade, dos
restaurantezinhos manhosos, da Organização, O que se lhe
oferece dizer sobre a queda do regime opressor?, Que
suplícios vos eram infligidos aqui?, Obrigavam a praticar actos
contranatura uns nos outros?, o aviso imperioso Entristeça, e
novo instantâneo, horrível rasgão de cal viva nas pupilas, nova
bofetada de luz na atónita cara sem defesa, as pessoas no pátio,
iluminadas por projectores de cinema, de televisão, de jornais
de actualidades, em torno dos quais se agitavam centenas de
borboletas, de mosquitos, de melgas, dos insectos moles e
pegajosos de abril, entoavam entusiasticamente hinos
religiosos confusos, o padre descia a escada para o altar, para o
exterior, era de noite já e eu tinha dores de cabeça, espanto e
vontade de um táxi para casa, gritava-se, aplaudia-se,
agarravam-me, encostavam-me mais microfones à boca, os
candeeiros das ruas acendiam-se a caminho do grande fosso
preto do mar, uma humidade pegajosa aderia aos gestos e à
roupa, sentia os cabelos enrodilhados, as palmas molhadas, o
tecido das calças a picar-lhe desconfortavelmente as pernas,
não se percebiam estrelas, só manchas cinzentas que se
desfaziam e rodavam, e no pátio, logo a seguir às escadas do
vestíbulo, à guarita da sentinela, ao portão, ao civil que orava
sempre, perorava sempre, lento, pausado, episcopal, dezenas
de holofotes, de focos, de disparos de máquinas fotográficas,
de megafones aos urros, a nave repleta de fiéis, o padre
alargou as mangas do casaco numa espécie de bênção
sobriamente triunfal, e o oficial de transmissões distinguiu,
primeiro pelo cheiro de xarope e plantas podres, depois pelo
rumor de folhas secas das dentaduras postiças, centenas e
centenas de velhas de missal de capa de madrepérola em riste,
levantando-se, ajoelhando-se, sentando-se numa espécie de
carnívoro ímpeto cristão que o assustou, Limpa as remelas,
guinchava por cima das restantes a voz indignada da tia, há
quanto tempo é que não tomas banho?, Não me deixam voltar
para dentro, pensou ele, não me deixam esconder-me no
beliche, Qual é a sensação, suponho que inesperada para si, de
se encontrar em liberdade?, e apeteceu-lhe responder Uma
merda, alguns prisioneiros eram levados em ombros, outros
tinham a família à espera e perdiam-se em efusões
intermináveis, e veio-me à lembrança, meu capitão, que não
trazia dinheiro quando chegasse a altura do ofertório, nem uma
moeda sequer para depositar na bandeja, acabei por conseguir
um táxi a meias com um tipo abraçado a um estojo de viola,
Para a Feira Popular, ordenou ao chofer, a maré devia estar a
subir porque nenhum odor de água choca nas rochas, de limos
podres, de caranguejos mortos lhe tapava as narinas, o táxi
partiu aos sacões por entre filas cerradas de beatas, ainda se
virou para observar a cadeia mas os corpos das velhas
impediam-lhe o muro, os espigões de ferro, as torres de
cimento, deixou o da viola, silencioso e admirativo, no
Marquês de Pombal (O que é que este palerma foi fazer a
Caxias?), a estátua, o leão, o parque, aquela gaita toda, e
depois o condutor parou à porta de casa e declarou com
solenidade Não tem nada a pagar, eu alinho com a Oposição
desde sempre, a chuva cessou, encaminhou-se de novo para o
cabaré, alcançou o capacho gasto do vestíbulo, tocou a
campainha, escutou a voz do soldado junto dele Outra vez em
forma, meu tenente?, e lá estavam, senhores, na vermelha
claridade escassa do patamar, de cabelos tingidos de loiro,
bochechas pintadas e grandes colares berrantes de plástico,
cada uma com a sua taça de champanhe na mão, pedindo
cigarros ao tenente-coronel e ao alferes que lhes apertavam os
ossos de ruminantes idosos da cintura, a tia e a Esmeralda a
acenarem de muito longe, desfocadas, através dos anos,
vagarosos e ávidos (Tens umas notas, queridinho?) sorrisos
sem afecto.
4

Estava a fazer a barba no espelhinho côncavo, esticando a


pele do pescoço com os dedos, e descobrindo inesperados,
gigantescos cabelos do tamanho de caules, aborrecido porque
já era tarde, ia apanhar imenso transito na Praça da Alegria e
dera um corte fatal numa das patilhas (Vou ter de rapá-las e
fico com uma cara pavorosa de ovo de Páscoa), quando o
telefone tocou três ou quatro vezes, escutou a voz ensonada da
Inês a perguntar Sim?, um silêncio comprido, o desligar do
aparelho, agarrou no frasco verde do after-shave que uma das
cunhadas lhe oferecera nos anos, e ao desenroscar a tampinha
de metal viu a cara despenteada da mulher por detrás do seu
ombro, a boca aberta, os olhos subitamente despertos cercados
de manchas fuliginosas de pintura, a mão que se amparava ao
lavatório, coçava ansiosamente o sovaco, lhe tocava no braço.
— De início pensei que tivesse dado o badagaio à minha
sogra, meu capitão, disse o alferes aplicando protectoras
palmadinhas amigáveis nas costelas ensopadas do oficial de
transmissões, encolhido na cadeira como um pardal
moribundo. Um ataque cardíaco, uma trombose, um
aneurisma, uma pataleta qualquer que a arrumasse de vez, está
a ver o alívio? Acabarem-se os telefonemas, acabarem-se os
jantares, acabarem-se os intermináveis serões chatíssimos,
sentado na borda de um sofá, de cigarro nos dedos, a ouvir
falar de viscondessas e de Fátima.
— Era a mãe, murmurou a Inês num tom sumido, num tom
inabitual de tragédia. (E as minhas esperanças por água
abaixo, a minha alegria a murchar como uma vela: o monstro
permanece vivo e a maçar.) Houve uma revolução comunista
esta noite, anda tudo aos tiros na Baixa, o povinho quer
pendurar nos candeeiros as pessoas decentes. A mãe manda
que a gente vá quanto antes para Carcavelos, supõe tu que nos
entra no apartamento uma cambada de rufias e nos leva a
Mariana.
Homens de olhos sangrentos, pedreiros bêbados, mecânicos
sequiosos de violações e de talheres de prata, engraxadores
batendo com as escovas enormes em pobres administradores
de empresa indefesos: o frasco de after-shave, aberto, exalava
o acre bafo masculino do caubói hercúleo, montado a cavalo,
no rótulo, a miúda principiou a chorar no quarto, o alferes, em
cuecas, olhava estupidamente a tampa de metal na palma,
incapaz de resolver-se, de ideias estagnadas à deriva: E agora?
Percebeu pelo rebuliço que a Inês se vestia à pressa, sem se
lavar, puxando com tanta força as gavetas da roupa que tudo se
espalhava, ao acaso, no chão. Passou repetidas vezes o pente
no cabelo enganando-se sempre no lugar da risca, enfiou umas
calças, uma camisa, um casaco, meias desemparelhadas, os
primeiros sapatos que encontrou, com a ponta do pé, sob a
colcha da cama (Devem estar a subir a Avenida aos gritos,
devem apedrejar os automóveis e as montras, incendiar os
bancos), meteram a lata das papas, dois ou três brinquedos de
plástico e umas fraldas ainda húmidas, puxadas do estendal da
varanda, na alcofa de verga, Mexe-te, mexe-te, mexe-te,
chiava desesperadamente a Inês à procura dos cigarros entre as
almofadas do sofá, na mesinha ao lado do gira-discos, no lava-
loiças, no bidé, tipos de queixadas gigantescas e uniformes
cinzentos, com a foice e o martelo na lapela, comandados por
cubanos, ou checoslovacos, ou húngaros, ou russos,
arrombavam a porta à coronhada, trancavam-nos no chuveiro,
lançavam móveis pela janela, pisavam bibelots e molduras
com as botas, acendiam trapos embebidos em álcool e eles os
três, aterrados, ouviam, do minúsculo, cintilante espaço de
azulejos onde o autoclismo pingava no lago malcheiroso da
retrete num vagar de relógio, os estalos da madeira que ardia, a
crepitação dos reposteiros e dos lençóis, torcendo-se de dor,
comidos pelo fogo, explosões de lâmpadas, a prateleira dos
livros tombando fragorosamente no soalho com a sua confusa
carga de lombadas, papéis, fotografias, pombas de loiça, um
mealheiro de folha a imitar uma arca de pregos, vasos de
flores cujas hastes subiam, como labaredas aflitas, na direcção
da placa em ruínas do tecto.
Acabaram por encontrar os cigarros e o isqueiro no peitoril
da janela (e o alferes julgou perceber uma tranquilidade de
mau agoiro na rua, a praça deserta lá ao fundo, com fulanos de
metralhadora decerto escondidos por detrás das árvores,
prontos a atirarem sobre nós, uma mudez de fim na manhã
sem nuvens), não toparam ninguém no patamar nem no
vestíbulo, a Inês escovava as madeixas emaranhadas no
elevador, eu transportava a Mariana ao colo e a alcofa na mão
livre, a porteira, de joelhos, esfregava aplicadamente as
escadas (Bom dia menina, bom dia senhor doutor) e os
trejeitos e os movimentos dela eram os resignados e
quotidianos movimentos e trejeitos do costume (Os russos vão
degolá-la pela certa, vão cortar-lhe o pescoço não tarda),
prendeu a filha na cadeira do banco traseiro do automóvel,
instalou-se ao volante, abriu o fecho do lado da Inês, sentiu
uma coisa dura, cilíndrica e metálica na palma, abriu a mão e
um caubói viril subiu-lhe a galopar da pele, um ténue
odorzinho masculino espalhou-se no Fiat e viu que trouxera
consigo, sem se dar conta, a tampa cor de prata do frasco de
loção (Afinal estou muito mais nervoso do que julgava,
caneco) que acabou por atirar pela janela do carro num
piparote irritado.
— Com que então checoslovacos, com que então húngaros,
com que então tiros por todo o lado?, comentou o oficial de
transmissões a pousar os óculos na toalha e a enxugar as
bochechas molhadas com o lenço. (Que despida que a cara
dele fica, pensei eu, que aterradoramente nua, obscena, sem as
lentes.) Milionários exploradores das classes laboriosas e
desprotegidas abandonam cobardemente o país, transportando
uma fortuna em rolhas de after-shave.
Mas não, a tampa ficou ali, entre duas pedras de passeio, até
ser amolgada ou varrida ou esmagada ou apanhada por algum
garoto, faiscando de leve como os vidros das janelas, e de
novo, agora na manhã quase sem trânsito, percorrida por raras
camionetas preguiçosas e corcundas, os arbustos e as árvores
da Auto-Estrada, fábricas escapando-se vertiginosamente para
trás, o desvio do Estoril, os acessos do Estádio, e lá ao fundo,
de um azul intenso, bordado pela linha esfumada do Barreiro,
o mar, a danação das ondas na muralha, o repentino, estranho
cheiro de domingo a meio da semana, de desocupação, de
feriado, de não ida ao emprego, a que só faltavam os
pescadores do costume por alturas de Caxias, por alturas de
Paço de Arcos, engolindo teimosamente, corajosamente, os
escapes dos carros, imóveis, heróicos e cobertos de borracha
como as estátuas moles da paciência.
— O meu tenente goza, goza, disse o soldado ao oficial de
transmissões, mas por mais que brinque nota-se que a mania
do comunismo não lhe passou de vez.
Lá estava a praia de Santo Amaro coberta de uma manta de
gaivotas, de olhinhos idênticos a lascas de galheta,
desconfiados e agudos, abrindo as asas, debicando algas,
palhas, caniços, levantando voo ao mesmo tempo a fim de
perseguirem um rastro curvo de traineira, o motel de Oeiras à
esquerda, onde o empregado da recepção, que trabalhara em
tempos na mesma tipografia que o pai dele, ignorava com uma
piscadela cúmplice os bilhetes de identidade e lhe facilitava à
socapa bocados clandestinos de noite, com a Ilda, em quartos
voltados para o Tejo (nós deitados na cama, de janela aberta,
com a água aos pés, e o tiquetaque do teu relógio de pulso a
abraçar-me as costas, e o desconfortável excesso de ossos do
teu corpo, e sempre a desilusão enjoada do final, os troncos
suados que se despegam, o chuveiro rápido, deixar-te em casa
às duas, ou três, ou quatro da manhã, voltar à Rua da Mãe-
d’Água sem palavras, sem uma festa, sem um beijo, sem a
menor vontade de tocar-te, roçar-te, quando muito, a boca pela
testa, Logo vemo-nos no banco, até já, e encontrar a lua de
papel do candeeiro a vogar lentamente sobre a mesa, soprada
pelo sono da Inês e pelo friozinho azedo da varanda, pela
enorme fonte iluminada que invadia o andar com a sua
cantaria, os seus degraus de pedra e a sua ausência de água, e o
Príncipe Real lá em cima a ramalhar nas trevas), e logo a
seguir Carcavelos, guinar para o interior da vila, cruzar praças
minúsculas, ruazinhas estreitas, esquinas que o rio ou o mar (O
rio ou o mar?) erodiam, subir, ultrapassar a estação dos
comboios, continuar a subir, rodear a primeira placa, a
segunda placa, prosseguir em frente, abrir o grande portão
branco que chiava, e os lobos d’alsácia aos pulos adiante do
carro, latindo, ladrando, encostando as patas e os focinhos aos
vidros, assustando a Mariana que chorava aos gritos, Quieta
Bazooka, quieto Roy, quieto Bruce, sumindo-se por fim a
galope, desordenados, mordendo-se, nos buxos da garagem,
nos caramanchões e nas trepadeiras do jardim, vários
automóveis estacionavam frente à casa, silhuetas deslizavam
sem ruído do outro lado das janelas (deixar a Ilda, de olhos
fechados, nos lençóis, e correr a lavar-me, abrir a torneira do
bidé, sentar-me a cavalo na loiça a ensaboar com energia os
testículos e o pénis), escancarou a porta de trás, desamarrou a
filha do banco (a Ilda a acender um cigarro, a fumar, a pensar
não sei em quê), a Inês pegou na alcofa de verga e dirigiu-se,
sem esperar por ele, para a campainha do alpendre (a fumar e a
detestar-me, meu capitão, a odiar-me lentamente,
meticulosamente, a examinar-me o corpo nu com as
impiedosas pupilazinhas opacas, desprovidas de ternura, de
afecto), o som ecoou, enorme, num deserto de retratos e de
móveis (grandes barcos iluminados atravessando o meu
ventre, atravessando a noite), a criada antipática, de avental e
colarinho engomado, que lhe não prestou nunca a menor
atenção e para a qual eu jamais cheguei sequer a existir,
franzida numa espécie de careta, Olá Hilária, Olá menina,
porque raio é que o meu capitão acha que a gaja nunca me
cumprimentava, me falava, porque catano me espiava,
percebe, à transparência, como se visse um mendigo ou um
fantasma sem interesse (abotoava a camisa, punha as meias,
puxava as calças para cima, e agora um navio no meu
cotovelo, e agora uma traineira no teu rosto sério não há
dúvida, odeias-me), tapetes persas atrás de tapetes persas pelo
corredor fora, lajes de mármore, quadros, contadores do século
dezoito, porcelanas, pratas complicadas em vitrines, um
aparelho de rádio a emitir aos berros marchas militares, vozes
misturadas ao longe (Sabes de certeza que um dia te abandono,
que uma destas manhãs acordo enjoado da tua magreza, das
tuas borbulhas, da tua ausência de peito, da tua amarga
resignação de muito feia, que te troco inevitavelmente por uma
dactilógrafa mamalhuda ou uma secretária ruiva, de longas
pernas bem feitas, deliciosamente pateta), o sogro do alferes
evaporava-se, de mãos no queixo, na poltrona do costume,
diante da televisão apagada do costume, cunhados e primos, já
de gravata, já de blazer, já prontos para os conselhos de
administração do banco, das companhias de seguros, das redes
imobiliárias, das fábricas, cochichavam solenemente pelos
cantos, de uísque na mão, em atitudes de velório, as amigas e
os amigos habituais chegavam à sala em pequenos grupos
angustiados e sérios, a sogra, ao centro do sofá, rígida e tensa,
em roupão, cercada de decrépitas aias de casaco de peles,
subitamente mais velhas e enrugadas, de madeixas soltas
pendentes como ramos de salgueiro, passava os enormes anéis
dos dedos pelas bochechas murchas, recebeu alheada o seu
beijo mirando-o com a mesma indiferença altiva da Hilária (E
encostava-me ao murinho do terraço, Ilda, à espera que te
calçasses, que pusesses o casaco, as luvas, o cachecol,
debruçava-me do corrimão de ferro e a buganvília cheirava a
mar e o mar a poeirentas flores roxas pegajosas, a folhas
baças, ao amplo, ensurdecedor silêncio do escuro, povoado
pelos motores dos barcos de pesca barra acima, a praia era
uma vaga, imprecisa nódoa mais clara nas trevas, uma mancha
ocre, um frisozinho branco que avançava e recuava, e tu que te
vestias por detrás de mim, a apertar o soutien, a tentar cobrir o
acne com um creme que o afogueava mais ainda, o tornava
vermelho vivo, aceso, repugnante, a saia, os sapatos
masculinos sem salto, o fecho metálico da carteira que se
cerra, clique, os passos dela que se aproximavam, Estou
pronta), a sogra segurando apavorada a Inês pelas pulseiras
africanas do braço:
— A menina ouviu esses horrores da telefonia, a menina
sabe bem o que se passa?
— Vocês têm a certeza que este champanhe é bom?,
perguntou o tenente-coronel a apontar os gargalos das garrafas
nos baldes prateados. É que de dois em dois minutos dá-me
ganas de mijar e sinto um peso na cabeça que só visto.
— Prenderam o Governo e o presidente da República,
coitado, educadíssimo, uma jóia, que mal é que ele fez seja a
quem seja, prenderam centenas de pessoas, há por aí hordas de
ateus, desses que dão a pílula às mulheres, a matar toda a
gente, a destruir as igrejas, a fuzilar os católicos. Eu aqui não
fico, já mandei o pai arranjar bilhetes de avião para todos, não
estou para que um bando de selvagens me invada sem mais
nem menos a casa e me viole a família inteira.
E para o marido, secundário, pequeno, inútil, amarrotado na
poltrona, com um cálice de conhaque esquecido ao lado, a
regular na telefonia a intensidade dos hinos:
— O Jaime mexa-se, trate das coisas, não fique para aí
pasmado como um boneco, como um mono, até parece que
tem vontade que nos enfiem na cadeia. Ainda estou para saber,
palavra de honra, porque é que me casei com um pastel assim.
O alferes obliquou na direcção da varanda, de onde se via o
mar (Mas depois, quinze ou vinte dias mais tarde, sem se dar
conta, levantava o telefone interno, marcava o número da Ilda,
Queres ir jantar comigo amanhã?, e regressavam ao
restaurante discreto em Paço de Arcos, sempre o mesmo,
frequentado por empregados de escritório e caixeiros-
viajantes, ao vinho tinto que o tornava leve, atrevido, bem
disposto, ao carro onde lhe procurava a raiz esquelética das
pernas com a pressa ensarilhada dos dedos, mugindo baixinho
como um vitelo aftoso Deixa-me lamber-te o pescoço, deixa-
me mordiscar-te as orelhas, e do carro, rápido, para o quarto
do motel, o lavatório, a cama, a roupa tombando desmaiada no
chão, os corpos dançando sob os cobertores o seu bailado sem
nexo, demasiados membros, demasiadas mucosas, demasiada
pele, e eu Agarra nele e bebe-mo, agarra nele e põe-me dentro
de ti), o mar de Carcavelos, o mar da Parede, o mar do Estoril,
cintilante e trémulo ao longe para além das copas das árvores,
da extensão de relva do jardim em que um repuxo de água
girava, do caseiro que podava os arbustos com uma tesoura
enorme, de telhados de vivendas, de mais relva, de mais
árvores, de um ou outro quadrado branco de piscina, cujos
azulejos submersos davam a sensação de querer pular da água
como escamas doidas de loiça.
— Telefonei para o banco, disse o tio, avisei quem eu era,
mandei chamar o Bastos, responderam Já te tratamos da saúde,
ou Não perdes com a demora, ou uma ameaça do género, e
desligaram-me o aparelho na cara. Nem sequer sei quem me
atendeu.
— Uma revolução feita pela tropa, imagine-se, chiou uma
tia microscópica, peremptória, com cabelos no queixo,
divorciada de um conde francês maricas que se passeava em
Agosto, no Algarve, de sandálias de centurião romano,
abraçado a alemães enormes. (O conde visitava a sogra do
alferes quando vinha a Lisboa, um senhor idoso, grisalho, bem
penteado, educadíssimo, que discutia decoração, genealogias,
modas, e cheirava intensamente a mulher.) Como se não
devessem ao Salazar o que são, como se a obrigação deles não
fosse combater os pretos.
— A mim não me tem dado para mijar, meu tenente-
coronel, disse o soldado, mas com champanhe de putas nunca
se sabe ao certo.
— Se não gostas de fazer amor comigo, perguntou a Ilda,
porque é que me trazes para aqui?
— O Tucha foi preso há duas horas por uns marinheiros
brutíssimos, informou um sujeito pálido de medo, de colete
abotoado ao acaso sobre o casaco do pijama. A Nico falou-me
agora mesmo para casa a chorar. Vocês deviam sair o mais
depressa possível de Carcavelos antes que esses marujos
cheguem, esconderem-se na quinta, por exemplo. Eu trouxe as
pratas que pude na mala do carro, raspei-me pelo portão de
serviço sem o chofer dar conta.
— Está a ouvir o Ricardo, Jaime, está a ouvir o Ricardo?
soluçou a sogra do alferes à procura do frasquinho dos
calmantes no bolso do roupão. Só quando lhe espetarem uma
baioneta na barriga é que você acorda?
— Uma rolha de after-shave, hem?, repetiu para si mesmo o
oficial de transmissões, a vestir a cara com as cangalhas das
lentes. Que cagaço apanhaste, caramba, que borradela monstra
pelas calças abaixo.
— Claro que gosto de fazer amor contigo, olha que coisa,
disse o alferes. Há alturas em que só te vêm ideias parvas à
cabeça.
O mar de Carcavelos, meu capitão, o mesmo mar que o das
trevas cúmplices do motel, só que luminoso e amplo e largo e
luzidio, polido e jovem na frescura de carne da manhã.
Avistavam-se as gaivotas muito ao longe, minúsculos traços
brancos aparecendo e desaparecendo, insignificantes, na
distância, os lobos d’alsácia perseguiam-se de roldão no
jardim, aterradas senhoras de vison e cavalheiros compungidos
desembarcavam, no pátio, de automóveis enormes,
compunham em vão as maquilhagens desfeitas com
pinceizinhos trémulos: o Tucha foi preso, o Nuno foi preso, o
Duda foi preso no gabinete dele na Companhia, Em
contrapartida, observou o tenente-coronel, as gajas bebem e
não lhes acontece nada a não ser pedirem mais garrafas, mais
gin, mais vodka, mais martini, mais cigarros americanos, mais
tostas mistas, mais sandes de presunto, o álcool cai-lhes na
fraqueza é o que é, as mulheres são tão diferentes da gente,
que esquisito, a Ilda, apoiada no cotovelo, beijava-me os
testículos, o ânus, as pregas moles das coxas, e a sombra
enorme dela ocupava o tecto, deslizava nas paredes,
explorava-me o umbigo com a língua, prenderam o Álvaro,
prenderam o Né, prenderam o Duarte, gostava de fazer amor
contigo se gostasse de ti, se usasses um perfume de melhor
qualidade, se fosses, caraças, menos feia, se o teu corrimento
não cheirasse a lulas podres de conserva, os tios e os irmãos da
Inês, de fundas rugas verticais na testa, penduravam-se ao
telefone, perguntavam, ouviam, respondiam, gritavam para a
sala informações tenebrosas, os empregados do banco não
consentiam a entrada aos directores, a tropa inundara as
dependências, tipos carrancudíssimos remexiam nas gavetas,
vasculhavam papéis, buscavam, de orelha alerta, o segredo dos
cofres, A mim é só um ardorzinho, meu tenente-coronel, disse
o oficial de transmissões que comprava tabaco a uma rapariga
rechonchuda, em fato de banho, com um laçarote cor-de-rosa
na testa, mas pode suceder que traga a bexiga entupida,
Coitado do Né, lamentou a tia microscópica, obrigarem-no a
dormir numa enxovia imunda, Mas se não prenderam
ninguém, meu alferes, protestou o soldado, mas se só muito
depois é que fizeram isso onde é que a família da sua esposa
foi inventar tanta aldrabice?, É que nem sempre estou bem
disposto, explicou ele à Ilda, se soubesses o que me tem caído
em cima ultimamente, a Mariana chorava de fome, outras
crianças choravam tropeçando-lhe nas pernas, a filha da
costureira, de braço em gesso, espreitava de uma cortina a
balbúrdia da sala, as criadas serviam chá de poltrona em
poltrona, a mãe da Inês oferecia o frasco dos calmantes às
amigas, Como todos de manhã são repugnantes e idosos,
pensei eu, surpreendido, como a casa se assemelha a uma
capoeira em pânico, começaram a disparar a cinco ou seis
metros de nós, de uns troncos secos, de uns arbustos, tão perto
que se lhes distinguiam os camuflados e as caras, as chamas
vermelhas, instantâneas, dos canos, empurrávamo-nos,
saltávamos, caíamos das camionetas para a areia da picada,
tentávamos rastejar para debaixo dos carros, um ou dois mecos
quietos, de costas e de boca aberta, A partir de agora vou ter
mais tempo livre, prometo, olhavam-nos com espanto, a
metralhadora, no topo do rebenta-minas, costurava a
desordem, aquele banzé do caralho, aquela confusão do
caralho, o operador de rádio a sintonizar o batalhão, Perderam
a cabeça, explicou o alferes ao soldado, no fundo sentiam-se
culpabilizadíssimos por serem ricos, no fundo não se achavam
em paz consigo próprios, no fundo nem eu me achava em paz
comigo próprio.
— Se calhar sou eu que estou velho, disse o tenente-
coronel, que já passei a idade dos champanhes.
A pele do mar aparentava-se à borracha esticada dos balões
quando aguardava no pátio, com o pai da Inês, que o chofer
trouxesse o carro grande do outro lado da casa. Cheirava à
terra molhada dos canteiros e ao frasco de brandy ou conhaque
no bolso do casaco do velho, arrancado pelos gritos da mulher
ao sossego da televisão, de olhos gordos de cansaço e de sono.
Por cima do alferes, no primeiro andar, zuniam as conversas
alarmadas das pessoas, prenderam, não prenderam, vou vender
o barco o mais depressa possível, o terreno no Algarve, os
apartamentos, as jóias, os visons, e a tesoura de podar do
jardineiro decepava-lhes os pescoços e os buxos, tac tac tac, ao
redor da relva, e as cabeças, separadas dos corpos,
prosseguiam falando sozinhas até se calarem devagar, a meio
de uma frase, como os motores exaustos, se não nos meterem
na cadeia hoje metem amanhã ou depois, tu ainda conservas
ilusões de que a coisa fica assim?, o sogro esfregava as mãos
alheio à agitação, ao berreiro, à angústia, ao ruído dos
automóveis que sem cessar partiam e chegavam,
contemplando de órbitas ocas a faixa esbranquiçada do mar,
tossindo de leve, cautelosamente, como se a sua bronquite
fosse de vidro, ajudaram o chofer a encher a mala de bagagem,
A sério que nos vamos ver mais vezes, Ilda, a sério que sinto a
tua falta, Ilda, a sério que passaremos fins-de-semana fora, e
os olhinhos incrédulos dela, os olhinhos desconfiados dela, os
olhinhos que cediam, que consentiam, que se entusiasmavam,
dela, estender o meu corpo sobre o teu, magoar-me nas
inesperadas esquinas, nos inesperados nódulos dos teus ossos,
entrar em ti com a cega pressa de um membro numa manga
sem fim, o pai da Inês disse Obrigado Augusto não é preciso
mais nada, e continuou a friccionar as mãos de mestre-escola
distraído, de nariz apontado na direcção do farol, Um inerte
vegetalzinho magoado, meu capitão, uma amiba insignificante,
um homunculozito sem préstimo, meia dúzia de cabelos
descoloridos no alto pintalgado do crânio, os óculos de
tartaruga, a eterna, circunflexa expressão apagada e humilde, o
sol principiava a secar e a aquecer a terra, o mar aproximava-
se, um comboio escorregou em baixo na direcção de Lisboa, e
eu ali com ele, percebe, como se nada houvesse acontecido,
como se fosse um dia igual aos outros, como se a febre, e o
medo e a ansiedade dos parentes não nos dissessem respeito, a
olharmos as árvores, as ruas e os telhados de Carcavelos a
emergirem do nevoeiro leve de abril, a olharmos o jardineiro,
de ganga, que abria agora a torneira para regar os canteiros, a
olharmos o chofer que se afastava a fim de abrir o perro portão
branco no termo da estradazita de saibro, a ver os cães
arfarem, ladrarem, sacudirem-se, vibrantes de impaciência, ao
pé da entrada da cozinha, à espera das tigelas de carne, de
comida concentrada, de água, Juro que só se te separares dela
é que volto aqui contigo, ofegava a Ilda, só se a largares de
vez, só se a deixares de vez, os calcanhares cruzaram-se-me de
repente sobre as nádegas, Vai-se vir, pensou o alferes, vai
gemer e gritar e torcer-se e morder aos arrancos a fronha da
almofada, vai-me apertar com toda a força de encontro ao
tórax magro, aos seios inexistentes, à valeta côncava do púbis,
tentou imaginar debalde qualquer imagem que o excitasse
(uma actriz de cinema, uma rapariga encontrada ao acaso essa
tarde na rua, um anúncio de roupa interior, a vizinha do
segundo direito dos meus tios, de casaco de peles, a beijar e a
esfregar o nariz no focinho do cachorro pelo elevador abaixo),
qualquer lembrança que fizesse coincidir o seu orgasmo com
os desesperados safanões monótonos, de brinquedo de corda,
da mulher, uma ondazinha ténue, uma vaga de nada aumentou
dentro dele, enrolou-se, desfez-se num breve desmaio pálido,
insípido, triste, sair de dentro de ti e acender um cigarro,
acender depressa um cigarro, e permanecer imóvel no escuro,
de luz apagada, a escutar de olhos abertos, para além do rumor
do teu sangue e dos sons ocasionais dos outros hóspedes
(portas, torneiras a correr, conversas, passos) o ondulante
silêncio das trevas.
— A mim, não sei porquê, o que me faz mijar mais é a
cerveja preta, informou o soldado. Logo ao primeiro copo
pareço um chafariz autêntico.
— É como eu com o licor de ginja que a minha madrinha
fazia, disse o oficial de transmissões. Se o meu capitão gosta
de licor de ginja tenho muito prazer em convidá-lo a ir até lá a
casa, ainda devem sobrar um ou dois garrafões na despensa.
Na condição de não reparar na desordem, claro.
— Garantem que não prendem ninguém, pai, anunciou das
escadas um dos irmãos da Inês. Garantem que vão abrir as
prisões e libertar toda a gente.
— O menino é um inconsciente, imagine só os assaltos que
vai haver agora, o perigo que vai ser andar na rua à noite,
gemeu a senhora do cabelo roxo a esconder os anéis, a apalpar
as pérolas gigantescas do pescoço. Tantos ladrões à solta dá-
me cá uns nervos.
— Expliquem-me a diferença, perguntou o tio do banco,
entre ladrões e comunistas.
— Se calhar mandam fechar as igrejas, conjecturou uma
cunhada gorda, e obrigam-nos a todos a morar em esconsos
repelentes.
— O carro está pronto, filha, avisou o sogro da entrada da
sala, a friccionar incessantemente as mãos, encalhado entre o
piano e uma cómoda Império. Quando é que queres descer?
— Quem alinha num licor de ginja em minha casa?,
convidou em torno o oficial de transmissões, cujos óculos,
tortos, escorregavam do nariz, aumentando-lhe
desmesuradamente, como lupas, as rugas paralelas das
bochechas. Para essas coisas a minha madrinha tinha um dedo
do caraças.
— Ó mãe, disse a Inês a olhar para as madeixas roxas, se
não estão a prender as pessoas talvez não seja necessário
escondermo-nos na quinta, não acha?
— E se nos assaltam, e se nos roubam, e se nos violam?,
gritou a cunhada gorda, alarmadíssima. Eu, com esse povinho
por aí, não me atrevo a sair do meu buraco, palavra, até tenho
medo de mandar as crianças ao colégio.
— Ajude o chofer a descarregar o automóvel, Jaime,
ordenou a sogra. Por enquanto ficamos, sempre quero ver no
que isto dá.
Uma matilha de pedreiros, de beata colada ao beiço de
baixo, fornicava ferozmente as criadas, um vendedor de
jornais puxava os colares das velhas e as esferazinhas cor de
leite rolavam, desencontradas, pela sala, imundas mulheres de
chinelos retiravam os quadros das paredes, rafeiros
vagabundos cagavam sem cerimónia nos tapetes, apagou o
cigarro, acendeu outro e nesse momento chegou até ele,
atenuado pelo véu das persianas, o suspiro distantíssimo do
mar. No ponto em que os flancos se tocavam formava-se um
charcozinho de suor, de vez em quando os meus dedos dos pés
roçavam nos teus e afastavam-se enjoados (notarias isso?) e eu
pensava, intrigado, no que te ia pela cabeça, no escuro, que
ideias te povoavam, se gostavas de mim, se me odiavas, se
preferias estar sozinha no teu quarto de solteira, com um
romance de capa colorida ao lado do despertador, na tua cama
que presumia estreita, desconfortável, idosa, rangedora, a
navegar pelo Bairro dos Olivais fora na direcção do rio.
— O que me teria acontecido, meu capitão, perguntou o
alferes ao vidro do cálice, no qual teimavam em borbulhar
vagos pontinhos amarelos, se eu nessa altura me separasse da
Inês e me casasse com a Ilda, se alugássemos um apartamento
de duas assoalhadas na Damaia, com marquise, polibã, poucos
móveis, sofás precários, reproduções de má qualidade nas
paredes, o que me teria acontecido, entende, se eu voltasse a
ser o que de facto fora, o que de facto continuava secretamente
sendo? Mas nunca pude ter a certeza de que gostava de mim
por mim, está a ver?, que se eu fosse um pobre diabo como o
meu pai me não trocaria pelo primeiro economista que
aparecesse.
— Para já, concordou o tio, é a decisão mais acertada. Não
ganham nada em fugir agora de Lisboa, e para além disso a
quinta pode sempre funcionar como uma espécie de recurso,
de reserva.
— Mais feliz, menos feliz, a mesma coisa?, perguntou o
alferes. Tudo medido e pesado menos feliz seria um bocado
difícil, meu capitão.
Desceu em silêncio as escadas, atrás da silhuetazinha do pai
da Inês, cuja boca se aparentava a uma ruga retráctil e
magoada, e ficou buzinando através da janela aberta,
encostado ao carro, até o chofer surgir a trote, abotoando o
casaco cinzento, de botões prateados, da farda, vindo das
bandas da cozinha onde uma telefonia rouca tocava
desesperadamente o hino nacional. O jardineiro regava os
grandes vasos ocres encostados à parede, o mar, convexo,
parecia prestes a explodir numa violenta, reverberante espuma
de pus, ciganos em farrapos empilhavam vorazmente armários
de vidrinhos, cómodas, toucadores, tremós, escrivaninhas,
secretárias, biombos, canapés, em carroças tinhosas cujo chiar
assustava os lobos d’alsácia que lhes ladravam de longe,
protegidos pelas ramadas dos arbustos. O chofer, que cheirava
com vigor a desodorizante dos sovacos, repunha as malas no
chão, o meu sogro observava-o sem o ver, de punhos nos
bolsos, com os seus dois, ou três, ou quatro cabelos do
cocuruto desassossegados pelo vento, ajudei-os a encafuar a
bagagem no vestíbulo do andar de baixo, a arrastar um baú
com pegas e cantos de metal pelo saibro do chão, sentiu o
corpo da Ilda distender-se, a palma que lhe procurava às cegas
a cara, a claridade negra do mar ondulava e vibrava nos
estores, ao mesmo tempo próxima e remota, pensou,
incomodado, retraído, Não me apetece que me toques, não me
apetece que me afagues, não me apetece que me mexas, tentou
apequenar-se, ficar minúsculo nos lençóis, evaporar-se,
desaparecer, mas os dedos da mulher percorriam-lhe o
pescoço, os ombros, o peito, desciam, húmidos, o ventre,
ancoravam por fim na raiz tenra, engelhada, dos testículos,
faziam deslizar a pele do prepúcio ao comprido do pénis (Uma
garrazita desagradável e dura, meu capitão, uma teimosa
gavinha sem descanso), eu assistia, com a nuca apoiada nos
braços, ao insidioso, oblíquo, a contragosto, lento dilatar do
meu desejo, apetece-me e não me apetece, quero e não quero,
vou ceder e recuso-me a ceder, a acidez do teu hálito furava-
me o pescoço, uma coxa magra pesou por sobre as minhas,
encolhendo-se e distendendo-se ao ritmo da mão, Obrigadinho
Augusto, disse o pai da Inês ao chofer, contemplando sem
interesse, de pupilas mortas, o cone de sacos e de malas, podes
ficar com o resto do dia livre se quiseres, um seio pequeno,
vagamente iluminado, esmagou-se-lhe de encontro ao flanco, a
outra coxa aninhou-se no intervalo das pernas imóveis do
alferes, a pila introduziu-se numa espécie de túnel oleado, os
gemidos, os protestos, os safanões, as lambidelas,
recomeçaram com mais força, Claro que aceito, senhor
engenheiro, fico-lhe muito grato por isso, e a seguir, a pouco e
pouco, quase sem reparar, principiou a excitar-se por seu
turno, a Ilda rolou debaixo de mim com um suspiro asmático
de fole, Jura que me amas, jura que me amas, jura que não me
esqueces nunca, E nesse caso, se o senhor engenheiro não se
importa, aproveito para visitar os meus velhotes, Jaime,
chamou a voz autoritária da sogra, onde é que você se meteu,
Jaime?, o marido, como resposta, fitou-me com as densas
pupilas de submissão vegetal e pela primeira vez, meu capitão,
julguei entendê-lo, que caralho, julguei compreender a sua
obediência e o seu medo, Vem-te agora, comandou a Ilda,
esticada em arco, como os doentes do tétano, nas pregas do
colchão, as artérias esmurravam-me os miolos, o coração,
subitamente gigantesco, trabalhava numa veemência de
comboio, Não tarda um segundo que não estoire, pensou o
alferes, não tarda um segundo que me não transforme num
desses corpos esfacelados pelas minas da guerra, de órbitas
desmedidamente abertas de espantada, tranquila aceitação, o
chofer afastou-se com os sapatos de verniz a pisarem
levemente o cascalho como um saltimbanco caminhando
descalço sobre cacos de garrafa, as carroças gingavam a
caminho do portão repletas de cristais e de pratas, Jaime, não
ouviu eu a chamá-lo, Jaime?, o oficial de transmissões
aplainou-se melhor no assento, sorriu, e esticou o pescoço
magro para nós:
— Fica combinado, disse ele, em pirando daqui vamos
todos lá a casa provar o licor de ginja da despensa.
— Urina e tonturas, urina e tonturas, urina e tonturas,
insistia o tenente-coronel a observar à transparência o
conteúdo do cálice, a bater com a unha no rebordo de vidro a
fim de espevitar um repuxo de bolhinhas. Vocês têm mesmo a
certeza de que esta gaita não me fode as tripas, não me lixa a
próstata?
— Convém-te sempre um refugiozinho à mão, opinou o tio
do banco, e nas actuais circunstâncias eu guardava a quinta
para uma ocasião melhor.
— Menos infeliz, meu capitão, previu o alferes, isso de
certeza que sim. A Rua da Mãe-d’Água, por exemplo, já não
conseguia nem cheirá-la.
— Vocês voltem para casa com a pequena, concedeu a
minha sogra a sepultar os calmantes no bolso do roupão. Se
isto piorar ainda mais, em qualquer altura eu telefono.
Um grupo de casacos de peles, tranquilizado, jogava às
cartas num canto, os primos afogavam-se em uísque, a Ilda
acabou primeiro do que eu e senti o seu corpo naufragar e
amolecer sob mim, o sangue de súbito suspenso, o mundo de
repente imóvel, já está, Como tudo isto é rápido, pensou, como
tudo isto é horrivelmente insatisfatório e rápido, encontrou a
alcofa da Mariana esmagada pelas nádegas distraídas da
cunhada gorda, toda a mobília, todas estas talhas, todas estas
paisagens do século dezanove a marcharem nas carroças dos
ciganos, os cunhados recomeçavam a conversar de cavalos, de
operações bancárias, de mulheres, as tias escureciam as
pestanas, o mundo reingressava, sereno, nos carris do costume,
o mar penetrava céu adentro num único, uniforme, espesso
azul onde os barcos vogavam como nuvens, procurou a Inês na
cozinha eriçada de armários e de máquinas, trepou ao primeiro
andar, abriu portas, fechou portas, espreitou o interior dos
quartos sem ninguém, de roupa das camas brutalmente
empurrada para o lado, um gira-discos ensurdeceu-o por
instantes, continuou a avançar tapete após tapete espiando
pelas janelas a paz quieta das árvores, empurrou um guarda-
vento e lá estavam as duas, a Inês e a amiga de cabelo roxo da
mãe, derramadas num divã, a beijarem-se, a abraçarem-se, a
percorrerem-se as pernas com as unhas, indiferentes a ele,
numa lânguida, interminável sede. Sentiu-se tonto, encostou-se
à parede, sorvia dificilmente o ar, os ruídos do motel deixaram
de se ouvir, levantou-se do colchão de um salto. Gotas de luz
vogavam preguiçosamente na distância:
— É tardíssimo, passa das quatro, explicou a gaguejar à
Ilda. (E a sua própria voz, desesperada e tensa, afigurou-se-lhe
estrangeira nas trevas.) Se não nos arranjamos depressa
chegamos a Lisboa de manhã.
5

— Mesmo depois do golpe, meu capitão, disse o soldado, as


Mudanças Ilídio continuaram prosperando. Mas faltava
qualquer coisa, percebe, talvez o empenhamento, o entusiasmo
do meu tio, agora instalado na gaiola de vidro, indiferente a
tudo, a contemplar a flor da secretária, talvez a chibata da
feroz asma omnipresente, talvez o nosso pânico das suas
zangas devastadoras. Prosperava por inércia, não por trabalho,
como quando cortam a água, a que sobra dos canos vai
pingando, murcha, das torneiras, e a gente sabe que dali a
nada, depois de dois ou três arrotos, pffffffff. Não foi a
revolução e as complicações que se seguiram que nos
tramaram a vida, foi a trombose da dona Isaura que nos lixou.
A princípio vinha diariamente uma enfermeira ao fim da
tarde, uma mulherzinha idosa e pouco limpa, que morava na
rua abaixo e de quem se dizia que fazia abortos às escondidas,
aplicar uma injecção na doente, e de mês a mês um médico
céptico examinava a cama de longe, a abanar a melancólica
cabeça cavalar, puxava um bloco do bolso da gabardine e
receitava ilegíveis garatujos confusos, traduzidos pelo
empregado da farmácia em xaropes e pastilhas que a dona
Isaura se recusava a engolir, girando a boca torta em negativas
veementes, enquanto o olho mais aberto se carregava de um
ódio de aterradora lucidez. Mas enfraquecia, emagrecia,
dormia o tempo inteiro um sono sobressaltado de fungadelas e
resmungos, urinava constantemente os lençóis, uma neblina
fedorenta de amoníaco espalhava-se na casa, o pó acumulava-
se nos móveis podres, escorados por cunhas de cartão e de
madeira, sobras gordurosas de comida, idênticas a visco de
tripas, secavam, repugnantes, no lava-loiças de pedra. O tio
Ilídio conversou com a enfermeira e esta abandonou a seringa
para se dedicar a sumárias, nominais operações de limpeza,
lavando vagamente um ou outro lençol, passando um esfregão
distraído pelas crostas dos pratos, abrindo as estreitas janelas
das traseiras, que davam para um quintal minúsculo, sufocado
por duas galinhas e três pés de couve, e cuja única
consequência visível foi a de inundar os compartimentos de
sôfregos enxames compactos de moscas, banqueteando-se no
colchão da velha de mijos recentes. O médico pessimista
desapareceu, deixando atrás de si um imenso aluvião de
embalagens de medicamentos, acumuladas um pouco por toda
a parte como detritos de vazante, e o tio trazia para casa,
oculta no casaco, a jarra da flor, plantava-a no centro da mesa
de jantar, e permanecia o serão inteiro arfando diante das
pétalas moribundas, que pastava lentamente com as órbitas
globulosas de boi.
— E depois a contabilista começou a ir lá a casa, disse o
soldado, a pôr e a dispor, a dar ordens à Odete, ao patrão, a
mim, a mudar os sítios das coisas, a ocupar autoritariamente às
refeições o lugar da dona Isaura, que borbulhava diarreias e
cuspos aos pulos na colcha. A Odete e eu, meu capitão,
fechávamo-nos nos quartos a seguir ao café, ela com o
pretexto de estudar, eu a ler um livro de quadradinhos no divã,
e escutavam-se, pelas frinchas da porta, os ruídos do bairro, os
soluços breves, estrangulados, das galinhas, a mulher do
senhor Ilídio a batalhar com o travesseiro, e sobretudo a voz
da contabilista que parecia zangar-se, ou discursar, ou
ameaçar, desagradável e pontuda, lançando dardos de sílabas
ao vulto inerte, derrotado, do asmático, suspenso da sua flor
sem vida como um quadro de um grampo.
— Não, não é isso, chiça, o caso é que já mamei muita
bebida, afirmou o tenente-coronel para a mulata gorda das
pipocas, que engolia agora de uma só dentada, sem o ouvir,
uma gigantesca sanduíche de fiambre. Uísque, martini, vodka,
gin, até o álcool das feridas, em Moçambique, veja lá, e nunca
nada me atacou tanto as tripas como este champanhe de
merda.
O soldado continuava a chegar à mesma hora ao armazém
mas os restantes empregados atrasavam-se cada vez mais,
nove, nove e meia, dez, sem que o tio, à secretária, de mãos no
queixo, alheio ao telefone que tocava, lhes ladrasse, do alto da
gaiola de vidro do escritório, impropérios e despedimentos
estimulantes. A camioneta grande, avariada, apodrecia no
meio de uma confusa multidão de trastes, idêntica a uma
gigantesca arca de arte nova com limpa-vidros, as molas
saltavam do forro esventrado dos bancos, alguém quebrara os
mostradores à martelada, os ratos devoravam a napa e os
tapetes de borracha, passeavam os dentes estreitos no rebordo
amolgado das janelas, às onze a contabilista trepava apressada
as escadas de cimento, beijava conjugalmente a testa imóvel
do velho, substituía a flor da jarra, atendia chamadas, anotava
os pedidos, de nariz no papel, na agenda da carteira, bombeava
para a boca aberta do senhor Ilídio o aerossol da asma,
assomava fragorosamente à porta, batia as palmas, e nós íamo-
nos aproximando devagar, rente às paredes fuliginosas e
estragadas, cheias de buracos, de manchas, de riscos, de
apagados palavrões ou insultos ou desenhos a lápis, ouvíamos
as ordens, gritadas num tenso tom exasperado, recebíamos um
canto de jornal com a morada, empilhávamos meia dúzia de
cadeiras, de mesitas, de caixilhos na furgoneta, trepávamos
dificilmente a rampa escorregadia de óleo com os pneus a
deslizarem de lado como pedaços de gelo numa superfície de
metal, e o feroz sol do verão cá fora à nossa espera, a esmagar
as árvores e as casas com os gigantescos sapatos de luz, os
semáforos da cidade, os prédios de azulejos, as estátuas, os
toldos das confeitarias, o velho conduzia com a angulosa raiva
habitual, o mudo, sumido no banco, coçava a barba do queixo
entre nós dois, e o meu tio, que não me saía da cabeça, de
cotovelos apoiados na secretária desfeita, atravessava-nos, sem
nos ver, com o olhar, soprando pela boca aberta um friozinho
anémico de vento.
— Leram a pouca vergonha do jornal?, perguntou a mãe da
Inês, indignada. Que vão dar o dinheiro dos ricos a todos, que
os católicos se vão poder divorciar, que criam partidos
políticos às dúzias. Ó Jaime, você livre-se de me trazer para
casa mais porcarias dessas, ainda por cima com fotografias de
comunistas horrorosos na primeira página.
— Era outra pessoa já, meu capitão, disse o soldado, seria
para sempre outra pessoa, e no fundo era isso, julgo eu, que
me custava mais a aceitar: sentia a falta das zangas dele, das
fúrias dele, daqueles esquisitos ódios sem motivo. Ele
amoleceu, eu amoleci por tabela, o negócio ficou em águas de
bacalhau, acabámos os dois por não passar da cepa torta. E
qualquer dia trucla, chega a minha trombose, desato a mijar-
me na cama e a resmungar palermices, e internam-me num
hospital para emagrecer, para sofrer, para me cobrir de
escarras e de vomitado, para morrer. Importa-se de me passar
o champanhe?
E continuava entretanto a visitar de tempos a tempos a Rua
da Mãe-d’Água, quando o pintor idoso lhe telefonava,
sussurrante como um álamo, para o emprego, todo timidez,
todo mimo, todo requebros, todo meigo vulcão contido de
ternura, ofendidíssimo com o seu silêncio, com o seu não
querer saber, com a sua ausência. A contabilista punha a
cabeça azeda fora da gaiola, berrava aos guinchos Um
cavalheiro para si, eu largava lá do fundo as cartas da sueca,
com mulheres nuas pintadas na outra face, de compridos
cabelos loiros e sapatos de salto alto, a ampola do tecto,
suspensa de uma viga precária junto à clarabóia de vidros
rachados e de moldura torta de ferro, dançava como um
pêndulo revelando e dissolvendo caras, mãos, pilhas de tábuas,
colchões, teias de aranha prateadas, de uma frágil,
inconcebível delicadeza de crochet, batia suavemente com as
costas das mãos na porta aberta do escritório, a dona Emília
somava parcelas numa maquineta, o senhor Ilídio, de olhos
fechados e mãos pousadas na barriga, brincava com os
polegares como os bebés, Nunca o vi assim, pensou o soldado,
nunca o vi tão longe, tão farto de tudo como agora, a mulher
apontou-lhe o aparelho com o dedo, Já devia saber que é
proibido falar ao telefone durante o serviço, e eu, meu capitão,
Está?, e a voz na minha orelha Está?, gostava que passasses
por aqui logo à noite, morro de saudades tuas, bichaneco.
— Com que então éramos quase vizinhos, disse o alferes,
com que então levavas a vida no andar em frente, em casa do
panasca. Deves ter visto o meu carro dezenas de vezes, a
minha roupa a secar dezenas de vezes, não percebo como
nunca nos encontrámos por ali.
— Se vocês reparassem nas caras deles, se vocês ouvissem
as barbaridades que eles prometem, desmaiavam de medo,
insistiu a sogra a refrescar-se, enojada, com o leque de uma
revista de modas. De resto por algum motivo o Salazar, que
não era parvo nenhum e ia à missa, os guardava na prisão. Ou
os meninos querem que eu acredite que os do Governo eram
nazis, que existiam campos de concentração em Portugal? Ó
Jaime se torna a entrar algum jornal na sala saio eu. Agora
escolha.
— Não o encontrava a si nem a ninguém porque tomava
providências, meu alferes, explicou o soldado com um sorriso
de desculpa. Não acendia a luz da entrada, trazia um par de
óculos escuros no casaco, e mal apanhava o campo livre
disparava a correr para a Praça da Alegria. Tinha de ter a
máxima cautela, não é, se a Odete suspeitasse estava feito.
— O padre Manuel, escandalizou-se a senhora do cabelo
roxo, contou-me de fonte segura que os socialistas querem
obrigar as mulheres todas a usar a pílula só para caírem em
pecado mortal, só para se incompatibilizarem com o papa.
Daqui a proibirem os seminários e a Conferência de S. Vicente
de Paula é um passo.
O tinir da campainha a espalhar-se liquidamente,
languidamente no andar, o cheiro de sempre da terebintina, de
bisnagas de óleo, de perfume, de pauzinhos de incenso,
espetados em maçãs, consumindo-se nas cómodas, esteiras
pelo chão, esculturas africanas, telas inacabadas por toda a
parte, reduzidas a manchas coloridas, o pintor, de sandálias e
tronco nu, a afastar os cabelos loiros da testa com os dedos
cobertos de grandes anéis de pacotilha, Andas em maré de
massas, observou a Odete, onde arranjaste dinheiro para o
jantar, para o cinema?, o pintor puxando-o pelo cinto para o
vestíbulo, correndo o trinco da porta, pendurando-se-lhe do
pescoço com os braços cobertos das sardas da velhice,
Descansa que o não roubei, irritou-se o soldado, o odor, as
frases, as pulseiras, os ademanes do tipo enjoavam-no, Bons
olhos te vejam, meu maroto, Que desgraça, lamentou o oficial
de transmissões, não haver pastilhas para a azia da alma.
— A azia da alma, meu tenente, perguntou o soldado, é ter
vontade de enforcar-se?
A Odete não gostava dos filmes de vampiros do Condes
nem dos dramas argentinos do Odéon e arrastava-o,
contrariado, para as salas das Avenidas Novas, onde
projectavam histórias complicadíssimas, incompreensíveis,
italianas ou polacas ou francesas, que o amodorravam sempre
numa tremenda vontade de dormir: mas exaltava-me a
presença imóvel do teu corpo ao meu lado, o cotovelo que de
quando em quando, de propósito ou por acaso, me roçava na
manga, o perfil atento da rapariga, aclarado pelo cone de luz
vindo de uma janelinha do segundo balcão, O que aconteceria
se eu encostasse a perna à tua perna, mas faltava-lhe o ânimo,
faltava-lhe a coragem, arrastava-se no intervalo, de pálpebras
sonolentas, a debruçar-se com ela para as montras de roupa de
criança, de acessórios de automóveis, de relógios, lambia um
sorvete desconsolado, jogava o pauzinho no cinzeiro metálico
com um resto de água no fundo, e assim que estendia os dedos
para a algibeira dos cigarros as pessoas dirigiam-se em bicha,
funebremente, para os seus lugares, levantavam-se, sentavam-
se, levantavam-se, pediam licença, pediam desculpa, tossiam,
cochilavam no escuro, e na tela a incompreensível história
complicada recomeçava as suas peripécias morosas, os actores
discursavam sem parar, as legendas apareciam e desapareciam
sem que eu conseguisse lê-las, remexia-se na cadeira, fungava,
reprimia peidos, procurava uma postura cómoda para sestas
sem fim, a Odete inclinava-se para ele e segredava
Formidável, não é?, Claro que sim, pensava, claro que sim,
respondia, nunca assisti a nada que se comparasse a isto, O
Desiré não está, explicou o pintor, apaixonou-se por um
acordeonista italiano, deixou a roupa, as esculturas, e foi-se
embora, e os dedos a desabotoarem-me a camisa, e os dentes a
morderem-me o peito, Como é que se pode gostar de
pepineiras destas, admirava-se o soldado, de palavrório sem
princípio nem fim, sem pistolas, nem cenas de porrada, sem
gajas boas, nem um único índio para amostra, O preto há-de
voltar, deixe lá, consolou-o o soldado, de quem o antropófago
gosta é de si, e o velho a tangê-lo para o quarto, a correr as
cortinas, a acender uma lamparina avermelhada, mais
pauzinhos de incenso, velas coloridas, Não me interessa o
Desiré, meu pombo rechonchudo, interessas-me tu, a tua pele,
o teu cabelo liso, o teu mangalho grande, saía sempre do
cinema a abrir a boca, a espreguiçar-se, e a Odete, indignada,
Que palerma, que bruto, só te entusiasmas por selvajarias que
não valem um chavo, nunca conheci ninguém com tão pouca
sensibilidade, caramba, descíamos a pé até à paragem do
metropolitano e de repente, de dia ainda, só uma sombrazinha
de nada a escurecer as casas, todos os candeeiros ao mesmo
tempo, trás, todos os anúncios de néon ao mesmo tempo, trás,
jantávamos bife com ovo e batatas fritas na cervejaria,
cuspindo as cascas dos tremoços para a palma surpreendida da
mão como se fossem os dentes da frente a seguir a um murro,
os teus gestos ficavam leves e suaves, os caracóis da cabeça
caíam sobre a gola e apetecia-me tocar-te, afagar-te, apertar-te
contra mim, e em vez de fazer o que realmente desejava,
perguntava Queres sal?, Queres pimenta?, A carne é boa?,
patetices assim, sabe como é, para me distrair da minha
vontade de ti, para te distrair da minha vontade de ti, uma
conversa de pateta, de tolo, e tu a olhares-me quase com
piedade, quase com dó, a sorrir, a troçar por cima dos seios
achatados na camisola de malha, Não descalces as meias nem
os sapatos, pediu o pintor, os sapatos excitam-me, e o corpo
dele pegado ao meu, meu capitão, as nádegas tristes a
esfregarem-se-me na barriga, estendia-me de costas na alcatifa
branca, apertava os queixos, despachava o serviço, mas depois
tinha de aturar as carícias e os lamentos dele meia hora, uma
hora, às vezes mais, debruçado para mim a coçar-me os
testículos, a falar da vida dele, a excitar-me, Porque é que
nunca lês um livro que preste?, perguntou a Odete, porquê só
romances de caubóis?, porquê só jornais de quadradinhos?,
Tão grande outra vez seu abusador, dizia o pintor a chupar-me
a orelha, Tão grande e tão cor-de-rosa para mim, durante o
caminho inteiro para casa eu envergonhadíssimo por ser uma
besta, percebe, envergonhadíssimo de não estudar, a jurar para
mim mesmo Amanhã matriculo-me num externato, e não me
matriculava, Amanhã vou a uma livraria e compro livros, e
não ia, mesmo agora, por exemplo, que sou tesoureiro do
Águias do Paço da Rainha e temos um bibliotecazita num
armário de rede, prefiro as damas, ou o dominó, ou o bilhar, as
janelas acesas, Odete, davam-me uma vontade doida de casar
contigo, de jantar contigo, em pijama, a assistir às notícias da
televisão, de ir para a cama, de palito na boca, a imaginar a
curva lenta dos teus rins, Atrevidote, malandreco, ciciava o
pintor a magoar-lhe os flancos com as unhas, que falta de
respeito pôr-se assim na minha frente, a cabeça do velho
sumia-se-lhe, aos gemidos, entre as coxas, as farripas loiras
roçavam-lhe freneticamente o umbigo, e sempre, como de
costume, ao chegarmos à porta, a Odete Boa noite e
encafuava-se no quarto, eu Boa noite a trotar desiludido
corredor fora a caminho do cubículo, o som de odre mole da
dona Isaura a rebolar-se na cama, a asma passiva do meu tio,
despia-me às apalpadelas sem abrir a luz, esfolava o joelho
num caixote, tropeçava em móveis inesperados, sentava-me a
coxear na cama, e permanecia um século de músculos tensos e
corpo encurvado e atento como um bicho, procurando ouvir o
som da tua tosse ou dos teus passos lá ao longe, no extremo
oposto da casa, cheirar a tua distante presença no silêncio das
trevas, imaginar que te aproximavas descalça, que entravas
sem rumor, quase não tocando as tábuas com os pés, que te
deitavas ao meu lado e permanecíamos os dois, olhando sem
dormir, como no cinema, o rectângulo ou quadrado pequenino
da janela, lívido da fosforescência turva da manhã.
— Meses e meses a sonhar com uma mulher, meu capitão,
disse o soldado a bater com os dedos na toalha ao ritmo da
música, a querer coisas, a inventar coisas, a desesperar: tem
um namorado, não tem um namorado, gosta de mim, não gosta
de mim, quantos colegas de emprego lhe pediram namoro,
quantos amigos já teve, será virgem ou dorme às escondidas
com um tipo casado, um gajo de Mercedes verde alface à
espera dela à saída do externato, pensamentos deste género,
está a topar, que me envenenavam a cabeça, me doíam nos
pulmões, me provocavam gases, me impediam de me distrair,
de andar bem disposto, de me concentrar no trabalho.
Descarregava um piano e aparecia-me o sorriso dela, ouvia os
resmungos do velho a conduzir a camioneta e era a voz da
Odete que eu ouvia, ia ao café e a sua gargalhada soava-me
nas costas, a gozar-me, virava-me de repente, espantadíssimo,
ninguém. Emagreci uma porção de quilos, olheiras, cara de
defunto, rugas, não pegava no sono, o médico da dona Isaura
receitou-me umas injecções de beber para antes do almoço e
do jantar e nem assim, meu capitão, na minha ideia a gente
apaixona-se por uma mulher e começa a apodrecer por dentro.
— Exactamente o que me aconteceu com a Dália, piou a
voz de passarinho molhado do oficial de transmissões, em
equilíbrio no poleiro da cadeira. E ainda por cima a porra é
que se um fulano lá chega é tudo sempre mais prosaico,
sempre pior, as coisas não se passam como se supôs, a vida
principia a desandar, e quando damos por nós, caralho, crac,
escaqueirou-se a loiça, fica-se a olhar os bocados, não há nada
a fazer.
A partir da uma da manhã o pintor começava
invariavelmente a beber: dirigia-se descalço e nu, a dançaricar
nas nádegas moles, ao compartimento atulhado de pincéis, de
telas, de frascos, de bisnagas, de potes, de jornais antigos, de
cavaletes e de latas de tinta, regressava com uma garrafa de
vodka ou de aguarrás na mão, deitava-se de novo na cama,
beijava-o, espojava-se de costas abraçado ao gargalo, e dali a
nada, após uns gargarejos, iniciava um chorrilho ininterrupto
de lamentações, o Desiré era um chulo sequioso de tabaco
americano e de camisas estampadas, um negro ordinário sem
talento nenhum a quem ele se dedicara por simples caridade
cristã e o trocava constantemente pelos paneleiros mais
ranhosos de Lisboa, pelos mais reles filhos da puta da cidade,
um comedor de pessoas sempre a olhar o pequinês com
criminosas intenções de churrasco, só doenças venéreas, para
não ir mais longe, lhe pregara sete, e o soldado Porque não o
deixa?, Porque não vive sozinho?, e o pintor, em prantos, de
maquilhagem a escorrer pelas bochechas, Já não sei passar
sem ele, Abílio, habituei-me, o que é que queres, juro-te que já
não sei passar sem ele, Até os maricas se apaixonam, observou
o tenente-coronel, ultrajado, até os panascas sofrem disso, o
Desiré chegava a demorar-se quinze dias até dar notícias, nem
um telefonema, nem uma carta, nem uma palavrinha sequer,
regressava como se nada fosse, metia a chave à porta, Bonjour,
e eu a perdoá-lo, e eu a recebê-lo, preso à cintura dele já
esquecido de tudo, tonto de reconhecimento, de prazer, de
alegria, e o sacana nas tintas, Abílio, o sacana a rir-se de troça,
o sacana a chupar-me o tutano dos ossos, a pedir-me dinheiro,
Desempenha-me o relógio, tira-me o anel do prego, devo cinco
contos ao Eustáquio, safa-me depressa, o soldado afastava-se
para a ponta oposta da cama empurrado pelo bafo do vinho
que embrulhava as frases, apalpava a alcatifa do chão à
procura da camisa, das cuecas, o pintor calava-se de vez em
quando a fim de soluçar nos lençóis, Ainda me vomita em
cima, pensava eu, ainda me entorna no lombo os restos podres
do almoço, ainda se esquece dos quinhentos escudos do
costume, mas não, meu capitão, lá estava a nota na cómoda a
pedir-me que a metesse na algibeira e me pirasse, as frases do
tipo encavalitavam-se cada vez mais umas nas outras, mal se
compreendiam as sílabas, o sentido, o líquido escorria-lhe da
boca para o queixo, para o pescoço, enquanto eu me vestia à
pressa, sem ruído, as calças, o casaco, a gravata, Um ingrato,
ronronava o pintor, um ingrato sem desculpa, o meu ingrato
querido, os pauzinhos de incenso ardiam já na carne
chamuscada das maçãs, Se não saio para a rua sufoco, pensava
o soldado, isto cheira ao mesmo tempo a taberna e a igreja,
apanhei a nota, enfiei-a no bolso, o pintor tentou sentar-se no
colchão, a garrafa escapou-lhe a rebolar no soalho, Onde é que
vais, queriducho, perguntava-me ele, onde é que vais agora,
mas os olhos fechavam-se-lhe, os braços caíam-lhe, daqui a
nada ressona para aí como uma besta, cerrava devagarzinho a
porta da entrada, tocava no botão do elevador a ajeitar o
colarinho, a apertar melhor o cinto, a batalhar com a fralda da
camisa, o pequinês lambia-lhe à despedida os tornozelos com
o focinho amachucado, e cá fora a fonte, as sombras verdes
das árvores, os cabarés tinhosos da Praça da Alegria, subia o
Conde Redondo acuado pelos chamamentos das putas nas
esquinas, os vestíbulos das pensões de foder exibiam, na
claridade fosca, caracóis de degraus gastos como os dentes dos
mortos, as casas inclinavam-se e torciam-se no escuro, o céu
era uma placa horizontal de vidro a ecoar lugubremente os
sons, o coração na mecha, a respiração cansada, a frontaria de
um prédio dilatava-se e encolhia-se à laia de uma guelra
agónica, recebendo e cuspindo o bafo frio da noite, no
Hospital dos Capuchos, à direita, centenas de doentes tossiam
em uníssono os pulmões cancerosos, que verão tão estranho
este, que veementes e contraditórias notícias nos jornais,
finalmente a Rua da Alameda, finalmente o bairro, finalmente
o beco, os caixotes do lixo nos passeios, a eterna profusão de
cabisbaixos, sarnosos cães vadios farejando as sarjetas, um
derradeiro bêbado regiamente refastelado num degrau, junto
aos taipais da taberna, de chapéu para a nuca, a rir
silenciosamente, de boca aberta, uma gargalhada sem fim,
eram duas, três, quatro horas da manhã, Com o pintor ignorava
sempre quando podia safar-me, quando ficava suficientemente
grosso para desatar a ressonar, ganindo queixas prolixas,
embrulhado nos lençóis e na densa espessura do seu bafo,
esquecido de mim, a luz acesa por baixo da porta da Odete,
uma esquadria de claridade fininha entre a cal e a madeira,
esfreguei as solas no capacho e sem dar por isso, meu capitão,
palavra de honra, rodei a maçaneta de loiça, entrei, voltei a
rodá-la, e fiquei parado, de mãos bambas, à entrada do quarto,
espantado comigo, embaraçadíssimo, à rasca, no meio dos
livros, dos cadernos, dos dossiers, da papelada, das
reproduções de quadros fixadas com percevejos na parede,
tentando desesperadamente não te ver, não te olhar, com medo
da repugnância, da indignação, do desgosto, da fúria, do
infinito desprezo do teu rosto.
— E assim começaste a apodrecer por dentro, meu cabrão,
disse o alferes, e assim começaste a agonizar sem remédio.
Deviam-nos ensinar na escola que nunca se abre uma porta
fechada, principalmente se há uma mulher do outro lado.
— Isso foi na altura da nacionalização dos bancos,
perguntou o tenente-coronel, na altura dos sarilhos da
revolução?
Não, pensou o soldado, mais para trás, uns tempos antes, na
época do mar de rosas do idealismo democrático, connosco
espapaçados, como diria o oficial de transmissões, de
beatitude antifascista, à laia de cadelinhas gordas, românticos,
generosos, conviventes, enquanto os partidos políticos se
preparavam, nas nossas costas, pé ante pé, para se trucidarem
uns aos outros, arreganhando-se mudamente os dentes por
detrás dos sorrisos postiços de cartão, carnívoros, impiedosos,
ferocíssimos, durante a calmaria ainda, durante a doce paz de
maio, junho, julho, durante a doce paz de agosto, ia à praia aos
domingos com os colegas do emprego, o sobrinho da
contabilista inclinava-se para as raparigas na camioneta da
carreira, A menina dá-me licença que lhe faça companhia?, A
menina permite-me que me apresente?, jogavam à bola na
areia, empurravam-se para dentro de água, escondiam a roupa
uns dos outros, de uma ocasião, na Fonte da Telha,
combinaram um encontro para a noite com um grupo de
operárias de uma fábrica de lanifícios, levaram-nas ao baile
dos Bombeiros Voluntários numa sala de primeiro andar por
cima das ambulâncias e dos carros da bomba, mas elas
recusaram-se a ir connosco ao armazém das Mudanças Ilídio,
fazer amor em divãs decrépitos no meio dos ratos e do pó, e
separaram-se zangados, a seguir a uma interminável discussão
numa esquina do Intendente, duas ou três, cheias de rendas, de
folhos, de coqueteria, estavam prestes a aceitar mas uma
mulata baixinha, picada da varíola, recusou-se à última da hora
atacada de escrúpulos inexplicáveis, e acabaram numa casa de
pegas decrépitas da Rua do Mundo a bombarem um após outro
a única criatura disponível, um mastodonte de cabelo ruivo
que nem se deu ao trabalho de desabotoar o soutien, e se
manteve o tempo inteiro gelatinosa e imóvel sem uma única
reptação de ternura, era quase de manhã quando saíram, o
rebordo dos telhados animava-se de uma suspeita de azul,
funcionários da Câmara, de coletes cor de laranja, regavam o
alcatrão, tinha sido uns meses antes, meu tenente-coronel, o
corpo doía-me do sol, os rins doíam-me do sol, os partidos
políticos assaltavam os jornais, crucificavam-se
melifluamente, alfinetavam-se com comunicados,
manifestações e notas, namoravam a tropa, preparavam
subversões para setembro, o presidente da República, de
monóculo e luvas, vociferava para as apáticas multidões
habituais, os grupúsculos de extrema esquerda, eternamente
inquietos, agitavam-se, a mulata pediu uma segunda sanduíche
e as bochechas dela, enormes e elásticas, inchavam-se e
retraíam-se, oleosas, como as das rãs nos charcos. Deve ter
sido no fim de agosto, pensando melhor, umas semanas antes
de o pintor aparecer morto na Cruz Quebrada, perto da
embocadura dos esgotos, a flutuar, disforme, entre
excrementos e detritos, os diários publicaram a notícia,
esqueceram-na no dia seguinte, retomaram-na quando o Desiré
foi preso, acusado de matá-lo não me lembro bem como, uma
facada, uma corda, os dedos no pescoço, andei aflito uns
tempos, medroso de ver chegar ao armazém, ou a casa, ou ao
café, um par de tipos de farda ou à paisana, carrancudos e
irredutíveis, que me empurrassem para a esquadra, me
fotografassem de frente e de perfil com um número no peito,
me enterrassem uma luz nos olhos, me obrigassem a confessar,
à bofetada, dezenas de estupros, de violações, de roubos, de
coisas pavorosas que a Odete leria horrorizada no jornal que o
tio e a irmã escutariam impressionadíssimos na rádio, mas
condenaram o preto a doze anos de cadeia (Os pretos servem
para condenar, berrava o juiz de Lourenço Marques, ou vocês
queriam por acaso que condenássemos brancos?), e ele foi
acalmando aos poucos, reencontrando uma espécie de alegria
no complicado, triste milagre de estar vivo.
— No fundo sentias-te culpado em relação ao maricas,
declarou o oficial de transmissões, culpado de o chular meses
a fio, de te aproveitares dele, de o desprezares. No fundo não
te achavas de bem contigo mesmo.
— E a Odete, perguntou o alferes, não deu por de repente te
desaparecer o bago? (É que essa é uma das poucas coisas,
percebes, avisou o tenente-coronel, que nunca escapa às
mulheres, uma das poucas coisas para que as gajas têm faro.)
Não deu porque acompanhava amiúde os colegas ao Cais do
Sodré, não deu porque sempre se topava um velho disposto a
deslizar umas coroas a troco de uma volta de automóvel por
Monsanto, de uma breve visita a um apartamento de
homossexual solitário, atulhado de um bom gosto barroco e
exasperado, de uma paragenzita no parque de estacionamento
de Montes Claros, com as árvores gigantescas a ramalharem
por cima de uma qualquer calva tímida e voraz. Não deu
porque o ordenado das Mudanças Ilídio era uma merda do
caneco que a contabilista se recusava a esticar, e o que se
ganhava à noite nos urinóis e nos jardins públicos, além de
divertido, dava para umas patuscadas valentes nas leitarias da
Ribeira, jogando socos amigáveis uns aos outros e atirando
piadas aos travestis que se desembaraçavam, ao balcão, das
cabeleiras postiças, para emborcarem à pressa bagaços viris.
Algumas dessas mulheres de barba, tatuadas e cobertas de
cremes, acompanhavam-nos melancolicamente madrugada
fora, mais cerveja, mais vinho, mais saladas de polvo, mais
pipis, e as maquilhagens estalavam como caliça podre à
medida que as horas avançavam, abriam rachas e fendas nas
bochechas e na testa, as tintas cristalizavam no pescoço,
surgiam olheiras de insónia sob as pestanas de corujas
transidas, as vozes engrossavam, os gestos tornavam-se
masculinos e cúmplices, o empregado da leitaria apagava o
néon do tecto, e saíamos, na claridade branca da manhã,
escoltados por aqueles esquisitos animais anfíbios e sem sexo,
empoleirados nas inconcebíveis hastes dos saltos, os quais se
refugiavam em quartos de pensão em Santa Marta ou em
Alcântara, aguardando, nos ninhos das camas de ferro, o
cúmplice regresso do crepúsculo.
— Culpado como o caneco em relação ao maricas, insistia o
oficial de transmissões, a pensares que foi por tua causa que
ele se matou ou que o mataram.
Bom, seria isso e não seria isso, a gente acaba com o tempo
por ganhar amizade às pessoas, meu capitão, alguma estima, e
depois os paneleiros não o enojavam por aí além (Aposto que
até gostavas deles, riu-se o alferes, aposto que arranjaste por lá
a tua paixãozita), conhecia-os às dúzias, novos e velhos, e em
todos eles notara os mesmos frágeis olhos de animais
acossados, a mesma desesperada solidão aflita, se quer saber a
verdade despertavam-lhe mais pena que outra coisa: os
travestis, por exemplo, frequentava vários, um empregado de
café, um estivador, um de boas famílias, filho de um
engenheiro, que queria ser bailarino e se chamava Tó Zé, e os
cubículos onde dormiam despertavam-lhe confusão e dó,
aqueles húmidos compartimentos apertados, com janelinhas de
saguão tão estreitas que mal cabia um braço na moldura, e um
espantoso monte de roupa de homem e de mulher por toda a
parte, vestidos, sapatos, calças, gravatas, uma espécie de
fundas herniárias para achatar e ocultar os testículos e o pénis,
espelhos com lâmpadas à volta como nos camarins dos teatros,
e imensos potes e frascos e bisnagas e ganchos e giletes e
fotografias recortadas de revistas, jogava às damas e às cartas
com eles, escutava-lhes as confidências, os desgostos, as
misérias, via-os barbearem-se e prepararem-se, numa
meticulosidade angustiada, para as suas longas e sinuosas
explorações nocturnas, de esquina em esquina e de boite em
boite, altivos, receosos, oblíquos e trôpegos, ajudava-os a
colocar a cera para os pêlos das pernas entre desabafos e
gritinhos, a enfiar os capacetes das perucas, não se acanhava
de descer com eles à rua, de os amparar nas escadas, de jantar
na sua companhia nas tascas infectas do Intendente, Tão
panasca como os gajos, resmungou o alferes, tão podre de roto
como os gajos, tenho a certeza que de vez em quando te
deitavas de borla com o estivador, ele te ia na peida e gostavas,
Aconteceu-me isso mas foi com o filho do engenheiro, meu
alferes, respondeu o soldado sem se ofender, e não teve
importância, percebe, um acidente, uma tolice, um mero acaso,
estávamos a jogar às cartas, era quase escuro, havia pouca luz
no sótão e imensa roupa pendurada de um fio, vestidos de
vidrilhos, saias curtíssimas, blusas bordadas, ligas, meias, ele
pegou-me na mão, cruzou os dedos nos meus, algumas
falanges prolongavam-se em unhas postiças, algumas não,
fitou-me com as pupilas mais abandonadas e pálidas deste
mundo, sorriu-me um sorriso de súplica e desamparo, eu à
espera com a manilha de trunfo no ar para ganhar a vaza, o
filho do engenheiro pousou as cartas ao contrário na mesa,
correu-me a sedosa palma de freira na bochecha, pisou-me a
unha encravada do pé, calou-me o urro de protesto com um
beijo, injectava parafina no peito para arredondar os seios,
quase não tinha tomates, quase não tinha pila, umas
salienciazitas, uns cabelitos ralos e mais nada, talvez não
acredite mas era praticamente como estar com uma mulher,
palavra, o mesmo cheiro da carne, os mesmos gemidos, os
mesmos gestos, se não se pode utilizar açúcar usam-se
pastilhinhas minúsculas dos diabéticos ou não será assim?, Seu
lula de um corno, insultou-o o alferes, seu filho de uma cabra,
e o soldado, imperturbável, E dali a dez minutos, depois de
abotoar a breguilha, já eu atirava com a manilha e lhe ganhava
o jogo, um vestido de alças, com lantejoulas, roçava-me as
franjas na cara à medida que o céu lá fora se desabitava do
tecto de pombos do costume, ganhava uma terrível
profundidade oca de poço onde os sons tombavam, náufragos,
de costas, sem um ruído sequer, meu capitão, ele dava-me
piedade, entende, assim meio homem meio mulher à laia das
estátuas dos tanques de pedra dos largos, barbudas de limos e
de algas, davam-me piedade aqueles olhos, dava-me piedade
aquele sorriso, nem sempre era por dinheiro, nem sempre por
interesse, por amizade também, por companhia na solidão,
deixei-o empoleirado, a deitar pó no nariz, no bar da Rua das
Pretas onde a noite começava, expandindo-se em ondas
sucessivas a partir das prateleiras das garrafas de rosé para se
espalhar em leque na penumbra das travessas, afogando os
prédios, as chaminés, as janelas, as montras, nos seus
saburrosos rolos espessos, três ou quatro senhores de idade, de
bochechas ávidas, tomavam já posição em torno dos primeiros
anfíbios que se requebravam de ademanes e risinhos, Chau
jóia, gritou-lhe conjugalmente o Tó Zé com a caixinha de pó-
de-arroz em punho, os velhotes recuavam indecisos e o
soldado retraiu-se de vergonha, só me faltava mais esta,
lamentou o tenente-coronel, só me faltava ter tido um rabeta
sob o meu comando, De vergonha, meu capitão, como no
instante em que fechou atrás de si a porta do quarto da Odete,
o sangue lhe parou e deu com ela, em camisa de dormir e
óculos, a ler um livro na cama, no meio das poesias e das
reproduções fixadas nas paredes, havia um rádio pequenino,
de pilhas, destilando música clássica, dessa com violinos,
chatíssima, na mesinha de cabeceira, cadernos inumeráveis,
um pote de loiça repleto de lápis e canetas, blocos de argolas,
nenhum odor, nenhum perfume, uma atmosfera de seriedade
casta nos lençóis engomados, na roupa dobrada na cadeira, no
cabelo apanhado com elásticos, E agora, pensou o soldado, o
que é que eu digo agora, a Odete tirou os óculos, arrumou-os
no interior do livro, a marcar a página, e parecia esperar de
mim, sabe como é, uma justificação qualquer e eu sem
palavras, e eu vazio, e eu a suar, e eu com o coração ora
devagar ora na broa, a tremer de nervoso, Chau jóia, acenaram
as unhas vermelhas do Tó Zé, a minha avó comandava,
impiedosa e benévola, o seu exército de putas, e o soldado
desejou intensamente ver-se no corredor longe de tantos
papéis, de tanta sabedoria, de tanta eclesiástica secura, Vai
desatar aos berros, pensou ele, vai guinchar-me de fúria, vai-
me expulsar daqui a pontapé, pensou nas revistas de caubóis
em cima do caixote, em como a ideia das molas quebradas do
colchão lhe era, nesse momento, deliciosamente agradável,
enfiar-se nos cobertores e escapar dessa forma àqueles
olhinhos minuciosos e opacos que o observavam, o
examinavam, o dissecavam, o esquartejavam, a Odete pousou
o livro no soalho, ao lado dos chinelos, observando-o sempre,
o tio Ilídio tossia através dos tabiques e a sua feroz asma de
peixe invadia, tumultuosa, o quarto, agitava cortinas e papéis,
quis pedir Não te irrites comigo, não me ralhes, mas a voz não
saía, percebe, dos pulmões, os sons encravavam-se-lhe todos
na garganta, virou-se atarantado, encontrou por acaso a
maçaneta, sentia-se trespassado pela curiosidade, ou pela fúria,
ou pela surpresa da Odete, Pirar-me o mais depressa possível,
desejou o soldado, sair a correr, evaporar-me no ar, e tinha já
um pé no corredor, achava-me já quase salvo, quase sereno,
quase livre, o suor secava-me nas costas, os músculos
readquiriam a obediente textura natural, os braços, as pernas, a
cabeça, que sorte, submetiam-se de novo, sussurrou Desculpa,
sussurrou Boa noite, desenhou um molinete vago com as
palmas quando ela, imagine meu capitão, sem que eu
esperasse, sem que eu pedisse, sem que eu quisesse, me
chamou.
6

Mantiveram-no na unidade durante uns dias, atónito e sem


nada que fazer no meio daquela confusão toda que se seguiu
ao golpe, daquele abandalhamento, daquela desordem incrível
dos primeiros tempos (grunhiu ele despenteado, com a ponta
da gravata mergulhada na taça de champanhe), das viaturas
militares que sem cessar chegavam e partiam, roncando
colericamente no cascalho, dos atropelos à disciplina, da falta
de respeito pela hierarquia, dos magotes de soldados de barba
crescida que troçavam dos ademanes do padre, até que veio
uma ordem do Estado-maior a graduar em coronel, imagine a
parvoeira, o aranhiço do Mendes, e a mandar-me apresentar no
Ministério: salas e salas, tapetes, ordenanças, rebuliço, Espere
um bocadinho que o recebem já. Sentou-se numa cadeira
desconfortável assistindo a uma azáfama preocupada de
sargentos, passada meia hora um tenente acenou-lhe de longe
com a mão Faça favor, apontou-lhe um banco corrido, de
madeira, numa antecâmara de tecto altíssimo com florões de
estuque nos cantos, O nosso coronel Ricardo pede ao meu
coronel o obséquio de aguardar cinco minutos, e ele,
surpreendidíssimo, O coronel Ricardo?, mas o outro sumia-se
já, brandindo um maço de papéis, numa portinha oculta por
detrás de um reposteiro cor de rato.
E mais sargentos, e mais alferes, e mais cabos trotando para
aqui e para ali numa rapidez aflita (O coelho da Alice no País
das Maravilhas, pensei eu, multiplicado por dez, por
cinquenta, por cem, por mil, a correr, a dar ao rabo, a consultar
o relógio, a inquietar-se), um general saiu, como o Chapeleiro
Louco, de uma cortina verde, um brigadeiro esfumou-se na
curva de um arco (um valete de baralho do final do livro),
vozes elevavam-se e baixavam-se, telefones, botas viris na
pedra do soalho, o reposteiro cor de rato afastou-se, de novo a
mão e a cara de fuinha do tenente e logo a seguir a careca
sardenta do coronel Ricardo, dividida em duas por um sorriso
enorme, Não me avisaram que estavas aí, homem, anda cá,
mexe-te, entra.
— Ora viva, disse a Dália ao oficial de transmissões. Caxias
fez-te bem, engordaste, que boato nojento esse de a Pide tratar
mal as pessoas. (E ele fechou os olhos e lembrou-se, como
num sonho, de Caxias, de Peniche, do som de roupa esfregada
do mar no escuro da noite, lá em baixo, a roer a areia com os
teimosos dentes moles da espuma, das luzes, muito ao fundo,
dos barcos, dos reflexos brilhantes e negros da água. Não se
recordava das celas, nem dos corredores, nem dos guardas,
nem dos companheiros de cadeia, nem dos tipos ferozes dos
interrogatórios, de assassinos, inexpressivos olhinhos
minúsculos de polvo, curvando-se e batendo: recordava-se do
rumor das ondas, dos gemidos das ondas, do cheiro
adivinhado, mais que sentido, das ondas, dos pássaros brancos
da manhã e dos pássaros castanhos da tarde poisados nas
escarpas, da forma como as nuvens se estiravam, alaranjadas,
numa preguiça de mulher que dorme, recordava-se do mar de
Caxias, do mar de Peniche, de acordar de madrugada com um
gosto húmido na boca, um sabor de lona molhada, de tábuas
ferrugentas, de coisas de naufrágio que se lhe enrolavam,
salgadas, na boca. É, respondeu ele à Dália enquanto os
pássaros brancos, os pássaros castanhos se erguiam todos ao
mesmo tempo, silenciosamente, no interior do seu crânio,
subindo a pino na direcção do sol, engordei, fez-me bem, tive
umas férias óptimas, que maçada esta história da revolução,
não achas?)
O coronel Ricardo, sempre a sorrir, aplicou-lhe palmadinhas
amigáveis, paternais, nas costas, instalou-se a uma majestosa
secretária sem fim (Uma secretária de ministro, pensou o
tenente-coronel, uma secretária de imperador, de torcidos e
tampo polido, com dois telefones, um cavalo empinado de
bronze, uma pasta de mata-borrão emoldurada a cabedal, um
candeeiro de pergamóide num canto) e uniu as pontas dos
dedos numa lentidão clerical. Cornucópias de estuque
tombavam, barrocas, do tecto, um magro céu esquálido
embaciava as janelas enormes:
— Espero que não tenhas levado a sério a conversa que
tivemos no dia do derrube do fascismo, declarou ele a observar
interessadíssimo o brilho redondo da aliança. Como calculas
era óbvio que estava a experimentar os teus sentimentos
democráticos.
(Tantos pássaros, admirou-se o oficial de transmissões, subo
as escadas da casa e encontro-os a grasnar, a bater as asas nas
rochas, a limparem as penas com o bico, a deslocarem-se aos
pulinhos, de pedra em pedra, nos galhos de outono das patas,
espiando, esfomeados, os caranguejos da vazante. Abro o
armário da roupa e um bando de gaivotas solta-se dos bolsos
dos casacos, invade as paredes, desaparece de roldão, corredor
fora, a caminho da rua, vou ao quarto de banho onde o vento
do equinócio muge nas torneiras, a louça do lavatório, do
autoclismo, do bidé, cintila escamas de água à minha frente, e
o quadrado do espelho, repleto de azulejos e das minhas
órbitas enormes, adquire de súbito a incomensurável
proximidade do horizonte. Deito-me e as molas oscilam
brandas como um casco ancorado, com a lanterna da cabeceira
a vogar sobre as ondas imóveis dos lençóis. Ainda bem que
me prenderam, confessou ele à Dália mostrando-lhe a cicatriz
do maxilar partido, nem imaginas as lembranças agradáveis
que trouxe de Caxias.)
— Claro que se estava com o ministro e os generais,
continuou o coronel Ricardo com desenvoltura, exibindo o
enxame de pintas avermelhadas das mãos, era para controlar
melhor os movimentos dos partidários do Governo, para os
transmitir às nossas tropas, para os anular se possível à
nascença através de umas contra-ordenzitas oportunas. E aqui
para nós alguma coisa se fez nesse sentido: tu por exemplo,
que me conheces há vinte anos, aposto que percebeste logo a
minha ideia e colaboraste admiravelmente.
— De modo, disse o alferes, que lhe pagaram a perspicácia
dando-lhe um pontapé no cu do regimento para fora.
— Passados cinco dias, precisou o tenente-coronel a servir-
se a medo do champanhe. Devem ter gasto todo este tempo a
decidir O que é que vamos fazer com este gajo.
Não era apenas o céu que se avistava das grandes janelas do
gabinete e do seu cretone patriarcal mas o rio também,
igualmente fosco, igualmente sujo, igualmente pardo, da cor
do estuque do tecto e dos seus exuberantes cestos de fruta,
cachos de uvas, maçãs, peras, bananas, estriados por uma teia
milimétrica de fissuras e de rachas, o rio, o vaivém dos navios
entre as margens, a estátua ao centro da praça, um relógio
redondo de estação na frontaria de uma casa, os degraus que
desciam vagarosamente para a água numa demora de afago.
Um major bateu à porta, entrou com uma pasta obesa, o
coronel Ricardo ergueu as sobrancelhas numa resignação
cómica, assinou meia dúzia de documentos que o outro lhe
estendia, esperou a desembrulhar um rebuçado peitoral que a
porta se fechasse de novo e o reposteiro se aquietasse, e
dobrou-se para a frente num tom de confidência, de segredo,
alargando o sorriso:
— Apesar do que eu tenho dito e repetido aos membros da
Junta Militar, que és mais que de confiança, que estás do nosso
lado, que sempre odiaste a Ditadura, os tipos, que é que
queres, sem que eu entenda porquê, fecham-se em copas,
olham-me de esguelha, hesitam, acabaram por graduar,
calcula-me, a cavalgadura do Mendes, parece que por
exigência dos capitãezecos, e meteram-no à testa da unidade
contra a minha opinião, contra a minha voz, contra os meus
pedidos. Que as tuas atitudes foram duvidosas, que não
colaboraste efectivamente no golpe, que se é verdade que
bateste o pé ao general Mendonça também é verdade que não
ajudaste os rapazes, que quando contactado adiaste sempre a
resposta, argumentos idiotas deste género, sei lá, razões
estúpidas, coisas sem consistência nenhuma. Inclusivamente
insinuaram, vê-me só a paranóia destes cretinos, que depois de
desligares o telefone ao secretário de Estado adormeceste no
teu gabinete no meio dos subordinados e do capelão, que
assistias a tudo com olhos de boi sonâmbulo,
desinteressadíssimo, indiferente. Os sacristas da Marinha
queriam passar-te à reserva sem mais nem menos, eu aí impus-
me, disse Alto, se passam à reserva o Esteves passam-me à
reserva a mim, e exigi (o coronel Ricardo, inofensivo,
redondinho, pequenino, escarlate de indignação, às punhadas
furibundas na mesa perante um círculo de guerreiros rendidos)
que te nomeassem meu adjunto aqui na repartição de oficiais:
Vocês graduam-me em brigadeiro e eu comprometo-me a
conduzir o homem para o bom caminho. Isto, é evidente, por
um periodozito transitório, enquanto não te atribuem um
regimento ou te promovem. Com os saneamentos que se
preparam, sabes lá, haverá lugares de general para dar e
vender. E os gajos, acagaçados, não tiveram outro remédio
senão concordar comigo.
Um dos telefones da secretária desatou a balir, o coronel
Ricardo levantou o aparelho, disse Sim?, e ficou escutando, a
grunhir monossílabos ocasionais, numa careta concentrada que
lhe convergia as feições, em remoinhos de saliências, de
sinais, de pêlos e de pregas, para o ralo fundo do nariz: era
tudo grande demais para ele naquela sala, os óleos escuros em
molduras de talha, os reposteiros impressionantes, as cadeiras
de veludo gasto, a solene atmosfera de audiência papal. Tudo
grande demais para ti, pobre diabo, para as tuas explicações
prolixas, para a tua minúscula sacanicezinha, para as tuas
ambiçõezecas de merda.
— Em que estás a pensar?, perguntou o coronel Ricardo
abandonando o telefone. Estes revolucionários matam-me de
trabalho, vais-me ser utilíssimo aqui. Por vontade deles, sabes
como é, todos os oficiais superiores iam à viola, temos de
ceder nalguns casos para ganhar espaço de manobra para os
restantes. Saneamentos, graduações, promoções, aí tens o tipo
de chatices que te esperam. Consultas as folhas de serviço,
elaboras um memorando, formulas o teu parecerzinho,
discutimos os dois, em conjunto, a decisão a tomar, eu levo o
que a gente resolveu lá acima e os artolas que mandem o que
muito bem entenderem, não temos nada com isso. Já pus os
tomates na braseira por ti, não os vou enfiar lá por mais
ninguém.
— Mas que amigalhaço do caraças o meu tenente-coronel
arranjou, disse o oficial de transmissões com um sorrisinho
ácido. Veja lá se eu consegui quem se sacrificasse por mim: se
não fosse a revolução ainda a esta hora andava a ver o mar
pela janela.
— Não só mais gordo, insistia a Dália, mais adulto. E
lembras-me o Trotsky, com essa barbicha iluminada de
condutor de massas.
O coronel Ricardo atendeu outra chamada, desligou,
acendeu um cigarro (Com um desses isqueiros de prata,
imaginei eu, que se recebem ao fim de vinte e cinco anos de
martírio conjugal, de dilaceração mútua, de cruel ódio
resignado), recostou-se para trás a examinar com satisfação o
fumo, voltou a procurá-lo com as gelatinosas pupilas lilases de
toupeira:
— Começas amanhã de manhã às nove e meia, há para aí
dezenas de chatices pendentes. E depois quanto mais generais
e brigadeiros caírem mais aumentam as tuas hipóteses de
trepar. Com um bocado de esperteza e de sorte, um jeito aqui,
um jeito acolá, uns tantos velhinhos caquéticos na rua, que mal
faz, ganhas as estrelas antes do fim do ano. Estás três furos
atrás de mim para seres promovido, não é? Olha, a partir da
semana que vem já mas entregam: fácil, hã?
Grande demais para ti e grande demais para mim, pensou o
tenente-coronel, sinto-me mal com estes luxos, mãe: as três
assoalhadas da Graça, uma messe para almoçar e jantar e o
cinema aos sábados chegam-me e sobejam-me, como me
desenrascaria eu a comandar uma região militar, a conversar
com embaixadores, com senhoras finas, com pessoal
importante, a oferecer beberetes e ceias? O coronel Ricardo
levantou-se, ele levantou-se também, de dedos bambos, à
espera: o ruivo contornou jovialmente a praia de mogno da
secretária e espetou-lhe o indicador sardento no umbigo:
— O major Fontes e o tenente Cardoso têm instruções
minhas para te ajudarem no que for necessário: a voz agora
óssea, bicuda, autoritária, despida das tenras inflexões
fraternas de há momentos. Arranjámos-te um gabinete
próximo deste, vens a despacho comigo ao meio-dia. Claro
que nem coloco a hipótese de não aceitares o lugar.
Desembrulhou estrepitosamente um novo rebuçado peitoral,
agarrou-o com força pelo braço: a manapulazinha gorda
aparentava-se a um sapo, a uma lagarta pintalgada, a um bicho
repelente e viscoso poisado no tecido grosseiro, cor de caca,
do blusão, e o tenente-coronel desejou intensamente sacudir do
cotovelo aquele animalejo estranho, decerto provido de
ventosas que atravessavam a roupa, lhe mordiam a carne e os
tendões, sugavam devagar, implacáveis e tenazes, a água
espessa do meu sangue. A calva do coronel Ricardo, eriçada
de pelinhos avermelhados e brancos, cintilava, o sorriso tornou
a aumentar e uma fieira de dentes postiços, horrivelmente
perfeitos, surgiu do interior da boca à laia de uma obscena
floração de plástico.
— Daqui para a frente não entres sem bater, pede-me
autorização para fumar e tenta habituar-te a tratar-me por meu
brigadeiro. Aparentemente são formalidadezinhas sem
importância mas temos de começar por qualquer ponta a repor
um pouco de disciplina nesta gaita.
O major Fontes afastou-se para o deixar passar, cerrou com
delicadeza a porta atrás de si, e designou-lhe com o queixo um
cubículo esconso: duas mesas, uma máquina de escrever
antiquada coberta de panos fúnebres, armários de rede
atulhados de livros e papéis, o prego onde estivera o retrato do
almirante porcino a aguardar, ferrugento, a fotografia do
presidente do futuro. Uma claridade moribunda soltava-se
tristemente das cortinas, e no Arsenal da Marinha, ao lado, um
sargento de polainas brancas substituía as sentinelas:
— O nosso coronel Ricardo escolheu-lhe pessoalmente esta
sala, meu coronel. Expliquei-lhe que há outras maiores que
estão vagas mas ele insiste que o senhor gosta de trabalhar
num sítio sossegado, num sítio tranquilo, que se o arrancam de
um buraco destes ninguém o atura, fica com humor de cão.
O Arsenal da Marinha e a seguir ao Arsenal da Marinha, em
vez do rio, casas, lojecas, um parque de estacionamento,
árvores raquíticas, um pedaço de largo, semáforos que a
distancia atenuava: Ainda não acabou de se vingar de mim,
pensou o tenente-coronel, ainda não me humilhou
suficientemente, enquanto não me foder de todo não descansa.
— O coronel Ricardo, perguntou de súbito o alferes, não é
aquele general que apareceu morto há uns anos, meio podre,
dentro de um automóvel em Sesimbra?
Não, era primo desse, do que se suicidou, mas para o caso,
aliás, tanto fazia, acabou no hospital, cheio de tubos e de
balões de soro, ligado a uma montanha de aparelhos: deu-lhe
um enfarte durante uma parada militar, as tropas a desfilarem e
ele todo torcido no estrado, arrancando as condecorações e os
botões do peito, aos berros, doido de dores, com os colegas a
segurarem-lhe os braços e as pernas, a desapertarem-lhe o
colarinho, a aplicarem-lhe palmadas aflitas nas bochechas.
— Realmente não é grande coisa, desculpou-se o major
Fontes a observar as paredes lascadas, o tecto lascado, os
caixilhos lascados da janela, a Lisboa melancólica e pobre que
se alongava sem graça na direcção da Ribeira numa trôpega
fiada de telhados desiguais. Eu fiz notar isso mesmo ao nosso
coronel Ricardo, que havia outros gabinetes, outras soluções,
que o podíamos, sei lá, trocar com os sargentos-ajudantes, e
ele que não, que não, que não, que é assim que o meu coronel
quer, que conhece de ginjeira os seus hábitos, que isto,
modesto, até lhe traz à memória a casa da sua mãe em Cheias,
que se sentiria deslocado numa sala diferente. Enfim, se me dá
licença vou mandar trazer-lhe alguns processos.
— Se o pode ver?, perguntou uma senhora de bata,
entrincheirada atrás da meia-lua de um balcão. (Cheirava a
remédio, a silêncio, a cochichos, a doença, vultos oblíquos
escorregavam no soalho encerado.) A hora das visitas é das
três às quatro, tem de esperar um niquinho ali dentro.
Cheias mentira porém era igual, ou não é verdade que os
bairros humildes se parecem todos, Marvila, Chelas, Buraca,
Paiã, Olivais, Moscavide, Benfica, os mesmos edifícios, os
mesmos jardinzitos agónicos, a mesma sujidade, os mesmos
cães vadios, os mesmos fragmentos de cartazes desbotados nas
paredes? Claro que não havia elevador, claro que não havia
espaço, claro que tínhamos de caminhar de viés no meio de
um confuso emaranhado de mesas, cadeiras, tremós, objectos
de verga, retratos, bonecos de conchas ou de barro que
tremiam de sezões quando se puxava com mais força o
autoclismo, prateleiras forradas de naperonzinhos de papel.
Claro que os vizinhos eram soldados da Guarda Republicana,
fiéis de armazém, contabilistas reformados, um empregado de
café que escrevia versos e ganhara o segundo prémio de
soneto nos Jogos Florais da Academia Estudantil e Recreativa
os Oito Unidos de Lisboa, claro que os homens vestiam
pijamas de riscas ao voltarem do trabalho, as telefonias se
esforçavam por berrar mais alto do que o choro e os protestos
e os uivos das crianças, cheiros díspares de comida se
misturavam e dissolviam numa humidade pegadiça. E no
entanto, percebe, não julgue que apesar do desconforto, e da
falta de dinheiro, e das cantorias dos bêbedos, aos domingos à
noite, na taberna ao lado da loja dos caixões, a minha vida,
nessa época, não era boa. Era boa: conforme a minha mãe
dizia, o céu protege os parvos como nós.
Levou a manhã trancado no cubículo, junto da máquina de
escrever pré-histórica, a anotar dossiers, a folhear cadernetas, a
sublinhar a lápis vermelho palavras, frases, parágrafos inteiros,
a redigir, de língua ao canto da boca como se fumasse um
pedaço mole de polvo, páginas e páginas de papel timbrado do
Ministério do Exército, que um furriel de unhas compridas
veio buscar às onze horas e lhe devolveu, dactilografadas, já à
porta do gabinete, um pouco antes do meio-dia. Enquanto se
dirigia para o escritório do coronel Ricardo, com o som dos
sapatos a ecoar no mármore do chão (deviam ser de mármore
aqueles losangos esbranquiçados, percorridos por veiazinhas
azuis), observou vagamente o que escrevera e assaltou-o a
evidência incómoda de ter segregado uma porção de idiotices
sem nexo, de inutilidades pomposas que o outro jogaria com
desdém no cesto de verga destinado aos cagalhões mentais dos
seus súbditos. A senhora de bata, de telefone encaixado como
um violino entre o pescoço e o ombro, chamou-o através do
vidro, e o tenente-coronel esqueceu-se da revista brasileira
cheia de banhistas quase nuas, de políticos de óculos escuros e
de jogadores de futebol, e aproximou-se da ferradura de
fórmica do balcão:
— São três e cinco (um sorriso coquete, um dente de oiro,
uma voz pretensiosa e irónica) no caso de preferir o seu amigo
aos jornais.
E numa entoação repentinamente profissional, compondo o
cabelo com a palma adejante da mão:
— General Armando Ricardo, enfarte do miocárdio, quarto
doze: ao cimo das escadas, à direita.
— Para primeiro dia não está mal, concedeu o coronel
Ricardo a examinar as folhas com os olhinhos rápidos. Mas é
necessário menos benevolência e mais agressividade para
defender com eficácia a democracia, para manter intactos os
objectivos da revolução: em nove oficiais duvidosos só
propões o saneamento de um, e ainda por cima um tenentezeco
inofensivo, que não empata a promoção de ninguém. Assim
não vamos lá, Artur: passa-me no mínimo noventa por cento
dos oficiais superiores à reserva, eram esses cabrões quem
segurava o regime. Dá-me os pareceres que eu carrego-os aqui
e ali e convenço os nossos capitãezinhos de fraldas com
manias de Guevara: são um bocado esquivos, percebes, mas
correndo-lhes a mão pela garupa faz-se deles o que se quer.
O tenente-coronel trepou os degraus do hospital sentindo
que a recepcionista de bata lhe observava os movimentos e o
corte do fato, lhe avaliava criticamente o preço da roupa.
Cruzou-se no patamar com uma mulher que chorava,
amparada a um rapaz muito mais novo do que ela (filho?,
genro?, parente?), os apliques da parede, acesos, difundiam em
torno um clima triste de igreja, os rostos das enfermeiras e das
criadas afiguravam-se-lhe desanimados e chuvosos.
Corredores compridos, portas numeradas, odor de álcool,
botijas de oxigénio, com uma torneira e um mostrador no topo,
encostadas a um canto. Quarto cinco, quarto seis, quarto sete,
quarto oito, quarto nove, cinzeiros de metal atarraxados às
paredes, e por detrás de algumas portas murmúrios abafados,
conversas, sons indistintos, água que corria.
— O nosso brigadeiro Ricardo não o aborreceu muito, meu
coronel?, perguntou o major Fontes a sorrir sem maldade. Se
isto dependesse só dele reformava por decreto todos os oficiais
do mundo.
Quarto doze: girou o manípulo cromado, entrou, e lá estava
o corpo gorducho numa cama de ferro, a cabeça ruiva, de
farripas em desordem, inscrustada no travesseiro como uma
obturação num dente, um frasco de soro, suspenso de um
grampo, a gotejar para o braço, o pijama aberto e o peito
povoado de ventosas e de fios, que desapareciam numa
espécie de televisor de caixa metálica em cujo écran azul
escuro vibravam, intermitentemente, salvas de ondazinhas
cintilantes: Como tu amareleceste, pensou o tenente-coronel,
como tu envelheceste, meu cabrão. E imaginou-o estendido
numa mesa de autópsia, rígido, lívido, completamente nu, com
um taco de madeira a sustentar-lhe a nuca, enquanto um
médico de avental de borracha se aproximava de faca em
punho, erguia a mão, e rasgava o ventre do general numa
lentidão dolorosa de arado. O tenente-coronel fechou os olhos
o mais depressa que pôde para não ver a gelatina das tripas
derramar-se no tampo de pedra, os coágulos de sangue, a
espumazinha translúcida que borbulhava sob a anémona roxa
do fígado. Havia outros cadáveres noutras mesas, o do major
Fontes, o do tenente Cardoso, o meu, uma janela de vidros
foscos, um aroma de dentista que picava nas pálpebras,
empregados de fato-macaco lavando o chão com compridos
esfregões de pano. Quantos anos teria a senhora da bata?
Quarenta, quarenta e cinco, quarenta e sete, seria solteira,
casada, viúva, como se chamaria? Sobrancelhas depiladas,
verniz nas unhas, madeixas coloridas: em contrapartida, que
merda, os dedos da mulher-a-dias eram quadrados, rugosos,
masculinos, o tronco, excessivamente espesso, desprovido de
graça, enormes pés de camponesa moviam-se no Antárctico
dos lençóis. O general Ricardo mirou-o a custo, de boca
aberta, respirando com dificuldade na almofada, uma sombra
de sorriso desarrumou-lhe, por segundos, as gengivas, a mão
livre caminhou um pouco, como um caranguejo, no rebordo da
colcha, imobilizou-se com a pinça do polegar no ar, os
risquinhos do televisor continuavam, impassíveis, a sua
esquisita marcha luminosa. Aposto que quarenta e sete, aposto
que de boas famílias, aposto que viúva, tanto sarcasmo dá
cabo de um marido num instante: o médico cortava agora as
costelas com um instrumento que se aparentava a uma tesoura
de podar, e distinguiam-se os casulos gémeos, cinzentos, dos
pulmões, o fruto decomposto do coração embrulhado num
invólucro de celofane róseo, membranas que um canivete
feroz dilacerava.
— Boa tarde Ricardo, disse ele às pupilas moribundas,
embaciadas de cansaço ou de terror, e o polegar do tipo
estremeceu um tudo-nada, a maçã-de-adão pulou-lhe no
pescoço, um malmequerzinho de saliva floriu no ângulo dos
beiços.
— O mar, admirou-se a Dália, que história é essa do mar?
— De coronel para cima, ordenou o coronel Ricardo com
energia, inventa-me argumentos sólidos para uma limpeza
completa, tirando meia dúzia de gajos apagados, é óbvio, a fim
de proteger as aparências. Para além de prestarmos um serviço
inestimável à revolução, aqui entre nós é a nossa grande
oportunidade, Artur.
— Devo ter estudado em pouco tempo para cima de
quinhentos ou seiscentos processos, grunhiu o tenente-coronel
a apalpar cautelosamente a bexiga: este caralho de champanhe
dá-me cabo dos rins, palavra. Não existe um único tropa cuja
vida inteirinha eu não conheça, acerca do qual não tenha
desfiado memorandos, pareceres, relatórios, que o Ricardo
transformava depois, sempre que podia, em propostas de
passagem à reserva, abrindo devagar caminho, com paciência
de escaravelho, para um posto de quatro estrelas para ele.
Porque era isso, entende, a única coisa que de facto o
interessava: ser general, comandar uma região, assistir a
comemorações, desfiles, juramentos de bandeira, do topo de
um palanque engalanado. E com a minha ajuda, foda-se,
conseguiu-o em menos de um ano.
— Quantos fuzilou hoje, meu coronel?, perguntou o major
Fontes numa gargalhadinha ansiosa. Ainda não me saneou a
mim?
— Quer o meu tenente-coronel dizer que a revolução foi
isto?, espantou-se o soldado. Quer dizer que a revolução eram
os trutas a engolirem-se uns aos outros, à bulha, a ver quem se
amanhava melhor?
Não propriamente a revolução, pensou ele, mas os
bastidores, os camarins do golpe, os coronéis, os brigadeiros e
os generais de que os capitães se socorreram, a partir de
determinada altura, a fim de legitimar a origem bastarda da
democracia, a fim de tranquilizar a inquietação dos
capitalistas, dos empresários, dos emigrantes e amansar os
Estados Unidos e a Europa, assegurando-lhes que não haveria
Cubas na península, barbudos tipos cataclísmicos, de farda de
cotim, a fumarem charuto e a plantarem por toda a parte cana
de açúcar e bustos de Lenine. Não a revolução nem os que
fizeram a revolução mas os vorazes micróbios cancerosos que
dela se alimentavam e em torno dela se moviam, partidos
políticos, jogos de influências, ódios pessoais, as insaciáveis
ambiçõezinhas dos frustrados: quero ser marechal, quero ser
rico, quero ser ministro, quero um barco, uma casa com
piscina, uma televisão a cores, uma amante cara, quero vinte
mil criaturas a aplaudirem-me, agitando entusiasticamente
cartazes e bandeiras, quero lixar os outros, quero esmigalhar
os outros, quero enrabar os outros, quero ficar sozinho,
heróico e de bronze, no cimo vertiginoso do pedestal. E afinal,
chiça, miseravelmente na cama, cheio de tubos e de fios,
jazendo num hospitalzeco qualquer, a ofegar num pânico
silencioso de cão que se esvai, de mão sardenta coxeando,
como um lavagante aleijado, nas franjas da colcha, e evaporar-
se de urina, de diarreia, de hálitos pestilentos e de suor
malcheiroso, no desalinho dos lençóis.
— Aviso-te que não estou a gostar mesmo nada disto, Artur,
ameaçou o coronel Ricardo a riscar furiosamente os meus
pareceres, os meus memorandos, os meus relatórios, a
emendar nas margens, a cortar frases inteiras, a sublinhar
passagens. Deste modo não só não chegamos a lado nenhum
como deixamos uma data de generais fascistas a rirem-se para
aí à nossa custa. (Um cacilheiro entrou com o sol pelas
cortinas da janela, estremecendo os florões de estuque do
tecto.) Arranja-te como quiseres, descobre, espiolha, afunda-te
no lixo e arruma-me de vez esta gajada porque se a revolução
naufraga os filhos da puta caem-nos em cima como hienas.
Remexia-se, gaguejava, indignava-se, punha-se de súbito
em pé brandindo as páginas dactilografadas, devastava-me
com os róseos olhitos ansiosos, rebolava de mãos nos bolsos
pelo gabinete papal, mugindo, resmungando, rosnando,
ladrando, vociferando, repentinamente patriótico,
repentinamente socialista, repentinamente antiburguês,
repentinamente preocupado com os altos desígnios da Nação,
repentinamente disposto, se necessário, a carregar sozinho nos
ombros com oitenta e nove mil quilómetros quadrados de
campanários, silêncio e esquecimento.
— Não apenas o mar, explicou o oficial de transmissões à
Dália, encostado a um poster enorme repleto de agressivos
camponeses de foice em riste, clamando mudamente A
Internacional: também os pássaros, as escarpas, os tons
transparentes da tarde, os arbustos e as arvorezinhas das
rochas que o vento reduzia à textura calcinada dos ramos, os
barcos a tossirem o seu fumozito exausto na direcção da foz.
Como não tinha muito que fazer dedicava-me a contá-los:
cheguei a vinte e sete numa tarde.
O doente pareceu reconhecê-lo através das sucessivas
camadas de neblina de uma distância infinita, as ondazinhas
no televisor aceleraram-se, a ponta da língua surgiu a tremer
dos beiços tão secos como a terra do Sudão, Vai dizer-me
qualquer coisa, pensou o tenente-coronel debruçado para ele,
vai conversar comigo: encostou quase o nariz ao ruivo,
sacudiu-lhe o ombro e sentiu na palma um inerte pudim
redondo de carne que oscilava e amolecia: o brigadeiro
Ricardo estacou, torcido de cólera, à sua frente, à medida que
o cacilheiro se afastava, na atmosfera rarefeita de fumo, até se
confundir com o perfil acinzentado do Barreiro e os folhos
gordos, engomados, das cortinas.
— A democracia é o assunto mais sério que conheço, Artur,
já vi que fiz mal em ter-te defendido, em mexer-me como um
maluco para que não te tramassem a carreira: com estes teus
autos de caca prejudicas-te a ti, a mim, a Portugal inteiro.
(Agora era um navio mais pequeno, hesitante, de pesca, com
uma ou duas minúsculas silhuetas no convés, que embatia,
cego, contra os vidros, numa insistência teimosa, que
procurava em vão uma frincha da madeira para entrar, que
acabava por diminuir, sobre os automóveis e as camionetas da
praça, num vagaroso desânimo de asmático.) Basta uns tantos
destes fulanos saírem da carroça para eu receber as minhas
estrelas para o mês que vem.
— Ricardo, chamou o tenente-coronel enfiando o cone da
boca na orelha peluda do ruivo, semelhante a um búzio
encarquilhado e surdo sem qualquer baixa-mar dentro.
Ricardo, meu corno, sou eu, o Artur, chegou a minha vez de te
enrabar.
— Por muito que o meu tenente-coronel adoçasse os
relatórios, disse o oficial de transmissões a pescar-lhe a
gravata da taça de champanhe, houve uma data de gajos
passados à reserva num instante. Eu estava lá, eu vi, vinham-
nos meter cunhas a nós e aos sargentos, confundidos,
perplexos, nervosíssimos.
Apareciam durante a tarde, à civil, avelhentados, de ombros
curvos, com os bolsos cheios de estojos de condecorações e os
diplomas dos louvores enrolados nos sovacos, teimavam em
ser recebidos pelo ministro, pelo general, pelo brigadeiro, pelo
coronel, pelo major, por algum dos invisíveis capitães do
golpe, Tenho um nome a defender, uma carreira, ainda há dois
meses me atribuíram esta medalha, veja, e abriam os estojos
em estalidos de mola, e mostravam pedaços de metal que
luziam no veludo azul, ou verde, ou castanho, ou vermelho,
Sou apenas um soldado, nunca apoiei o regime, por favor faça
seguir esta petição, estas folhas de papel selado, esta carta,
entregue-a hoje mesmo ao senhor ministro, ao senhor general,
ao senhor brigadeiro, ao senhor coronel, ao senhor major, há-
de haver de certeza um engano qualquer em qualquer ponto,
repare-me na injustiça disto tudo, não, a sério, sou eu que lhe
peço, leia a primeira página pelo menos e vai ver, vinte e três
anos de serviço puramente militar, sem castigos, quanto às
comissões em África, caramba, éramos obrigados a aceitar,
nunca matei pretos, só queria trazer os homens inteirinhos de
volta mas as minas, mas as emboscadas, mas os morteiros, de
tempos a tempos lá me ficava um sem perna, de tempos a
tempos uma viatura estilhaçava-se no ar, agora colaborações
com o regime é que não, agora organizações fascistas é que
não, agora Legião, agora Mocidade, agora Milícias é que não,
viva o golpe de Estado libertador de 25 de Abril, convidaram-
me várias vezes e respondi sempre Santa paciência sou
democrata batam a outra porta ora que porra, e agora, meu
amigo, sem aviso, sem motivo, sem razão, pagam-me deste
modo, publicam o meu nome nos jornais, empurram-me
indecentemente para a lama, toma lá um pontapé no cu e põe-
te a andar, pira-te, desaparece, não precisamos de ti, como se
eu fosse um cão tinhoso, entende, uma alma danada, como se
eu tivesse lepra, ou lêndeas, ou uma gaita qualquer que se
pegasse, apoiavam as mãos espalmadas nas secretárias dos
sargentos, rodopiavam de indignação e de pavor, tombavam
nas cadeiras a enxugar a testa com o lenço, a endireitar a
gravata para ocupar os dedos, a quase soluçarem de pânico,
Sou general, caramba, não me podem tratar como um monte
de merda que caralho, os sargentos recebiam com indiferença
as petições, as cartas, os protestos, Descanse que segue
amanhã meu general, sim, mando entregar a quem de direito,
meu general, O mar de Peniche, explicava o oficial de
transmissões à Dália, o mar de Peniche a adormecer e a
acordar na noite, a adormecer-me e a acordar-me no interior de
um monótono, fugidio casulo de murmúrios, o gosto ácido da
espuma no gosto sem gosto da saliva, a boca cheia de mar
como a dos náufragos na praia, Sempre respeitei a classe de
sargentos, sabia?, tenho imensos amigos entre os subalternos,
damo-nos às mil maravilhas, nunca tivemos problemas, se não
acredita pergunte ao seu camarada Cosme, ao seu camarada
Rocha, ao seu camarada Marques, faça-me lá o jeito, caneco,
se me reintegrarem pode contar comigo, entregue
pessoalmente estas fotocópias, este articulado, estes papéis,
Ricardo, sussurrou o tenente-coronel, Ricardo, meu sacrista,
que gozo do camandro ver-te estoirar, a boca do ruivo
gorducho borbulhou na almofada, o nevoeiro dos olhos
dissipou-se, Ainda bem que me estás a ouvir, Ricardo, ainda
bem que sabes que sou eu, as ondas do televisor aceleravam-
se, espasmos cintilantes soluçavam ao longo do vidro convexo
do écran, as gotas de soro pingavam devagarinho no braço,
sumindo-se na veia através de um tubo de plástico preso à pele
com tiras de adesivo cor-de-rosa, Deves ter pés de ave
marinha, Dália, pensou o oficial de transmissões, compridos e
ossudos, de longas unhas grossas, pés de caminhar nas rochas,
de galgar os penedos, pés de pássaro branco, de pássaro
castanho de penugem do peito desarrumada pelo vento, pés
raspando os meus pés sobre as dunas da cama, movendo-se
leves, poisando oblíquos nos azulejos da retrete, indo e vindo
no quarto acanhado, afastando-se e aproximando-se,
cartilagíneos, numa rapidez desajeitada, evitando seixos de
sapatos, seixos de chinelos, dormindo ao meu lado, quietos, no
colchão, estreitos e escamosos e duros, coçando com o
calcanhar a barriga da perna, percorrendo-me a crista da tíbia,
até aos joelhos, numa ao mesmo tempo ausente e feroz carícia
carnívora, pés dentro de botas, de galochas, de meias que lhes
ocultam os tendões salientes, a pele morena, o relevo das
juntas das falanges, dos músculos dos tornozelos, do
calhauzinho do peróneo, pés de levantar voo, ao fim da tarde,
após um breve trote aflito na areia, na direcção de um buraco
na costa de onde espreitar a noite com redondas e fixas pupilas
luminosas, pés para os meus beijos, Dália, para preencher com
a minha língua o intervalo dos teus dedos, para esfregar o
nariz ao longo do espesso rebordo da tua carne, te morder, te
lamber, te acariciar a cova dos joelhos, procurar com o queixo
o delta dos teus pêlos, a vigorosa vibração das coxas, a áspera,
tumefacta ferida molhada da vagina, pés para trepar umbigo
acima, peito acima, pescoço acima até ao de súbito estagnado,
musgoso, verde silêncio da boca, pés nos meus flancos, nos
meus rins, nas minhas nádegas, entrelaçados sobre o meu
dorso ansioso, os generais retiravam-se desalentadíssimos,
esperançados, magoados, reticentes, hesitavam à porta (Vão
tentar dar-nos dinheiro, querem e têm receio de nos dar
dinheiro), de bolsos inchados de condecorações, de pasta de
louvores encaixada no sovaco, acabavam por se afastar
corredor fora num decrescendo patético de solas, os sargentos
recomeçavam a escrever à máquina na remansosa preguiça
habitual, o general Ricardo, agora completamente desperto,
fitava aterrorizado e incrédulo o tenente-coronel que lhe
descolava devagar os adesivos do braço, O mar de Caxias,
disse o oficial de transmissões à Dália, é meio mar meio rio,
cheira a retrete, a esgotos, a vómitos, a cadáveres podres, ao
cocó das gaivotas, de penas sujas, em bando na muralha,
cheira a casas humildes, a sovaco, a comida fria, a pratos por
lavar, puxou o tubo de soro do braço e o líquido amarelo ficou
gotejando na alcatifa, de pé ao lado da cama, imperturbável,
imóvel, muito direito, fazendo a continência, o tenente-coronel
sorria quase amistoso para o doente que procurava em vão, de
desesperada boca aberta, alcançar com os dedos moles o botão
da campainha, os risos fosforescentes do écran transformaram-
se em descargas de espasmos irregulares, em súbitas vibrações
incandescentes, uma lâmpada principiou a pulsar no ângulo
superior esquerdo do aparelho, um besouro metálico zunia, a
mão do general Ricardo achatou-se, sem força, no lençol, os
olhos recuaram, já sem incredulidade e sem terror, no côncavo
das órbitas, as salvas e os riscos do televisor desvaneceram-se,
a claridade da lâmpada era agora contínua e mais forte, um
tranquilo traço horizontal atravessava o vidro, Já não tem
medo de mim, pensou o tenente-coronel, já não tem nenhum
medo do que eu lhe possa fazer: ao sair do quarto tornou a
ouvir o besouro a ondular no corredor, Mas que chiça de ideia,
meu tenente-coronel, murmurou o alferes, mas que lembrança
a sua, cruzou-se com um médico jovem, de estetoscópio em
punho, que trotava apressadíssimo para o número doze
seguido por duas enfermeiras de touca à banda e seringa na
mão, desceu tranquilamente, a assobiar baixinho, as escadas
que uma empregada de cócoras encerava, deteve-se um
instante no átrio vazio a examinar um quadro de moldura de
pinho que explicava, por intermédio de desenhos terríveis de
pulmões carbonosos e de pessoas magrinhas a tossir, os
inconvenientes do tabaco, e escutou a voz zombeteira da
senhora da bata, defendida pela muralha do balcão, cercada de
telefones e registos (Perto de cinquenta anos, de certeza, há-de
ter perto de cinquenta anos, pelo menos) que lhe perguntava,
no tom ironicamente afectuoso de há pouco, Então o seu
amigo está melhor?
— Muito melhor, respondeu ele a empurrar o guarda-vento
(uns degraus, um quadrado maltratado de relva, canteiros, o
trânsito impaciente da Avenida logo abaixo, semáforos que
mudavam de cor numa prontidão frouxa). Tão bem que até
fizemos as pazes, veja lá.
7

— Deixa o mar em paz, pediu a Dália afastando ondas e


pássaros com as costas da mão. Agora a sério, meu Trotsky do
caraças, aguentaste-te bem no balanço?
— Eu sei por mim que é fodido não ser capaz de declarar a
uma mulher que se está apaixonado por ela, disse o soldado.
A sede da Organização funcionava num primeiro andar
decrépito do Bairro Alto, perto do Largo do Camões, de
frontaria desbotada coberta de pinturas rupestres de foices,
martelos, operários carrancudos diante de guindastes e de
chaminés, de braço dado com ceifeiras e pescadores descalços,
de barretes e camisas aos quadrados, que o próximo inverno
dissolveria por completo numa pasta sem nexo de cores. Ao
lado da porta afixavam-se, numa vitrine, prolixos insultos em
maiúsculas à burguesia no poder e ao canto de sereia
entorpecedor das massas do revisionismo soviético, e lá
dentro, em velhas salas desconfortáveis e geladas, com
cadeiras e mesas em ruínas, posters, citações de Marx, Lenine
e Ho Chi Min, bandeiras vermelhas, um busto de gesso de
Engels (parecido com a minha avó até na barba) numa peanha
de ripas, beatas, cinza, pedaços de papel, uma sujidade
indefinida pelo chão, um bar minúsculo onde serviam café,
laranjadas e sanduíches de queijo a criaturas assexuadas e
feias, que palitavam os dentes com as unhas e espetavam o
mindinho a fim de segurar nas chávenas de plástico.
— Estás a ver que no fundo no fundo és tão burguês como
eu, perguntou o alferes, que os mesmos pequenos,
insignificantes pormenores te horrorizam? A única coisa que
nos separa é que a condição de classe não me traz
culpabilidade nenhuma a mim, nem me sinto na obrigação de
pagar as favas por isso.
Eu, em contrapartida, pensou com amargura o oficial de
transmissões, continuei por muito tempo dividido entre a
obscura, dolorida tristeza de não ter nascido carpinteiro, ou
mecânico, ou canalizador, e o desejo impossível de conciliar
esse remorso com a minha atávica aversão pelos maus modos
à mesa, pelos tempos trocados dos verbos, pelos cabelos com
caspa e pelo primarismo dogmático dos autoproclamados
condutores dos proletários, repetindo convictamente,
incansavelmente, apaixonadamente, verdades de há cem anos
atrás, com as mesmas inflexões sinuosas e ardentes, nos
núcleos da Organização, nas reuniões universitárias, nos
Primeiros de Maio do Rossio, com dois ou três estandartes,
dois ou três cartazes, duas ou três dezenas de incondicionais
inimigos do sabonete e do pente. Semanas, meses, anos a
acreditar, a querer acreditar, a fingir que acreditava, a impingir
no Ministério folhas volantes, prospectos e doutrinas confusas,
a lutar contra a pétrea surdez dos sargentos idosos, e à noite,
no bolorento andar do Camões, por cima das leitarias, dos
chulos, das putas ranhosas e dos vendedores de droga, os
intermináveis, tormentosos conciliábulos com os camaradas do
Comité Central que a figura estreitinha do Olavo, na outra
ponta da mesa, presidia, para decidir uma proposta de greve
nos Metalúrgicos que se não faria nunca, um ataque ao
presidente da República que ninguém secundaria, um
levantamento popular que deixaria o país inteiro indiferente, a
embaciar-se na modorra habitual, anestesiado pelas falsas
promessas desviacionistas da social-democracia. Semanas,
meses, anos a esperar em vão a Longa Marcha, a tremer
sempre que um tipo de gabardine (um polícia? um inspector?
um secreta?) se aproximava de mim, a esperar armas da
Argélia e da Tunísia, a fabricar bombas de relógio com
despertadores avariados, para acabar a conversar dos pássaros
e a beber café no Bairro Alto, junto aos claros, interrogativos,
impacientes olhos redondos da Dália.
— Eu, um burguês?, indignou-se o oficial de transmissões, a
encaixar com o anelar a cangalha dos óculos. Pelo menos dei o
corpo ao manifesto, pelo menos foderam-me o coiro em
Caxias.
— O Ricardo teve um enterro de primeira: camélias,
espingardas, o capelão-chefe em pessoa rezando-lhe missas,
informou o tenente-coronel enxugando a ponta da gravata na
toalha. Não houve tropa que não comparecesse pelo menos
para se assegurar de que não era truque do gajo, pelo menos
para ter a certeza de que ele estoirara de vez.
E o oficial de transmissões imaginou o caixão aberto na
igreja, um par de mãos sardentas, picadas pelas agulhas dos
médicos, cruzadas na barriga da farda, a família pálida de
sono, abatida como os pombos na aurora, e centenas de velhos
militares de gravata preta, exultantemente compungidos,
boiando em torno do cadáver na claridade de basalto da
manhã, idênticos a gordos peixes vacilantes à volta de um
esquisito coral de fitas e de flores: o Olavo aproximou-se na
sua apressada marchazinha curta de insecto, e tocou-lhe com
dois dedos pontiagudos no braço:
— Os camaradas estão à vossa espera para começar a
reunião, anunciou na sua monótona vozita grave, eternamente
confidencial: Parece que se preparam grandes coisas.
— E afinal também burguês, lamentou-se ironicamente o
alferes, e afinal tão elitista e decadente como eu. Expliquem-
me lá que projecto de mudança os comunistas trazem,
expliquem-me lá em que é que se pode ainda acreditar?
Uma mesa grande, gente sentada à roda, mais bandeiras,
mais estandartes, mais cartazes, um Lenine enrugado e
façanhudo numa cómoda roxa, a servir de pisa-papéis a uma
montanha de prospectos: eles, os feios, os das unhas
compridas, os do dedo espetado, os do mau gosto exuberante e
impositivo, acreditavam nessa época, continuam talvez ainda a
acreditar: Seria por isso que me sentia menos do que os outros
quando me instalava ao seu lado, seria por inveja, por ciúme,
por vergonha das minhas reticências, das minhas hesitações,
das minhas dúvidas, que me entretinha a descobrir-lhes
ridículos, pontos fracos, erros de gramática, hálitos de cebola,
pontos negros, perdigotos? Para me vingar da minha oculta
inferioridade, para me vingar dos meus tabus idiotas?
— Que culpa tens tu, perguntou o alferes, de não ter tido
fome em miúdo, que culpa tens tu de ter sido criado entre
santinhos de barro? Abre a boca e fecha os olhos, meu
gandulo: com umas taças de champanhe isso passa-te, está
para se descobrir uma doença que o vinho não cure.
As madeixas grisalhas do Lopes levantaram-se a apagar um
cigarro sem filtro no pires de alumínio que lhe servia de
cinzeiro, e a retirar com o polegar e o indicador pedacinhos de
tabaco da língua:
— Camaradas (o rumor das conversas diminuiu e cessou, as
cabeças rodaram na direcção da voz, alguém tossiu no
silêncio, a abafar a boca com o lenço). Camaradas, chegaram-
nos informações seguras de que se cozinha para breve uma
intentona reaccionária contra as gloriosas conquistas da classe
operária (Quais conquistas?, interrogou-se surpreendido o
oficial de transmissões a brincar com um fósforo apagado).
Sabemos que a Direita conspira nos quartéis, sabemos que os
latifundiários e os capitalistas arregimentam dinheiro para o
golpe, sabemos inclusive os nomes de alguns trutas do antigo
regime implicados na conjura. Cabe à Organização Marxista
Leninista Maoísta Portuguesa, na sua qualidade de única e
legítima vanguarda dos oprimidos, impedir, através dos meios
que aqui hoje decidirmos, que o cancro do fascismo, injectado
por criminosos, descontentes e oportunistas, mine o organismo
agora são, embora vulnerável e jovem, da democracia lusitana.
Pomposos discursos assim, pensou ele, tiradas assim,
frenéticas discussões que se prolongavam noite fora, fanhosas
de café e de cigarros, até os pombos regressarem ao Largo de
Camões nos estremunhados bandos trôpegos da madrugada. A
Dália adormecia na cadeira, um velhote sempre de palito na
boca e placa a descolar-se, que fora operário vidreiro,
ressonava na poltrona gasta, de molas desiguais, a qual
espetava nas nádegas das pessoas imprevistos, lancinantes
saca-rolhas de arame, os perfis das casas engelhavam-se de
frio. O Lopes, arrebatado, despenteadíssimo, olheirento,
aconselhava a todos os militantes, sem distinção de postos ou
cargos, um enérgico redobrar de vigilância revolucionária e o
uso preventivo de matracas. E depois, sabe como é, disse-me
ele a abrir e a fechar as hastes de plástico, a imitar tartaruga,
dos óculos, as coisas desataram a precipitar-se numa rapidez
incrível, o general demitiu-se a seguir a um dia inteiro de
manifestações e barricadas, nomearam um novo presidente, o
Exército, indeciso, cindia-se, os furriéis da repartição
conversavam de política por cima das máquinas de escrever
esquecidas, a Esmeralda queixava-se da subida do preço do
peixe, do preço da carne, do preço da fruta, do preço do pão, a
tia, alarmadíssima, multiplicava-se em persignações e terços
nos inumeráveis oratórios do corredor, os camaradas
começaram a apanhar trolha, não se sabia de quem, quando
tentavam colar cartazes nas esquinas da Baixa, Isto só vai a
coice, resmungava o Olavo, isto só vai com umas
bombazinhas meus meninos, ainda se principiaram a fabricar
algumas, ainda se tentaram comprar metralhadoras em
Marrocos mas os Chineses e os Líbios não enviavam dólares,
os tipos encarregados das contas lamentavam-se
constantemente, o jornal policopiado deixou de publicar-se por
falta de verba, e uma tarde o Olavo empurrou-o para o vão de
uma janela, Temos meia dúzia de espingardas de guerra
enterradas no Alentejo, se não assaltamos um banco estamos
fritos.
— Caramba, alarmou-se o soldado, assaltar um banco sem
mais nem menos, meu tenente?
Um banco grande não, faltam-nos os meios, esclareceu o
Olavo, uma sucursalzita em Algés, perto do mercado,
encaixada entre uma mercearia e uma loja de móveis, três ou
quatro empregados no máximo, nenhum polícia nas
redondezas, a Dália meteu atestado no Ministério, levantava-se
de manhã cedo, levava os dias a espiar, através das vitrines, o
movimento dos funcionários e dos clientes, no início do mês
uma silenciosa, paciente fila de reformados aguardava
molemente a pensão, estendendo-se pelo passeio fora quase
até à esquina da Avenida dos Bombeiros e das suas carretas
reluzentes e vermelhas. No local onde deitaram abaixo a praça
de touros existia agora um vazio circular e poeirento, que as
companhias ambulantes de circo ocupavam em agosto das
suas tendas famélicas, casinhas baixas e cúbicos prédios
modernos em torno, a paragem das camionetas e mais adiante
o telheiro e o cais comprido da estação, uma língua de praia,
barbuda de ervas, percorrida por manadas cabisbaixas de cães,
e os frisos paralelos, de espuma amarela, do rio, depositando
na areia o seu pobre e erodido lixo sem mistério. O Olavo
reunia-se todas as semanas, para combinar os pormenores da
operação, com a Dália, o oficial de transmissões, um
violoncelista magríssimo, sempre de cachecol, de dedos
aracnídeos e aspecto infinitamente inofensivo e doce, a
assobiar de contínuo músicas estranhas, e o antigo operário
vidreiro que ressonava, amontoado na poltrona, ao fim de
cinco minutos de conversa. Desdobravam-se mapas com setas,
cruzes e bolas de várias cores, Este quadradinho aqui é o
banco, estes círculos os locais de maior movimento nas
redondezas, o supermercado, o talho, a escola, as setas as
saídas possíveis, as cruzes as posições de cada um de nós, E o
carro?, perguntou o violoncelista a estalar as falanges, vamos
precisar de um carro para sair de lá, Não era o dinheiro dos
ricos que vocês iam roubar, disse acusadoramente o tenente-
coronel, eram as economias dos reformados, que caralho de
comunismo é esse, Fana-se um automóvel em Pedrouços, o
que não falta são automóveis nesta terra, explicou o Olavo, a
propósito algum de vocês sabe guiar?, Os ricos que pagassem
a crise, meu tenente-coronel, respondeu com desdém o oficial
de transmissões, os ricos que entrassem com a massa para
quem a não tinha, o importante na altura era erguer o moral da
classe operária, era animá-la com prospectos, com folhetos,
com jornais, dar-lhes a conhecer que havia quem lutava por
eles e lhes indicava o caminho, fazer comícios, sessões de
esclarecimento, palestras, marchas da paz, atirar-lhes à cara
com a sanguessuga do capitalismo, a Dália, o oficial de
transmissões, o violoncelista e o velho entreolharam-se
embaraçados, ninguém conduzira nunca, ninguém pegara
jamais num volante, Mas que merda de militantes são vocês,
indignou-se o Olavo dando um murro na mesa, que não
percebem seja o que for de nada? O Lopes, consultado, apagou
o cigarro sem filtro no pratinho de folha atulhado de beatas,
emudeceu numa estratégica meditação sem fim, acabou por
empurrar as mechas grisalhas para trás num impetuoso gesto
inspirado de maestro, e ordenou Paga-se aqui ao camarada
Pires, ele que se inscreva numa escola e tome meia dúzia de
lições, o velho ainda protestou Eu? Eu? a bater com o denso
indicador incrédulo no peito, não queria aceitar, não podia,
recusava-se, não se ia entender de certeza com a alavanca das
mudanças, o pisca-pisca, os pedais, a placa viajava-lhe, solta,
pela boca em pânico, mas o Lopes repreendeu-o com firmeza e
severidade, Que é feito dessa disciplina revolucionária,
camarada, que é feito dessa devoção incondicional à causa
sagrada do campesinato, e o vidreiro ficou a mastigar o palito
em silêncio e a fitar-nos com os olhos mais aterrorizados deste
mundo, Se eu atropelo alguém, caraças, se eu malho com os
cornos contra um muro? No dia seguinte vimo-lo passar a dez
à hora, ao lado de um instrutor de bigodinho,
desesperadamente agarrado ao guiador de um Volkswagen
azul como um náufrago a uma bóia de cortiça: falhou por um
triz uma carroça de fruta, subiu e desceu o passeio umas três
vezes, sumiu-se a buzinar e a acender as luzes todas na Rua do
Loreto, flutuando, desgovernado, nas calhas. Porém com a
continuação das aulas o camarada Pires entusiasmava-se,
puxava na sede as mangas contrariadas das pessoas, Já faço
inversões de marcha que é uma beleza, Já arrumo a
caranguejola às arrecuas, Hoje ultrapassei uma camioneta nos
Jerónimos. Saía mais cedo para estudar o código, impingia aos
outros intermináveis lições sobre sinais de trânsito, Este só
com a vaca é a avisar que há animais, Este encarnado e azul é
a proibir de estacionar, Vocês sabem o que é a prioridade da
direita?, chegou a sugerir, numa reunião do Comité Central,
que se comprassem cinco Volkswagens azuis para melhorar a
imagem da Organização, para mostrar aos saloios dos
portugueses que os maoístas não são a pelintrice que eles
supõem (Vocês não acreditam, foda-se, mas é o caminho certo
para ganhar as eleições burguesas, quero lá saber que nem para
patins haja dinheiro), a Dália, compenetradíssima, pediu uma
licença sem vencimento a fim de prosseguir o reconhecimento
do banco, agora acompanhada do Olavo, os mapas com cruzes
e bolinhas e setas multiplicavam-se, o plano ganhava forma a
pouco e pouco, Tu ficas aqui, tu ficas ali, nós os dois
entramos, com essa cara de parvo quem é que se atreve a
desconfiar de ti, os restantes camaradas, meu capitão, falavam-
nos com deferência, com respeito, o Lopes anunciou no
Secretariado Permanente, a apagar com energia o cigarro, A
brigada de choque entrará em acção muito em breve, só lhes
comunico por enquanto que o capital vai sofrer um duro golpe
nos arredores de Lisboa, mas todos conheciam os detalhes,
todos tinham visto os mapas, todos adiantavam alternativas,
sugestões, ideias, Porque não uma drogaria, as drogarias são
mais fáceis, porque não usar os métodos dos Bascos e
reivindicar o assassínio de um professor primário, ou de uma
freira, ou de um fiscal dos impostos, matar guardas-nocturnos,
por exemplo, é canja, são quase sempre marrecos e os que não
são marrecos sofrem da vesícula, um padeiro é que é, caralho,
de manhã cedo não há ninguém na rua, chega-se-lhe por detrás
com uma faca e o homem fica logo enterrado em croissants.
Estavam a abrir a Feira Popular, a acabar à martelada a
montagem dos restaurantes e dos carrosséis, das barraquinhas
de refrescos, dos Castelos Fantasmas, da Montanha Russa, de
aparelhagens divertidíssimas que abanavam e sacudiam as
pessoas até as obrigarem, brancas como a cal e a gemer de
susto, a vomitar as tripas no chão amparadas à solicitude da
família, e o oficial de transmissões acordava com os escapes
das motos do Poço da Morte a rodopiarem-lhe no travesseiro
como vespas tenazes, libertando-o de insuportáveis pesadelos
de tiros e de reformados aos gritos. A bengala da tia picava o
corredor, a Esmeralda protestava, contra os bicos de papagaio,
na cozinha (Não te desvies meu sacana, rosnou o alferes, conta
lá como foi), e ele pensava, na sala de jantar, durante o café e
as torradas, Quantos coronéis passados à reserva vou eu aturar
hoje, quantos brigadeiros, quantos generais, quantos filhos da
puta obesos e carecas, o duche frio, o sabor nauseoso da pasta
de dentes na boca, o metropolitano para o Rossio e depois
descer a Baixa a pé até ao Cais das Colunas, de mãos nos
bolsos e gola do casaco levantada (Tenho de comprar um
sobretudo e umas luvas), à medida que tipos ensonados abriam
os taipais das lojas e desenrolavam os toldos, alfaiates,
relojoeiros, ourivesarias, agências de viagens repletas de
cartazes exóticos e de retratos de crepúsculos tropicais, Deixa
os crepúsculos em paz, insistia o alferes, filado no pescoço da
loira, o que é que se passou depois, e a seguir o rio, os
cacilheiros, o nevoeiro nauseabundo e pegajoso a cheirar a
gasóleo, a marisco podre e a cadáver de gaivota que subia da
água, barquinhos minúsculos de pesca, o céu amarrotado, o rei
de bronze no seu trote imóvel, os compridos, intermináveis,
geométricos edifícios de claustros com os seus vendedores de
cautelas e os seus cegos alarmantes, de olhos vagos e terríveis,
Deixe-se de lugares-comuns, ordenou o tenente-coronel, e
acabe-me essa história imbecil que já não o posso ouvir. Até
que o Olavo, meu capitão, convocou com grandes ares
misteriosos a brigada de choque, trancou-se com eles numa
saleta pequenina sem nenhum Lenine de bronze nem de gesso,
só um Mao Tsé Tung benigno, infinitamente gordo, a sorrir no
armário, uma ardósia escolar atarraxada à parede e montes de
traços coloridos a riscar em todas as direcções o fundo preto.
O violoncelista, que era alérgico ao giz, principiou a espirrar e
a assoar-se, de olhos vermelhos, congestionadíssimo, Que
porra de antifascistas estes melros me saíram, lamentou-se
logo o Olavo, vocês deviam largar a política, trazer o retrato
do Papa na carteira e aderir pelo menos à democracia cristã,
Isto já passa, isto já passa, não é nada, prometia o artista,
sufocado, ouvia-se o som de uma bola de pingue-pongue para
um lado e para o outro no andar de cima ou a cair toc toc toc
toctoctoctoctoctoctoctoc no chão, vozes agudas na rua, música
de telefonia, discussões, Amanhã sem falta todos aqui às dez
horas, vamos arriscar a vida, camaradas, em prol da classe
operária, o Olavo apontou teatralmente a gargalhada do chinês
obeso e acrescentou com pompa Sigamos corajosamente o
exemplo ímpar do Grande Timoneiro, Mas porquê essa
linguagem, surpreendeu-se o soldado, porquê tantas palavras
difíceis numa frase só, Não consegui dormir a noite inteira,
queixou-se o oficial de transmissões, levei o tempo todo,
quietinho, a escutar os roncos da Esmeralda, os assobios da
minha tia e os estalos dos móveis, as grinaldas de luzes da
Feira iam e vinham, empurradas pelo vento, no gelatinoso
interior do meu cansaço, os altifalantes jogavam baforadas de
sílabas metálicas nos búzios dos ouvidos, a cama era uma
vagoneta desconfortável da Montanha Russa, que trambolhava
vertiginosamente, sem parar, na direcção da aurora, levantou-
se cedíssimo, abriu a torneira do chuveiro, cuidou que o
chamavam mas era a voz da tia a conversar, indignada, com os
fantasmas dos seus sonhos, Bem podias rapar esse bigode,
Eduardo, ciciava ela, fico com a pele da cara numa lástima por
tua causa, a água que corria em leque do tecto doeu-lhe nas
unhas e nos ossos, contraiu-lhe o esófago, ensaboou-se à
pressa, enxugou-se a tiritar, o tubo de luz, que os azulejos
fracturavam, emagrecia as feições e arava rugas novas nas
bochechas, Que tromba a minha, pensou o oficial de
transmissões, pareço um defunto com cinco anos de jazigo de
família no lombo, cortou-se no queixo ao fazer a barba,
estancou o sangue com um pedaço de papel higiénico e só ao
pentear-se, já depois de vestido, deu nota da espuma seca de
sabão pendurada das patilhas, engoliu uma chávena de café de
cevada e comeu um ou dois biscoitos da lata de bolachas com
senhoras de bandós na tampa, postas de bacalhau nadavam
num alguidar de plástico em cima de um banco de madeira, Se
calhar logo à tarde preparam aqui mesmo a ceia do meu
velório rodeadas pela fraternidade desolada das vizinhas,
vinho do Porto, licores, frango, croquetes espetados em
palitos, o Lopes redigiria um sentido editorial para a Bandeira
Rubra, A Polícia Assassinou-O Sem Piedade Quando Lutava
Pelos Seus Irmãos Desprotegidos, e, nos jornais capitalistas,
Perigoso Meliante Abatido Pelas Forças Da Lei, ou Cuidado
Portugueses: Terroristas Em Lisboa, ou ainda Importante
Quantidade De Armamento De Fabrico Soviético Encontrado
Na Viatura Dos Gatunos: Crimes Políticos Em Perspectiva?,
Moscovo Desmente Formalmente Implicação No Tiroteio De
Que Resultaram Ferimentos Graves Em Dois Corajosos
Agentes Da Autoridade E Numa Dona de Casa Exemplar,
desceu as escadas às sete e meia da manhã e foi andando a pé
nas avenidas quase desertas da cidade, olhando os edifícios, as
árvores, as montras sem vida, os automóveis estacionados, de
flancos baços humedecidos pela noite, tudo preto, cinzento,
branco e enevoado, sem nenhuma cor, sem nenhum reflexo,
sem nenhum brilho, até que por alturas do Saldanha a
tangerina verde pálida do sol veio entalar-se num intervalo de
telhados, os vendedores de revistas espalhavam fotografias e
títulos no passeio, tonalidades de aguarela animaram
levemente as fachadas e os rostos, A esta hora o despertador
da Dália, o despertador do violoncelista, o despertador do
Olavo, o despertador do velho começaram a tocar, corpos
gordurosos, gestos gordurosos, remelas e chinelos, Quero
acordar contigo, Dália, quero respirar-te de manhã, quero
beber o teu sono e a carne esponjosa dos teus ombros, quero
pastar o suor de mansas ervas do teu peito, quero agonizar em
ti a doce, suave morte, povoada de grandes olhos tristes, dos
bichos que não falam, quero soprar-te pássaros do equinócio
no pescoço, apanhou o metropolitano no Marquês, sumindo-se
em frementes e ruidosas catacumbas de cimento num roldão
de empregados de escritório, dactilógrafas, contínuos, criados
de hotel, enfermeiras e pedintes, emergiu à superfície nos
Restauradores à laia de uma foca sem fôlego, enormes cartazes
de cinema, cafés ainda com as cadeiras sobre as mesas, de que
varriam a serradura e os escarros e as cascas e os fósforos e as
beatas para a rua, subiu de elevador até ao Bairro Alto e as
pernas tremiam-lhe, e os braços tremiam-me, e a boca tremia-
lhe, Mas que nervoso que eu estou, caraças, ao décimo banco
já isto é canja para mim, já os caixas me entregam o dinheiro
todo só de me verem, o sangue dançava-lhe no peito impulsos
desiguais, continuou rente às paredes, Não me vá dar algum
desmaio, na direcção do inclinado, irregular, sem forma
definida, Largo do Camões, dos seus reformados que voavam
e dos seus pombos de bengala curvados nos bancos de pedra,
sentiu uma impressão esquisita, uma espécie de dor no lado
esquerdo, espalmou a mão no casaco e logo se enfureceu
consigo próprio, Que mariquice de merda, foda-se, não é nada,
lembrou-se fugidiamente de África, das minas à nossa espera
na picada, dos caixões à nossa espera na arrecadação, e porém
do que se recordava melhor era dos cães vadios, nojentos,
magríssimos, resignados, estendidos sem comer junto ao pau
da bandeira, das orelhas caídas, da gelatina das pupilas, das
feridas e das cicatrizes da garupa que enxames de moscas de
asas cruzadas perseguiam, recordava-se dos soslaios
pavorosamente, assustadoramente humanos dos cães, das suas
cabeças, dos seus pénis peludos e das suas patas humanas, dos
seus humanos troncos de vértebras e costelas salientes,
recordava-se do medo, da aceitação, da açucarada humildade
humana dos seus olhos, não se recordava de bombardeamentos
nem de emboscadas nem de corpos retalhados nem da testa a
estilhaçar de paludismo, recordava-se apenas da solitária
melancolia sem remédio dos cães, porque o que me ficou da
guerra, meu capitão, é um bando de cães vadios no fundo
atormentado da memória. O oficial de transmissões virou à
direita e à esquerda nas ruelas varicosas do Bairro Alto, nos
aneurismas dos becos, nos inchaços das escadinhas, enquanto
os reformados, lá em cima, vogavam de chapéu e gravata por
cima dos algerozes e das cornijas dos telhados: Quais são os
reformados, perguntou-se ele, e quais são os pombos se todos
se alimentam das migalhas do vento?, e tranquilizava-se a
pouco e pouco mas ao ver ao longe o prédio gasto da sede da
Organização os joelhos amoleceram-lhe, o estômago deu uma
cambalhota na barriga e cerrou a boca com força a fim de não
vomitar os biscoitos e a cevada. Esperou, encostado à porta, a
fumar cigarro após cigarro (Como os pais nas maternidades,
riu-se o alferes, exactamente como os pais nas maternidades)
que o Olavo chegasse, encontrasse a chave entre os trocos dos
bolsos e o precedesse nos degraus até à sala devastada e suja
das reuniões do Comité Central, onde flutuava, apesar das
janelas abertas, o eterno, insuportável odor dos cigarros do
Lopes, transbordando por todo o lado dos pratinhos de folha.
A Dália apareceu com um penteado diferente, óculos escuros e
um sorrisinho tenebroso e discreto de Mata Hari, Quem é que
tu julgas que és, disse-lhe o Olavo, agastado, não estamos aqui
para brincar aos Al Capones, e no entanto mal rodou as costas
deu com o violoncelista disfarçado de judeu de sinagoga, com
uma hirsuta barba de estopa, um crucifixo de latão no umbigo,
uma batina de padre e botas de carneira, e ficou de boca aberta
a mirá-lo, verde de cólera, sem conseguir falar, Os comunistas
são sempre malucos, meu tenente, interessou-se o soldado,
sempre chanfrados dos miolos?, Vocês andam a gozar
comigo?, rugiu o Olavo, em bicos de pés, dando punhadas nas
paredes e entornando cinzeiros, pilhas de papel, frascos de
cola com o pincelinho dentro, folhetos, rolos de cartazes,
vocês andam a gozar comigo, seus caralhos?, Isto é para não
sermos reconhecidos, camarada, justificou-se brandamente o
músico, para lançarmos a atenção da polícia para os lacaios
dos soviéticos, felizmente o Pires trazia o fato amarrotado do
costume, o palito do costume nos dentes de plástico, e a
alegria enorme de ir conduzir, por fim, um automóvel de um
volante só, Acabem-me com a palhaçada, foda-se, berrava o
Olavo, ainda não chegámos ao Entrudo, deviam ouvir-se os
gritos dele na rua, meu capitão, porque as vendedoras de
hortaliça cessaram os pregões, Se o camarada continua a
ofender-me, preveniu o violoncelista, desligo-me por completo
do assalto e participo a ocorrência à Comissão de Conflitos,
acabaram por retirar-se, amuados, cada um para o seu canto do
quarto, a fitarem de olhos torvos os slogans rasgados e os
defeitos da caliça, a Dália, o velho e o oficial de transmissões
trotaram de um para o outro pedindo, argumentando, ralhando,
suplicando, ao cabo de meia hora de penosas diligências
diplomáticas consentiram de má vontade em apertar a mão,
depois de o violoncelista retirar o crucifixo e a batina e
aparecer de camisola e calças de borracha de homem-rã, O que
há de mais prático, explicou ele, radiante, para uma
operaçãozinha deste género, o Olavo sumiu-se no corredor e
regressou instantes depois com um molho de brinquedos de
criança, revólveres de fulminantes, pistolas de água e
metralhadoras de disparar feijões, Aqui têm as armas,
espingardas a sério enterradas no Alentejo, até tínhamos,
inclusivamente, um desenho do sítio, mas por mais que
cavássemos não atinávamos com elas, levei a noite a dar à pá,
por aqui e por ali, sem resultado, o camarada Nunes e o
camarada Pinto ainda por lá andam à picaretada, cheios de
terra, debaixo dos sobreiros, quem ficar com as metralhadoras
carregadas de grão de bico na despensa, os das pistolas, pelo
sim pelo não, atestam-nas na torneira da casa de banho,
sempre é melhor que nada e de resto os bancários e a polícia
nem as distinguem, à primeira vista, das autênticas, o mesmo
tamanho, a mesma cor, a mesma forma, só o peso é que é
diferente, a minha, que estava rota, disse o oficial de
transmissões, pingava-me na algibeira das calças e um líquido
frio descia-me o joelho até à meia, o violoncelista teve de
tornar a enfiar a batina para esconder decentemente a
metralhadora que lançava uma nuvem de chispas amarelas de
isqueiro pelo cano, tac tac tac tac tac tac tac tac, passava das
onze horas quando saíram em fila, silenciosos e conspirativos,
da sede da Organização, Qualquer dia, pensou o oficial de
transmissões, as secretárias podres, as montanhas de folhetos,
os autoclismos limosos e os bustos de Lenine desabam de
roldão no vizinho de baixo, um cavalheiro carrancudo e
solitário, de meia-idade, que costumava passear um cãozito
minúsculo, antipatiquíssimo, chamado Sporting, nas cercanias
do Carmo, qualquer dia aterramos, o Comité Central, a
Segurança e os tipos que cá vêm beber café barato, numa
nuvem de caliça e de pó, de vigas podres e de bandeiras
traçadas, na sala de jantar do gajo, cheia de aparadores e de
perdizes de loiça, Já passa das onze, rosnou ansiosamente o
Olavo, a quem a arma de baquelite embaraçava os
movimentos, arranjem um táxi depressa antes que o banco
feche. Distinguia-se uma nesga de rio, um petroleiro
ferrugento, o céu agora sem nuvens, azul de metileno, da
primavera, e os pombos que circulavam de igreja em igreja. A
barba de estopa do violoncelista ondulava biblicamente diante
das montras das drogarias e dos balcões, escuros como
cicatrizes, das tabernas, onde vultos confusos se remexiam
como se nadassem, o Olavo pagou ao motorista que espiava,
desconfiado, pelo espelho, aquela esquisita mistura de
mergulhador e cónego da Sé, a soprar os pêlos postiços do
bigode que se lhe enfiavam na boca, e ficaram os cinco,
sozinhos, numa rua de eléctricos, diante de um edifício em
construção amparado a uma grelha de andaimes, e de ambos
os lados muros de quintas ou de fábricas, portões de ferro,
ananases de pedra, prédios pequenos, lojecas sumidas, um
ourives, uma capelista, uma agência funerária de gaveto
atulhada de anjinhos de cera e de caixões.
— Os cães, os cabrões, os sacanas, os filhos da puta dos
cães, disse o tenente-coronel a contemplar o miserável quartel
de Moçambique no fundo do copo de champanhe (e as árvores
da mata tremiam nos seus olhos, e a proximidade da morte
enegrecia-lhe os dentes). Devíamos ter fuzilado todos os cães
quando saímos de lá, devíamos tê-los degolado a todos, ter-
lhes rebentado a barriga a todos. Avizinhavam-se lentamente
de nós, lambiam-nos as pernas, as calças do camuflado, as
botas de lona, seguiam-nos, coxeando, alguns metros,
submissos e servis, afastavam-se de novo, sem latir, sem
protestar, arrastando as coxas e os traseiros sem força,
enroscavam-se junto ao mastro da bandeira fitando-nos
lamentosamente com as grandes pupilas castanhas desprovidas
das suas coroas de pestanas, durante os ataques achatavam as
barrigas ossudas contra a barriga da terra, e nos intervalos das
explosões ouvíamo-los gemer baixinho como os soldados
feridos e os pássaros da noite, ouvíamo-los urinarem-se de
medo como nós, obedecerem por medo como nós,
continuarem a viver a medo, como nós: O meu tenente-coronel
tem razão, reforçou o alferes, devíamos tê-los fuzilado a todos
ao virmo-nos embora, fuzilado a eles e à gente no barco
carregado de soldados envelhecidos e exaustos, bêbedos de
rosé, de vinho tinto, de martini, de cerveja, a dançar na água
incolor a caminho de Lisboa.
De vez em quando, por uma fenda de muro, o hálito urinoso
do rio picava-lhes, clorídrico, as narinas, e andaram um
pedaço ao acaso, na rua quase deserta de pessoas, em busca do
automóvel ideal para o assalto a um banco, experimentando
fechos que se não abriam, vidros triangulares de janela
impossíveis de forçar, capots hermeticamente cerrados, já
desesperando, já praguejando, já resmungando, já atirando
pontapés despeitados aos guarda-lamas e aos pneus, o
violoncelista insultou, do túnel das suas barbas evangélicas,
um casal de senhoras idosas que os examinava com espanto,
estarrecidas pelos palavrões da Dália, um eléctrico
desapareceu a tilintar, tripulado por um condutor de órbitas
ocas e alguns rápidos vultos indistintos, Foda-se foda-se,
impacientava-se o Olavo a ajeitar a metralhadora de plástico
no casaco, tentaram sem sucesso uma ou duas transversais
oblíquas, um largozito com um chafariz sem água, um beco
que acabava, subitamente, num lance de degraus que
conduziam a uma segunda e retorcida travessa, Mais devagar,
protestava ofegantemente o velho, vocês rebentam comigo,
ando a tomar comprimidos para o coração, minutos
infindáveis, dolorosos, pontuados pelo frenesim da Dália, e lá
veio, finalmente, o enorme, majestoso Jaguar amarelo eriçado
de pára-choques e faróis, a imobilizar-se perto deles encostado
a um banco de ripas, o fulano calvo a buzinar lá de dentro para
um prédio qualquer, a rápida exclamação sibilada do Olavo
Aproveitem-me esse, que caralho, o violoncelista a lutar com a
batina, a romper botões, a apontar a pistola de plástico às
bochechas estupefactas do chofer, Salta cá para fora, burguês,
viva a Organização Marxista Leninista Maoísta Portuguesa, o
velho instalou-se muito lesto ao volante a agarrar o peito com
a mão, a experimentar nervosamente as mudanças, os faróis,
os pedais, a acelerar em seco, os camaradas tropeçaram,
empurraram-se, cambulharam para o banco traseiro num
novelo de pernas, de braços, de sapatos deslaçados, de
metralhadoras de grão de bico e dos esguichos de água dos
brinquedos, o careca, de mãos no ar, pedia em pânico Não me
mate não me mate não me mate, uma mulher gorda, de
aparatosos cabelos platinados e casaco de peles acrílico, que
saía imperialmente de um edifício vizinho, deixou cair a
carteira e principiou aos gritos (a amante do gajo? a esposa do
gajo? a cunhada do gajo?), o violoncelista, sempre de pistola
em punho como nos filmes de gangsters, recuou no sentido do
Jaguar mas errou a pontaria e tombou em cheio, num ruído de
latas, em cima de uma motorizada que se abateu com ele na
erva rala de um canteiro, Depressa, soluçava o Olavo a puxar-
lhe a batina, depressa que esta madama amotina num segundo
o bairro inteiro, porém o violoncelista prendera o tornozelo
numa roda e arrastava a moto de rojo atrás de si, Larga essa
merda, comandou o velho, indignado, este padreca está
maluco, para que caralho quer ele uma mota a esta hora?, o
careca, agora de joelhos e mãos postas, olhava-nos um a um
numa admiração infinita, a criatura dos exuberantes cabelos
platinados tocava aos guinchos a todas as campainhas que
podia, amparada a um prédio cujo rés-do-chão anunciava, em
grandes letras verdes, O Gonçalo É Rabo, e o oficial de
transmissões imaginou, saindo desgrenhadas das catacumbas
dos seus cubículos, repletos de naperons, de coelhinhos de
faiança e de Nossas Senhoras com sorrisos malévolos de
cancanistas, um bando feroz de porteiras em pé de guerra,
armadas de piaçabas temíveis e de desentupidores de retrete de
ventosas mortais, que se precipitavam para eles num granizo
de impropérios. Ajudem-me a desembaraçar-me disto,
solicitava o violoncelista aos berros, e a Dália desatou aos
saltos na motorizada caída, amolgando os travões, rebentando
o depósito da gasolina, destruindo o vistoso tubo de escape
cromado, o careca acabou por se abater num banco a alargar o
nó da gravata e o colarinho, a respirar pela boca aberta como
um peixe sufocado, o artista, de barba torta, acabou por soltar-
se a custo, à laia de uma borboleta do casulo, de um
emaranhado de ferros, e mergulhou de cabeça,
desordenadamente no interior do Jaguar, Vamos embora,
vamos embora, guinchava o Olavo, o velho empurrou uma
alavanca, soltou a embraiagem e o automóvel galgou o passeio
de um pulo, carambolou no triciclo de uma firma de reparação
de televisores, no banco do careca que desatou a fugir de gatas
pelos canteiros fora, esmagando as moribundas, tristes plantas
municipais (Jacintos? camélias? dálias?, interrogou o alferes),
num poste de electricidade que se dobrou sob o choque como
uma haste ao vento, descemos uma ladeira íngreme a
velocidade supersónica, escapámos por milímetros a um
camião que se atravessou na calçada num chiar pavoroso de
travões, Vocês já repararam na gáspea com que esta
caranguejola anda?, perguntou o velho, maravilhado, virando-
se para trás esquecido do volante, no Volkswagem da instrução
nunca passei dos trinta, os vidros verdes, fumados, das janelas,
subiam e desciam carregando-se em botões, os múltiplos
altifalantes do rádio estereofónico inundavam o carro de
música de dança, sambas, boleros, mambos, foxtrotes, Os
sacanas dos burgueses governam-se bem, observou o
violoncelista a apertar o nastro das suíças postiças e a extrair
do sapato avulsas porcas e parafusos da motorizada, devem
comer de certeza croquetes de elefante e avestruzes trufadas ao
pequeno-almoço, Os cães, pensou raivosamente o tenente-
coronel, nós sentados na messe, a mastigar o que não havia
nos pratos, a beber o que não havia nos copos, a brincar, muito
sérios, em África, aos jantarinhos de bonecas, e os malandros
dos cães a farejarem-nos biliosamente os joelhos, a
empinarem-se de encontro à toalha de oleado, exibindo as
mandíbulas agudas, a encostarem-nos aos dedos os ávidos
focinhos molhados, o candeeiro de petromax, ao centro da
mesa, cambaleava sombras gigantescas, que latiam, nas
paredes, dorsos, caudas, ventres, longos crânios achatados, a
noite azulava as precárias construções de madeira das
casernas, o cubozinho de cimento do comando, as silhuetas
geométricas e escuras dos unimogues, os abrigos de toros e de
zinco, e lá fora, fosforescentes e imprecisos, trotando, boiando,
nadando nas trevas claras de setembro, de fixas órbitas lilases
e queixais estreitos de criança, os cães olhavam espessamente
para mim com a misteriosa, ou agressiva, ou penetrante ou
inexplicável perplexidade opaca dos sonhos. O oficial de
transmissões, que abandonara o copo, bebia directamente, de
boca esticada, da garrafa de champanhe, uma bola óssea
pulava como um bicho inquieto sob a pele do pescoço, e dois
fios de líquido cintilante como baba, duas rugas prateadas
sublinhavam os ângulos da boca, morriam devagar no
colarinho. A mulata, debruçada para a frente, esmagando as
barricas dos seios, avaliava-o com indiferença a devorar
toneladas de amendoins, de batatas fritas, de aperitivos de
queijo, de pipocas.
— O meu tenente pertenceu àquele grupo que assaltava
bancos que vinha no jornal?, perguntou o soldado numa
cadavérica emoção repreensiva. O meu tenente pertencia
àquela seita que matou dois caixas e feriu um inválido à espera
da pensão numa cadeira de rodas?
Retratos de homens com pavorosas caras de foragidos,
tocantes entrevistas com as famílias das vítimas, féretros
cobertos de coroas, a justa e unânime indignação nacional, o
enérgico comunicado do ministro, a transcrição do telegrama
de condolências do presidente da República, a fotografia do
polícia que dominou sem ajuda três dos meliantes, os
testemunhos do gerente, do subgerente, do sub subgerente, da
empregada da limpeza, de uma emocionada doméstica que
levantava nesse momento o ordenado do marido, de um lúcido
psicólogo, de um político firme, de um psiquiatra indulgente e
de um bondoso sacerdote especialista em questões de
violência social por universidades suíças nas quais se
estimulavam electricamente os tenebrosos impulsos
anarquistas dos coelhos brancos: Não propriamente, pensou o
oficial de transmissões pousando a garrafa no gelo suado do
balde e tripulando a duas mãos o púbis imenso da mulata. Não
propriamente revolucionários a tempo inteiro, não
propriamente guerrilheiros sul-americanos uniformizados de
caqui, da Nicarágua, de Cuba, da Venezuela, destruindo à
bazooka unidades do Exército e torturando embaixadores,
inequívocos, determinados, eficazes, mas cinco sujeitos
exaltados e aflitos, a brandirem ridículas pistolas de criança,
cacharoletados num luxuoso automóvel enorme, derrubando
candeeiros, aplainando bicicletas, obrigando os sinaleiros a
rasparem-se em pânico, de capacete na mão, varrendo os
caixotes de legumes e de fruta das mercearias, que se
espalhavam ao acaso, esborrachados, na calçada, desprezando
regiamente as indicações do trânsito, soluçando, buzinando,
avançando, recuando, com os limpa-vidros a abanarem numa
cadência furibunda, os pisca-piscas acendendo e apagando-se
num pulsar de carótidas. E se nos esquecêssemos do banco,
propôs o velho de olho a luzir, e fôssemos passear até ao
Guincho ver as dunas, as praias, comer sorvetes em Cascais?
As ruas de Algés, meu capitão, assemelhavam-se todas, feios
prédios de três andares, obras nas bermas, pilhas de canos, o
piso de alcatrão esventrado e esburacado, É ali, anunciava a
Dália, e nunca era, mais casas, mais estabelecimentozitos,
mais árvores sem viço, mais a baça presença do rio a tossir nas
nossas costas, Que merda de reconhecimento do terreno fizeste
tu aqui, indignava-se o Olavo a cuspir grãos de bico,
involuntários pela janela fora, que nem sabes onde caralho
estás?, Os malditos dos cães, pensou o tenente-coronel
sentindo crescer dentro de si, como num redemoinho, uma
fúria inexplicável, uma tarde, depois da trovoada, o major
Gonçalves saiu bêbado do posto de comando, atascado até aos
tornozelos na lama da parada, extraiu a Walther do coldre e
principiou a disparar ao acaso contra os cães, enrolados como
cachecóis à volta do mastro da bandeira, gritos e estampidos
curtos reboando na atmosfera saturada, sulfúrica, do
crepúsculo, os ramos baixos dos arbustos acenavam, uma
rafeira prenha tombou de lado, a espernear, de pescoço
desfeito por uma dúzia de balas, o major carregava a pistola
em silêncio, com os músculos da cara retesos de ódio, e os
cães sumiam-se a gemer, de umbigo rente à terra, nas covas
dos abrigos, Vocês têm a certeza de que não querem mesmo ir
à praia?, insistia o velho pulando alegremente no alcatrão,
vocês optaram mesmo pelo banco?, o major Gonçalves
estendeu de novo o braço, fechou um dos olhos, apertou o
gatilho (grandes nuvens de chuva acumulavam-se a norte) e a
cadela deixou de espernear, subitamente serena, Não me
enganei nada, é ali, gritou a Dália a apontar com o dedo uma
vidraça de montra, a mancha de um balcão, nenhum polícia,
letras maiúsculas em relevo sobre a porta, Pára essa porra,
ordenou o violoncelista à procura de grão de bico pelos bolsos,
o oficial de transmissões palpava nervosamente (Como o
Zorro, comentou o soldado) a pistola de plástico nas calças, O
Olavo carregava a metralhadora de feijões, o velho torceu o
volante, carregou no pedal mas em vez do travão pisou o
acelerador a fundo, o Jaguar soltou um breve relincho
mecânico, sacudiu as crinas dos faróis, os pneus cantaram,
exultantes, no asfalto, O que é isto? O que é isto?, protestava a
Dália assustadíssima, a montra, o balcão, um relógio redondo
cresceram instantaneamente num túnel que caminhava ao
nosso encontro, Ai minha mãezinha, murmurou o velho com
entoação moribunda, puxando alavancas e premindo botões, e
a seguir o estrondo, a montra em pedaços, fragmentos
indistintos de lata que se desprendiam e voavam em todos os
sentidos, a carroçaria a encolher-se como um telescópio,
lâminas de caliça que se despregavam do tecto, nenhuma
máquina de escrever, nenhum empregado, nenhum cofre-forte,
ninguém, apenas uma voz líquida a anunciar (Ao meu lado? à
minha frente? atrás de mim?), muito ao longe, sem zanga nem
alarme, Chegámos, mais lâminas de caliça, mais latas que
caíam, Gosto de ti, Dália, gosto do teu cabelo, do teu peito, do
teu sorriso, mas tinham fechado o banco na véspera porque
houve uma revolução fascista, camaradas, porque o povo,
explicou-lhes didacticamente o Lopes quando os foi visitar ao
hospital, conduzido pela lúcida vanguarda da gloriosa
Organização Marxista Leninista Maoísta Portuguesa, não só
fizera abortar os criminosos projectos reaccionários como
exigira e conseguira, para além de uma ampla amnistia, a
nacionalização da banca, dos seguros e de diversas empresas
metalúrgicas e metalomecânicas, de modo que, camaradas,
retirem depressa os pontos e os gessos a fim de contribuírem
com o vosso esforço imprescindível para a tão sonhada
edificação do socialismo, o major dirigiu-se para a cadela
morta e despejou o carregador no leproso, lamacento corpo
inerte, a minha tia e a Esmeralda trouxeram-me à enfermaria
bolos de laranja e uma pilha de revistas antigas que cheiravam
a sótão, as batas dos médicos ondulavam, etéreas, entre as
camas, fechei os olhos e no momento de adormecer (ou já
quase a dormir?) o major virou o cano da Walther para mim,
meu capitão, tentei rastejar para o abrigo da almofada, apesar
das dores e do gesso, apoiando as mãos e os calcanhares na
terra dos lençóis, um latido informe escapou-se-me como um
arroto da boca, ergui a cauda suja para lhe pedir Espere, e ele
(ou a enfermeira da seringa ao alto?) hesitou um segundo,
avançou um passo e disparou.
8

— Foi precisamente nessa altura, quando tu te andavas a


estampar contra as montras dos bancos, que a gente se meteu à
pressa, mijados de medo, no avião para o Brasil, disse o
alferes. A gente, isto é, os que ainda não tinham sido presos da
família da Inês, a Mariana aos guinchos e eu por tabela atrás
deles, despenteado, sem tomar banho, cheio de sono, de calças
de pijama debaixo das calças do fato, com a fita de nastro da
cintura a sair, com um nozinho na ponta, por um intervalo dos
botões.
A vida no banco ia-se tornando complicada, meu capitão, os
administradores tentavam a custo flutuar nos limos de uma má
vontade azeda, os empregados não o cumprimentavam com a
habitual, pressurosa deferência de anteriormente, alguns
cruzavam-se com ele e nem sequer bom dia, imagine,
inflamados panfletos contra os patrões circulavam de secção
em secção, sucediam-se as reuniões conspirativas durante as
horas de serviço, os bustos do avô foram desaparecendo a
pouco e pouco (o tio da Inês levava-os, à noite, discretamente,
com a ajuda do chofer, na mala do carro, para casa), as
secretárias desleixavam-se, indiferentes a telefonemas e a
ordens, as dactilógrafas folheavam revistas de fotonovelas ou
pintavam remansosamente as unhas diante das máquinas de
escrever abandonadas, caixas desorbitados, sem gravata,
discutiam aos berros com os clientes, perdíamos negócio atrás
de negócio numa lenta, inexorável descida de naufrágio.
— Exactamente como nós nas Mudanças Ilídio, a seguir à
pataleta da velha, meu alferes, reforçou o soldado subindo e
descendo, num vagar distraído, as contas de terço das
vértebras de uma loira esquelética chamada Frances. Podíamos
ser hoje uma empresa do caraças, cheia de encomendas e de
camionetas, e por causa da doença dela e das asneiras todas
que fizemos a seguir, vemo-nos à rasca com as despesas logo a
meio do mês.
— Quando ele morreu é que nós no Ministério descobrimos
que o Ricardo não tinha só uma mulher, tinha três, riu-se o
tenente-coronel para o interior do copo. Todas jovens,
amulatadas e altas, boas como o milho, vestidas da mesma
maneira, com as mesmas unhas prateadas e o mesmo desgosto
espalhafatoso e agressivo, arrastando pela mão Ricardozitos de
sapatos de verniz e laço ao pescoço, que rebolavam pela
câmara ardente, à beira de um pânico de lágrimas, as
esferazinhas espantadas dos olhos: se calhar, em vez da
pulhice, foi isso que o matou, o ter de andar a correr de casa
em casa, de inventar desculpas, aldrabices, histórias
complicadas, justificações, aturar-lhes os gritos, o palavrório,
as cenas de ciúmes com pratos pelos ares, as exigências, a
curiosidade divertida dos vizinhos. Vocês calculam o que é
ser-se acordado, às sete da manhã, por três despertadores ao
mesmo tempo, comer três pequenos-almoços gémeos,
despedir-se de três bochechas ensonadas, descer
simultaneamente em três elevadores, viajar em três Mercedes
diferentes para o Cais das Colunas?
— Não é isso que eu não aguento, protestou o tio da Inês,
sem atender um telefone arquejante que balia há séculos, entre
uma agenda de argolas cromada e uma fotografia emoldurada
de mulher. A falta de respeito apesar de tudo ainda é o menos,
o que me transtorna por completo é ver a bancarrota
aproximar-se. Por essas e por outras tive de dobrar a dose de
comprimidos ao deitar e sei lá há quantos domingos que não
jogo golfe.
— No fundo talvez do que ele precisasse, disse o alferes,
fossem pastilhas para a tesão: o pavor dos comunistas
amolecia-lhe a verga por completo.
— Também servir a três mulheres é obra, curvou-se o
oficial de transmissões, admirativo. Eu palavra que nem
sonhava com uma proeza dessas.
— Metam meia dúzia de coisas numa mala e venham
imediatamente a Carcavelos, ordenou a voz da sogra num
fiozinho imperioso. Não posso explicar mais, o aparelho está
de certeza interceptado.
— Três mulheres enormes, sabe como é, pormenorizou o
tenente-coronel, das que têm tudo grande, mamas grandes,
rabo grande, pernas grandes, ombros grandes, das que deixam
atrás de si a perfumada baba de caracol de um rastro de desejo,
das que ao andarem as nádegas se mexem como os bíceps
oleados dos Misters Músculos nos concursos, a fazerem saltar
batatas gigantescas de carne de debaixo da pele. Eu não
acreditava quando vi aquilo.
— E a insolência?, indignou-se o cunhado obtuso, de anel
de brasão, encarregue do Departamento de Pessoal, o tio já
reparou na insolência deles? Entram-me pelo gabinete dentro
sem pedir licença, a fumar, tratam-me por você, amesendam-
se nas cadeiras, só falta limparem a lama dos sapatos nas
cortinas. E a Comissão de Trabalhadores malcriadíssima, a
protestar com tudo, a exigir-me constantemente regalias, horas
livres, instalações para plenários, a gerência da cantina nas
mãos deles porque os rissóis não prestam, porque a sopa não
presta, porque o leite-creme é uma merda, sem falar nos
medicamentos à borla, nas análises à borla, nas radiografias à
borla, nos sanitários aerodinâmicos, no ar condicionado, no
cuzinho lavado com água de rosas, nas camas Dona Maria
para a sesta.
Só falta cagarem-me de perna aberta no alto da cabeça,
lamentou-se o alferes durante o jantar, enquanto a sombra da
bola de papel do candeeiro oscilava de leve na parede, e as
árvores da Rua da Mãe-d’Água se imprimiam a tinta da china,
até ao último ramo, nas frontarias de papel das casas. Só falta
assentarem a peida nos bustos do teu avô que ainda lá estão.
À fraternal, convergente euforia do início sucedera-se um
período de confusão tormentosa, de discussões veementes, de
zangas, de impropérios, de sujeitos dignos, com emblemas de
diversos partidos na lapela, ameaçando-se de pancadaria e
insultando-se pelos corredores, congestionados, furibundos, de
raivosas gengivas ao léu como os cães de guarda das quintas.
O trabalho acumulava-se sem que ninguém lhe tocasse, pastas
e papéis amontoavam-se, a ganhar pó, por todo o lado, Paris,
Londres, Nova Iorque, Zurique, Amesterdão respondiam com
evasivas amáveis e sugestões de adiamento às nossas
propostas de negócios, as empresas que nos solicitavam
empréstimos faliam sem pagar, as anémicas firmas satélites
necessitavam de constantes injecções de capital, o tio da Inês
torcia os dedos gordos no gabinete, enfiava e retirava
angustiadamente a aliança, envelhecia um século por dia, os
teus irmãos e os teus primos curavam a ansiedade nas boîtes,
pegajosos e implicativos, abraçados aos copos de gin como
marinheiros a lemes sem conserto.
— Metam-se imediatamente no carro, ofegava a sogra,
exasperada, antes que a tropa vos vá pescar aí a casa.
Eu quase não saía, meu capitão, nunca os acompanhava a
discotecas nem a bares, mas era fácil imaginar a arrogância
arruaceira deles, os blazers assertoados, o suor das patilhas, os
pequeninos olhinhos estúpidos a piscarem, procurando um
alvo, no meio dos corpos parados ou aos pulos, das coloridas
luzes intermitentes e das guinadas da música, era fácil
imaginar as bofetadas, os pontapés, os murros, os gritinhos
estupefactos das namoradas, uma prateleira de garrafas
desabando fragorosamente e desfazendo-se em milhões de
cacos no círculo de mármore da pista, candeeiros metálicos
que rolavam pelo chão, um tipo a cambalear agarrado à cara,
os devastadores gorilas do estabelecimento aos encontrões aos
clientes, a música interrompida, as lâmpadas todas acesas
revelando brutalmente rostos indignados, ou em pânico, ou
apertando os beiços contra os lenços, a chegada da polícia a
esmagar sob as solas estilhas e pedaços de vidro, o gerente a
parlamentar com os guardas, muito calmo, muito tranquilo,
muito urbano, muito senhor de si, espiralando gestos
diplomáticos com a boquilha acesa, e no fim o teu irmão
Pedro, ou o teu irmão Nuno, ou o teu irmão Tó a puxarem uma
caderneta do bolso, a assinarem, no balcão do bengaleiro, um
cheque para pagar os estragos, a saírem aos esses,
desgrenhados e triunfais, amparados a raparigas de jeans
apertadíssimos e casacos de peles autênticas, trambolhando de
caixote do lixo em caixote do lixo, como pugilistas vencidos,
na primeira claridade da manhã. Porque era isso o que me
impressionava mais, meu capitão: não o medo, não a
decadência, não o desespero animal, mas a tristeza sem
orgulho da derrota deles, uma espécie de conformação de
bichos, a babarem-se e a vomitarem, na casa de banho,
segurando a gravata com a mão sem força, o álcool aldrabado
dos bares. Era em alturas assim, nessas espessas, biliosas,
amargas madrugadas sem cor, que o universo de trastes
podres, de pavorosas naturezas-mortas e de móveis de fórmica
dos meus pais, adquiria, por contraste com a profusão dos
tapetes persas, dos cristais, das pratas, e das consolas do século
dezoito, a lancinante realidade de qualquer coisa de precioso
idiotamente perdido. Podia viver ainda no meu quarto de
solteiro, assistir durante as refeições ao crespo silêncio amargo
do meu pai, ser apresentado aos sucessivos e invariavelmente
míopes namorados da minha irmã, professores de alemão
tímidos, engenheiros de apagadas repartições do Estado,
magros veterinários municipais, criadores de um novo e
transcendente método de inseminação artificial dos
hipopótamos fêmeas, podia estudar Economia à noite, seduzir
a vizinha do rés-do-chão direito, que trabalhava de enfermeira
numa clínica de mongolóides, ser, em resumo, razoavelmente
feliz, ancorado num quotidiano conhecido e sem surpresas, e
depois de os velhos morrerem, está a ver, ocupar por meu
turno a pretensiosa cama preta deles, debaixo do crucifixo de
latão, com as molas a ganirem a cada ensonado movimento do
meu corpo.
— Como é o Brasil, meu alferes?, perguntou o soldado. O
mais longe que viajei até hoje foi a transportar na furgoneta
uma mobília de quarto a Badajoz.
— Agora é que sim, soprou a sogra numa desprotegida e
frágil vozinha de vidro, agora é que nos fuzilam a todos:
bombardearam um quartel e andam jipes cheios de soldados
tenebrosíssimos a prenderem as pessoas em casa.
De manhãzinha cedo, como nos romances, pensou o alferes
a encher à pressa uma mala de roupa, a ver pelo canto do olho
o frenesim da Inês que abria armários, entornava gavetas,
espalhava desordenadamente as jóias entre as blusas, as saias,
os sacos de plástico dos sapatos, os casaquinhos de tricot da
Mariana. Agora é que sim: a porta rebentada à coronhada, um
rodopio de feições opacas e ferozes, buracos de pupilas pretas
de metralhadoras e espingardas assestadas em nós, um
sargento que os empurrava com a pistola, pelos degraus
abaixo, na direcção de um camião do Exército encostado ao
passeio, o fresco das cinco ou das seis horas na pele arrepiada
da nuca e do pescoço, gente desconhecida, presa também,
aguardando também o fuzilamento próximo, a afastar as
nádegas transidas para nos dar lugar, as ruas da cidade a
fugirem para trás por um rasgão de lona, cada vez menos
casas, e agora árvores, o rio cor de tijolo, botes ancorados na
lama da margem, bichosas construções de madeira, o camião a
travar de repente, a voz irada do sargento, Cá para fora
depressa, saltei com a Mariana ao colo para o alcatrão
molhado da estrada, uma mulherzinha idosa abraçava-se à
manga de um homem muito pálido, o esqueleto da ponte de
Vila Franca de Xira emergia a espaços do nevoeiro, sob a
forma de grandes cotovelos agudos de ferro incrustados no
azeite esverdeado do céu, desceram um talude escorregadio a
patinar nas ervas, com a humidade a dificultar-lhes os gestos e
o odor nauseabundo da água parada erguendo-se em rolos de
fumo no ar descolorido, Agora é que sim, tornou a pensar
quando os alinharam ombro a ombro diante dos rostos neutros,
ausentes, sem pálpebras, sem nariz, sem queixo, da tropa, a
Mariana brincava-lhe com o fio, a Inês ondulava sobre as
pernas bambas, na margem oposta dois homens inclinavam-se
para um barquito a motor que tossia e se calava, amortecido
pela distância e pela névoa, o sargento colocou-se entre os
soldados e eles, contou-os, examinou-os bem, contou-os de
novo, Vão-nos fuzilar a todos, pensou o alferes, e lembrou-se
da expressão intrigada da mãe a estender-lhe o telefone, É para
ti, o sargento recuou dois passos, disse Fogo, as pessoas
tombavam de bruços ou de lado, desamparadas, na lama,
passaritos miúdos, cor de caca, levantavam voo dos caniços,
Não senti dor nenhuma, tiro nenhum, meu capitão, só uma
espécie de vento a atravessar-me o corpo, a barriga a
encharcar-se de não sei o quê e uma ausência esquisita, quase
agradável, de forças, os membros que desistiam, os músculos
que desistiam, os ossos moles amontoando-se uns sobre os
outros como esparguete num tacho, a Mariana escapou-me das
mãos e quebrou-se em mil bocados à laia de uma boneca que
explodisse, tentei manter-me de pé segurando o peito com os
braços, um cabo aproximou-se disparando sempre, Agora é
que sim, gemia fluidamente a minha sogra longíssimo, a
acenar-me numa caricatura de adeus, agora é que estás frito
que maçada, Não queres responder?, perguntou-me a minha
mãe de aparelho estendido, preferes que eu diga que te foste
embora?, distinguiu ainda a cara da Inês, suja de lodo e do que
lhe pareceram, através da crescente imprecisão dos seus olhos,
largas manchas escuras de sangue, fitando-o do chão com íris
transparentes de vidro, a mulherzinha idosa rastejava gemendo
por trás dele, Agora é que sim, concordou o alferes, e tombou
sentado numa pedra, olhando para a esquerda e para a direita
numa surpresa sem limites, vendo os passaritos cor de caca
esconderem-se, aterrorizados, nos caniços, Agora é que sim,
acreditou ele, e o barquinho a motor principiou a deslocar-se a
pouco e pouco, listras azuis dilatavam-se nos intervalos das
nuvens, Não é só a barriga, pensou, são também as costas, os
rins, a testa, é também esta súbita, desconhecida aragem na
garganta, o sargento encostou-me um tubo frio à orelha,
apertou o gatilho, e à medida que tudo estoirava, abanava e se
soltava num interminável vagar, à medida que um enorme
silêncio se sobrepunha às vibrações do som e alastrava numa
indistinta e horizontal planície cinzenta, apercebeu-se, sem se
conseguir mover, de que a mãe encolhia os ombros, pousava o
telefone no descanso, pegava na agulha e recomeçava o
crochet, aninhada como um pombo na poltrona do costume.
Rebolaram pelas escadas, arrastando a Mariana atrás deles,
depois de o alferes se certificar, da varanda, que nenhuma
cinzenta, ameaçadora, terrível viatura militar os aguardava lá
em baixo, eriçada de revólveres e morteiros, e foi a última vez,
meu capitão, que entrei na casa de Carcavelos, a última vez
que passei o portão de ferro, sempre aberto, e segui pela
aleazinha de saibro, rodeada de buxos e de arbustos, a
caminho da vivenda gigantesca lá em cima, junto ao
rectângulo de azulejos da piscina, que ondulavam, como
estandartes, sob a água, e onde a estátua de um menino numa
peanha se reflectia numa sucessão de tremuras. A última vez
que os cães pularam à minha volta, tumultuosamente
fraternais, de pupilas amarelas cintilando de amigável ódio, no
habitual torvelinho de caudas, de focinhos, de patas, de unhas,
de latidos, sumindo-se e reaparecendo numa carnívora energia
de molas, a última vez que aquele edifício enorme, feito de
acrescentos díspares, de pavilhões diversos, de terraços
contraditórios, de janelas que se miravam sem simpatia umas
às outras, o engolia nos ventres de baleia das suas salas
inúmeras, povoadas de grandes óleos, de loiças majestosas, de
móveis caríssimos, dos barcos por acabar do sogro que jaziam
nos tapetes persas, cercados de ferramentas esquecidas, de
ilhas de serradura e de aparas de madeira. Não tinham
encontrado barreiras de polícia na Marginal, a serena pele do
mar cobria-se de lantejoulas de luz, não havia civis armados,
de braçadeira, revistando os automóveis, revolucionários de
fervorosos bigodes ramalhudos a inspeccionarem ao
microscópio as malas dos carros, as gaivotas giravam sobre os
esgotos do rio em elipses vorazes, guinaram à direita, junto ao
parque de estacionamento com um restaurante numa das
extremidades, onde à noite parávamos às vezes, de faróis
apagados, para nos apalparmos ansiosamente os sexos
defronte da fosforescência pálida das ondas, as ruas
ensolaradas da vila desenrolavam-se como jardas moles, de
cores alegres, de tecido, e pela última vez o alpendre da
entrada afogado em trepadeiras, os degraus lascados de
cimento, a lanterna, o São Sebastião de azulejos antigos, pela
última vez a campainha a reboar, como uma sereia de
bombeiros, nas cavernas dos compartimentos desertos, pela
última vez a antipatia altiva da Hilária, mirando-o com
desprezo do vértice dos colarinhos engomados, pela última vez
as boas-tardes irritantes dela, a sua absoluta indiferença, a testa
franzida a repetir Não pertences aqui, vai-te embora, nenhum
de nós te quer cá. E de certa maneira, não é verdade meu
capitão?, nesse mesmo dia satisfazia-lhe o desmedido, azedo
desejo de me ver pelas costas.
— O meu alferes perdoou à sua esposa tê-la encontrado na
marmelada com a outra?, perguntou o soldado enquanto a loira
esquelética, dependurada nele, lhe revistava afanosamente os
bolsos em busca de cigarros. O meu alferes gramou a pastilha
sem lhe ferrar um estalo, uma tareia sequer?
Os corpos apertados, as madeixas roxas da velha
confundidas com o cabelo castanho claro da Inês, dedos de
unhas compridas que se entrelaçavam e se desprendiam,
arrulhos, segredos, risinhos, atritos de saias e de meias, as duas
caras lambuzadas e aflitas que o olhavam com espanto: já não
estávamos na guerra, amigo, o meu emprego dependia da
família dela, se eu me separasse despediam-me e depois?, a
velha engrolou à pressa uma desculpa qualquer, a Inês
engrolou à pressa uma desculpa qualquer, e eu aceitei-as como
se acreditasse nelas, percebes?, como se nada de anormal se
tivesse passado, e podes achar esquisito mas na semana
seguinte esquecera-me quase completamente do assunto e até
fazíamos amor de vez em quando, aos fins-de-semana, num
prazer silencioso e medíocre. Se calhar iam ambas ao cinema,
se calhar visitavam-se, se calhar despiam-se uma à outra, aos
suspiros, no meu quarto de dormir, se calhar beijavam-se e
mordiam-se e enroscavam-se nos meus lençóis, se calhar
ofegavam como peixes na minha almofada, se calhar
convidavam mais lésbicas e dançavam e bebiam e trocavam de
par, se calhar a Inês troçava de mim, contava histórias
ridículas a meu respeito, inventava, aumentava, torcia, e
depois? Eu quis voar alto demais para mim, meu lindo, e era
justo que pagasse as favas, era justo que me lixasse um
bocado, era justo que aprendesse à minha própria custa o que
de facto era: um saloio, o filho de um antigo tipógrafo, um
pateta ingénuo à deriva. E isso levei tempo a entender mas
palavra de honra que hoje sei: tu por exemplo, que te vais
safando, não arranjas emprego lá nas mudanças para um
cretino como eu?
— As coisas que a gente aguenta, caralho, queixou-se o
tenente-coronel pela ponta dos beiços, a quantidade de coisas
fodidas que nos obrigam a aguentar.
Estendido de costas na lama, entre dezenas de cadáveres e
de vultos indistintos, altíssimos, que se mexiam, a escutar o
chapinhar viscoso da água, o assobio das ervas e o rangido de
solas novas das rãs, o alferes viu-se a pousar as malas, a salvo,
no vestíbulo, junto ao negro de ébano, em tamanho natural, da
escadaria para o primeiro andar, viu o rápido reflexo da Inês
no espelho de talha, uma pirâmide de sobretudos e casacos
amontoados na arca, os desenhos apagados da carpete, o
primeiro cunhado, já calvo, olheirento e preocupadíssimo, de
braços no ar, Prenderam o Gonçalo, prenderam o Mané,
prenderam o tio Inho, foram buscá-los a casa, foram buscá-los
ao banco, foram buscá-los à companhia de seguros, o Pedro
anda há que tempos a tentar ligar para Caxias e ninguém
responde, anda há que tempos a tentar apanhar o general
Ricardo no Ministério e nada, não está, não vem cá hoje, saiu
agora mesmo, experimente mais tarde, as aldrabices do
costume, sabes como é, ninguém me tira da cabeça que estes
cabrões da tropa se fizeram todos com os Russos.
— Se o coronel Ricardo vos tivesse ouvido, riu-se o oficial
de transmissões, dava-lhe outro enfarte agora mesmo: e logo
os Russos, hã?
A família da tua mulher era do camandro, chiça, sempre a
mania das grandezas, abaixo de Moscovo nicles.
Estendido de costas nas ervas e na lama, com o corpo a
submergir-se lentamente na água, assistiu à sua própria
chegada, atrás da Mariana e da Inês, à sala da lareira (uma
plataforma de tijolos e de placas de vidro debaixo de uma
chaminé de metal preto, construída pelo sogro a fim de
justificar a sua desocupação absoluta) e lá estavam, meu
capitão, cirandando como apavorados fantasmas entre as
poltronas e o bar, cochichando solenemente numa súbita
atmosfera de igreja, os primos e primas e tios e tias e vagos
parentes quase desconhecidos do costume, lá estava a minha
sogra a conferenciar com o irmão mais velho, grisalho,
responsável, de gravata cor de pérola, instalado no sofá
habitual, lá estava a senhora dos cabelos roxos, faiscante de
pulseiras e anéis, que lhe deu a beijar, distraída, a mão ossuda
de cegonha (e os insignificantes pássaros cor de caca saíam
um a um dos caniços, e um segundo barco a motor descia
laboriosamente o rio), encostei-me à janela e o mar pulsava ao
longe o seu azul intenso, e as nuvens reflectiam-se, nítidas, na
sua lâmina polida, uma voz ansiosa perguntava ao telefone O
general Ricardo já chegou? pode-me passar o general
Ricardo?, o sogro abismava-se como um mocho no retrato a
óleo, diluído pelos anos, de um cavalheiro de bigodes e
corrente de relógio, dois ou três bustos do avô presidiam
desdenhosamente, no tampo das cómodas, a assembleias de
fotografias, a lareira monstruosa assemelhava-se aos altares de
sacrificar borregos do Antigo Testamento, Não atendes?,
pasmou-se a mãe, não queres falar à tua namorada?, e
apeteceu-me responder-lhe (de pé, de mãos nos bolsos, diante
dela, com as costas encharcadas de lodo e uma humidade
esquisita a esfarelar-me os ossos) Não percebeu que morri?,
não percebeu ainda que já deixei de existir?, porque eu nunca
estive vivo naquela casa, meu capitão, porque sempre olharam,
compreende, através de mim como se eu lhes fosse
misteriosamente transparente, porque a minha única e quase
nula densidade provinha do facto acessório de ser o marido da
Inês que a senhora do cabelo roxo consolava acariciando-lhe
os ombros e o pescoço, puxando-a com força a si, encostando
o joelho dela ao seu joelho, Ó Jaime entregue os bilhetes de
avião aos pequenos, ordenou a minha sogra, os soldados
treparam de novo para a camioneta cinzenta que desapareceu,
a pular e a sacudir-se, na sombra de um prediozito isolado, da
cabana de um desses pescadores ferozmente solitários, de
grandes botas de borracha que cheiravam a peixe podre e a
vazante, o pai da Inês despertou sobressaltado da sua
meditação de ovelha para oferecer a cada um de nós uma
caderneta estreitinha, no ar humilde de quem distribui
prospectos numa esquina, No aeroporto às onze da noite, no
aeroporto às onze da noite, no aeroporto às onze da noite,
repetia ele num murmúrio apagado de oração, Encontramo-nos
na sala de embarque, esclareceu o tio, o importante agora é
sair daqui, despachem-se, despachem-se, procurem a casa de
um amigo, de uma pessoa qualquer de confiança, de alguém
que a Polícia e o Exército nem sonhem, e outra vez o som de
botas nas escadas, os gonzos a voarem em estilhas, roucos
berros indistintos, bocas quadradas vociferando ordens, os
bustos de mármore do avô espiavam-nos com a expressão
alarmante das estátuas, os cunhados, os primos, os parentes
serviam-se de mais uísque, de mais gin, de mais gelo enquanto
rugas derrotadas lhe aumentavam os ângulos da boca, Ó
Jaime, comandou a mãe da Inês quase aos gritos, dê o dia de
folga ao pessoal e tire-me você a station da garagem, Cintos,
gravatas, atacadores e dinheiro para cima desta mesa, exigiu
um furriel de braçadeira vermelha e pistolão à cintura, agarrem
as calcinhas com a mão e toca a andar em bicha para as celas,
longos corredores de grade, gente amontoada como galinhas
em cubículos minúsculos, paraquedistas de olhos de boxer
horas e horas sem comer a sonhar com frangos, com bifes,
com sardinhas, esventrados colchões de palha repletos de
nódoas, de manchas de crostas de bolsado e sangue seco,
Querem vir até lá a casa?, perguntou a senhora do cabelo roxo
a ajudar a Inês a vestir o casaco e a afagar-lhe à socapa os
tendões do pescoço, e eu, dentro de mim, É uma ideia, e eu,
dentro de mim, Porque não?, e eu, dentro de mim, Quero lá
saber, mais um busto agora sardónico, mais um retrato do
velho troçando da minha passividade, do meu consentimento,
da minha inércia, Realmente o meu alferes exagerava,
concordou o soldado, realmente o meu alferes deixou que a
sua esposa fizesse de si o que queria, alguns sobrinhos
flutuavam sem peso nos tapetes ou esbarravam, aéreos, contra
os móveis, soprados pelo vento suão da heroína, um dos
cunhados mais novos, muito alto, muito magro, muito feio,
introduziu uma cassete de desenhos animados no videotape da
televisão e tombou, indiferente a tudo, de longos braços
murchos, numa poltrona de ramagens, um gato e um rato
monstruosamente humanos desataram a perseguir-se no écran,
Uns para a quinta, aconselhou o tio do banco, outros para o
andar de Lisboa, outros para o sótão da tia Vera, coitadita, que
como está xexé e sempre na cama a repetir tolices não há
perigo que venha a dar por nada, e o alferes entreviu dezenas
de majestosos relógios contraditórios baloiçando na penumbra,
livros encadernados, enciclopédias velhíssimas, serviços de
chá num carrinho, um piano de cauda e uma estante de
partituras numa sala enorme, Se vocês pensam que vão herdar
alguma coisa, berrava a velha apontando o caruncho dos
armários com a bengala a tremer hipérboles furiosas, tirem daí
o sentido que vai tudo direitinho para a Misericórdia, que vai
tudo direitinho para o Museu de Arte Antiga, Ó Jaime,
ordenou a sogra, ponha o máximo de jóias que puder no fundo
falso da mala, o telefone voltou a tocar, a minha mãe cravou a
agulha no novelo, agarrou o auscultador Está lá?, Dois em
cada cela e depressinha, ladrou o furriel, que eu não vou levar
aqui a tarde inteira à espera que suas excelências se decidam,
É a tua namorada, informou a mãe num sussurro, tapando o
bocal com a mão, a dizer que está há mais de meia hora à
espera à entrada do cinema, pergunta se já saíste há muito
tempo, o que é que tu queres que eu lhe responda?, Fui-me
embora há séculos, mãe, sigo a caminho do Brasil, mãe, aos
anos, caramba, que isso foi, aos anos que estive apaixonado
por ela, aos anos que tremia, e vacilava, e gaguejava, e o
sangue se me coalhava de golpe no corpo só de a ver, a tua
cara tão diferente das restantes no meio de dezenas de caras, a
tua gabardine sobressaindo, única no meio de dezenas de
gabardines, e pronto, a breguilha a inchar, incontrolável, no
sobretudo, intermináveis invernos de paixão e pasmo, de
aflições, de dúvidas, de esperança, guardei os bilhetes no bolso
de dentro do casaco, os automóveis estacionados no pátio
desciam a ladeira de cascalho esmagando as pedrinhas soltas
com os pneus, os cães latiam, mordiam-se, rebolavam na relva,
iam e vinham, aos pulos, destruindo tempestuosamente os
buxos, e veio-me à ideia a primeira vez que entrámos,
excitadíssimos, corados, de mão dada, escoltados pela
desconfiança da porteira, no andar sem móveis da Rua da
Mãe-d’Água, veio-me à ideia a primeira vez que percorremos
os compartimentozinhos apertados, que experimentámos as
torneiras, que verificámos o fogão, que vimos duas florzinhas
de gás a assobiarem no esmalte, imaginando, inventando,
discutindo, somando o meu ordenado com a mesada dos teus
pais, chega, não chega, há-de chegar de certeza, Vou ter de
pedir que nos adiantem o dinheiro para a renda, querido, vou
ter de pedir que nos ajudem nas despesas, amor, e a tua
alegria, e os teus olhos contentes, e o teu sorriso, Inês, o
candeeiro de papel amarelo transportado em triunfo da loja, as
varetas de plástico, a esfera de papel, os círculos de arame que
se tornava necessário enganchar, articular, armar, Tens a
certeza de que fica bem, Jorge?, Tens a certeza de que não
partes nada, Jorge?, a entusiástica exaltação do princípio que
se desvaneceu tão depressa, tão depressa, a febre de descobrir,
de espiolhar, de procurar lojas, antiquários, colchoarias,
fábricas de loiças, de móveis, de ferragens, o maricas idoso, de
capachinho e bochechas poeirentas, a cheirar a perfume
espanhol, surrealisticamente chamado Espiridião, que tirava
medidas às janelas dissertando, a agitar os anéis, sobre
reposteiros e cortinas, a sua súbita, cúmplice, inesperada
intimidade com a Inês, a tua fé cega nas palavrosas opiniões
do velho, Pergunta primeiro ao senhor Espiridião, querido,
Tenho tanta confiança na experiência dele, querido, O que é
que achas que o senhor Espiridião faria aqui, querido?, e o
senhor Espiridião decidia, aprovava, reprovava, franzia o
sobrolho, proibia, cumprimentava-a com dois beijinhos
fraternais nas têmporas, concedia-me um feixe de dedos
moles, amaciados por cremes e loções, e depois, amor, a pouco
e pouco, amor, o hábito, a rotina, a maçada, a dificuldade de
arrumar o carro no meio de tantos carros, a primeira noite em
que pensei Não me apetece puto voltar para casa, Não me
apetece puto esta monótona existência de alforreca, o primeiro
copo num bar, a seguir ao emprego, sentindo-me infeliz,
sentindo-me culpado, sentindo-me sozinho, sentindo-me idiota
por me sentir infeliz e culpado e sozinho a folhear sem ler uma
revista qualquer, entre objectos de loiça e postais dos anos
vinte, o meu surdo, veemente desejo de viver sem ti, de fritar
peixe num fogareiro de petróleo, de ganhar, meu capitão, a
adolescência que não tive, Ainda não se foram embora?,
perguntou a sogra que corria de um lado para o outro a
arrebanhar pratas, Ainda aqui estão à espera de que vos
venham prender?, os automóveis desapareciam na ladeira
seguidos pelo efusivo, irritante galope desenfreado dos cães, e
pela última vez o vestíbulo, pela última vez o enorme preto de
ébano, pela última vez a lanterna e os azulejos e os degraus
para o jardim, pela última vez os ali-comes fantásticos que
mugiam sob a tranquila superfície do mar, pela última vez o
cheiro da terra e da relva molhada e das plantas vermelhas e
amarelas nos canteiros, pela última vez Carcavelos, pela
última vez em Lisboa o cheiro agradável e macio dos ricos, a
Inês a entrar no Alfa Romeo branco numa desenvoltura de
proprietária, a senhora do cabelo roxo a tocar-lhe como que
casualmente o cotovelo, a aconchegar-se no casaco de peles, a
instalar-se ao volante, e a minha mulher a descer o vidro, a
rodar a boca na minha direcção, a olhar-me como se eu fosse
um subalterno, ou um merdas qualquer, ou um criado, a avisar-
me, O melhor é vires atrás de nós para o caso de te enganares
no caminho, a subir o vidro, a sorrir à puta da amiga, a menear
os ombros num trejeito coquete, o fumo do escape delas
adiante de mim, o cascalho triturado, a minha raiva, as luzes
dos travões que se acendiam e apagavam, a mão da Mariana a
acenar-me rápidos adeuses infantis, Odeio-te, Inês, desejo
tanto que tu morras, ruas e ruas, vivendas, quintais, o sol a
pino nas árvores de março, e sempre, ao longe, ora à esquerda
ora à direita, obsessiva, intensa, cintilante, quase doirada, a
presença omnipresente do mar.
— O meu alferes desculpe, mas a culpa era sua, opinou o
soldado. Com um par de estalos a tempo qualquer problema de
cornos se resolve.
— Três mulheres vejam só, teimava o tenente-coronel de
órbitas vagas, perdido num labirinto de recordações. Parece
que se tornaram amigas, parece que se tornaram como irmãs,
sei lá, iam ao cinema em grupo, iam tomar chá em grupo,
levavam os filhos ao médico em grupo, moraram inclusive na
mesma casa até ao general seguinte. Uma delas ficou por conta
do brigadeiro Horta, vão-se casar, as outras duas perdi-lhes o
rastro até hoje.
— Toda a gente sabe que partilhar um amante, observou o
oficial de transmissões a chupar como um rebuçado um
pedaço de gelo, sempre foi uma coisa que uniu muito as
pessoas.
Não tarda nada a maré sobe, pensou o alferes, este odor de
cogumelos podres, esta agitação das ervas, este inquieto
revolver da água, não me enganam: a maré sobe e submerge o
meu corpo, a minha boca, o meu nariz, os meus olhos,
distinguirei por momentos, acima das ondas, o céu sujo das
fábricas, as nuvens pestilentas da tarde, os prédios gastos de
Vila Franca oscilando na distância, o Alfa Romeo à minha
frente e o contorno das duas cabeças enterradas, lá dentro,
indo, voltando, seguindo por uma complicação pegada de
pracetas, de avenidas, de ruas, de travessas (Querem evitar a
tropa, deduziu ele, querem evitar encontrar-se com os camiões
militares), de bairros que eu não conhecia encostados aos
canaviais da linha férrea e ao edificiozito miserável, zebrado
de rachas e de fendas, da estação, de detritos acumulados nas
bermas, de tipos cinzentos a repararem um poste dos telefones,
galgaram uma azinhagazinha irregular, entre dois muros, e
deram com um telhado bicado, bancos de pedra, com patas
ratadas de leão, em torno de uma piscina oval, roseiras, o cubo
metálico, confusamente cheiroso, de uma estufa, grandes
varandas envidraçadas na direcção da serra, parei ao lado do
Alfa Romeo num rectângulo de tijoleira junto aos pretensiosos
arabescos da porta, um criado grisalho cumprimentou-o da
sombra povoada de arcas e tremós numa espécie cerimoniosa
de vénia. Olá, Fernando, disse-lhe familiarmente a Inês e o
alferes logo, dentro dele, Conhece-lo, cabrona, deves ter vindo
aqui uma porção de vezes enquanto eu aturava as chatices e as
porras do banco, chás de lésbicas, minha safada, longas sestas
em julho numa cama enorme, tardes inteiras a lubrificar-te de
óleos, em cima de uma toalha com Snoopies estampados, na
relva da piscina, E nem um tabefe, meu alferes?, espantou-se o
soldado, nem um murro no focinho para a meter na ordem?,
uma sala larga, almofadas, bancos baixos, uma escultura
complicada num canto, um caniche indiferente a dormitar no
tapete, o retrato de um senhor benévolo, de aspecto
estrangeiro, parecido com Maurice Chevalier (o mesmo lábio
saliente, o mesmo chapéu, as mesmas pálpebras franzidas), a
sorrir para todos numa infinita indulgência paternal. O alferes
arrotou e procurou às apalpadelas um gargalo, com o pardal
sem leme da mão a flutuar, incerto, na toalha:
— Nem um tabefe nem um murro, amigo (uma voz de
pavio, que se apagava e reacendia soprada por uma brisa de
gases), fiquei ali especado na sala, encostado ao carrinho das
bebidas, com a Mariana ao colo, observando estupidamente
uma tapeçaria gigantesca, verde e preta, que representava uma
espécie de ibis poisados numa espécie de palmeiras, ao mesmo
tempo que elas bailaricavam, quase sem rumor, à minha volta,
num sonâmbulo atrito de tecidos, conversando, fumando,
calando-se, servindo-se bebidas, levantando-se e sentando-se
em gordos sofás de napa que crepitavam e gemiam, eu ali
especado a acender um cigarro, a procurar um cinzeiro com os
olhos, a pular um torto passo tímido de peru na alcatifa,
ouvindo o arfar Barroso do caniche, ouvindo a tosse do criado
na copa, ouvindo (ou imaginando?, ou imaginando que
ouvia?) os efervescentes protestos do mar, a borbulhar mais
próximo agora, quase no interior de si próprio, a seguir a um
renque de vivendazinhas translúcidas e ao muro da Marginal
barbudo de mexilhões, de caracóis, de desperdícios, de limos,
a Mariana, sentada no chão, brincava com búzios, com
conchas, com cascas pintalgadas que soavam, Devia telefonar
aos meus pais, Devia avisá-los ao menos de que me vou
embora, Logo à noite apanho o avião para o Brasil, O tia Ilka,
pediu a Inês à senhora do cabelo roxo (e a outra, sorridente,
Sim, tesouro?), fiquei estafada com estas emoções todas, posso
ir descansar um bocadinho lá acima?, o retrato do Maurice
Chevalier acenava que sim na moldura, Fique sossegada, mãe,
não se preocupe, mal lá chegar garanto que lhe escrevo logo, a
dona da casa avançou para ele em reptações de cobra e o
alferes pensou Que velha que tu és, caraças, que podre por
baixo das pinturas e dos cremes e das cintas, mas aceitou um
conhaque, mas aceitou uma taça de bolachas salgadas, mas
instalou-se numa cadeira antiga de baloiço que oscilava de
leve inseguranças de convés, mas conversei da revolução com
ela, mas conversei dos comunistas com ela, mas entristeci-me
com ela pela prisão do Mané, que maldade, coitado, tão boa
pessoa, não merecia, um bando de soldados guedelhudos, sem
mais aquelas, pela porta adentro, imagine-se a injustiça,
imagine-se o horror, imagine-se o susto, incrível que os
americanos consintam nesta pouca vergonha, incrível que os
espanhóis não intervenham, a senhora do cabelo roxo
indignava-se, inquietava-se, debicava amendoins, Felizmente
o Greg está a trabalhar em Paris, Felizmente o Greg não sabe
nada disto, e o alferes fechou os olhos e lá estavam os
prediozitos insignificantes de Vila Franca no nevoeiro, lá
estava o rio, lá estavam os corpos desfeitos no talude e os
barquinhos a motor que tropeçavam, roucos, entre as margens,
lá estava o camião do Exército afastando-se, o lodo e a
bronquite das rãs que me penetrava no corpo pelos orifícios
escuros das balas, nem um tabefe nem um murro, amigo,
aquele tempo todo de Carcavelos tinha-me polido, tinha-me
aperfeiçoado, tinha-me envernizado, de forma que concordava,
abanava a cabeça, bebia mais conhaque, mordia mais
bolachas, Realmente que sorte para o Greg, caramba, com a
idade dele (oitenta e três anos, já?, não posso crer) este género
de desgraças, mesmo para um inglês, faz uma confusão
horrível, que sorte ele não andar ao par, que sorte as notícias
chegarem em surdina, amortecidas, ao estrangeiro, os vorazes
caranguejos amarelos da enchente passeavam-se no rosto
estilhaçado, de boneca de pasta, da Mariana, Vão comer-lhe os
olhos, pensou o alferes em pânico, tentando protegê-la com os
braços imóveis, aposto que vão comer-lhe os olhos, Dá-me
licença que telefone ao meu pai a avisá-lo de que me vou
embora?, pediu ele apontando o aparelho com o queixo,
caranguejos a segurarem pedaços gelatinosos de tripa com as
pinças, a transportarem-nos lentamente, trabalhosamente,
avaramente, para a lama do fundo, caranguejos, e peixes
translúcidos, e salamandras aquáticas, e uma raça estranha de
enguias ou de cobras, Vão chupar-lhe os ossos, as unhas, a
meia dúzia de tendões, os fiapos de madeixas, Continuas um
tétrico, enjoou-se o oficial de transmissões, enquanto não te
atormentas com episódios sinistros não sossegas, escutou o
ruído da piscina que se enchia no jardim, a sereia de uma
ambulância distante, o caniche espreguiçou-se, farejou-lhe
vagamente os tornozelos, recaiu, indiferente, no seu coma,
marcou o número da tipografia e viu os homens debruçados
para as máquinas, o ruído monótono, as lâmpadas leitosas do
tecto, a sujidade, o pó, as janelas eternamente embaciadas de
uma película escura, o gabinete imundo do velho, a senhora do
cabelo roxo levantou-se, apagou o cigarro e a ponta de filtro,
retorcida no cinzeiro, tingia-se do vermelho do bâton, O
melhor é eu ir ao quarto ver se a Inês precisa de alguma coisa,
não lhe parece?, a campainha tocou duas ou três vezes e logo a
seguir a voz romba, indefinida, do pai, Está lá.
— Se eu fosse a si despedia-me dela em pessoa, censurou o
soldado, se eu fosse a si não me punha na alheta sem a
consideração de visitar a família.
Tinhas medo que a tropa adivinhasse e estivesse à tua
espera?, perguntou o oficial de transmissões. Tinhas medo de
um comité de recepção, de metralhadora em punho, na Rua da
Mãe-d’Água?
— O quê?, surpreendeu-se o pai, afogado pelo temporal das
rotativas. Para o Brasil? Logo à noite?
— Se quiser uns ovos mexidos o Fernando anda por aí,
ofereceu a senhora do cabelo roxo num súbito sorriso amável
que lhe abriu ao acaso, pela cara toda, fendas de prédio a
desabar: pernas murchas, seios murchos, pescoço murcho de
galinha: que graça encontras tu nesta gaja, Inês, que raio de
merda é que te prende a ela?
— Para o Brasil, confirmou o alferes aos gritos, na
esperança de que o velho lhe entendesse as palavras. Não
posso ir agora aí, mas amanhã ou depois escrevo para explicar
tudo.
Talvez o receio da tropa, sim, talvez a vergonha de fugir,
talvez a dificuldade crescente de se confrontar com a família,
com o fato coçado do pai, com o seu eterno fósforo espetado
na boca, com o trapo enrodilhado da gravata, com o polegar
molhado em cuspo para virar as páginas do jornal, com as
exageradas, tilintantes, tremendas jóias de pacotilha da mãe:
doía-me o mau gosto deles, meu capitão, doíam-me os móveis
decrépitos, os licores caseiros, os densos, intermináveis,
recriminativos silêncios à mesa, doía-me a sua excessiva
humildade diante dos meus sogros, os pedidos mudos de
desculpa, a forma como conversavam, se despediam, como
estendiam a mão. Doía-me ter passado de chofre dos ovais de
crochet para tapetes persas sem ancorar nuns nem noutros, não
ser palhaço de barro nem consola do século dezoito, doía-me
sobretudo (aposto que vai achar idiota, aposto que se vai rir,
aposto que vai julgar que eu sou parvo) o imponente relógio da
cozinha, por cima da porta para a marquise, cujo mostrador
imitava uma caçarola e de que os ponteiros eram uma faca e
um garfo de alumínio, almoçando vagarosamente o tempo.
— Ouve-se muito mal por causa das máquinas, queixou-se
o velho aos berros. Que história é essa do Brasil?
— Ainda o mês passado comprei um relógio desses num
leilão, disse o soldado. São lindos.
— Espera aí para eu fechar a porta a ver se te consigo ouvir,
urrou com desespero o pai, e o alferes imaginou-o a atravessar
pesadamente o gabinete, de cigarro na boca, pisando as tábuas
do soalho e as folhas soltas com os botins por engraxar,
imaginou-o a empurrar a cancela de estufa que o separava da
oficina, imaginou-o a pousar os óculos na mesa, a coçar a
barba malfeita do queixo, a observar, perplexo, o telefone, a
pegar de novo, a contragosto, no aparelho: Filho? Está lá,
filho?
— Se a Inês precisava de alguma coisa, coitadinha,
escarneceu o tenente-coronel a esganiçar a voz, se lhe
faltavam luxos asiáticos, coitadinha, se chorava pela minha
ternura coitadinha: e você, seu urso, a ver passar os comboios,
não?
— Funcionam que é uma maravilha, explicou o soldado. O
motor nunca se avaria, em lugar de campainha fazem um
barulho de tachos às meias horas e de frigideiras às horas, não
entendo o que o meu alferes tem contra eles.
— Repete lá tudo do princípio, ordenou o pai, que pode ser
que eu agora já te consiga perceber direito. Um avião para o
Brasil?
— Que é como quem diz Deixe-se estar quietinho, seu
parvalhão, enfureceu-se o tenente-coronel, enquanto eu vou
num segundo fazer-lhe o servicito à patroa. Beba o que quiser,
fume o que quiser, tome conta da filha se quiser, chame o
criado à vontade mas não empate a gente: a gaja ainda por
cima ria-se de si, a gaja ainda por cima gozava-o de grande e
você a consentir que o reinassem, que o embarrilassem, que
tourada.
— A tropa a prender pessoas por dá cá aquela palha?,
admirou-se o pai. Não me constou que na vizinhança se
prendesse ninguém.
A camioneta do Exército desapareceu lá em cima, na
estrada molhada, por detrás de um bosquezito famélico, a maré
arrastava já consigo, na direcção da foz, o corpo da mulher
idosa de mistura com placas de lodo, crostas de lama, tufos de
ervas, lixo, outros corpos de pescoço quebrado mergulhados
na água, o apito de uma locomotiva dinamitava o silêncio,
rachava em mil súbitos pedaços a sua branca e convexa
superfície de louça, as pessoas aí do bairro claro que não,
velho, mas bombardearam um quartel na Encarnação, os
paraquedistas aterraram de Tancos para um golpe que falhou,
os comunas decidiram que a família da Inês, os tipos do
capital, os empresários, os ricos, a Igreja, maquinavam uma
revolução qualquer para os apear do poleiro de modo que se
vingam por aí a encher as cadeias de infelizes, têm as
companhias e os bancos guardados por gorilas checoslovacos,
calcule, disfarçados de operários da construção civil, que me
chamam um figo se me apanham, e o pai a ruminar, sem
espanto, no meio do ruído das máquinas, Ai sim?, Ai ele é
isso?, acabou o conhaque, pousou o cálice num tampo de vidro
junto ao Maurice Chevalier aprovativo e sorridente, Graças a
Deus que estás em Paris, meu cabrão, graças a Deus que estás
no caralho que te foda, levantou-se, a Mariana, de gatas,
abanando o rabo inchado de fraldas, rodeava-se de conchas, de
búzios, de tacinhas de prata, de bonequitos orientais de pedra
azul (sujeitos de bigode, pássaros, animais fantásticos), o
catarro do Fernando aproximava-se e afastava-se, casual como
o vento, do outro lado da parede, A tosse dele anda a espiar-
me, pensou o alferes caminhando, em pontas de pés, ao longo
do corredor decorado por espingardas antigas, armaduras que
recordavam lagostas humanas, gravuras de caça enxameadas
de perdigueiros e cavalos, uma sala de jantar na penumbra, de
cadeiras de espaldar alto e muito hirto, a biblioteca com os
seus obesos volumes encadernados, cor de boi, com ferragens
doiradas, as suas fotografias emolduradas a cabedal, as suas
grandes jarras de porcelana em tons de vinho, as escadas para
o primeiro andar, Entregaram-me agora os bilhetes de avião,
pai, claro que a Inês e a miúda vão comigo, os caranguejos
dilaceravam o nariz da Mariana, as gengivas, a língua, o
contorno dos malares, Se eu ficasse cá, mais hora menos hora
metiam-me dentro, pai, o melhor é pirar-me por uns meses, e o
silêncio a coalhar-se na extremidade oposta do fio, pesado de
recriminações suspensas, Porque te casaste com, porque te
meteste a, qual foi a tua ideia em, mas não dizias nada, velho,
nunca dirias nada, sempre cruzaste a minha vida numa
absoluta mudez, numa total indiferença, obstinadamente
abraçado às páginas desdobradas do jornal, de óculos opacos
de parágrafos e títulos, subiu os degraus correndo de leve a
palma aberta no corrimão envernizado, plantas em vasos,
árvores da borracha, fetos hirsutos, um cubículo com uma
escrivaninha antiga de embutidos, um canapé de palhinha,
abajures, Nesse caso, gritou o pai sobrepondo-se a custo ao
som de monótonas cambalhotas metálicas das máquinas, o
melhor é desligarmos já, rapaz, quem nos diz que o teu
telefone não pode estar interceptado, e nenhuma emoção na
voz dele, nenhum interesse, nenhum afecto, nenhum desgosto
aparente, despachavas-me à pressa, livravas-te de mim à
pressa, Segue para o aeroporto, desaparece, vai, Sei de casos,
garantiu o soldado, em que os pais não gostam dos filhos, meu
alferes, não os chupam nem além da bala, sei de casos em que
davam tudo para os ver o mais rapidamente possível pelas
costas, foi indo passadeira fora, de cabeça vazia, ao encontro
de uma porta aberta, escutou o riso inesperadamente
masculino da senhora do cabelo roxo, o riso submisso da Inês,
combinando-se, entrançando-se, confundindo-se, apercebeu-se
de um ângulo de tapete, de persianas corridas, de uma blusa no
chão, desligou o aparelho e o rumor da tipografia ficou muito
tempo a vibrar-lhe, frouxo, nas orelhas, voltou-se para trás, fez
um sinal com o braço ao sargento que o seguia, os uniformes
dos soldados passaram a correr por ele, um sapato de borracha
mordeu a blusa da Inês, sentiu o penetrante cheiro suado dos
homens, deu-se nota das manchas castanhas e verdes dos
camuflados e dos canos cinzentos, baços, das espingardas,
desceu de novo ao rés-do-chão com a lenta cautela de há
pouco, e ia pegar na Mariana ao colo, e ia a responder ao
soldado Não é isso, quando o primeiro, lancinante guincho lhe
apertou instantaneamente as tripas numa angústia infinita.
9

A Odete começou a estudar para enfermeira e daí a nada


casámos, explicou o soldado. Escusado será dizer que foi sol
de pouca dura.
— Nunca lês um livro, nunca lês um jornal, não tens
interesses nenhuns, és um idiota chapado, enfureceu-se ela, de
luvas de borracha cor de laranja, a limpar a loiça com ódio.
(Pela janela aberta as galinhas pulavam entre as couves, no
quintal.) Que maluqueira me passou pela cabeça para me
empandeirar contigo?
— Casar com a Odete?, ofegou o tio a mirá-lo, por detrás da
flor da secretária, com os olhos mortos de robalo. Não te vem
uma ideia melhor aos cornos, meu rapaz?
— Principiou a humilhar-me quase logo a seguir, meu
capitão, queixou-se o soldado. A humilhar-me, a fazer pouco
de mim, a mostrar-me o merdas que eu era. E por muito
trampa que a gente seja sempre temos o nosso orgulho, não é?
Depois do muro escavacado, de tábuas e de pedra, do
jardim, outros jardins igualmente acanhados e tristes, telhados,
pedaços de parede, aparatosas antenas de televisão, as árvores
verticais, altíssimas, do Campo Santana, completamente
imóveis na noite, contornos esfumados de prédios em redor:
eu fechava a janela do cubículo para me deitar, e sentia a
inquietação da capoeira, as patinhas de gaze de um gato no
tecto de zinco, e via as couves brilharem, quase negras, quase
azuis, no escuro, os arredondados, sobrepostos folhos
metálicos, insígnias luminosas a pulsarem ao longe: Um dia
destes mudo-me para o quarto da Odete, voltado para a
ausência de mistério da rua, durmo no meio dos lápis, dos
cadernos, dos poemas e das bonecas de pasta, e venho aqui de
pijama, às escondidas, espiar os legumes que crescem sob a
terra como os pêlos da barba, espiar o enorme, violento
coração surdo da cidade erguendo e baixando o soalho,
regulando a intensidade dos cheiros e dos sons, a distância dos
objectos e a opressa tábua aflita do meu peito que range.
Venho aqui às escondidas e as couves incham na sombra,
aumentam, alargam-se, florescem, cobrem a casa, rebentam
com a tumultuosa força das raízes o piso da calçada, derrubam
os candeeiros, as carrocitas e os triciclos dos vendedores
ambulantes com os caules, devoram as árvores e os edifícios
imprecisos do Campo Santana, secam o rio, invadem as
fábricas da Outra Banda com os seus caracóis gigantescos e os
seus gelatinosos parasitas quilométricos, aprisionam as
gaivotas e transformam o mar numa imensa planície de basalto
repleta de barcos defuntos, em cujas crateras borbulham, de
quando em quando, poeirentas e constipadas erupções lunares.
— Se já lhe conhecias o feitio porque caneco te casaste?,
perguntou o alferes. Afinal de contas quem é masoquista és tu.
— O casamento é uma chatice e peras, desabafou o senhor
Ilídio baixinho, na esperança de a contabilista o não ouvir, a
compor a flor da jarra com as unhas sujas. (Que medo que tu
tens dela, pensou o soldado, como a gaja te traz à rédea curta,
meu marau.) Queres apodrecer em vida, soprou-lhe o velho,
queres morrer aos bocados, queres finar-te às postas? Se eu
fosse a ti deixava-me de lirismos e continuava como estou.
— A tua mãe e o teu tio, berrou amargamente a avó, na
cozinha, para ele miúdo, a vigiar de olho severo o andamento
do almoço, enforcaram-se como bestas que são.
— Repara só no que aconteceu, disse a irmã na saleta da
casa da Buraca, designando centenas de filhos mulatos com o
braço. Os comboios trotavam, ruidosíssimos, por trás dela, o
marido, de óculos escuros e camisa havaiana, decifrava o
jornal desportivo numa poltrona rebentada. Não sobrava um
único bibelot inteiro, o espelho do armário, quebrado, deixava
ver a madeira bichosa da porta, um odor de jazigo desprendia-
se da pia, pratos de comida amontoavam-se na toalha de
oleado. A irmã, com o cabelo a soltar-se, rígido e porco, dos
ganchos do carrapito, avançou um passo sobre as coxas
frouxas, empurrando diante de si o odre mole da barriga:
cheirava densamente a lixívia, a suor, a refogado, a mandioca,
e a diarreia verde de bebé: Quase como em Moçambique,
pensei eu, quase o mesmo lixo, a mesma miséria, o mesmo
abandono resignado, os mesmos famélicos cachorros
farejando: É isto que tu procuras, perguntou ela, é isto que tu
ambicionas para ti?
— Não vejo pressa nenhuma em nos casarmos, disse a
Odete a lamber um gelado no intervalo do cinema, um
daqueles filmes complicadíssimos, sonâmbulos, sem tiros nem
murros, que sabe-se lá porquê ela escolhia sempre. Deixa-me
acabar o curso primeiro.
— A sério? Palavra que é a sério? Não estás a mangar com
a gente, por acaso?: o mudo, entusiástico, quebrava-lhe as
costelas de tremendas palmadas fraternais. Porra, mano,
papamos uns paneleiros extra logo à noite e arrebentamos as
tripas de mariscos para festejar.
E lá estavam os esquivos vultos estreitos a fumar, em
Alcântara, na beira do passeio ou entre as árvores, os
automóveis, de faróis nos mínimos, que se roçavam por eles,
que se afastavam e se aproximavam numa insistência oblíqua,
que hesitavam, que paravam, que desciam timidamente o
vidro. Chegávamo-nos, inclinávamo-nos para dentro,
discutíamos o preço (Quatrocentos, quatrocentos e cinquenta,
quinhentos) com ansiosas silhuetas difusas que repetiam Entra,
entra, abríamos a porta, a fraca lampadazinha de plástico do
tejadilho acendia-se, a silhueta transformava-se num senhor
gasto, bem vestido, de gestos retrácteis de anémona, e depois
para Monsanto, para a cerca do Clube de Tiro, para debaixo da
Ponte, ou, com um bocado de sorte, para um apartamento
anónimo no Restelo ou em Oeiras, sobranceiro ao rio,
sobranceiro ao mar, o vestibulozito, a sala estereotipada, o
quarto, o senhor a sorrir acanhado no elevador, a alargar a
gravata, a desapertar os sapatos, a tratá-lo por você, a
interessar-se por ele a fim de mascarar o embaraço, Como é
que se chama, em que é que trabalha, quantos anos tem.
— Pela igreja?, indignou-se a Odete. Tu não regulas da
cabeça, eu não quero nada com padres.
A avó debruçou-se, a torcer a boca com asco, para a orelha
amedrontada do soldado criança, que recuava a colher da sopa
diante das trémulas, carnívoras mamas volumosas que
cresciam:
— Pari duas cavalgaduras, caralho, um par de burros
ordinários com a mania das camas de casal. Também com o
artolas de pai que lhes calhou na rifa o que me espantava era o
contrário.
— Muito tremoço, muito camarão, muito búzio, muita
sapateira, muita santola, muita cerveja comemorativa, disse o
soldado, um cartaz a anunciar As Bebidas Expostas Destinam-
Se Ao Consumo Da Casa, Isto hoje fica por nossa conta,
chefe, a manhã a nascer na Ribeira, a mesa repleta de cascas e
de copos, o néon já inútil do tecto, rostos tensos de bebedeira e
de cansaço, vontade de urinar na pestilenta retrete quebrada de
loiça, gaivotas desgovernadas piando sobre as camionetas de
fruta do mercado, ímpetos revolucionários desenhados a
carvão nas paredes das casas: uma farra melancólica e pesada,
pontuada de arrotos monumentais e de desabalados vómitos na
serradura do chão, de tipos pálidos a escorregarem como
esparguete nas cadeiras, de putas estremunhadas e de travestis
azedos disputando o sobrinho da contabilista num pandemónio
de ameaças, seguida de uma madrugada de nebulosos
autocarros de dois andares que se confundiam com os
cargueiros do Tejo, vogando ao acaso em ondas de rosé ou
atravessando fluidamente o grande edifício pardo da estação, e
a cujas janelas assomavam de tempos a tempos os
inexpressivos e ocos rostos de manequim dos passageiros.
— Eu nunca mais tinha visto a minha irmã, meu capitão,
disse o soldado, até ao dia em que ela me apareceu no
armazém envelhecida e imunda, com um bebé ao colo, e uma
multidão de garotos de várias idades dependurados da saia.
Pediu-me dinheiro emprestado porque tinham expulso o
mulato, por roubar ou qualquer coisa do género, do restaurante
do aeroporto.
Ajudava o velho a enfiar um sofá na furgoneta, quando um
dos colegas o chamou da base da rampa de cimento que acedia
à rua: Estão à tua espera lá em cima, Abílio, uma gaja e uns
dez putos pretos que não vêem sabão há seis meses.
— Posso saber que raiva é essa contra a enfermagem?,
encrespou-se a Odete. Posso saber o que é que tu tens contra
eu estudar?
As Mudanças Ilídio funcionavam ao pé da Luciano
Cordeiro, eu conhecia de ginja as pegas das redondezas, uma
vez por outra conseguia uma borla e trepava íngremes,
precárias escadas às escuras atrás de raparigas magríssimas, de
olhos pintados a carvão de hulha e verniz das unhas a estalar,
para breves coitos desengonçados em arruinadas camas de
ferro, pegava-me à conversa com elas nos seus exíguos
saguões de corujas, sentado em cuecas e camisola interior, a
coçar os sovacos, no bidé de esmalte, transportava-as na caixa
da camioneta, apertadas entre trémulas pilhas de móveis, se
iam trabalhar, oscilando as nádegas em bermas poeirentas,
para a Cova da Piedade, para o Seixal, para a Amora, para as
imediações das fábricas sarnosas do Barreiro ou do quartel dos
fuzileiros, almoçávamos juntos, quando calhava, nas
fumarentas tascas de gatos-pingados que rodeiam a Morgue,
de modo que pensei é a Dolores ou a Berta ou a Celeste que
me querem falar, a Adelaide, como de costume, para eu lhe
desempenhar os brincos ou o fio, a Mafalda, coitada, a
queixar-se do chulo, e vai daí, meu capitão, acabei nas calmas
o sofá, prendi-o com cordas aos grampos ferrugentos, trepei a
ladeira na direcção do sol (ramos, chaminés, perfis
desarticulados dos prédios), passou pela gaiola de vidro do
escritório, onde o senhor Ilídio, de bomba para a asma
esquecida na mão, contemplava a sua flor com ferozes
olhinhos derrotados, uma saia, um casaco de malha, um corpo
vagamente familiar, vagamente íntimo, A Arlete?, pensou,
mas esta era mais alta e mais forte do que a Arlete, mais mal
vestida também, A Arlete não, contornos de um rosto que a
claridade excessiva dissolvia, ombros roídos pela luz, um
cacho de formas minúsculas agitando-se em redor, Aposto que
é a Clotilde e os seus eternos cães tinhosos, as dúzias de
rafeiros coxos que a acompanhavam sempre, lambendo-lhe as
varizes numa submissão apaixonada, e a cinco metros mechas
de cabelos por pentear, chinelos, dedos povoados de verrugas,
uma cara, percebe, parecida com a minha irmã que me fitava
sem sorrir, A Clotilde uma ova, disse-se o soldado, os
cachorros da Clotilde o tanas, um monte de garotos escuros, de
membros fininhos, agarrados às pernas estragadas, Não pode
ser, pensei eu, Não é possível, pensei eu, Há quantos anos?
quatro? cinco?, pensei eu, os dentes verdes, a roupa
amachucada, o anel com as iniciais no dedo médio, não a
Arlete, não a Clotilde, não a Berta, não a Mafalda, a minha
irmã, e ela, sem afecto, a embrulhar melhor a criança de colo
num xaile imundo, Olá.
— Pronto, estuda o que te der na veneta e esquece-te da
igreja, concedeu o soldado. Eu trato dos papéis, entrego-os
para a semana no registo.
— Duas cavalgaduras, conho, insistiam os seios gigantescos
da avó, a avivar os carvões do fogão com um espeto torcido,
duas cavalgaduras de primeira apanha. Com um focinho de
cretino como o teu, rapaz, não irás de certeza mais longe.
Não só miserável, pensou o soldado, usada também, e não
só usada, amarga ainda por cima e, pior do que amarga, sem
esperança: a Dolores, a Adelaide, a Mafalda, aguardavam
provavelmente ainda, sei lá, alguma coisa do futuro, uma
herança na terra, um cavalheiro educado, contabilista ou
bancário ou estabelecido, um emigrante idoso com a casa
posta na província e automóvel metalizado à porta, um
príncipe de história de fadas que lhes pagasse o almoço do dia
seguinte e a ama dos filhos, mas ela? Levara seguramente os
últimos meses a empenhar o frigorífico, a mobília, o televisor,
os candeeiros, o fio, o sofá exausto da época do pai, a
telefoniazinha portátil, o calorífero, enquanto o mulato,
impenetrável por detrás dos óculos, folheava os jornais
desportivos numa indiferença absoluta:
— O Zeca perdeu o emprego, Abílio, disse a irmã a limpar
o nariz à manga do casaco. Vim aqui pedir-te que me
ajudasses. Pedir-te esmola.
Assim, desta maneira, e nem sequer orgulho, pensei eu, nem
sequer coragem, nem sequer memória, puseste-me na rua, da
Buraca, quando eu voltei de Moçambique ainda tonto da
guerra, vai à merda: reviu o prediozito apertado, as camisas
penduradas de uma corda na sala, fotografias de finados nas
prateleiras, sorrindo de leve com a estranha doçura ausente dos
mortos, o som da chave na porta, o Zeca a entrar, a acender um
cigarro, a encostar-se à parede, a mirá-lo com uma tranquila
expressão vazia, e o soldado, de pronto, dentro dele, Se eu
continuasse tropa e estivéssemos em África levava a culatra
atrás e matava-te, e o soldado, de pronto, dentro dele, Desde
quando é que um preto manda em minha casa?
— Continuo sem entender qual é a pressa, admirou-se a
Odete. A Terra não explode amanhã, pois não?
— A gente precisa aqui de pessoal, ofereci eu, o que temos
não chega nem de longe para os fretes. Eu falo ao tio Ilídio e
admitem-no.
Quantas crianças ao certo? Cinco? Seis? Contou-as: oito,
carapinhentas, amareladas, com cara de fome, uma delas de
gatos no sobrolho e cotovelo num cilindro já pardo, a desfazer-
se, de gesso (caiu anteontem nas escadas, explicou a Otília,
gelada) outra tão vesga que a pupila se lhe sumia num ângulo
da pálpebra, de forma que se desse a peste suína nas tuas crias,
imaginou o soldado, talvez que tornasses a ser o que eras
dantes, talvez que pelo menos a tua vida melhorasse.
— O Zeca não deve estar interessado em trabalhar, disse a
irmã. Além disso foi-se embora a semana passada lá de casa
com todo o dinheiro que havia, e desde então não lhe pus a
vista em cima.
— Não conheço um preto que não seja um sacana rematado,
avisou o alferes. Meto os tomates no cepo em como se amigou
com uma fedúncia ranhosa num desses bairros de lata da
franja de Lisboa.
Cabanas de madeira e de zinco com pedras e pneus usados
no telhado, lama, um fedor espesso de porcaria, de comida
azeda e de excrementos, negras idosas, de cachimbo nas
gengivas, atiçando fogareiritos de barro, cortininhas de
plástico, lamparinas no meio de caixotes e panelas: Andei
quase uma semana inteira, com o mudo e o sobrinho da
contabilista, à procura do tipo em Alcântara, em Benfica, na
Amadora, no Casal Ventoso, em Algés, esmagando cagalhões
com as solas, tropeçando em calhaus, afundando-nos cada vez
mais num labirinto concêntrico de lixo e construções precárias,
habitado de berros, de latidos, de choros, de um inominável
silêncio, uma semana a fazer perguntas a indecifráveis bandos
de ciganos acocorados em conciliábulos sem fim, que nos
vestiam antes de responder, com os comprimidos folhos
sobrepostos das pálpebras, guiados pelo vago halo sem rumo
das tabernas, onde o vinho descia dos pipos na lentidão do
sangue nos pescoços degolados, uma semana, meu capitão, a
esbarrar em rostos opacos, de óculos e camisas havaianas,
fitando-nos, mudos, num denso desinteresse absoluto, em
crianças velhíssimas e sérias, de bocas tão pedregosas como as
dos rios no inverno, em cheiros e suores e relentos de peixe e
ásperos perfumes como murros, em aleijados que se moviam,
idênticos a aranhas moribundas, arrastando dezenas de
membros tortos e moles no piso irregular, e nada, Otília, o que
se chama nada, nada de nada, pode ser que no vale do Jamor,
pode ser que em Cabo Ruivo, pode ser que na província, pode
ser que nos barcos podres que se soltam de Alhandra a
caminho de sítio nenhum, à laia de balões sem bússola ou de
trombos desgovernados numa veia, pode ser que debaixo do
Aqueduto, pode ser que em Marvila, pode ser que no Montijo,
e negros e ciganos e burros e decomposta miséria, e
acabávamos invariavelmente a engolir as soturnas aguardentes
da derrota, de cotovelos no balcão, em lojecas de gaveto
tripuladas por bêbedos descalços que nem tocavam no soalho
os pés calosos, ou por ex-ruivas mirabolantes enforcadas em
fieiras sucessivas de colares de vidro, amigadas com idosos e
históricos campeões de luta livre, o Urso da Caucásia, o
Esquimó Mascarado, que engordavam, de pupilas naufragadas
em álcool, a escorropichar às escondidas calicezinhos de
branco.
— Vinte convidados no máximo, impôs a Odete, dez para
cada um e é um pau. Com a mãe doente não me apetece puto
encher a casa como para um arraial com filarmónica.
Ao cabo de uma semana (ou quatro, ou cinco dias, ou quase
instantaneamente, Otília?) descobriu que a irmã, cansada de
esperar por um Zeca demasiado invisível ou volátil para as
suas necessidades e gostos, o substituíra por um reformado dos
caminhos-de-ferro, de pensão firme ao fim do mês, cujo
reumático lhe impedia veleidades de fuga, um senhor careca,
sempre a levantar de esguelha o rabo da cadeira a fim de
introduzir supositórios contra as dores, abraçado a uma botija
e com uma manta nos joelhos, de rosto de cachorro sem
esperança que se animava, entre gemidos, ao lembrar-se do
ramal da Beira Baixa. Apareceram alguns móveis
envernizados, de fórmica, na casa da Buraca, uma almofada de
borracha para as hemorróidas e o retrato enorme de uma
mulher horrorosa, de cabelos brancos, toda arrepanhada para a
esquerda num sorriso antipático, A minha finada Cecília,
apontava saudosamente o velho com a unha vagueante do
mínimo, a multidão dos mulatos engordou um bocadito, a irmã
começou a varrer as cascas e o lixo para debaixo das mesas e a
pentear-se aos domingos, até que o reformado deu em piorar
da coluna, em ganir constantemente, em não segurar as fezes
nem o mijo, em acenar com o lenço, de minuto a minuto, a
comboios inexistentes que faziam tremer os pés da cama de
um desordenado galope de sombras, e a Otília o exilou, com
os seus sonhos de carruagens de mercadorias e a sua saudade
da mulher, para o colchão de palha do quartinho do fundo,
logo repleto de odores insuportáveis de amoníaco, de
embalagens vazias de supositórios e de lancinantes uivos de
papagaio moribundo, a que se veio somar a fotografia da
finada Cecília, arremessada com toda a força pela irmã, da
porta, no sentido de uma prolixa agitação de lençóis. Um
domingo, ao entrar em casa do pai, deu com um negro alto, de
óculos escuros, pulseira de relógio faiscante, vários anéis e
camisa estampada, a ler tranquilamente o jornal desportivo,
com ares proprietários, na poltrona de ramagens, friccionando
uma na outra as botas de verniz: O Damião, apresentou-o
orgulhosamente a irmã, a afagar-lhe a brilhantina da carapinha,
e a seguir ao Damião veio o Agostinho e a seguir ao
Agostinho o Aristides e a seguir ao Aristides o Minervino, o
número de crianças crescia a olhos vistos, a irmã deixou de
novo de varrer o pó e de se pentear, e o velho, esquecido,
gemia sem cessar no colchão lá ao longe, agarrado como um
náufrago à sua botija fria, à medida que vagões sucessivos
deslizavam velozmente nas paredes, abanando os cálices
desirmanados e as rodelas de crochet das prateleiras.
— No Castelo de São Jorge não, recusou-se a Odete, detesto
aqueles pavões nojentos aos saltinhos nas ameias. O melhor
ainda é fazermos o lanche numa pastelaria qualquer.
Falou ao mudo e ao sobrinho da contabilista para
terminarem as suas cegas explorações sem destino bairros de
lata adentro, perseguidos pela raiva amedrontada dos cães,
mas os colegas tinham-se habituado já ao luarzinho fosco das
tabernas e à atmosfera de confortável azia em que o bagaço
submerge as tripas e a cabeça, o mudo apaixonara-se inclusive
por uma decrépita morena luxuriante, manca do joelho
esquerdo, que dirigia uma casa de passe em ruínas, adaptada
de uma antiga escola, no Bairro da Boavista, frequentada por
uma escolhida clientela de ardinas, operários, adolescentes
furtivos e vagos gatunos desocupados, tentando impingir aos
frequentadores gira-discos e rádios de pilhas, de modo que
amanheciam de tempos a tempos, com um niquito de sorte, ao
lado de raparigas escanzeladas como mulas doentes, em
compartimentos separados por divisórias de pano, com mapas
de Portugal pendurados por cima das cabeças e ardósias
atarraxadas à caliça em lugar dos espelhos do costume, onde
as nossas caras ensonadas se transformavam em contas de
somar, a giz, com a prova dos nove pegada à precária pilha de
números das parcelas, diluídas pela esponja dos meses. A
morena, no vestíbulo, de garrafa de tinto ao alcance da mão e
beiços ferozmente pintados até ao queixo e ao nariz, cobrava
as entradas e vigiava com zelo o seu rebanho tinhoso, à
medida que o mudo, especado num vão, rebolava, para aquela
vigilante imperatriz da sífilis, admirativos soslaios redondos
de paixão.
— Pelo caminho que leva, profetizava amargamente a avó a
pescar um cabelo infinito do prato de sopa, seja cega se a
minha neta não se torna num instante uma cabra de primeira.
Levantava-me da cama, meu capitão, que era uma
acidentada enxerga em cima de umas pranchas no soalho,
escutava, para lá dos reposteiros de chita, sonos misturados,
cicios, insultos, peidos, conversas, risos, a voz autoritária e
sem idade da morena a descompor invariavelmente o mudo, e
adivinhava a manhã porque me floriam nos ossos cristaizinhos
de geada e túlipas de vapor. Cambaleava até à ardósia para me
pentear, uma baça, grossa noite de pedra, encaixilhada em pau,
reflectia o meu silêncio e as minhas olheiras, ignorava-me o
corpo como se eu houvesse, percebe, parado subitamente de
existir, oferecia ao meu espanto a solução sibilina de uma
multiplicação complicada, onde os algarismos se
encavalitavam uns sobre os outros, misteriosos como formigas
num bolo. A rapariga escanzelada murmurava uma frase
emblemática, evadida de um sonho sem nexo, os cães do
bairro da lata ladravam nas travessas transidas das seis da
madrugada, turvadas pelo relento dos esgotos, galos agudos
como espinhos magoavam-no dos tabiques desfeitos dos
quintais, o mudo, besuntado de baton como um pele-vermelha
de carnaval, saía a arrumar a fralda da camisa no interior das
calças, o sobrinho da contabilista, de capacete amarelo,
pedalava em vão o arranque da motorizada, Está bem, Odete,
no Castelo de São Jorge não, arranja-se uma pastelaria em
conta aqui perto, na Rua da Escola do Exército vi uma com
imensos bolos de três andares, casais de noivos, de açúcar, em
cima, e fios de ovos a toda a volta do prato peganhento de
papel, Que horas são?, perguntava a rapariga famélica a
desembaraçar os cabelos com os dedos, Só meia-noite,
continua a dormir, respondia o soldado abotoando a camisa,
Nunca namorei no castelo, meu capitão, nunca tive coragem
de a convidar a passar, por exemplo, um domingo lá no alto,
no meio das pedras velhas e da hera que transformava a luz do
sol numa espécie de cortina verde de limos gasosos, e quem
diz o castelo diz a Sé ou Alfama ou o Miradoiro de Santa
Luzia, a motorizada pegava por fim, apertavam-se no banco,
moribundos de cansaço, atrás do capacete amarelo, partiam
aos esses, inseguros, a pular nas pedras, a caminho da Baixa,
Nunca estive de mão dada a ver os pombos e as rolas e os
cisnes e os patos, Nunca estive de mão dada a ver o rio, os
beijos da Odete eram distraídos e rápidos, os seus abraços sem
força nem vontade, passava por casa para lavar a cara e os
roncos da dona Isaura atroavam o vestíbulo, ao décimo preto
de óculos escuros e camisa havaiana desinteressei-me do
prédio estreito da Buraca, nunca mais visitei a minha irmã e a
sua incontável colecção de mulatos, não paro no bairro há
mais de cinco anos e já me disseram que mudaram tudo, e já
me disseram que mudaram pouco, e já me disseram que tudo
prossegue igual, os edifícios feios, os prédios cercados de
andaimes, os materiais de construção abandonados, os montes
de entulho nos descampados cinzentos, a torre da igreja da
Amadora muito longe, não a convidei, claro, para o meu
casamento, não a convidei para o baptizado do meu filho, não
lhe participei nada quando ele morreu de meningite um ano e
meio depois, o médico da Caixa auscultou a criança, que se
chamava Ezequiel, escrevinhou uns xaropes num bloco,
rosnou em voz neutra É um princípio de pneumonia, nada de
janelas abertas lá no quarto, nada de correntes de ar, nada de
frio, e quando deram pelo erro, meu capitão, já o puto se tinha
fodido dos miolos, e depois o que é um princípio de
pneumonia, explique-me só, três dias em coma no hospital,
injecções, frascos de soro, pílulas, enfermeiras apressadas que
nunca respondiam às perguntas dele e da Odete, doutores
evasivos, maqueiros antipáticos, e por fim, num sábado à
tarde, à hora da visita, um senhor calvo de bata branca a abrir
os braços numa resignação fatalista, Vocês são novos e com a
vida toda à vossa frente, o que é preciso é coragem que diabo,
autopsiaram-no na segunda-feira e na terça os empregados das
Mudanças Ilídio compareceram em peso, afogados em flores,
no funeral, o meu tio teve uma crise de asma, por causa dos
crisântemos, durante as orações do padre, a contabilista
enxugava os óculos comovidos com o lenço, surgiram alguns
amigos antigos a tresandar a vinho, ainda lhe visitei a campa
umas quantas vezes e a seguir divorciei-me e esqueci-me, há
tempos recebi uma carta da Câmara a participar-me que fazia
cinco anos e iam remover os ossos, que se não pagasse um
gavetão no cemitério o entornavam para a vala comum entre
centenas de terrosos esqueletos sarcásticos a rirem-se, cheios
de dentes, para as pás dos coveiros, de modo, meu capitão, que
a esta hora se deve dissolver, com farripas de cabelo coladas à
caveira, no meio de centenas e centenas de tíbias, de costelas,
de vértebras e de maxilares desirmanados. Ezequiel?,
perguntou o alferes, e ele Ezequiel, sim, não por gostar
especialmente do nome visto que preferia Amândio ou
Teotónio, mas por causa do padrinho da Odete que era notário
em Lamego e lhes enviava na Páscoa um vale postal de
dinheiro e caixas de cartão com enchidos de porco.
— Bolos de três andares nem sonhes, declarou a Odete. Por
amor de Deus acaba-me com essas parvoeiras burguesas.
O soldado nunca percebeu bem, meu capitão, a mulher saía
às quartas e sábados para reuniões à noite no emprego e ele
não se atrevia a perguntar-lhe nada, voltava tardíssimo, despia-
se aos apalpões, sem acender a luz, e se eu lhe procurava o
corpo nos lençóis, se eu lhe afagava as nádegas ou o peito,
afastava-se logo para a ponta da cama, e respirava mais alto, e
tornava-se mais inerte, a fingir que dormia: em prego ou outro
homem para o caso é igual agora que se separaram há um
porradão de meses, pode ser que se tratasse de reuniões a
sério, pode ser que se tratasse de encontros amorosos, o certo é
que quase logo a seguir à boda, mal engravidou do Ezequiel,
era como se eu não existisse, sabe como é, como se eu fosse
um hóspede incómodo na casa. Se calhar desejava em segredo
que eu morresse também, se calhar desejava em segredo que
me caísse um armário ou um piano em cima, durante uma
mudança qualquer, ou então marimbava-se simplesmente em
mim, tanto se lhe fazia como se lhe fez, já que estás aí deixa-te
estar, desde que não me chateies quero lá saber. No entanto o
estranho era haver livros com foices e martelos na capa e um
calendário de pano com o retrato de um chinês, para além de
papéis e folhetos e brochuras fechadas à chave na gaveta da
roupa. Nessa época já ela desistira de súbito, sem razão que eu
soubesse, da enfermagem (tantas discussões entre nós, tanta
vocação, tanto estudo para nada), trabalhava como escriturária
no Ministério do Exército, melhorou a aparência, pintava as
unhas e o cabelo, emagreceu, usava saltos altos, vestia-se de
maneira diferente, a cintura ganhou ritmos inesperados, os
homens seguiam-na na rua, de olhos acesos, para lhe
examinarem a ondulação marinha dos quadris. Bem vistas as
coisas é possível que os Russos lhe pagassem, meu capitão, o
soldado nunca foi muito forte em política mas tanta foice e
martelo alertavam um gajo, eu ia continuando a arrastar
móveis para aqui e para ali, a transportar aparadores, a
carregar armários por patamares sem fim, chegava demasiado
cansado a casa para reparar nisto ou naquilo, mal punha o cu
numa cadeira adormecia, e a Odete, com desprezo, És um
bruto, és um inculto, só te preocupas em comer e ressonar e
mais bruta sou eu porque te aturo, e o ódio dos seus olhos, e a
raiva dos seus gestos, e a impaciência dos seus ombros, até
que uma noite, ao regressar do trabalho, moravam nessa altura
nos Olivais, num quarto andar ventoso de três assoalhadas
minúsculas, meteu a chave à porta, tudo às escuras, uma
sensação aflitiva de vazio, nenhum cheiro de comida, acendeu
a luz, faltavam livros nas estantes, faltava o retrato da dona
Isaura na mesinha do gravador, faltava o tacho do jantar sobre
o fogão, uma meia oscilava de uma cadeira como uma perna
de enforcado, um papel em cima da colcha da cama, Está-se
mesmo a ver o que ele diz, pensei eu, está-se mesmo a ver o
recado, a letra inclinada e veloz da Odete, abriu-o, Fui-me
embora.
— Nunca mais a viste?, perguntou o alferes. Nunca mais
soubeste nada dessa puta?
— Casares-te, gargalhou azedamente o tio numa
casquinadinha de periquito, com a bomba da asma apontada
aos dentes podres. Se julgas que te dou uma semana de férias
estás muito enganado, rapazinho.
Ainda fui ao Ministério para falar com ela, meu alferes, para
a esperar sob as arcadas à hora da saída dos empregos, quando
um fluxo pardo, informe, ininterrupto, quase mecânico, de
pessoas, invadia os barcos para a margem oposta, as mil
línguas de água do Tejo friccionavam molemente os degraus,
os candeeiros se acendiam ao longo das ruas paralelas,
revelando a inimaginável profundidade das fachadas. Não
furioso, entende, não despeitado, não de cabeça perdida, não
para lhe bater, apenas triste, confuso, perplexo, apenas para
conversar com ela, apenas com a amargurada, melancólica
necessidade de compreender, mas via-a sempre animadíssima,
veemente, alegre, gesticulando com ímpeto, acompanhada
pelo meu tenente ou por um tipo magrinho e esquivo a roçar a
bainha do sobretudo no passeio, de modo que não me atrevia a
aproximar-me, a abordá-la, a pedir-lhe para falar comigo, de
modo que acabava sempre, foda-se, por desistir, por ir ter com
os colegas solteiros à tasca da má morte (Cachorros, Pregos,
Salada de Polvo, Sandes Várias) do Cais do Sodré ou do
Bairro Alto onde jantavam, por beber sozinho cinco ou seis
decilitros de tinto, por os acompanhar, inseguro e vago, até à
escola primária da morena e dos seus reposteiros ou
cortininhas enodoadas das moscas, e entretanto o pó
acumulava-se nos Olivais, esqueci-me de pagar a conta da
água e a certa altura, pumba, cortaram-na, abria-se a torneira,
corriam duas gotas avaras, os vizinhos cumprimentavam-no
como se lhe velassem o cadáver, o marido da porteira pagou os
recibos atrasados, a senhora do rés-do-chão, viúva de um
sargento da Marinha, queria por força oferecer-lhe uma cadela
tinhosa, a roupa da cama cheirou durante meses e meses ao teu
corpo, uns sapatos esquecidos no armário obcecavam-me,
nunca mais fui ao Terreiro do Paço às seis da tarde, nunca
mais a espiou, por trás de uma coluna, junto à imóvel
inquietação de pedra dos mendigos cegos, os barcos atracavam
e largavam numa cadência intestinal, Se te queres mesmo lixar
o problema é teu, regougava o tio, mas não contes comigo que
não ajudo ninguém a suicidar-se, casaram-se um sábado à
tarde, em Arroios, numa conservatória decrépita onde meia
dúzia de mulheres pianolavam máquinas de escrever sem
idade protegidas por um balcão carunchoso, e mesmo ao lado
um estabelecimento de fotografia exibia na montra um
cardume emoldurado de risonhas noivas vaporosas, de
longuíssimas pestanas pensativas e doces, os camaradas do
emprego, de gravata, a rangerem tenebrosamente nas suas
solas novas, exploravam com método as tabernas das
redondezas, e quando a Odete e ele se sentaram defronte de
uma senhora compenetrada, remexendo papéis, uma dezena de
ferozes hálitos de aguardente flutuou no solene compartimento
do primeiro andar a cair de vermes e de humidade, a bomba
para a asma do senhor Ilídio assobiava num canto, a
contabilista, com um enorme broche de pedras azuis, em
forma de mó de moleiro, na gola, tossia enternecidamente na
mão, olhei-te a medo, de viés, e tinhas ido ao cabeleireiro, e
tinhas arranjado as unhas, e tinhas posto pintura nos olhos e na
cara, e trazias saltos e um vestido grená desconhecido para
mim, Vamos dar o pira e levar gajas, sugeriu o alferes, Vamos
sair daqui para minha casa, e apertavas os beiços um de
encontro ao outro, Odete, numa careta de arrependimento ou
de dúvida, Tão bonita, pensou o soldado, tão chique, tão lindas
as tuas mãos juntas nos joelhos, a senhora compenetrada pôs
os óculos, presos ao pescoço por uma correntezinha de argolas
de plástico, leu umas frases rápidas num livro encadernado,
soltou pela assistência uma ou duas ásperas perguntas sem
resposta, o sol comia devagar as tábuas do sobrado, alastrava
nas paredes gastas, empurrava a sombra sanguínea das árvores
para longe da sala, a criatura desenhou uma cruzinha a lápis no
sítio onde se devia assinar e virou majestosamente o registo,
como quem oferece o açucareiro, na direcção do meu peito, a
Odete abriu a boca e eu, logo, Arrependeu-se, vai mandar tudo
à merda, vai dizer que não quer, mas não, era um arroto,
escreveu o nome, direitinho, com a esferográfica que eu lhe
emprestei, na lentidão infinita com que os pretos, meu capitão,
se tatuavam em África, a bomba para a asma assobiou outra
vez e o soldado pensou Daqui a minutos o sol invade o tecto,
faz explodir o estuque, arranca brutalmente os relevos, seca o
bolor centenário e as suas florinhas idênticas a pólipos gordos,
convoca as amoreiras e as casas de Arroios para dentro do
quarto, a senhora dos óculos desenhou por seu turno uns
arabescos régios, fechou o livro, levantou-se, cumprimentou-
nos com desdém, desapareceu, abanando as vestes episcopais,
atrás de um reposteiro, Quatro gajas é pouco, recusou o oficial
de transmissões a quem o champanhe dilatava os apetites, pelo
menos duas, e é por baixo, para cada um de nós, Já que se
comemora, comemora-se, apoiou o tenente-coronel, duas por
caveira é o mínimo dos mínimos, e depois alguns abraços
chochos, alguns beijos moles, um anão de fato às riscas e
máquina fotográfica em punho gritava Aguentem, e disparava
uma lâmpada de magnésio, As alianças?, interrogava uma voz
preocupada, o que é que aconteceu às alianças?, mas não havia
alianças, Odete, não quiseste alianças, Não sou pombo de
pombal, rodelinhas com o nome e a data para quê?, ficaste no
dedo com o anelito de prata que já tinhas, Agora a família,
comandava o anão pulando à nossa volta, a enxotar o tio Ilídio,
contrariadíssimo, para o meio de nós dois, Agora os amigos
chegados, Agora os convidados todos aqui mesmo, e mais
relâmpagos de luz, e mais instantâneas eternidades cegas, e
mais corpos e rostos de repente imóveis, sorrindo, fixos, no
papel, lívidos e anfractuosos como pedaços de calcário, Agora
eu sozinho, pavorosamente rígido, Agora tu sozinha encostada
à palmeira do largo, e o teu olhar aborrecido, Odete, os teus
pulsos pendentes, alheados, os vincos impacientes da testa, a
tensão furibunda dos ombros, Nunca gostou de mim, meu
capitão, deve ter-se casado por inércia, para evitar explicações,
para se furtar a maçadas, deve ter-se dito Este ou outro é o
mesmo e deixo de aturar o meu padrinho e as preocupações da
família, Tens vinte e cinco anos e porque é que ainda não,
Ouve lá, rapariga, quando é que te decides a, Como se chama
o felizardo do, o que guardará ela por debaixo da saia não será
fruto já bichado que, ou então, percebe, casou-se por
conveniência, porque era preciso, sei lá, a bem da revolução e
do proletariado, das classes desprotegidas e laboriosas do
nosso tão martirizado, e contudo heróico, país, por o partido
mandar Arranjas um trouxa qualquer que te sirva de capa, um
idiota, camarada, um pateta, o que não falta por aí são cretinos,
e ela a dormir leninicamente com o nosso tenente e eu feito
parvo a carregar mobílias todo o dia, a foder a espinha com
aparadores às costas, arranjar hérnias do disco de levantar
sofás, e depois, à noite, voltavas-me o cu e adormecias,
distinguia-te o flanco, uma espádua, um pedaço de nuca contra
a claridade cor de sebo da noite da janela, que faço eu, caralho,
à minha tesão, Odete, que faço eu ao meu pijama que se
molha, que faço eu à minha tonta fome de ti, se te toco com o
joelho as tuas nádegas retraem-se, se te tento afagar os
músculos endurecem, se te procuro a boca foges-me como
uma gotinha viva de mercúrio, Dói-me a cabeça, Estou
cansada, Sinto uma coisa esquisita nos ovários, Agora não, a
palmeira de Arroios friccionava uns contra os outros os pentes
de baquelite das folhas, os rapazes do emprego navegavam
sem quilha em lagozinhos de bagaço, bufavam, acotovelavam-
se, riam, acabaram por afastar-se aos encontrões, ladeira
abaixo, no sentido da paragem do autocarro, a contabilista
ofereceu-me uma carteira de plástico a imitar crocodilo, com
bolsinhas transparentes para os retratos dos filhos e nem o
Ezequiel lá tenho, regressámos a casa, com o senhor Ilídio, na
furgoneta das mudanças, encostámos ao passeio, limpámos as
solas no capacho e nenhum borbulhar de intestinos ou
garganta no quarto da doente, nenhum sol de pulmões,
nenhum ronco de saliva, só o sol a atravessar obliquamente as
persianas e a desenhar lâminas paralelas no tapete, Meto no cu
a minha tuna, Odete, mas tu que fazes do peludo intervalo de
coxas em que me não perco, em que me não afundo?, o tio
Ilídio trotou desordenadamente corredor fora a soprar o seu
enfisema, a sua angústia, a puxar o nó da gravata, a palpar a
bomba na algibeira, abriu as portadas da janela e as couves e
as galinhas rolaram de mistura, confundidas, para cima da
colcha, em cujas ramagens escarlates a dona Isaura, de súbito
mais pequena, os olhos e as gengivas abertas, engolia, quieta,
as cinco horas comestíveis do relógio da igreja.
— Nem nunca soube que ela era casada, protestou o oficial
de transmissões, nem nunca ela me falou de marido nenhum,
de ligação nenhuma. Conhecia-lhe o nome de guerra, Dália,
encontrávamo-nos e despedíamo-nos na Organização, no
Ministério ou no metropolitano quando muito, não usava
aliança, não falava de si, se eu lhe fazia perguntas desviava o
assunto, brincava, conversava do tempo.
— De modo que vos andava a enganar aos dois, disse o
alferes, de modo que vos andava a encornar à má fila um com
o outro.
— Isaura, chamava o tio Ilídio a abanar os joelhos da
defunta, que tens tu, Isaura?
— A sério, ouve lá, perguntou o oficial de transmissões, se
eu sonhasse que ela te pertencia achas que te pregava uma
partida destas, hã?
— Ao princípio nenhum de nós acreditou, meu capitão,
disse o soldado. Parecia tão impossível estar-se assim morto
no meio dos legumes e dos frangos.
— Põe-na na furgoneta, ofegou imperativamente o tio Ilídio,
há-de haver soro e injecções e oxigénio e médico e enfermeira
e a puta que os pariu na clínica ali em baixo.
Não choraste nessa altura, Odete, como não choraste na
igreja, nem no velório, nem no cemitério na manhã seguinte,
quatro ou cinco táxis atrás do caixão sob um pano preto e
doirado que se assemelhava a um fato de toureiro sem mangas,
coroas enjoativas de flores, a compunção das vizinhas, velhos
solenes, um dos quais horrivelmente corcunda, de chapéu na
mão, eficientes gatos-pingados expeditivos, a urna
trabalhosamente descida, por intermédio de cordas, para um
escuro buraco rectangular, de uma profundidade infinita, o
som da terra tombando e tombando na madeira da tampa, o
incómodo, o desconforto, a aflita sufocação dos finados, o
odor de naftalina dos casacos e tu de óculos verdes, Odete, a
assistir, impassivelmente serena, a tudo aquilo, a receber quase
com um sorriso os cumprimentos das pessoas, a agradecer as
condolências sem levar, por uma única vez, o lenço aos olhos,
já serias revolucionária nessa época?, já te chamarias Dália
nesse tempo?, já o nosso tenente se teria posto nela se é que se
chegou a pôr?, os homens, meu capitão, gabam-se de tanta
coisa que não fazem desde que meta pichota pelo meio,
descemos a travessa o mais depressa que a camioneta andava,
a galgar passeios e a derrubar caixotes, a clínica era um
edifício pequeno, de um só andar, com várias tabuletas com
nomes de doutores, entre um restaurante manhoso e uma loja
de louças e de vidros inacreditáveis, cor-de-rosa e cor de
ranho, retirei a dona Isaura que não pesava mais do que a
esponja branca dos ossos, idênticos a um punhado de pauzitos
ocos ou de tíbias de pássaro, do banco de trás, o tio Ilídio
tocava angustiadamente a campainha, salas pintadas de creme,
cheiros indecifráveis de remédio, armários com pinças e
espelhinhos compridos de dentista, mesas de metal, baldes de
pensos, ferrugentas garrafas de oxigénio, macas com rodas,
Onde é que a podemos deitar onde é que a podemos deitar
onde é que a podemos deitar, grasnava em pânico o velho para
as paredes vazias, nas quais se dependuravam mapas com
esqueletos sardónicos e esquemas de intestinos e de fígados, e
finalmente, após horas de gritos, lamentos e reclamações,
sobreveio um ser de bata, sem idade e mais ou menos do sexo
feminino apesar da voz grossa e dos sapatos de homem, com
um estetoscópio no pescoço e uma seringa na mão, que
examinou, de lanterninha, as pupilas da dona Isaura, lhe
aplicou pancadas científicas nos cotovelos e nos joanetes com
a ajuda de um instrumento comprido de borracha, lhe ordenou
Respire fundo, tussa, diga trinta e três, desabotoando-lhe a
gola da camisa, se endireitou, a contemplou por momentos
como um bife mal passado e nos elucidou Está morta, se não a
levam depressa tenho de a mandar à Morgue para a autópsia (e
o soldado imaginou corpos tenebrosamente esquartejados em
pranchas de mármore, estômagos e rins pesados em balanças
de talho, crânios abertos à força de serrote), o tio Ilídio,
incrédulo, persistia Ao menos respiração boca a boca,
caramba, ao menos um choquezinho eléctrico no peito, ao
menos essas massagens que aplicam aos afogados na televisão,
Há mais de uma hora que a sua esposa pifou, esclareceu
didacticamente a médica andrógina, eu receito-lhes um
xaropezinho para a tosse a fingir que é bronquite, e vocês
desamparam-me o estabelecimento o mais depressa possível
que um cadáver cá em casa dá má reputação à clínica, os
doentes dos pensos rápidos e das unhas encravadas fogem
espavoridos se lhes cheira a defunto, Diga lá o que é que lhe
custa um sorozinho de nada, implorava o tio Ilídio, diga lá o
que é que lhe custa uma ampola de penicilina na veia, não há
penicilina que não arrebite uma pessoa, o ser encolhia os
ombros, incomodado, olhando para a porta não fosse surgir um
panarício, ou um arranhão inesperado, ou um sobrolho a
necessitar de conserto, a gigantesca boca aberta da dona
Isaura, insaciável, engolia agora a lâmpada do tecto, uma lata
de compressas e um biombo de folhinhos, que se evaporavam
silenciosamente na goela, Garanto-te que se soubesse que tu,
jurou o oficial de transmissões, garanto-te que se me viesse à
cabeça a menor das suspeitas, e nisto entrou na sala um
enfermeiro grande e gordo que tresandava a vinho e todos
juntos conseguimos convencer o tio Ilídio, que se socorria, de
momento a momento, da bomba da asma, como que para
encher a câmara de ar do seu desgosto, a transportar a finada
de volta para casa, o enfermeiro acompanhou-nos inclusive até
uma leitaria a meio caminho no intuito de animar o viúvo com
uns enérgicos bagaços revigoradores, dispensando-lhe
conselhos insólitos e opiniões de um optimismo delirante,
enquanto a defunta nos aguardava ordeiramente embrulhada
numa manta de xadrez, chegámos à travessa com o tio Ilídio a
explicar-nos, prolixo, entre cantorias e arrotos, que seja cego,
caneco, se não é aos sessenta e três anos que se principia a
viver, trocava-nos os nomes, beijava-nos, queria ditar o
testamento, derrubar o governo, inventar a máquina de lavar
pratos, festejar o Carnaval, adormeceu, por fim, no borco do
sofá da sala a ressonar como um rinoceronte, a Odete e eu (ou
devo dizer a Dália e eu, meu tenente?) vestimos a mãe dela
lutando contra a rigidez das pernas e do tronco (e uma
moitinha de pêlos grisalhos e malcheirosos lá em baixo, e a
pele da barriga repugnantemente flácida e cinzenta, e os
joelhos inchados mesmo ao fundo), calçámos-lhe uns sapatos
de verniz com uma fivela que se me afiguravam
repentinamente enormes e nos reflectiam e deformavam como
superfícies convexas de alumínio, a apontarem o tecto numa
tenacidade de sinais de trânsito, estendemo-la na cama,
acendemos velas à cabeceira, recebemos as primeiras vizinhas
que o tio Ilídio insultava, aos caralhos, no confuso vapor dos
seus sonhos, servimos vinho do Porto e bolachas de chocolate
da mercearia e ao cair da noite as couves começaram a cintilar
no quintal, repolhudas como meninas de muitas saias a
fazerem o pino, as casas das redondezas amontoavam à nossa
volta enormes, incolores, pesadas, ameaçadoras sombras
geométricas, sussurros, sopros, cacarejos, automáticas
deglutições breves inquietavam-se na capoeira, Apetece-me
tanto que mo toques, apetece-me tanto que mo beijes, apetece-
me tanto os teus dedos a subirem e a descerem, afanosamente,
lentamente, deliciadamente, o êmbolo da pele, Pensando bem
oito é demais, decidiu o alferes, levamos quatro para já e tenho
uísque e música em casa, Explique-me lá, meu tenente,
perguntou o soldado ao oficial de transmissões, porque caraças
a sua amante não gostava de mim?, as vizinhas paparam as
bolachas de chocolate, mamaram o vinho do Porto
acompanhadas pelos peidos monumentais do tio Ilídio e
escaparam-se porta fora em trotezinhos desapercebidos de
gato, sobrou a surda-muda quase calva do prédio ao lado,
sentada no banco da cozinha a estalar a placa dos dentes e a
palpar as contas do terço numa surpresa enorme, despi-me,
meu capitão, no meio dos livros, dos cadernos, dos lápis, dos
cartazes e dos poemas, de toda aquela sabedoria pacientemente
armazenada, apagaste a luz e o teu corpo nu e magro que
ondulava, impreciso, na névoa azul do escuro, aproximou-se
de mim, levantou os lençóis, estendeu-se sem rumor nem
palavras ao meu lado como uma língua desliza numa boca,
Gosto de ti, Odete (ou Dália, agora?), gosto do teu nariz, das
tuas sobrancelhas, do duro restolho das axilas, ergui a mão
para te segurar nos ombros, para me deitar sobre ti, para me
enterrar nas tuas pernas indiferentes, e nesse momento senti
que me fitavam, não sei explicar mas senti que me fitavam,
olhei para a janela, as couves, cor de retrós, cintilavam no
quintal e mesmo ao pé de mim, sobre a cómoda, quase
empoleirado no busto de um careca mal encarado de barbicha,
O Lenine, disse o oficial de transmissões baixinho, O filho da
puta do Lenine, corrigiu o soldado, o corno do Lenine, o filho
da maior das putas do Lenine, um frango, de grandes patas
encarnadas e pescoço sem penas, observava-me, percebe, com
as duras, sólidas pupilas redondas de vidro, numa minuciosa e
devastadora crueldade de carrasco.
10

— Quatro destas amigas mais nós os quatro faz oito putas


esquentadas, disse o tenente-coronel ao alferes, ainda
desconfiado do champanhe, a massajar o estômago. O que é
que os seus vizinhos vão julgar quando nos virem?
Eu, por exemplo, sou a minha mãe, pensou ele, uma velha
ridícula cheia de gazes, de perfumes, de pinturas e de cremes,
vibrando como asas de insecto as pestanas postiças de nylon, a
tentar seduzir tropegamente o merceeiro na esperança de um
descontozito no garrafão de vinho, porque dei em beber no fim
da vida, filho, porque me sento diante da televisão, para a
novela, com um tabuleiro de copos cheios ao lado, e os vou
sugando por uma palhinha como os refrescos dos miúdos, até
as imagens do écran se confundirem com a minha vida
presente, com a minha vida passada, com a amiga do andar de
cima, enrolada como uma lagarta doente em torno da bengala,
que me traz de quando em quando um pacote de bolachas
bichosas e os interrogativos berros da sua surdez, com o meu
amante engenheiro, com o meu amante arquitecto, com o meu
amante industrial, com o meu amante doutor, com os meus
amantes bem vestidos, bem penteados, solenes,
educadíssimos, que davam corda à grafonola, me ofereciam
pulseiras de brilhantes, me cortavam o rosbife do jantar, me
apalpavam as nádegas e me despiam, no escuro do quarto,
arfando na cama, a puxarem-me as alças numa pressa
angustiada, homens a pedalarem, exaustos, no selim de
bicicleta do meu púbis a caminho do estagnado, desgostoso
silêncio do orgasmo, homens a mancharem-me os lençóis do
seu triste sumozinho sem sabor, e Sim, querida, e Pronto,
querida, e Como tu queiras, querida, Sou a minha mãe, pensou
o tenente-coronel, mando-me pentear e lavar os dentes antes
de aparecer na sala, minúsculo, de gravata e sapatinhos de
verniz, a cumprimentar o tio Borges, ou o tio Rodrigues, ou o
tio Mendes, antes de lhes sentir o repugnante odor de
brilhantina, o odor do pó de talco, o odor do dinheiro, antes de
lhes suportar os nojentos dedos moles no pescoço, ou a minha
mãe no asilo da Almirante Reis, no terceiro andar miserável
por cima da confeitaria e do notário, desgrenhada, muda, em
camisa e chinelos à espera da morte junto ao aparelho de rádio
avariado, com uma manta de riscas nos joelhos.
— Oito putas, resmungou ele de cabeça inundada de
octogenárias imóveis espetando as pupilas minerais na parede
fronteira, é pior que um batalhão de guardas-nocturnos com
mau hálito.
O coronel Ricardo tinha-lhe prometido Só te aguentas no
Ministério uns meses até abrandar um bocadinho a tesão
revolucionária dos capitãezitos (e além disso até é bom que se
esqueçam de ti, e além disso até é bom que nem saibam que
existes), de modo que de momento, o que é que queres, temos
de andar com esses putos nas palmas, Mas acabei, queixou-se
ele, por apodrecer atrás da secretária, no cubículo esconso, até
ao golpe de 25 de Novembro, a espiolhar processos, a tomar
notas, a redigir memorandos, a lixar generais e brigadeiros e
majores, mal entregava um relatório recebia uma pilha de
fichas, pastas e pastas acumulavam-se na mesa, e o coronel
Ricardo, impaciente de fervor democrático, Andas muito
brando, Andas muito mole. Que é feito da tua energia, homem,
Que é feito da tua capacidade de solucionar problemas,
homem, a chuva do telhado parecia bater-lhe directamente no
zinco da cabeça, o verão dissolvia-lhe os músculos numa papa
de gordura, os sargentos que levavam e traziam papéis
miravam-no com sarcasmo, com desprezo, com pena, Não sou
a minha mãe, caramba, nem sequer por um gabinete decente
sou capaz de lutar, as pestanas postiças descolam-se-me das
pálpebras, as minhas ancas ossudas não atraem ninguém, que
automóvel com chofer me espera à porta, que merceeiro me
fiará um dia o garrafão de tinto?
— Venho dar-lhe conhecimento, participou a filha a tirar a
gabardine no vestíbulo, de que me vou divorciar do meu
marido. Como o pai nunca o gramou suponho que fica
satisfeito com a notícia.
— Não estamos a sanear quase ninguém, patinhamos para
trás e para a frente na merda dos curricula, o Estado-maior
irrita-se e a culpa é tua, Artur, acusou-o o coronel Ricardo
afastando um maço de folhas dactilografadas com as costas
sardentas da mão. Se não fazemos uma limpeza em regra
quem acaba por pagar as favas da nossa benevolência somos
nós.
— Cada um da gente, ora essa, pode bem com duas,
protestou o alferes. O meu comandante subestima a
capacidade de luta do seu batalhão.
— Pum, gritou o soldado a disparar o indicador na direcção
do gerente, que tombou sentado, ao meio da pista, segurando
com os pulsos trémulos os intestinos que sangravam.
— Nunca vi um tipo tão chato, disse a filha à procura dos
cigarros na carteira. Chato como as coisas chatas: aguentei o
mais que pude mas já lhe deitava as manias pelos olhos,
percebe, até o cheiro dele, até a respiração dele me enervavam.
— Esse ano e meio no Ministério, a foder gajos que eu nem
sequer conhecia, explicou-me o tenente-coronel, deu comigo
em chalupa. Chegava a tomar três pastilhas à noite e mesmo
assim, veja lá, via-me à rasca para adormecer.
Sonhos atropelados e sem tino, as pernas a pedalarem ao
acaso nos lençóis, um turvo, infinito, doloroso cansaço de
morte ao acordar, a porteira que se esfumava pela alcatifa fora
acenando, sem se voltar, um vago adeus com o braço, dias
descoloridos que se transformavam em semanas pardas,
semanas que se prolongavam numa geleia de meses, a sereia
do quartel dos bombeiros e o motor dos carros da água a
cavarem fendas lancinantes no meu sono, no sono da puta
velha da minha mãe no meu lugar na cama, no meu lugar no
espelho da casa de banho, no meu lugar na tina, no meu lugar
no automóvel, no meu lugar no meu corpo, de forma que todas
as manhãs me embrulhava nos meus vestidos complicados,
nos meus tules, nos meus veludos, nas minhas gazes,
inventava com o lápis uma sobrancelha entre duas rugas
moles, encharcava as escamosas, centenárias pregas de
crocodilo dos sovacos no perfume espanhol da drogaria
(grandes frascos azuis que cheiravam a violetas murchas e a
pescada podre), pincelava uma gigantesca boca vermelha nas
bochechas chupadas, adornava-me de uma pompa absurda de
tremendos anéis de vidro e de agressivos colares de retroseiro
a imitar espalhafatosamente complicadas jóias russas, entrava
no Terreiro do Paço numa arrogante majestade imperial sem
responder às continências das sentinelas e dos subalternos,
subia as escadas daquele imenso casarão melancólico povoado
de fantasmas de antigos artilheiros de bigode, de pálidos
oficiais de Cavalaria comidos pelo paludismo do Gungunhana,
e de alferes de Caçadores proclamando a República no
Marquês de Pombal em fotografias amarelas repletas de uma
entusiástica e petrificada multidão de colarinhos altos e
chapéu, instalava-me no gabinete esconso das traseiras
abanando os duplos queixos com o leque e sublinhando
preciosamente parágrafos e frases com grossos riscos trémulos
de baton, Sou a ranhosa puta velha da minha mãe e a sua
vaidade de cartão, entro ao meio-dia, como de costume, na
luxuosa sala do coronel Ricardo (e lá está a preocupada
cabecinha calva ao fundo, atrás do vasto tampo envernizado)
para o despacho habitual (Quantos pomos hoje na rua, dona
Elisa?), e lá estão as mãozitas pintalgadas, de súbito perdidas,
esvoaçando ao acaso, aflitas, sem tocar em nada, sobre o
agrafador, o telefone mudo, o rectângulo verde do mata-
borrão, o cavalo empinado de bronze de narinas ferozmente
abertas, o candeeiro de franjas, as mãos gordas do coronel
Ricardo que se levantavam, hesitavam, se estendiam, infantis,
para mim, Há por aí uma revolta, Artur, um sarilho do caraças,
os paraquedistas ocuparam a televisão.
— Ele à rasca e eu a julgar que o tipo era comunista a valer,
comentou o soldado, eu a julgar que o tipo cumpria ordens de
Moscovo.
— O Carlos quer vir à força falar consigo, disse a filha, quer
vir chorar-se no seu ombro, quer vir queixar-se a si. Livre-se
do sujeito como entender que eu, por mim, acabou-se.
— Uma revolta?, perguntou frivolamente a mãe ao coronel
Ricardo, vagamente zangada, ou incomodada, ou intrigada,
abrindo o leque cintilante de lantejoilas e pedrinhas num
evasivo, mimento gesto de espiral. Alguém conhecido, ao
menos?
Como uma espécie de brincadeira, percebe, contou-me ele,
de divertimento, de jogo, de uma partida pouco feliz de um
amigo sem imaginação nesse dia mas sempre óptimo a
escolher bombons. Como se se tratasse de facto de qualquer
coisa sem importância que não merecesse mais do que um
olhar distraído, do que um interesse superficial, leviano, sem
peso, o olhar irónico, alegre, do costume: Ninguém conhecido,
mãe, uns paraquedistazecos, uns tropazinhos, uns oficiais e
uns civis quase anónimos, sem dinheiro para uma hora sequer
nos teus lençóis, sem dinheiro para tocarem à campainha, se
sentarem nas napas da sala, beberem o teu licor de pêssego,
me aplicarem um beliscão paternal e sorridente na bochecha,
Anda cá e dá as boas-noites ao tio Ferreira, Artur.
— Porque caralho é que estás a sorrir?, indignou-se o
coronel Ricardo, furibundo. (E o major Fontes verde, e o
tenente Cardoso verde, e um sargento desconhecido, com uma
mancha cor de vinho na bochecha, verde de morte.) Não te dás
conta da gravidade disto tudo, não vês que pode representar o
nosso fim? O país a ferro e fogo, os nossos lugares ameaçados,
as nossas promoções comprometidas, daqui a nada tudo aos
tiros por Lisboa, e tu, meu cabrão, a arreganhares-me os
dentes, aqui, diante de mim, divertidíssimo?
— Eu tenho a certeza que ela perdeu a cabeça, sabe, que
enlouqueceu completamente, gemeu o genro,
atrapalhadíssimo, com a metade esquerda da cara iluminada
pelo sol da tarde, a estalar as falanges: Achas que vai chorar,
mãe, achas que de um momento para o outro vai puxar o lenço
do bolso e desatar a assoar-se? Quero-me afastar, quero-me
separar, quero-me divorciar de ti: Tudo tão bem entre nós e ela
de repente, sem mais nada, imagine, entra-me em casa com
essa parvoeira encasquetada na cabeça.
— Uma puta para cada um?, riu-se o alferes. O meu
tenente-coronel não andará a precisar de hormonas, por acaso?
— Um bocadinho difícil, respondeu a porteira (e ele sentiu
de súbito saudades da mulher e um ímpeto amargo de chorar):
mas de quando em quando, coitado, ao fim de uma hora lá
conseguia.
— Uma hora, que vergonha, disse o oficial de transmissões.
Também o meu tenente-coronel, chiça, perdeu a tesão num
instante.
— Se lhe calhasse na rifa uma mulher como eu, defendeu-o
a mãe (Obrigado, velha), descanse que o meu filho cumpria a
obrigação em três penadas.
— Uma confusão dos diabos, dona Elisa, desesperou-se o
coronel Ricardo (e o major Fontes, e o tenente Cardoso, e o
sargento da mancha cor de vinho acenavam que sim com a
cabeça): o Exército dividido, informações contraditórias, as
guarnições umas contra as outras, a anarquia completa. E
nenhuma ordem de cima, nenhuma mensagem, nenhum
telefonema, nenhuma instrução sobre o que havemos de fazer.
Pela primeira vez lixaram-no à má fila, alegrou-se o
soldado. Pela primeira vez apanharam-no sem trunfo em que
apostar. O gajo deve-se ter borrado pelas pernas abaixo.
— Uma puta para cada um sempre sai mais barato,
concedeu o alferes. Quando vier a conta do mijo de gato deste
champanhe francês, vocês até se arrepiam com o susto.
— Os paraquedistas ocuparam a televisão, disse o major
Fontes, meteram a bandeira no écran, interromperam o
programa para ler um comunicado radicalíssimo, o mais
extrema esquerda que se pode calcular. E agora são só marchas
militares e incitamentos a um levantamento popular. Na
opinião do meu brigadeiro devemos aderir?
— Gritou-me que está farta de mim, que tem um amante,
que quer ir trabalhar para o Brasil, ganiram as falanges. Um
rosário de maluquices, ao princípio até lhe perguntei se não se
tinha drogado, há tanta malta a fumar coisas esquisitas por aí.
— A minha droga és tu, e além do mais provocas-me
úlceras no duodeno. Vai à merda.
— Eu com um trabalhão danado com ele, mão aqui, mão
ali, boca acolá, eu grega para lhe dar prazer, rosnou a porteira,
indignada, e o sacana, um belo dia, Toma, põe-te a andar,
quero-me casar com outra. Se calhar tomou um frasco inteiro
de glândulas de macaco e já não necessitava de mim para lhe
endireitar a ferramenta.
— Traga-me imediatamente um aparelho para o gabinete,
ordenou o coronel Ricardo ao sargento da mancha cor de
vinho. Não posso decidir se a Repartição adere antes de me
inteirar do que se passa.
— A rádio continua como se nada fosse, meu brigadeiro,
alertou o major Fontes. Mesmo que seja uma revolta a sério
não me parece que chegue muito longe.
— Dá um passou-bem ao senhor major, Artur, vem
cumprimentar as pessoas, diz assim: Boa noite, sussurrou
melodiosamente a mãe, a agitar as pulseiras, enquanto a
grafonola chiava um pasodoble desafinadíssimo, entre
guinchos e arrotos castelhanos de acordeão.
— Por amor de Deus, dona Elisa, protestou o major Fontes,
eu não sou homem para cerimónias, deixe a criança à vontade.
— Eu, pelo sim pelo não, levava duas, insistia o oficial de
transmissões, de óculos enterrados nos cabelos da loira, mas,
se vocês não querem, submeto-me.
— E já agora pode saber-se o que é que tu vais fazer para o
Brasil?, perguntou o tenente-coronel, de perna traçada, a
limpar uma nódoa do sapato com o dedo.
— Se pudesse tirar-lhe as ideias cretinas da cabeça, sugeriu
o genro, se pudesse enviá-la ao psiquiatra.
— Um golpe de Estado, lamentou-se o tenente Cardoso,
logo hoje que a minha mulher faz anos e tenho os meus sogros
lá em casa a jantar.
— Um passou-bem ao senhor tenente, Artur, comandou a
mãe, que mania é essa agora de não falar às pessoas?
— Trabalhar, respondeu a filha, a companhia abriu uma
sucursal e há uma vaga de secretária para mim. E além disso,
por tabela, vejo-me livre dos choradinhos dele.
— Nem pense, disse a mãe. Se a gente não os ensina em
pequenos, fie-se em mim, depois de grandes não consegue
nada deles. Mostra cá as orelhas, Artur, a ver se as lavaste
como deve ser.
— Foda-se, Artur, repreendeu-o o coronel Ricardo a andar
de um lado para o outro, em pulinhos cómicos, na alcatifa,
ficas aí espojado no sofá, calado, a rir-te. Que raio de merda te
dá tanto gozo nisto tudo? Queres ser saneado? Queres ser
passado à reserva? Queres que te codilhem a vida?
— E não são só os meus sogros, explicou o tenente
Cardoso, uns primos dela, que moram no Porto, também. Doze
pessoas, encomendei maionese de lagosta no restaurante,
fiquei de a ir buscar às sete. Largue lá o pequeno, dona Elisa, é
da idade, o tempo se encarregará de o educar.
— Do pé para a mão, resmungou a porteira a puxar o fecho
éclair da saia, amanhou-se com uma serigaita qualquer, uma
cabra de boquilha, já entrada, sempre de lulu ao colo, que
tinha uma boutique em Sapadores. Eu, toda confiante, a enchê-
lo de tagatés e o gajo a espetar-me a faca nas costas, à traição.
Um dia destes vou à loja da galdéria e mesmo no meio dos
trapos dessa vaca armo um arraial que só visto: ninguém me
tira da cabeça que ela lhe deu um chá qualquer a beber.
— Mostre-lhe que está errada, pediu o genro, que tudo isto é
uma patetice sem nome. Ainda em fevereiro comprámos o
andar, o homem das marquises deve lá ir para a semana, não
pagámos as prestações do automóvel. Por favor, senhor.
Em nada, pensou o tenente-coronel, não estou a pensar
absolutamente em nada a não ser que sou a senhora puta velha
da minha mãe, metida nas suas cintas de folhos e nos seus
fantásticos cetins inacreditáveis, que cruzo as pernas diante da
vossa surpresa, do vosso espanto, do vosso desejo, de modo a
exibir-vos a pele peluda das coxas a seguir às meias, de modo
a entusiasmar-vos com as minhas ligas cor-de-rosa com
fitinhas, de modo a transtornar-vos com as minhas cuecas de
renda, de modo a endoidar-vos com os ossos agudos dos
joelhos, o sargento entrou a cambalear no gabinete, roxo de
esforço, abraçado ao cubo de uma televisão enorme, cujo fio
se arrastava, atrás dele, como uma cauda, deslizando pelo
soalho encerado, o major Fontes e o tenente Cardoso
ajudaram-no a colocá-la sobre a secretária, a ligar a ficha, a
carregar no botão, Cuidado com o verniz do tampo, arredaram
o candeeiro de franjas e o cavalo de bronze, a mãe procurou os
óculos na carteira para ver melhor, o coronel Ricardo, a rodar
a aliança no dedo, aturdido de pânico, instalou-se como um
sapo sem força num sofazinho baixo, Não limpaste as orelhas,
Artur, repreendeu-o a mãe, e tens as unhas sujíssimas, que
vergonha, durante oito dias vais para a cama sem jantar, e nisto
o écran subitamente aceso, grãozinhos de luz que cintilavam
como num céu de outubro, uma voz desfocada que se
aproximava e precisava, um vulto, um capitão a discursar de
olhos na gente, Desculpe-o por esta, dona Elisa, a senhora
conhece melhor do que nós como são as crianças, Se
conversarem os dois sempre pode acontecer que ela o oiça,
esperançou-se o genro, sempre pode acontecer que ela caia em
si, não é? A tua sorte, meu maroto, é o senhor major interceder
por ti, disse-me a minha mãe, a tua sorte é eu não recusar nada
aos meus amigos, A conta do champanhe?, assustou-se o
soldado, não me fale em fortunas que eu só trago um conto de
réis na carteira, meu alferes. Aderimos, dona Elisa?, perguntou
hesitantemente o coronel Ricardo, mandamos já um telegrama
de entusiástico apoio à heróica rapaziada do golpe?, Doze
talheres, maionese de lagosta, vol-au-vent, ananás e mousse de
avelã, recitou o tenente, tudo pago ontem à tarde, o que faço
eu ao jantar?, Apetece-me imenso conhecer o Rio de Janeiro,
explicou a filha, e depois, com carradas de mar entre nós, o
tipo não me aborrece com certeza, alguém atrás da câmara
devia fazer sinais ao capitão para que acelerasse o discurso, ou
saísse dali, ou se calasse, porque os olhos do homem fardado
se desviavam a cada instante de nós, e a testa se lhe enrugava,
e as palavras se entredevoravam, disformes, como insectos
carnívoros, o homem voltava a cabeça para o lado,
gesticulava, protestava, a emissão interrompeu-se
abruptamente, de novo os grãozinhos de luz, de novo os
móveis, instáveis pontos cintilantes, a bandeira nacional por
uns segundos, uma locutora a anunciar, com um sorriso
postiço, um filme qualquer, Mudaram a emissão para o Porto,
disse o major Fontes, o melhor é o meu brigadeiro aguentar o
telegrama que as forças devem andar ela por ela, as peripécias
de uma fita cómica começaram a suceder-se no écran, Que
golpe de Estado tão mal amanhado, meninos, comentou
desdenhosamente a minha mãe, será que nem uma revolução
em termos vocês na tropa são capazes de fazer?, As chefias
não respondem, meu brigadeiro, informou o sargento que
brandia o telefone como um chuveiro manual, se calhar não
está ninguém no palácio, Piraram-se, pensou o tenente-coronel
a sorrir, basta uma encrencazinha, ameaças, tropas na rua,
carros de assalto, e evaporam-se que é uma beleza com o
estojo das condecorações estrangeiras debaixo do braço e os
bolsos a abarrotarem de louvores militares e de recortes de
jornal em que lhes chamam sem vergonha Salvadores da
Pátria, Pilares da Democracia, Estrénuos Defensores dos
Pobres, Lúcidos e Enérgicos Guias dos Autênticos
Portugueses, os semanários a gabarem-lhes melifluamente a
inteligência e a coragem e os gajos, com fogo no cu, de óculos
escuros e bigodes postiços de carnaval, a fugirem para
Espanha, a fugirem para França, a atravessarem a fronteira,
tropeçando nas pedras, escorregando na erva, estatelando-se
nas valas, enlameados e aflitos, assustados pela Guarda que
patrulhava de baioneta as redondezas, assustados pelos latidos
dos cães nas trevas silenciosas das quintas, assustados pelo
vento nas árvores e pelas silhuetas dos arbustos, assustados
pelo rio e os seus inesperados, fugazes brilhos no escuro, a
água a ciciar como sangue numa veia de xisto, a forma miúda
de um coelho a escapulir-se entre raízes, e as nossas
condecorações perdidas na caruma, os nossos louvores
largados no pânico da retirada, o esquecimento da nossa
compostura, da nossa lenta dignidade, da nossa indiscutível
importância histórica, Meta o seu filho na ordem, dona Elisa,
solicitou o coronel Ricardo, que mesmo com a Pátria em risco
ainda não acabou de se rir.
— Deve tê-la conhecido numa pensão do Intendente, disse a
porteira com os olhos brancos de ódio, latejando. Uma dessas
pensões para cadelas com cio onde as senhoras finas abrem as
pernas, a ganirem de fome, aos mecânicos de automóveis e aos
pintores da construção civil.
Não numa pensão, amiga, pensou o tenente-coronel, a coçar
as virilhas defronte do televisor, enquanto o tenente Cardoso
procurava em vão (Caralho, cortaram os fios) telefonar para
casa a anular o jantar, as lagostas e os sogros: não no
Intendente, amiga, não em Santa Marta, não em Monsanto,
não na Avenida, não nas ruas ou nos bares de travestis
exuberantes e de chulos discretos, amodorrados na penumbra
do balcão, com o relevo da navalha no bolso das calças e
longas melenas vigilantemente pensativas, mas por um desses
acasos que sem cessar me acontecem, mas apenas porque uma
tarde, ao sair do Ministério, de mãos nos bolsos e nariz nas
pedras da calçada, farto de saneamentos, de processos, de
papéis, de notas, esbarrei, sob as arcadas, num cego já idoso
que tocava trompete num banquinho de lona, e o cego, por seu
turno, abrindo e fechando os braços como um grande pássaro
desequilibrado, tombou, soltando um dó lastimoso, contra os
joelhos de uma senhora de penteado armado e casaco de peles,
carregada de embrulhos que soterraram o músico, com as suas
numerosas fitinhas, os seus laços incontáveis, o seu sedoso
papel prateado, num tremendo ruído mate de parede que
desaba, e surgiu à minha frente, indignando-se e queixando-se,
um nevoeiro denso de perfume onde as pérolas do colar
brilhavam vagamente, ao longe, como luzes de barcos, um
queixo, rebocado de cremes, trémulo de zanga, dois olhos
imprecisos na bruma de água de colónia, furiosos primeiro e
avaliadores depois, um pulso repleto de escravas a hesitar a
meio caminho entre mim e os seus cacos preciosos, e lá em
baixo, no chão, distantíssimo de nós, o cego a tactear de gatas,
de cu no ar, a trompete e o banco, com as mãos escamosas,
deformadas pela gota, avançando e recuando, idênticas a
corolas moribundas, nos escarros, e no lixo, e nas beatas, e nos
excrementos de cão, e nos pedaços de papel do passeio.
— Um amor à primeira vista, pai?, troçou a filha a pousar o
cálice de vermute junto ao retrato da morta e ao seu pálido
sorriso triste que a pouco e pouco se apagava na moldura.
Muito bem, pai, parabéns, quando é que me apresentas a
minha madrasta?
— Realmente o meu tenente-coronel gastou-se num
instante, verificou o alferes. Só quatro putas, a sério? Em
Moçambique aviava duas pretas de cada vez e ainda lhe
sobrava tesão para outra dose.
— Não há meio de conseguir a ligação, afligia-se o tenente
Cardoso a discar pela milésima tentativa o número do telefone
com a haste do lápis. Todos sentados à mesa à espera, os meus
sogros, os meus primos, o casal do andar de cima, um
engenheiro e a mulher que eu nem sequer conheço, e nem vol-
au-vent, nem mousses de avelã, nem maionese, nem ananás,
nem eu: a patroa tem uma pataleta de certeza, vai julgar que
me estampei com o carro contra um muro.
— Parece que uma coluna de blindados do Regimento de
Comandos segue a caminho de Belém, informou o sargento
num sussurro, a tapar o bocal do aparelho com a mão. Parece
que querem foder à meia volta os quartéis de cavalaria que ali
há.
— Dona Elisa, ameaçou o coronel Ricardo, fique sabendo
que se o seu filho não tem ao menos respeito por mim e pára
de se rir lhe prego um estalo.
— Ela lê livros a mais, senhor, anda mal aconselhada, quer
fazer revoluções no Camboja, imagine, acha-se feminista,
baliu o genro numa vozita que procurava lentamente caminho,
através das palavras, como a água de um cano roto nos
desníveis do soalho. Asneirolas assim, percebe, que as colegas
do emprego lhe impingem e ela bebe sem mastigar à laia de
uma avestruz a engolir chaves inglesas. O que é que eu vou
fazer agora, explique-me lá, aos tipos da marquise?
— Eu lixo-a, garantiu a porteira a assoar com fúria o nariz
ranhoso do filho. Posso-me lixar a mim mas pela saúde deste
puto se não a lixo primeiro.
— Artur, Artur, ralhou-lhe a mãe que seguia o filme cómico
numa distracção benevolente, a agitar da poltrona o indicador
enluvado. Queres passar um mês inteiro sem doce?
Ajudei-a a apanhar os embrulhos, em alguns dos quais se
entrechocavam cacos e bocados de louça, chamei por um
faxina um dos enormes, imponentes Mercedes pretos do
Ministério, com a napa dos bancos queimada e furada por
pontas acesas de cigarro, empurrei todos aqueles tijolos
desfeitos, com as suas fitas agora murchas e o seu papel
rasgado, para o banco dianteiro, a nuvem de perfume instalou-
se atrás do condutor murmurando agradecimentos que não
entendi bem, Mais uma vez perdão vinha completamente
distraído Madame, e ficou na sombra das arcadas, a apalpar
um sinal, vendo o automóvel, de cortininhas franzidas na
janela traseira, desaparecer vagarosamente, regiamente, no
trânsito da praça, Pode saber-se o que é que tens contra o
Brasil?, questionou com acidez a minha filha, um barco de
passageiros largava a mugir do pontão, o cego encontrou por
fim a trompete, reinstalou-a a custo no assento de lona, tentou
um tango ainda ziguezagueante do susto, premindo com as
unhas sujas os botões amolgados do instrumento, as gaivotas
sobrevoavam o barco a gritar protestos soluçados de criança, e
vieram-me à ideia, sem mais nada, de súbito, os anos
longínquos em que ia namorar-te a casa dos teus pais, no
Seixal, num prédio descolorido junto ao rio que me lembrava
sempre, assim inclinado, assim velho, assim lascado e podre,
um destroço de naufrágio, povoado de mobílias comidas pelos
peixes, pelos limos e pelos dentes da água, que gente de rostos
anfractuosos, porosos e duros como pedra-pomes habitava,
flutuando em ademanes de afogados no denso vapor pestilento
que subia da margem e entrava, em rolos turvos, pelas janelas
desconjuntadas, suspensas dos gonzos como molares com
piorreia da esponja magra das gengivas. O Tejo era uma
repugnante faixa estreita de lodo, apertada por decrépitos
muros e chaminés de fábricas, em que adoeciam naviozinhos
esventrados, restos de antigos cais reduzidos a traves cariadas
de madeira e pássaros engripados a tiritarem nos recessos das
fachadas, o sol lutava penosamente contra a bruma
avermelhada, quase sólida, da tarde, a tua avó, idêntica a um
coral pregueado, criava raízes na sala, diante de nós, vigiando
com os ferozes olhinhos de polvo o meu desejo de ti, um
papagaio subaquático deslocava-se de lado, como as figuras
dos frescos egípcios, no poleiro de latão, emitindo de tempos a
tempos arrulhos de golfinho, e havia qualquer coisa indefinível
de anémona, qualquer coisa absurda de arraia nos teus gestos,
tinhas decerto mexilhões, ou lapas, ou insectos marinhos, ou
caranguejos pequeninos nos sovacos, nas virilhas, a saleta
assemelhava-se a um aquário esverdeado repleto de seixos de
bibelots e de jarras de flores que a vazante inclinava na
direcção da foz, falavas-me e nenhum som chegava aos meus
ouvidos salvo o das línguas da água estalando sem energia nas
carcaças, nas quilhas e nas costelas dos barcos, a tua boca
sabia a cocó de gaivota, escutava-se o rio nos búzios das
orelhas, a barba da véspera do teu pai reproduzia-se como o
musgo nas rochas, as bicicletas que pedalavam na estrada
subiam e desciam, à guisa de sombras trémulas, como as
estranhas manchas que percorrem, arrepiadas, o fundo de areia
dos lagos, anoitecia e a vila adornava como um convés, as
casas dissolviam-se, as fábricas recuavam, os albatrozes
adormeciam no suspenso ramo de chuva de uma nuvem,
centenas de fieiras de gotas de vidro pairando, leves, sobre os
telhados, como rostos sobre um berço, as luzes de Lisboa
pulsavam num espalhado, alongado, horizontal cardume sem
fim, correndo ao rés do mar até Cascais, despedias-te à porta e
a saia inchava como uma guelra, o tenente-coronel, então
aspirante, tomava a última camioneta, o último navio para a
cidade, e lá atrás, nas minhas costas, o Seixal afundava-se num
suspiro, com os seus esqueletos de barcos e as suas casas
naufragadas, no lodo do Tejo, até não restar mais do que um
bando de pombos estupefactos sem cornija onde ancorar, e um
grande buraco negro no lugar dos prédios, no qual se erguiam,
apoiados em nada, os descomunais salgueiros cor de cinza de
um esquecimento absoluto.
— Os Comandos derrubaram com os tanques os portões do
Regimento de Lanceiros e invadiram o quartel, meu
brigadeiro, alertou o sargento que soprava perguntas ao
telefone. Parece que há feridos, parece que há mortos, parece
que há um pandemónio do caralho em Belém.
— Não posso ir jantar, rugia o tenente Cardoso, tenho
serviço urgente aqui, o melhor é mandares buscar a maionese
de lagosta ao restaurante, já está paga. Não, não estou a mentir
nem sei quanto tempo demoro, explico-te tudo depois. Sim,
uma coisa de força maior, um assunto grave.
— Como é ela, quantos anos tem, como se chama, o que é
que faz?, perguntou a filha de um fôlego. A sério, pai, quando
é que ma apresentas?
— Tu pensas que eu não tenho mais nada que fazer senão
andar com mulheres?, gritou o tenente Cardoso ao aparelho,
indignado. Tu pensas que me sobeja tempo para borgas?
Porque é que não nos informam como deve ser do que se
passa, dona Elisa, protestou o coronel Ricardo a revolver-se na
poltrona, porque é que não me chamam lá acima, ao Comando,
e um general qual quer me pranta na tromba A situação é
assim e assim e assim, passa-se isto e aquilo e aqueloutro,
vamos fazer, ou estamos a fazer ou fizemos A e B e C? Apesar
de tudo somos a Repartição de Oficiais do Ministério, que
porra, não um monte de lixo em que se cague de alto. Se aqui
aparecer um camarada para saber notícias, o comandante de
uma Região Militar, por exemplo, o que lhe respondemos nós,
diga-me lá? E já agora de que é que o pateta do seu filho se
continua a rir?
Dois ou três dias depois (dois dias, hora por hora,
recordava-se perfeitamente, dois dias de notas e relatórios e
fichas e cruzes e sinais a lápis nas margens dos processos) o
telefone tocou de uma maneira diferente (Ou sou eu que
imagino que foi de uma maneira diferente?) no cubículo, o
espesso sotaque beirão do cabo do PBX anunciou Uma
senhora para o meu tenente-coronel, o meu tenente-coronel
quer atender?, estalidos, uma espécie de fricção de lixa que
doía nas orelhas e na cabeça e reboava pela espinha abaixo,
um clique duplo, Faça favor, e quase imediatamente uma voz
feminina, desenvolta, polida, segura de si, Queria-lhe
agradecer o transporte de automóvel da quinta-feira, senhor
tenente-coronel, queria-lhe agradecer a atenção.
— E não é só o homem da marquise, teimava o genro,
desesperado, é o seguro do carro, é a escritura do andar, são as
mil e uma banalidades pendentes que se torna necessário
resolver, encomendas na mercearia, conta bancária, roupa
minha que ela mandou limpar a seco e eu não posso levantar
porque os talões me faltam, o livro das moradas que levou
sumiço, a torneira do lavatório avariada, o abre-garrafas que
não encontro nem à mão de Deus Padre, a empregada que até
no detergente, até no desinfectante da retrete me rouba. Pela
sua saúde diga-lhe que eu gosto dela e dê um jeito, senhor,
veja se a obriga a voltar.
— Essa modista quer-lhe comer a carne mas há-de-lhe roer
os ossos também, futurou a porteira numa gargalhadinha
ameaçadora. Há-de passar noites inteiras, como eu, a tocar-lhe
bandolim na pila até o conseguir excitar.
— É sempre a mesma música, chiça, suspirou o tenente
Cardoso a levantar os olhos ao tecto, Para onde é que tu vais?,
Com quem é que tu estás?, Julgas que eu não sei da tua vida?
E choros, e queixas, e ameaças, e gritos, como se eu fosse um
actor de cinema, como se eu fosse a melhor queca do mundo.
Palavra que ando pelos cabelos com os ciúmes dela.
— Não tem nada que agradecer, minha senhora, eu é que
peço desculpa, minha senhora, evidentemente que estou pronto
a indemnizá-la dos estragos, minha senhora: e uma agradável
exaltação vaga, as sílabas difíceis, pegajosas, na garganta, o
lápis azul a riscar arabescos sem destino por um requerimento
fora, e também o medo de que ela desligasse de repente e o
deixasse de novo sozinho, escorado por montanhas de papéis,
no minúsculo gabinete esconso, a organizar metodicamente,
minuciosamente, conscienciosamente, a promoção do coronel
Ricardo a general. E as frases penosas, a ausência de agilidade
da língua, a placa dos dentes que ameaçava escorregar, a cada
sílaba, do céu da boca em pânico: Se lhe danifiquei algum
objecto, se lhe parti algum objecto, se lhe amolguei algum
objecto, faço questão, minha senhora.
— Um morto, dois feridos, o Regimento de Lanceiros no
bolso em menos de um fósforo, nenhuma adesão das unidades
de província, disse o sargento. Desta feita os comunistas
perderam a partida, meu brigadeiro.
Não se despeça já, fale-me de si, converse comigo, as
peripécias do filme prosseguiam, imperturbáveis, na televisão,
os programas da rádio continuavam mornamente como nos
dias normais. Tens mesmo a certeza de que há um golpe de
Estado, Quaresma? perguntou o coronel Ricardo ao sargento
do telefone, tens mesmo a certeza que não se trata de uma
brincadeira de garotos?, Não se desfaz um lar sem mais
aquelas, argumentava o genro, não se deixa assim um homem
à rasca com o governo da casa, ainda se eu entendesse alguma
coisa de cozinha vá que não vá, senhor, Era só o que faltava,
respondeu a voz desenvolta que lhe fundia a pouco e pouco os
ossos com o seu timbre sábio que se adoçava (E eu sentia-lhe
o cheiro, segredou-me ele, e eu via-lhe os olhos, e eu roçava a
cara nos pêlos prateados do casaco de peles), eu é que não sei
como retribuir-lhe a simpatia, senhor tenente-coronel, as
pessoas agora são tão mal educadas que francamente já me
tinha desabituado de gestos como o seu, Experimenta a
Pontinha, Quaresma, sugeriu o major Fontes, pode ser que por
aí se conheçam factos concretos, Havia uma vaga em Londres,
disse a filha, mas chuva o ano inteiro não muito obrigada e
depois nunca gostei de loiros, o tenente-coronel vasculhou as
algibeiras, retirou uma nota, depositou-a no boné do cego e
voltou de mãos nos bolsos para dentro, Se me dá licença a
melhor maneira de me retribuir é deixar-me convidá-la para
jantar, e, logo, no interior de mim, Fodi-me, fui depressa de
mais, vou comer um não redondo pelas trombas, A Pontinha é
boa ideia, reforçou o coronel Ricardo, ó Quaresma arranja um
pretexto, uma mensagem, um recado urgente, e vê se me caças
algum truta de lá, e ao atravessar o Tejo o Seixal não existia já,
nenhuma lâmpada, nenhum candeeiro, nenhuma vaga
lucilação de faróis, tudo submerso, percebe, contou-me ele,
tudo um velho galeão espanhol a centenas de metros de
profundidade de água, que um poeirento, ténue brilho
aureolava, o convés, os camarotes de veludos gastos, o castelo
desfeito da proa, e lá em baixo, no porão, a saleta dos teus pais
de cadeirões devorados pela fome escarlate das lagostas, as
cortinas flutuando sem peso numa transparência boreal de
limos, o esqueleto da tua avó com um naperon de crochet
dependurado, como um avental, dos ossos da bacia, e o teu
braço sem carne acenando-me ainda, da porta, adeuses
gelatinosos e sem substância de polvo.
— Não fale mal do nosso comandante, meu tenente, ralhou
o soldado, que duas quecas são canja para ele.
Em todo o caso, já que teve a ideia, consinta-me a mim a
iniciativa do convite, propôs a voz agora ternamente enjoativa
como as pastas escuras de açúcar no fundo das chávenas de
café, e o cubículo esconso aumentou imediatamente de
tamanho, o renque de prédios leprosos, até ao Cais do Sodré,
adquiriu de súbito um encanto inexplicável, o futuro coloriu-se
de insólitas esperanças difusas e veementes, e eu imaginei
vastas extensões macias de alcatifa (Oh minha senhora, de
maneira nenhuma, não é minha intenção abusar), almofadas de
retalhos pelo chão (Claro que gosto de suflé de peixe, é o meu
prato favorito), nichos cavados nas paredes repletos de louça
chinesa (Não, não me perco no caminho, conheço lindamente
a rua), a campainha reboava no bojo do apartamento quatro ou
cinco notas musicais, o princípio de uma canção como certas
buzinas de automóveis, um cão latiu com ódio a farejar
ansiosamente a porta, um breve silêncio eléctrico de timidez,
de expectativa, os dedos a apertarem a gravata, a verificarem a
camisa, a alisarem o fato. Desligaram-me o telefone na cara,
meu brigadeiro, queixou-se o sargento, gritaram-me que não
fornecem explicações a comunistas, e lá estava a nuvem de
perfume a sorrir-lhe no vestíbulo, de brincos compridos e
vestido de noite, e a minha própria cara, pálida, surpreendida,
aflita, no imponente espelho de moldura de talha, lá estava o
corpo desamparado e as mãos sem cinto onde ancorar,
Comunista, eu?, disse o coronel Ricardo, ultrajado, eu,
comunista?, ó Quaresma quem foi o filho da puta que te
atendeu o telefone?, o lulu pulava, histérico, em torno da
mulher, corria, estacava, afastava-se, aproximava-se, e o
tenente-coronel distinguiu, a seguir a um arco, uma toalha
comprida numa mesa posta, copos facetados, duas velas acesas
que se inclinavam a vibrar na minha direcção, Se os meus pais
sonham cortam comigo, senhor, choramingava o genro,
deixam de se interessar por mim, senhor, sabe como são as
famílias no Norte, senhor, dona Elisa, honestamente,
perguntou o coronel Ricardo à velha, não, a sério, responda-
me o mais honestamente possível, acha que eu pareço um
comunista?, esfregou os sapatos no tapete, avançou um passo,
tossiu, ofereceu-lhe rigidamente o celofane e as túlipas e a fita
como um fiscal das finanças a entregar um mandado de
penhora, Juro-lhe que nunca vi um ramo tão bonito, agradeceu
a mulher num sussurro ondulante de pomba, porque é que se
foi maçar por minha causa?, Comunistas, dona Elisa, veja-me
só a injustiça, enfureceu-se o coronel Ricardo, acusarem-nos
de comunistas a nós que travamos corajosamente aqui, dia
após dia, uma batalha de morte contra o marxismo-leninismo,
colocou o ramo numa jarra de porcelana, inclinou a cabeça
para observar o efeito, compôs aereamente as pétalas com as
palmas como uma cabeleireira a aperfeiçoar madeixas, Quem
diz duas quecas diz sete ou oito, meu tenente, multiplicou
generosamente o soldado, de gravata nas costas, a beber o
champanhe dos outros numa pressa sôfrega, em questões de
pila o nosso comandante é rei, Para o Brasil que tem?,
espantou-se a filha, as condições são óptimas, o ordenado é
óptimo, dão-me casa de borla no Leblon, Trate-me por Edite,
propôs a nuvem de perfume, cujas nádegas flutuavam,
suspensas, sobre a alcatifa, inchando e desinchando, ao ritmo
dos passos, no vestido de baile (a pele das costas nuas
cintilava mansamente, sob as alças, à laia da água rósea de
uma baía de carne), e já agora, senhor tenente-coronel, não me
quer confessar o seu nome?, A mania dos ciúmes, a mania das
amantes, a mania que eu não tenho mais nada que fazer senão
engates, zangou-se o tenente Cardoso a rodopiar de raiva, um
dia destes palavra que peço o divórcio e corto o mal pela raiz,
Artur é óptimo, fica-lhe a matar, arrulhou a criatura, não houve
um príncipe, ou um general, ou um imperador qualquer
chamado Artur?, Fontes, berrou o coronel Ricardo, mande-me
já um telegrama para a Pontinha a afirmar com a máxima
energia o nosso repúdio pelo ideário de Moscovo, um sofá
branco com uma mesinha baixa, de tampo de vidro, atulhada
de búzios e de revistas de modas, em frente, duas poltronas
também brancas em ângulo recto com o sofá, um gira-discos
com as colunas encaixadas num armário de livros e de
molduras com retratos, música de violinos em calda como a
dos restaurantes, tacinhas de aperitivos num tabuleiro chinês,
Uma bebida, Artur, enquanto o jantarinho aquece?, e o odor
agressivo das pernas cruzadas dela, o odor violento do pescoço
dela, o odor quase sólido dos ombros redondos dela, Quem é a
cabra que o anda a chular, confesse lá, perguntou a porteira,
quem é a gaja para eu a rachar ao meio?, Um telegrama teso,
Fontes, ordenou o coronel Ricardo, um telegrama inequívoco,
percebe, do género democracia sim ditadura não, O perfume,
meu Deus, beber-lhe o perfume até ao claro espaço cavado de
entre os peitos, A revolução completamente debelada, meu
brigadeiro, avisou o sargento do telefone, os cabecilhas presos,
os paraquedistas vencidos a regressarem a
Tancos, o país a reentrar na normalidade anterior,
interromperam o filme cómico a meio, passaram de novo a
emissão para Lisboa, uma locutora de sorriso agora mais
calmo anunciou para breve um noticiário especial e, enquanto
se aguardava, máscula música guerreira inundou o écran, o
tenente-coronel rodava o copo nos dedos, instalado no canto
do sofá, embaraçadíssimo, a olhar obstinadamente um quadro
que representava uma menina seminua abraçada a um potro
desproporcionado, nos andares iluminados do prédio em frente
avistavam-se pessoas curvadas a jantar, crianças, os gestos
irados de um homem que ralhava, a filha descalçou-se, deixou
cair os sapatos no chão, sentou-se sobre as pernas, Talvez
volte de lá com um mulato, pai, um dançarino de samba, um
jogador de futebol, talvez volte de lá casada com um tocador
de berimbau, confesse que adorava ter netinhos pretos,
Interne-a, solicitou o genro, interne-a urgentemente que não
fala coisa com coisa, um psiquiatra meu amigo garantiu-me
que a única hipótese para ela é uma cura de sono, Uma cura de
sono, comentou a dona Elisa, esse cretino é que chalou por
completo da cabeça, o senhor brigadeiro não acha que o que
há de mais natural é a gente fartar-se de um homem?, Você
não bebe quase nada, Artur, riu a mulher, prefere por acaso um
vodka ou será que a minha presença o põe nervoso?, Acabo-
lhe com os ciúmes de uma vez, jurou o tenente Cardoso, seja
cego se não lhe acabo com os ciúmes de uma vez, o meu
major desculpe mas eu neste momento quero bem que a
revolução se foda, quero bem que os comunistas se fodam,
quero bem que os anticomunistas se fodam, a única coisa que
realmente me interessa é que aquela tipa deixe de me amolar o
juízo, de me enzonar os cornos, O presidente da República em
pessoa vai ler um comunicado ao país, anunciou o sargento,
parece que alguns conselheiros estão a ser entrevistados pela
rádio, Esse telegrama, caralho, desesperava-se o coronel
Ricardo, esse telegramazinho a anunciar a nossa
inquebrantável solidariedade com os vencedores, a nossa
profunda satisfação pelo restabelecimento da ordem pública e
do regime democrático vigente, não te esqueças de acentuar
Ordem e Democrático, Quaresma, e já agora, a talhe de foice,
dona Elisa, o palerma do seu filho não sabe fazer mais nada
senão rir?, E estávamos todos, percebe, disse-me o tenente-
coronel, baixinho, o Ricardo, o Fontes, o Cardoso, o sargento
da mancha, a porteira, a velha, a minha filha, o meu genro, eu,
não no gabinete luxuoso do Ministério, entre os seus
reposteiros de igreja e as suas janelas enormes, diante das
marchas militares da televisão, mas no Seixal, junto ao rio,
acocorados em círculo no lodo da vazante, no meio dos
naviozinhos esventrados e dos antigos cais reduzidos a traves
cariadas de madeira, com os eternos pássaros engripados a
tiritarem nos nauseabundos recessos das fachadas, Lisboa
enevoada ao longe e um grande e marinho e horizontal
silêncio à nossa volta, enquanto a Edite se despia das suas
rendas pretas e dos seus lacinhos roxos na fosca claridade
alaranjada do crepúsculo, o corpo branco e gordo surgia do
soutien, da cinta, das ligas, das cuecas, estendia-se de costas, a
espernear, como um caranguejo, na tábua que uma última onda
arremessara, e por cima dela as gaivotas desprendiam-se como
folhas dos ramos de chuva das nuvens, gritando sem cessar
teimosos, cruéis, desmedidos, agudos, infinitamente tristes
chamamentos ferozes de naufrágio.
11

Uns dias antes almoçou com a Dália no restaurante do


Parque, estabelecimentozito envidraçado e sujo, de mesas de
ferro, encavalitado no topo da cidade, com nuvens de moscas
insistentes sempre a aterrarem no bife e nas batatas, a espiar,
para além dos bolos de arroz e dos alguidares de tremoços, a
Avenida que descia manhã fora na direcção do rio e os
telhados que o céu irisava de uma delicada, venosa
transparência azul, a mancha branca, de doce de amêndoa, do
castelo, barcos comestíveis ao alcance dos dedos, poisados na
água como pãezinhos de leite nos tabuleiros do balcão. Já
reparou como a claridade de Lisboa dissolve, abole, subverte
as distancias, meu capitão, perguntou-me o oficial de
transmissões a compor as hastes dos óculos com o indicador,
já lhe aconteceu notar como a pessoa ao nosso lado se acha de
súbito, fisicamente, a quilómetros de nós, com nuvens a
atravessarem-lhe em diagonal as orelhas e a testa e um fumo
de fábricas a enevoar-lhe os olhos, e em contrapartida a estátua
do marquês de Pombal instalou na cadeira vizinha a sua
imponência ferrugenta, bebendo aos golitos um chá de limão
em largos gestos históricos de bronze. Almoçámos na
esplanada do Parque, cercados de arbustos, de desempregados,
de cisnes e de gatos vadios, o molho da carne e o suor do
gerente assemelhavam-se e confundiam-se, tocava-se com
uma carcaça na testa húmida do homem e sabia a natas e a
mostarda, um tipo de fato-macaco regava remansosamente a
relva com uma mangueira de plástico num som monótono,
constante, fosforescente, de nocturno mijo interminável, como
quando a gente se levanta no escuro, tontos de fantasmas, e os
sonhos nos escorrem sem nexo da breguilha do pijama para a
loiça da retrete, e a cabeça flutua sem peso nos espelhos, e os
dedos gordurosos se atrapalham nos botões, sujeitos calvos
mastigavam o próprio nariz, as próprias bochechas, os
próprios beiços, espetados pelo garfo, entre as batatas do bife,
a Dália fez-me um sinal discreto com a faca para que me
chegasse para diante, Quero dizer-te uma coisa
importantíssima, pá, tropecei com o queixo no saleiro O que
é?, o empregado, que transportava pedaços de frango idênticos
a coxas esturradas de bebés, voltou-se para me observar com
as verrugazinhas das pupilas, cansadas de toneladas de pudins
flans e de maricas japoneses computorizadamente amáveis, e
ela, baixinho, a tapar a cara com a manga, em tom pomposo de
São Gabriel a anunciar a chegada do Messias, Damos o golpe
revolucionário a 25 de Novembro, a burguesia tem os dias
contados, camarada.
— E tu tão parvo que acreditaste nisso, disse o alferes
desgostado. E tu tão burro que embarcaste logo à primeira na
conversa da gaja.
— Gosta de peixe no forno, Artur?, perguntou a nuvem de
perfume cujas pernas carnívoras aumentavam
desmesuradamente nas meias de rede preta, entre as fendas do
vestido, ocupando por completo, impositivas e moles, as
almofadas do sofá. A música do gira-discos afastava-se de
quando em quando deles, do mesmo modo que o vento se
distrai por vezes nos ramos mais altos dos pinheiros: Aposto
que vai adorar a minha receita de robalo.
— Já conheço esse paleio de ginjeira, declarou o soldado, já
o ouvi assim por baixo a mais de um milhão de fulanas. Faz
parte dos métodos delas para nos caçarem, meu comandante,
faz parte das artimanhas das mulheres, sob esse ponto de vista
não têm imaginação nenhuma: aprendi a cozinhar com a
minha mãe, querido, desde pequenina que o que eu mais
desejo é trabalhar em casa, costurar, engomar, limpar o pó,
lavar a loiça, foram as contingências da vida, percebes, que me
obrigaram a arranjar emprego, a ser secretária, dactilógrafa,
cabeleireira. Caganices de putas sabidas, meu tenente-coronel,
mentiras de enganar idiotas como nós. Quase que juro que se
deixou ir atrás do choro como um pato, quase que juro que se
casou logo com a madame.
Embarquei na conversa da gaja, sim, e acreditei na
revolução, na queda da burguesia, na próxima, iminente vitória
final da classe operária, pensou o oficial de transmissões, e se
depois de todos estes anos ela me tornasse a prometer para dali
a nada as inefáveis, doces, óbvias, utópicas alegrias do
socialismo eu acreditava de novo com a mesma férrea,
inabalável convicção adolescente, prontificava-me a sair para
a rua, de metralhadora em punho, a fim de disparar, cantando
A Internacional, sobre cada reformista que me passasse perto,
sobre cada pró-soviético barbudo a colar cartazes nas fachadas
dos edifícios onde ninguém mora, de vidraças quebradas,
esverdeados e ocos como dentes podres. Acreditava, meu
capitão, como acreditavam o Olavo, o violoncelista, o velho, o
Careca, o Lopes, os lúcidos camaradas prolixos do Bairro
Alto, e ocupava-me a imaginar ardentemente, pelas janelas do
restaurante sujo do topo do Parque, para além das árvores, dos
rebanhos de gansos e dos arbustos sem viço, a imorredoira
classe operária a subir a Avenida num frenesim de hinos e
bandeiras, dependurando impiedosamente dos candeeiros os
sociais-democratas, os patrões, os polícias e os lacaios do
Capital, e proclamando, na Rotunda, o marxismo-leninismo-
maoísmo num estridor desafinado de altifalantes e de marchas.
O castelo deslizava a caminho do rio até tocar com as unhas
translúcidas das ameias o luminoso dorso claro da água:
— Logo, às sete horas, reunião do Comité Central na sede
para as últimas instruções do Secretariado, segredou a Dália
com medo que os queques e os paliteiros de baquelite a
ouvissem. Mais uma semana ou duas, no máximo, e acabou-se
a democracia burguesa, e acabaram-se para sempre os desvios
revisionistas.
— Que tal o peixe?, desafiou-o a nuvem de perfume
debruçada para ele sobre os copos e os talheres, com os
enormes seios muito brancos a oscilarem, como turíbulos, no
decote. (Não tarda nada abre a boca e engole-me, apavorou-se
o tenente-coronel, não tarda nada mastiga-me sem cerimónia
como se eu fosse uma garfada de robalo.) Se encontrar um
peixe assim num restaurante dou-lhe um doce.
— Claro que casei com ela, confessou o tenente-coronel,
envergonhado, claro que caí como um patinho.
Falavas-me com arrebatamento, com paixão, idealista,
irrealista, optimista, generosa, ingénua, sem repouso, a
atropelar entusiasticamente as palavras, dos vigilantes comités
de fábrica, das serenas direcções sindicais lutando e
ultrapassando a inércia ziguezagueante dos indecisos e os
desesperados estertores inúteis da Direita, dos padres,
untuosos e fúnebres, que abandonavam o País num grande
barco preto a abarrotar de missais, de casulas e de cónegos,
com um estandarte nazi a flutuar à popa, dos automóveis
substituídos por exaltantes bicicletas proletárias, de todos nós
a pedalarmos jovialmente para os escritórios, para os
armazéns, para as docas, para as oficinas, a soletrar estribilhos
chineses contra o odioso imperialismo americano e contra o
ainda mais odioso imperialismo soviético e o que de facto me
apetecia, meu capitão, era confessar-lhe anti-
revolucionariamente sobre o bife agora gelado e a espuma de
cerveja a cristalizar-se e a endurecer, num véu de bolhas
brancas, no interior dos copos vazios, Esquece lá o marxismo-
leninismo-maoísmo e beija-me, deixa por uns minutos o
camarada Ho Chi Min e vem comigo num instantinho ali atrás
do restaurante, onde o cozinheiro despeja os desperdícios e os
restos de comida em grandes baldes de zinco, para eu poder
tocar-te o peito, para eu poder tocar-te o ventre, para eu poder
chupar-te o pescoço, seguido, espiado, espiolhado por cachos
de vagabundos e cachorros que se embrulham friorentamente
para a noite em ramos secos, frascos de aguardente, trapos
imundos e folhas enodoadas de jornal, larga o almoço, caga no
socialismo, levanta as saias, estende-te na relva, segura no que
sinto crescer nas minhas cuecas e enfia-o, com um breve,
rouco, solto ganidozinho animal, no porão de ti. E em lugar
disso, meu capitão, em lugar de pagar a conta e a arrastar por
um braço, aos puxões, para fora, mantinha-me quieto, não
falava, acenava que sim com a cabeça, esforçava-me por me
interessar também, os comités de fábrica claro, as direcções
sindicais é evidente, os padres expulsos mas que alívio,
ergamos o paraíso da autêntica democracia popular na Europa
apodrecida, sordidamente invivível, poluída pela Coca Cola,
os isqueiros de atirar fora e as pastilhas elásticas, minada pelo
cancro das multinacionais e pela exploração infame da
economia liberal, adube-se imediatamente a terra com os
obesos intestinos, repletos de trouxas de ovos, dos ricos.
Interessava-me, aprovava, mexia interminavelmente o café
com a colherzinha de estanho, e para mim, em segredo, Quero
que isto se lixe, quero que isto se foda, o que é que isto me
importa, há umas moitas mesmo a calhar ali adiante, Dália.
— Detesto peixe congelado, disse a nuvem de perfume a
repetir a dose em ademanes preciosos de ourives. Você não
acredita nem uma palavra mas juro-lhe que prefiro passar
fome a comer esses filetes horríveis. Mais limão, Artur? Faz
lindamente aos nervos, tem imensa vitamina C, o meu pai, que
era da marinha mercante, obrigava-nos a chupar um inteiro,
sem açúcar, por dia.
Depois do jantar, pensou o tenente-coronel em pânico, um
licor, um digestivo, um cordial, um uísque, copinhos
minúsculos, tilintar de gelo, nós dois sentados lado a lado no
sofá só com um candeeiro pálido e íntimo aceso lá ao longe, a
afastar-se lentamente no silêncio oleoso dos navios, o corpo
dela que se levanta, balouçando as nádegas, para ligar o rádio,
para mudar o disco (tangos, sambas, boleros, ritmadas marocas
afrodisíacas), que se aproxima de mim, que encosta de leve a
sua perna à minha, que esmaga a coxa contra as minhas calças,
os grandes olhos líquidos que se enevoam e me fitam, a boca
que se abre em corola com uma cascazinha de amendoim
pegada aos dentes da frente, a mão que roça por casualidade os
meus dedos no rebordo do cinzeiro, o hálito cada vez mais
intenso, cada vez mais perto, as pálpebras cor de ostra
fechando-se devagar (O nosso comandante é um vulcão,
explicou com energia o soldado, passarinha que se chegue é
passarinha papada), e se não consigo, afligia-me eu, e se não
me ponho em pau, e se não sou capaz, e se como com a
porteira faço as figuras tristes do costume, a conta veio por fim
num pires de plástico rachado, um rectangulozinho de papel
cor-de-rosa onde se desbotava uma soma, o oficial de
transmissões ia confessar Amo-te Dália, que moitas mesmo a
calhar, ali em frente, mas a voz, sem que percebesse porquê,
atraiçoou-o, tornou-se grave, responsável, alheia, a interrogar
maoisticamente séria A que horas reúne o Comité Central
camarada, a que horas recebemos as instruções do
Secretariado.
— De forma que nunca te puseste nela, desgostou-se o
alferes, de forma que andaste não sei quantos anos a ver passar
comboios.
— Quatro, precisou o oficial de transmissões. Ou talvez
ainda continue, sei lá.
Porque às vezes, Dália, estou muito sossegado no
Ministério, a trabalhar, dizem-me Está uma pessoa no corredor
à sua espera, e de repente, que estupidez, sem querer, sem
pensar em nada, vem-me à cabeça És tu, e de repente imagino
que empurro o vidro fosco da porta e te encontro sentada no
vestíbulo, à minha espera, e que me sorris, e que me falas, e
que desces comigo as escadas, Dália, a caminho da rua,
igualzinha à última ocasião, às últimas ocasiões em que te vi, o
mesmo indicador a empurrar-me constantemente o peito
enquanto me doutrinavas, o mesmo ardor marxista, o mesmo
ímpeto leninista, a mesma febre hochiminesca, a mesma
inabalável, utópica fé num socialismo oriental, de uniforme de
cotim, sexos que se distinguem pelos guiadores das bicicletas,
e a Grande Muralha da China a atravessar o Tejo e a serpentear
Beiras abaixo na direcção de Espanha, suponho, entendes, que
estou muito sossegado a trabalhar, toca o telefone, É para si,
desenrolo o braço distraído Sim?, e tu Olá, e nesse dia
almoçamos de novo no restaurante do Parque, e nesse dia de
novo as moscas, o lixo, a sujidade, o calor, a pressa dos
criados, a vitrine dos bolos que me proíbe o rio, o pó que se
confunde com a farinha, a farinha que se confunde com o sal,
o sal que se confunde com o pó, os cães, os vagabundos, os
pedintes, os ciganos que caminham sempre como os gatos nos
muros, as moitas de outrora atrás do edifício lascado, o sol
oblíquo a iluminar os ramos, os bidões de lata para os
desperdícios, os ossos, os restos de comida, tu a abrires-me as
calças, a descer as cuecas, a meter-me (assim não, espera) em
ti, a respiração no meu pescoço, as unhas que me apertam com
toda a força os ombros, ainda continua, meu capitão, ainda a
trago na cabeça agora que moro sozinho na rua da Feira
Popular, no meio dos oratórios carunchosos, das flores
murchas e dos cadeirões esbeiçados, agora que me faz falta
alguém que me limpe os quartos e converse comigo, me
aqueça a botija, me sirva um chá de limão se me engripo, cole
no escuro o seu ventre ao meu ventre, me defenda das girafas
de pau do carrossel que entram e saem, rodando, pelos
caixilhos da janela, Queria que visse uma coisa lindíssima de
madrepérola, Artur, suspirou a nuvem de perfume, venha lá
dentro que eu mostro-lhe, e as nádegas a flutuarem e a música
a diminuir de intensidade, um corredor com gravuras de
pássaros, a porta da casa de banho entreaberta, imponentes
torneiras doiradas a imitarem peixes, inúmeros frascos em
prateleiras de vidro e, como o tenente-coronel temia, a cama
rectangular, gigantesca, desmesurada, assente numa espécie de
altar ou de estrado de dois degraus forrados de alcatifa, a
colcha de renda, bochechudas almofadas gémeas, amparadas
uma à outra como cabeças enternecidas, uma cómoda de
espelho oval e mais frascos, mais perfumes, mais tubos, mais
bisnagas, mais cremes, mais caixas, mais pincéis, o célebre
objecto de madrepérola que era um pavão horroroso, quase em
tamanho natural, poisado numa peanha de madeira, Estou
feito, verificou o tenente-coronel, assustadíssimo, se não
invento à pressão uma cólica de rins ainda passo aqui por uma
humilhação do camandro.
— Camaradas (a voz do Olavo, trémula, cavernosa, quase
fúnebre, os bustos de gesso, trémulos, cavernosos, quase
fúnebres, os tipos à volta da mesa, trémulos, cavernosos, quase
fúnebres), em nome do Secretariado da Comissão Política
cabe-me a honra de vos anunciar que em consequência dos
nossos esforços, da nossa militância, do nosso perseverante e
sem concessões trabalho revolucionário, a estertorosa morte da
democracia burguesa se encontra finalmente à vista.
— Nesse caso uma puta para cada um de nós, negociou o
soldado, já íntimo, aplicando palmadas fraternas, nas costas
mais próximas, e duas, claro, para o uso exclusivo do nosso
comandante: o respeito pelas hierarquias, o joelho em terra
perante a autoridade, os senhores sabem como é.
— Entrou-me uma pestana para o olho, Artur, guinchou de
súbito a nuvem de perfume a piscar as pálpebras, a franzir as
sobrancelhas, a inclinar a nuca para trás, a enfiar os dedos
desesperados pelas órbitas dentro. Veja se a apanha, poça, veja
lá se ma tira.
— O Secretariado da Comissão Política do Comité Central
espera de nós, acrescentou o Olavo numa entoação tétrica,
agora que o marxismo-leninismo-maoísmo se apresta para
libertar Portugal do jugo infamante da burguesia, dos barões
da terra, dos latifundiários, dos capitalistas e dos exploradores,
que mais do que nunca cerremos fileiras, camaradas, e
cumpramos sem cobardias nem desfalecimentos, aliás
impensáveis, as tarefas vitais que para o dia 25 de Novembro,
o qual se gravará em letras de oiro, nos anais da História
Lusitana, como o luminoso, fecundo raiar irreversível da
aurora socialista, nos estão ainda cometidas, como lídima e
única vanguarda da classe operária, dos camponeses, do
proletariado e, em suma, dispenso-me de sublinhá-lo,
camaradas, da imensa massa humana de explorados e
oprimidos que o imperialismo durante décadas, se não
centenas de anos, impiedosamente engendrou.
— Não se recuse, meu comandante, não seja modesto,
estimulava-o o soldado, incansável. A bem dizer o que são
duas pequenas para si?
— Não é esse olho, é o outro, Artur, queixou-se a nuvem de
perfume torcendo-se como uma lagarta, a bater o pé no chão.
E pela sua saúde pare de me furar o peito com o cotovelo.
— Vocês conversavam com os desprotegidos, perguntou o
alferes ao oficial de transmissões, com esse caralho de paleio?
Os cinzeiros de folha a abarrotar de beatas (E os gajos
entendiam-vos?, insistia o alferes, tens a certeza que os gajos
vos entendiam?), o ar denso de fumo que ardia nas órbitas,
pesava na cabeça e enevoava as silhuetas e os rostos,
tornando-os imprecisos e neutros, desabitados de feições
(Esteja quieta, minha senhora, acalme-se, está quase, pedia o
tenente-coronel, de pinça de depilação em riste, inclinado para
um redondo lago aflito de pupila), o violoncelista, com as
barbatanas e o fato de borracha de mergulhador sob a camisa
aberta, o velho imóvel, a Dália imóvel, o Comité Central
imóvel de disciplinada atenção, a escutar compenetradamente
o discurso prolixo do Olavo, os lugares-comuns dogmáticos,
as frases pomposas esvaziadas de sentido, as inanidades
enjoativas do costume, o braço que subia e baixava
ritmicamente como se dirigisse um orfeão invisível, e no
entanto, meu capitão, gaguejou o oficial de transmissões
reprimindo um arroto, tínhamos sido presos, levado pancada
da polícia, adoecido em Caxias, em Peniche, em Lisboa, com
febre, com dores no corpo, com vómitos, com urina de sangue,
a inventar na janela um outro céu sob o céu que víamos,
fizemos greves da fome, comícios, reuniões nas fábricas para
meia dúzia de operários de capacete, desinteressados e
apáticos, sessões de esclarecimento e denúncia da situação
política para sujeitos que nos não ouviam, espreguiçavam-se,
bocejavam, abandonavam a sala antes do intervalo, apanhando
mais porrada, quer dos revisionistas soviéticos quer dos outros
partidos maoístas que exigiam também para si próprios o
rótulo insólito de lídima e única vanguarda dos oprimidos e
para os quais, tal como sucedia connosco, os ditos oprimidos
se cagavam (Claro que nos entendiam, ora essa, respondeu
convictamente o oficial de transmissões, era só o que faltava
que não nos entendessem), Como é que eu posso estar quieta
se você me aleija, sua besta, urrou a nuvem de perfume,
furiosa, afaste-se de mim e deixe cá ver a pinça antes que me
foda o olho.
— Pronto, pronto, concedeu o soldado, uma para cada um e
não se fala mais nisso.
Até os bustos, até as bandeiras, até os estandartes pareciam
flutuar ao acaso na bruma do tabaco, os prédios irregulares do
Bairro Alto amoleciam e torciam-se à nossa volta, escurecidos,
desbotados, sem consistência, de plasticina ou de cera, formas
difusas moviam-se como peixes lá fora, e se calhar eram
gaivotas, se calhar eram pombos, os pombos beatos dos adros
das igrejas, os pombos sem tino do Chiado, os pombos
bêbedos de haxixe do Camões, as gaivotas que subiam,
inquietas, do rio, telhado após telhado, procurando em vão nos
algerozes, nas estátuas de loiça, nas cornijas, um mastro
marinho onde poisar, o Olavo explicava, com o auxílio de uma
ardósia, os pormenores do golpe, Os paraquedistas vêm de
Tancos durante a noite, tomam a Televisão e o Aeroporto, é
canja, o Regimento de Cavalaria ocupa-se das estações de
rádio, o de Lanceiros cerca o Parlamento, as tropas de Queluz
e da Encarnação a entrada na cidade, a Marinha é
tradicionalmente de esquerda e por aí não há problemas, a
população da Amadora, camaradas, neutraliza o quartel dos
Comandos por intermédio de uma barragem tesa de camiões e
furgonetas, e os nossos grupos de choque terão a seu cargo,
para além da tarefa indispensável de incentivar e de moralizar
as bases, de encorajar os que hesitam, de sensibilizar os
indecisos (e o fumo era agora tanto que se não distinguiam
sequer uns aos outros, que se apercebiam apenas vagos vultos
gasosos, sem contornos), as seguintes missões específicas,
camaradas, para cujo cabal cumprimento receberão as pistolas
de água e as metralhadoras de feijões do costume, gaivotas que
se cruzavam com os pavões de rabo azul nas ameias do castelo
e voltavam a cabeça para aqui e para ali, de bico aberto e dura
língua branca de fora, surpreendidas pela ausência da água,
Como quer que eu pesque a pestana, seu camelo, impacientou-
se a senhora de vestido de noite, se nem a merda de um
espelho você sabe segurar em condições.
— Oxalá que apesar da gaita do assalto ao banco não
insistam em nos separar, segredou-lhe esperançadamente a voz
da Dália, vinda de parte nenhuma como a das arvéloas nas
rochas, amortecida pela espessura baça do tabaco. Depois de
tantos treinos não nos podem negar uma segunda
oportunidade, pá, não se podem negar a que a gente lhes
mostre o que valemos.
— Ó filho, perguntou a tia do corredor, a limpar
amorosamente o pó a alguns cinquenta Santos Antónios
carecas, de barro, de pedra, de conchinhas, de plástico, de
alumínio, de pano. Não te tens metido na política pois não?
Aos sábados e domingos a Décima Nona Brigada de
Combate Mao Tsé Tung, ou seja o velho, o violoncelista, a
Dália, o Olavo e eu, animados de um fervoroso, indefectível
entusiasmo guerrilheiro (Se calhar não havia mais nenhuma
brigada, sugeriu perfidamente o alferes, se calhar tu e os teus
compinchas eram os únicos chineses de Lisboa)
amontoávamo-nos às dez da manhã, em sapatos de ténis e fato
de treino vermelho, com as iniciais da Organização nas costas,
no quarto andar do músico de Santa Iria da Azóia, duas
minúsculas salitas poeirentas repletas de papel pautado e de
estojos de instrumentos, com um Beethoven feiíssimo,
parecido com Karl Marx sem barba, a zangar-se na parede,
buzinas de automóveis e restolhar de árvores na praceta lá em
baixo, e os ruídos domésticos dos vizinhos, autoclismos,
crianças, talheres, zangas e tosses, a atravessarem os tabiques,
pregávamos com percevejos um alvo na moldura da porta,
torcíamo-nos em caretas de atiradores especiais, disparávamos
grãos de bico frenéticos, com as espingardas de folha, na
direcção das silhuetas de cabeças desenhadas no papel,
aplicávamos uns aos outros as chaves de judo do manual
Como Esquartejar o Seu Chefe em Dez Lições, inventávamos
um vocabulário secreto, para uso do grupo, de que
esquecíamos constantemente as palavras, descíamos as
escadas aos pares, comandados pelos ofegantes suspiros
exaustos do Olavo, em cujas bochechas tentava agora crescer
um restolho anémico de barba, e trotávamos um ou dois
quarteirões fora (lojas fechadas, barbearias cintilantes e
mornas, entradas de garagens, um templo das Testemunhas de
Jeová numa cave, onde mergulhavam soturnamente criaturas
iluminadas e severas), olhados pela indiferença ou pelo
espanto dos polícias, perseguidos pelos latidos dos cães,
troçados pelos adolescentes, de beiço sujo de bigode, que
engraxavam os botins nas esplanadas dos cafés, regressávamos
cambaleantes, salivando hinos, ao apartamento do artista,
desequilibrando-nos nos grãos de bico ou patinhando nos
charcozinhos das pistolas de água, e instalávamo-nos em
idosas cadeiras precárias, de assento roto de palha, a discutir
tácticas e a engendrar assaltos diante de mapas de papel
vegetal, coloridos de setas, de riscos e de cruzes, veementes,
enérgicos, felizes (Felizes?, surpreendeu-se o tenente-coronel,
felizes com quê?), ingurgitando vitaminas para os músculos,
comprimidos efervescentes contra a fadiga, que se dissolviam
no copo em géisers de bolhas, subindo e descendo
entontecidos, diminuindo sempre, até se sumirem num último
cuspozinho assobiado: e a voz de arvéloa da Dália, vinda de
parte nenhuma, amortecida pela espessura do tabaco, Deus
queira que nos deixem mostrar o que valemos, Deus queira
que não nos separem agora, depois desta trabalheira toda.
— Quando é que largas o pecado do comunismo e te
transformas numa pessoa séria?, perguntou a tia a benzer-se
defronte de um Santo Expedito descomunal, mascarado de
centurião romano, que namorava um Arcanjo São Miguel de
marfim com o retrós meloso das pupilas. Enquanto não nos
vires a todos na miséria não descansas.
— Os Chineses adoram deuses de oito pernas, explicou a
Esmeralda, tomam banho num rio muito porco e enchem as
ruas de vitelos brancos. Não percebo a sua inclinação por eles,
o menino nunca achou graça a vacas.
— O homem afaste-se para lá, caralho, esteja quietinho um
segundo, pediu o vestido de baile, desesperado. Se eu não
consigo tirar a filha da puta da pestana ainda passamos a noite
no Hospital de São José.
O tenente-coronel recuou três passos, derrubou com o
cotovelo um solitário que se escacou no chão (Porra, Artur,
merda para si, você só veio cá a casa para fazer asneiras),
acabou por tombar, sentado, na borda da cama, levantou-se
instantaneamente, de salto, no receio de pisar qualquer coisa
frágil e preciosa, enquanto a mulher, ao espelho, de língua de
fora, a alargar e repuxar as pálpebras cobertas de caliça azul,
se extraía a si própria de si mesma com a pinça niquelada que
cintilava de súbito agudos brilhos cirúrgicos, e mostrava
triunfalmente em redor, na direcção da indiferença dos retratos
e das franjas melancólicas dos quebra-luzes, uma grossa cerda
de piaçaba à laia de um toureiro exibindo o prémio de uma
orelha para os milhares de lenços, de casacos, de aplausos e
chapéus de uma praça empolgada.
— As Brigadas Quatro, Cinco, Seis e Sete, recitou a voz do
Olavo longíssima na névoa, atravessando a custo sucessivas
ondas opacas de fumo, reforçarão o cerco ao quartel dos
Comandos, conduzindo os simpatizantes e cimentando as
bases, e impedindo as inevitáveis e perigosíssimas infiltrações
contra-revolucionárias e fascistas.
— Pelos vistos não alteraram os grupos de combate,
alegrou-se a Dália, igualmente baça e distante. Pelos vistos
vamos trabalhar juntos outra vez.
— Apanhei-a apanhei-a apanhei-a, gritou a nuvem de
perfume para o tenente-coronel, atarraxado como um parafuso
ao pêlo alto da alcatifa. Caramba, Artur, que alívio, não seja
mono, dê cá uma beijoca para comemorar.
— As Brigadas Doze e Treze, disse o Olavo num tom
neutro de comunicado à imprensa, colaborarão activamente no
assalto às estações de rádio, fornecendo aos camaradas
militares progressistas toda a ajuda logística necessária, e
mantendo-se para o efeito em contacto permanente com a
Sede.
— Que complicação, meu tenente, admirou-se o soldado.
Isso era mesmo como está a contar, a sério?
A sério?, pensou o oficial de transmissões de palito a meio
caminho entre o prato e os dentes, a sério o fumo, a sério os
livros sujos e vincados de dedos, lidos e relidos e discutidos e
sublinhados, a sério os agressivos cartazes de punhos no ar, os
folhetos, as palavras de ordem riscadas nas paredes, o
jornalzito dactilografado, as desanimantes sessões à entrada
das fábricas para os operários indiferentes, as eternamente
malogradas tentativas de alfabetizar os bairros da lata no
intuito de posteriormente os converter, como os missionários
de África aos pretinhos prometidos ao inferno, ao marxismo-
leninismo-maoísmo salvador do tenebroso purgatório
capitalista, com os seus gerentes demoníacos e os seus chefes
de repartição diabólicos, transportávamos cadernos, lápis,
borrachas, tabuadas sebosas, uma ardósia rachada,
instalávamo-nos no meio do pó, das chapas de zinco, dos
burros coxos dos ciganos, do lixo, das caganitas das ratazanas,
dos latidos dos cães e da desconfiança mineral dos velhos,
principiávamos a ensinar as vogais e ninguém nos ouvia, A
Águia, E Égua, I Igreja, O Ovo, U Uva, mulheres de ancas
bambas despejavam alguidares de esmalte da ombreira das
casas, um bêbedo ressonava encostado a uma árvore, ovelhas
cinzentas pastavam os pedaços de papel que o vento trazia e
levava, a Dália escrevia maiúsculas empenhadas no quadro,
crianças de inquietantes pupilas adultas detinham-se a
examinar-lhe as coxas, a Dália repetia didacticamente as letras
a olhar para eles, tipos em camisola interior sentavam-se perto
de nós, em bancos de cozinha, a conversar, a cuspir, a jogar as
cartas, a mamarem de um garrafão de verga, um peru arrastava
o enfisema à nossa volta, o bêbedo agitava-se
tumultuosamente no seu sono, incomodado por horríveis
pesadelos de cidades sem tabernas, A Águia, E Égua, I Igreja,
O Ovo, U Uva, berrava o violoncelista, furioso, procurando
safar-se de um cachorro que lhe rosnava às canelas,
acabávamos por recolher, vencidos, os cadernos, os lápis, as
borrachas, as tabuadas sebosas e a ardósia rachada, descíamos
estreitas ladeiras a pique, pisando bostas de vitela e saias de
viúvas, na direcção da paragem do autocarro junto à cerca de
arame do parque de campismo, onde suecos de calções se
entendiam, numa linguagem de água gaseificada, sob
eucaliptos enormes que cheiravam a caixinhas vazias de
pastilhas para a garganta, o 42 chegava num relincho de
travões, a porta automática abria-se num silvo de asmático a
soprar um bolo de anos, subíamos agarrados à bengala do
varão limpando os sapatos nos degraus metálicos, e
desaparecíamos a abanar a nossa derrota cultural em cada
doloroso, lancinante desnível lascado do alcatrão a caminho do
prédio desfeito da Sede, eternamente envolto na bruma de
tabaco dos membros do Comité Central, onde a bandeira
vermelha se dependurava, vencida, do mastro, sem que os
gritos dos vendedores ambulantes e as discussões das vizinhas
a conseguissem despertar para um futuro erecto e heróico de
condutor das massas oprimidas.
— Se era a sério?, perguntou o oficial de transmissões,
ultrajado. Se era a sério? Claro que era a sério, meu cretino, na
Organização não se brincava: a nós, por exemplo, mandaram-
nos raptar o presidente da República, já vês.
— O Artur, isso nem parece seu, miou a nuvem de perfume
procurando enxotar o tenente-coronel atarantado no sentido da
cama. Não tenha medo de mim que eu não o como.
— E já agora porque não o Papa?, sugeriu o alferes com
uma garrafa de champanhe em cada mão e a nuca apoiada no
ombro vasto da mulata. E já agora porque não o Dalai-Lama?
Ou o prior do Beato? Ou o chefão da CIA? Ou a minha sogra
para variar? Nem sonhas o jeito que vocês me faziam se me
raptassem a sogra.
— Aposto que o meu tenente anda a mangar com o pessoal,
disse o soldado. Que eu saiba nunca raptaram o presidente da
República, que eu saiba nunca ninguém foi tão descarado
como isso.
— E de que maneira é que a gente se arranja para entrar no
palácio? interessou-se o velho. Deve haver o poder do mundo
de sentinelas à porta.
— Não é isso, soprou o tenente-coronel, sufocado, a
espernear na colcha, afastando rendas, pulseiras e madeixas.
São os seus colares que me magoam o pescoço.
— Fardados de brigadeiros venezuelanos, elucidou o Olavo
exibindo um baú repleto de dólmanes da guerra de 14 e de
condecorações jugoslavas de lata, ganhas de prémio nas
embalagens de farinha de bebé. Seguimos por ali fora até ao
gabinete do gajo, nas calmas, em passo de procissão com as
pistolas no bolso, continência para a esquerda, continência
para a direita, que marmanjo vai desconfiar de nós?
— O presidente da República, imagine-se, queixou-se o
alferes. Os amigos são assim: em lugar de me livrares da
sogra, que para além de ser muito mais simples (chegar lá a
casa, uns tiritos e já está) era um favor pessoal que me fazias,
resolveste dar a mão à parentela de um desconhecido.
— Eu vou de embaixador da Dinamarca, decretou o
violoncelista a remexer afanosamente, como num saldo, o
conteúdo da mala. Não há aqui um paramento diplomático,
uma casaca, uma espada, um barrete de campino, pelo menos?
— Abra os fechos e tire-mos, ordenou com urgência a
nuvem de perfume, serpenteando na colcha, a rebolar as
patéticas, exageradas bolas de bilhar dos olhos, cercadas pelos
fios de arame que sobravam das pestanas gigantescas: Agora é
que estou mesmo tramado, caralho, pensou o tenente-coronel,
aflitíssimo, agora é que fiquei arranjadinho da silva. As mãos
dela alargavam furiosamente o decote, subiam a saia,
rasgavam com ímpeto os folhos pretos das cuecas: Abra todos
os fechos do meu corpo, Artur, meta a língua na minha orelha,
aperte-me as coxas, beije-me os seios, tira a gravata e a camisa
depressa para eu te apalpar os músculos, te lamber o peito,
sentir-me marcada (Está a ouvir a parvoíce?, resignou-se ele,
está a ouvir a asneira?) pelo ferro em brasa do teu ventre.
— E porque não de sevilhana, com um pente na cabeça e
carrapito?, zangou-se o Olavo a distribuir generosamente
dragonas por aqui e por ali, enquanto restos de serpentinas
tombavam molemente no soalho. Julgas que isto é um baile de
máscaras ou quê?
— Eu nem quero acreditar, estarreceu-se o soldado. O meu
tenente metido numa alhada assim?
A minha sogra é que era, insistia o alferes, entusiasmado, a
minha sogra era canja e então com toda a família a colaborar
convosco ainda mais fácil se tornava o trabalhinho. Eu, por
exemplo, encarregava-me de envenenar os cães com umas
costeletazitas temperadas de cianeto. Pensa-me só naqueles
monstros, a vomitarem as tripas na garagem, pá, a desfazerem-
se em convulsões no meio dos pneus velhos e dos navios por
acabar.
— O menino anda por aí muito calado, não recebe
telefonemas, quase não sai, disse a Esmeralda, apreensiva, a
preparar na cozinha os grelos da dieta. Não se passa nada de
grave, pois não?
— Ou embaixador da Dinamarca ou nada, amuou o
violoncelista experimentando nos sapatos de ténis umas
esporas ferrugentas de cavaleiro tauromáquico. Com um
pingalim, um dicionário, um unicórnio e um sotaque sueco não
há quem não perceba logo que cheguei de Copenhague.
— Que riqueza de pilinha tão amorosa, que coisa tão
pequenina, tão querida, grasnou a nuvem de perfume a
escarafunchar com a ponta das unhas a breguilha apavorada do
tenente-coronel. Venha cá minha jóia, minha linda, a mamã vai
pô-la grande num instante.
— Quando é que a gente leva as miúdas para sua casa?,
perguntou o tenente-coronel ao alferes. Por mim, já deito
tangos e valsas e strip-teases pelos olhos.
— Devíamos arranjar um automóvel preto, de cortinas e
vidros fumados como os dos ministros, propôs a Dália. Quem
não respeita um carro de ministro?
Claro que era a sério, meu capitão, afirmou energicamente o
oficial de transmissões, a convidar por gestos de fumar, de
beber e de comer a ajudante do ilusionista para a mesa (e mais
ninguém mora na casa da Feira Popular, onde o silêncio se
coalha à superfície das coisas, como a nata do leite, a não ser
eu, e mais ninguém se alegra com as sombras dos cavalos de
pau que rodopiam nas paredes, e mais ninguém conversa com
os retratos dos mortos para que os sorrisos cresçam, como
doces plantas pálidas, nos vasos tristes das molduras, ninguém
manda consertar a bóia de baquelite do autoclismo avariado,
ninguém senão eu acende no fogão, com um fósforo medroso,
os raivosos malmequeres azuis do gás), claro que nos vestimos
a sério, o velho, o Olavo e eu, de brigadeiros venezuelanos,
cobertos de medalhas de folha, de cordões e velas doiradas de
pinheiros de Natal, de faixas coloridas e de punhais de
borracha (só eu a ouvir o silêncio à superfície das coisas, só eu
a farejar a imobilidade de cachorro que dorme atrás das portas
fechadas), o violoncelista com o chapéu de plumas amolgado e
traçado característico dos embaixadores da Dinamarca,
arrastando pelo chão, sobre o fato de mergulhador, o manto de
um reposteiro de sacristia tipicamente nórdico, cujas argolas
de madeira se entrechocavam e tilintavam, e a Dália, munida
de uns óculos tão espessos que a cegavam e a faziam esbarrar
constantemente contra as esquinas dos móveis, postada ao lado
do músico com um lápis numa das mãos e um bloco na outra,
tomando sem descanso as velozes, contínuas notas
estenográficas da secretária perfeita. Claro que era a sério,
meu capitão (mas o odor das salas alterou-se à medida que as
flores iam morrendo, que o grelado alastrava na caliça, que os
vestidos antigos se dependuravam, sem uso, dos cabides do
armário como as peles das cobras dos ramos dos arbustos, e
não apenas o odor mas igualmente a luz, essa claridade fosca
poisando, amarelada, como que no por dentro da espessura
agora transparente dos objectos, e não apenas a luz mas
igualmente o gosto da comida, o sabor do bife do jantar a
ferver na caçarola, o sabor da água, o sabor a relógio da pasta
de dentes de manhã), claro que era a sério, meu capitão,
descemos as escadas de pau que gemiam, se retorciam e
protestavam, vivas, semelhantes a grandes lagartas gastas,
debaixo dos sapatos, tomámos um táxi no Largo de Camões
para evitar pelo menos a repetição da tenebrosa catástrofe do
assalto ao banco, o chofer considerava-nos com espanto, as
pessoas estacavam na rua a fim de nos examinarem, sideradas,
a mirífica confusão da roupa, a Dália muito direita atrás das
lentes tropeçava de bloco em punho, por aqui e por ali, à
maneira de uma barata cega, duas senhoras de casaco de
leopardo seguiam-nos de boca aberta (Ó Artur, perguntou a
nuvem de perfume, intrigada, torcendo nos dedos a pila
obstinadamente, definitivamente morta do tenente-coronel,
isto é costume acontecer-lhe ou o jantar caiu-lhe na fraqueza?),
Para o Palácio de Belém, ordenou o Olavo com um
carregadíssimo sotaque sul-americano, o embaixador da
Dinamarca, à nossa frente, segurava como um ceptro o tubo de
respirar debaixo de água, com uma bolinha de pingue-pongue
na ponta, aprisionada numa espécie de gaiola de borracha,
seguimos para a 24 de Julho por uma ladeira de
estabelecimentos de antiquários e tabuletas de advogados
dispensando no primeiro andar conselhos de arte nova aos seus
clientes, uma praça, semáforos, a vizinhança ofegante do rio,
largos edifícios escuros que uma cárie esverdeada corroía,
eléctricos que coxeavam, ciáticos, nos carris, Orglup
flipknoque zbntz?, questionou o violoncelista a designar a
Ponte com o indicador curioso, Schulptmn trzbz glop glop,
esclareceu-o a Dália escrevendo sem cessar, o chofer,
espantadíssimo, desligou o rádio do automóvel para escutar
melhor, Caralho, segredou o velho, que me esqueci lá em cima
dos comprimidos para o coração, Nem penses que voltamos
atrás, cochichou o Olavo, irredutível, quando está em jogo a
vitória final do socialismo, Klpt brozni glapniox, aprovou
solenemente o embaixador, o homem do táxi, um careca de
meia-idade, procurava-nos no espelho retrovisor com as
pupilazinhas estarrecidas e enganava-se constantemente nas
mudanças (Mas que teimosa que a sua torneirinha está, Artur,
comentou a nuvem de perfume redobrando de zelo, a marota
quantos mais beijinhos lhe dou mais minguada fica) voltámos,
aos solavancos, à esquerda, à direita e outra vez à esquerda,
casas de rés-do-chão agora, tabernazinhas desertas, um campo
de futebol comido pelo mato, muros baixos de quintais, o
velho retirou o boné de pala de aviador inglês e espalmou a
mão nas costelas, rugas insuspeitadas multiplicavam-se-lhe
nas bochechas, Isto começa-me a doer como o diabo, palavra,
parem aí numa farmácia para comprar pastilhas, Viva o
imorredoiro marxismo-leninismo-maoísmo, retorquiu-lhe o
Olavo, inabalável, Tlac tlac problium psblt?, inquietou-se o
diplomata dinamarquês a oscilar as nádegas preocupadas no
assento, Drgt zzzzzzzz flop gugu, aconselhou a Dália,
apiedada, O país inteiro aguarda de nós esta justa e
imprescindível acção libertadora, segredou o Olavo, em nome
da classe operária exijo que cesse imediatamente esse
chorrilho de reaccionárias emoções pessoais e de
sentimentalismo burguês (O gajo conseguiu ser chato como o
raio que o parta até ao fim, comentou o alferes para o oficial
de transmissões, porque caneco o aguentaste tanto tempo?), o
tipo do táxi, apavorado e confuso, esticava desesperadamente
a orelha para nós na ânsia de perceber o que dizíamos, Slop
mnq brum?, interessou-se amavelmente o violoncelista
oferecendo o maço de Três Vintes, e o careca, nervosíssimo,
apressou-se a explicar-lhe por gestos que odiava o tabaco, que
havia mesmo no tablier um letreiro prevenindo com pompa
Não Fumar, o tenente-coronel, estendido de costas na cama,
tinha as calças puxadas até aos joelhos e o colete, a ponta da
gravata e a fralda amarrotada da camisa dobrados para cima, e
sentia-se envergonhado, tonto, ridículo, com uma vontade
louca de desaparecer, de fugir, de se evaporar no ar, de nunca
ter aceite o convite da mulher, de nunca ter tocado a
campainha, de nunca ter entrado, de nunca ter jantado, de
nunca, que merda, ter caído na armadilha infantil do pavão de
madrepérola do quarto de dormir, Uma farmácia, pedia o
velho arrancando medalhas, se não me caçam uma farmácia
depressa não assisto ao triunfo do proletariado sobre o
capitalismo agonizante, Gjmnm urms toflse, resmungava o
embaixador, contrariado, e as pupilas alarmadas, inquisidoras,
buscando-nos no espelho, Aguenta-te pá que estamos quase,
aconselhava-o o Olavo baixinho, aguenta-te que já se vê o
palácio ali ao fundo (nem escondo os oratórios no sótão, nem
o caixote da cadela retirei da varanda, há ainda cuecas e
camisas das velhas a baloiçarem no estendal, há frascos de
perfume e de pingos para a tensão nas gavetas das cómodas), o
terreiro alcatroado defronte do portão, as árvores, as sentinelas
quietinhas junto dos confessionários das guaritas, nenhum
trânsito à volta, nenhum jipe da polícia a patrulhar os
arredores, Você já experimentou tomar vitaminas, Artur?,
inquiriu a nuvem de perfume a coçar o queixo com os anéis,
uma moleza assim não é normal na sua idade, parece que há aí
umas ampolas bebíveis que dão vida a um morto, o carro
aproximou-se de um plátano e travou, o Olavo rebuscou nos
bolsos dinheiro venezuelano para pagar a corrida, Clmt jarnytz
obaia, protestou o embaixador da Dinamarca, indignado,
oferecendo ao condutor uma mão cheia de rebuçados de
mentol e de tampinhas de refrigerante e de garrafas de cerveja,
de mistura com pontas de cigarros e pedaços de fósforos, o
careca ficou a olhar aquelas moedas nórdicas de queixos em
ângulo recto de surpresa como um crocodilo, Uma ampola ao
almoço uma ampola ao jantar, Artur, consolou-o ela, e ao fim
de um mês está um Tarzan que nem calcula, Eu não me tenho
nas canetas, murmurou o velho, de condecorações a
escorregarem pela farda abaixo, seja ceguinho se não desato
aos uivos com as dores, Rnhopl rnhopl, fez soturnamente a
Dália atrás das dioptrias que lhe transformavam as órbitas em
confusos, imprecisos, vagueantes pontinhos microscópicos à
deriva, as sombras dos ramos deslizavam no chão numa leveza
de água, afastando-se e confundindo-se, a espada comprida do
Olavo pulava como um cabo de vassoura atrás dele, o
violoncelista avançou com decisão para o palácio à maneira de
um gatuno para uma ourivesaria sem alarme, E nem sequer
entrámos lá, lamentou o oficial de transmissões, e nem sequer
nos afastámos vinte metros do sítio onde o táxi nos deixou (o
tamanho do corredor, caramba, o meu capitão não faz ideia do
comprimento do corredor agora, trota-se e trota-se horas a fio
na passadeira poeirenta e a porta da sala cada vez mais longe,
e a maçaneta do quarto de banho a reluzir, escarninha, nos
antípodas, e os santos nos nichos a aparentarem-se aos marcos
quilométricos de uma estrada sem fim), a Dália, estonteada
pelos óculos, ziguezagueava como uma toupeira entre as
nódoas do sol, Glória eterna ao marxismo-leninismo-maoísmo,
bradou o Olavo para as copas indiferentes, a segurar o sovaco
do velho cujas pernas sem vontade bambeavam e tremiam,
Hhlorph marxiskt lenivan maoara bum bum, reforçou
vigorosamente o diplomata, um rebanho de cães trotava
cabisbaixo no extremo oposto da praça, eu ainda gritei Olha
que o gajo vai cair, olha que o gajo se estampa, sete ou oito
medalhas a rebolarem no alcatrão, a Dália, cega, perdia-se de
pistola de plástico em riste, a chocar de banco em banco, para
os lados do rio, Flap orgoin tzaun?, perguntou o violoncelista
que tentava em vão libertar a metralhadora de brinquedo das
argolas de madeira do seu manto, o tenente-coronel, de pé,
abotoava desanimadamente a breguilha entre espelhos
sardónicos e caixinhas de loiça subitamente irónicas,
confortado pelas palmadas maternais da nuvem de perfume,
Isso não é nada, Artur, isso não tem importância nenhuma,
Artur, depois de umas embalagens de ampolas vai ver como
nos fartamos de rir os dois com isto tudo, Artur, Dá cá uma
mão, camarada, chamou-o o Olavo a segurar o outro general
pela cintura, dá cá uma mão que eu não seguro este sócio,
Chtok chtok, piava a Dália embarafustando por umas
escadinhas que conduziam às docas, corri para eles a tropeçar
nas esporas e nesse mesmo instante (os móveis também
enormes, gigantescos, infinitos) o velho escapou-se-nos dos
dedos (as lâmpadas do tecto, pálidas e sujas, mais longínquas
que as estrelas), húmido, escorregadio, gelatinoso, e principiou
a torcer-se em caretas horríveis numa mancha de sol (Até o
vento nas cortinas é diferente, explicou-nos o oficial de
transmissões, até o som dos meus pulmões na almofada),
resmungando pelo anel dos beiços um derradeiro, definitivo
palavrão venezuelano.
12

Queria sair da boîte antes de amanhecer, meu capitão,


porque não há nada pior no mundo do que a cara de uma puta
à luz do dia. Apagam os holofotes e as bolas de espelhinhos
que giram no tecto, os músicos arrumam os instrumentos no
estrado, desligam os microfones, vestem a gabardine
(gabardines quotidianas, imagine, iguais à sua e à minha) por
cima dos laços e dos smokings vermelhos, levantam a gola,
abrem a porta, uma claridade de retrete triste ilumina de viés
as cadeiras e as mesas, vêem-se os caixotes do lixo e os
prédios lá fora com a nitidez dolorosa de um abcesso, a
ameaça do relógio de ponto desata a palpitar muito longe
algures dentro de nós, um arrepio de aflição sobe da espinha
para os ombros e eu, entende, sem me dar conta, sem dar por
isso, principio a tremer. É a hora em que as putas, vestidas
como palhaços ricos, abandonam os cabarés, tropeçando no
exagero dos saltos, a caminho das paragens dos eléctricos,
com o último cigarro a arder, esquecido, nos dedos, à laia das
lanternas traseiras dos comboios, baloiçando, soltas, na
carruagem final, a caminho de nada. É a hora, meu capitão, em
que Lisboa é um deserto de fachadas transidas de frio que um
vento gelado barbeia e barbeia, em que as árvores emergem
lentamente da névoa matinal e as praças e as ruas se enchem
de putas de olhos foscos de morcego, envoltas nos seus
espalhafatosos casacos de peles de plástico e nas suas estolas
de coelho traçado, a hora em que centenas, milhares de
palhaços ricos de compridos cabelos vermelhos, ou loiros, ou
cor de graxa preta, regressam empenadamente aos seus quartos
andares sem elevador, baloiçando na extremidade aguçada dos
dedos as carteiras de vidrilhos, para raros, furtivos, oblíquos
táxis medrosos que lhes não respondem. Às seis da manhã,
percebe, quando o lixo, os pedaços de papel e os fragmentos
de jornal rebolam no passeio soprados por uma invisível,
inexistente boca misteriosa, quando os repuxos dos largos se
suspendem no ar e as estátuas de bronze dos tanques erguem
os membros ferrugentos em imóveis adeuses sem sentido,
Lisboa é uma cidade de putas exaustas, corroídas pelo
champanhe falso e pelo uísque de álcool de farmácia, um circo
fúnebre que uma trompete muda lamentosamente sublinha,
observado por um palco opaco de janelas. Quando eu era
pequeno acordava por vezes, de madrugada, a meio de sonhos
tumultuosos e insólitos, chamado por um odor de suor e de
perfume barato, por um inumerável tilintar de pulseiras, por
um atrito de roupa, por um entrechocar esquisito de colares,
que se combinava com os gemidos das cómodas, os estalos do
soalho e a marinha respiração dos meus pais no quarto ao lado,
fungando como morsas nos lençóis, aproximava-me da
varanda, afastava receosamente a cortina, e lá estavam, no
passeio, a aconchegarem os lenços de pescoço diante da
insígnia apagada do Flamingo, dezenas de mulheres
aracnídeas, de meias pretas e saias curtíssimas, parecidas com
as acrobatas, as contorcionistas, as trapezistas, as senhoras dos
cãezinhos amestrados do Coliseu, a aguardarem, numa aflição
quieta de mochos, a chegada de um autocarro salvador, vindo
confusamente lá de baixo, da névoa de barcos do rio, a dançar
nas ancas gordas das rodas. Eu embaciava as vidraças com a
sofreguidão do nariz e desembaciava-as com a manga ansiosa
do pijama à medida que as putas se multiplicavam na rua em
trágicos, ameaçadores, terríveis ademanes de palhaços, de
saxofone ou de acordeão adiante das lantejoulas do peito,
estendendo-me as luvas brancas, de sobrancelhas erguidas e
grandes risos escarlates nas bochechas pintadas, enquanto uma
orquestra desafinada começava a tocar nas minhas costas num
enorme estrondo de pratos, um foco que mudava
constantemente de cor me perseguia ao acaso ziguezagueando
pelo quarto, as luvas, os braços, as sobrancelhas, os risos
quase alcançavam os caixilhos, pesadíssimas coxas inchadas
sufocavam-me, sapatos de verniz preto esmagavam-me a
bexiga, um mijo de aflição escorria-me ao longo das pernas
pelas calças de riscas do pijama, a intensidade da orquestra
aumentava, reboando na casa, até se confundir com a voz da
minha mãe que me ensurdecia por completo, me erguia do
chão, me afastava das cortinas, me transportava ao colo para a
cama que fora dela em solteira, e antes dela da mãe dela, e
antes da mãe dela da mãe da mãe dela, e me deixava sozinho
na almofada, espiando apavorado a varanda a que se colavam
os rostos de longos cabelos ruivos, ou amarelos, ou pretos, das
putas de Lisboa, torcendo-se em tenebrosos esgares estranhos
de convite ou de repulsa.
De modo que queria sair da boîte antes de amanhecer, meu
capitão, nós os cinco, a mulata gorda, a ajudante do ilusionista,
as duas magrinhas descoloridas, postadas como castiçais uma
de cada lado do tenente-coronel, insaciáveis no amendoim e
no vermute, e a deusa do strip-tease Melissa que se chama
Adosinda, tem borbulhas nos ombros e foi criada de servir no
Porto em casa de um médico dos rins, sair enquanto a noite
nos encobre misericordiosamente as olheiras, os pés-de-
galinha e os cabelos brancos, nos esconde a palidez, os vincos
dos fatos, a gravata torcida e as nódoas da camisa, enquanto o
numeroso, incontável exército das putas não invade a cidade
com o seu circo tétrico de criaturas disformes e excessivas, de
gengivas abertas na cal do queixo como as feridas dos
estilhaços de granada, recorda-se?, a gente vinha da guerra, de
licença, a Lourenço Marques, e os suspiros dos doentes não
nos deixavam um segundo sequer a noite inteira, a gente
enterrava a boca, o nariz, as orelhas entre as mamas de uma
preta e continuava, que merda, a escutá-los agitarem-se e
gemerem na enfermaria do quartel, sair antes que amanheça,
meu capitão, subir com vocês ao segundo andar da Rua da
Mãe-d’Água, acender o candeeiro de papel amarelo, servir
uísque a toda a gente (deve haver copos suficientes no
armário) e desaparecer com a ajudante do ilusionista no quarto
da Mariana, voltado para a fonte iluminada, a espernear, nu,
em cima do corpo insignificante da mulher, no meio das
bonecas de pasta, dos patos de borracha e dos ursos de
peluche, sentados nas prateleiras, a examinarem-nos com as
inexpressivas pupilazinhas estúpidas de louça.
— E durante quanto tempo esteve o meu alferes no Brasil?,
perguntou o soldado, que as lâmpadas da boîte alternadamente
mostravam e escondiam: um assimétrico rosto anfractuoso,
imensos dentes verdes, órbitas cavadas, a pele irregular de
pedra-pomes, húmida de sabão de suor. E durante quanto
tempo trabalhou por lá?
— O velho morreu dois ou três dias depois, de um
aneurisma, apesar do soro, apesar dos aparelhos, apesar das
algálias, disse o oficial de transmissões. Fizemos o velório na
Sede da Organização, e levámo-lo a enterrar num caixão com
a foice e o martelo gravados, coberto pela bandeira vermelha
do autêntico marxismo-leninismo-maoísmo, e dezenas de
militantes de compungido punho ao alto atrás. O Olavo e o
Lopes discursaram no cemitério, no meio das cruzes, dos
jazigos e dos anjos de gesso, em nome do proletariado de luto,
a Dália lançou um cravo sobre a campa, uma senhora idosa,
toda vestida de preto, chorava amparada ao violoncelista que
se apresentara para o efeito com a casaca lustrosa dos
concertos, o resto da família desapareceu à socapa,
encavacadíssima, quando desafinámos em coro A
Internacional. Na reunião seguinte do Secretariado aprovámos
por unanimidade que o compartimento destinado às
conferências de imprensa, cubículo decrépito a cair de podre,
com garrafas de cerveja vazias num armário sem porta, se
passasse a chamar Sala Alfredo da Conceição Pires, e
descerrámos um retrato do velho no exíguo espaço de parede
entre duas janelas, onde o valoroso camarada sorria na
moldura de esmalte um esgar desfocado de fotomaton.
— Vinte e sete meses, respondeu o alferes. Vinte e sete
meses e picos como na guerra.
— Qualquer dia, quando menos espere, murmurou o
tenente-coronel num soprozinho pensativo, quem rebenta de
um aneurisma sou eu. Hei-de ir uma manhã destas ao médico
medir a tensão.
Nos primeiros tempos, os sogros, as cunhadas, os cunhados,
a Inês, a Mariana, três criadas e ele amontoaram-se num
apartamento minúsculo, em São Paulo, onde se esbarrava
constantemente uns nos outros e nas pesadas malas sem fim,
cujos fechos metálicos se soltavam de súbito, como gafanhotos
cromados bolsando vómitos de meias e cuecas, dormiam em
colchões no corredor, na sala, na cozinha, onde um cano roto
pingava perfidamente a noite inteira, a cidade afigurava-se-lhe
desagradável e cinzenta, ofegante de trânsito, portugueses
amigos dos pais da Inês apareciam e desapareciam de contínuo
como as silhuetas dos barómetros, queixosos e amargos,
maldizendo a tropa, o povinho, os comunistas, a senhora de
cabelo roxo apostava que o Vaticano era um coio de cardeais
russos tramando em torno do Papa conjuras heréticas contra a
Virgem de Fátima. A sogra, desgrenhada, sempre de robe de
chambre e de chinelos, presidia à confusão entre gritos e
comprimidos de calmantes, havia cabides com vestidos e
casacos pendurados de cordas, dezenas de crianças, nascidas
de debaixo dos móveis, do recheio das gavetas, do fundo dos
baús, que não paravam de chorar, comia-se de pé, com talheres
de plástico e em pratos de papel, almoços insossos que sabiam
a esgoto, a cocó seco e a escape de automóvel, trazidos da rua
em caixas transparentes, e Você está a ver no que dá a
liberdade, Jorge?, Você está a ver no que dá a democracia,
Jorge?, e volta e meia a mãe da Inês metia a chave a um
cofrezinho, remexia secretamente lá dentro, vestia-se,
desaparecia com ar de funeral por uma manhã ou uma tarde, e
regressava mais nova, de cabelo arranjado, com presentes para
todos e um maço de notas na carteira: nos primeiros tempos,
meu capitão, vivemos de ela empenhar anéis até que arranjei
emprego num escritório e mudámos para outro apartamento,
em Santos, quase no porto, ao lado de um casal de napolitanos
de meia-idade, que nos intervalos de se entreterem a discutir e
a beber chianti ouviam ópera aos gritos noites a fio.
— E por baixo do retrato, explicou o oficial de
transmissões, colámos um rectângulo que informava A
Alfredo da Conceição Pires, Mártir da Liberdade. Quando o
marxismo-leninismo-maoísmo derrotasse finalmente a
burguesia associaríamos o seu nome a uma avenida, a um
jardim, a uma fábrica, a um bairro inteiro, a uma piscina
municipal, a uma traineira de pesca, escrevemos à viúva, em
papel timbrado da Organização, a felicitá-la pela futura
imortalidade próxima do marido, passada uma semana ou duas
recebemos uma carta dirigida ao Olavo e lá dentro, ao meio da
página, em maiúsculas, Vão À Merda.
— Um aneurisma, conversava sozinho o tenente-coronel, de
olhos globulosos a flutuarem sobre um bosque de garrafas,
como raio é que nunca me veio à cabeça essa hipótese?
— Colesterol óptimo, radiografias óptimas,
electrocardiograma óptimo, latiu o médico a afastar as análises
numa carranca decepcionada. (As cúpulas da Basílica da
Estrela brilhavam ao sol atrás da touca quadrada da
enfermeira.) Não quer trocar a sua saúde pela minha, por
acaso?
— Ó Jaime, perguntou a sogra para o marido amolecido, de
cachimbo nos dentes, diante do eterno televisor sem som, você
já leu as notícias horrorosas de Lisboa? Fizeram uma
revolução para acabar com os comunistas e no fim de contas
puseram-nos no poleiro outra vez. Coitadas das pessoas que lá
ficaram, eu nem quero pensar.
Via-se o cais, as docas, pontões sujos eriçados de gruas, o
mar pardacento, muito fumo, navios estrangeiros atracados. Eu
saía de manhã cedo, trabalhava o dia inteiro, regressava tarde,
de autocarro, amachucado por mulheres e embrulhos e
mulatos, deixava a Inês a dormir, pastando a fronha da
almofada com a boca aberta, e encontrava-a ensonadíssima,
estendida no sofá da saleta, com uma revista de capa colorida
aberta nos joelhos e a Mariana a trotar-lhe em torno, a brandir
uma girafa de pano, interrogativa e inquieta. Os barcos
soltavam mugidos rombos de boi, carregadores negros,
insignificantes na distância, sumiam-se sob os cotovelos dos
guindastes ou nos edifícios de madeira dos armazéns, a roupa
por lavar acumulava-se num cesto de verga, a loiça suja
empilhava-se na cozinha, uma noite fumarenta, melancólica e
malcheirosa alastrava no quarto, e enquanto eu acendia o
fogão para o jantar, escutando as intermináveis discussões
épicas dos vizinhos, que borbulhavam, distorcidas, nos ralos
de alumínio, a campainha imperiosa do telefone, e enquanto eu
pousava o tacho de água ao lume para cozer a massa, Você já
leu que os comunistas continuam em Portugal, Jorge?, Você já
leu que esses ateus são os donos de tudo?
— Há pessoas, resignou-se o oficial de transmissões, que
por mais cambalhotas que se lhes dê, por mais cientificamente
que se lhes mostre a verdade, não conseguem entender a
revolução: olhe, não é preciso ir longe, a viúva do Pires era
uma delas. Enfiou-se-lhe no gorro que o marxismo lhe matou
o marido, e a partir daí o que é que o meu capitão quer.
— Com um aneurisma, prosseguia aereamente o tenente-
coronel como se sonhasse, um gajo explode de repente, está
muito bem a conversar e pumba, o corpo enche-se de sangue
por dentro e acabou-se. — Precisava imenso de falar com a
Inês, disse a senhora de cabelo roxo no patamar da escada, e
você nem sequer me convida para entrar. — Mesmo no Brasil
elas continuavam a dar-se, meu alferes?, indignou-se o
soldado. Mesmo no Brasil a pouca vergonha mantinha-se?
Suava-se constantemente como em África, meu capitão, a
mesma humidade repugnante, o mesmo odor de carne morta,
as mesmas erupções de pele no pescoço, nos sovacos, nas
virilhas, custava a respirar na atmosfera eternamente parda,
eternamente abafada, que as caldeiras dos navios alimentavam
e aqueciam, havia gente a mais, tráfego a mais, barulho a mais,
portugueses a mais, encafuados aos magotes em andares
acanhadíssimos, o gerente do escritório pagava-lhe pouco e
atrasado (Trata-te assim porque te julga na miséria,
argumentava a mulher, manda-o àquela parte e põe-te a
milhas), à hora do almoço encostava-se ao primeiro balcão de
pastelaria que topava, a mastigar uma sanduíche lamacenta e a
pensar Um dia destes os barcos entram sem mais nem menos
pela cidade dentro, arrasando as casas, navegando num
insuportável estrondo de máquinas no alcatrão estragado das
ruas, a pensar Quero voltar para Lisboa, quero ver os meus
pais, quero o candeeiro de papel amarelo da Mãe-d’Agua,
estou farto até aqui dos telefonemas da velha, do odor
açucarado da maconha e das pupilas dilatadas pela cocaína e
pelo brown dos meus cunhados, a pensar A esta hora estão ela
e a outra a rebolar-se na cama, a esfregarem-se, a lamberem-se
como ovelhas, a rirem, a conversarem mal de mim, a troçarem
dos meus defeitos físicos, dos meus tiques, dos meus gestos, a
pensar, meu capitão, O que faço eu aqui?, a pensar Amo-te, a
pensar Não te amo, a pensar Detesto-te, a pensar, que
palermice, No Brasil, na Índia, na China, no caralho mais
velho, fosse onde fosse, gostava à brava de ser feliz contigo.
— Só a ureia um tudo-nada alta, senhor tenente-coronel,
disse o médico (e as cúpulas da Basílica da Estrela palpitavam
e vibravam, encostadas ao céu inalteravelmente azul, e um
sino medieval balia ao longe), mas se poupar na carne e nos
ovos fica como novo num instante.
— Eu não lhe disse, Artur?, exclamou a nuvem de perfume,
triunfante, a gatinhar sobre ele de mamas penduradas e refegos
de gordura que tremiam, numa complicação de pulseiras e
colares, eu não lhe disse que à segunda embalagem de ampolas
conseguia?
— A Inês não está, garantiu o alferes com a mão na porta, a
barrar o vestíbulo, olhando a senhora do cabelo roxo numa
raiva gelada que aumentava. Foi a São Paulo com as irmãs, a
casa dos meus sogros, e só deve voltar no princípio da semana
na melhor das hipóteses. Quer que lhe transmita algum
recado?
— Ilka?, gritou lá do fundo, em sobressalto, a voz aguçada
da Inês. É a Ilka que aí está, Jorge?
— Juro-lhe que foi lindamente, querido, sossegou-o a
nuvem de perfume, estendida de costas nos lençóis como um
bacalhau naufragado, a acariciar-lhe a pila molhada e morta
com a mão. Pela minha saúde se tive tanto prazer com alguém,
já vê.
Tanta incompreensão fere, lamentou-se o oficial de
transmissões. Recusar-se a dar o nome do marido a uma rua, a
um infantário, a uma creche, a um hospital, a um simples
coreto, calcule. Eram coisas destas que me levavam a duvidar
que fosse possível instaurar no País o marxismo-leninismo-
maoísmo, eram coisas destas, meu capitão, que me
desanimavam por completo. Porque nenhum revolucionário,
por muito calejado que seja, por muito habituado ao
conservadorismo nacional, ao medo atávico do povo, cuja
ingenuidade os padres exploravam, à resistência da pequena-
burguesia e ao tenebroso conluio do capitalismo internacional,
porque nenhum revolucionário é de pau, senhores.
— Sim, querida, respondeu a senhora de cabelo roxo com
um soluçozito exaltado, passando-lhe, rápida, sob o braço,
para a sala. Cheguei agora mesmo por causa deste trânsito
horrível, estava aqui a conversar com o teu marido.
— Vocês cinco vêm connosco, sem protestar e caladinhas,
avisou o soldado, todo senhor de si, apontando as mulheres da
mesa com o dedo. A gente paga a conta e safa-se desta
espelunca quanto antes.
— Palavra que foi uma maravilha, bichinho, teimava a
nuvem de perfume a beijar-lhe o pescoço, palavra que se
portou como um herói.
A Inês em pijama, desalinhada e contente, de pernas
cruzadas no sofá, a brincar com os dedos envernizados dos
pés, a senhora de cabelo roxo, de costas, junto ao armário, a
servir-se de uísque, de gelo, de água de picos (Como ela
conhece os cantos à casa, pensou o alferes, como ela foi logo
direitinha ao bar), a porta da rua aberta e o napolitano,
gordíssimo, em camisola interior, a enxotar o gato para o
patamar, um petroleiro com a bandeira turca afastava-se
lentamente, no dia incolor, perseguido por um bando de
pássaros: saio daqui, não saio daqui, instalo-me numa cadeira
à vossa frente, deixo-vos sozinhas, um empregado soltou, de
passagem, um papel sobre a mesa, como as gaivotas cagam a
meio do seu voo, sozinhas para as vossas carícias melosas, as
vossas mordiscadelas imbecis, as vossas porcarias, o oficial de
transmissões acendeu o isqueiro a fim de decifrar as fezes, as
feições desarrumaram-se-lhe numa gravidade preocupada,
Quase três contos, porra, chama-se o gerente e reclamamos,
meu comandante?, Alguém sabe quanto faz três contos a
dividir por cinco?, Uma queca e peras, Artur, classificava a
nuvem de perfume, cujos seios se derramavam, espalhados,
nas costelas, eu nunca me engano, sabe como é?, mal o vi no
Terreiro do Paço disse logo Ora aqui está o homem de que
ando à espera há tantos anos, falavam as duas baixinho, de
bocas quase unidas, meu capitão, como se eu não existisse de
facto, como se mais ninguém estivesse ali, Seiscentas brasas e
uns pós para a gorjeta, calculou o oficial de transmissões, até
ao fim do mês acabaram-se os livros e os cinemas, Um par de
estalos em cada uma, pensava o alferes imóvel no tapete a
olhá-las, um par de estalos em cada uma e para a gaja do
cabelo roxo, Ponha-se na rua sua puta, e a pontapé daqui para
fora, o petroleiro turco ia-se desvanecendo envolto num fumo
pestilento e triste, algumas luzes acendiam-se por aqui e por
ali, o ruído dos guindastes cessava, a cidade parecia inchar nas
suas costas, Quem tem troco de um conto de réis?, perguntou o
tenente-coronel de carteira na mão, a folhear notas, retratos,
cartões, papéis, Deve ter o corpo podre, Inês, mamas
chuchadas, varizes, pregas nojentas na barriga, que graça
encontras tu nesse crocodilo, porque é que o púbis grisalho
dela te entusiasma?, o barco cada vez mais pequenino,
insignificante, inexistente, os cais e os pontões desertos, o
ruído do trânsito a mudar de cor, de intensidade, de timbre,
Nunca me senti tão estrangeiro e tão sozinho como naquela
casa, meu capitão, nunca me senti tão perplexo, os cubos de
gelo da senhora de cabelo roxo tilintavam ao meu redor à
maneira de múltiplas, ferozes gargalhadinhas de troça, as
bocas abriam-se e fechavam-se e eu não escutava um som
sequer, o soldado recolheu as notas e moedas que sobravam,
Quem tem a receber que se acuse, furtando-se ao apetite lento
da mulata, Prepare-se, Artur, que nunca mais me escapa,
avisou a nuvem de perfume, prepare-se que até o levar ao altar
não descanso, E não me diga que conseguiu, meu tenente-
coronel, perguntou o oficial de transmissões, e não me diga
que a madame o arrumou em dois tempos?, o italiano uivava
com a mulher do outro lado do tabique, a orquestra atacou um
tango, um sujeito idoso, de camélia na botoeira, levantou-se lá
do fundo, a apertar o casaco, pastoreando uma adolescente
raquítica, o vocalista desencaixou o microfone do suporte,
desembaraçou o fio e avançou sorrindo, em bicos de pés, até
ao rebordo de foscas lampadazinhas coloridas do estrado, Com
essas e outras aldrabices, entendem os senhores, disse a
porteira a ameaçar o filho com uma colher de pau, é que
aquela cabrona o enrolava, a Inês pousou familiarmente a mão
no joelho da amiga para lhe explicar um segredo ao ouvido,
Vão rebocar a cara, ordenou o soldado às mulheres, e dentro
de cinco minutos encontramo-nos à porta, a camélia passou
por eles em saltinhos ridículos, desencontrados com a música,
Amanhã aviso os teus pais da raça que tu és, pensou o alferes,
tranco-me com a tua mãe no quarto, previno-a Prepare-se, e
desbobino-lhe tudo, para além do incansável tipo da flor já só
sobravam um ou dois pares imóveis, entrincheirados atrás de
muralhas de garrafas, semiocultos na sombra, adivinhados
pelas pontas dos cigarros que diminuíam e aumentavam, o
gerente despediu-se deles a esfregar obsequiosamente as mãos
polidas mas os seus olhinhos avaliadores não sorriam, as
putas, que os casacos engordavam, esperavam por nós, numa
violenta bruma de água de colónia, a conversar com o guarda
da entrada, o qual piscava pálpebras de mocho encostado aos
cartazes das fotografias, repletos de beldades em fato de banho
como nos concursos das misses, não era dia ainda e contudo a
noite esbranquiçava-se imperceptivelmente rente às arestas das
casas e aos ângulos desiguais dos telhados, o autotanque da
Câmara, com uma ampola amarela a piscar no tejadilho,
rastejava devagar lavando as ruas, um homem remexia os
caixotes do lixo com um pau, cães deitados junto às árvores
sem folhas miravam-nos a medo, Dois táxis depressa, requereu
o tenente-coronel ao porteiro, principiando a procurar as meias
no meio dos bibelots de madrepérola, ó Jorge, pediu a senhora
de cabelo roxo a exibir o isqueiro, acabaram-se-me os
cigarros, imagine, você importava-se muito de ir num
instantinho lá abaixo e trazer-me um maço de Marlboro, os
cais, os barcos, a cidade formigavam de luzes, o motor de um
último guindaste batia as válvulas desencontradas no pontão,
Minha senhora, senhor engenheiro, a vossa filha é lésbica, e as
pupilas desorbitadas da sogra, e a boca aberta dela, e as mãos
que procuravam às cegas, subitamente trémulas, uma cadeira
para se sentar, Não fale tão alto, alarmou-se o marido, os meus
filhos podem ouvi-lo lá de fora, o tenente-coronel agachou-se
na alcatifa, aclarado pelo halo cor-de-rosa de um candeeirinho
de louça com um casal de pombos na base, Você viu para onde
foram as cuecas, que maçada?, Vamos até ao paraíso, minhas
prendas, sugeriu o soldado a enxotar como gansos a mulata e
as amigas para o interior dos carros, A Inês?, perguntou a
sogra que parecia, a compor daquela maneira o roupão com os
dedos escamosos, ter durado cinquenta anos num minuto,
podia imaginar isso de toda a gente menos da Inês, Jorge, e a
propósito que é do frasco de calmantes que aqui estava?,
encontrou-as por fim debaixo da cama, junto a um chinelo de
salto alto, com um pompom no peito do pé, tombado de lado
na alcatifa, a nuvem de perfume, de maquilhagem desfeita,
com a pintura das pálpebras a escorrer pelas bochechas, sorria-
lhe carnivoramente da almofada, e o tenente-coronel lembrou-
se, como em sonhos, de tocar repetidas vezes com a língua na
placa de plástico dos dentes postiços da mulher, pastosa de
uma lama glauca de saliva, A Inês e a Ilka nem sonhar,
afirmou energicamente o sogro, ainda antes de fugirmos para
aqui fomos a Fátima juntos à procissão das velas, A loja da
esquina, disse a Inês, não costuma ter cigarros americanos, só
desses mata-ratos brasileiros, mas há uma banca três ou quatro
quarteirões adiante que vende de tudo, até maconha, as cuecas
húmidas à frente, as calças, os sapatos, chegou-se ao espelho
para apertar a gravata e encontrou no vidro o corpo nédio,
roliço de pregas como o dos bebés, da nuvem de perfume,
cujos dedos em pinha lhe enviavam da colcha beijos
desfocados, no interior dos automóveis o cheiro das mulheres
espessava-se e expandia-se como o relento dos cadáveres, não
era dia ainda mas qualquer coisa indefinida e vaga dissolvia a
noite como um ácido, corroía as trevas, reduzia os arbustos e
as árvores a esbracejantes ossos descarnados, descoloria as
fachadas e conferia aos rostos as caretas inquietas dos
defuntos, a ajudante do ilusionista vasculhava a boquilha na
carteira, o oficial de transmissões dormitava de queixo no
peito, o cabelo do tenente-coronel rareava nas fontes e no alto
da nuca, Como estes cabrões envelheceram, pensei eu, como
estes sacanas se tornaram idosos e vulneráveis e moles e
resignados e tristes, A Inês?, grasnava a sogra, agressiva, a
chupar uma cápsula, a Inês, jura você?, não era dia ainda e
porém uma fosforescência ácida queimava as gengivas dos
sorrisos, aumentava desmesuradamente os incisivos e os ossos
das caras, unia as mãos amarelas sobre os peitos e imobilizava
as feições numa serenidade angustiante, o sogro batia o
cachimbo apagado na concha da palma, Ao menos um
beijinho de despedida, seu maroto, solicitou a nuvem de
perfume, ao menos um nico de ternura, riqueza, desceu o
elevador a premeditar Trago-te os cigarros o caralho, minha
vaca, faço-te a vontade os tomates, minha chiba, e à medida
que o táxi avançava, friccionando-se nas esquinas desertas,
reparou em pânico (Vai amanhecer, vai amanhecer, vai
amanhecer, vai amanhecer) que as putas abandonavam os
cabarés manhosos do Conde Redondo, apercebeu-se do
ameaçador sossego da cidade e do silêncio terrível das estátuas
e das praças, da húmida, aflitiva cor de musgo do céu,
reflectida nos vidros das montras e na pele pregueada dos
lagos, a sogra recompunha-se a pouco e pouco, rejuvenescia
outra vez, ganhava viço, recobrava por completo o domínio de
si própria e do marido, ó Jorge, avisou ela, não me venha
agora com essas conversas parvas que eu tenho imenso que
fazer, o tenente-coronel acabou de atacar os sapatos, de
abotoar o casaco, passou ao quarto de banho a pentear-se e por
fim debruçou-se para a nuvem de perfume e sentiu o morno
odor agradável dos braços da mulher que se lhe
dependuravam, pesados, do pescoço, atravessámos a Avenida,
contornámos a Praça da Alegria onde os arbustos se
misturavam prolixamente numa desordem sussurrante de
folhas, o alferes começou a andar, ao acaso, de mãos nos
bolsos, na direcção do amplo nada do porto, a boca da mulher
sugou-lhe a boca, a língua introduziu-se-lhe com um suspiro
molhado no intervalo dos dentes, e nisto um dos pés do
tenente-coronel escorregou-lhe, perdeu o equilíbrio, e tombou
desamparado sobre um monte fofo de rendas, de folhos, de
lacinhos, de fitas, de cetins, de agradáveis, acolchoados
volumes de carne suada que se fecharam em torno do seu
corpo como a última onda em cima de uma cabeça sufocada de
náufrago.
— Não reparem na desarrumação, meus senhores, pediu o
alferes no patamar à procura das chaves pelos bolsos, mas a
empregada da limpeza não me apareceu uma só vez esta
semana.
O vestíbulo microscópico, com as portinhas dos contadores
do gás, da electricidade, da água incrustados na parede, a sala-
quarto de dormir dividida ao meio por uma estante de livros,
galhardetes, bonecos de loiça, retratos, o tranquilo ronronar
animal do frigorífico, as oxidadas corolas sem pétalas dos
bicos do fogão, e à esquerda um corredorzinho com armários
pintados de branco, o antigo quarto da Mariana a cheirar a pó e
a grelado, a casa de banho com a cortina de plástico do
chuveiro corrida, o pincel da barba e a gilete na prateleira de
vidro, presa aos azulejos por grampozinhos cromados, e, pela
janela, as escadas para as altas árvores do Príncipe Real, a
pedra iluminada da fonte, com os seus recessos escuros e as
suas rugas boleadas e porosas, e do outro lado da rua, Repare,
meu capitão, disse o soldado a agarrar-me com força o
cotovelo, o andar do pintor quase ao alcance do dedo, se eu me
debruçar com força da varanda, olhe, sou capaz de tocar-lhe,
se eu galgar o peitoril, por cima do orvalho dos automóveis
estacionados, aterro de novo no meio das telas do velho e dos
manipansos do preto, dos colares de missangas, dos frascos de
terebintina, das latas de tinta, das telas, dos panos do Congo,
dos jornais pelo chão, é impossível que o nosso alferes nunca
me tenha visto, é impossível que o nosso alferes não esteja a
disfarçar, a mulata observava um corcunda de loiça a tocar
bandolim, a deusa do strip-tease Melissa procurava o lugar dos
copos nas gavetas ao lado da máquina de lavar, as magrinhas
do cabelo descolorido fecharam-se, de baton em punho, na
retrete, Cinco tropas e cinco putas bêbedas, conho, pensou o
alferes, arrependido, oxalá que pelo menos não acordem os
vizinhos, já bem basta o que a porteira vai badalar por aí, Não
há música para alegrar estes defuntos, perguntou a ajudante do
ilusionista, nunca assisti a um velório tão rasca, nunca aturei
gente tão mona em toda a vida, o oficial de transmissões
desencantou uma telefonia de pilhas atrás de uma cortina e
tentava pô-la a funcionar, sentado no sofá com o aparelho ao
colo, embalando-o num enternecimento de bebé, Não reparem
na desarrumação, não reparem no lixo, solicitava o alferes a
empurrar com o joelho um balde e um esfregão de plástico, a
lavar à pressa cinzeiros de vidro na torneira, a encher o
recipiente do gelo, a abrir garrafas de gasosa e água tónica, a
mulata estendeu-se na cama, cruzou os polegares gordos no
decote, fechou os olhos e um momento depois ressonava, de
queixo caído, exibindo as ferraduras dos molares, Não acredito
que me não topasse, nu, meu alferes, alarmava-se o soldado,
aos pulos, como um gafanhoto, em cima do preto, em cima do
pintor, escutou-se o despejar bronquítico do autoclismo aos
soluços nos canos e quase de seguida as duas magrinhas,
vestidas como gémeas, entraram na sala com um risito
aliviado, Se o que você quer é separar-se da Inês, sua besta
(esteja calado, Jaime, que eu resolvo muito bem este assunto),
tenha ao menos a honestidade de não me vir para aqui com
lamúrias imbecis.
— Tão engraçado, comentou a deusa do strip-tease Melissa
apontando o candeeiro de papel amarelo que o vento da rua
abanava como um pêndulo, em que loja desencantou esta bola
giríssima?
— O sacana casou e foi morar para casa dela, rosnou a
porteira, furiosa. O senhor julga que se ele ficasse eu lhes dava
um instante de sossego?
— Não só não me trouxe os cigarros, indignou-se a senhora
de cabelo roxo, como andou para aí a espalhar coisas
miseráveis a respeito de mim. Eu nem contei nada ao Greg,
coitado, tive medo que lhe desse uma solipanta qualquer. Há
pessoas capazes de tudo, capitão.
— E se eu o levar a tribunal por difamar a minha filha, oiça
lá?, berrou a sogra. E se eu o arrastar pelas ruas da amargura,
como é?
Cheirava a madeiras e a cordas podres, a peixe em
decomposição, a água choca, a relentos confusos, e os halos
ovais dos candeeiros descobriam poças de chuva, lama,
detritos, vagabundos de bruços em cima de sacos e de fardos:
tenho de arranjar outra mulher-a-dias para me limpar o porto,
me varrer os bêbedos, os armazéns, as docas, os guindastes,
outra mulher-a-dias que me cosa capazmente a noite,
impedindo a luz da manhã de penetrar por um rasgão de
sombras, impedindo que eu me veja nos espelhos com a cruel
impiedade do sol a entrar pela janela, impedindo que os meus
movimentos se tornem brancos, desajeitados e diurnos como
os dos anjos de gesso dos cemitérios de província,
conversando inutilmente com um inacessível céu alheado,
impedindo que se me cavem na cara as rugas da desistência e
do cansaço, as fundas pregas dos quarenta anos marcadas no
pescoço, os vincos melancólicos dos ângulos da boca, um
negro em tronco nu fumava debruçado da amurada de um
cargueiro holandês, ou belga, ou uruguaio, Deixe estar aí,
pediram ao mesmo tempo as gémeas ao oficial de
transmissões, que apanhara entre estalos e guinchos uma valsa
no rádio, E de qualquer modo, meu capitão, observou o oficial
de transmissões, a examinar inexpressivamente as janelas
iguais, desanimadoras, sem graça, do prédio em frente, os
vasos e os arabescos de ferro das varandas, as persianas e os
peitoris lascados, os algerozes semelhantes a tristes tripas
penduradas, o falecimento inesperado do Pires quebrou, sem
que a gente se desse conta de início, uma mola, uma gana, um
impulso qualquer, o ímpeto maoísta que nos entusiasmava e
empurrava, a máquina de café da Sede permanecia tardes a fio
sem trabalhar, os estandartes emboloreciam, as bandeiras
desprendiam-se dos seus varões de pau, na careca de gesso dos
bustos de Lenine floriam caracóis inesperados de poeira e
cogumelos, o violoncelista alistou-se para combater no
Camboja e partiu com o estojo do instrumento repleto de
metralhadoras e de pistolas de plástico, as reuniões do Comité
Central desdentavam-se de camaradas impetuosos e enérgicos,
a bruma de fumo, dissipada, permitia ver as paredes doentes e
húmidas, os desbotados posters rasgados, as manchas de
fuligem, o grelado do tecto, as mil rachas e fendas e
escoriações e defeitos e bolhas de água do estuque, A
quotização não chega para a renda, balia, desesperado, o
tesoureiro, vocês vão ver que um dia destes nos aparece o
senhorio com uma ordem de despejo e pumba,
experimentámos rifas e nada, tentámos tômbolas e raspas,
preparámos um baile mas os vizinhos não deixaram,
solicitámos o apoio do proletariado esclarecido e do
campesinato mais lúcido e nem um tostão furado recebemos,
até que nas vésperas do Natal surgiu um cavalheiro de
bigodinho e colete, escoltado por um senhor de pasta o qual
brandia com suficiência um papelucho dactilografado, um
polícia de mãos atrás das costas afastava majestosamente lá
em baixo os mirones das redondezas, e dali a meia hora,
apesar dos protestos do Olavo que se esganiçava em urros
marxistas, a rojar o sobretudo pelo chão, atrás de um casal de
moços de fretes de ombros como armários, encontrávamo-nos
desconsoladamente na calçada de guarda a uma pirâmide de
cadeiras coxas, de mesas manetas, de pilhas de manifestos, de
folhas volantes, de latas de spray vermelho e negro para
inscrições murais, de máquinas de escrever trôpegas, de um
policopiador avariado, de capacetes, de camuflados, e
binóculos infocáveis, de máscaras de Carnaval, de dominós
traçados, de botas de gladiador romano, de aparatosas
bazookas de folha de flandres para disparar tomates e meloas,
e das barbas de barro quebrado de incontáveis Engels,
severamente sonhadores, das mais diversas dimensões, a
mirarmos o rio sentados no último e empenado sofá, cujas
molas furavam o pano das almofadas enegrecido por
queimaduras de fósforos e de beatas, enquanto os garotos, os
ciganos, os contrabandistas de droga, os cegos e os vendedores
de fruta nos roubavam mobílias, emblemas e dísticos, os
moços de fretes, armados de martelos enormes, despregavam
para sempre da fachada o nome imortal da Organização, e o
cavalheiro de bigodinho e colete ingressava, acompanhado
pelo senhor de pasta, num Opel doirado, de bancos forrados de
mantas às listras, que partiu aos soluços, esbarrando nas
carroças de legumes e nos vadios encostados à porta das
tabernas, até se evaporar, num derradeiro arroto, numa esquina
de beco aguçada como um gume, onde uma velha, instalada
num tripé, impingia jornais e flores de borracha á indiferença
dos marçanos.
— Há que tempos que eu não sabia o que era tratarem de
mim daquela forma, desculpou-se o tenente-coronel. Há anos
que eu ignorava o que era um corpo lavado de mulher.
— Se não pede imediatamente desculpa do que disse,
alertou a sogra (cale-se, Jaime, que você só cospe asneiras),
falo para o meu advogado amanhã mesmo.
— De forma que se casou assim, meu comandante,
desgostou-se o soldado. De forma que se enterrou com a
primeira que lhe apareceu.
— Ainda esperámos uma hora ou duas que alguém nos
ajudasse, explicou o oficial de transmissões: o Olavo telefonou
a um amigo que tinha uma camioneta e nada, a Dália pediu
auxílio a uns primos que não chegaram nunca, e acabámos por
nos ir embora e abandonar a tralha ali mesmo, no meio da rua,
como se nada daquilo, entende, nos pertencesse, enquanto os
ciganos e os cegos arrancavam uns aos outros livros de actas e
retratos de Ho Chi Min. Deve haver muito busto de Mao Tsé
Tung no Bairro Alto, em cima dos naperons dos frigoríficos.
Se eu fechar depressa os olhos, pensou o alferes encostado à
moldura da janela, o escuro continua eternamente e salvo-me
de ver amanhecer as caras extenuadas destas gajas, porque não
há nada pior no mundo, meu capitão, do que a tromba de uma
puta à luz do dia, depois de horas e horas de tabaco e de
champanhe falso, nada pior do que estas íris baças de
morcego, estes espalhafatosos casacos de peles sem pele, estas
estolas rotas, estes sapatos de tacões tortos, estas carteiras de
vidrilhos, estes trágicos palhaços ricos de compridos cabelos
vermelhos, ou prateados, ou loiros, ou cor de graxa preta, este
odor mortuário de suor e de perfume barato, este inumerável
tilintar de pulseiras, este atrito de roupa, este entrechocar de
colares, estas mulheres-tarântulas, de meias de rede e saias
curtíssimas, de sobrancelhas erguidas e grandes risos
escarlates nas bochechas pintadas, que me levantam do chão,
me pegam ao colo, me despem numa destreza rápida de amas,
me dobram a colcha, me endireitam a almofada, me abrem os
lençóis e me estendem na cama
(Não vou voltar ao apartamento, caraças, não vou voltar lá
acima)
de modo que se eu fechar depressa os olhos o escuro
continua eternamente e não vejo o soldado abraçar-se à mulata
adormecida, não vejo os dedos dele remexerem-lhe,
apressados, na larga duna imóvel do ventre, coberta de uma
relva escura e rala e áspera e repulsiva, não vejo a deusa do
strip-tease Melissa que baralha freneticamente o corpo com o
do tenente-coronel na alcatifa suja, chiando e meneando e
remexendo-se como um bicho que nasce
(Amanhã mando buscar as minhas coisas pelo paquete do
escritório, a roupa, cartas, livros, amanhã desamparo a loja à
sua filha)
não vejo o oficial de transmissões a empurrar grunhindo
uma das irmãs contra a estante que geme e se baloiça, não
escuto as interjeições dela, os gritinhos dela, a indignação
postiça dela, o entusiasmo fingido dela, o orgasmo imitado
dela, derrubando, aos sacões, molduras, moedas antigas,
objectozinhos de marfim, não assisto ao pétreo, desgostado
silêncio de depois, nem à mulata a afastar as coxas enormes e
ao soldado, de rabo para o ar, idêntico a um insecto sem
descanso, a zumbir-lhe de gatas em torno dos relevos de
pudim do peito e do umbigo, não o vejo a si, meu capitão,
enterrar o queixo no pescoço ou nos ombros da outra gémea
esquelética, prender-lhe a cintura, troçar dos protestos, da
zanga macaqueada dela, do agrado genuíno dela, fecho os
olhos depressa e não vejo as pernas que pedalam no vazio,
nem as barrigas molhadas, nem as roucas, urgentes vozes sem
voz
(Está bem, minha senhora, retiro tudo o que disse, já cá não
está quem falou, a sua filha e a sua família que se arranjem
como quiserem)
nem as epidermes que se trituram, que se raspam, que se
friccionam, que supuram, fechar depressa os olhos
(Cinco meses depois, nem tanto, disse o tenente-coronel
num murmúrio, pela ponta embaraçada dos beiços, estamos
casados vai fazer sete anos em Maio)
fazer uma força do camandro e não pensar em ti, no teu
tronco agitado, quase sem peito, de lagartixa com tétano, na
tua incurável desarrumação perpétua, nos cachos de carteiras
pendurados nas maçanetas das portas, nos teus horríveis
jantares esturrados que se raspavam com o garfo do fundo dos
tachos, nas nódoas de gordura que me deixavas sempre nas
camisas, a mulata soprava roncos fibrosos no seu sono
(Descanse que me vou embora, minha senhora, descanse
que me vou embora agora mesmo)
e a fonte, as árvores, os degraus para o Príncipe Real, a
minha solidão que envelhece no segundo andar da Rua da
Mãe-d’Água no meio do pó e da desordem, o soldado
levantando-se aos baldões a fim de vomitar na retrete, mais
uísque, mais gin, mais martini, mais cerveja, mais aquele resto
de vodka da tropa da despensa, abro as garrafas e impeço a
manhã, faço pular as tampinhas metálicas e a noite continua,
ninguém, nenhum rosto do passado aparece nos espelhos
mortos, nenhuma cara disforme se reflecte nas superfícies
polidas, os meus pais suspiram nos compartimentos vizinhos,
o relógio da saleta pinga minutos metálicos e iguais, são
sempre cinco horas, Inês, serão sempre cinco horas nesta casa,
o candeeiro de papel oscilará eternamente, a ajudante do
ilusionista toca-me no ombro, as lâmpadas das camionetas do
lixo acendem e apagam como grandes corações verdes, as
costelas das persianas corridas
(Sete anos de casado, calculem, a chatear-me de morte, a
foder os cornos de morte, sete anos de casado com um sinistro
pavão de madrepérola em frente do nariz)
alguém deixa cair ao chão uma coisa de vidro ou de loiça
cujo som, ao quebrar-se, me dói como uma ferida, a ajudante
do ilusionista puxa-me a gravata, o casaco, desabotoa-me a
camisa, mais uísque, os gomos da boca dela avançam e
recuam formando palavras, frases inteiras que se dissolvem
sem que as oiça, uma espumazinha de gin ferve-lhe no queixo
idêntica a água oxigenada sobre um furúnculo
(Nunca mais vi a Inês, meu capitão, nunca mais soube nada
dela)
flutuamos numa espessura de água, corredor fora, até ao
quarto defunto, pintado de branco, da Mariana, voltado para os
holofotes apagados, para a fonte na sombra, para o inumerável
ciciar das árvores, as cuecas atropelam-se-me nos joelhos as
meias atropelam-se-me nos pés
(Mas qual revolução caralho, nunca há-de haver uma
revolução em Portugal)
tropeço no tenente-coronel que procura, de gatas como uma
criança, um gargalo de gin, e acabo por me afundar, com uma
manga do casaco suspensa do pulso, no meio das bonecas de
pasta, dos patos de baquelite e dos ursos de peluche, que me
examinam, sentados nas prateleiras, com as densas e
inexpressivas pupilas estúpidas de plástico.
terceira parte
depois da revolução
1

— Com a saída da Odete, disse o soldado, o velho e eu


ficámos sozinhos em casa, meu capitão, a mastigar em silêncio
os horrorosos cozinhados de tropa da enfermeira, a qual corria
de tempos a tempos um pano vago sobre os móveis e nos
trocava os lugares da roupa e dos talheres nas gavetas do
armário. Ainda pensei Agora é que ele se junta com a
contabilista, agora é que vou ter as trombas dessa gaja à mesa,
mas vá lá saber-se porquê nunca consentiu que ninguém
ocupasse o lugar da dona Isaura, nunca convidou quem quer
que fosse, bonita ou feia, para a enorme cama de pau-preto. De
maneira que à noite nos sentávamos no mesmo sofá, como um
casal sem assunto, diante do televisor ligado, enquanto ele
coçava a barriga por baixo da camisola interior ou espremia a
bomba da asma para as goelas abertas, cada vez mais
escarlate, mais ofegante, mais aflito, se arrastava a chinelar e a
soprar, no fim da emissão, rumo às trevas longínquas do
quarto, eu ouvia-o assoar-se e tossir nos antípodas, abrir e
fechar torneiras, verificar o esquentador de gás, colocar a
tranca na porta, escutava o ranger do colchão e das tábuas ao
deitar-se e ao apagar a luz do meu cubículo lá estava, no
jardim, o negro brilho cintilante das couves, a ondear de leve
contra o muro derruído, cor de café com leite, do quintal. Mas
o que me impressionava mais, meu capitão, era o silêncio de
morte dos compartimentos desertos, a súbita, inexplicável
tristeza do aparador e das cadeiras, as fotografias
repentinamente enevoadas, repentinamente distantes, os
objectos carregados do golpe de um sentido inesperado, a
completa ausência de vozes, de altercações, de sussurros e
ruídos domésticos, o nada de aquário, o absoluto,
irremediável, espesso nada de aquário em que morávamos.
Porque com a partida da Odete, percebe o senhor,
principiámos a agonizar lentamente, grandes insectos ou
caravelas negras trotavam ou vogavam ao acaso nos espelhos,
os canos, rotos, gotejavam para baldes de plástico minutos de
ampulheta, lâmpadas fundidas iluminavam o escuro dos
longínquos rostos amargos do passado, os sons da rua
adquiriam imperceptivelmente a textura do bolor ou do musgo
que alastra nas consolas e nos vestidos dos finados. O tio
Ilídio, de pijama e cachecol, espirrava os domingos inteiros a
fazer paciências de cartas na camilha enodoada da saleta, as
galinhas apareciam e desapareciam severas e estúpidas, no
parapeito da janela, o céu por cima dos telhados, dos arcos de
pedra, das ferrugentas chaminés de chapelinho, era uma água
melancólica que se coalhava, solidificava e dissolvia de novo,
um mar vertical com os seus barcos minúsculos e os seus
náufragos enormes, as unhas sujas do velho misturavam e
distribuíam o baralho mas até a sua antiga, carnívora,
permanente zanga se esvaziara de força e de sentido, os
empregados não lhe obedeciam pressurosos como dantes, os
fretes atrasavam-se, as camionetas demoravam séculos a
regressar, parando de taberna em taberna em comemorações
sucessivas, todos os dias perdíamos clientes, todos os dias
latidos irados reclamavam ao telefone, Estragaram-me o piano,
Faltam-me duas poltronas. O que é feito, diga lá, do meu
contador de embutidos, só a flor da jarra parecia prosperar no
escritório de vidro, de dossiers alinhados e facturas por ordem,
aumentando de cor e de tamanho, só a flor que rebentaria os
caixilhos, alastrava no armazém e nos devoraria
inevitavelmente a todos, furgonetas, empregados, ratazanas,
mobília, poeira, descomunal, escarlate, tentacular, carnívora, a
flor que subiria para a rua, digerindo-nos, a caminho do
hospital logo adiante e do Conde Redondo com as suas putas
ranhosas e as suas pastelarias sem ninguém, a Odete ainda
voltou com uns caixotes, ajudada por um tipo magrinho e
insignificante, de sobretudo até ao chão, para carregar livros,
papéis, fotografias, os cartazes de sujeitos de barba e de
operários antipáticos colados nas paredes, disse-me Boa tarde
da porta e encafuou-se no quarto a remexer gavetas, o tipo
magrinho, muito direito ao pé dela para parecer mais alto,
aconselhava Isso interessa, Isso não interessa, Isso é
indispensável, Isso deixa, Isso sempre é melhor queimares que
com a burguesia a levantar a cabeça tudo pode acontecer
camarada, e eu apaspalhado, de boca aberta, a olhar para o
corpo que enchera, para o peito que aumentara, para as coxas
redondas no vestido, para o lápis das pálpebras, para o cabelo
castanho pelas costas abaixo, eu a pensar Ainda descascas o
pêro sobre as espinhas do peixe?, o velho cruzou-se com ela a
bufar indignado, lançando um soslaio assassino ao sobretudo
como se os cornos, meu capitão, lhe pertencessem, como se
fosse a sua testa que pesasse, a Odete (ou devo chamar-lhe
Dália meu tenente?) desarrumava prateleiras inteiras,
entornava gavetas, folheava cadernos, embrulhou
respeitosamente o busto de um careca franzido numa folha de
papel, Ainda descascas o pêro sobre as espinhas do peixe,
Odete?, e depois veio-me à cabeça o miúdo e claro,
emocionei-me, e depois senti o cheiro dela e claro, comovi-
me, um odor diferente da mulata, senhores, um aroma sem
perfume, só de pele lavada e carne e sabonete (Os comunistas
também usam banho?, perguntou o alferes, os revolucionários
também desodorizam os sovacos?), o amigo fraquinho
transportou-lhe, a cambalear sob o peso, os caixotes para a rua
enquanto ela, ajoelhada, de rabo para mim, fechava a mala da
roupa com correias e cordas, e a voz saiu-me sem querer, sem
mais nem menos, da garganta, Ainda descascas o pêro sobre as
espinhas do peixe?, assim, palavra, exactamente deste modo
Ainda descascas o pêro sobre as espinhas do peixe?, nenhuma
zanga, nenhuma recriminação, nenhum queixume, só ainda
descascas o pêro sobre as espinhas do peixe?, a Odete
suspendeu-se, estupefacta, a fitar-me, as sobrancelhas uniram-
se-lhe por cima do nariz como os acentos circunflexos dos
telhados das casas, O quê?, perguntou ela, que história é essa
de espinhas e de peros?, o tio Ilídio tossia recriminativamente
ao longe, fazia silvar a bomba para a asma, tombava de
propósito panelas na cozinha, Porque é que a gaja não se foi
embora, porque é que a gaja se demora aqui, Os peros da
sobremesa no fim do jantar, expliquei eu, afastavas os restos
do peixe, com a faca, para a borda do prato, nunca olhavas
para nós, nunca dizias nada, sorrias, e os anos desataram-me a
rolar para trás na memória, e as épocas desataram a misturar-
se-me, confusas, na ideia, a chegada de Moçambique, dona
Isaura, O Externato Republicano, o prédio do meu pai na
Buraca, a tua ironia, a tua divertida indiferença a meu respeito,
o mulato de óculos escuros e camisa havaiana a examinar-me
em silêncio do umbral, a tão impiedosa e tão rápida passagem
dos meses, mas que caneco de vida, que complicação de vida,
o meu capitão não acha?, como tudo se nos afigurava ir ser
simples e claro no regresso da guerra, Mais algum caixote,
Dália?, inquiriu o sujeito magrinho, por trás das minhas costas,
numa vozita de pinto, O pêro?, o peixe?, repetia a Odete, de
testa enrugada, à procura, o fulano agarrou contra o peito o
busto do careca como um padre a sua hóstia e ficou-o mirando
e remirando numa expressão extasiada de beato, O pêro? o
peixe?, a minha mãe?, franzia-se a Odete sem entender nada,
Põe-me essa cabrona no meio da rua, Abílio, ordenou o velho
invisível, ao fim do corredor, a patinhar no seu tom lodoso de
cuspo, não quero essa pega aqui nem um minuto, o que a
tratava por Dália vacilou amedrontado, recuou para o vestíbulo
com a carantonha ao colo, Já agora leve também a mala, sugeri
eu, você não veio aqui para buscar mais coisas? Tens força,
Olavo?, interrogou a Odete, aguentas isso tudo ou queres
ajuda?, e pela janela as galinhas, e pela janela as couves, e pela
janela os quintalecos separados uns dos outros por tabiques de
pranchas, agriões, tomate, salsa, batatas, limoeiros enfezados
por aqui e por ali, espantalhos de serapilheira, roupa
pendurada, gatos, o Olavo mergulhou o Santíssimo do careca
no bolso (as pupilas de barro espiavam-nos com ímpeto de
fora da fazenda) e puxava a mala a mãos ambas como um
saca-rolhas, o quarto, sem livros nem cadernos nem lápis
afigurava-se-me tão nu como o rosto de um cego, a Odete
levantou-se e o corpo dela alargara de facto, e as coxas
abriam-se em leque a seguir ao anel firme da cintura, a bomba
da asma assobiava de contínuo, um cão uivava na travessa,
Guardei um retrato do Ezequiel na carteira, confessou a Odete,
apesar de tudo parecia-se contigo, e o soldado pensou Agora é
que é, caralho, agora é que não me aguento nas canetas,
catano, agora é que me descaio como um maricas qualquer, e
todavia não foi, e todavia não me descaí, meu capitão, e
todavia aguentei-me, sobravam uns bocados de adesivo, uns
percevejos e uns cantinhos de poster pegados à caliça, meia
dúzia de livros, um ou outro caderno aberto com o seu pus de
letras, eu enterrava com toda a força as unhas nas mãos e as
mãos nas algibeiras para me segurar melhor, tentava sorrir
enrugando a cara, desfazendo pregas nas bochechas, puxando
os cantos dos beiços para cima, Já nem te lembras de como
era, Odete, já nem te lembras da tua vida cá em casa, Arreias-
lhe um chuto na peida ou é preciso eu ir aí?, rugiu o tio Ilídio
ao longe, no meio dos anúncios da televisão e da sua tosse
lodosa, o Olavo devia esperá-la lá fora a meter a cangalhada,
roxo de esforço, num triciclo alugado, a instalar-se ao guiador,
a engrenar a primeira, a acelerar com impaciência, O Ezequiel
morreu, Odete, respondi eu a custo, interessam-me muito mais
os vivos, e passou-me na ideia, obliquamente, o caixãozinho
branco de argolas cinzeladas, o padre, a curiosidade dos
vizinhos, a bicha lenta de táxis, perseguindo a carreta, na
direcção do cemitério, palmas suadas, beijos suados, flores
suadas, o alívio esquisito oco, de depois Porque é que não lhe
atiraste logo, perguntou o alferes, o Ezequiel está morto
interessas-me muito mais tu, porque é que não seguiste direito
ao assunto, porque é que não foste sincero, meu cretino?, os
uivos do cão afastaram-se pela rua abaixo, as galinhas
miravam-no com o azedume sem curiosidade habitual, a Odete
(ou devo chamar-lhe Dália, meu tenente?) torceu a boca numa
careta de recusa ou de ironia ou de pena que eu não entendi,
Se calhar estava a explicar-te que nada do que tu lhe
oferecesses lhe interessava, disse o tenente-coronel, se calhar
estava a procurar explicar-te que passaram uma data de anos
por cima de uma data de coisas e que tu te recusavas a admitir
isso, que te recusavas a admitir que nenhum de vocês era o
mesmo de dantes, Dou-te cinco minutos, Abílio, berrou o
velho da saleta, cinco minutos segundo por segundo, As
pessoas não mudam assim tanto, meu comandante, protestou o
soldado, as pessoas não se alteram dessa forma, eu por
exemplo sentia-me capaz, imagine, de gramar filmes chatos,
de começar a estudar, de começar a ler, Dália, chamou,
preocupado, o sobretudo, ainda te demoras muito, Dália?, O
teu mal é que não aceitas que não sejamos sempre os mesmos,
pá, argumentou o alferes, o teu mal é exigires que o tempo seja
um mecanismo avariado, pá, não há nenhum relógio, percebes,
que badale horas que já foram, E contudo, gaita, pensou o
soldado, mantinhas o rosto de dantes, os olhos de dantes, os
mesmos ombros, os mesmos incisivos, o contorno de vagem
da boca de dantes, o que aconteceria se eu me agarrasse a ti, se
eu te abraçasse, se eu fechasse a porta a pontapé, se eu te
impedisse de sair, se eu propusesse Deixa-me ver-te descascar
os peros, no fim do jantar, sobre as espinhas do peixe, Quatro
minutos, mugiu ameaçadoramente o tio Ilídio, furibundo, daí a
nada vou aí e armo um arraial do caraças, Dália, piava o
enfezado, olha que se faz tarde, Dália, um galito da índia
saltou para o parapeito do quarto e suspendia no ar uma
minúscula, cartilagínea mão de velha ou de cadáver, a Odete
apertou-me o braço a sorrir numa espécie de cumplicidade ou
de ternura e eu pensei O que ela na verdade sente é dó de mim,
a única coisa que ela na verdade sente é um dó do caneco de
mim, Não tenho comido peros, Abílio, cochichou ela, um dia
destes convidas-me para almoçar e eu descasco um à tua
frente, uma camioneta buzinou na travessa, chocalhando as
paredes, e o galo sumiu-se com um pulo assustado no quintal,
Faltam quinze segundos, vociferou o tio numa energia
cansada, já estou em pé, Abílio, Dália, implorava o raquítico,
invisível no vestíbulo, pela tua saúde, Dália, a Odete largou-
lhe o braço, cessou de sorrir, passou rente a mim na direcção
da porta, Quando voltar a descascar um pêro prometo que te
aviso, Abílio, desceu atrás do sobretudo os dois degraus para a
rua, a camioneta buzinou de novo e uma crosta de estuque
desprendeu-se do tecto e desfez-se no chão, ao lado das franjas
torcidas do tapete, mesmo por baixo do hipercolorido Sagrado
Coração de Jesus de dona Isaura, algumas vizinhas idosas
observavam a cena das janelas e as suas pupilas sem afecto
aparentavam-se às do galo, salientes e duras entre cascas de
pele, a Odete e o anão acomodaram-se à pressa, no meio dos
embrulhos, no banco traseiro de um táxi, o condutor da
camioneta gesticulava de indignação na gaiola da cabina, o tio
Ilídio, em calças de pijama e bomba de borracha em punho,
postou-se à minha ilharga, soprando de ódio, no umbral, o
tubo de escape do táxi tremia e vibrava, ao ritmo do motor,
como um beiço de criança prestes às lágrimas, Dia vinte e seis
de fevereiro, meu capitão, nunca mais me esquece, o mesmo
mês em que o Ezequiel adoeceu, a silhueta da Odete
principiou a descer devagarinho o beco numa fumarada
irregular, as vizinhas, debruçadas dos peitoris, faziam-se sinais
umas às outras ou cochichavam secretamente como na igreja,
Se nunca me telefonaste para o trabalho é porque não tornaste
a descascar um pêro sobre as espinhas do peixe, o tio Ilídio
fechou a porta com uma delicadeza inesperada, obrigou-me a
sentar no lugar dele no sofá, onde havia um rectangulozinho
de naperon amarelado nas costas, estendeu-me um cálice de
anis espanhol da garrafa com um macaco no rótulo que a
contabilista lhe ofereceu no Natal, Bebe essa merda rapaz, não
me vás ficar maricas por acaso, estavam a dar o anúncio de um
detergente na televisão e enfiei um tal gole pela garganta
abaixo que me engasguei e desatei a tossir, com os olhos
cheios das lágrimas picantes dos arrotos.
— O tempo passa, caramba, o tempo passa, resmungou
jubilosamente o pai do tenente-coronel na sua cadeira de
inválido, acenando para nós com a ponteira envernizada da
bengala.
— Essas situações, parecendo que não, custam como o
diabo, murmurou o alferes para ninguém, a observar com
excessivo carinho o copo vazio. Se a Inês me aparecesse agora
à frente sei lá o que fazia.
— O Olavo?, disse o oficial de transmissões, surpreendido.
Viver com o Olavo, poça, o que viu ela num camelo desses?
— Porque é que não nos casamos?, perguntou aereamente a
nuvem de perfume, em soutien e calcinhas (sobravam
abundantes rolos avermelhados de carne da prisão dos
elásticos), enquanto retocava a maquilhagem com um pincelito
minúsculo. Uma cerimónia íntima, Artur, só os padrinhos,
mais ninguém: não tenho habilidade nenhuma para estes
encontros clandestinos, não tenho habilidade nenhuma para
continuar tua amante.
— O velho pode ser que gostasse de mim, meu capitão,
explicou o soldado, mas não me autorizava que gostasse dele.
Se por exemplo adoecia e eu lhe levava um caldo à cama
desatava logo a insultar-me.
— E depois, se te colocarem fora de Lisboa sempre te
acompanho, explicou ela a aplicar as pestanas postiças numa
destreza rápida de miniaturista, a prolongar com um risco de
lápis os ângulos das pálpebras. Não foste feito para viver
sozinho e eu nasci para tomar conta de ti, amor.
— O que vens aqui cheirar, meu sacana?, gritava
raivosamente o tio, coberto de mantas e lençóis, do fundo de
poço da colcha. Vai-te embora e leva a trampa dessa sopa
envenenada: se pensas que herdas o que eu tenho tira daí o
sentido, é a tua irmã que abicha o negócio das mudanças,
vigarista.
— Fica assente, não admito recusas, instalas-te aqui em casa
para a semana, concluiu autoritariamente a nuvem de perfume
a afastar o cão com o salto do chinelo, e não te preocupes que
eu fecho a boutique uma tarde para tratar dos papéis. Anda cá,
dá-me um abraço como deve ser mas sem me desmanchares o
penteado, meu tontinho.
— Qualquer dia, sem dar por isso, morres, meu rapaz,
preveniu o pai, satisfeitíssimo, a gesticular com a bengala. E
eu lá do outro lado a cuspir minhocas e a rir-me, à tua espera.
— Na Conservatória do Beato, às cinco horas, na última
sexta-feira de abril, revelou ela. Já tratei das alianças, já
mandei limpar-te o fato: ora confessa lá que estás contente,
benzinho.
E depois, com o tempo, com o futebol, com o trabalho é
como se a gente tomasse um supositório, uma pastilha, uma
aspirina, meu capitão, a dor de dentes continua mas ao longe,
afastada, difusa, suportável, deixei de me engasgar, a garrafa
de anis espanhol regressou ao armário, arrumaram-se os
cálices a dois e dois na prateleira, o senhor Ilídio fechou à
chave o quarto da Odete onde as galinhas debicavam
livremente restos de cadernos e folhas soltas de papel, se
instalavam nas cadeiras e cagavam e raspavam com as patas a
palha esventrada do colchão, eu continuava a sair com o mudo
e o velho, despachávamos o serviço o mais depressa possível e
demorávamos o resto da tarde, até à hora da saída, a peregrinar
pelas tabernas sem que ninguém lhes chamasse a atenção ou
os repreendesse, Há um bagaço do caralho em Cheias,
anunciava o velho, e conduzia a camioneta, aos solavancos,
até lá, Descobri uma ginja unhava. em Moscavide, revelava o
mudo, e os clientes que esperassem, a bater o pé de
impaciência, enquanto nós nos encafuávamos em miseráveis
estancozinhos pestilentos e escuros, a conversar com
bebedolas, ciganos, desocupados, cobradores do gás de pasta
sebenta no sovaco, diante de pastelinhos de bacalhau
nauseabundos e de saladas de polvo insossas, que
abandonavam na língua um gosto mole de cartilagens
molhadas de criança. Nessas alturas, meu capitão, a seguir a
uns dedos de medronho ou a três ou quatro decilitros de água-
pé, a dor de dentes sumia-se por completo, uma imensa,
cósmica alegria fraternal fazia-me abraçar beligerantemente o
surpreendido tipo desconhecido que chupava a um canto o seu
almoço de martini, vomitava o meu bocado na espádua mais
próxima, restos de comida, membranas roxas, batatas quase
inteiras, pedaços amassados de carne, o chão principiava a
oscilar e a girar, oblíquo, em voltas cada vez mais rápidas, um
temporal interior obrigava-me a segurar-me ao balcão, às
cadeiras, às escorregadias esquinas fugitivas das mesas, uma
agonia atroz amarinhava-me constantemente do estômago, as
vozes do mudo e do velho reboavam perto demais ou
excessivamente longe, gritando frases, ou ordens, ou
descomposturas que eu entendia mal, alguém o arrimava pelos
sovacos e as mãos que o mantinham de pé doíam como
ganchos metálicos, com o frio cá de fora os objectos
precisavam-se um pouco, automóveis, fachadas, rostos, cães,
árvores de celofane que ondulavam, Ampara-me que vomito
outra vez, pedia ele, e eram só arrancos secos, só vertigens, só
um fio de baba pendurado do queixo, só cheiros enjoativos no
palato, só as calças molhadas sem que entendesse como,
trepava para a furgoneta das mudanças empurrado por uma
sola enérgica e o volante, e as alavancas e os pedais
aumentavam desmesuradamente ao seu encontro, Vou partir a
cabeça na manivela da porta, vou esmagar o nariz no tapete de
borracha do chão, mas o corpo do velho e o corpo do mudo
escoravam-no, impediam-no de se despenhar, de tombar, o
motor fazia estremecer o banco e as tripas rebolavam-me na
barriga em lancinantes voltas sucessivas, assustava-o a
sensação de que se iam desfazer em cada cruzamento, em cada
esquina, em cada gigantesca frontaria de prédio, e depois, a
pouco e pouco, com o vento na cara e os minutos a deslizarem
como lesmas no relógio, o mundo encaixava-se a custo nos
carris do costume, as coisas diminuíam gradualmente de
tamanho, o ventre, pacificado, aquietava-se, afastava os
cabelos das orelhas com a palma insegura, acabaram-se os
vómitos, acabou-se o cheiro enjoativo, acabou-se a angústia,
acabou-se a agonia, as rodas chiaram como habitualmente à
entrada do armazém, o capot ergueu-se no ar, à maneira de um
focinho de avião, antes de se afundar, gingando, na rampa,
ultrapassaram a gaiola do escritório com o tio Ilídio lá dentro,
sentado à secretária, a contabilista a gesticular defronte dele e
a flor na jarra de permeio, Já estou melhor, caralho, já me
seguro nas pernas, pilhas de móveis confundidos na sombra,
uma lâmpada sem quebra-luz suspensa por um fio entrançado
das vigas semipodres do tecto, e no alto as sujas placas de
vidros quebrados do telhado e um início de noite a azular
vagamente a geometria dos caixilhos: de começo, meu capitão,
foi assim que curei a dor de dentes da saudade, foi desse modo
que logrei aguentar o ruído dos passos das galinhas no quarto
da Odete, rasgando com as unhas os cadernos e os papéis, que
consegui ver amanhecer sem pânico o mar das couves do
quintal, negras e prateadas contra os tabiques derruídos do
muro, cintilando as sobrepostas saias metálicas na primeira,
enviezada, difícil claridade do dia, rompendo como sebo o
inchaço doloroso das nuvens.
— A contabilista foi-se embora, revelou de súbito o mudo,
durante o almoço no primeiro andar do armazém, a espetar
verticalmente o garfo na marmita como um gancho de pescar
polvos no intervalo das rochas. Queria à força que o teu tio se
juntasse com ela, o tipo respondeu-lhe que não e vai daí a gaja
zangou-se e despediu-se.
— Menos uma a mandar na gente, consolou-se o velho a
atirar uma cadeira na direcção da veloz sombra fugidia de um
rato: as manadas de bichos pareciam ter aumentado entretanto
de descaramento e quantidade, os animais pequeninos chiavam
em uníssono por trás dos rebentados forros de veludo como
bebés doentes. Deixa lá que se der a peste suína nos patrões
melhor.
— Preferes alianças chatas ou redondas, benzinho?,
perguntou a nuvem de perfume, com o hediondo cachorro ao
colo, durante a novela da televisão.
— Se o negócio está a ir por água abaixo, ladrou a dona
Emília, possessa, de punhos na cintura, que raio de interesse
havia de eu ter, diz-me lá, em me casar com uma besta
quadrada como tu?
— O Olavo, disse o oficial de transmissões a abanar a
cabeça, palavra que podia pensar em toda a gente menos nesse
bicho.
— A morte da tua mulher e a revolução acabaram de vez
contigo, urrou a contabilista a guardar com ímpeto as
esferográficas e os óculos na carteira, já não serves para
mandar cantar um cego, já não vales nada, meu palerma.
E realmente, como anunciou o mudo, a mulher não veio
trabalhar para o escritório do armazém no dia seguinte, nem no
outro, nem no outro, o tio Ilídio, indiferente ao telefone, à flor,
a um sujeito zarolho, de gravata cor de pérola, que reclamava,
aos insultos, um serviço atrasado, fitava a jarra vazia com a
bomba para a asma na mão, os empregados vagueavam pela
rampa, subiam até cá fora, com o cigarro aceso escondido na
palma a fim de namorarem as mulheres que entravam e saíam
da drogaria em frente, jogavam às cartas atrás dos carros, em
cima de mesas que se limpavam com a manga, dormitavam
nas furgonetas, encostados aos espaldares, de boca aberta
como cadáveres de afogados.
— E tu não tomaste conta do negócio, perguntou o alferes, e
tu não tiveste tomates para ajudar o velho nessa altura?
Eu só bebia, meu capitão, desculpou-se ele, eu só tentava
era esquecer-me da Odete, do fulaninho de sobretudo
comprido e dos peros descascados em cima das espinhas do
peixe, eu só queria que me chamassem ao escritório, me
ordenassem Um recheio de casa da Cruz Quebrada para
Marvila, despachar os móveis tão rápido quanto conseguisse e
afundar-me depois numa atmosfera morna de moscas, de
vapores e de relentos de álcool, apoiar os cotovelos no balcão
de zinco tatuado de pegadas molhadas de copos, pedir um
vermute, observar a casquinha de limão à deriva no líquido
castanho, pedir um segundo vermute para atenuar o restolhar
das galinhas na minha cabeça, pedir um terceiro vermute para
esquecer os agudos olhos acusadores dos bichos, um quarto
para a dor de dentes da saudade se transformar numa angústia
afastada, difusa, suportável, o mudo metia-me os dedos no
copo (faltava-lhe uma falange no indicador ou no médio, não
me lembro) e sugava os pedacinhos de limão, o velho,
amabilíssimo a partir do sexto bagaço, sorria amistosamente
para todos, havia sempre cabo-verdianos de navalha na
algibeira e arruaceiros de barba por fazer e pupilas globulosas
e lentas, uma ou outra mulher gorda e feia, mal vestida, de
chinelos, escorropichava a sua jeropiga na sombra, o mudo
chegava-se a elas, lançava piropos, atirava-lhes piadas,
arrotava, coçava as virilhas, ria-se, Amanhã sem falta
matriculo-me no Externato Republicano, projectava o soldado,
indiferente às moscas que se lhe colavam às orelhas e à testa,
amanhã sem falta começo a estudar para doutor, trabalharia
num hospital e os porteiros cumprimentavam-no por
vosselência e angulavam-se em vénias à sua entrada, usava
bata, dava ordens, internava doentes, assinava receitas,
operava, enfermeiras lindíssimas giravam-lhe sem rumor em
torno, no leve, quase imperceptível atrito de goma das fardas,
o senhor Ilídio desinteressou-se por completo da televisão,
virava a cara, não olhava, se passavam a novela resmungava
molemente Apaga isso, ficava a resfolegar e a dar à bomba a
noite inteira, Porque é que não se inscreve na consulta da
Caixa?, propôs-lhe o soldado uma noite, se calhar o tio anda
para aí doente e não sabe, se calhar precisa é de ir ao médico
dos nervos, mas o velho mandou-o incontinenti para o caralho
com a sua desdenhosa energia antiga e sumiu-se danado como
uma barata pelo corredor fora, antes de escoicear a porta do
quarto ainda latiu Se me tornas a falar em médico ponho-te no
olho da rua que te fodo, e na manhã seguinte, meu capitão,
recomeçou a dar ordens azedas no armazém, a atender os
telefones, a discutir com os clientes, a descompor os
empregados, a desarrumar a gaiola de vidro, a esquecer-se das
facturas, a garatujar números de telefone na parede com um
cotozinho minúsculo de lápis, as camionetas saíam e entravam
com a diligência de dantes, com o patrão a esperar por nós à
porta de relógio em punho e sobrancelhas franzidas, mandou
comprar três caixas de raticida e limpar como deve ser o
armazém, a gente olhava à socapa uns para os outros,
estarrecidos, nunca mais houve flores na secretária, nunca
mais aquela jarra esquisita de vidro cheia de facetas e relevos,
de cada vez que se cruzava comigo puxava-me a camisa e
bramava Com que então preciso de médico, meu sacana, com
que então enfiou-se-te nos cornos que ando mal dos nervos,
meu cabrão?, ao jantar contemplava-me com um sorrisinho
diabólico e interrogava entre dentes Já me encontro melhor,
sua besta?, Já me dá alta, animal?, e porém havia qualquer
coisa de terno, qualquer coisa de agradecido, não sei explicar,
no meio daquilo tudo, pode ser, meu capitão, que ele gostasse
um bocadito de mim, até pode ser, meu capitão, que a minha
pessoa o interessasse.
— Vi um anel de noivado lindíssimo numa ourivesaria do
Areeiro, Artur, sussurrou extasiada a nuvem de perfume,
durante o almoço, a passar-lhe o molho da carne por cima de
um imponente centro de prata a imitar um girassol gigantesco.
De platina, com uma pérola e dois brilhantezitos, tudo por oito
contos, calcula: não achas baratíssimo, benzinho?
— O Olavo, repetia o oficial de transmissões, incrédulo,
raspando a bochecha com as unhas, cruzando e descruzando as
pernas, servindo-se com infinitas precauções do líquido
amarelado de uma garrafa sem etiqueta, acendendo o cigarro
pela ponta do filtro. A Dália e o Olavo, santa paciência, digam
o que disserem não acredito.
— Há um maior, Artur, uma maravilha autêntica, explicou a
nuvem de perfume, cujos gestos sem vértices o envolviam
como as lianas das plantas amazónicas, mas esse, percebes,
apesar de te terem promovido a brigadeiro, nem me atrevo a
confessar-te o preço.
— Essa gaja caçou-o à má fila, meu tenente-coronel, riu-se
o alferes, essa gaja filou-o bem filado.
A Odete foi desaparecendo definitivamente, a pouco e
pouco, da sua ideia, uma noite, mecanicamente, sem pensar,
abriu a porta do quarto dela, acendeu a electricidade, e
encontrou, sem ansiedade alguma, um quarto devastado, nu,
sujíssimo, com fragmentos de palha e de pano e de papel por
toda a parte, merda seca pegada às tábuas do sobrado, penas
translúcidas a flutuarem docemente na luz, duas pedreses que
se sumiram espavoridas na janela quando o viram, pregos e
tachas ferrugentas enterradas nas paredes como verrugas, o
retrato esquecido de um chinês gordo a mirá-lo na falsa
bonomia dos judocas, e lá fora rectângulos encavalitados na
varanda, um rumor de engasgos, de soluços, de murmúrios
apressados na capoeira, o limoeiro e a nespereira do quintal,
torcidos de cólicas imóveis, e já nenhum incómodo, nenhuma
aflição, nenhuma dor, meu capitão, curei-me: uma espécie de
leveza, de alívio gasoso na cabeça, empurrou a janela, foi à
cozinha buscar uma vassoura e uma pá para limpar o quarto,
raspou com uma faca os excrementos endurecidos das
galinhas, rasgou em mil bocados a cabeça redonda do chinês e
jogou-a no lixo, Nunca ninguém morou aqui, disse-se ele,
nunca aqui tinha estado, que esquisito, é a primeira vez que
aqui entro, recuou devagarinho até à entrada, fechou muito
bem a porta à chave, deixou-a no pote quebrado de louça, com
um dragão na barriga, a meio do corredor, ouviu o senhor
Ilídio a revolver-se no colchão entre assobios e tosses, e ao
passar em frente da casa de banho escutou a irónica voz alerta
do velho, furando a resistência das secreções e dos lençóis,
Até que enfim que te livraste dela, meu cretino.
— O maior dezasseis contos, benzinho, desvendou a nuvem
de perfume, espectacular de rendas e de folhos, a levantar os
pratos em gestos preciosos: os apóstolos da Última Ceia,
mascarados de fumadores de marijuana, seguiam-lhe da
parede o movimento das nádegas numa lubricidade mística. Eu
não queria, Artur, juro que não queria, foste tu que me
obrigaste a dizer.
— Uma gasosa, pá? Queres beber uma gasosa?, espantou-se
o mudo. (O taberneiro marreco passava um desperdício na
pedra do balcão.) Não deste em maricas, por acaso?
— Se não fosse o Olavo descansa que era outro qualquer,
disse o alferes ao oficial de transmissões: está-lhes na massa
do sangue, as gajas não se aguentam sozinhas muito tempo. Se
visses o malparido com que a Inês se juntou, um tipo da idade
do meu pai, esquelético, mal vestido, que cospe quando fala,
caíam-te os tomates da cadeira abaixo. — Ainda ontem (dá-me
aí da gaveta as colheres de sobremesa, essas são as do café,
pateta) parei na ourivesaria mais de uma hora, a olhar para ele,
soprou a nuvem de perfume servindo um doce barroco,
complicado, em que icebergues de clara de ovo nadavam num
escuro xarope indefinível. O empregado foi simpatiquíssimo,
tirou-o da vitrine, limpou-o com um paninho especial, deixou-
me experimentá-lo, com um bocadinho de conversa abatem
para treze ou catorze contos no máximo. Catorze contos por
um anel daqueles é dado.
— Se calhar adoeceu do fígado, troçou o marreco. Se calhar
tem a vesícula fraquinha e o médico meteu-o a dieta.
Eu não lhes ia falar da Odete, meu capitão, não lhes ia falar
do quarto vazio e das galinhas e do lixo e das couves à noite,
não lhes ia falar da dor de dentes esquisita da saudade, O teu
tio manda que chegues lá acima ao escritório, avisou-o o velho
quando ele descarregava um fogão da camioneta, e muito
menos que me tinha curado e já não precisava de bagaço, nem
de aguardente, nem de vinho para empurrar as pesadas nuvens
pardas da cabeça. O meu tio?, pensou o soldado, o que é que
este caramelo quer agora?, umas semanas antes tinham
transportado umas mobílias de um andar na Graça, num prédio
antigo junto ao quartel dos bombeiros (Ah ah, fez o oficial de
transmissões, ah ah, meu tenente-coronel, isto é consigo), por
cima de um largo com árvores e dos gordos furgões vermelhos
das mangueiras, o dono da casa tinha deixado a chave no
armazém mas mal entraram no vestíbulo a porteira saiu do seu
buraco a arrastar pela mão um garoto de óculos, com um dos
olhos tapado por uma pala, e subiu com eles no elevador
acanhado mirando com desconfiança aqueles tipos enormes,
de fato-macaco, com cordas e ganchos a nascerem dos bolsos.
Uma mulher ainda nova, meu capitão, trinta e cinco, quarenta
anos, sei lá, a vida às vezes usa tanto a gente que não se
percebe a idade das pessoas, umas pernas razoáveis, umas
mamas grandes, andava atrás de nós em silêncio, de
compartimento em compartimento, com uma expressão
furiosa, mas ao cabo de meia hora desatou-se-lhe a língua e
começou a falar, chamava todos os nomes que existem ao
dono dos móveis e ao ver o retrato de uma senhora gorda,
enfeitadíssima de jóias, cuspiu com desprezo na alcatifa, Anda
cá, rapaz, e fecha a porta, mugiu-lhe raivosamente o tio a
remexer na secretária, não era assim muita tralha e com o
treino que tínhamos levámos os tarecos para baixo num
instante, de minuto a minuto a sereia do quartel irrompia num
cântico horroroso e até o alcatrão da rua vibrava com o som, o
garoto da pala no olho, indiferente, de gatas, brincava com um
automovelzinho na varanda, o velho e o mudo aproveitaram a
rapidez do serviço para se enfiarem numa taberna quase em
frente, com um inválido sem pernas, instalado numa manta no
passeio, a pedir esmola à entrada, a porteira deixou de escarrar
e resmungar e foi-se acalmando a pouco e pouco, tirou um
gancho do avental, prendeu a franja na orelha e sorriu-me,
faltava-lhe um incisivo ou um canino, tinha as palmas das
mãos vermelhas e grossas e os pés grandes mas as nádegas
baloiçavam como se fossem líquidas e as coxas estalavam,
densas, sob a saia, Senta-te aí nessa cadeira, ordenou o senhor
Ilídio, cujos ombros curvos ocultavam agora o calendário com
uma tipa nua, a rapar da bomba para a asma e a introduzir o
tubinho de vidro na garganta, senta-te aí que já é mais que
tempo de aprenderes a dirigir esta grandessíssima trampa, o
velho e o mudo não havia maneira de voltarem e ela e eu
fomos aproveitando para conversar um bocado, o marido
andava em França há sete anos e nos últimos três não recebia
uma carta nem um chavo, escrevia para Paris e nada, tentou
um primo dele e nada, telefonou para o Consulado e nada,
Pode ser que esteja na Alemanha, responderam-lhe, pode ser
que esteja na Bélgica, no Luxemburgo, na Áustria, na Suécia,
De qualquer maneira para mim morreu, declarou ela ao
soldado, desinteressei-me, não se pode contar com os homens,
não há um único que não seja um mentiroso acabado, prefiro
criar o meu filho sozinha, Vrrum vrrum, rosnava o puto na
varanda a empurrar o carro, Não será bem assim, respondi eu,
olhe que ainda há quem se safe, as nossas vozes ecoavam de
uma forma estranha, como as dos altifalantes da propaganda
política, nas paredes desertas, a porteira fez um gesto
incrédulo com o braço e eu senti-lhe o forte cheiro amargo do
sovaco, uma gaja com músculos, meu capitão, uma gaja como
eu, uma gaja entroncada como uma vaca, olhou para o tio
Ilídio, surpreendidíssimo, e ele logo, com asco, Se não queres
vai-te embora, malandro, logo vi que preferes continuar na
moinice, logo vi que preferes continuar nos copos, o mudo e o
velho acabaram por buzinar do largo e o hálito de bagaço deles
assemelhava-se a um jacto mortal de pesticida, Deu para
combinares alguma coisa com a menina?, perguntou o velho e
eu respondi que não mas no domingo seguinte esperei-a à
esquina do prédio e fomos passear de eléctrico até Belém, o
miúdo, que se chamava Eliseu, ia sentado no banco adiante de
nós e de quando em quando a mãe espetava-lhe uma palmada
educativa no rabo por isto ou por aquilo, esplanadas, cafés, o
rio, a torre cercada de ondinhas mansas como cabelos frisados,
Cala a boca, atende o telefone e não digas asneiras, ordenou-
me o tio Ilídio sem que eu tivesse gaguejado nada, tens aí o
mapa dos fretes e logo vês as datas disponíveis, a rapariga nua
do calendário, de joelhos, sorria segurando os seios, a porteira
sorria a comer castanhas comigo diante do Tejo, barcos iam e
vinham lavrando lentamente a água turva, o transito fazia
zunir como búzios as grandes vigas de ferro da ponte, famílias
completas almoçavam pastéis de massa tenra e asas de frango
na relva amarela, convidou-me a ir ver televisão, na quarta-
feira seguinte, ao cubículo em que morava, uma cozinha com
um colchão nos azulejos para a criança, um quarto, uma retrete
e uma saleta exígua, com imensos crucifixos e postais
ilustrados e nódoas de humidade, havia duas cadeiras de praia,
de lona, ao lado do aparelho com uma rodela de naperon em
cima e um bibelot que era uma chaminé algarvia de barro, a
mulher abriu um armário, tirou um cálice de pé e uma garrafa
e serviu-me um vinho verde picante que azedava na língua e
fervia peito abaixo a caminho do estômago à maneira de um
rastilho doloroso de magnésio, o programa era um bailado
chatíssimo com música como a dos enterros que não acabava
nunca, fulanas e fulanos incansáveis, aos pulos, movendo os
pulsos para um lado e para o outro, eu beberricava o veneno
por educação, muito hirto, sem saber o que fazer, a pensar
vagamente na Odete, nas couves, no anão do sobretudo, a
sereia apitava e calava-se, despedi-me às onze e dez, voltei
meio atarantado para casa a imaginar projectos confusos
durante a viagem de autocarro, regressei no sábado, regressei
na terça, regressei na quinta, acabei a garrafa, comecei uma
nova, o álcool já não me ardia tanto na barriga, a Odete já não
me aparecia quando estava com ela, à sexta ou à sétima visita
encontrei a televisão não na saleta mas no quarto, numa mesita
de vime aos pés da cama, com uma boneca espanhola de saia
rodada e mãos no ar entre as fronhas da cabeceira, instalei
cerimoniosamente o vértice das nádegas num ângulo do
cobertor e o colchão rangia muito mais do que eu supunha, no
écran deslizava um filme cómico tremendo de perseguições,
correrias, cambalhotas, quedas, gargalhadas, uma luz
alaranjada, cardíaca, lambia interminavelmente os caixilhos, a
porteira descalçou-se, estendeu-se ao comprido nos lençóis, foi
despindo naturalmente a roupa, peça por peça, como se me
conhecesse há séculos, o copo de vinho dançava-me nas mãos,
acabei por pousá-lo no tapete ao meu lado, e à medida que me
encolhia, me dobrava de timidez e acanhamento um rosto
enorme de palhaço (ou o da mulher?, ou o do meu tenente-
coronel?, ou o da ajudante de ilusionista?, ou os de vocês
todos ao mesmo tempo?) ocupou por inteiro o aparelho (mais
gin) amolgando-se e torcendo-se (mais uísque) em agudas,
intermináveis, patéticas (mais vodka) carantonhas de troça.
2

— Deixe-me ser o primeiro a felicitá-lo pela sua promoção


a general, meu general, disse o major Fontes ao tenente-
coronel, com enorme sorriso desbotado nas gengivas. (Onde
raio esconderá ele os dentes, pensou o tenente-coronel, que só
se vê esta esponjosa, repulsiva casca de laranja da carne?)
Escusado será explicar-lhe como os oficiais aqui no Ministério
ficaram orgulhosos com a sua nomeação para director do
Colégio Militar: se o nosso brigadeiro Ricardo fosse vivo
imagine-me só que contente não estaria agora, ele que
esperava tanto do senhor.
— Olha, era o empregado da lavandaria com o teu fato azul,
chamou-o a nuvem de perfume, a afastar o lulu com a perna,
agitando à sua frente, como um toureiro, um embrulho de
celofane pendurado do seu cabide de plástico, em cujo interior
se agitavam molemente as tripas com botões das mangas. Pelo
sim pelo não vou guardá-lo já no armário da roupa, não vás tu
sentar-te em cima dele com as distracções do costume.
— E não a papaste, cretino, perguntou o alferes, e não lhe
saltaste logo para a espinha?
— Claro que tivemos relações, contestou o soldado, claro
que a comi: acha que eu sou algum saloio ou quê?
Mesmo depois da morte do brigadeiro Ricardo continuava a
ocupar o minúsculo gabinete das traseiras, com as mesmas
sujas teias de aranha nos cantos do tecto, os mesmos móveis
podres, os mesmos avantajados maços de papéis, com a única
diferença de que o encarregavam agora de trabalhar ao
contrário, de desfazer o que fizera, de recuperar os saneados e
sanear os saneadores, chegavam constantemente urgentes
ordens de cima, Apresse-se, Avie-se, Dê-me andamento a isso,
Os processos do número 128 ao número 156 têm de estar
prontos sem falta esta semana ainda, O coronel Tal e o coronel
Tal e o coronel Tal passam de imediato e por motivos óbvios à
reserva, dobrado para a secretária como um malmequer, de
óculos bifocais a escorregarem do nariz, anotava, riscava,
sublinhava, assinalava as margens com cruzinhas, escrevia, um
sargento copiava os memorandos à máquina, o tenente
Cardoso, que se interessava por literatura e trazia sempre o seu
romancezito debaixo do braço, emendava o português a
morder a ponta de borracha do lápis, o trânsito do Cais do
Sodré roncava e tilintava sem cessar, os comboios da linha de
Cascais partiam e chegavam da estação lá longe, a humidade
de dezembro multiplicava cogumelos lilases na parede, um
outro brigadeiro, mais gordo, mais velho, ainda mais baixo,
que repetia de contínuo É necessário serenar o exército, é
necessário tranquilizar os superiores, ocupava agora a sala
grande, de reposteiros pesados de igreja, voltada para o amplo
rectângulo oxidado da praça e para a estátua que trotava na
direcção do rio, Subiram-me de posto e nem um cubículo
melhor me deram, tornaram a subir-me e o ajudante de campo
do chefe do Estado-maior anunciou-me pelo telefone O meu
amigo vai orientar a partir de março o Colégio Militar e
desligou, Agora querem-me prefeito de meninos, pensou o
tenente-coronel, furioso, calcinando o major Fontes com os
olhos, agora querem que eu dê palmatoadas nos que não
decoram a tabuada dos oito, pensou o tenente-coronel mirando
exasperado a nuvem de perfume, de anel de quinze contos no
dedo, que tomava chá com uma amiga verde e silenciosa e
apagada e frágil como um caule, que se debruçava para
oferecer, entre cochichos ternos, pedacinhos de torrada ao lulu,
que lhe acenava adeuses cintilantes de pulseiras, depois de
tantos meses de escriturário querem que eu seja ama de
crianças, pensou ele a enrolar e a desenrolar, atrás das costas, a
guia de marcha que o major Fontes lhe entregara com a pompa
de um diploma em pergaminho, o substituto do brigadeiro
Ricardo, de súbito subserviente, acompanhou-o até ao corredor
em encabritados, respeitosos pulinhos amáveis, O Ministério
sentirá a sua falta como uma perda irremediável, meu general,
O corajoso e competente labor que sempre e em todas as
circunstâncias aqui desenvolveu, meu general, A lucidez, o
espírito crítico, a benevolência, o cuidado e a admirável
isenção que desde o início pautaram, nos mais ínfimos
pormenores, a sua conduta nesta casa, meu general, O que a
nossa pobre juventude, infelizmente hoje à deriva, lucrará
decerto com a sua direcção e o seu exemplo, meu general, e
eu, dentro de mim, Cona da tia, e eu, dentro de mim, Puta que
te pariu manteigueiro de merda, as ordenanças perfilavam-se
nos desvãos, o pessoal da secretaria esticava-se em sentido,
Apesar de tudo conseguiste chegar a general, disse a mãe de
estola de coelho ao pescoço, refastelada num cadeirão de
pregos, a empoar com uma borla cor-de-rosa as rugas das
bochechas, vê lá não borres a pintura com uma asneirola das
tuas, e o tio Mendes, o tio Pinto, o tio Conceição sorriam
paternalmente de cálice de vinho do Porto em punho e lenço
muito bem engomado no bolso do casaco, Dificilmente,
recitava o brigadeiro, colmataremos a brecha aberta no casco
da repartição de oficiais pela ausência do seu saber e do seu
zelo, e o tenente-coronel, pressuroso, Está a ouvir mãe?,
Duvido que apareça tão cedo alguém com a alta inteligência
do meu general a fim de colaborar connosco na árdua tarefa de
presidir aos destinos das gloriosas forças armadas nacionais, e
o tenente-coronel, de calções, Que tal, tio Pinto?, desceu os
degraus para a rua sempre acompanhado pelo discurso
flexuoso e excessivo, eriçado de gestos, do brigadeiro
gorducho, e pelos sorrisos aprovadores do major Fontes, do
tenente Cardoso, de outros fulanos vagos, de outros indivíduos
difusos de que não me lembro o nome, Tive de levar o meu
boxer de urgência ao veterinário, lamentou-se a amiga verde
num assobiozinho vegetal, não havia comprimido nenhum que
lhe travasse a diarreia, despediram-se de mim sob as arcadas,
no meio daquela habitual confusão toda de pedintes e soldados
e ciganos, E o doutor informou-me logo, assim que lhe
apalpou a barriga, Mais um dia ou dois, dona Clarisse, e o seu
cão morria-lhe nos braços, tornaram para o edifício entre
continências e vénias, Mercedes e Volkswagens pretos da
tropa alinhavam-se contra o passeio, os condutores com
divisas de cabo ou de sargento nos ombros, conversavam
apoiados aos capots, Claro que quando ele me disse aquilo só
não desmaiei por acaso, sinceramente não percebo qual é a
utilidade de darem as notícias de chofre às pessoas, o barco do
Barreiro atulhava-se de gente, uma chuvinha insignificante
pairava como saliva no ar, o tenente-coronel dobrou a guia de
marcha em quatro, enfiou-a na algibeira das calças e
principiou a caminhar, curvado, ao longo das colunas, para o
metropolitano da Praça da Figueira, Estou farta de te mandar
que te endireites, Artur, indignou-se a mãe, a enrolares-te
dessa maneira ficas marreco num instante, O Lorde vai lá
sempre, respondeu a nuvem de perfume, e até agora tem-lhe
acertado com as doenças todas, Fiz cinquenta e um anos, mãe,
argumentou o tenente-coronel a espiar-se num vidro de montra
e a achar-se velhíssimo, na minha idade que diferença faz que
seja torto ou não?, Cinquenta e um anos, já?, surpreendeu-se o
alferes, eu não lhe dava mais do que quarenta ou quarenta e
cinco, Acertar acerta, confirmou a amiga verde, a minha zanga
é contra a brutalidade com que ele fala connosco, o
metropolitano até aos Anjos, o autocarro para Sapadores, a
sujidade, o suor, o abandono, os cartazes publicitários
rasgados (mulheres em fato de banho, rostos com óculos
escuros, bronzeadíssimos apolos musculosos, um tipo loiro,
simpático, de bigode, vestido de varredor da Câmara,
Mantenha a Cidade Limpa, os vigorosos ou trémulos slogans
políticos escritos a maiúsculas nas fachadas, gente exausta,
descolorida, feia, triste, Não houve revolução nenhuma, meu
tenente, convença-se disso, insistia o soldado, à parte menos
dinheiro e mais desordem que diferença se nota de 74 para
cá?, e em Sapadores a tua casa cinco andares por cima da
boutique, repleta de jarrões, de bibelots chineses, de quadros
horrorosos com cascatas e ninfas, de poltronas demasiado
grandes para as dimensões da sala, de um barroco luxo díspar
de pacotilha e dos teus retratos quando nova, Edite, por toda a
parte, tu em fato de banho na praia fazendo caretas atrevidas
como as das actrizes de cinema, Ele esquece-se que nos
afeiçoamos aos animaizinhos, disse o caule a recusar mais chá
com a mão, para além de se poder dar o caso de os bichos
entenderem o que a gente diz, as Selecções deste mês trazem o
artigo de um americano acerca disso, Desmanchar tudo para
voltar a construir do mesmo modo, teimava o soldado com
uma das pernas sobre as pernas da mulata, isso é mudança,
meu tenente?, General, hã?, preveniu-o a mãe, se por acaso te
caço nalguma alhada juro-te pela minha saúde que levas um
mês sem sobremesa, a empregada jovem, de carne dura e
olhos claros, que o cumprimentava como a um avô, sempre a
ler revistas de fotonovelas atrás do balcão da boutique (Em
que ocupará ela as noites de sábado?, pensou o tenente-
coronel, irá ao cinema, terá um namorado, será virgem?),
guardou a revista na gaveta das facturas mal o viu, subiu no
elevador malcheiroso e lentíssimo, de porta de grade, que se
abanava e tremia como um teleférico com gripe, sentindo-me,
no interior daquela caixa estreita, de nariz pálido e palmas
cruzadas na breguilha, apertado e hirto como um defunto
numa urna, Com quem deseja falar?, perguntou com
desconfiança o soldado achavascado da porta de armas do
Colégio Militar, e mais para o fundo distinguiu garotos a
correr, campos de jogos, árvores, casernas, esfregou um após
outro os pés no capacho, Artur?, gritou a voz da nuvem de
perfume da cozinha, és tu, benzinho?, Que é que você quer?,
ladrou o sargento da guarda a acender um cigarro, de pistola à
cinta, despache-se com a conversa que não tenho tempo para
namorar, Eu cá julgava que a revolução era para as pessoas
viverem melhor, espantou-se o soldado, não sabia que o
importante era que ficasse tudo na mesma, meu tenente, Vê-se
logo que entendem, Clarisse, esclareceu a nuvem de perfume a
afagar as orelhas do lulu, qualquer criança te ensina que os
bichos são muito mais espertos do que nós, o sargento decifrou
a guia de marcha, fungou, leu outra vez, tornou-se
repentinamente escarlate, fez a continência com o cigarro na
mão, o soldado achavascado, de boina na nuca, abria e fechava
a boca sem perceber, Desculpe, meu general, gaguejava o
sargento em pânico, mas assim à paisana eu não podia
adivinhar, sentou-se na saleta, despiu o casaco, acendeu o
candeeirinho de pé, tirou o jornal da pasta, procurou a coluna
dos desportos, Artur, benzinho, agora é assim, não me ligas
nenhuma?, chorou-se a voz atarefada na cozinha, agora chega-
se a casa e nem um beijo?, Ir ao cinema consigo?, perguntou a
rapariga da boutique com um risinho nervoso, não, não tenho
namorado mas se a dona Edite sonhasse perdia logo o
emprego senhor general, Por aqui, meu general, faça favor,
soprou o aspirante esbaforido, de braçadeira vermelha,
inclinando-se e falando numa untuosidade de gerente, não
calculávamos que viesse hoje e muito menos à civil, senhor
director, e pelo canto do olho o tenente-coronel via o soldado
achavascado a compor a boina, o blusão, as mangas, os botões,
a puxar atabalhoadamente lustro às botas esfregando-as nas
calças, via o sargento da guarda a reunir, angustiado, o
piquete, o clarim a aproximar-se a galope, um cabo a distribuir
à pressa luvas brancas aos homens, pressentia uma agitação
confusa (pessoas, rostos que espreitavam, tombos, gestos) por
detrás das janelas do primeiro andar do corpo principal, Se a
dona Edite não souber de nada pode ser, concordou a rapariga,
e as pupilas dela a troçarem de mim, e os cantos da boca dela,
puxados para cima, a troçarem de mim, e o peito dela, a inchar
sob a blusa, a gritar-me Não és capaz não és capaz não és
capaz. Coronel Ramos, meu general, às suas ordens,
apresentou-se um sujeito de óculos com um furúnculo na
bochecha, seguido de uma legião silenciosa de majores e
capitães, uma campainha tocava para as aulas (ou a chamar os
alunos?), furriéis afadigados como baratas reuniam pelotões,
escutavam-se ordens e gritos ao longe, miúdos de uniforme
encaminhavam-se para um pátio de cimento com um cesto de
básquete por cima, uma cliente entrou na boutique, a rapariga
levantou-se e o tenente-coronel apaixonou-se de imediato pela
vitrine dos anéis e dos colares, Mal foste promovido e já
desatas a disparatar?, repreendeu-o a mãe chamando o tio
Pires de testemunha, estás a ver que eu tenho toda a razão em
lhe tirar a sobremesa, Afonso?, Não quer encontrar-se primeiro
com os oficiais do Colégio no salão antes de tomar contacto
com os alunos?, propôs o coronel dos óculos, pouco à vontade,
a limpar o suor das palmas ao rabo, perdoe o improviso, meu
general, mas não é hábito os directores entrarem assim de táxi,
à paisana, pela porta de armas dentro, Trate-me por Artur, é o
meu nome, pareço-lhe assim tão velho, menina?, levantou-se
da cadeira, atravessou a sala, um enjoativo cheiro de carne
assada que agoniava e crescia, caçarolas e panos pendurados
de grampos, uma tábua de engomar, alguidares de plástico
azul, a roupa que secava na marquise, a Edite de avental e
penteado armado com um pacote de farinha na mão, Boa tarde
querida, Olá benzinho, Uma mulher às direitas, considerou a
mãe, vivida, com experiência, conta no banco, educação, a
sério que nunca vi nada mais estúpido que um homem, Aos
dias de semana é difícil por causa dos meus pais, disse a
rapariga que tinha as unhas roídas e o cabelo menos bem
lavado do que ao princípio parecia, só se eu lhes mentir,
senhor general, só se eu lhes explicar que durmo em casa de
uma amiga, Ao seu serviço, meu general, concordou o dos
óculos numa espécie de genuflexão (os ramos das árvores
agitavam-se-lhe como plumas na nuca), deixam-se as
cerimónias protocolares para amanhã e vou então mostrar-lhe
o seu gabinete e a sua casa, Mas que graça pode ele achar a
uma lambisgóia que nem dezoito anos tem?, enervou-se a mãe
a torcer a estola ratada com os dedos esqueléticos de pássaro,
o que é que uma miúda mal saída do berço sabe fazer para
contentar um macho?, mais árvores, uma parada, campos de
jogos, uma matilha de crianças aos pontapés numa bola, os
oficiais que se dispersavam vagarosamente, hesitantes,
arrastando os sapatos, a Edite estendeu-lhe uma bochecha
mole como uma almofada, onde a pintura, liquefeita, escorria,
húmida de quente e de vapor, podia escrever-se o nome, com o
polegar, nos vidros baços de fumo, Para a semana saímos
daqui, anunciou o tenente-coronel observando sem afecto os
tachos, os alguidares de plástico, o tanque da varanda, os
azulejos de mau gosto, um cesto de vime atulhado de molas,
promoveram-me a general, resmungou ele, e oferecem-me
uma espécie de vivenda no Colégio Militar, de maneira que te
despedes desta casa por uns tempos, E o meu tenente a dar-lhe
com a revolução, estranhou o soldado a dividir o último
cigarro corn a mulata, quem manda no país, oiça lá, não são
por acaso os mesmos que mandavam dantes?, Está, mãe?,
disse a rapariga da boutique (O que vale é que moram em
Alcochete e a minha amiga não tem telefone, sussurrou ela a
tapar o bocal, o que vale é que me proíbem de andar sozinha à
noite nos barcos) era para avisar que hoje faço serão aqui na
loja de forma que durmo em casa da Suzete, um escritório com
os retratos dos directores antigos nas paredes e os estandartes
do costume entre dois armários de livros, a habitual secretária
de torcidos, os cadeirões de cabedal de sempre, e a seguir a
residência sob os cochichos de folhas secas dos plátanos, o
coronel Ramos, pressuroso, a abrir e a fechar portas, a acender
as luzes, a exemplificar o aquecimento, o frigorífico, o
esquentador, as máquinas, a chamar um cabo para consertar
um caixilho, a chamar outro cabo para olear um trinco, havia
lixo e pedaços de papel nas tábuas do sobrado, Falta uma
limpeza a fundo, meu general, falta uma enceradela em regra,
falta descarregar, por exemplo, uma bomba de insecticida
pelos quartos, mas garanto-lhe que amanhã de manhã, quando
aqui chegar para a tomada de posse, nem um grão de pó, nem
uma formiga se nota, e com efeito, no dia seguinte,
esperavam-me com toques marciais de clarim, engomados,
penteados, barbeados, engraxados, o coronel Ramos discursou
com ênfase, consultando papelinhos, diante do batalhão dos
alunos no pátio de cimento, A gesta histórica das forças
armadas portuguesas, As cruzadas, Os navegadores, Vasco da
Gama, Fernão de Magalhães, Bartolomeu Dias, o grande
Afonso de Albuquerque, D. João de Castro e o cerco de Diu, A
coragem ímpar com que nos libertámos, meus senhores, do
domínio espanhol, do domínio francês, do domínio holandês,
para já não mencionar a inesquecível saga de África,
Mouzinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Caldas Xavier, O
modo como nos batemos na injusta guerra colonial que a
ditadura salazarista (Vá lá, vá lá, comentou o oficial de
transmissões) tão cruelmente nos impôs, a Edite, pletórica de
alfinetes e de rendas, triunfava no palanque, segredando
sorrisos íntimos à insignificante esposa do coronel, o qual se
voltara entretanto para mim, soberbo, solene, majestoso, de
uma só peça à maneira dos andores das procissões, E desejo a
Vossa Excelência, meu general, as maiores venturas no
exercício do seu espinhoso cargo, Oficial distinto caldeado por
mil experiências diversas, Homem de guerra e de sala,
Superintender a formação dos próximos dirigentes militares e
civis da nossa pátria, Esta escola de tradição secular, Dezenas
e dezenas de ilustres filhos seus atestam bem do inigualável
nível de ensino aqui desde há decénios praticado, e depois o
meu breve, tímido, circular agradecimento confuso, a Edite a
abanar-se com o leque, a minha mãe a repetir-me ao ouvido
Figuras de urso atrás de figuras de urso, Artur, esta noite, de
castigo, vais para a cama sem jantar, peitos recheados de
medalhas, bonés de pala, tambores, cometas, o desfile de
incontáveis macaquinhos de realejo de espingarda ao ombro,
Onde caralho pára a garrafa de gin meio cheia que deixei na
banheira?
— E o meu tenente-coronel foi ao cinema com ela?,
interessou-se o alferes, e o meu tenente-coronel não teve medo
da sua mulher?
A vivenda é um amor, cacarejou a nuvem de perfume
pousando o enorme anel de quinze contos na manga inquieta
do coronel Ramos. Com um toquezinho feminino por aqui e
por ali, flores, uns naperons, uns bibelots, uns retratos, vai ver
que fica uma maravilha num instante.
— Eu não lhe mexi, meu comandante, jurou o soldado,
escusa de me olhar dessa maneira, desde as três da manhã que
só bebo bagaço.
— Se o cão me adoecer outra vez, lastimou-se a vozinha
sem substância da amiga verde na outra ponta da sala, palavra
de honra que não sei o que faça. Com aquele veterinário
apanho um enfarte um dia destes.
— Às onze, meia-noite o máximo estou na cama, mãe,
gritou a rapariga ao telefone. Prometo.
Não a um cinema de estreia, claro, desses onde se tropeça
comprometedoramente no intervalo em rostos conhecidos,
amigas da Edite, visitas lá de casa, o meu cunhado,
estupefacto, de órbitas redondas, a procurar em vão disfarçar,
mas a um sumido, de bairro, na Praça do Chile, repleto de
desempregados e de escarradores metálicos, ver um filme
muito velho, riscadíssimo, uma comédia musical sobressaltada
de cores, aparecia um tipo bem posto, de laço a cantar e zás,
mudava-se sem transição para uma cena de bailado, o cone de
luz do projector pulava como se caminhasse ao acaso, na
cabina, à laia de uma carroça numa azinhaga de cascalho, as
cadeiras cheiravam desagradavelmente a plástico, os
espectadores batiam os sapatos no chão, indignados, um casal
de velhinhas, de cabeças juntas, lia as legendas uma à outra
num tom monocórdico de um texto de ditado, o cotovelo dela
tocou no meu e afastou-se, senti-lhe o ombro um instante
contra o meu ombro, o odor liso das pernas, do ventre, do
corpo, aproximei às cegas o joelho, a tremer de ansiedade e
aflição, dezoito anos nem sonhar, dezanove ou vinte no
mínimo, a rapariga remexia-se, aborrecida, no assento, Está
farta disto, pensou o tenente-coronel em pânico, está
arrependidíssima de ter vindo comigo, um bombeiro, de pé,
assoava-se de minuto a minuto na coxia e o machado areado
brilhava como um dente de oiro, Que desculpa vou eu dar em
casa?, perguntou-se ele avançando um pouco mais o joelho,
passei a noite onde?, uma reunião, uma emergência, uma
ordem do ministro, a ameaça de um golpe?, o cotovelo voltou
a tocar-lhe, desta vez com mais força, e recuou um tudo-nada,
o tipo de lacinho beijava arrebatadamente num terraço uma
dama de vestido prateado e casaco de peles, o joelho
encontrou finalmente a resistência de uma coxa e parou, a sola
da rapariga pisou-o ao de leve, a cabeça inclinou-se-lhe na
direcção do pescoço e a intensidade do aroma cresceu, dezoito
anos uma ova, tio Pinto, uns vinte e três ou vinte e quatro
assim por baixo e muito mais experiência disto do que eu,
quase que aposto que o telefonema para a mãe era aldrabice,
quase que aposto que era um sinal combinado com um chuleco
qualquer, tacteou ao acaso a mão dela e apertou um feixe
húmido, desmaiado, escorregadio de dedos, rodou o queixo
para a beijar e roçou-lhe a boca na caspa gordurosa da testa,
Como será o peito, pensou o tenente-coronel, como será ela
nua, quantos namorados já teve, quantos abortos já fez, e nisto
o filme cessou, as luzes acenderam-se, um painel publicitário
desceu devagarinho do tecto e encobriu o écran, garagens,
oculistas, agências funerárias, restaurantes, A Mobiliária das
Avenidas, alfaiates, instrumentos musicais, automóveis
usados, intervalo, a empregada endireitou-se na cadeira, usava
uma malinha minúscula, de verniz azul, em forma de
paralelepípedo, um casaco de malha pelas costas e um anel
com as iniciais no mindinho, talvez que viva mesmo em
Alcochete, talvez que a mãe exista, talvez que me não esteja a
mentir, vieram cá fora, em bicha, a passo de boi, examinar as
montras, roupa de criança, relógios, utensílios domésticos,
material fotográfico, críticos olhinhos míopes de lentes
apontados a nós, um magote de cinéfilos de biqueiras
enlameadas bebia café e comprava chocolates no bar, uma
carreira de escaravelhos sisudos descia e subia, sem alívio
aparente, as escadas do urinol, a rapariga extraiu um cigarro de
um estojo de palha entrançada enquanto o tenente-coronel
buscava desesperadamente sem as encontrar (Tenho de dizer
qualquer coisa, temos de falar de qualquer coisa), as
redentoras frases de uma conversa impossível, Trazemos o
nosso pavão de madrepérola, benzinho?, propôs a Edite,
trazemos a colecção indiana de elefantes de marfim?, O mais
difícil são as palavras de abertura, pensou o tenente-coronel, o
mais difícil é achar um tema que se preste, deram
silenciosamente a volta à sala, um ao lado do outro,
cabisbaixos como um par de condenados ou de estranhos, um
polícia barrigudo montava guarda a um escareador, o
bombeiro constipado estudava os cartazes dos próximos
espectáculos, tudo fitas antiquíssimas, tremebundas, com
actores de risca ao meio e bigodinho, Vês, Alice?, disse
acusadoramente o coronel Ramos à mulherzinha
insignificante, vês como a esposa do nosso general consegue
em menos de um fósforo uma atmosfera de lar?, A garrafa de
gin é o meu tenente-coronel que a tem na mão, defendeu-se o
alferes, ainda não lhe largou o gargalo um momento que fosse,
o porteiro dos botões doirados contemplava a rua triste lá fora,
Vou perguntar à moça como se chama, decidiu-se o tenente-
coronel, vamos dar a isto princípio, meio e fim, aclarou a
garganta, abriu a boca, mas uma campainha, irritante, sem fim,
chegada como que debaixo do soalho, comichando nos
tornozelos e na planta dos pés, congregava a assistência para o
recomeço do filme, o bar esvaziava-se, os espectadores
ocupavam os lugares como se nascessem dentes de cabeça das
gengivas de plástico das cadeiras, o painel publicitário, com os
seus instrumentos musicais, os seus oculistas e as suas
garagens, ergueu-se, torto, num chiar de roldanas, a caminho
do tecto, as luzes desmaiaram lentamente, tosses dispersas
acendiam-se e apagavam-se, o foco da cabina de projecção
trepidou de novo, o tipo bem posto discutia no écran com um
senhor de barba que gesticulava e se enfurecia, passei
corajosamente o braço pelos ombros da empregada, os dedos
húmidos dela afagavam-me o queixo, as calças pareceram-me
de súbito demasiado acanhadas na breguilha, onde um pedaço
entalado de mim pretendia crescer e expandir-se, Vinte e cinco
anos o tanas, mãe, pensou o tenente-coronel, se eu lhe for ao
bilhete de identidade encontro trinta, Também as há ao
contrário, disse o oficial de transmissões a descalçar as peúgas,
também as há das que parecem sessenta e têm trinta, As gajas
enganam, rapaz, as gajas enganam, berrou o avô da sua
poltrona de doente, fia-te em tudo no mundo menos numa roda
de saias, empurrou a pila com a mão livre para a ajudar a
libertar-se da prisão das cuecas, e um rolo molhado, grosso e
duro de carne trepou-lhe, instantâneo, quase até ao umbigo, as
pernas dela prendiam-se nas minhas, a língua surgiu do escuro,
roçou-me velozmente o contorno da orelha, evaporou-se, as
velhotas das legendas calaram-se escandalizadas, o senhor da
barba branca discorria com veemência, no que parecia um
camarim de teatro, para a dama do casaco de peles que lhe
respondia com caretas desdenhosas, o oficial de transmissões
guardou cuidadosamente as peúgas no interior dos botins e
mergulhou, como os alunos de natação nas piscinas da Câmara
(os macaquinhos de realejo sumiam-se na curva da parada)
entre umas coxas peludas e abertas de mulher.
— General, benzinho? (A nuvem de perfume considerava-o
absolutamente imóvel, maravilhada no meio do fumo, do
vapor e do cheiro da carne que principiava a esturricar-se,
apertando com força o pacote de farinha contra as imponentes
mamas enormes: e eu a pensar, azedo, Esta alegria não é toda
por mim, caralho, porque no fundo se está nas tintas para a
minha pessoa, mas por ela, unicamente por ela, por viver com
um fulano de prestígio, por ter conseguido casar-se com um
sujeito importante.) Tu, general, Artur? Vou telefonar à
Clarisse a contar-lhe (Eu não dizia, mãe?), o marido, coitada,
nunca passou de alferes.
— Revolução, meu tenente?, teimava o soldado, incansável,
a insistir nos martinis e a empurrar a magrinha com o braço,
para se fazer uma revolução a sério em Portugal têm de se
matar os padres todos, os tropas todos, os doutores todos, os
ricos todos: pelo menos metade do país.
— Logo à tarde, minha senhora, informou amavelmente o
coronel Ramos, colocam as cortinas e os tapetes que faltam
(há dois óptimos, de Arraiolos, que ficaram de entregar às
cinco) e posso garantir-lhe que esta noite mesmo a casa se
encontrará perfeitamente habitável.
Mais discussões, mais conversas, mais cantorias, mais
infindáveis bailados, a máquina a trepidar e a falhar, o écran
zebrado de riscos, as ondulações esganiçadas do som, as
patadas e os gritos de protesto do público, as barbas do senhor
idoso que de quando em quando se desfocavam com um pulo,
a língua da rapariga aparecia das trevas, sugava-me o pescoço,
sumia-se, o tenente-coronel baixou o queixo e a boca dela
sabia a pastilha elástica, a massa de dentista e a guisado, a
dama do casaco de peles, agora com um esquisitíssimo
penteado barroco, encostou a bochecha enlevada ao do
lacinho, a música cresceu fanhosamente, THE END em letras
azuis estampadas sobre as caras de ambos, e por baixo, em
português, a parangonas menores, que morriam e
ressuscitavam, FIM, as lâmpadas da sala acenderam-se todas
revelando rostos estremunhados e côncavos, reposteiros
abriram-se num tilintar de argolas, a rua cá fora afigurou-se-
me mais vulgar, mais insignificante, mais pobre, a noite sobre
as casas assemelhava-se a um pano de lona enodoado, crivado
de buracos e rasgões, Revolução o camandro, revolução o
todas, rosnou o soldado com ódio, andaram uma porção de
anos a enganar a maralha com essa, Uma pensão, uma
residencial, um quarto?, hesitou o tenente-coronel a subir de
braço dado com a empregada os degraus de marmorite para a
Praça do Chile, enfio-me com ela numa pensão qualquer?,
Está, Clarisse, és tu?, berrou a Edite, eufórica, ao telefone,
dou-te um doce se adivinhares o que sucedeu ao Artur, a
ajudante do ilusionista, largando ganchos de cabelo, dançava
sobre a mesa com ademanes precários, friccionando a barriga
no candeeiro de papel, Salta daí que ainda te estoiras, pedia o
alferes, salta daí que ainda me lixas o tampo, Um enfarte?, um
enfarte?, urrava a nuvem de perfume, ultrajada, ó Clarisse tu
julgas que eu moro com algum velho, por acaso?, desceram
sem falar dois ou três quarteirões da Avenida Almirante Reis,
através da montra de uma cervejaria via-se um cardume de
homens a beber e a fumar, pratinhos de tremoços, mesas de
bilhar ao fundo, velhotes de boina debruçados para tabuleiros
de xadrez, lojas fechadas com taipais de rede (capelistas,
ourivesarias, estabelecimentos de electrodomésticos cúbicos e
brancos na sombra), uma ambulância a assobiar, semáforos,
jipes da Polícia Militar, o trânsito morno, sonâmbulo, da meia-
noite, Ainda existirá o hotelzinho manhoso do Bairro das
Colónias, com a sua insígnia vertical e a fachada aftosa, ainda
o mesmo rapazito despenteado de guarda ao painel das chaves
e ao livro de registo dos hóspedes, ainda a mesma passadeira
no fio, presa às tábuas das escadas por intermédio de
grampozinhos de metal? Algumas mulheres patrulhavam
lentamente as esquinas, majestosas, excessivas e fúnebres,
Pensão Lemos, Pensão Dias, Pensão Maracujá, Pensão
Colonial, Pensão Chicago, quartos exíguos, lâmpadas
fundidas, lençóis sujos, janelas para nebulosos pátios interiores
de onde se evaporava, de mistura com uivozinhos de gatos, um
relento de lixo, gritos e pancadaria e solavancos de molas,
tenazes, como pregos, a furarem de contínuo a parede, quantas
madrugadas assim, quantas doenças venéreas (sete, oito?),
quantas conchas de vidro a transbordar de beatas, quantos
amargos, biliosos arrependidos, difíceis despertares de cinza?
— Promoveram-no a general, Clarisse, nomearam-no
director do Colégio Militar, imagina, desafiava a nuvem de
perfume a compor, com a gorda mão livre, um brinco terrível,
do tamanho de um lustre, que espalhava a luz em mil reflexos
divergentes. A propósito, estava aqui a conversar com o Artur
e veio-me à ideia que o teu marido nunca passou de alferes na
Cooperativa, pois não?
— Anda à procura de um bar para tomarmos um copo?,
perguntou a empregada cujo braço se ia tornando mais leve no
meu braço, cujo tronco, insensivelmente, endurecia, se
apequenava, retraía.
— Bem julgava eu que ele começou por baixo, bem julgava
eu que ele começou por sargento, continuava a Edite,
imperturbável, a esmagar a amiga em incontáveis, minúsculos
pedacinhos de carne maltratada e humilhada. Em todo o caso
ter chegado a oficial foi uma sorte dos diabos, as messes dos
furriéis e dos cabos e disso assim (eu nem os distingo uns dos
outros, que é que queres?) são tão mazinhas, santo Deus, a
comida deles tão ordinária, não achas? E as fardas, que horror,
uns tecidos péssimos, obrigarem-nos a vestirem-se de
sinaleiros sem capacete.
— Há um giríssimo com música no Martim Moniz, sugeriu
a rapariga. Vou lá às vezes com uns amigos meus.
Não as frequentara só na adolescência, em grupo, com os
colegas do liceu, pensou o tenente-coronel, não só na
juventude, solitário como um zorro de bigode a nascer, mas
durante o casamento também e principalmente depois da tua
morte no hospital do cancro, para não ficar sozinho em casa,
percebe, a tremer de medo, acordado no escuro, rolando as
órbitas cegas em busca da mancha mais clara, cor de gordura,
da janela, a escutar os ruídos dos arbustos e de passos de uma
África distante, que o bater do relógio de pulso, na mesa de
cabeceira, e os jorros das camionetas da água que lavavam a
rua lá em baixo, a pouco e pouco dissolviam. Sobretudo
depois da tua morte no hospital do cancro, fica sabendo,
quando não havia vinho na copa ou desistia, aos tropeções nas
cadeiras, de encontrar uma garrafa de uísque ou de bagaço no
armário, atormentado por garras gasosas que o beliscavam e
puxavam, por vultos de batas brancas e luvas de borracha,
munidos de facalhões sangrentos, retalhando corpos lívidos
esticados em mesas de pedra, por dedos que apontavam,
ferozes, na sua direcção, Mataste-a. Um letreiro apagado a
uma esquina, Pensão Angola, Dormidas, Primeiro Andar, uma
lanterna de ferro forjado a balouçar, cercada de grandes
borboletas negras, no topo, O que é isto?, indignou-se a
empregada da boutique à medida que entravam, o que é isto?,
um tipo em mangas de camisa a dormitar atrás de um pedaço
desfeito de balcão idêntico a um fragmento de cais, o tenente-
coronel exibiu uma ponta de cartão à indiferença do outro,
escreveu a data e assinou o nome numa ficha, recebeu uma
chave, Terceira porta à direita, enxotou-a ao comprido de uma
espécie de túnel que cheirava a urina e a conservas estragadas,
rodou uma maçaneta, procurou às apalpadelas o comutador ao
longo da moldura da porta, O que é isto?, o que é isto?, repetia
ela em voz baixa e num tom de voz que se dobrava e cedia, um
candeeiro de tecto, de quebra-luz de metal, acendeu-se
inesperadamente como se me arrancassem um quadrado de
adesivo de sobre os pêlos das coxas, uma cama, um banco, um
armário decrépito com espelho, com uma das pernas
substituída por dois tijolos deitados, um jarro de esmalte e um
lavatoriozito de volutas empoeiradas onde deslizavam de viés
aranhiços minúsculos, um postigo para a rua com cortininhas
de pintas, buracos e fendas na caliça, pequenos tapetes de
ráfia, um nublado, imemorial, antiquíssimo silêncio espesso de
sótão, e nisto, sem que eu o esperasse, sem aviso, sem barulho,
a rapariga atirou a carteira para cima da cama, sentou-se no
banco, curvou-se para diante, enterrou o nariz no cotovelo e
começou a chorar.
— Trazem-lhe o pequeno-almoço a casa às horas que
vosselência entender, minha senhora, explicou o coronel
Ramos, e o almoço e o jantar a mesma coisa se não estiver em
maré de cozinhar.
— Ó Artur, disse a nuvem de perfume a correr o mínimo
num tampo a fim de se assegurar do asseio da mobília. Hás-
de-me lembrar para convidarmos a Clarisse, pobrezinha, esta
semana.
O pai devia ser ferroviário, ou metalúrgico, ou chofer, a mãe
costureira, ou mulher-a-dias, ou caixa de armazém, e o
tenente-coronel, enervadíssimo, sem saber o que fazer,
imaginou uma cave gelada num prédio triste de Alcochete:
fotografias da rapariga em bebé por todo o lado, uma arca de
pregos, cadeiras desemparelhadas, inúmeras crianças que
choravam, gritos de vizinhas, cordas de roupa, gaivotas
adormecidas sobre o lodo do rio, os trombones da filarmónica
a ensaiarem ao longe, a cara dela a fitá-lo, ressentida, aflita,
arrependida, gordurosa de lágrimas, quase aos berros, O
senhor general julga que eu sou uma prostituta mas engana-se,
o senhor general cuida que eu sou uma qualquer, Não julgo
nada, palavra de honra, acalma-te, impacientava-se o tenente-
coronel, não julgo nada, a sério, cala o bico, olha que assustas
os outros, uma cave ao pé do hospital, ou do campo de futebol,
ou da saída para Lisboa, ou da praça de touros, bonecos de
loiça vidrada, um rádio enorme, o retrato de um guarda-fiscal
de bigodes numa prateleira, Se a Edite sabe disto despede-a, se
a Edite sabe disto mata-a, imaginou a nuvem de perfume, a
extrair-se de um Mercedes do Exército para descompor aos
urros, gigantesca, alarmante, impiedosa, a garota, estarrecida,
deu uns passos perdidos pelo quarto, fez estalar as falanges,
espreitou pelas cortinas e ninguém na rua, halos desfocados
desbotavam as placas de néon, um avião invisível ronronava
no sólido interior do céu, umas palmadinhas tímidas no ombro
da empregada (Então então então) que se assoava com
estrépito, afastava madeixas da testa, procurava
esforçadamente sorrir, Pode convidar quem quiser, minha
senhora, elucidava, flexuoso, o coronel Ramos, a casa é
inteiramente independente, há uma saída para os carros pelo
portão de trás, a ajudante do ilusionista, desequilibrada, jogou
a unha à bola de papel que se amolgou em rasgões amarelos,
arames torcidos e varetas de plástico transparente quebrando-
se num ruidozinho de falange, Inteiramente independente,
minha senhora, se o nosso general quiser nem uma sentinela lá
pomos, Chega aqui, disse o tenente-coronel a pensar na cave
de Alcochete e no pai metalúrgico, descansa um nadinha na
cama e logo que te apetecer vamos embora, ajudou-a a deitar-
se, descalçou-a, encheu-lhe a nuca de almofadas, os
empregados do lixo, quase todos cabo-verdianos, de largos
suspensórios cor de laranja, chocalhavam furiosamente os
contentores na Avenida, entre correrias, ordens, soluços e
deglutições mecânicas, Levei a noite no Ministério, querida, a
aturar o secretário de Estado, numa reunião de emergência por
via de uns idiotas quaisquer com a mania das revoluções outra
vez, estou morto de cansaço, arranja-me um café bem forte se
não te importas, e a nuvem de perfume, em roupão, afadigada
à sua volta, e as mãos dela a prenderem-lhe, leves, os lençóis
de encontro ao corpo, e o lulu a raspar com as patas a porta de
vidro da cozinha, convidar a Clarisse, convidar o meu
cunhado, convidar o Ramos e a mulher, aperitivos, bebidas, o
jantar, eu a mastigar olhando a Última Ceia da parede,
escutando remotíssimas, misturadas conversas sem interesse
que se aproximavam e afastavam, a mãe costureira, ou mulher-
a-dias, ou caixa de armazém, ou operária numa fábrica de
enchidos, as fotografias de criança, as cadeiras de palha, todas
diferentes, em torno de uma mesa oval, É assim que as pessoas
vivem, pensou o tenente-coronel a despir o casaco e a colocá-
lo, com todo o cuidado num cabide de pau, é no meio deste
absurdo idiota que os dias se sucedem vegetalmente, sem
sobressaltos nem esperança, uns aos outros, a camisola, a
gravata, a camisa, a rapariga mirava-o sem chorar mas com as
lágrimas de há pouco ainda imóveis nas bochechas redondas e
a pintura de má qualidade das pálpebras perdendo-se, pelas
têmporas, na raiz do cabelo, tinha as pernas coladas como as
dos defuntos, uma das mãos em pala sobre a testa e as pupilas
astutas ligeiramente curiosas, ligeiramente assustadas, os
botins, as calças, as meias, as cuecas, É no meio deste absurdo
idiota, pensou o tenente-coronel, desta amarga tranquilidade
sem perguntas, que a frouxa geleia dos dias lentamente se
evapora, apagou a luz e o quadrado da janela aumentou, de
súbito nítido, nas trevas, a cor dos sons tornou-se aguda e
lúcida, um acre vento morno mexia-lhe nas tripas, Cala o bico,
disse ele alto no silêncio, olha que assustas os outros, e
assaltou-o a certeza de que falava de facto para as gaivotas e
os pássaros marinhos de Alcochete, adormecidos entre as
ervas, sobre o lodo do rio.
3

Não conheço esta noite. Não conheço esta casa. Não


conheço estes cheiros, estes sabores, estas vozes. Não conheço
estas mulheres nem estes homens. Não conheço estes cães da
madrugada na rua lá fora, os ruídos, a manhã pastosa que
amanteiga os caixilhos, o corpo defunto de bruços ao meu lado
na alcatifa, morto porquê, morto por quem, morto como? A
Esmeralda, a minha madrinha, a Dália, tu? Vou ao teu
apartamento duas vezes por semana, às terças e às sextas a
seguir ao jantar, bebo, falo, oiço música, limpo os óculos com
o lenço ou com aquele paninho especial que o médico me deu
e perco sempre, dispo-me, enfio-me nos lençóis, beijo-te, entro
dentro de ti ou tu de mim, ou nós dois dentro um do outro ao
mesmo tempo, como lagostas, cheios de pinças, de antenas, de
patas, de pêlos, de duras cartilagens vermelhas que se
avermelham, assassinamo-nos com as unhas, os dedos e os
dentes, às oito horas acordas-me com o café com leite do
pequeno-almoço, tomo banho, penteio-me, calço-me,
despedes-te de mim em roupão, arrastando no tapete os largos
pés hesitantes de crustáceos, nos balanços do autocarro para o
Ministério sinto nas costas os arranhões da véspera e as
marcas dos caninos no pescoço, regresso à noite, às girafas e
aos hipopótamos do carrossel a olharem-me da janela como
esta mulher morta que não conheço me olha, como os presos
me olhavam na cadeia, como o inspector me olhava
compassivo e ávido, antes de me bater, como estas tipas e
estes tipos me olham, baços como debaixo de água, movendo-
se pelo corredor fora, meio nus, em tortos gestos difíceis de
caranguejos, para vomitarem pelos cantos o recheio de carne
esbranquiçada das tripas. Mas não os conheço nem o conheço
a si, aí sentado, a ouvir-me, a minha tia morreu, a Dália sumiu-
se, a Esmeralda está no asilo a fitar a parede diante dela sem
responder ao que lhe digo, e se lhe afago a mão agarra-se-me
ao pulso numa interminável teimosia vegetal de gavinha, não é
terça nem sexta-feira hoje e portanto não és tu quem toco, não
és tu com quem falo, levantei-me há bocadinho para urinar e
vi lá fora, mesmo sem lentes, uma fonte enorme, árvores,
prédios, arrotei e chegou-me um gosto de champanhe à boca,
quis sair e não encontrei a porta, tentei escapar-me pela
moldura de um quadro e não cabia lá dentro, esconder-me no
interior de um pote e entalei o calcanhar no rebordo, de modo
que compreendi então que me acho de novo em Peniche, de
novo em Caxias ao quarto dia de estátua, que por trás da fonte
e das árvores e dos prédios se ocultam os aflitos, repetidos
mugidos de vitela do mar, compreendi que me encontro
provavelmente na sede da polícia política, com as celas e os
cubículos dos interrogatórios mascarados, através de uma
grosseira habilidade de cartolina e celofane e jogos de
espelhos, num andar vulgar de um bairro vulgar, a fim de me
obrigarem mais facilmente a confessar não sei o quê a não sei
quem, a Organização, o Olavo, o Emilio, o Careca, o Lopes, o
falecimento do Pires no hospital, entendi que estas mulheres e
estes homens são agentes da secreta que se disfarçam de
amigos, que me beijam, que me dão palmadas no ombro, que
conversam familiarmente comigo disto e daquilo e de
Moçambique e deles próprios, que se fingem de bêbedos, em
pelota à minha frente, com as pistolas escondidas nas carteiras
ou nos bolsos das calças, com microfone e gravadores nas
gavetas dos móveis, topei, percebe, que esta noite é uma noite
inventada, uma noite de papel de lustro colado nas vidraças,
que na realidade são onze e meia, ou meio-dia, ou três horas lá
fora, que se eu furar estes panos pretos com o nariz ou os
cotovelos dou com o sol que suspeito, com a claridade que me
roubam, com o agosto que adivinho, portanto vá à merda meu
capitão, ou seja: vá à merda senhor inspector, diga ao seu
pessoal que se retire, acabe-me com esta representação cretina,
empurre-me esta mulher defunta, com cheiro de defunta e
hálito de defunta e pele escorregadia, de sapo, de defunta, para
longe de mim, há que tempos que abandonei a política,
palavra, sei lá do Olavo, sei lá do Lopes, sei lá do Comité
Central, caguei na revolução uns meses a seguir ao enfarte do
Pires, numa tumultuosa reunião na Estefânia, demiti-me,
entende, demiti-me pelos ossos da minha madrinha que me
demiti, garanto-lhe que me demiti de vez, o sujeito de
cachimbo, jardineira e cabelo exuberante que presidia à sessão
olhou em volta, embaraçado, picou com um fósforo as cinzas
do fornilho para ganhar tempo, tornou a olhar em volta em
busca de um apoio qualquer nos rostos sem feições, lisos e
ausentes como maçãs, que o fumo desfocava, acabou por
empurrar a folha de papel, ao longo do braço esfiado da
poltrona, na direcção do oficial de transmissões, e perguntou,
tacteante, cauteloso, a cambalear nas palavras como um
bêbedo que se esforça o mais que pode por caminhar direito, O
que é isto?
— A tua tia partiu o colo do fémur, explicou o médico, um
novo, ainda suficientemente inseguro para se interessar. Tem
de ser operada, é inútil adiantar mais coisas por enquanto. Sim,
claro, fica cá, vamos ver o que o especialista decide. De
qualquer modo na idade dela é um problema grave.
Não era um banco de hospital, senhor inspector (quando é
que os seus gorilas me começam a bater, confesse?,
especialmente aquele ali, deitado na cama ao lado da mulata),
eu gostava demais daquela velha para a sujeitar a horas e horas
num corredor imundo repleto de macas que gemiam, de
doentes sentados no chão, segurando a barriga, de órbitas
foscas de doentes na agonia, de sujeitos entrapados, de
mulheres grávidas já mortas desde há anos e de quem os
maqueiros diariamente se esqueciam, de enfermeiras a
pularem com dificuldade, como lavagantes, por cima dos
soluços que rastejavam, idênticos a lagartas, entre os lençóis e
as almofadas sujas, de forma que quando ela caiu das escadas
à ida para a missa, as contas do terço se espalharam por toda a
parte, e a minha madrinha ficou estatelada de bruços no
patamar como um sapo, a transportámos, a Esmeralda e eu, a
uma clínica da Rua Conde de Valmor (a que se confunde
sempre com a Visconde de Val-bom e nunca se sabe ao certo
onde é), uma criatura de bata azul pediu-me o nome, a morada
e um depósito de quinhentos escudos (Já fomos vigarizados
tantas vezes que agora tomamos as nossas precauções, não é?),
entregou-nos uma rodela de cartolina com um número e
mandou-nos esperar numa sala atulhada de terçolhos e de
furúnculos, de paredes decoradas por cartazes riscados a
cruzes vermelhas e a imperiosa ordem Não Fumar em baixo.
Uma senhora mal-humorada, de touca, metia a cabeça
antipática entre a ombreira e a porta e chamava as pessoas em
latidos agudos, Sete, Oito, Nove, Doze, a tia chiava baixinho
embrulhada num cobertor de papa, e o médico, mal lhe
levantou a saia, pegou logo no telefone, Há algum quarto
livre?, a Esmeralda vasculhava o lenço na carteira, Se a do
cancro na mama morreu ontem, argumentava o doutor, já
desocupou a cama há que tempos, e para nós Voltem às duas
em ponto, o especialista costuma chegar a essa hora.
— É o meu pedido de demissão, disse o oficial de
transmissões, meio perdido, sem olhar para ninguém, instalado
numa das cadeiras de palhinha da casa do Olavo, desgostei-me
da política, poça, que é que vocês querem.
O Lopes levantou o braço, Requeiro a palavra, almoçámos à
pressa na cozinha, a Esmeralda voltava-me as costas de
tempos a tempos para enxugar as pálpebras (Aposto que me
deixou cair lágrimas no ovo estrelado, pensou ele, lágrimas
nos agriões, nas batatas fritas, na carne), dez minutos antes das
duas carregaram de novo no inaudível botão de campainha da
clínica, a funcionária de bata azul exigiu mais um conto e
seiscentos adiantado e entregou-me um recibo que guardei
sem ler na carteira (Porque fica cá internada, elucidou a
mulher, porque se tratava de mais do que de uma consulta
externa), mandou-nos subir ao primeiro andar por uma escada
que protestava de dor debaixo dos sapatos, cruzaram-se com
uma enfermeira quase tão idosa como a tia e com uma criada
de sapatos de borracha e avental aos quadradinhos, que
transportava um bacio de urina ou menstruo pelo corredor, o
oficial de transmissões avançou um passo, parlamentou
baixinho com ela, ordenaram-nos que aguardássemos numa
espécie de desvão impregnado de um odor insuportável de
desinfectante e de remédio, uma rapariga muito chupada, de
roupão e chinelos, flutuava como uma aparição nas tábuas do
soalho, e daí a bocado o mesmo médico da manhã apareceu de
bata aberta e estetoscópio ao pescoço, agora aparentemente
mais adulto e responsável, enviou rispidamente a rapariga para
a cama e para eles O especialista está à vossa espera, venham
cá.
— Mais alguém que se inscreva?, perguntou o Olavo a
tomar apontamentos a esferográfica num bloco. Primeiro o
Lopes, depois a Dália, a seguir eu próprio, e tu no fim de todos
na expectativa de que te retractes: não se abandonam dez anos
de militância como quem bebe um copo de água, e até um
comunista batido tem o seu direitozinho a desânimos e
descrenças esporádicas.
O Lopes levantou-se, apagou o cigarro escurecido de cuspo,
ergueu a mão didáctica, e encontrámos o especialista a
examinar radiografias de ossos contra a luz da janela, num
gabinete canceroso, de rabo encostado a um ângulo da mesa,
com uma agenda de argolas em cima, uma pilha de fichas
clínicas, um copo coberto por um pires de plástico,
embalagens de medicamentos, um molho de seringas de deitar
fora nos seus invólucros de celofane, presas por várias voltas
de elástico. Os parentes da doente do dezoito, anunciou o
médico da manhã, e o especialista escorregou para nós um
soslaio aborrecido, quarentão, coçando molemente a calva
com as unhas vagarosas:
— Já recuperou a consciência, vamos operá-la esta tarde,
meter-lhe um ferro na coxa, não pode receber visitas: uma voz
exausta, neutra, umas pupilazinhas apagadas, uma boca que
lembrava uma vagem de ervilha, de ângulos inclinados para
baixo, onde os dentes tremiam, ao falar, como podres
frutozinhos mal presos. Procurou cigarros nos bolsos, levou
séculos a encontrar o isqueiro: Lá para as nove ou dez dou-vos
informações mais concretas.
Eu não devia ter consentido que vocês assassinassem a
minha madrinha, senhor inspector, não devia tê-la deixado
assim, naquela esquadra a fingir de hospital, à espera com a
Esmeralda, a tarde inteira, feito parvo, no desvão do corredor,
enquanto os guardas a manipulavam, a anestesiavam, a
deitavam, com máscaras na cara e botas de pano nos pés,
numa sala intensamente iluminada, cintilante de tubos e
metais, um marciano de carapuço branco lhe tapava a cara
com uma espécie de açaimo sufocante, um outro lhe procurava
a veia com uma agulha, lhe injectava no sangue um soro de
polícia, uma faca fininha se lhe aproximava da anca, desceu à
recepção para telefonar ao Ministério apesar da má vontade da
funcionária da bata, e lá veio o resmungo ensonado do Terreiro
do Paço, Hum, Ligue-me à Repartição de Oficiais se faz favor,
batucar de máquinas de escrever, conversas misturadas,
exclamações, murmúrios, um timbre familiar, Sim?, e eu, sem
transição, sem mais paleio, sem perguntas, Ó Ananias diz aí ao
major Marques que esta tarde não vou ao serviço porque a
minha madrinha caiu, sem me lembrar que vocês me
escutavam, sem me lembrar que vocês me gravavam, sem me
lembrar que na Central gajos em mangas de camisa me
estenografavam as palavras, as apensavam ao meu processo,
as enviavam para Caxias, para Peniche, para os ingleses, e os
belgas, e os italianos da Interpol, sem me lembrar que decerto
dentro da própria clínica me examinavam, me espiavam, me
seguiam, O camarada que se afaste para reflectir, se quiser,
orava o Lopes, mas que em caso algum abandone a
Organização, todos nós trabalhamos há tempo suficiente pelo
socialismo para conhecermos de sobra as dúvidas e o cansaço,
somos humanos, caralho, e no entanto, camaradas, a burguesia
liquefaz-se, o capitalismo devora-se a si mesmo na sequência
das suas inconciliáveis contradições internas e da absoluta
ausência de um projecto coerente capaz de aglutinar as
massas, nuvens de fumo, o busto de Cesário Verde a
enferrujar-se na praçazinha em baixo, os automóveis
encavalitados uns nos outros, como baratas, nos passeios, é
certo que somos poucos por enquanto mas também não é
menos certo que nas fábricas, nas oficinas, nas lojas, nas
escolas, operários e jovens ardentes, sequiosos de justiça,
aguardam com impaciência as nossas directrizes e o nosso
exemplo, pagou a chamada à recepcionista de bata azul que de
auscultadores nas orelhas cravava e desencravava cavilhas
coloridas num PBX vetusto, directamente ligado ao quartel-
general do FBI, subiu as escadas, encontrou a Esmeralda
instalada numa pontinha de poltrona, a apertar o fecho de
metal da carteira com os dedos engelhados, Soube alguma
coisa da senhora, menino?, A Esmeralda gostava da gente,
percebe?, passou a vida a ralar-se por mim, e agora, quando a
vou visitar ao asilo, não me ouve, não me conhece, não
conversa comigo, arrota uns grunhidos indistintos,
embrulhados em saliva, pelos cantos dos beiços, oiço as fezes
dela soltarem-se-lhe do corpo debaixo dos lençóis, quando
principiou a anoitecer uma enfermeira que empurrava um
carrinho cromado, cheio de pratos de sopa, acendeu uma
lâmpada engastada no desvão e uma claridade amarela tornou-
nos tão mortos como os mortos desta noite, esta mulata
entrelaçada num defunto ruivo, aquela mulher nua, esse fulano
de uma certa idade, agarrado à garrafa vazia, de costas na
alcatifa, os restantes náufragos que o senhor aqui pôs para me
compelir a confessar não sei o quê, talvez as minhas náuseas, a
minha gana de vomitar, a minha cabeça pesada, o Lopes calou-
se, a Dália desatou a falar a um sinal do Olavo e contudo,
percebe, eu tinha deixado por completo de os ouvir, queria
levantar-me, ir-me embora, abrir uma janela porque se
sufocava ali dentro e pirar-me daquele sítio o mais depressa
possível, meter-me num cinema, fechar os olhos no escuro e
permanecer imóvel, horas sem fim, tão quieto como você, tão
quieto como os seus compinchas, à espera que me acordes
com o pequeno-almoço, o som do banho a correr, e um
enorme, amigável sorriso de lagosta, cheio de pinças, de
antenas, de patas, de pêlos, de duras cartilagens vermelhas que
se avermelham, enquanto ternamente, metodicamente,
eficientemente, me assassinas. Não, não se mexa na cadeira,
não diga nada, não merece a pena: sei que ela também
pertence à polícia, também faz parte da conjura, também
trabalha para si, me envenena com um pó qualquer o café com
leite e as torradas, se multiplica em perguntas subtis à medida
que me estende a toalha, me ajuda a enxugar-me, me muda a
lâmina da gilete no intuito de que eu me decepe o pescoço, me
coloca a pasta de dentes na escova, me empurra, com a
camisola ao contrário, na direcção do elevador, a Dália
emudeceu, o Olavo sorria para o oficial de transmissões
mexendo a boca em frases inaudíveis, e por fim, senhor
inspector, Tens alguma coisa a dizer?, e eu Tenho que preciso
de ar urgentemente, este fumo todo pica-me nos olhos,
desandei porta fora e nunca mais os vi, ainda dei fé de me
chamarem do patamar quando alcancei o vestíbulo, mas a
Revolução, entende, tinha-se acabado para mim, mas o
marxismo-leninismo-maoísmo deixara de súbito de me
apaixonar, quase não saía de casa (não faça essa cara, é
verdade, o senhor inspector possui decerto relatórios
completos, fotografias, mapas, diagramas, gráficos, acerca da
minha ocupação do tempo, do meu quotidiano, do isolamento
da minha existência desde então), ouvia música, lia romances
de ficção científica, a terra invadida por escaravelhos, conhece
o género?, ou formigas, ou polvos, ou amibas inteligentíssimas
tripulando naves, observava abulicamente o pó crescer sobre
as cómodas, as gotas pingarem das torneiras, a tina inundar-se
de cabelos, levantava-me às sete e meia, aguardava dez,
quinze minutos na paragem do autocarro, chegava
pontualmente ao Ministério, instalava-me à secretária e
resolvia com o sargento os assuntos correntes, mais quinhentos
quilos de batata para o quartel de Chaves, mais vinte sacas de
arroz para Tavira, Os de Beja continuam a reclamar, meu
tenente, da qualidade dos géneros, deram agora em querer
champanhe e caviar, uma tosse muito ao longe, depois mais
perto, alguém a abanar-me pelo ombro, a voz cerimoniosa da
Esmeralda, Acorde, menino, deixou-se dormir, menino, a
Esmeralda a desculpá-lo, envergonhada, para uma imprecisa
pessoa longínqua, Trabalha muito, senhor doutor, anda
cansado, estou farta de lhe explicar que cinco horas de sono
não são nada, abriu os olhos como se empurrasse um peso
enorme de cima da cara, tapou-os com os sonâmbulos dedos
emaranhados por causa da amarga claridade do desvão, farejou
como um bicho o cheiro de remédio, farejou, a correr a língua
nos beiços, o odor de farmácia, o especialista, de barrete
creme, bata verde e galochas de pano, apontava-lhe lá de cima
as neutras pupilazinhas apagadas, as ervilhas dos dentes
estremeceram por segundos na vagem, O coração não resistiu,
ficou-se sem sofrimento na mesa operatória, as minhas
condolências, senhor tenente.
— Assim, à bruta, sem mais nada?, perguntou o alferes.
Mataram-te a velha e tu Está bem, pronto, muito obrigado, boa
noite, a conta do magarefe paga-se à entrada, não é verdade?
Não pagou logo, esperou que lha mandassem pelo correio
para casa, mas o que teve de desembolsar no dia seguinte, ou
dois dias depois, foi o dinheiro da agência funerária que se
encarregou do enterro, e a espórtula do padre que o sacristão
lhe veio reclamar no cemitério ainda, puxando da batina um
sebento livrito de recibos e molhando de cuspo um coto
milimétrico de lápis, Se pretender deixar mais alguma coisa
para as obras sociais da nossa igreja faz favor, um funeral com
a Esmeralda e comigo aos saltos em bancos desconfortáveis no
interior da carreta, agoniados pelo aroma da estearina e o
perfume ceroso das flores, o chofer conversou o tempo inteiro
com o ajudante sobre as pavorosas atrocidades cometidas na
sogra dele por um dentista nos Anjos, molares arrancados sem
anestesia, brocas enlouquecidas perfurando gengivas, próteses
que se engoliam sem querer ao beber água, de quando em
quando um dos gatos-pingados voltava-se para trás,
endireitava o pano que cobria o caixão e aplicava uma
palmada carinhosa na urna, a Esmeralda rezava terços
contínuos ao ritmo das sacudidelas do motor, mas vocês
filmaram seguramente tudo isso, aposto que os coveiros, de
boné de pala e máquina fotográfica escondida na algibeira,
pertenciam ao quadro da polícia e me anotavam reacções,
movimentos e palavras, se calhar até os jazigos e as cruzes,
esculpidos a fingir, faziam parte das engenhosas maquinações
da secreta, era terça-feira, deixei a Esmeralda a lamentar-se e a
choramingar no quarto, com os tornozelos num alguidar de
água salgada a fim de se aliviar do inchaço dos pés, bebi um
copo de ginja e comi um pastel de bacalhau numa vendazita
em S. Domingos, chamada A Pérola do Caminheiro, com um
balcãozinho acanhado e as paredes forradas de vitrines de
bombons bafientos e de latas de biscoitos, muitos carros
estacionados nas ruas, muitos prédios novos, vestíbulos
idênticos que monotonamente se repetiam, com os mesmos
azulejos de mau gosto, as mesmas plantas, as mesmas portas
de vidro martelado dos elevadores, Lote 1, Lote 2, Lote 3,
Lote 4, Lote 5, tocou três vezes a campainha do oitavo
esquerdo, aguardou um momento, tocou mais duas vezes e
quase de imediato o fecho pulou com um estalo, Se calhar
esperavas-me à varanda, Se calhar binoculavas a rua da
marquise, o botão encarnado do elevador que palpitava, a seta
que apontava para cima apagada, a seta que apontava para
baixo acesa, a caixa de metal trepando a claridade ictérica dos
patamares numa pressa oleada, e no capacho, sorridente, de
calças, a brincar com o colar de búzios do pescoço, tu.
— E quem é essa senhora, meu tenente?, perguntou o
soldado. Que namorada é essa que nos anda a esconder?
— Já vi desses colares de búzios, são giríssimos, disse a
ajudante do ilusionista, sentada no chão, a lutar com os dentes
contra a tampa de uma garrafa de cerveja. Ficam lindamente
com um vestido de praia que eu tenho.
— Se pretender deixar mais alguma coisa para as obras
sociais da nossa igreja faz favor, ofereceu o sacristão com um
odiento, soturno, cadavérico sorriso desdentado.
Continuaram a chamá-lo (ou ele pensou que continuavam a
chamá-lo) quase até ao gradeamento do Hospital da Estefânia,
ao seu anémico silêncio e às suas árvores famélicas, as vozes
iam-se atenuando e dispersando, Devem ter deixado a pouco e
pouco a política, imaginou ele, ter-se esquecido de Lenine e de
Marx e dos Chineses, arranjado emprego em companhias de
seguros, ou escritórios de fábricas, ou bancos, quem continua a
preocupar-se com a Revolução, senhor inspector, quem
persiste, neste país, em querer mudar o mundo, quando em
Portugal, não é?, o mundo é que nos muda a nós, as pessoas
alteram-se, envelhecem, abandonam, desistem, mas as
instituições nunca, ei-las que terminam sempre, mais tarde ou
mais cedo, por regressar á tona, eternas, intactas, teimosas,
invioladas, sempre os mesmos esqueléticos cães com fome, os
mesmos ricos, os mesmos pobres, a mesma inalterável,
melancólica, estreita paisagem em que apenas se cabe apertado
e de pé, e de súbito, uma bela noite, inesperadamente, uma
noite que não reconheço, como esta, pessoas que não conheço,
como estas, trazem-me para um apartamento que não conheço,
como este, estendem uma mulher morta ao meu lado na
alcatifa, espalham outros defuntos, outros agonizantes pelas
salas, instalam uma mulher nua, afogada na própria gordura,
nos lençóis da cama, ocultam microfonezinhos perversos no
bojo dos candeeiros e sob o tampo das mesas, e daqui a nada
entra por aqui dentro o inspector de Caxias, o inspector de
Peniche, Tu de novo, meu cabrão?, tu de novo, meu sacana?, e
murros e pontapés e bofetadas e insultos e apertões nos
tomates, quem, quantos, onde, depressa, e daqui a nada as
tonturas, e daqui a nada o mal estar, a náusea, o gosto estranho
na boca, a gana de vomitar que já tenho, O que é que vocês
deitaram no jantar?, O que é que vocês puseram nas bebidas?,
esta sensação de morte, esta falta de forças, esta irreprimível
desistência, o sacristão desdentado brandindo-lhe diante do
nariz as folhinhas sebosas, Se pretender deixar mais alguma
coisa para as obras sociais da nossa igreja faz favor, o
especialista apontou-me com o dedo ao Olavo, à Dália, ao
Lopes, aos raros, consternados sobreviventes do Comité
Central que o olhavam, muito sérios, de gravata preta,
compungidos e confusos, O coração não resistiu, ficou-se na
mesa operatória, as minhas condolências senhoras e senhores,
Vou-te arranjar um café teso, disse o alferes, antes que varies
por completo da cabeça, o oficial de transmissões, de queixo
amarrado por um lenço, procurou a madrinha com os míopes
olhos desesperados, Não fui eu que morri, foi ela, mas nenhum
grito, nenhum som, nenhum sopro, A velha é que partiu a
perna, a velha é que caiu na escada, a velha é que tinha a vida
por um fio, a Esmeralda aproximou-se do tenente a enxugar as
remelas com o lenço e colocou-lhe as mãos verdes sobre o
peito, prendeu-lhe um crucifixo nas palmas, penteou-lhe o que
sobrava de cabelo, Um desses comprimidos efervescentes,
sugeriu o soldado, que põem uma pessoa em termos num
instante, se o homem continua a delirar desta maneira e a
pendurar-se das cortinas ainda lhe dá cabo da casa, meu
alferes, não viu como já lhe rasgou um reposteiro, como lhe
deitou abaixo uma prateleira inteira?, o inspector careca dos
interrogatórios de Caxias, seguido pelos dois agentes enormes,
curvou o joelho à minha frente e persignou-se com unção,
Tratava-se de um bom preso apesar de tudo, comportava-se
razoavelmente, não descompunha ninguém, não cagava na
cela, fiz um esforço enorme para abrir a boca, tentei
desesperadamente mover os braços e nada, se eu rodar o
suficiente a cabeça encontro o caixão da velha ao meu lado, e
a madrinha, com o vestido dos domingos, lá dentro, tão
amarela e fina como um cadáver de pardal, Explique-lhes
quem faleceu, tia, mostre-lhes a sua ferida na coxa, o seu pulso
parado, a sua, se for preciso, certidão de óbito, com o nome do
médico, e a assinatura, e o carimbo, e a inevitável merda
burocrática do costume, Se pretender deixar mais alguma coisa
para as obras sociais da nossa igreja faz favor, pediu o
sacristão ao Olavo na sua insistente voz gelatinosa, Esperamos
pela noite, sempre é mais discreto, disse o Lopes dirigindo-se
à Esmeralda, e enterramo-lo ali fora, junto daquele prédio a
construir, num saco de plástico ou numa caixa de sapatos,
Discrição, discrição, aprovou um dos sargentos do Ministério
a colocar-lhe aos pés um ramo de jacintos e camélias, Só em
flores foram quatro contos e quinhentos à custa do Estado,
elucidou o capitão Ananias, o major Marques não se poupou a
despesas desta feita, preveniu-me que vem logo à tarde, em
pessoa, apresentar os pêsames e entregar à família um louvor
póstumo, Eu, para mim, os colares de pérolas ou nada,
garantiu a deusa do strip-tease Melissa, com uma estrela de
papel prateado em cada seio e uma folha de parra no púbis,
essa quinquilharia dos búzios produz-me uma alergia do
caraças no pescoço, Ao menos um café duplo e uma aspirina
que assim não vamos lá, meninos, avançou o tenente-coronel a
rodar manípulos ao acaso e a aproximar um fósforo sem rumo
dos bicos do fogão, se a gente não lhe corta a bebedeira ainda
nos desata para aí aos saltos como uma lagartixa epiléptica, Os
óculos dele?, interrogou o alferes a afastar almofadas, algum
de vocês pisou os óculos dele?, a Esmeralda, atarantada,
preparava chás de velório na cozinha, a tia ergueu-se de súbito,
gigantesca, cruel, azeda, raivosa, à minha frente, Porque não o
enterram no mesmo talude onde ele meteu a cadela, porque
não no mesmo monte de terra e de ervas e de areia e
desperdícios, porque não com a mesma pá das obras, porque
não à mesma hora?, e cheirava mal e apodrecia e achava-se
morta e no entanto falava e gesticulava e zangava-se como
outrora, e o carrapito espalhava-se-lhe, cinzento, pelos
ombros, o inspector da polícia anuía, os agentes da secreta
anuíam, a Dália e o Olavo anuíam, Segurem-no que o
malandro quer atirar-se da janela, gritou uma das loiras
gémeas magrinhas, agarrem-no depressa antes que ele faça
alguma asneira, e daqui a pouco os carrosséis, daqui a pouco o
Poço da Morte, daqui a pouco a Grande Roda, daqui a pouco o
enjoativo, adocicado vapor das farturas, daqui a pouco o
mecanismo reumático dos Discos Voadores Electrónicos,
daqui a pouco a música de alumínio dos altifalantes, É sexta-
feira hoje, pensei eu, devem ser quase cinco horas, devem ser
quase sete horas, esperas-me em S. Domingos, a espreitar da
varanda, a espreitar da marquise e não me deixam ir, esfrego
os pés no capacho e não sou eu, pasmo-me como sempre com
os minúsculos objectozinhos de barro e de pano no móvel do
vestíbulo, macacos, elefantes, gatos, jarritas, flores
microscópicas, bebés de plástico, miniaturas da Torre Eiffel e
do Mosteiro de Alcobaça, um menino belga de pirilau de fora,
pisa-papéis com neve dentro, Se quiser deixar mais alguma
coisa para as obras sociais da nossa igreja faz favor, o major
Marques, de fita de condecorações no peito e boné no sovaco,
cumprimentou em silêncio a minha tia, a Esmeralda, o
inspector, o Olavo, debruçou-se para mim, como para o
espelho de um lago, com uma prega consternada na testa,
recuou um ou dois passos para o fundo da sala, desapareceu,
Talvez levá-lo a passear à rua, aconselhou o soldado, não há
ninguém que não desperte com um ventinho na tromba,
bêbedos fantasmagóricos a cambalearem, amparados uns aos
outros, na Mãe-d’Água, perto da cartolina iluminada e
anfractuosa da fonte e das árvores tristes de Lisboa, as putas
espreitavam lá de cima, da janela, num cacho de despenteadas
cabeças curiosas, Nunca julguei que aguentasse tão mal a
bebida, repreendeu-o o alferes, que ficasse assim nas lonas
com um champanhe chalado, um guarda-nocturno obeso
verificava as portas, os arbustos do Príncipe Real ramalhavam
nas trevas, Como vai isso, rapaz, perguntou o tenente-coronel,
vomitaste ou não vomitaste o cabrito todo do jantar?, o oficial
de transmissões fungava e cuspia, sufocado, aos arrancos,
abraçado a um tronco, Quando é que me aconteceu isto pela
última vez?, há quantos anos não me sentia assim?, o chão
rodopiava, as fachadas das casas ondulavam, os sapatos e as
pernas dos colegas aproximavam-se de repente
Vou cair e afastavam-se de novo, nem em Moçambique,
caralho, nem quando a ordem de nos mandarem embora
chegou, tipos tontos de cerveja aos tiros no quartel, cantorias,
gritos, uivos, cotoveladas, palavrões, silhuetas aos
ziguezagues, efusivas e entusiásticas, nem quando cercaram o
Largo do Carmo e acabou a polícia secreta e o fascismo, o
Lopes, com um garrafão de tinto apertado nos joelhos,
vociferando de punho erguido contra o capitalismo norte-
americano e o revisionismo soviético, Não posso beber
champanhe, está visto, só sangria e vinho branco, um cálice de
bagaço de quando em quando e é um pau, ajudem-me como
deve ser, chiça, amparem-me, levantem-me que me não seguro
nos ossos.
— O melhor é voltar para casa antes que acordemos a
vizinhança em peso, inquietou-se o alferes. E acabem lá de dar
pontapés nos caixotes do lixo, foda-se, quem atura os
inquilinos amanhã sou eu.
— Um bom funcionário e um bom tropa, elogiou
funebremente o major Marques. O seu pedaço esquerdista em
tempos, mas sério.
— Não se lhe conheciam poucas vergonhas, amantes, festas,
música, barulho, informou a porteira, nunca dei por desacatos
lá em cima.
— E porque é que o meu tenente se desgostou da política?,
perguntou o soldado, e já agora porque é que o meu tenente se
afastou dos seus amigos?
— E quem é essa gaja tão bem guardadinha, interessou-se o
alferes, andas metido com a mulher de um ministro ou quê?
— Se calhar é a minha, alegrou-se o tenente-coronel a
equilibrar a mãos ambas o oficial de transmissões pelo cinto.
Não te acanhes, rapaz, era um favor do caneco.
— Enterrá-lo como a cadela é uma ideia óptima, aprovou a
autoritária voz aguda da tia. Ó senhor inspector chegue lá
abaixo e peça uma pá ao guarda das obras.
Porque continuavam a construir em frente da casa, do outro
lado da rua, meu capitão, esqueletos de edifícios deprimentes,
horríveis, todos iguais, de cores pardas, onde a pele das
pessoas devia enrugar-se e amarelecer como os jornais velhos
na copa, cheirando a urina e a fezes de rato, onde cómodas e
cadeiras antigas cambaleavam nas pernas desiguais, onde
fotografias em molduras redondas se dissolviam lentamente,
deixando pestanudos olhos órfãos a vogarem nos imprecisos
rostos cor de iodo, numa barraquita entre dois tapumes um
velhote de farda escura estendia as palmas para um punhado
de pauzinhos a arder, e logo por trás dele, diminutos e
confusos, acumulavam-se montes de detritos, cones de restos,
ferros torcidos, taludes de ervas e restolho, bidés esventrados,
cachorros vadios, um silêncio de província que o ruído de latas
dos automóveis de choque e das vagonetas do Castelo
Fantasma espantavam de uma diarreia trémula de luzes.
Tirando os lares de enfermeiras, que se multiplicavam numa
transversal sem saída com os seus estendais de roupa, os seus
gira-discos frenéticos, as suas gargalhadas, os seus relatórios,
os seus agitados congressos de silhuetas nas vidraças, morava
na mesma imemorial, silenciosa paz de sempre no mesmo
odor de frango, sardinhas e açúcar queimado da noite,
Podemos subir outra vez, meu tenente?, preocupou-se o
soldado, tem a certeza que se sente fixe, meu tenente? tiros na
minha cabeça, granadas de morteiro que se abriam, como
melancias, em pevides de lume, culatras que se encaixavam e
desencaixavam como trincos, clarões fugidios iluminando as
tendas, uma camioneta, de faróis acesos, derretida pedaço a
pedaço à laia de uma barra de chocolate ao sol, Chegue lá
dentro ao armário do meu quarto, comandou a tia a um dos
agentes da polícia, e traga uma caixa de sapatos da gaveta do
meio, Tenho esperanças de que o secretário de Estado, apesar
de não simpatizar com ele, cochichou o major Marques, lhe
atribua ao menos a medalha de cobre de terceira classe por dez
anos de serviço sem castigos, Até que enfim que voltaram,
zangou-se a deusa do strip-tease Melissa, estamos para aqui
esganadas de sede e não encontramos uma cerveja sequer, A
gente gostava de colaborar no enterro, pediu a ajudante do
ilusionista, formávamos um cortejo animadíssimo até ao outro
lado da rua, não acham?, o oficial de transmissões quis gritar-
lhes Não fui eu que morri, quis explicar-lhes O único
problema que se passa comigo é que não sou capaz de me
mexer nem de falar, mas sentiu que o levantavam em peso, o
depositavam numa superfície dura, que a Dália e o Lopes lhe
fechavam por cima da cabeça o papel de seda da caixa que
cheirava intensamente a cabedal e a verniz, e que os sons (as
vozes, a música da Feira, as carruagens, os carrosséis, o
anúncio da ciganita Dora, o estralejar de azeite dos fritos)
vinham, amortecidos do exterior, morrer-lhe na orla dos
ouvidos, mais tiros, mais balas, mais cintilantes melancias de
chumbo que estoiravam, mais uma árvore a abater-se e a
rebolar na areia, Vocês, os que não iam para a mata, desdenhou
o tenente-coronel, sempre foram mais fracos do que nós,
Quem é a gaja, meu melro?, coscuvilhou o alferes, confessa-
me aqui em segredo que eu não digo nada a ninguém,
Larguem-no que o bêbedo é meu, gritou a loira magrinha,
limpem-no só do vomitado e dêem-mo, a bola amarela do
candeeiro murchava, amarrotada, num canto, Não conheço
esta noite, pensou o oficial de transmissões num olhar em
círculo, míope, de estrangeiro, não conheço esta casa, não
conheço estes aromas, estes sabores, estes cicios, não conheço
estas mulheres nem estes homens, é terça-feira, é sexta-feira,
tenho a certeza que me esperas na entrada, que me beijas, que
me sorris, que me puxas para dentro pela tímida manga aflita
do casaco, escutava, muito ao longe, o inspector a conversar
com o velhote das obras, a Dália que se introduzia, carregada
de irrespondíveis, sedutores argumentos na conversa, o Olavo
que opinava, pomposo, uma frase qualquer, entrechocar de
metais, um intervalo, uma pá que cavava, percebia as cabeças
unidas da tia e da Esmeralda por detrás das cortinas da casa,
Foste tu que bateste a bota, minha puta, estão todos enganados,
suas bestas, deu-se vagamente fé de o balançarem, de o
jogarem, desarticulado, num buraco de terra, e enquanto os
primeiros seixos, as primeiras ervas, os primeiros caroços de
terra lhe tombavam no peito, nas pernas, nos ombros, na
barriga, distinguiu, através do papel de seda da caixa, a boca
de plasticina do soldado a articular, aliviada, de uma distância
infinita, Que bom vê-lo outra vez fino, caralho, outra vez
alegre, outra vez a beber, mas que grandessíssimo susto que o
meu tenente nos pregou.
4

Umas semanas depois arranjou um segundo emprego, na


administração de um jornal cujas salas barulhentas,
perpetuamente iluminadas por globos despolidos, aboliam
melancolicamente o dia, a seguir um terceiro numa agência de
publicidade afogada em dívidas, dirigida por um português de
bigodinho, com cara e modos tétricos de dançarino
profissional valsando para a ruína, casado com uma and
chilena que trabalhara em tempos no circo e o enganava com o
fotógrafo maricas, e por fim um lugar de chefe de vendas
numa fábrica de pesticidas, onde os operários, envenenados
pelos gases, amareleciam e definhavam, a partir das três da
tarde, como melgas na agonia. No quarto de pensão em que
morava, os mugidos e as lanternas dos barcos impediam-no de
dormir, molhando-lhe os lençóis de uma gordura pegajosa de
insónia. A mulata do outro lado do tabique chegava às cinco
ou seis da manhã, pintadíssima, a tresandar a uísque, os saltos
dos sapatos dela reboavam, incertos, pelo corredor adiante, a
água do chuveiro, no extremo oposto da casa, pingava-me
directamente na cabeça, um mosquito tenaz aproximava-se-me
do ouvido em elipses sádicas, motores pontiagudos de
traineiras roíam-me com as hélices os miolos e as tripas, a
partir das sete as vozes na rua feriam a gente como ganchos de
anzóis, comprei desesperado na farmácia um tubo de
comprimidos que em lugar de me empurrarem para o coma me
embrulhavam em confusos sonhos sobressaltados e sem nexo,
e me mantinham pelo dia adiante numa prostração atónita de
leão tinhoso na sua jaula de roupa, enquanto os pesticidas me
empardeciam a vesícula e a pele, e as dactilógrafas tombavam
uma a uma, esperneando, de língua de fora, sobre as máquinas,
assassinadas pelo pó das baratas. Encontrava quase sempre no
urinol tipos estendidos de costas nos azulejos do chão, com as
peludas patas dos membros encolhidas na quitina da barriga, a
fitá-lo de órbitas esgazeadas e vazias. As flores murchavam
nas jarras como pénis que desistem, empregadas defuntas
dependuravam-se em posturas estranhas dos balcões, um ou
outro executivo esvoaçava uns segundos, moribundamente, no
escritório, tentando alcançar com os dedos o fecho da janela,
cabeceava contra uma litografia qualquer, estatelava-se em
contorções no soalho, a agitar as asas de alpaca do casaco, de
que se soltava um pólen de cartões de crédito e de traveller-
cheques, imobilizava-se por fim com uma expressão de mosca
nos pântanos de vidro dos óculos. No laboratório da cave,
eriçado de alambiques, de estufas, de retortas, de termómetros
e de bicos de gás, químicos de bata verde, enevoados de
escuros fumos letais, enrolavam-se pelos cantos como
escaravelhos ressequidos. As pessoas saíam dos restaurantes
próximos de mão espalmada na testa, a vomitar, os barcos
atracados naquela faixa de cais consumiam-se de um ácido
granuloso de ferrugem, abriam feridas, que supuravam, nos
cascos, afundavam-se num entrechocar sulfúrico de latas
inúteis, e chaminés esbeiçadas sobravam da água, semelhantes
a corolas de carvão. Todas as manhãs funcionários enérgicos,
de máscara antigás na cara, varriam para a rua dezenas de
cadáveres ocos, leves e porosos, flutuando adiante das
vassouras como folhas de plátano, que uma camioneta
reumática transportava, a gemer, para um monturo qualquer na
orla da cidade, onde as crianças se entretinham a brincar com
executivos e químicos mortos, de que as dentaduras postiças
escorregavam dos queixais numa diarreia de molares. Durante
três ou quatro meses o alferes não soube da Inês, da Mariana,
dos cunhados a quem a cocaína dilatava as pupilas e os
sorrisos, dos portugueses que vendiam por tuta-e-meia a prata
e os anéis a penhoristas encantados, dos sujeitos que
consideravam a democracia um insulto pessoal tramado pela
perversa maldade comunista, que imaginavam a Rússia a
tenebrosa Incarnação do Inferno, e esperavam que a Senhora
de Fátima dissolvesse foices e martelos numa serena, piedosa,
mágica baforada de turíbulo de cónego. Fizera entretanto
amizade com um biólogo libanês, autor de uma tese em seis
volumes de letra apertada acerca das aberrações sexuais dos
gansos, e inquilino do quarto vizinho da retrete da pensão, que
um odor de cagalhões antiquíssimos eternamente impregnava,
e acompanhava depois do emprego, de bar em bar e de cerveja
em cerveja, aquele minucioso e lúcido conhecedor dos apetites
carnais e das misérias íntimas das aves, escutando a noite a
arfar no meu pescoço, os gritos de boi ferido dos navios, as
altercações dos empregados e das putas, um piano na sombra,
punhos de camisa sobre as teclas, dedos que se retraíam e
avançavam, músicas americanas, inglesas e espanholas que
nos rodeavam a nuca como gavinhas, nunca me achei tão bem
apesar da azia e do desconforto da garganta, apesar do tenaz,
lamuriento relato de abracadabrantes coitos de penas, nunca
senti a tua falta, filha. O libanês preparava um pequeno
aditamento, em três volumes compactos, aos seis anteriores,
escrevia de joelhos, em cima da cama, rodeado de atlas
ilustrados (pavões, perus, cisnes, catatuas, avestruzes), frascos
de aguardente, cadernos de notas, migalhas, nódoas,
pedacinhos de tabaco, o retrato de uma velha à cabeceira,
livros inumeráveis ao acaso pelo chão, a única janela abria
para um pátio interior ou uma labiríntica sucessão de quintais
que se perdiam, entre casas com herpes, a caminho das docas,
as ondas dobravam-se envergonhadas sobre si próprias no
passeio lá em baixo, o espelhinho da parede reflectia edifícios,
varandas, rolos de nuvens, o céu sujo, fumo, o libanês, de
indicador no ar, dissertava com arrebatamento sobre as
diversas, impensáveis e voluptuosas modalidades de coito nas
galinhas da índia, exemplificadas, através de esquemas a lápis,
em envelopes timbrados da Academia Ornitológica Brasileira,
eu escutava-o, estarrecido, na borda da cama, provando por
desfastio das diversas garrafas de aguardente poeirenta
espalhadas nos lençóis, até que um dia, sem me dar conta, pedi
para telefonar à dona da pensão, uma magrinha nervosa que
patrulhava constantemente o corredor, armada de uma
vassoura terrível, perseguindo ratos e aranhas, marquei o
número do apartamento a escutar, nas orelhas, as batidas
irregulares do meu sangue, um toque, dois toques, três toques,
quatro toques, cinco toques, Enganei-me nos algarismos,
pensou ele, Voltou para São Paulo para casa dos pais, pensou
ele, Mora com a senhora de cabelo roxo no Rio de Janeiro e
passeiam de mamas ao léu e mão dada na praia, pensou ele,
um clique, um baque metálico, os músculos todos parados,
suspensos, aguardando, a magrinha passou a trote enxotando
um bicharoco infeliz com o piaçaba disforme, e finalmente,
após uma eternidade de abismo no qual o corpo mergulhava,
perdido, rodopiando em sucessivas volutas de angústia, a voz
familiar da Inês aqui mesmo, pegada a mim, viva, de carne,
interrogativa, estremunhada (Amo-te), furiosa (Interrompi-te o
sono, ora que merda), Alô.
— A mim quando me acordam a meio da noite fico pior que
estragada, avisou a ajudante do ilusionista, deitada de lado no
sofá, a coçar a nádega com a unha escarlate do polegar. Passei
uns meses com um maduro que às quatro da manhã, pumba,
acendia a luz e desatava a abanar-me porque não conseguia
dormir.
— A Mariana não está comigo, rosnou a Inês, foi a Londres
com a minha mãe ao médico dos olhos. E ouve lá, a propósito,
achas que isto são horas de se telefonar a uma pessoa?
— Célia, chamava nas trevas o gajo das insónias, viste por
acaso o frasco dos calmantes, Célia?
— Andava positivamente a cair da boca aos cães, queixou-
se a ajudante do ilusionista. Cabeceava como uma velha pelos
cantos, com as olheiras que trazia tinha de me pintar o dobro
para os espectáculos. Mal me vi livre dele dormi quase uma
semana seguida.
— Não, está óptima, nunca esteve tão bem, bocejou
vitoriosamente a Inês. Mas a mãe precisava de lá ir para mudar
as lentes dos óculos e pelo sim pelo não levou-a. A Ilka diz
que nunca se perde nada em ser-se observado por um
especialista no estrangeiro.
— Na tua mesa de cabeceira, Célia, chiava o homem,
procura na gaveta, tem paciência. Só queria que soubesses os
pesadelos horrorosos que me deram.
— Era vendedor num stand de automóveis, pormenorizou a
ajudante do ilusionista a massajar o umbigo. Nunca vi
ninguém tão bem falante, tão seguro de si, tão de ponto em
branco. E depois, à noite, mal vestia o pijama, começava a
empalidecer, a tremer, a rebuscar pastilhas nos armários, a
agarrar-se a mim, a gaguejar, Ai que me sinto esquisito, Ai que
estou todo suado, Ai que me dá uma coisa, Ai que se me
abandonas agora pára-me o coração de certeza.
— Talvez voltem em março, interrompeu-o a Inês, a mãe
tem vontade de ir ainda à Suíça, à reunião da família, por
causa do banco. O que eu não entendo é esse teu interesse
agora pela Mariana, se te estiveste durante séculos nas tintas
para ela, se nem uma só vez a procuraste.
— Não estou bem, Célia, chorou-se o homem a empurrar os
cobertores. Não estou nada bem, falta-me o ar, trago um aperto
aqui, traz-me um copo de água depressa para engolir a
cápsula.
— E o cuzinho lavado com perfume, e um mordomo às
ordens, e um chofer à porta?, enfureceu-se a ajudante do
ilusionista, danada, a enrolar-se nos cobertores, a tapar a
cabeça com a almofada por causa da luz do candeeiro, a
empurrar-lhe as mãos trémulas com o cotovelo em gancho. Vai
para o caralho, deixa-me em paz, não me chateies.
— Experimenta falar em abril ou maio, propôs
generosamente a Inês. Apesar das aldrabices com que afligiste
os meus pais não me oponho a que de quinze em quinze dias a
visites. Mais do que isso não queiras mais nada, nem sonhes,
deves estar a receber uma carta do advogado com as condições
do divórcio.
Mas nem em abril nem em maio, meu capitão, telefonava de
tempos a tempos e ninguém me respondia, a magrinha,
gloriosa, mostrava-me de longe um rato morto, suspenso pela
cauda, abatido pela vassoura sinistra, o biólogo debruçava-se
com fervor sobre os factores psicológicos da ejaculação
precoce nas rolas, o advogado propunha, num jurídico
palavrório florido, uma pensão de milionário, a possibilidade
de estar com a Mariana duas horas de três em três semanas,
autorização para a ver só depois do acordo, em junho, mal
articulei Está?, desligaram-me o auscultador na cara, no dia
seguinte pendurei-me do botão da campainha do apartamento,
o intercomunicador berrou um Alô distorcido, e eu, da rua,
possesso, Quero a minha filha, sua cabra, quero a minha filha,
sua puta, as pessoas viravam-se surpreendidas, para olhar, ao
cabo de um par de horas disto surgiram a trote, de uma esquina
três pretos enormes, um de gravata sebosa, mais idoso, e dois
vestidos como os estivadores do cais, certificaram-se de que
era eu quem tocava, encostaram-me à fachada, os grossos
hálitos deles sopravam-me no nariz, jogaram-me ao chão a
soco e a pontapé, o lábio, cortado, ardia-me, doíam-me as
costelas, um dos sapatos perdeu-se na valeta, a magrinha dos
ratos curou-me diligentemente os ossos com ligaduras
pressurosas, o biólogo abandonou por um instante as
dificuldades privadas das rolas para me fornecer a morada de
um primo jurista, baratíssimo, perito, segundo ele, em dramas
conjugais, e encontrei um sujeito muito escuro, descalço, a
refrescar-se com um leque de palha à entrada de uma casita
imunda, no interior da qual um macaco, preso por uma
corrente a uma pega de armário, destruía com gáudio, em mil
fragmentos que esvoaçavam no escritório, processos, petições
e códigos. O perito instalou-se à secretária a coçar a barriga,
afastou o animal com uma palmada, extraiu uma garrafa da
gaveta para estimular o entendimento e as tripas, endireitou
sem vontade dois ou três livros em ruínas, e perguntou-me,
numa pompa tropeçante de alcoólico, Então o que há de novo,
engenheiro?, de forma que claro que acabei por aceitar as
condições dela, meu capitão, de forma que claro que acabei
por assinar todos os papéis que me mandaram, meu capitão,
criança entregue à mãe, sim senhor, nulo poder do pai, sim
senhor, obrigação de uma mensalidade de cinquenta por cento
do meu vencimento, sim senhor, o advogado descalço
repreendia o macaco e suspirava Vamos por mau caminho,
engenheiro, estamos a ceder demais, engenheiro, mas os pretos
enormes entraram-lhe de roldão uma tarde pela cabana dentro,
deslocaram-lhe um ombro, quebraram-lhe a loiça que restava
inteira, e o homem desatou de imediato a colaborar com um
empenhamento tocante, Veja a miúda de quatro em quatro
semanas, veja-a de dois em dois meses, um intervalo mais
pequeno é habituá-la mal, engenheiro, os filhos querem-se
tratados com distância, engenheiro, se entregar noventa por
cento do que ganha ainda lhe sobram uns tostões no fim do
mês, chiça, livrar-se desta sem mais chatices é o milagre da
sua vida, amigo, o macaco arremedava-o numa prateleira,
derrubando fichas, mastigando lápis, inspeccionando os
testículos, catando pulgas das virilhas, o jurista apertou
solenemente ao pescoço uma gravata da espessura de um
atacador, calçou a custo umas enlameadas botas gigantescas,
que limpou previamente na manga da camisa, retirou de um
prego um casaco outrora branco, decorado de um mapa-mundo
de nódoas, cuspiu para o chão de terra, a saliva borbulhou-lhe,
diminuindo, entre os pés, e acompanhou-me, recitando orações
libanesas e fórmulas jurídicas em latim, ao edifício
desmantelado do tribunal, a achatar-se sob o sol no meio de
palmeiras e de poças de água podre, num largo de prédios
desiguais, de cujas cristas de telhado escanzelados pássaros
enormes nos observavam numa indiferença calcária.
— Célia, implorava o fulano das insónias, tem dó de mim e
chama uma ambulância, Célia.
Paredes esventradas, corredores a caírem, secretárias
sonolentas, retratos de militares gordos a evaporarem-se nas
molduras, polícias mal cheirosos, sujeitos que circulavam com
resmas de papéis ou tabuleiros de café, e depois um
compartimento maior, meu capitão, parecido com uma sala de
aula com carteiras e bancos para os alunos ou o público, onde
um vapor de urina pairava acidamente em elipses vagarosas,
uma espécie de trono com um velhinho de óculos escuros a
tossir encarrapitado em cima, a Inês, com cara de órfã digna,
instalada perto de um senhor bem vestido, de cabelos
grisalhos, que folheava tranquilamente o conteúdo de uma
pasta, nenhum deles olhou para nós quando entrámos, nenhum
deles pareceu escutar as gastas botas enormes que esmagavam,
como patas de rinoceronte, as tábuas soltas do sobrado, o
libanês curvou-se em sucessivas vénias de canivete para o
velhinho dos óculos, que lhe respondeu com uma careta de
impassibilidade desgostada, um homem surgiu de repente
detrás de uma cortina e comandou-lhes asperamente que se
sentassem, O oficial de diligências, elucidou-me baixinho o
advogado, e aquela múmia centenária é o juiz, Silêncio, berrou
severamente o das ordens, à menor falta de respeito pelo
tribunal evacua-se imediatamente a sala, Que palavra tão feia,
pensei eu, que verbo horroroso, evacuar, e tu não tinhas
mudado nada nestes três meses, Inês, o mesmo perfil, as
mesmas maminhas curtas, as mesmas nádegas gémeas
encostadas uma à outra numa filipina de carne, a mesma
maneira de pousar o queixo na palma, de afastar o cabelo para
trás num aceno rápido do pescoço, de esvaziar a luz dos olhos
quando conversavam contigo, Com que direito falas tu dos
outros, protestou o oficial de transmissões, se assim que
puseste a vista nessa fufa te borraste logo de paixão.
— Isto todas as noites, imaginem, insistiu a ajudante do
ilusionista, digam lá se não é de endoidecer num instantinho.
O senhor bem vestido trucidou o libanês (que entretanto
descobrira, aterrado, os três pretos a fumarem num dos bancos
de escola lá ao fundo) com uma chuva de argumentos
barrocos, estenografados pelo oficial de diligências que me
atirava de quando em quando, não sei porquê, sangrentos
soslaios de reprovação, um dos pretos, constipadíssimo, não
parava de fungar nas minhas costas, as palmeiras chapinhavam
contra os vidros, o velhinho cabeceava no seu púlpito, o meu
advogado levantou-se com ímpeto, De três em três semanas
com certeza, Duas horas no máximo é evidente, mais de duas
horas que exagero, Sessenta por cento do ordenado, que
coincidência, era justamente o que ele tencionava propor, Não
contesto em nenhum ponto, ilustre colega (e os pretos
pesavam-lhe toneladas de ameaças nos ombros), as suas
doutas e fundamentadas alegações, o abandono do lar, as
injúrias, os incómodos morais, a personalidade estruturalmente
neurótica do meu cliente, o oficial de diligências interrompeu
os seus escritos, ergueu-se e bateu com os nós dos dedos no
rebordo do trono papal do juiz, que despertou em sobressalto,
como os bebés, a agitar ao acaso os espasmódicos
membrozinhos minúsculos, Quem me manda a mim fiar no
maluco da ejaculação das rolas, pensou o alferes, quem me
manda a mim ser parvo a este ponto, o senhor bem vestido
sorria abstractamente contemplando as unhas, a Inês sorria de
leve como os mártires nas pagelas, o libanês suava sem parar
orgasmos de aflição, o juiz compôs-se como uma cegonha na
sua chaminé de madeira, flutuou tremulamente à roda o brilho
opaco das lentes, baliu um arroto de cabra Está decretado o
divórcio, as ameaçadoras fungadelas do preto desvaneceram-
se por completo, um tipo de farda enxotou-nos para a rua com
gestos irritados de quem afasta pintos do quintal, um sol difícil
iluminava as poças de água cá fora, um ventinho morno
desarrumava as árvores, devia ser perto do crepúsculo porque
a sombra das casas afilava-se e movia-se, numa rotação lenta
de pétalas, à maneira de um girassol de trevas à procura da
noite, regressámos em silêncio, com o mar a gemer-nos no
flanco, ao escritório do advogado onde o macaco, sentado no
chão, se banqueteava com os restos desmantelados de um
dicionário, o homem de leis descalçou-se a insultar as botas
(Não sabem fazer sapatos nesta terra, engenheiro), pendurou
no seu prego o planisfério inconcebível do casaco e o atacador
sujo da gravata, tombou numa cadeira de balouço de palhinha
que parecia quebrar-se e estilhaçar-se a cada movimento do
seu corpo, jogou as unhas pretas a um frasco de aguardente, e
afirmou com satisfação, a esfregar a breguilha das calças na
semiobscuridade, Tratámos-lhe da saúde, engenheiro, o meu
discurso resultou em cheio apesar da má vontade do juiz,
destruí-os, arrasei-os, pulverizei-os por completo,
conseguimos muito mais do que eu cuidava ao princípio,
sessenta por cento do ordenado é uma autêntica miséria que
qualquer pessoa dá.
— Toda a santa noite a chamar-me, toda a santa noite a
ensaboar-me o juízo, disse a ajudante do ilusionista a abanar a
cabeça. Levei mais de um mês a tomar vitaminas para me
recompor, já vêem.
O advogado escarrou várias vezes para o chão, estudou os
escamosos intervalos dos dedos dos pés, concentrou-se em
carrancudas meditações intermináveis, acendeu um candeeirito
articulado por cima do macaco que dormitava numa arca,
apanhou uma caneta de uma pirâmide de lixo, limpou o aparo
no cabelo e começou a somar parcelas difíceis num dorso de
factura, discriminando em voz alta Papel selado, tanto,
gorjetas aos contínuos para acelerarem o processo, tanto,
custos da acção, tanto, viagens de autocarro ao tribunal para
me informar do andamento das coisas, tanto, conferências
privadas com o colega da parte contrária, tanto, desenhou um
risco por baixo, enganou-se várias vezes, acabou por chegar a
uma conclusão qualquer porque lançou com desprezo a caneta
para um ângulo na sombra, desamarrotou o papelucho com os
dedos, exibiu-mo de longe, entornou um minuto de frasco nas
goelas, e propôs com estima, com amizade, numa surdina
cúmplice, Deve-me cem mil cruzeiros e não se fala mais nisso,
engenheiro.
— Célia, gania o vendedor de automóveis a apertar o peito
com as mãos suadas, se não chamas depressa o enfermeiro
aqui do prédio ao lado rebento não tarda nada, Célia.
— Cem mil cruzeiros?, perguntou o alferes, espantadíssimo.
Você endoideceu ou quê?
— Uma injecção na veia, Célia, soluçava o homem, uma
botija de oxigénio, uma garrafa de soro, um milagre qualquer
que me salve.
— Quem fala em cem fala em cinquenta, reduziu
prontamente o advogado. Não é o dinheiro que há-de estragar
esta amizade, engenheiro.
Dezenas de borboletas de celofane preto ondulavam em
redor da lâmpada, vagonetas ou guindastes ou gruas
enrolavam-se nas trevas em impulsos metálicos, o macaco
baralhava alegremente uma gaveta, virando e revirando, nas
falanges pretas, blocos, agrafadores, facas de cortar papel,
borrachas, fitas de máquinas de escrever, rolos de guita,
calendários, o advogado, enterrado na cadeira, navegava de
frasco em frasco com uma indefinível expressão de náufrago
feliz, de cinquenta passamos para trinta, de trinta para vinte e
de vinte para dez, concluímos o negócio por cinco mil
cruzeiros em doze prestações mensais (Não é o dinheiro que
há-de estragar esta amizade, engenheiro), para selar o pacto
provei da aguardente do jurista, que me transformou o
estômago num ouriço sulfúrico, eriçado de mil espinhos de
azia, as órbitas dele flutuavam desgovernadas, de ruga em
ruga, à superfície da pele, acabou a ressonar de boca aberta
enquanto as nádegas se lhe afundavam lentamente no tampo
roto de palhinha, e os joelhos se lhe aproximavam do queixo
numa postura de feto decrépito a tresandar a álcool, a água
revolvia-se, encarapinhada, sob o pontão, como se mordesse
molemente os caboucos da casa, o ouriço apequenou-se ao
segundo gole, tornou-se inofensivo ao terceiro e desapareceu
por completo ao quarto, o alferes saiu a tropeçar nas pedras,
nas caixas de cartão e nas latas vazias que reboavam no
escuro, cães que dormiam à porta das cabanas vinham farejá-
lo, enfisematosos, de estúpidas pupilas bicudas amarelas, no
domingo seguinte, encolhido sob uma chuvinha tenaz, fui ao
apartamento de Santos (e desta vez nenhuns pretos enormes, e
desta vez nenhuns pontapés, nenhuns insultos, nenhuns
murros, e desta vez uma exclamação que o intercomunicador
ampliava, Ah, és tu?, e o fecho logo aberto com um pulo)
visitar a Mariana que soluçava de terror mal me tentava
aproximar do parque, tinham mudado a disposição dos
móveis, havia gravuras que eu não conhecia, sofás obesos, um
retrato da senhora de cabelo roxo numa mesinha, entre o
candeeiro e o telefone, a Inês, de braços cruzados, vigiou-me
todo o tempo, encostada à porta, num desprezo tenso, disse-lhe
Olá de longe e respondeu-me com uma expressão evasiva,
pareceu-me mais gorda, com melhores cores, mais bem
vestida, mais bonita, a Mariana espiava-me apavorada
brandindo uma enervante roca de plástico, cortinas novas
também, os discos alinhados numa estante especial, um
exaustor de fumos na cozinha, um dúbio perfume doce pela
sala, ao cabo de uma hora levantei-me a coxear, com um
joelho dormente, da almofada desconfortável em que me
sentara, com o isco inútil de uma boneca de pano no colo,
tentei uma última festa à Mariana que se afastou
imediatamente de mim, pisando brinquedos, para o extremo
oposto do parque, do corredor para o vestíbulo apercebi-me da
cama nova do quarto de dormir, mais baixa, mais macia, mais
larga, de um segundo retrato da senhora de cabelo roxo, de
fato de banho e penteado armado, com um cão semelhante a
uma borla de pó-de-arroz nos braços, doía-me respirar, os
membros ondulavam-se, disse Até à próxima, Inês, e era uma
voz diferente, meu capitão, uma voz inesperada, desiludida,
aguda, que juntava com dificuldade as palavras, estendi a boca
para lhe beijar a bochecha e o corpo dela endureceu, e a cara
dela, franzida, recuou, olhava-me como se eu fosse um bicho
estranho, gelatinoso e esquisito, como se nunca tivesse estado
casada comigo, como se nunca me tivesse visto nu, como se
nunca tivesse sentido a minha pila dentro dela, como se eu lhe
desse nojo, meu capitão, fechou-me a porta na cara antes que o
elevador chegasse, desci com um cavalheiro japonês e uma
velhinha marreca, cada qual no seu canto da caixa metálica
que assobiava e tremia, a pensar Vou lá acima e parto-te a
tromba com um coice, a pensar Vou lá acima, desfaço a
mobília e prego-te um enxerto de porrada até me pedires
desculpa de cócoras, cá fora o porto, coalhado de navios,
cheirava ainda pior do que o costume, a vazante abandonava
nas docas um visco de vómito, que os reflexos das lanternas
das popas afogava, algas filamentosas, ossos de tábuas, cestos
de vime, desperdícios confusos, uma bandeira turca dançava
num mastro, um tipo de boné içava um estandarte polaco num
cargueiro, Quero ir para Portugal, pensou o alferes junto à
entrada do prédio, o que faço eu aqui misturado com estas
águas sujas, estes barcos, estas filhas em pânico que não me
reconhecem e me excluem, esta casa estrangeira, fechada
sobre a minha ausência como um búzio indiferente, Célia,
baliu o vendedor de automóveis, não sejas desumana, não me
deixes morrer desta maneira, Célia, e nessa noite, meu capitão,
o biólogo e eu, percebe, esgotámos sozinhos o stock de cerveja
da cidade.
— E o pior, apesar de tudo, ainda não foi esse, disse a
ajudante do ilusionista a tentar compor os arames e as hastes
de plástico do candeeiro de papel amarelo, com o gajo que
morria de madrugada ainda me entendia eu. Mas logo a seguir
calhou-me na rifa um chalupa que me obrigava a enfiar o
vestido de noiva da mãe antes de se meter nos lençóis comigo.
Chegava-se a um baú, puxava lá de dentro, com cuidados de
dentista, uns panos esburacados e traçados, um véu pestilento,
uma coroa de flores de laranjeira de cera, estendia-me como
um tesouro aquela merda podre, ordenava-me Fecha-te no
quarto e põe isto depressa, ao acabares tira as rosas da jarra,
segura-as na mão e trata-me por meu filho quando me
chamares, e aparecia-me de calções de veludo azul, franja no
cabelo e camisa de folhos, a repetir Mamã mamã mamã mamã
mamã mamã em uivozinhos de criança.
Para falar verdade não foi só nessa noite, meu capitão,
continuámos a beber, como hoje, três ou quatro dias seguidos,
as horas e as recordações confundiam-se-me, líquidas,
baloiçando como alforrecas, na cabeça, o libanês falava sem
parar da requintada, infinita voluptuosidade das galinhas,
lembro-me vagamente de mulatas gordas em cubículos
sórdidos, de negros desdentados, de carapinha grisalha,
abrindo as gengivas enormes em gargalhadas sem som, de me
roubarem a carteira, os documentos, as chaves, o dinheiro, de
caminharmos abraçados pela praia, ao sol, arrotando,
assobiando e insultando-nos, despejando garrafas de cachaça
no cocuruto um do outro, piegas e felizes, até encalharmos de
novo na pensão, no meio dos atlas, dos dicionários, dos
apontamentos, do macaco excitado pelo odor do álcool,
pulando de banco em banco em soluços de angústia, de um
albatroz empalhado que nos encarava com fúria de cima de
uma pilha de livros, e quando regressei, entontecido, com um
gosto azedo na língua, à fábrica de pesticidas, encontrei o
gabinete da direcção repleto de administradores defuntos, uma
derradeira dactilógrafa a estrebuchar, agónica, no soalho, o
absoluto, sólido, mineral silêncio que se segue às catástrofes
ferroviárias instilava nos escritórios uma desabitada atmosfera
polar, em que o menor objecto (uma agenda, uma borracha,
um carimbo, um pote de loiça com canetas) adquiria de súbito
um significado ao mesmo tempo misterioso e óbvio, paguei-
me a mim próprio na tesouraria deserta, onde as gavetas
abertas se aparentavam a mandíbulas sem força, com
contínuos-baratas a secarem sob as mesas, no bairro inteiro
criaturas olheirentas cambaleavam, pela rua, à minha frente,
até tombarem nas esquinas com um suspirozinho estagnado,
árvores idênticas a depenadas couves murchas dobravam-se,
moles, para o chão, o biólogo, condoído, empregou-me no
laboratório onde estudava agora a melancolia pós-masturbação
dos mochos, num compartimento forrado de gaiolas com
dezenas de pássaros de espessas sobrancelhas franzidas e
aflitas, pupilas hipermétropes dentro, arrepiados por lâmpadas
fortíssimas e silvos de aparelhos complicados, repletos de
botões, ponteiros, mostradores, termómetros, agulhas, o
libanês e uma assistente vesga, que cheirava intensamente a
pouca água e a equações matemáticas, ambos de bata e óculos,
atarefados e prolixos, espreitavam através das grades ditando-
se um ao outro apontamentos delirantes, ao alferes cabia-lhe
alimentar os animais de generosos almoços de lagartixas,
ratazanas e lesmas, escovar-lhes as penas e raspar as fezes do
fundo das jaulas com uma espécie de faca ou de colher de
pedreiro, um idoso cavalheiro sardento, com sotaque polaco,
que todos tratavam respeitosamente por professor
Rdwkvsmky, especialista famoso em esperma de corujas,
vinha de tempos a tempos examinar o ventre dos bichos com
uma lupa crítica, aconselhava que se inundassem as paredes de
fotografias de lamparinas de azeite, de sinos e de campanários
de igreja (Não há como a religião para exaltar os mochos,
sustentava ele com energia, não há como o catolicismo para
estimular os instintos mais libidinosos e perversos dos
pássaros), andámos uma semana inteira, de nariz no ar, a
retratar sacristias e capelas, roubámos badalos de portão,
pendurámos crucifixos nos bicos do gás, colocámos
triunfalmente um gigantesco Santo António de barro, com um
Menino Jesus parecido com Mickey Rooney ao colo, no centro
da sala, e as corujas, meu capitão, cada vez mais tristes, mais
friorentas, mais mudas, mais imóveis, mais nervosas,
escondidas, a tremer, nos ângulos das gaiolas, o professor
Rdwkvsmky procurava sem sucesso estimulá-las com um
gancho comprido, com um cabo de vassoura, com um pau,
com uma agulheta de água, o libanês e a vesga acenavam-lhes
inutilmente com cartazes do Vaticano, da Capela Sistina, da
catedral de Chartres, substituíram o Santo António monstruoso
por um Cristo em tamanho natural, de cabeleira de estopa,
bochechas côncavas de saudades de bifes, verniz de gotas de
sangue na testa e no pescoço e uma cruz terrível ao ombro, a
fitar-nos acusadoramente todo o tempo como se fôssemos os
Pilatos das aves, tropeçávamos-lhe nos calcanhares enormes e
nas sandálias de alemão em férias e apressávamo-nos a rezar
Pais Nossos de desculpas, as corujas alheadas de quaisquer
exercícios sexuais, piavam lastimosamente nas gaiolas ou
davam em morrer, sem aviso, amontoando-se em grumos
acinzentados de penas, e as patas delas, meu capitão,
aparentavam-se aos repelentes dedos enrugados e duros,
cartilagíneos, da senhora de cabelo roxo que me abriu a porta
do apartamento de Santos na minha visita seguinte à Mariana,
uma velha vaporosa, simpática, desenvolta, carnivoramente
sonsa, de membros picados, nos raros espaços desprovidos de
pulseiras e anéis, pelas sardas pálidas de menopausa, que me
pediu desculpa da desarrumação (não vi desarrumação
nenhuma), se deslocava de quarto em quarto numa
familiaridade proprietária, me oferecia bebidas (Sumo de
laranja?, uísque?, gin?), me oferecia cadeiras, me oferecia
cinzeiros, me gabava o aspecto (Fica muito melhor assim um
bocadinho mais magro, Jorge), pegava na Mariana, sorria-lhe,
fazia-lhe festas (A Inês deve estar a chegar não tarda, foi lá
abaixo num instantinho ao supermercado, prometeu-me que
não demorava nada), indignava-se com os comunistas (Só falta
transformarem Fátima na Praça Vermelha, Jorge), se enojava
com os jornais portugueses (Pagos por Moscovo, acredite,
orientados pela Embaixada deles, eu não tenho dúvida
nenhuma acerca disso), me participou o falecimento do marido
num erguer de sobrancelhas resignado (Um cancro do pulmão,
imagine, um sofrimento horroroso, coitadito), a Mariana
seguia-me, inquieta, no pânico de eu me chegar a ela e lhe
tocar, a mulher instalou-se à minha frente, cruzou o
repugnante emaranhado de ossos e tendões das pernas, e o
alferes pensou, surpreendido, Que filho da puta de interesse
encontras tu nesse fóssil, Inês?, pensou Como as dobradiças
das articulações lhe devem ranger, empenadas, na cama,
pensou Qualquer dia está numa cadeira de rodas a urinar-se
nas cuecas, a borrar-se, a babar-se, e tu, apaixonadíssima, a
limpares-lhe o cocó, a dares-lhe colheradas de remédio, a levá-
la ao médico, a ler-lhe os jornais, a conversar com ela, pensou
na casa da Mãe-d’Água e na fonte nas árvores e nos
imperiosos telefonemas azedos da sogra, pensou na vivenda de
Carcavelos e nos cães enormes aos pulos entre os buxos, Não
acha que a Mariana é a mãe por uma pena?, interrogou a velha
a devorar as bochechas da miúda com os longos,
antropofágicos dentes amarelos, e nesse instante escutou-se
um estalido no vestíbulo, um ruído de trinco que se solta, a tua
voz cantada Vou arrumar as mercearias na cozinha, querida, a
senhora de cabelo roxo cessou por um momento de mastigar a
minha filha e sorriu-me, E se eu lhe quebrasse aquele
candeeiro de porcelana nos cornos?, imaginou o alferes, e se
eu lhe espetasse este punhalzinho de cortar livros na barriga?,
Que tal se portou a Mariana, amor?, perguntou a Inês, do topo
de vertiginosos sapatos de salto alto, à entrada da sala, E se eu
matasse as duas com a faca do pão?, pensou o alferes dando-se
de repente conta de que cheirava a merda de coruja e a
relentos de cachaça, Boa tarde, disse ele num murmuriozinho
inaudível sem olhar ninguém, desceu pelas escadas,
aparvalhado, trôpego, procurando tranquilizar as batidas
díspares do coração e ordenar as ideias que se evaporavam, se
encavalitavam, se fundiam, Apliquem-lhe choques eléctricos
no pénis três vezes ao dia, mandou o professor Rdwkvsmky a
apontá-lo ao libanês e à vesga, temos de conseguir que se
masturbe eficazmente como os outros mochos, o prazer
solitário distende os nervos e impede as úlceras, agitem-lhe
diante da gaiola cartazes de mulheres nuas, cantoras,
bailarinas, actrizes, antigas namoradas, prostitutas, tragam um
gravador com abundantes sons de coito, falem-lhe na
professora loira, muito direita, que lhe ensinava francês no
liceu, na catequista de bigode, nas mães inacessíveis dos
amigos do colégio, nos verões inquietos da Ericeira, nas
raparigas que o faziam vibrar, à noite, de desejos obscuros,
entrou no laboratório a patinhar como um pássaro, encandeado
pelas lâmpadas que reverberavam nos azulejos, intrigado pelos
ponteiros e pelos visores dos aparelhos, possuído de uma fome
danada de lagartixas e de ratazanas e de lesmas, cocei as
plumas do peito com o bico, defequei um rápido cuspo
amarelo nos azulejos do chão, arrumei-me perplexo no ângulo
da jaula, a vesga rodou um botão e uma tempestade de dobres
a finados inundou solenemente o compartimento, o professor
Rdwkvsmky picava-o com um pau aguçado nos ombros, nos
testículos, no peito, Masturba-te, gritava ele, tira cá para fora
depressa umas gotinhas decentes de esperma, exibam-lhe um
retrato da filha a fim de lhe entusiasmar como deve ser as
glândulas reprodutoras, Cinco mil cruzeiros em aguardente e
dicionários para os almoços do macaco, explicava o advogado
a calçar e a descalçar as enlameadas botas gigantescas, cinco
mil cruzeiros pelo meu discurso é uma bagatela, engenheiro,
Se ele se divorciou de facto porque raio é que não volta para
cá?, perguntou o pai a tossir na poeira de chumbo da
tipografia, na grande casa abandonada de Carcavelos, onde os
buxos cresciam numa 548[António Lobo Antunes fúria hirsuta
de cabelos, os lobos d’alsácia devoravam rosnando as
alcatifas, os desenhos dos tapetes persas, as almofadas dos
sofás, o damasco das cortinas, derrubavam a televisão avariada
do meu sogro, as consolas do século dezoito, os armários de
vidro repletos de pratos chineses e os bustos de gesso do avô,
Dois centímetros cúbicos de esperma, suplicava-me o biólogo,
ao menos dois centimetrozinhos cúbicos de esperma, E além
de o tratar por filho, disse a ajudante do ilusionista, tinha de
lhe atar ao pescoço um guardanapo com o pato Donald
estampado e enfiar a sopa na boca com uma colher de plástico,
o alferes começou a caminhar na direcção do porto, na
direcção do mar, prédios melancólicos sucediam-se
monotonamente uns aos outros, o lixo acumulava-se nas ruas
em pudins nauseabundos, o tráfego, ininterrupto, ensurdecia-o,
semáforos ora amarelos, ora vermelhos, ora verdes, mudavam
constantemente de cor numa mecânica pressa dolorosa, E
quanto tempo depois voltaste a Portugal?, interrogou o oficial
de transmissões, e quanto tempo te aguentaste ainda nessa
trampa de terra?, Tragam-lhe a mulher se for preciso,
aconselhou o professor Rdwkvsmky, arranjem um divã, um
espelho para o tecto, ligas pretas, cuecas de renda, verniz de
unhas, batons, dispam-na, deitem-na debaixo dele, por cima
dele, ao lado dele, mas consigam, lembrem-se que o Estado, os
contribuintes, as fundações que colaboram connosco, o país
inteiro, vos paga para estudar cientificamente a sexualidade
dos pássaros, para revelarem ao mundo o erotismo insólito dos
mochos, Cinco mil cruzeiros, engenheiro, rosnou entre dois
goles o advogado descalço, a catar parasitas dos dedos dos
pés, o que são cinco mil cruzeiros nos tempos que correm, A
separação fez-nos bem a todos, aprovou maternalmente a
senhora de cabelo roxo, enrolando um dos colares no
indicador subitamente cúmplice, você melhorou imenso, a Inês
melhorou, até a Mariana melhorou, daqui a uns meses, a
continuar assim, aposto que se entendem às mil maravilhas
como Deus com os anjos, contornei um cais apodrecido,
escuro, quase deserto, só com um bote atracado a dançaricar
na água negra e rolos de cordas e bóias de cortiça abandonadas
nas pranchas de madeira, um segundo pontão contra o qual
traineiras oxidadas afocinhavam como vacas nos estábulos, o
cremoso odor espesso das ondas provinha, não da água, mas
dos armazéns, amontoados na sombra onde se desbotavam
grandes letras vermelhas, siglas, números, emblemas, Tenho o
mar atrás de mim, pensou o alferes, tenho o mar, que esquisito,
inclinado sobre o meu ombro como uma cabeça espantada,
aproximou-se dos reflexos invertidos das lâmpadas dos barcos,
que cintilavam e se moviam como vermes numa espécie de
silenciosa e quieta planície escura, um ventinho ácido
desarrumava-lhe os cabelos, desarrumava-lhe as penas,
Masturbe-se, gritou o professor Rdwkvsmky, e ele encolheu-se
a tremer no poleiro de um molhe, o libanês e a vesga desceram
as escadas de um paquete sueco e regulavam, à sua volta,
termostatos e voltímetros, a ajudante do ilusionista ascendeu
do soalho num vagar submarino e atirou a bola de papel
amarelo do candeeiro pela janela fora, na direcção da manhã
hesitante da rua, Depois disso tudo demorou-se muito tempo
no Brasil, meu alferes?, questionou o soldado a picar-lhe
também o ventre com um pau, ou um gancho, ou um anzol, ou
um arame, a música de sinos do laboratório cresceu
progressivamente de intensidade até se transformar numa
insuportável, confusa pasta de sons, enormes cartazes de
campanários de igreja iam e vinham junto dos seus olhos
cegos, Tome mais um uísque e acabe lá com isso de esfregar a
breguilha, aconselhou o tenente-coronel, se tomar mais um
uísque afianço-lhe que perde a tesão por completo, Não vou
conseguir nada, pensou o alferes a apertar o trapinho mole da
pila, não vou conseguir sequer uma erecção que se veja, e
nisto, meu capitão, os intestinos vibraram, o estômago
distendeu-se, um chorrilho de peidozinhos gagos escapou-se-
me do cu, um impetuoso, turbilhonante, desconhecido inchaço
salgado subiu em sucessivas volutas da barriga, apoiei-me
como pude à prateleira dos livros, afastei as pernas, abri a
boca, estiquei o pescoço e desatei a vomitar o mar.
5

— Bem vistas as coisas nunca fiz nada de jeito na vida, meu


capitão, disse o soldado. Até no trabalho, chiça: o meu
falecido tio pôs-me à frente do negócio das mudanças, e hoje
em dia se aparece um serviço por semana é uma sorte.
— No primeiro avião que apanhei, uma ou duas semanas
depois, respondeu o alferes. A amante da minha mulher ficou
tão contente por eu me vir embora que me adiantou logo o
dinheiro da passagem.
— Hoje, para Lisboa, Jorge?, perguntou a senhora de cabelo
roxo. Claro que lhe posso emprestar, trago sempre o livro de
cheques na carteira. Sim, aviso a Inês, sim, dou um beijo à
Mariana, fique descansado, não me esqueço.
— Já só me sobra uma camioneta a cair de podre e um
triciclo que gripou, a desfazer-se em ferrugem no armazém,
disse o soldado. E quanto a empregados restamos eu e o mudo,
a envelhecer e a jogar às damas, tardes inteiras, no escritório.
— Às vezes, à noite, ainda acordo com a colcha povoada de
lanternas de traineiras, a ouvir os barcos no porto e o
autoclismo da pensão, contou o alferes. As vezes, à noite,
ainda acordo a afastar mochos e corujas com os braços e
descubro debaixo das nádegas, se me sento na cama, penas e
excrementos amarelos no lençol.
— Fartinho de pensar em trespassar aquela merda toda por
tuta-e-meia, disse o soldado. Mas acaba-se a guita e o que vou
eu comer, meu capitão?
— Excrementos endurecidos, semelhantes a crostas de
feridas, como os que os pombos deixam nos telhados, explicou
o alferes. A gente esfarela nas unhas e não tem cheiro, nem
peso, nem sabor: uma coisa esquisita, um cuspo cristalizado,
uma espécie de pó, percebe? Às vezes, à noite, julgo que
continuo a ser pássaro, meu capitão.
— Também és como o outro?, inquiriu a porteira,
desconfiada. Também me queres abandonar sem mais nem
menos?
Visitava-a uma ou duas vezes por semana, às quartas e aos
sábados, levava um bolo, ou um pacote de rebuçados, ou um
automóvel de folha para o miúdo, jantava com ela, quase sem
falar, de olhos no prato, saía antes do amanhecer, transido de
frio, vagamente arrependido, vagamente culpado, à medida
que a madrugada arrancava brutalmente das trevas as árvores e
as casas e os caixotes do lixo despejados e tombados da
véspera. Os passos produziam estampidos enormes no silêncio
como se caminhasse pela nave reboante de ecos de uma igreja
deserta, abria o escritório de vidro do armazém, instalava-se à
secretária a olhar estupidamente o telefone que não tocava
nunca e a rua lá em cima, ganhando pouco a pouco uma
espessura sem mistério: o dono da drogaria retirava os taipais,
os mecânicos da oficina de automóveis desciam o passeio, em
pequenos grupos, a fumar, o primeiro sol tímido lambia a
rampa gasta de cimento. Nem fome, nem sono, nem sede, só
uma fugidia tristeza sem esperança flutuando liquidamente
dentro dele: colocava as pedras das damas no tabuleiro,
esfregava as remelas com a mão aberta, sons de motores,
conversas, gritos, as carroças chiadoras dos vendedores de
fruta e de hortaliça: e agora?
— Um pássaro, insistiu o alferes. Quieto, aflito,
preocupado, a bater as asas no poleiro, à espera. Um pássaro
insólito que se barbeia, e se veste, e se calça, e que fala, no
meio dos sinos, dos cartazes, dos ganchos que me furam a
barriga, das ordens do biólogo, do polaco, da vesga. E sobre
isto os barcos do porto, ora mais perto ora mais longe,
ancorados na bruma difusa do meu sono, que não cessam,
percebe, de chamar-me.
— Um tropa, um velho, um sacana sem tesão, disse a
porteira, um desses que se não conseguem desatam a pedir
desculpa e a lamentar-se: seja aleijada se não me ficou de
emenda. Portanto, comigo, meu rico, ou tratas dos papéis ou
vais à vida.
O mudo chegava às nove, nove e um quarto, já de dedos
incertos, já a cheirar impetuosamente a vinho, as órbitas
biliosas boiavam na cara à laia de peças anatómicas num
frasco de álcool, os ossos rompiam, agudos, idênticos a
cartilagens de frango, a camisa coçada. O tio Ilídio aparecia de
ano a ano, mirava o armazém num fosco soslaio
desinteressado, retirava-se a arfar mamando de contínuo a
bomba de asma numa urgência de biberon, só uma mala de
roupa e ninguém a despedir-se de mim no aeroporto,
passageiros com expressões fúnebres de desastre aéreo,
sentados entre sacos, aguardando o voo, se aquela mulher
pequenina se mete no mesmo avião do que eu acontece
qualquer coisa de certeza, se aquele tipo gordo se entorna ao
meu lado aposto que se avaria um reactor e nos mandam
apertar os cintos, e as hospedeiras se inquietam, e uma voz
qualquer principia a gritar, lá vai a minha mala que desliza e se
some numa passadeira de borracha, sentia-me minúsculo,
insignificante, inútil, derrotado, o mudo avançou uma pedra e
recostou-se para trás à procura da carteira de fósforos nos
bolsos, mesmo hoje, meu capitão, continuou o alferes, depois
de tantos anos, tantas aflições, tantos momentos incertos,
tantas mórbidas tristezas, se estou, por exemplo, com uma
mulher, se lhe toco os braços, se lhe afago o peito, se me
debruço para a sua boca como para o meu rosto no espelho, o
que me vem à ideia, sei lá, é que me dói um dente, que trago
uma afta na língua, que na última semana emagreci dois
quilos, que daqui a vinte minutos, roçando com o suor do meu
flanco a curva do seu flanco, acendo o cigarro da desilusão e
do fastio, os ratos trotam sob os móveis desfeitos do armazém,
os vidros quebrados do tecto rasgam a pele inchada, bafienta,
enodoada de nuvens, do céu, o telefone permanece
obstinadamente mudo como o severo rosto parado de um
morto, o velho, estendido na cama, em casa, ocupa os dias
procurando desesperadamente respirar, o fósforo do mudo
ziguezagueia e falha e estremece diante da ponta apagada da
beata, e se não seguro o estômago com toda a força, meu
capitão, elucidou o soldado, se não aperto os músculos do
ventre, se não fecho a boca depressa, se não consigo imaginar
que estou sozinho, um soluço salgado pica-me, áspero, a
garganta, a vesícula muge como um barco atracado, uma
névoa de vazante acinzenta-me os olhos, tenho que segurar
com a minha mão a mão do mudo até as bochechas se
contraírem como um fole, o tabaco se tornar luminoso e
vermelho e dois rolos de fumo lhe descerem em espiral do
nariz, o droguista, nédio, gelatinoso, de bata às listras, pendura
piaçabas e vassouras e tranças de escovas de cabo de madeira
nos anzóis da montra, talvez que torne a colocar aqui uma
jarra e uma flor, talvez um calendário com uma tipa nua,
talvez um palhaço de loiça, de sapatos muito grandes,
chapelinho à banda e guarda-chuva microscópico, para alegrar
o escritório, talvez que dessa forma os clientes regressem,
talvez que dessa forma as encomendas se multipliquem,
limpamos o armazém, vendemos o triciclo à sucata,
arrumamos os móveis, ordenamos o ficheiro, pintamos de
novo as letras verdes da fachada, Tenho de correr em pelota
para a retrete, disse o alferes, esmagando chinelos, sapatos,
roupas, revistas que se torcem e protestam sob os pés, inclinar-
me para o funil efervescente da sanita e, como no cais de
Santos, vomitar o mar.
— Se o obrigassem a viver com uma mulher como a minha,
suspirou o tenente-coronel, asseguro-lhe que vomitava o mar
todas as noites.
— O velho nunca me perguntava o que quer que fosse
acerca do negócio, disse o soldado. Desde que me entregou as
Mudanças Ilídio a única coisa que o preocupava era continuar
vivo amanhã.
Rugas aterradas, o pânico cor de azeite das pupilas, as unhas
brancas fechadas sobre a bomba de borracha da asma, os pêlos
grisalhos que assomavam, idênticos a cerdas de ovelha, pelos
intervalos pouco limpos da camisa: tanto medo da morte, tanta
teimosia em durar e qualquer dia eis-te de repente oco de
sangue, de memória, de saliva, de medo, de urina, eis-te de
gravata, colete e botas engraxadas, brilhantes como bules, num
esquife de pegas de latão a fingir prata, e o mudo e eu a
velarmos-te na sala, jogando às damas na mesa de jantar, com
uma garrafa de brandy e um círio apagado no tampo. Semanas
depois a minha irmã há-de aparecer inevitavelmente, quando o
cheiro a cadáver lhe chegar às narinas ou alguma vizinha
solícita lhe contar que pifaste, há-de aparecer, mais
descuidada, mais desgrenhada, mais vencida, mais feia, com o
habitual cacho de filhos pendurado nela e o inevitável mulato
de óculos escuros atrás, a exigir, numa esquálida voz de
compota que se dissolve em miséria, melancolia e cansaço,
metade do negócio, e de novo pensarei, aturdido, Como tu
mudaste, caramba, como te tornaste horrorosa, repelente, e de
novo me lembrarei da avó, de guarda ao seu exército de putas,
a latir furibunda, mexendo um caldeiro de sopa com a colher
enorme, Tu e a tua irmã e a tua mãe e o teu tio são feitos da
mesma merda, porra, só me saiu lixo pela cona.
— Também quero ser mocho, exigiu o oficial de
transmissões a reptar na alcatifa numa sonolência de polvo.
— E qual é o problema em te divorciares?, irritou-se a
porteira. Que brincadeira vem a ser essa, a gaja pôs-te os
palitos ou não pôs? E de facto, meu capitão, o velho a apagar-
se e ela a entrar-me pelo escritório dentro três dias a seguir ao
enterro, com centenas de miúdos de pele parda, porquíssimos,
de nariz achatado, agarrados às varizes das pernas
(provavelmente os mesmos da última vez, uns anos antes, que
o excesso de moscas e a falta de comida impediam de crescer),
seguida por um negro magríssimo, baixíssimo, de casaco
verde, calças azuis, laço de pintas vermelhas e amarelas no
pescoço, sandálias e a cicatriz de uma risca cortada à faca na
carapinha exuberante, Mas que pouca vergonha, uma corja de
bisnetos pretos, berrou a avó a atiçar, indignada, as brasas do
fogão, Deixem-me ser mocho, seus maricas, pediu o oficial de
transmissões a babar-se no tapete, deixem-me ser mocho um
bocadinho só, o braço do mudo resvalou numa elipse hesitante
por cima do tabuleiro das damas, o bigode do negro suava
como os azulejos do chuveiro depois de um banho quente, as
têmporas convexas luziam, ficaram com o triciclo, com
metade da mobília bichosa do armazém, com as loiças, e os
talheres, e os trastes coxos do quarto do tio, a deusa do strip-
tease Melissa, enrolada no divã como uma cobra agonizante,
partilhava com o tenente-coronel o álcool de desinfectar as
feridas, Vai amanhecer não tarda nada, pensou o soldado, não
tarda nada é dia. O preto telefonou do escritório em
incompreensíveis guinchos veementes, e dali a um par de
horas uma incontável multidão de escarumbas
espalhafatosamente andrajosos desembarcou aos borbotões de
uma camioneta ainda mais decrépita do que a nossa, rindo,
acotovelando-se, conversando aos uivos numa língua colorida,
sumiram-se vorazmente nas sombras do armazém à maneira
de formigas operosas no capim, somaram um restolhar de
murmúrios, sapatilhas e assobios ao restolhar habitual dos
ratos, as cómodas carunchosas gemiam e agitavam-se como os
arbustos da mata, a fumegante tepidez de Moçambique
apertava-nos o pescoço com os dedos molhados, um ventinho
de trovoada soprava da ferrugenta colina da camioneta lá em
baixo, Vão disparar sobre nós, pensei eu a tremer, de cócoras
no abrigo da secretária do escritório, vão matar-nos aos dois, ó
sócio: faíscas de morteiros, bazookas, exclamações, tiros,
protestos. O mudo, alheado, avançava pedras no tabuleiro das
damas e o peito, ferido por uma primavera de granadas, abriu-
se como uma flor repolhuda de ossos e de sangue, o
helicóptero com o médico (ou apenas um jacto que aterra no
aeroporto da cidade?) roçava as copas das árvores nas
clarabóias do tecto, o sol da lâmpada cresce desmesurado e
gira e rodopia e oscila como um disco, as formigas empilham
armários sobre armários na camioneta antiquíssima,
desmontam velozmente o triciclo com mandíbulas de pés-de-
cabra, chaves inglesas e martelos, agarrei no lápis de uma
pistola e ajoelhei-me atrás da prateleira das facturas, onde se
amontoavam, vazias, as garrafas de vinho tinto do mudo, os
meus sobrinhos cinzentos brincavam, no chão lascado, com
cordas, pedaços de madeira, anzóis de ferro, desperdícios,
Todos feitos da mesma merda, porra, rosnava a avó, tu, a tua
irmã, a tua mãe, o teu tio, só me saiu lixo ranhoso pela cona, a
Otília e o preto magrinho acabaram por trepar para a cabina da
camioneta, as formigas apinharam-se no topo de uma pirâmide
de gavetas, desdobrando infindáveis acordeões de dentes, um
dos miúdos segurava um rato esmagado pela cauda, o motor
estralejou, vibrou, calou-se, tornou a estralejar, e nenhum tiro,
nenhum ferido, nenhuma parede desfeita pelo estrondo da
explosão, nenhuma mina a erguer-se como um géiser do
sobrado, nenhum enfermeiro a trotar para nós com balões de
soro, garrotes, compressas, injecções de morfina, Não sabes se
a gaja mora em Lisboa?, perguntou a porteira, fica descansado
que para a semana já te digo, as rodas da camioneta
principiaram a galgar reumaticamente a travessa como se
fossem quadradas, ou pentagonais, ou hexágonos, Que cabelo
tão sujo, que saia tão amarrotada que tu tens, pensou o soldado
a olhar da porta o perfil baço da irmã, os ratos, perplexos com
a ausência dos móveis, palpavam ansiosamente as trevas
vazias, e uns meses depois li no jornal que o preto magrinho te
espetara doze facadas no umbigo e a polícia te encontrou na
cozinha do prédio da Buraca (o teu retrato, desfocado, deixava
nos dedos um pólen de chumbo) de coxas e braços abertos, a
morder os azulejos com os dentes quebrados.
— Como se isto pudesse acabar de outra maneira, grunhiu a
avó a soletrar-lhe a notícia sobre o ombro. Quem não sabe ser
puta, menino, junta as pernas e reforma-se.
— A tua mulher vive na Cova da Piedade com um
anãozinho enfezado, informou a porteira a meter-lhe no bolso
o papel com a morada. Chegas, dizes que te queres casar,
pedes o divórcio e pronto.
Não fui ao enterro. Não fui à polícia. Não fui à casa da
Buraca, e se me acontece ter de passar por lá com o mudo,
meu capitão, contorno o bairro por trás do apeadeiro do
caminho-de-ferro, de modo que só vejo por cima do canavial
que cresce dos dois lados das águas podres do esgoto as
antenas de televisão e os chapelinhos das chaminés, um ou
outro telhado e as árvores da mata, confundidas, azuis e altas,
na distância: presumo que as formigas da camioneta levaram
os meus sobrinhos cinzentos para uma qualquer sanzala de
tábuas soltas e de placas de zinco em Benfica ou na Damaia,
sabe como é, ruas estreitinhas, um fedor insuportável, gatos de
tripas ao léu em charcos de lama, farrapos de camisas em
alguidares de plástico, rádios histéricos, presumo que não deve
sobrar nem um talher, nem uma peúga, nem um retrato, nem
uma dessas páginas de revista com que se forram as gavetas da
roupa, presumo que até as torneiras, até as maçanetas das
portas, até os chuveiros desatarraxaram e levaram, se calhar
até os aromas e as recordações e os sabores antigos da
infância, o meu pai ainda novo, de bigode, em camisola
interior, a pentear-se no espelhinho de moldura redonda da
parede, a minha mãe inclinada para a pia a escamar peixe,
noites de medos indefinidos e de aflitas insónias, rostos
assustadores ameaçando o meu sono, levaram certamente o
meu primeiro esperma no lençol, o espectro da tia idosa que
tossia sem cessar numa cadeira de rodas, venderam aos
ciganos a válvula da banheira, as nádegas adolescentes da
minha irmã e os estoiros de gás do esquentador, e compraram
mais blusas coloridas, mais tremendos óculos escuros, mais
pilhas de transístor, mais cintos de gigantescas fivelas
doiradas, beberam o candeeiro de vidro e o enfarte do meu pai
nas tascas da vizinhança, de modo, meu capitão, que fiquei de
repente sem passado, sem família, sem dias de anos, sem data
de nascimento, sem infância, sem amigos de escola, sem
remotos invernos, suspenso, transparente, desprovido de
consistência de carne, de peso, com os meus cabelos brancos e
a minha idade de agora, um lúgubre bebé enrugado e gasto a
mover desiludidas pedras de damas num escritório devastado.
— Tomas o barco ao fim da tarde, aconselhou a porteira,
tocas a campainha, entras por ali dentro sem dizer água vai,
pregas-lhe um ou dois estalos que nunca fizeram mal a
ninguém, se for preciso arreias um par de chutos nos tomates
do lingrinhas, e depois de feitas as apresentações, com toda a
calma, sentas-te na melhor cadeira que eles tiverem, e dás oito
dias a essa cabra para entregar os papéis no tribunal.
— O gajo Mamã mamã mamã mamã mamã, de chupa-
chupa em punho, a lamber-me as orelhas e o pescoço, a
morder-me os ombros, a apalpar-me as mamas, a puxar-me o
elástico das cuecas, a lambuzar-me toda, a pastar aos roncos as
flores que se me espalhavam no colo, queixou-se a ajudante do
ilusionista, e eu, para comigo mesma, à rasca, Ai Jesus que
estou frita, ai Jesus onde me fui meter, quando é que o cabrão
deste melro acaba a fantochada.
— Se vocês não me deixam ser coruja, preveniu
cancerosamente o oficial de transmissões, a sorver a espuma
de cerveja nos copos vazios, nunca mais venho a nenhum
jantar do batalhão.
Fechou o armazém mais cedo que o costume (há quase um
mês que não aparecia serviço, há quase um mês que nem um
frete, de forma que teve de vender ao desbarato algumas
cantoneiras em ruínas para pagar o ordenado do mudo), e
desceu a pé pelo Martim Moniz na direcção do Terreiro do
Paço, empurrado pelo irrevogável e cauteloso redemoinho de
gente da saída dos empregos, dos escritórios, das companhias,
das lojas, das pastelarias, das tabernas, pessoas, eléctricos,
automóveis, luzes, vendedores ambulantes, polícias,
mendigos, a paisagem de sempre, senhores, a cidade de
sempre, senhores, os rostos de sempre, senhores, aposto que
nem um terramoto, que nem vinte terramotos hão-de algum
dia, senhores, modificar esta merda, lá estava o Martim Moniz,
equívoco, desequilibrado, oblíquo, com as primeiras putas e os
primeiros chulos nascendo, ainda incertos, nos passeios
alaranjados, avermelhados, esverdeados, amarelados, azuis, a
mancha pálida da Mouraria, a Praça da Figueira, e agora,
idênticas a patas e antenas compridas de lagosta a saírem do
corpo de crustáceo do largo, as ruas geométricas a caminho do
rio, tristes urnas de janelas habitadas por apanhadeiras de
malhas e explicadoras de francês, o céu já escuro, estriado de
leves serpentinas negras, pregueando-se e despregueando-se à
laia de uma guelra que respira, volta à direita, à esquerda, à
direita de novo, cem terramotos, cem revoluções, cem guerras
civis, pensou o soldado, e esta merda sempre igual a esta
merda, que caralho, os manequins das montras fitam os
próprios reflexos com as órbitas ovais, mulheres calvas,
homens de cotovelos dobrados em estáticos gestos preciosos,
pernas amputadas calçadas de meias negras com Horinhas,
gravatas, botões de punho, enguias de cintos, sapatos e
chinelos em colunas de plástico ou em peanhas cromadas, nem
uma invasão de marcianos, nem um granizo de meteoros, nem
duzentas bombas atómicas, que foda, varandas apagadas,
tabuletas de despachantes e calistas, a Estação do Rossio a
engolir e a vomitar, lá atrás, multidões de pessoas, bancos e
casas de crédito fechando-se ciosamente, como punhos, sobre
cabazes de notas de vinte escudos outonais, autocarros que se
bamboleiam como senhores gordos a correr, um eléctrico
perpendicular a mim despedindo chispas prateadas, o arco da
Rua Augusta e a súbita amplidão quadrada do Terreiro do
Paço, ministérios melancólicos, semelhantes a claustros laicos,
onde dormitam guardas e contínuos, o odor pestilento da água
(Tomas o barco ao fim da tarde), a hélice a revolver a geleia
morna do Tejo, o vento nocturno do rio e o seu cheiro de
cadáver decomposto, de cemitério, de tripas, O que é que eu
digo quando chegar lá?, procura palavras, imagina frases,
conversas, zangas, recusas, discussões, entalado entre um
cavalheiro de jornal aberto e uma mulherzinha mal vestida que
cabeceia de cansaço ou de sono, no lugar fronteiro duas
raparigas segredam-se sem olhar para ele, misturando os
sorrisos e os cabelos, o barco inclina-se para um lado e para o
outro num rumor fundo de entranhas, toco a campainha, a
Odete ou o tipo abrem-me a porta, e depois? Sente-se rígido de
embaraço, arde-lhe a nuca, apetece-lhe urinar, comprime um
traque aflito com as nádegas, o naviozito descreve uma curva
lenta, abranda a marcha, o ruído do motor muda de
intensidade, de timbre, numerosas ondas pequenas como
línguas chapinham contra o casco, um movimento sacudido de
vaivém, um choque, marujos lá fora a enrolarem cordas, que
alguém lançou de cima, em espigões grossos de ferro, os
passageiros levantam-se, descem por uma prancha estreita
para o cais, anoiteceu por completo e o cavalheiro do jornal e a
mulherzinha mal vestida e as raparigas dos cabelos misturados
somem-se na corrente de vultos que se dirige apressadamente
para as paragens de autocarro, pensa Mesmo que o planeta
explodisse ia jurar que a trampa desta terra persistia, hesita em
tomar um bagaço, para ganhar coragem, num café vizinho
onde um único cliente, de barbas, com uma sacola na cadeira
ao lado, mastiga um bife fúnebre, roçando horizontalmente as
mandíbulas uma na outra como os cavalos das carroças, mas
os choferes buzinam, as pessoas trepam, açodadas, para os
aquários iluminados de latas e de vidro, É proibido cuspir no
chão, avisa um rectângulo sujo junto ao tecto, casitas baixas,
descampados anémicos que se diluem nas trevas, manadas de
cães preocupados e esqueléticos, operários de motocicleta a
quem os capacetes enormes e as calças de ganga conferem
uma aparência insólita de astronautas pobres, Um ou dois
estalos nunca fizeram mal a ninguém, não há como um par de
chutos nos tomates para ajudar a resolver uma diferença de
ideias, para que queres tu esse corpo todo, meu palerma?,
encosta a orelha à sua própria orelha no vidro e os
estremecimentos e as vibrações da camioneta chocalham-lhe
os miolos os ossos, cruzam povoações insignificantes
submersas na densidade quase sólida da noite, muros
derruídos, uma fábrica, outra fábrica, árvores, construções de
tijolo, mais muros, o autocarro engasga-se, espirra, arrota,
sacode as penas dos guarda-lamas como um pato indignado,
pára, avança, pára, torna a avançar, os faróis puxam uma placa
das trevas, Cova da Piedade, É aqui. Apeia-se da camioneta
com as pernas fracas e bambas e o estômago a palpitar como
uma ostra, noite, edificiozitos tinhosos ao longo de uma rua
comprida, transversais que desaparecem numa bruma murcha
de candeeiros, insígnias luminosas flutuando como peixes
mortos, uma bomba de gasolina onde um velhote de boina
limpa as mãos incrivelmente minúsculas ao tecido das calças,
o soldado aproxima-se sem vontade, Não me apetece, não
quero, tenho medo, exibe o papelucho da porteira e o velhote,
solícito, cavalga os óculos quebrados no nariz, inclina-se,
idêntico à chama de uma vela, para um tubo leitoso de néon,
afunda-se em demoradas deliberações de perdigueiro, as
bochechas e a testa amarrotam-se de rugas, cem, cento e
cinquenta, duzentos anos, que idade poderá ter este sacana?, o
velhote dobra os óculos colados e recolados com pedaços de
adesivo, endireita-se, aponta com o dedo, num gesto de
profeta, vagas distâncias infinitas, Sempre em frente, amigo,
ao encontrar uma farmácia vira à esquerda, Deixa-me beijar-te
o pipi, mamã, deixa-me lamber-te o pipi, mamã, pedia o do
chupa-chupa, de joelhos na cama, a respirar como uma foca, a
procurar introduzir o nariz entre as coxas apertadas, um
camião de seis rodas imobilizou-se junto às bombas e o
condutor, em mangas de camisa, pula da carlinga numa espiral
aérea de trapezista. Não cheira a rio aqui, pensou o soldado
enquanto caminhava, cheira a fumo, a insónia, a manhãs
transidas, a pobreza, homens jogando a sueca em tascazinhas
imundas, uma espécie de capela ou de igreja ou de hospital
emergindo da penumbra, janelas acesas e quartos sem
ninguém, oleografias, armários modestos, mesas postas, o
lingrinhas a abrir-lhe a porta Faz favor?, e eu embezerrado,
nervoso, sem palavras, com ganas de fugir, no patamar, a
Odete a abrir-lhe a porta e eu, como se a não conhecesse. Que
chatice, não é nada, desculpe, enganei-me no andar. Edifícios
desbotados, ocres, cor-de-rosa, lilases, garagens fechadas,
tabacarias, retroseiros, a Odete a segurá-lo pela manga, Espera
aí, não te vás embora, entra: dois ou três filhos iguais ao
magrizela trotavam molemente pela sala, muitos livros, muitos
cartazes, muitos retratos do furibundo da barbicha,
camponeses brandindo foices e ancinhos a exigirem não sei o
quê a não sei quem, o lingrinhas (Olavo, não é?) que o mira
num meio sorriso acolhedor e tímido, uma escola, a farmácia,
reclamos de óculos de sol e de pastas de dentes na montra,
uma balança, prateleiras repletas de embalagens, de frascos, de
xaropes, de caixas de pastilhas, de colherzinhas de plástico, de
biberons, de champôs, de loções, de cremes, de comida para
crianças, de tubos de laca, de vaporizadores, de pentes, um
empregado de bata, com cara de gato siamês, a atender os
clientes ao balcão, Quero sugar o teu umbigo, mamã, quero
sugar as tuas maminhas, mamã, Voltar à esquerda,
recomendou o velhote, uma ruela apertada e lamacenta, erva
nas bermas, candeeiros de longe a longe, valas onde durante o
dia deviam estar montando canalizações, esgotos, telefones:
tornava-se difícil perceber os números das portas no escuro, de
que lado são os ímpares, de que lado são os pares,
aproximava-se das fachadas, espreitava o topo das ombreiras
ou por cima dos botões das campainhas, uma chapa metálica,
Dr. João Simões, Clínica Geral, Consultas das 14 às 19, e
imaginou um fulano azedo a auscultar as bronquites e a
receitar comprimidos e injecções, os prédios rareavam a pouco
e pouco e nos intervalos surdiam taludes imprevistos, areia,
sacos de cimento, hastes de ferro, rolos de arame, silhuetas de
casas, copas aguçadas de ciprestes, gordurentos odores de
cemitério: desabotoou a breguilha, extraiu a pila da fenda
difícil das cuecas (quem foi o cabrão do paneleiro que
inventou esta gaita de roupa?) e urinou contra um montículo
reluzente de alcatrão, sentindo que se esvaziava devagar de
parte de si mesmo, Bem vistas as coisas nenhum de nós fez
nada de jeito na vida, rapaz, disse o tenente-coronel, acorda a
mulata, enfia-lhe a ferramenta pelo cu acima e daqui a dez
minutos és o melhor do mundo, camandro, número dezasseis,
número dezoito, número vinte, uma embocadura de oficina,
número vinte A, e a seguir um espaço vazio onde os sapatos
tropeçavam nas pedras, nas covas imprevistas, em relevos
moles, nos desníveis da terra, um cubo de três andares com
meia dúzia de varandas iluminadas, Infelizmente, pensou o
soldado, o velhote da bomba de gasolina não o enganara,
cheguei.
— Piu piu piu, berrou o oficial de transmissões a torcer-se
na alcatifa. Se há alguém nesta sala mais mocho do que eu
levante o braço.
— Quando entrei pela primeira vez aqui em casa, disse o
alferes, nenhum electrodoméstico funcionava, os cagalhões
dos vizinhos de cima boiavam-me sei lá como na retrete, e
cheirava a mofo que fedia. Tive de dormir mais de um mês
com tudo aberto para arejar, gastei quilos de spray, se vocês
vissem a conta do conserto das máquinas morriam. E sem a
Inês nem a Mariana dava-me uma tristeza do caraças,
acordava a meio da noite a chorar, sonhava com a gaja do
cabelo roxo o tempo inteiro. De maneira, meu capitão, que fui
umas semanas para os meus velhotes, recompor-me.
— Já não era sem tempo, resmungou o pai no escritório da
tipografia, sem olhar para ele, sem se alegrar, sem responder
ao seu beijo. (As rotativas devoravam papel, o soalho tremia,
os contornos dos empregados distorciam-se numa bruma de
fumo, de carvão, de poeira, silhuetas confusas agitavam-se
angulosamente numa claridade de icterícia.) Pelo sim pelo não
telefona à tua mãe, sempre há-de ficar contente por saber que
estás cá.
— Mais de uma hora ali, à porta dela, imóvel, com dores de
estômago, a suar das mãos, a suar dos pés, a ganhar coragem,
murmurou o soldado. Qual uma hora: duas, três séculos, antes
de me atrever a levantar o dedo e a carregar na campainha.
— A velha e a minha irmã trataram-me como um rei, disse
o alferes. As comidas que eu preferia, os doces que eu
preferia, dinheiro, bilhetes para o cinema, gravatas, discos,
bancadas de futebol aos domingos. Limparam a casa,
contrataram uma mulher-a-dias, compraram lençóis novos,
mudaram as cortinas das janelas, chamaram um tipo conhecido
para estofar os sofás. Os retratos da Inês levaram sumiço, o
telefone recomeçou a tocar, a minha irmã apresentou-me uma
porção de amigas, convidava-me constantemente para botes,
para reuniões, para piqueniques, para festas.
— Séculos ali à rasca, a secar, sozinho no escuro, encostado
à ombreira, segredou o soldado. E a voz na minha cabeça a
ordenar-me Chegas, pregas um par de estalos, um chuto nos
tomates, dás-lhes oito dias para entregarem os papéis do
divórcio ao tribunal, mais uma bofetada ou duas para eles se
lembrarem bem do que tu queres, viras-lhes as costas, vens-te
embora.
— Piu piu piu, chilreou o oficial de transmissões a nadar no
tapete. Reparem como eu voo, seus cretinos.
— Podes sempre trabalhar aqui até te aparecer coisa melhor,
concedeu o pai a apontar os vultos e o nevoeiro de chumbo
com o queixo. Para quem se habituou a empregos finos isto
deve parecer um castigo, uma condenação, um passar de
cavalo para burro do caraças.
Tocou a campainha, esperou, tocou de novo, e nisto deu-se
conta, surpreendido, de que a porta da rua estava aberta.
Acenderam a luz lá de cima, um vestíbulo manhoso, caixas de
correio engastadas na parede, vasos com plantas repolhudas
nos degraus, línguas de capachos: os tornozelos erguiam-se a
custo como se arrastassem toneladas de correntes de forçados,
o coração rodopiava no interior do fígado, os intestinos subiam
em tumulto ao pescoço, os pulmões eram um par de alforges a
pesar nos flancos, O que é que eu digo, o que é que eu faço,
como me safo desta? Quem é?, perguntou a Odete, invisível, lá
em cima, sorver o ar, expulsar o ar, sorver o ar, expulsar o ar,
sorver o ar, expulsar o ar, Que brincadeira vem a ser essa, a
gaja pôs-te os palitos ou não pôs?, uma nova curva do
corrimão, um novo lanço de degraus, Quem é?, repetiu uma
esganiçada vozita masculina, uns sapatos de homem ao lado
de uns sapatos de mulher, pernas sem meias, calças
desvincadas, um casaco, um vestido, mãos, cotovelos, ombros,
a cara surpreendida do lingrinhas e um pouco mais acima o
olhar intrigado da Odete: não cheira a rio, pensou ele, cheira a
tinta recente, a esgotos, a ausência de conforto, a azeite frito,
ah és tu não faças cerimónia entra, um timbre tão neutro, um
tom tão natural, meu capitão, como se nos tivéssemos visto na
véspera, percebe, como se tivéssemos acabado de nos separar,
entende, gosto de ti, um par de estalos, um chuto valente nos
tomates, o filho da porteira, de gatas no chão, amarelo,
silencioso, bicudo, a empurrar um automóvel de lata com o
dedo, e afinal nem cartazes, nem retratos do severo de
barbicha, nem muitos livros, nem camponeses, nem ancinhos,
nem foices nem crianças: uma salita minúscula, cadeiras de
pau, uma fotografia da dona Isaura sobre o rádio, uma outra da
Odete, de braço dado com o Olavo, numa mesita baixa, um ou
dois candeeiros baratos, o jornal aberto no sofá, o odor da
comida ainda quente, cinzeiros, esteiras, o quarto com a cama
por fazer, a cozinha em desordem, pilhas de pratos sujos no
lava-loiças, caçarolas, tachos, panelas, pôs-te os palitos ou não
pôs? Será que gosto de ti, pensou o soldado, ou é só timidez,
só vergonha, só a angustiada hesitação do costume? Entre
entre, anuiu o magrizela num convitezinho obsequioso, a
dobrar o jornal, a franzir as gengivas cor de vinho num sorriso
desagradável e humilde, e ele, para si mesmo, Se calhar vivem
tão apertados de massas como eu, se calhar contam os tostões
como eu, se calhar levam os últimos dias do mês a comprar
fiado na capelista, na mercearia, no talho, a comer fiado em
restaurantes de má morte, Dêem-me óleo a beber, pediu o
oficial de transmissões, a rastejar para nós, o único alimento
que um mocho de categoria aguenta é o óleo, Estás
exactamente na mesma, comentou a Odete a sorrir também,
um sorriso impessoal, baço, distante, sem desprezo nem
afecto, os anos passaram-te ao lado sem te tocarem, Abílio, e
eu como um urso, meu capitão, como um elefante, como um
bicho enorme, sem lugar para as mãos, para o corpo, para as
pernas, sorver o ar, expulsar o ar, sorver o ar, expulsar o ar,
sorver o ar, expulsar o ar, a porteira a mandar-me bater-lhes, a
mandar-me entrar por ali dentro aos gritos e aos pontapés nos
tomates e eu a olhar a casa e a olhá-los aos dois, compreende,
com tanta pena deles como de mim, Tentei racionalizar a
empresa, explicou o alferes, mas com o meu pai era um caos
impossível, não havia escrita, não havia ordem, não havia o
mínimo plano de gestão, a cada medida que eu propunha o
velho respondia-me a passear a esferográfica aturdida num
bloco, juntando as sobrancelhas, embezerrado, uma ocasião
desatámos a gritar, de olhos em brasa, um com o outro, e
nunca mais, depois dessa cena, nos encarámos a direito, Tu
estás é completamente doido, latia o pai, julgas que isto é o
caralho de um banco ou quê?, até que acabei por arranjar lugar
numa companhia de seguros e foi um alívio para os dois,
Queria à força meter-me o chupa-chupa de limão pelas pernas
acima, disse a ajudante do ilusionista, queria tocar-me
contrabaixo no clitóris com aquela merda peganhenta.
— Acabei por sentar-me no sofá da sala, meu capitão,
mesmo em cima do jornal do lingrinhas que me crepitava no
cu mal me mexia, soprou o soldado, como se os meus peidos
fossem de folhas secas, está a ver, como se carregasse o
outono inteiro nas nádegas. De modo que os ouvia e falava
com eles muito quietinho, envergonhadíssimo, apavorado pela
ideia de encher a conversa de bufas de papel.
— Que reinação vem a ser esta, o que estás tu para aí a
gaguejar?, indignou-se a porteira. Eu não percebo, palavra que
não percebo, a gaja pôs-te os palitos ou não pôs?
— Passado um quarto de hora já não havia assunto,
queixou-se o soldado. Os silêncios aumentavam
horrorosamente de tamanho, o coração tombava-me se eles se
calavam, em aflitivos poços de vazio, faltava-me saliva, a
língua emaranhava-se na boca, os músculos murchavam, quis
levantar-me e o jornal trrrrr trrrrrr trrrrrr a denunciar-me como
um cão de guarda.
— O quê?, exclamou a porteira, estupefacta. Vieste-te
embora à papo-seco, meu camelo, vieste-te embora sem
exigires o divórcio?
— Trrrrr trrrrrr trrrrrr, ameaçou o jornal.
— Não, nada de especial, a sério, cochichou o soldado.
Acontece que tinha de passar por aqui em serviço e lembrei-
me Deixa cá ver como é que está a Odete, deixa cá ver como é
que está o marido.
— Trrrrrr trrrrrr trrrrrr, disseram as páginas.
— Mas que riquíssima besta que tu és, ululou a porteira,
mas que grande animal tu me saíste.
— Trrrrr, trrrrrr, avisaram as páginas.
— Boa noite, não se incomodem, não venham à porta,
protestou o soldado. Se daqui a um mês ou dois aparecer outro
frete para estas bandas subo cá acima a procurar-vos.
— Trrrrrr trrrrrr trr, vibraram as páginas.
— Tiveste pena deles, comoveu-te a simpatia deles, a
maneira como te receberam, te trataram?, estarreceu-se a
porteira. E de mim quem tem pena, foda-se, quem é que se
comove comigo, seu cabrão?
— Trr, soluçou o jornal.
— É, engordei, peso quase cem quilos, informou o soldado.
Mal caibo nas cadeiras, já vêem.
— Trrrrrrr trrrrr trrrrr, gargalhou o jornal.
— Grito o que me apetecer, ora essa, estou em minha casa
ou não estou?, quero que as vizinhas se lixem, quero que o
miúdo se lixe, uivou a porteira aos murros à televisão. E se me
tornas a levantar a voz lambes com esta jarra nos cornos,
paneleiro.
— Trrrrrrr, lamentou-se o jornal.
— De forma que saí à rasca para duas noites ao mesmo
tempo, meu capitão, a pequena noite da Cova da Piedade e a
noite desmesurada de Lisboa, de forma que alcancei dois
vestíbulos, que fechei duas portas, que me afastei
simultaneamente de dois prédios, disse o soldado, de costas na
cama, com a palma aberta no dorso esparramado, cor de
chocolate, da mulata. E ainda hoje, passados tantos anos, estou
para saber, veja lá a parvoíce, qual das duas me assusta mais.
Trrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr
rrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrrr, concluiu o jornal.
6

— E a porteira nunca mais te recebeu?, perguntou o alferes.


Depois de lhe passar a fúria, é claro.
— De vez em quando íamos jantar fora, ou ao cinema, ou a
um bar, disse o tenente-coronel, uma ocasião arrastou-me
pelos cabelos e levou-me a uma discoteca, dançar. Telefonava
para a mãe a desculpar-se com as amigas, Faço serão, fico em
casa desta, fico em casa daquela, eu arranjava reuniões no
Ministério, chamadas do secretário de Estado, jantares de
curso, e despia-me sem acender a luz, tonto de gin, enquanto a
Edite e o cão ressonavam horizontalmente no escuro do
quarto, ameaçadores, e enormes como o meu medo deles, a
minha inquietação, o meu cansaço.
— Não me despacho antes da uma da manhã, mãe, explicou
a empregada da boutique, encostada à prateleira das camisolas
em saldo, a encaracolar uma madeixa com o dedo e a piscar-
lhe o olho por cima do bocal do aparelho. Nem pense nisso,
vou à Amadora dormir na Graciete, o padrinho dela, em
acabando o serviço, passa a buscar-nos de carro.
— Telefonou três ou quatro vezes para o armazém,
respondeu o soldado, estás bem, como é que andas, desculpa lá
aquilo do outro dia, Abílio, perdi a cabeça, julguei-te mal, e
eu, que tenho o meu orgulho, moita. Mas uma tipa daquelas
quando se lhe mete uma coisa na pinha não desiste.
— Esta semana já é a terceira vez que sais à noite, queixou-
se a nuvem de perfume. Os teus colegas da tropa não sabem
fazer mais nada?
— Eu numa discoteca, calculem, riu-se o tenente-coronel a
afagar com o pé incerto as nádegas da deusa do strip-tease,
que gemia no divã moles sonhos sobressaltados de aguardente.
Vocês conseguem imaginar-me aos pulos numa discoteca?
— Cuidei que fosses como o outro cabrão, Abílio,
argumentou a porteira. Anda lá, não sejas parvo, aparece logo
à noite, chiça.
— Durmo na Suzete, durmo na Bernardete, durmo na
Lizete, durmo na Mariete, disse a empregada da boutique,
sentada no balcão de alumínio da loja, a atirar-lhe beijos
clandestinos com a ponta dos lábios. Os maridos delas levam-
nos de automóvel para casa, mãe, eu a partir das onze já tremo
de me meter no barco.
— Andámos mais de seis meses nisto, meu alferes,
respondeu o soldado, ela a insistir comigo, Vem, vem, vem,
vem, vem, vem, vem, e eu, feito príncipe, a negar-me. Mas a
noite de Lisboa é tão funda, meu capitão, que um gajo
sozinho, sem ajudas, naufraga de certeza: de modo que uma
quarta-feira aceitei a proposta, Está bem, não me chateies
mais, frita-me umas iscas de cebolada, até já.
— De tempos a tempos ocorria-me E se eu lhes contasse
que têm outro neto, e se eu lhes falasse de repente, à mesa, da
gravidez da Ilda?, disse o alferes. Mas depois pensava Não,
não pode ser, eu a abrir a boca e os velhos a caírem para o
lado, brancos, de boca torta, a espumarem.
— Ó Artur, avisou a nuvem de perfume a dar banho ao
cãozinho, olha que se me cheira que há marosca torço-te o
pescoço.
Pensão Cabinda, Pensão Pérola, Pensão Baptista, Pensão
Açoriana, Pensão O Meu Ninho, Residencial Dallas: as
mesmas escadas íngremes, os mesmos funcionários
sonâmbulos, os mesmos soslaios desinteressados, os mesmos
registos decrépitos, vozes murchas que solicitam Escreva aí a
identificaçãozinha, amigo, pares furtivos a deslizarem no
corredor, mulheres pintadíssimas, adolescentes translúcidos,
cavalheiros de idade escondendo a cara com a mão, e sempre o
mesmo quarto, percebe, fosse onde fosse, na Picheleira, no
Arco do Cego, na Baixa, na Graça, em Alvalade, no Lumiar,
camas idênticas, lençóis enodoados, bidés em suportes de
ferro, lâmpadas que exalavam, como bafos, claridades doentes
de hospital, janelas mal vedadas a soprarem-me nas costas um
ventinho gelado, traiçoeiro, e depois a dificuldade do costume,
a aflição do costume, o suor do costume, os solícitos dedos
apressados que tentavam, que espremiam, que insistiam, a
ondazinha rápida, a crispação instantânea dos músculos,
acabou-se, a manhã daqui a pouco (Adormeci?), a peúga
perdida sei lá onde, nós os dois, viscosos, desgastados,
gordurentos, batendo com a testa nas cadeiras, de gatas pelo
chão, o suspiro vitorioso, teu ou meu, Encontrei-a, uma orla
castanha no colarinho da farda, a camisola interior,
subitamente desagradável, que arrepiava a pele, o teu perfume
nas minhas palmas, na nuca, no nariz, afigurava-se-me
impossível que ninguém reparasse, que ninguém se espantasse,
que ninguém desse fé, o coronel Ramos vinha a despacho
muito sério, os majores e os capitães vinham a despacho muito
sérios, a Edite, de túnica, extraía-me com gestos imperiais as
espinhas do peixe e os anéis falsos cintilavam como lustres,
Amanhã faço dezanove anos, informou a empregada da
boutique, nua diante de mim, a abotoar o soutien nas
omoplatas, sempre quero ver que presente me dás.
— Ofereça-lhe uma pulseira ou um colar, meu comandante,
sugeriu o oficial de transmissões, a arrotar o terceiro copo
seguido de alka-seltzer (e a pastilha efervescente subia e
descia e rodopiava e apequenava-se no esófago, expulsando
uma cauda de bolhas). As gajas deliram com brindezinhos
íntimos, pessoais.
Que noites tão compridas eu atravessei durante seis meses,
meu capitão, murmurou o soldado, a ouvir pela janela,
completamente desperto, o restolhar das couves, dos pintos,
dos arbustos metálicos das antenas que se sacudiam e
dobravam. Chegava ao dia seguinte com os dentes a
badalarem de escorbuto nas gengivas como se houvesse
viajado eternidades de pesadelo nos lençóis.
— De maneira que biquinho calado para não assustar os
velhos, meu capitão, disse o alferes. Ao cabo e ao resto nem eu
sabia nada da criança, e além disso morrem imensos bebés,
não é verdade?
— Outra reunião, com o ministro, hoje?, admirou-se a voz
da nuvem de perfume, entre latidos agudos de cachorro. Mas
se não há revoluções à vista, mas se tudo anda calmo por aí,
mas se o coronel Ramos me garante que se acabaram os tiros,
as conspirações, os golpes?
— E o meu comandante foi-se apaixonar pela garota?,
perguntou o alferes.
Apaixonar não sei, um tipo de quarenta e sete anos já
passou há que tempos a idade das asneiras, já não embarca na
primeira idiotice que aparece, e porém telefonava-lhe três e
quatro vezes para a loja durante a manhã, e porém interrompia
audiências e sessões de trabalho para lhe escutar ansiosamente
a respiração e o riso na outra ponta da linha, e porém
acompanhava-a, envergonhadíssimo, a boates ribombantes de
música e de focos coloridos, a fim de a acariciar e apalpar
numa mesa discreta, logo invadida por grupos de jovens
barulhentos, desportivos, sem gravata, que lhe fumavam os
cigarros, lhe bebiam o uísque e o tratavam por tu numa sem-
cerimónia que o gelava. Encolhido a um canto, partilhando
contrariado a cadeira e o pratinho de batatas fritas, ou de
amendoins, ou de pipocas, com um rapaz de bigode, a
namorada de seios montanhosos do rapaz de bigode, a irmã
gorda do rapaz de bigode e um mulato que cheirava mal e
soltava de quando em quando tremendas gargalhadas de
Niagara, o tenente-coronel, que se sentia tão deslocado como
um palhaço num velório, tomava doridamente consciência da
sua calvície, dos seus cabelos brancos, das suas rugas, do seu
lumbago, recordava com amargura o conselho do médico (A
comidinha com muito pouco sal e cuidado com o coração),
guardava a gravata no bolso e desabotoava a camisa na
esperança inútil de rejuvenescer uns meses, deixava que a
empregada da boutique lhe mordesse empreendedoramente a
orelha, deixava-se puxar pelo braço para o meio da pista onde
iniciava, acuado pela música, pelas lâmpadas intermitentes,
pelos gritos, pelos risos, pelos rostos que sem cessar se
aproximavam e afastavam, uma desajeitada pantomina de
contorções e de saltos, enxugava com o lenço o suor das
bochechas, das clavículas, do pescoço, sentia a língua da
rapariga descolar-lhe a placa de arame e plástico do céu da
boca, pedia a gabardine ao criado, ajudava-a a vestir o casaco,
o mulato malcheiroso apertava-lhe, efusivo, as costelas, o do
bigode aplicava-lhe palmadas cúmplices nas nádegas, metia
uma nota de vinte escudos na mão encantada do porteiro,
espirrava ao frio cá de fora (Vou engripar-me, de certeza que
me vou engripar com este tempo), os vidros e os faróis do
carro cobriam-se de uma névoa de gotas, mais beijos, mais
apertões, mais remexidelas exaustas enquanto o motor, rombo,
trémulo, aos soluços, aquecia, os pára-brisas desembaciavam-
se por fora e embaciavam-se por dentro como os frascos onde
nadam fetos de sete meses em águas amarelas, e depois a
Pensão Jasmim, a Pensão Moçâmedes, a Pensão Paris, a
Pensão Alabama, a Pensão Antunes, a Estalagem Marvila
Águas Quentes & Duche, um soslaio de vaga curiosidade à
empregada da boutique, um soslaio sem nenhuma curiosidade
a ele, uma unha suja ou um polegar apontando um risco
impresso, Assine aqui o nomezinho, amigo, são trezentos
escudos adiantados faz favor, o mesmo papel de parede aos
medalhões, as mesmas fronhas húmidas, a mesma claridade de
cirrose, tirar a gabardine, a camisa, as calças, os sapatos, as
meias, esconder o nariz no lençol a chocalhar os ossos de
desconforto e de frio, e de súbito um flanco escorregadio
deslizando no seu dorso, uma brisa nos cobertores, uma
mãozinha gelada a premir-lhe os testículos, Cucu.
— Conheci um engenheiro, disse uma das gémeas loirinhas,
que me pagava para fornicar com ele e com um manequim de
montra chamado Alfredo. Era educadíssimo, magrinho,
director-geral há dezoito anos, a esposa faleceu-lhe de embolia
e uma tarde, ao passar na Rua dos Fanqueiros, viu o manequim
num estabelecimento, vestido de fraque, e apaixonou-se. De
forma que antes de a gente os dois se rebolar no colchão, o
fulano despia o Alfredo com todo o cuidado, penteava-lhe com
o pente e a escova dele as madeixas de estopa, desodorizava-o,
perfumava-o, passava-lhe a gilete nas bochechas de pasta,
estendia-o ao nosso lado, todo composto, com a cabeça numa
almofadinha de espuma, e pedia-me Dá-lhe um beijo também
senão ele amua, tu nem imaginas como o Alfredo é ciumento.
— Porque não te separas da tua mulher e vens viver
comigo?, sugeriu a empregada da boutique a calçar as botas de
verniz. Sempre se poupava o trabalho de mentir à minha mãe,
Artur.
— Repara nele, coitadinho, acotovelava-a o engenheiro,
embevecido, repara como se zangou connosco. És tão
desumana que não podes ao menos fazer-lhe uma festa, por
acaso?
— Cucu, respondeu o tenente-coronel numa vozita sumida,
sentindo-se imbecil, cretino, ridículo, a procurar
letargicamente, debaixo dos lençóis, os bicos do peito, a curva
do umbigo, os pelitos ralos do púbis.
— Uma pequena de dezanove anos, meu comandante,
opinou o oficial de transmissões a remexer com o dedo o
oitavo comprimido efervescente, o qual cuspia às guinadas o
seu gás à maneira de um escafandrista solúvel, é um sarilho
pegado.
— Tinha de me esfregar contra o Alfredo, chorou-se a
gémea, tinha de fingir que me vinha em cima dele.
— Alugávamos uma parte de casa, aliciou-o a empregada
da boutique, e íamos dançar ao Tubarão todas as noites. Em
Linda-a-Pastora, por exemplo, há uns andares que não são
caros.
— Vês como ele fica contente?, alegrou-se o engenheiro.
Vês o sorriso dele a agradecer-te?
— Ora até que enfim, exclamou a porteira a abrir-lhe a
porta, a beliscar-lhe a barriga. Nunca conheci ninguém tão
orgulhoso, gaita.
— Tenho de procurar aquele filho, murmurou o alferes.
Raios me partam se não é hoje que o encontro.
— E como é que descalçou o sapato, meu comandante,
perguntou o soldado, como é que se desembaraçou desse
estorvo?
— Uma tarde, disse o tenente-coronel, entrei na boutique e
dei de caras com a mãe. Nunca vi duas pessoas tão parecidas.
Tinham passado a véspera num barzinho de Alcântara,
fumarento e escuro, onde um sujeito filiforme, de pêra,
torturava um piano vertical, e que a partir das duas horas,
depois do fim dos espectáculos, se encheu de actores, de
jornalistas, de poetas, de realizadores de cinema bêbedos a
cabecearem contra os posters franceses que revestiam as
paredes do compartimento minúsculo, com lâmpadas forradas
de papel celofane vermelho e banquitos e mesas para anões em
torno do balcão O careca em mangas de camisa que vertia
impositivamente nos copos cocktails ferozes, de cereja
cristalizada e rodela de limão empoleiradas no gelo, ofereceu-
lhes cálices de bagaço repletos de um líquido esverdeado, e
um palito adicional destinado a agitar de leve (Cuidado,
aconselhava o careca, recuando) aquela insólita dinamite
liquefeita, capaz de reduzir as vísceras, logo ao primeiro gole,
a briquetes sulfúricos que chiavam. O tenente-coronel
lembrava-se vagamente de mulheres feiíssimas, despenteadas,
de túnica indiana e sandálias, dependuradas dos artistas em
ademanes proprietários, de pintores que vomitavam com
ímpeto, por cima uns dos outros, febras e pescada, de
romancistas grisalhos acompanhados por adolescentes de
jeans, imbecis e estáticas, imersas em meditações colegiais, de
fotógrafos de unhas sujas afastando para trás com as falanges
amarelas dos ácidos as grenhas inspiradas. Lembrava-se que a
testa lhe segurava a custo os miolos gasosos, que do vaso de
barro do coração despontava, barriga e membros fora, um
arbusto de artérias de arame, enterradas na carne, cujo rumor
de harpa o magoava, que os pés teimavam em voar, soltos, na
atmosfera saturada de cheiros, arrotos, gargalhadas
desdobradas como serpentinas, roncos e suspiros, lembrava-se
de ter querido bater, por motivos nebulosos, num saxofonista
loiro e de se ter abraçado a chorar aos joelhos de um chefe de
redacção em coma, lembrava-se da rua que se enrolava e
desenrolava, elástica, escorregadia, molhada da chuva, sob as
solas, do bailado sarcástico dos candeeiros, das fachadas que
desabavam continuamente sobre os ombros, e depois do táxi
(Não será melhor ir ao hospital com o seu pai, menina?) e do
som do motor que lhe arranhava o períneo, da pensão O Meu
Lar, junto à Casa da Moeda, cuja lanterna azul oscilava,
microscópica, nos antípodas, de se ter acocorado no passeio
insultando de filhas da puta as janelas sem ninguém, de tu a
amparares-me escada acima, a pagares o quarto, a empurrares-
me com toda a força para a cama, enjoado, tonto, sem energia
nem vontade, a apagares a luz, a atirares com as botas, e eu
via-te despir a roupa, peça a peça, na nevoenta manhã que
nascia, em gestos que se evaporavam fluidamente dos olhos
como sorrisos casuais de bebé.
— A mãe dela, sem mais nem menos, na loja?, assobiou o
soldado. Mas que grande bronca, meu tenente-coronel.
— Boa tarde, disse o tenente-coronel numa voz pálida (Se
eu morresse agora safava-me), aproximando-se da empregada
da boutique com a aflita lentidão de um condenado. Tem
toucas de criança, por acaso?
Acordou sozinho, ao meio-dia, atravessado no colchão,
sobressaltado por um sonho em que o avô lhe ralhava, da
poltrona de inválido, ameaçando-o com o castão de prata (de
prata?) da bengala. Longas cordas de chuva desciam
monotonamente lá fora, furúnculos de pus escorriam das
vidraças, cogumelos de grelado descolavam e empolavam o
papel de medalhões da parede, uma barata que trotava no
rodapé sumiu-se numa frincha do sobrado. Havia cinza, e lama
dura, e migalhas de bolachas nos desenhos do tapete, uma
borboleta morta, de patas para o ar, agonizava na mesinha de
cabeceira entre a garrafa de água e um copo poeirento. Os
músculos ardiam, os tendões ardiam, as articulações ardiam,
os ossos povoavam-se, ao menor movimento, de lâminas e
pregos lancinantes, as pálpebras, dilatadas como hemorróidas,
defecavam os olhos. Vestiu-se sem se lavar (nem sequer um
brilhozinho de água no jarro de esmalte), uma ou duas
raparigas, embrulhadas em toalhas, cambaleavam como
toupeiras no corredor, Onde estivemos ontem? Onde deixei o
automóvel?, o funcionário da recepção, que fazia a barba num
espelhito ao lado do chaveiro, exigiu-lhe cem escudos extra
(Já é meio-dia e meia, sócio, você desconhece os
regulamentos, sócio) enquanto as orelhas lhe palpitavam,
sacudindo espuma, semelhantes às dos cavalos afogados. Uma
tarde, em pequeno, o tenente-coronel chegou à praia com a
mãe no momento em que os banheiros arrastavam com cordas
uma égua defunta, devorada pelos caranguejos e inchada de
gases, a cujas queixadas enormes se prendiam lapas e limos, e
de tempos a tempos, imprevistamente, se fechava os olhos, em
África, na messe, no dentista, num jantar de amigos, a imagem
do cavalo afogado, de crinas penduradas como franjas de
tapete e grandes órbitas vazias repletas de cachos de moscas e
de insectos vermelhos que se atropelavam e ferviam, tornava a
subir a praia, de rojo, a caminho das barraquitas de madeira
dos balneários, seguido pela fome desesperada das gaivotas.
— Toucas de criança com fitinhas, insistiu o tenente-
coronel, em pânico, sentindo angustiadamente o ridículo da
sua pergunta e o bater do coração a diminuir e a apagar-se
lentamente no peito, como um círio. Um neto meu baptiza-se
no sábado, menina.
Pagou os cem escudos, deixou mais vinte de gorjeta para
acalmar o porteiro, que lhe impedia a saída de gilete em riste:
o homem embolsou as notas, contrariado (Querem gozar à
borla, caralho, querem-me comer por parvo), ficou-se a
resmungar ameaças confusas, cuspindo espuma mentolada, no
topo dos degraus, a chuva saltava com raiva no alcatrão,
dezenas de éguas náufragas amontoavam-se, informes, nas
valetas, um trovão cambulhou nos telhados precedido de um
risco rápido de luz, e o tenente-coronel, de gola do casaco
levantada, a tiritar na ombreira, procurava reconstruir o puzzle
da véspera enganchando romancistas e pintores, bebidas
explosivas, adolescentes trágicas e musas de túnica indiana
que se não articulavam uns nos outros: Viemos de táxi do
Flamingo, do Blitz, do Bunker, da Lontra, da Lareira, do After
Eight? Misturava nomes, odores, atmosferas, becos, confundia
trajectos, baralhava rostos, enganava-se na ementa do jantar,
na bebedeira, nas datas, nos assuntos de conversa, até que uma
zona longínqua do seu cérebro clareou dificilmente, um motor
qualquer principiou a trabalhar-lhe nos miolos, a mãe, os
banheiros e os cavalos defuntos evaporavam-se das valetas, a
nuvem de perfume surgiu a adverti-lo com o dedo, a Clarisse
tricotava de olhos baixos, o cão ladrou na cozinha a raspar
com as unhas compridas a almofada da porta, Alcântara.
— O meu comandante desculpe, disse o alferes, mas toucas
de fitinhas é coisa que não lembra a um tinhoso.
Encontrou o automóvel crucificado numa esquina de
travessa, com um papelinho de multa, desfeito pela água,
entalado no limpa-pára-brisas de borracha, casas pequenas,
comerciozinhos suburbanos, e lá ao fundo, como sempre,
entalado entre duas paredes, cinzento ou cor de leite sujo,
salpicado de barcos, desfocado pela chuva, o rio. E não só o
rio, a ponte; e não só a ponte, a estátua do Cristo Rei no seu
morro, silhuetas pardas de terra, povoações acachapadas nas
pregas de bochecha das colinas, o mar distante a seguir à
embocadura dos esgotos, com milhares de mulas mortas
vogando ao acaso, de onda em onda, obliquamente, na
direcção da areia. Mas o Volkswagen não pegava, carregava
nos pedais e um aglomerado de latas estremecia e calava-se, a
bateria emitia uns débeis roncos de protesto, a buzina chorava
lamentos ténues de cachorro, um grupo de rapazes saiu do
toldo de um café, curvou-se em arco nos guarda-lamas
traseiros, o carro ganhou velocidade numa calçada empedrada,
dançando nas calhas reluzentes dos eléctricos, o tenente-
coronel engatou a segunda, largou a embraiagem (Cheira a
perfume barato aqui dentro ou sou eu que cheiro a perfume
barato?), o automóvel pulou, estacou de súbito, tornou a pular,
gritaram-lhe Acelere acelere acelere acelere em grasnidos de
albatroz na tempestade, pisou o pedal, ouviu, atarantado, uns
soluços agónicos de bielas, ACELERE, berravam os pássaros
cada vez mais distantes, o capot dilatou-se como o peito de um
mergulhador na prancha, os cilindros confluíram e uniram-se
num zunir sem falhas, o ponteiro do conta-quilómetros
principiou a girar, tinha a camisa, as calças, o casaco alagados,
a gravata oscilava do pescoço como um trapinho, um
formigueiro crescia no nariz (Vou espirrar?), a terceira, a
quarta, alcançou um largo, uma rua mais ampla, grandes
edifícios incolores, uma alameda, uma praça circular de onde
se avistavam carruagens e guindastes, balões de semáforos, o
costado verde de um barco, extraiu os cigarros da algibeira
mas o maço, nauseabundo e pegajoso, transformara-se numa
espécie de papa lodosa, O que dirá a Edite, com que cara me
receberá, que mentira lhe prego, a mãe da empregada da
boutique, de sobrolho franzido, avançou um passo para ele
segurando a carteira a mãos ambas, adiante do ventre, como
para se proteger ou atacar, a filha, a mastigar pastilha elástica
com um anel de missanga no mínimo (Como o mau gosto dela
me é óbvio, pensou o tenente-coronel, surpreendido, como os
defeitos dela me são claros agora) encolhia-se atrás do balcão
à laia de um texugo doente, Vai dar uma voltinha ao bairro,
Lucília, que este senhor e eu temos uns assuntos urgentes a
tratar.
— Um problema dos diabos, disse o tenente-coronel a
despir a roupa molhada: o Regimento de Cavalaria de Chaves
preparava-se para vir por aí abaixo em pé de guerra.
Demorámos sei lá quantas horas a convencer os alferes, os
capitães.
Abriu a torneira do chuveiro, escondeu as cuecas, à pressa,
no fundo do cesto de vime, tomou um banho rápido, escovou
os dentes, barbeou-se com uma lâmina gasta a qual lhe
magoava o queixo sem decepar os pêlos, esfregou a cara, o
pescoço, os ombros, com uma água de colónia que lhe avivava
os arranhões, o lulu esbranquiçado veio inspeccionar-lhe,
rastejando, os calcanhares, afastou-o com um pontapé de ódio,
Chega-te para lá que não te posso nem ver, O quê, Artur?,
perguntou a nuvem de perfume que punha laca no quarto, Não
é nada, respondeu ele, estava a insultar sem me dar conta esses
camelos de Chaves.
— A pequena era virgem, senhor general. A mãe da
empregada da boutique bateu as pálpebras consternadas: E
agora?
Não pretendia armar zaragata, ora essa, não desejava
sarilhos, não queria questões: quase encostada ao tenente-
coronel, sem alarido, sem rancor, sem fúria, conversava num
flexuoso, desenvolto abracadabrante tom diplomático, porque
de certa maneira, senhor general, apesar dos meus legítimos
sentimentos de mãe, apesar do apelo do sangue, apesar do
indesmentível afecto que me liga à Lucília, era uma espécie,
digamos assim, de negócio, de transacção comercial que lhe
vinha propor: cheirava a sabonete ordinário, duas rodelas de
suor alastravam nos sovacos, o vestido puído enrodilhava-se
na barriga, as rugas ao redor das pálpebras eram iguais às que
cercavam a boca, como se três pedras tivessem caído ao
mesmo tempo no charco amarelo do seu rosto, o dedo grande
do pé furava a biqueira do sapato à maneira de uma cabeça
achatada de caracol assomando da casca, os cabelos sem
brilho tremiam como antenas: uma transacção, senhor general,
uma ridícula compensaçãozinha material e moral, o mínimo
que se pode exigir uma vez que foi o primeiro homem que a
Lucília conheceu, de forma que Vossa Excelência ou se casa
com ela, ou lhe monta um andar e a põe por conta, ou não faz
nada disto e eu vejo-me obrigada, com grande pena minha,
acredite, a comunicar à sua esposa a verdade dos factos e isto
tudo a sorrir, percebe (contou-me ele), a falar com os beiços
junto dos meus beiços, a puxar-me familiarmente a gravata, a
entornar no meu nariz um pestilento hálito fétido onde se
decompunham almoços antiquíssimos, lanches de casamento,
refogados, ovos podres, relentos azedos de vazante.
— O engenheiro era igual ao litro, mais maluco menos
maluco eu com o tempo já me tinha habituado a tudo, disse a
gémea, agora o manequim, ali estendido, a sorrir como os
finados, a cheirar a brilhantina e a perfume, metia-me uma
impressão do caraças. E depois a gente tocava-lhe e não existia
nada entre as pernas, só a pasta lisa da pele e as articulações de
plástico das ancas, nada que vibrasse, que crescesse, que
endurecesse, que se molhasse, que nos enchesse a mão. Eu
beijava-o e não lhe encontrava a língua, apertava-me contra
ele e o gajo nas tintas, lambia-lhe a orelha e nenhum arrepio
me respondia.
— E o meu tenente-coronel caiu que nem um pato,
gargalhou o alferes. O meu tenente-coronel borrou-se de medo
com a chantagem da gaja.
— Só mais um beijo, só mais um beijo, chiou o director-
geral a empurrar-lhe a cabeça para baixo. O Alfredo é uma
pessoa tão meiga.
— O manequim olhava-me, sorria de leve, e eu sentia-me
logo mal, disse a magrinha: as órbitas de vidro dão-me cabo
dos nervos.
— Eu, para mim, avisou a mãe da empregada da boutique,
não há como um apartamento na Avenida de Roma, ao pé do
Cinema Alvalade. Com as lojas todas ali à volta a pequena não
se cansa a fazer compras.
— A sujeita embrulhou-o em quatro, meteu-o no bolso e o
meu tenente-coronel a ver, riu-se o alferes. Aposto que na
semana seguinte tinha a menina instalada.
Não na semana seguinte mas no mês seguinte, não junto ao
Cinema Alvalade mas dois quarteirões depois do Vox, por
cima de um restaurante chinês repleto de leques em vitrines,
de colheres de porcelana, de criados de filme de terror e de
candeeiros de franjas encarnadas: um quarto, uma sala, uma
cozinha, um polibã, uma marquise, electrodomésticos, tapetes,
uma cama de arabescos de latão tão areados que ardiam na
vista se os fitava, televisão, gira-discos, música aos berros,
mesinhas de ferro por aqui e por ali e bibelots incontáveis:
ursinhos, gnomos, pássaros, copos com gravuras impressas,
uma fada de barro com uma estrela prateada no bico do
chapéu. A marquise debruçava-se, como dezenas de outras,
para uma praça rectangular, com árvores canteiros de relva e
bancos eternamente desertos, estabelecimentos vagos, de
vidraças pintadas de branco, e devia existir uma escola ou um
liceu nas imediações porque logo a seguir ao meio-dia bandos
de crianças de dez ou onze anos atravessavam em diagonal o
largo para se sumirem, numa espécie de túnel, para as bandas
do Hospital Júlio de Matos, onde os doidos vociferavam entre
os arbustos, esverdeados e convulsos. Teve de pedir dinheiro
emprestado para o apartamento, às escondidas da nuvem de
perfume, e de todas as vezes que metia a chave à porta
encontrava os irmãos, ou os primos, ou os tios, ou os amigos,
ou os pais dela instalados na sala, a bebericarem o uísque da
Manutenção, a debicarem os aperitivos da Manutenção, a
devorarem a carne da Manutenção, a conversarem, a
acotovelarem-se, a rirem, O meu comandante, desculpe dizer-
lhe, entristeceu-se o soldado, foi a sorte grande deles, a Lucília
despediu-se da boutique, pintou o cabelo de ruivo, coloriu as
unhas dos pés, contratou uma empregada, comprou um
pequinês horroroso, adquiriu num ápice nádegas e seios de
menopausa, inundou o guarda-roupa de vestidos pretos
decotadíssimos e chupava bombons de anis de manhã à noite,
imperialmente derramada, cremosa, quase líquida, num sofá
de veludo, folheando fotonovelas com um arzinho enjoado. O
tenente-coronel acabou, com o tempo, por fazer amizade com
o pai dela, um maquinista reformado a quem faltavam quase
todos os dedos da mão esquerda, cujos temas favoritos de
conversa eram locomotivas e descarrilamentos e que
terminava invariavelmente por lhe perguntar, após vários
rodeios circulares de abutre discretamente esfaimado, se não
trazia na carteira duas ou três notas de conto a mais porque
amanhã sem falta lhe pago, as dívidas aos amigos fique
sabendo que são sagradas para mim, e contudo claro que não
pagava nunca, decerto por se esquecer e o tenente-coronel se
acanhar de lembrar-lhe, a Lucília desinteressou-se dos bares e
das boîtes, dedicava empenhadamente o seu tempo a comprar
toiletes e a aumentar de peso, queixava-se todas as semanas,
de pé, nua, na balança, estremecendo banhas, Ganhei mais três
quilos, Artur, e uma bela manhã o coronel Ramos, após o
despacho, pediu, respeitoso, O meu general dá-me licença que
lhe faça uma observaçãozinha?, o tenente-coronel respondeu
entre névoas que sim, e o outro, muito grave, Os oficiais
acham que o meu general descura a direcção do Colégio, ainda
anteontem o secretário de Estado veio cá de surpresa e não
encontrou ninguém que o recebesse, já se murmuraram coisas
desfavoráveis, intrigas, histórias de saias nos corredores do
Ministério. Pensou em inquirir Quais coisas?, e desistiu,
pensou mandá-los todos à merda e esqueceu-se, apetecia-lhe
que o fulano se sumisse para avisar a ordenança Se
telefonarem para mim saí a fechar os olhos cinco minutos na
poltrona de coiro, Há quanto tempo não durmo eu uma noite
como deve ser?, o ruído dos chocolates impede-me de
descansar, as tuas mandíbulas sem repouso mantêm-me
extenuadamente acordado, o som do papel de prata que se
desembrulha assusta-me, Ó senhor general, gritou a mãe da
Lucília a mostrar, num gesto circular do braço, os armários
atulhados, esta rapariga não tem nada que vestir, veja lá, O
senhor general, avisava um primo qualquer, a inspeccionar a
despensa, olhe que só topo com garrafas vazias nesta casa,
Fazer amor com um director-geral e um manequim de pasta é
um bico de obra e peras, explicou a magrinha, andava à brocha
para arrancar um orgasmo ao Alfredo, dois ou três sacõezitos
mecânicos e já está, dois ou três pulitos de nada e pronto,
Outro jantar de curso?, zangou-se a nuvem de perfume, não
será melhor mudares a cama para o Terreiro do Paço? o
secretário de Estado insiste em falar consigo, meu
comandante, preveniu o telefonista extraindo-o dos seus
vapores sonâmbulos, Vossa Excelência deseja que eu lhe passe
a chamada?, Com vinte contos por mês não me governo, disse
a Lucília, de lápis em riste, a proceder a somas complicadas
num dorso amarrotado de envelope, ou o dinheiro aumenta ou
a partir do dia quinze não há nada que comer, o que valia é que
a nuvem de perfume montou uma segunda boutique no
Areeiro e quase logo a seguir uma em Campo de Ourique, uma
no Estoril e uma na Baixa, a mulher do coronel Ramos
associou-se ao negócio, a Clarisse dirigia a do Estoril, postada
entre uma agência de viagens e a sucursal de um banco, numa
minúcia canina e avarenta, O meu comandante perdoe,
desculpou-se o soldado, mas eu quase que aposto que a gaja se
deitava com outro, Está, está?, perguntou com irritação o
secretário de Estado, um homenzito insignificante e colérico,
muito querido do presidente da República, caramba, homem,
nem lhe conhecia a voz, você bebeu ou quê? O tenente-coronel
endireitou-se na cadeira, limpou as crostas dos olhos, tossiu,
abotoou à pressa o blusão da farda, remexeu à pressa alguns
papéis na secretária, Por amor de Deus, senhor brigadeiro,
nem de longe nem de perto, estava precisamente a estudar um
projecto de remodelação dos refeitórios. Tens uma cara
péssima, Artur, verificou a nuvem de perfume, porque não
fazes uma radiografia aos pulmões, Tens uma cara péssima,
Artur, porque não fazes uma análise ao sangue?, e eu a correr
desesperado de uma para a outra, entende, sem assistir de facto
a nenhuma, e eu sem tesão, sem gosto, sem paciência para
qualquer delas, a cabecear sobre o jornal, como um
octogenário, na primeira cadeira que apanhava, a aperceber-
me, antes de adormecer, das suas caretas de irritação e fúria,
Uma radiografia ao tórax, um clister opaco, uma análise de
sangue, uma análise de urina, pesquisa de ovos nas fezes, O
quê?, berrou o secretário de Estado, clisteres, análises, urinas,
ovos, que raio de asneiras está você para aí a rosnar?,
Cinquenta contos no mínimo, concluiu a Lucília, definitiva,
com menos de cinquenta contos morro à fome de certeza, e
devia no talho, e devia na mercearia, e devia na modista, e
devia na loja de artigos eléctricos, e devia uma fortuna na
Manutenção, sem contar que se lhe metera na cabeça ir passear
de autocarro ao Egipto, Bem me queria parecer que você está
bêbedo ou avariou, disse o secretário de Estado numa bonomia
de mau agoiro, apresente-se no meu gabinete às cinco. Onde
morará a Ilda?, sussurrou o alferes, uma tipa tão feia não deve
viver muito longe. Outro homem?, respondeu o tenente-
coronel a acabar o álcool da farmácia, eu ao princípio nem
desconfiava, caramba, eram tudo primos, entende, tudo
pessoas de família, tudo amigos de infância. Vestiu a farda
número um, mandou o Volkswagen seguir para o Terreiro do
Paço, cabos, sargentos, alferes, continências, corredores, o
odor de barroco do estuque velho dos salões enormes, o
tenente Cardoso, com uma pasta de papéis no sovaco, a saudá-
lo fugidiamente, de longe, num sorriso aflito e acanhado,
alguns oficiais atarefadíssimos que fingiam não o conhecer e
eu logo no interior de mim, Estes cabrões preparam-se para me
tramar alguma com certeza, o que é que o secretário de Estado
tem na manga? Faça o obséquio de aguardar um momento,
meu general, pediu-lhe um furriel que lia o jornal desportivo
numa cadeira de braços ao lado de um reposteiro de damasco,
vou anunciá-lo agora mesmo, e eu indiferente, aborrecido,
alheado, tonto de sono e de cansaço, os passos batiam no
mármore do chão e reboavam-me, distorcidos, no interior do
crânio, Vou Anunciá-Lo Agora Mesmo, Vou Anunciá-Lo
Agora Mesmo, Vou Anunciá-Lo Agora Mesmo. Confesso que
outro tipo nunca me passou pela ideia, quem ia ser tão
estúpido que acabasse com o maná que eu era, os pais dela
tratavam-me como genro, os irmãos consideravam-me
cunhado, a família da Lucília parecia achar tudo aquilo muito
natural desde que não faltassem bebidas, queijos, croquetes,
música, gargalhadas, vozearia, no fim de contas eu passava
mais tempo em Alvalade do que em casa e podia muito bem
divorciar-me da Edite, e podia muito bem cagar na nuvem de
perfume, e podia muito bem casar-me com a miúda, vinte e
sete anos de diferença hoje em dia não é nada, Conheci um
fulano que se masturbava diante das bonecas da filha, contou o
oficial de transmissões, mas agora viver com um manequim
acho demais, O nosso brigadeiro está à sua espera, declarou o
furriel com uma olhadela aos títulos do futebol, tenha a
bondade de me seguir, meu general, varandas para o Tejo
tranquilo, cor de azeite, barquitos a remos, o céu gordo de
nuvens, pessoas que entravam e saíam dos cacilheiros
atracados, o secretário de Estado, à paisana, de olhos baixos, a
consultar dossiers, o alferes desencantou de sob o fogão uma
garrafa de cerveja e dividia-a, em grandes goles, com a sede
sem fundo do soldado.
Enquanto eu tivesse dinheiro, disse o tenente-coronel, era
bem vindo, e quando a massa se acabasse faziam uma
escandaleira do caneco, insultavam-me, chamavam-me nomes,
mandavam cartas anónimas à Edite e iam-se embora, o furriel
tossiu de leve, o secretário de Estado ergueu as sobrancelhas,
fitou-os (Como se não soubesses que estávamos aqui há que
tempos, filho da puta), Ah é você, general, sente-se, sente-se,
uma poltrona desconfortável perdida no gabinete oceânico,
tapetes, gravuras de batalhas, a fotografia de um rapaz de farda
numa moldura de coral, o presidente a observar-nos, marcial,
da parede, o furriel retirou-se às arrecuas, Usar os brinquedos
da filha para se masturbar, estarreceu-se o oficial de
transmissões, um gajo horroroso, de joelhos no meio dos
palhaços e das bonecas, a babar-se e a dar à bomba na
breguilha. Vi uma blusa lindíssima, de seda natural, só por
nove contos, Artur, suspirou a empregada da boutique, não
achas uma pechincha, diz lá? O secretário de Estado
examinou-o demoradamente, de dedos entrelaçados, no tampo
polido da mesa, e as pupilazinhas esbranquiçadas dissecavam-
no com acrimónia: o tenente-coronel cruzou as pernas,
descruzou-as, tornou a cruzá-las, sentiu-se desamparado e
tenso como um equilibrista num arame, o foco de claridade da
janela, poeirento e lívido, iluminava-o de viés como no circo,
Vou falhar, pensou ele, os músculos não me obedecem, o
corpo não me obedece e estatelo-me no chão não tarda nada,
Outro almoço, outro jantar, outra noite fora, Artur?, estranhou
a nuvem de perfume, quando é que eu passo um serão contigo
como dantes?, e ele entreviu os pesados membros nus dela a
afagarem-lhe, lentos, o tronco, a boca a pastar-lhe o que
sobrava dos cabelos, o pescoço, a barriga, os joelhos, o púbis
numa sabedoria vagarosa, as madeixas platinadas a ocultarem-
lhe o rosto, a espalharem-se na almofada, a sacudirem-se de
espasmos: Tem havido protestos, tem havido cochichos, tem
havido queixas, proferiu o secretário de Estado num
quebradiço tom desagradável, no que se refere não só à sua
gestão do Colégio como inclusivamente à sua vida privada,
cartas de pais de alunos, reclamações verbais, relatórios, Se a
Edite se separa de mim, pensou o tenente-coronel, apreensivo,
como é que eu sustento com o meu ordenado a Lucília e a
família dela, como me seguro nas canetas com as despesas que
tenho? O pai ferroviário explicava-lhe prolixamente, com a
ajuda de três paliteiros e de quatro copos de água, o célebre
descarrilamento de Ovar em 1945, 0 preço dos géneros subiu
imenso este mês, informou-o amavelmente a mãe, coitada da
Lucília que se vê à rasquinha para alimentar tanta boca, cala-te
Hermínio que estou a falar com o nosso genro, aqui para nós,
que ninguém nos ouve, se o senhor general não sobe a parada
sinceramente que vejo as coisas muito pretas. O secretário de
Estado agitou na distância, no extremo oposto da sala, uma
pasta comprovativa e ameaçadora, Queria comunicar-lhe que
atendendo às circunstâncias sugeri para cima a sua passagem
imediata à reserva, o senhor anda cansado, general, creia que
todos aqui no Ministério não só o compreendemos
perfeitamente como julgamos que já vai sendo altura de
repousar o seu pedaço, o chefe do Estado-maior propôs a
medalha de prata de serviços distintos e eu, embora estas
coisas sejam confidenciais, posso adiantar que concordo com
ele em absoluto, Aguenta-te no arame, Artur, pela tua saúde
não te desequilibres agora, Claro que perde algumas regalias,
concordou o secretário de Estado, afastando insectos de
objecções com as costas da mão, mas continua a receber o
ordenado na íntegra e pode dedicar-se por inteiro aos seus
passatempos favoritos, porque segundo ouvi contar (sorriso
compreensivo) arranjou um divertimentozinho agradável e
jovem para as bandas da Avenida de Roma, o que eu acho de
resto excelente desde que não prejudique o serviço. Outro
homem?, perguntou o tenente-coronel, só me apercebi disso
meses mais tarde, em abril ou maio, ia eu a entrar na sala e um
de bigode afastou-se de repente da empregada da boutique:
fiquei muito caladinho, fiz de conta que não dei por nada, ao
outro dia cheguei duas horas mais cedo e catrapás, lá vinham
do quarto os guinchos e os suspiros que se espera, a mãe
montava guarda no vestíbulo a fazer crochet numa cadeira
baixa, olhou para mim, olhou para a porta fechada atrás dela,
tornou a olhar para mim e o sangue gelou-se-lhe, teve medo
que eu trouxesse uma pistola e esboroasse a filha a balázios,
que eu puxasse de uma faca e a cortasse às rodelas, Tenha
compaixão senhor general que são os dois menores, e eu
façanhudo por fora e a cantar por dentro Amanhã quero a loja
desocupada Madame, E se essa por acaso acabar, disse o
Secretário de Estado com um risinho perverso, o que falta por
aí são empregadas de balcão a trabalharem em
estabelecimentos de modas, na nossa idade sempre vamos
precisando de recreio, general, Fomos eu e o mudo, meu
comandante, esclareceu o soldado, quem lhe levou os tarecos
de Alvalade, na camioneta, para serem leiloados a peso, por
sinal que lhe quebrámos sem querer um vidrito do armário,
desculpe, A partir de janeiro, que é o mês das gatas, franziu-se
o secretário de Estado, tem vinte e quatro horas por dia para as
folias que entender, arranje uma casa de campo, dedique-se à
jardinagem, leia as Selecções, compre um boxer, fornique, e
eu ri-me também, no meio dos damascos, sem vontade
nenhuma, para lhe dar prazer, mas o pior ainda estava para vir
quando descobri que a Edite se governava igualmente, pelo
lado dela, nunca percebi com quem, Ia lá a casa, meu tenente-
coronel, confessou o oficial de transmissões como quem
vomita um almoço exagerado, tenho um fraco por fulanas
gordas e entradotas, ficávamos juntos a seguir, abraçados,
fumando, a ver os cavalos do carrossel no tecto, demorávamos
horas até encontrar os brincos da sua esposa no lençol, as
contas do colar partido, as cuecas, uma liga, Nunca mais vi a
Lucília, queixou-se o tenente-coronel sem escutar, nunca mais
vi o do bigode, comecei a levar as tardes na cama, sem olhar
para nada nem pensar em ninguém, até ganhar raízes de carne
no colchão, como um feto, o meu sangue girar na placenta do
soalho, eu me transformar numa espécie de mineral ou de
crisálida por ali especado, aguardando em vão que me
crescessem penas de asas nas costas, compreende, para poder
voar.
7

— Afinal era essa a mulher misteriosa?, perguntou


severamente o alferes ao oficial de transmissões. Afinal
sempre era essa garina de que não querias falar-nos?
— Com tantos buracos nas tábuas ainda aterramos um dia
destes no vizinho de baixo, rouxinolou a nuvem de perfume,
desgrenhada, de gatas no tapete, com a pintura dos olhos a
escorrer pelo pescoço abaixo, como tatuagens guerreiras, para
os queijos dos seios enormes. Ajuda-me a encontrar a carteira,
benzinho.
— O meu tenente desculpe, repreendeu-o o soldado, mas
enganar o nosso comandante é uma vergonha.
Encontravam-se ao princípio, apesar dos mudos soslaios
reprovadores da Esmeralda, que se benzia de oratório em
oratório, na casa por trás da Feira Popular, observando pela
janela aberta as barquinhas microscópicas da Grande Roda e
as lâmpadas vermelhas e amarelas dos Discos Voadores
Electrónicos (Palavra que só sabia que o marido era tropa,
palavra que nem sonhava quem fosse), mas o reumático da
nuvem de perfume acomodava-se mal ao estreito colchão, ao
meu sono sobressaltado que a sacudia e empurrava, ao
pequeno, ventoso quarto de banho com uma única toalha ao
fim do corredor, depois de sete ou oito crucifixos tremendos e
de dezenas de santas de barro que fosforesciam nas trevas a
sua virtude acusadora, acomodava-se mal às traças, às baratas,
às girafas e ao pó, e acabou por alugar um apartamento em S.
Domingos, junto à mata, perto das calhas do comboio que
atroavam a noite de roucos mugidos melancólicos e de
fungadelas constipadas de travões.
— Morei num andar ao pé da mata, disse a deusa do strip-
tease Melissa, e tive de mudar-me quinze dias depois por via
da chinfrineira dos corvos.
Se a gente se levantava, meu capitão, para beber água, se
lavar no bidé ou urinar, se se aproximava da varanda,
encostava o nariz aos caixilhos e espreitava para fora, o que
distinguia era uma massa móvel, verde escura, de copas
aguçadas, de cotovelos de ramos, de madeixas de folhas, e
mais tarde, quando um halo lívido já separava os troncos dos
arbustos e as janelas surgiam a pouco e pouco, quadradas, dos
rostos sem feições dos prédios, frutos de pássaros negros
tombavam um a um das árvores e os corvos começavam a voar
em círculo em torno das sombras ainda húmidas, indivisas da
cidade, planando sobre a inquietação dos cachorros e os
despertadores cardíacos dos notários adormecidos, gritando-se
chamamentos aflitos de crianças. Corvos de órbitas amarelas e
bicos curvos como as unhas dos velhos, desdobrando os
guarda-chuvas rotos das asas na manhã que crescia, corvos
que apareciam, desapareciam, reapareciam rasando os peitoris
lascados e os arabescos de ferro das varandas, que tocavam as
paredes, se afastavam, rodopiando, regressavam, velozes e
fúnebres, colorindo a insónia das pessoas de largos crepes
bafientos de morte. Em África, pensou o oficial de
transmissões, os corvos eram maiores, mais cruéis, mais
espessos, mais estranhos, mais carregados de ameaças e de
presságios, e surgiam não de madrugada mas no início da
noite, na súbita e sólida noite dos trópicos, pesada de
salamandras, de cobras, de insectos, de milhares de ferozes ou
neutras pupilas vegetais, escutando, espiando, palpando,
aborrecendo-se, dissecando e as negras idosas, ocultas de
joelhos no interior das cubatas, repetiam Ah os corvos,
abanando as frágeis e tendinosas cabeças assustadas. De forma
que sempre que dormia em S. Domingos, no apartamento
junto à mata, o oficial de transmissões confundia os tempos e
as horas, a floresta de Moçambique e a cidade apodrecida
descendo rio abaixo, como um detrito, na direcção do mar, e
abria a breguilha do pijama diante da sanita como as calças do
camuflado de encontro a um eucalipto invisível, erecto nas
trevas à maneira de um enorme pénis lenhoso. Os borborigmos
presentes dos canos e os uivos antigos dos morcegos
misturavam-se-lhe, agudos, na ideia, o seu próprio contorno,
esbatido no espelho, reduzido a uma vaga silhueta empenada e
imóvel, aparentava-se ao de um guerrilheiro ferido, exibindo a
tripa pendente, sangrando mijo, numa aurora de desgraça, a
reverberação dos azulejos estremecia e cintilava, à maneira de
plantas submersas de liamba a agitarem as chatas falanges
nervuradas, e tornava para a cama como se voltasse, a arrastar
os pés cheios de bolhas, de uma patrulha de três dias,
emagrecido, cansado, sem ossos, de barba por fazer, abrindo
sulcos no chão atrás de si com a espingarda de uma perna
dormente (Não bebas mais), e um reflexo de pavor animal nos
olhos apagados.
— Doutor, doutor, queixou-se a deusa do strip-tease
Melissa, arranje-me um medicamento qualquer porque ando
com os nervos em franja do barulho dos corvos.
— Com aqueles comboios e aqueles pássaros todos, disse o
oficial de transmissões, que remédio tinha eu senão levar a
noite inteira a beber.
Pousava o maço de cigarros, a garrafa de uísque e um
cinzeiro vazio na mesinha de cabeceira, e logo a seguir ao
jantar, depois do rápido das nove, enquanto a nuvem de
perfume levantava os pratos e os quadros estremeciam nas
paredes, engolia dois ou três dedos de álcool para suportar a
noite, dois ou três dedos pelo correio das dez e doze, dois ou
três dedos pelo de mercadorias das onze e vinte, dois ou três
dedos pelo foguete da uma e trinta e três, a nuvem de perfume
coçava-me o cabelo e eu nem lhe sentia as unhas, introduzia-
me o mamilo na boca e eu nem lhe conhecia o gosto, tratava-
me por benzinho e eu nem lhe escutava os arrulhos, esmagava-
se contra mim e eu nem lhe percebia o cheiro, fugidias
serpentes de janelas iluminavam o tecto, os objectos de loiça
pulavam no aparador, o autoclismo descarregava-se sozinho
num sopro de travões, O meu tenente não se arrepende do que
fez e pede desculpa ao nosso comandante de lhe comer a
patroa?, perguntou o soldado, as mechas platinadas rebolavam
e giravam, lá em baixo, aos suspiros, entre as minhas pernas,
Não tinha a mínima ideia de quem ela era, defendeu-se o
oficial de transmissões, como é que eu podia adivinhar o nome
do marido da gaja?, vinha-me quase sem dar por isso ao
décimo comboio, tornava a vir-me ao quadragésimo nono, a
velha vestia-me, despia-me, mexia-me, beijava-me, lambia-me
o umbigo, beliscava-me a pele, afogava-me o nariz comprido
nos sovacos, a claridade do uísque iluminava-me mornamente
as tripas, a vesícula acendia-se e apagava-se como o gasóleo
dos barcos, à quinquagésima composição ela soprava, exausta,
Até amanhã benzinho, e os meus pés fosforesciam,
esqueléticos e simétricos, na extremidade da cama, apontando
ao tecto os relevos escamosos dos calos. Os corvos, pensava
eu, o que será feito dos corvos?, mas não havia corvos, meu
capitão, não havia mulher, não havia casa, só os comboios a
atravessarem-me incessantemente o corpo e o pénis inchado e
grosso de veias tombado de lado na virilha, só um espaço
turvo onde me afundava devagar e a voz, cada vez mais
distante, Até amanhã benzinho, desaparecendo no vestíbulo
dissolvida no som dos saltos dos sapatos, das batidas do meu
sangue na cabeça e do atrito quase inaudível da roupa, Os
corvos, minha senhora?, inquiriu delicadamente o médico,
corvos que imagina ou corvos que tem em gaiolas lá em casa?,
e mal principiava a adormecer o despertador cravava-me um
insuportável, tenaz anzol doloroso no ouvido, e logo a seguir a
barba, o chuveiro, a escova de dentes, a gana de vomitar
quando alcançava a rua, o autocarro para o Ministério, os
solavancos que me avivavam a taquicardia, o enjoo, o sono, o
desejo de morrer, a minha cara verde nos espelhos, os meus
soluços de bagaço e clorofila, as minhas madeixas
desgrenhadas, cumprimentos nauseosos de sargentos e de
praças, degraus, corredores, degraus, mais corredores, a
secretária repleta de papéis à minha espera, o médico era novo,
ingénuo, inexperiente, aloirado, olhava, franzido, de caneta
suspensa sobre a ficha, a deusa do strip-tease Melissa, e ela
pensava, furiosa, Este idiota julga que estou doida, este idiota
não acredita em mim: tinha vestido a melhor roupa, apertava a
melhor carteira nos joelhos, apanhara o cabelo na nuca com
um laço casto, não trazia pintura, só um bocadinho
insignificante de carmim nos lábios, e tentava
empenhadamente sorrir: Moro junto à mata, doutor, os corvos,
sabe como é, gritam-me a noite toda debaixo da janela, há-de
haver na farmácia um comprimido, uma injecção, um pó, uma
coisa qualquer contra os pássaros, algodões nas orelhas não dá
nada, Realmente, concordou o alferes, deitar-se com a mulher
do nosso comandante é grave: às onze da manhã, quando o
cérebro se me começava a clarear, certo e sabido que tocava o
telefone e era ela, a vozinha desafiadora, o hálito quente das
sílabas, Olá benzinho, o Artur foi agora mesmo para o
Colégio, não posso viver sem ti, diz-me que me amas, anda, e
eu a aparar um lápis buscando orientar-me naquele temporal
amoroso, e eu a arrumar carimbos, entontecido, como quem
espiolha em vão o norte trémulo das bússolas, o complicado
nome das cidades e dos rios do mapa do meu dia, mas as
palavras dela empurravam-me de novo, brutalmente, para a
confusa agitação da véspera, um comboio passava de roldão
na sala triturando as máquinas de escrever dos dactilógrafos,
que se desfaziam numa chuva de parafusos e de teclas, O
nosso tenente, afirmou com energia o soldado, devia ser
punido de imediato, meu capitão. Mata?, Corvos?, perguntou o
médico, interdito, hesitante, é a primeira vez que frequenta
uma consulta de nervos?, Pedias a transferência para a
província e fugíamos os dois, benzinho, propôs a nuvem de
perfume, já imaginaste que felizes que seríamos por exemplo
em Viseu? Traz-me um café bem forte que vejo tudo à roda,
pediu o oficial de transmissões, a tapar o bocal com a mão, ao
capitão Ananias, à medida que um segundo comboio
esmagava estrepitosamente cadeiras e armários, espalhando
fechos metálicos, dobradiças, dossiers, aparas, um café bem
forte antes que eu marche desta para melhor, amigo, Um chuto
nos tomates nunca fez mal a ninguém, esclareceu a porteira, a
servir a sopa, não há como um par de estalos para meter um
homem na ordem: o médico jovem levantou-se, apagou o
cigarro, disse Um momento, saiu, pela janela do gabinete
avistava-se uma sucursal de banco, plátanos, telhados, raras
pessoas, o sol aquoso, nuvens. A deusa do strip-tease Melissa
escutava sem as entender o zunir de conversas dos que
aguardavam as consultas lá fora, apinhados numa salita
minúscula, Um cálice de anis talvez me fizesse melhor do que
o café, pensou o oficial de transmissões à beira do desmaio ou
do vómito, não há como um cordial para arrebitar um gajo,
Castigá-lo é uma ideia, anuiu o alferes, o meu tenente-coronel
deseja que a gente o prenda na retrete? Não eram só as
locomotivas, meu capitão, lamentou-se o oficial de
transmissões, com as locomotivas ainda me aguentava eu,
eram os apitos, as cometas e o pivete de urina das passagens
de nível, as povoações, os prédios e os postes a andarem para
trás muito depressa, Quem fala em Viseu fala em Peniche,
benzinho, sussurrou a nuvem de perfume ao telefone, não te
apetece viver ao pé do mar comigo? O capitão Ananias
apareceu por fim com o café, um dedal de líquido preto a
oscilar na chávena, o pires tremia, o pacotinho de açúcar
tremia, a colherzita de folha tremia, a mão do homem tremia
também, Engole depressa, camandro, antes que eu entorne de
vez isto tudo, pediu o capitão Ananias, tanta coisa a chocalhar
irrita-me, o médico novinho regressou acompanhado de outro
bastante mais velho, alto e careca, com pregas de chefe na
testa e uma enorme verruga escura na asa do nariz, o qual se
instalou à secretária, mediu a deusa do strip-tease Melissa e
ordenou com benevolência Ora vamos lá a deslindar como
deve ser essa história de rolas, o sol, cada vez mais aquoso,
tocou um telhado que principiou de imediato a arder, Não são
rolas, senhor doutor, emendou respeitosamente o loirinho a
apontar a ficha com o polegar, está aqui escrito que são
melros, Melros ou rolas é o mesmo, cortou o careca,
definitivo, trata-se de um delírio com pássaros e basta: não era
só aquele telhado que ardia, observou a deusa do strip-tease
Melissa, de mais dois ou três próximos erguiam-se também
chamas vermelhas, antenas de televisão pendiam como ossos
de mortos, e algumas chaminés amoleciam e torciam-se como
velas sob a acção do calor: Estas esquizofrenia com bichos,
explicou o médico velho a juntar as pontas dos dedos e a
inclinar com suficiência a cadeira para trás, são a coisa mais
comum que existe, não percebo como é que você se foi
atrapalhar com pardais Os edifícios consumiam-se um a um lá
fora, reduzidos a conezinhos de cinzas, na claridade
sanguinolenta da tarde, plátanos em brasa tombavam sem
rumor na erva murcha, amarelenta, espigada como pêlos
compridos de sovaco, um cão com o focinho e o pescoço em
labaredas sumiu-se num beco húmido como um tonel. Quer
pastilhas para afastar as avezinhas, não é?, perguntou
amavelmente o careca, pois tem toda a razão, minha senhora,
elas de facto maçam a gente que se farta, e para o discípulo,
didáctico, meu caro amigo, não há avestruz nenhuma que
resista. Se calhar já não tenho casa, imaginou aterrorizada a
deusa do strip-tease Melissa, vendo a cidade ruir
silenciosamente à sua volta, se calhar, em lá chegando, o
bairro é um monte de carbonosas paredes mestras fumegantes:
o oficial de transmissões estendeu o braço para a xícara e
derrubou o café, derrubou o pires, derrubou a colherzinha e
derrubou o açúcar, o capitão Ananias (Caramba, caramba,
caramba) sacudia a protestar as calças encharcadas, Quem diz
a casa, pensou a deusa do strip-tease Melissa, diz o aparador
antigo que me custou doze contos na Rua de São Bento, diz a
cama Império, diz o jarrão da entrada, diz o serviço de chá, O
meu alferes, perguntou o soldado, furibundo, acha que fechar o
nosso tenente na retrete é castigo que chegue? O barulho dos
corvos na mata?, espantou-se o médico velho a amachucar a
receita, eu sabia lá que havia corvos na mata. Em Peniche, ao
pé do mar, teimava a vozinha sinuosa da nuvem de perfume,
com ondas e gaivotas e naufrágios e nós dois, já viste que
romântico? Fodeste-me o fato novo, meu caralho, zangou-se o
capitão Ananias a enxugar as nódoas pegajosas com o lenço,
esta merda nem na lavandaria me vai sair. Há dúzias de corvos
a fazerem chinfrineira na mata, senhor doutor, elucidou
submissamente o médico jovem dobrado em ângulo recto para
o careca, uma das minhas tias mudou-se para Xabregas por
causa deles, uma enfermeira albina, de touca, abriu a porta
para ciciar Ainda há doze doentes à espera, senhor director, já
nos entraram duas vezes pelo arquivo dentro, a protestarem,
ordinaríssimos, Que esperem, urrou o careca, escarlate, com
uma veia a bater fortíssima na testa, estou aqui a tratar de
pintassilgos: Acabou por aconselhar-me, disse a deusa do
strip-tease Melissa, umas cápsulas azuis que me secavam a
boca, punham o coração aos pulos, obrigavam constantemente
a urinar, e me impediam de pregar olho toda a santa noite, Que
desordem vem a ser esta, suas bestas?, rugiu o careca no
corredor, não admito más criações comunistas no posto,
Tomarmos banho juntos na praia, soprou a nuvem de perfume,
estendermos as toalhas lado a lado, pormos creme um ao
outro, lermos o jornal em cadeirinhas de lona, e o oficial de
transmissões imaginou aquela nojenta velha gorda, de chapéu
de palha ridículo na cabeça, óculos escuros com ratos Mickey
na armação, sucessivas pregas róseas a transbordarem do
biquini: crianças nuas paravam para olhar, sujeitos graves, de
sapatos na mão, espantavam-se, boquiabertos, e apeteceu-me
desligar o telefone, e apeteceu-me mudar de casa, e apeteceu-
me fugir. Ainda por cima atreve-se a falar mal da esposa do
nosso comandante, ainda por cima diminui-a, ainda por cima
detesta-a, A Lucília morreu o ano passado de tifo, informou o
tenente-coronel, aboborado no sofá, a acariciar distraidamente
um sapato de homem com as pontas dos dedos, disse-me a
Edite ao jantar: O meu capitão está-me a ver a besuntá-la de
pastas?, lamuriou-se como um condenado o oficial de
transmissões, o meu capitão está-me a ver a espalhar-lhe nas
costas aquela manteiga castanha? Os corvos não a maçam
mais, prometeu o jovem médico, os corvos nunca mais a
chateiam, anoitecera agora por completo e quando a deusa do
strip-tease Melissa alcançou a rua acendiam-se os candeeiros
da cidade, grandes sombras informes, ainda claras, ainda
diurnas, ainda nítidas, vacilavam nas fachadas, os sons
adquiriam um timbre aguçado de vidro, os primeiros morcegos
subiam e desciam, rápidos, no silêncio, o céu engelhava-se
sobre os telhados, e afinal as casas permaneciam intactas, só
que mais misteriosas e ameaçadoras e densas, e afinal as
árvores sobreviveram ao incêndio, e afinal os corvos
sobreviveram às cápsulas, e ela suspirou aliviada, deixando de
amarrotar ansiosamente a pele da carteira com os dedos,
porque tudo continuava, como dantes, na tranquila e serena e
habitual ordem quase geométrica do costume.
— No fundo o que eu me sentia era sozinho, murmurou o
oficial de transmissões para ninguém, tão baixo como se
rezasse, contemplando de olhos ocos o cálice vazio. E além
disso, com a doença da Esmeralda, o pó amontoava-se, o lixo
amontoava-se, o correio por abrir amontoava-se, o andar,
percebe, ia-se tornando a pouco e pouco inabitável.
— Dei quinhentos escudos à mãe para a ajuda do enterro,
mandei uma coroa de flores com um cartão, disse o tenente-
coronel: há mais de não sei quantos anos que a não via. Parece
que pesava cem quilos, que se cansava por tudo e por nada,
que estava por conta de um construtor civil.
— Era eu que limpava, que aspirava, que cozinhava, orou o
oficial de transmissões a erguer o cálice num trémulo gesto
pontifício. E fazia a cama da Esmeralda, coitada, e mudava-lhe
a roupa, e colocava-lhe a arrastadeira sob as pernas. Com o
tempo a pobre deixou de conter as fezes, a urina.
— Vocês têm ideia, perguntou o tenente-coronel, de quanto
custa um funeral daqui para Alcochete?
— Levava os dias numa cadeira de espaldar alto,
pormenorizou o oficial de transmissões, a mirar a rua com
órbitas de estátua. Eu conversava com ela, Boa noite, Olá,
Como te sentes, e a velha moita, era o mesmo que nada.
— E um anjo de pedra, hã, para enfeitar a campa?, avançou
o tenente-coronel largando o sapato. Um anjo para aí de um
metro, não mais, a chorar, com um livro aberto na mão e
Descansa em Paz no pedestal?
— Não me conhecia, não me respondia, não falava, parecia
que não ouvia raspas, disse o oficial de transmissões a
abençoar o copo. Vendi a tralha dos santos e os oratórios todos
para a meter num lar.
— Morrer, desde que acabou a guerra, é uma complicação
do caraças, meu comandante, anuiu o soldado. Em África, ao
menos, era canja: um tiro, um caixote embrulhado na bandeira,
o vagomestre a descontar nas batatas, nenhuma cerimónia,
nenhuma pieguice, nenhumas lágrimas, o telegrama á família
Faleceu em Combate na Província de Moçambique, e depois o
porão de um navio para Lisboa e já está. Chegava-se a ter
inveja dessa facilidade toda, lembra-se?
— Sanearem-me?, ululou sarcasticamente o careca no
corredor, sanearem-me? Mais um pio e eu é que te saneio a ti,
meu cabrão, e acabo-te de vez com as consultas. Há um tomate
de meses que as revoluções acabaram.
— Uma contribuiçãozinha, senhor general, por pouco que
seja, humilhou-se a mãe (Outra pessoa, pensou o tenente-
coronel, positivamente outra pessoa): a minha filha apreciava-
o tanto.
— Temos quartos para três, cinco e oito contos, enumerou a
gerente do lar, de carrapito e bata aos quadradinhos como as
governantas de há vinte anos: as mesmas sobrancelhas severas,
os mesmos chinelos, os mesmos pêlos no nariz, a mesma
desagradável boca estreita. Nos de três a cinco não há vaga,
nos de oito faleceu anteontem por acaso a viúva de um
ministro, e se quiser inteirar-se das instalações faça favor.
— Vasculhei os jornais, chateei os amigos, corri Lisboa
inteira à procura de um sítio decente, desculpou-se o oficial de
transmissões multiplicando majestosamente as benzeduras,
mas lar para velhos é I 599 mais difícil de encontrar do que
uma virgem numa casa de putas. Até que por fim descobri
aquele ali, na Calçada do Combro.
Uma mercearia à esquerda, a cheirar a cevada e peixe seco,
um clube de bilhar à direita (tacos cruzados sobre uma bola
vermelha) e um prédio antigo e magro, de dois andares, com
uma placa metálica colada à campainha, Clínica De Idosos Pio
XII, Acolhimento Cristão, janelas fechadas, vagos rostos
imóveis nas vidraças, feições indistintas nas dobras das
cortinas: carregou no botão e um esguicho agudo fendeu de
súbito o silêncio lá de dentro, rasgando cobertores e
inquietando passos, a porta abriu-se sem ruído, um vestíbulo
de azulejos, um bengaleiro, uma mesa encostada à parede,
com um prato de loiça em cima, um guarda-vento de vidros
granulosos verdes e amarelos, uma empregada de gatas e cu no
ar a encerar degraus: o quarto de oito contos situava-se no piso
de cima e o oficial de transmissões distinguiu de passagem, no
rés-do-chão, uma sala grande, com um aparelho de televisão
apagado e uma dezena de velhos sentados, quietos, cor de
papel pardo, de palmas abertas nos joelhos, por aqui e por ali,
escadas, uma volta de corrimão, um patamar. É o catorze,
esclareceu a gerente a chinelar, rápida e hirta, adiante dele:
extraiu um molho de chaves do bolso, um trinco resistiu,
rangeu, cedeu, acabou por pular num estalo de língua: Aqui
tem, disse a mulher, claro que lhe falta o arrumo, a
limpezazinha final: uma cama em mau estado, um enxergão
irregular que ondulava, um armário de gavetas esbeiçadas,
santinhos pendurados de pregos que cravaram buracos rombos
na caliça, o papa Pio XII, de óculos, a espetar o nariz de
pássaro místico, um odor indefinível de urina antiga, alfazema,
remédio, roupa podre. O oficial de transmissões arredou a
cortina que quase se lhe evaporava nos dedos e lá estava a
Calçada do Combro, descolorida na manhã de outubro, um
homem de mãos nos bolsos no limiar de uma sapataria
modesta, atulhada de botinhas de bebé, restaurantezitos de
toalhas de xadrez, oficinas, barbeiros, a montra fosca de um
antiquário, um tipo de fita métrica ao pescoço que atravessa a
rua a correr. As pupilas de peixe da governanta pesavam-me
toneladas nas costas, uma barata de antenas milimétricas
passeava-se no rodapé: A viúva do ministro, pensou o oficial
de transmissões, morreu decerto de olhar todos os dias esta
acanhada paisagem sem esperança, estes tascos, estas
alfaiatarias, esta ausência de sol, telhados sobre telhados sobre
telhados e sobre estes mais telhados ainda, a chuva do outono
que entristece e não molha, o frio que não chega a ser frio mas
enregela, as tosses de sílex que oiço lá de baixo, chaminés,
cães deprimidos, cabo-verdianos camarários, de camisas rotas,
destruindo o alcatrão à picareta, comandados por um paisano
que aponta as canalizações a consertar com o bico sujo da
bota, amanhã trago-te para aqui de táxi, Esmeralda, instalada
em silêncio ao meu lado, e venho visitar-te três ou quatro
vezes por ano, com um pacote de broas e uma vontade enorme
de me ir embora o mais depressa possível, até me telefonarem
para o emprego ou para casa, compungidos, multiplicando as
pausas num fundo de estalidos eléctricos, Faleceu, eu chego,
esta gaja que me magoa as costas com os olhos espera-me
muito séria à porta, e tu estendida de preto na cama, com o
queixo amarrado por um lenço e um crucifixo nas raízes de
vide seca das mãos, tão alheada como de costume, tão surda
como de costume, tão calada como de costume, tão indiferente
como de costume, A janela não tem fecho, previne a
governanta, para obstar a tentações, já por mais de uma vez
apanhámos no último instante pacientes nossas a tentarem
galgar o peitoril, um prestamista também, quase à esquina, a
exibir oiro e relógios e telefonias gastas, amanhã vendo os
oratórios do corredor na vergonha de quem contrabandeia os
ossos preciosos da avó, pago uns meses adiantados e sossego:
uma coluna de formigas marchava rente a uma fenda
ziguezagueante da parede, uma lâmpada sem quebra-luz no
tecto, uma ponta de cigarro acalcanhada no soalho, faço a
mala das tuas coisas e entorno-as nas gavetas, as combinações,
as camisas de dormir, as meias, as cuecas, os ganchos de
cabelo, aquele pente grande de madrepérola, a Nossa Senhora
de Fátima de barro, e adeus e até sempre e aguenta-te no
balanço que eu também, o tipo da fita métrica tornou a
atravessar a rua com as abas do casaco ao vento e a cabeça
inclinada pela chuva, voltou-se para a gerente a pensar Agora
é que a minha infância deu o bafo de vez, e disse alto, no tom
de quem profere, contrariado, uma sentença inapelável,
Guarde-me o quarto que amanhã às três da tarde estamos aqui
os dois.
— Tudo pela hora da morte, senhor general, chorou-se a
mãe da Lucília a enxugar com o lenço em bola as lágrimas que
não havia. E o amigo, assim que ela adoeceu, abandonou-a
como uma cadela. Se o meu marido, ou os meus filhos os
tivessem no sítio davam-lhe cabo do canastro de certeza.
— Ou Évora, gemeu a nuvem de perfume a percorrer-lhe o
contorno da orelha com a língua. Comprei lá um terrenozito
em tempos e depois o sotaque alentejano tem tanta graça,
benzinho.
— Eu continuo a achar uma vergonha o que o nosso tenente
fez, declarou o soldado. Mas como mais ninguém aqui se
importa com isso já cá não está quem falou.
— O pai, resmungou a mulata gorda no seu sono, afaste-se
vossemecê para lá que ocupa a cama toda, poça.
— Podemos sempre matá-lo, sugeriu o alferes a rir-se.
Quem está de acordo com a pena capital levante o braço.
— Senhora enfermeira, senhora enfermeira, urrou o careca,
possesso, chame o contínuo se for preciso mas quero este
comunista de uma figa imediatamente na rua.
— Os médicos não se entendiam com a doença dela, disse a
mãe da Lucília, de cabelo desordenado, sob cujas pálpebras
espessas inchavam moles olheiras violetas, e recambiavam-na
constantemente para casa com vitaminas e supositórios. O que
acontecia é que a febre não parava de subir e quando lhe
fizeram uma análise ao sangue era tarde.
— No estado em que ele está, opinou a ajudante do
ilusionista, basta um soprinho para se apagar.
— Se os senhores oficiais votarem a favor, prontificou-se o
soldado a arregaçar as mangas, enfio-lhe uma garrafa de
cerveja pelos cornos.
— Mudei-a, lavei-a, cortei-lhe as unhas, expliquei-lhe que
nos íamos embora, que ela se ia embora para a Clínica De
Idosos Pio XII, Acolhimento Cristão, orou o oficial de
transmissões, beijei-a na testa porque a velha, por assim dizer,
me criou, porque apesar de tudo, mesmo com a Esmeralda
naquele estado, se calhar cega, e muda, e surda, ou se calhar
apenas indiferente a mim, longe de mim, a cagar de alto em
mim e na casa e nas limpezas e nos cozinhados, só nos
tínhamos um ao outro, não é?, e ela impávida, sem mexer um
músculo da cara sequer, sem me sorrir, sem me olhar,
descemos os degraus comigo agarrado com toda a força ao
corrimão, a segurar-lhe os ossos de peixe magro da cintura, a
endireitá-la constantemente nas pernas que amoleciam, a
conversar baixinho as asneiras inúteis que se salivam em
ocasiões assim, coloquei a mala de cartão, em forma de baú do
Far West, ao lado do condutor do táxi, arrumei-me a ela e a
mim no banco de trás e para a Calçada do Combro, chefe,
número trinta e cinco, chefe, E se você não se cala, avisou o
médico careca para a mulher nova que protestava, acabaram-
se-lhe as consultas também, O que estará ela a pensar?, tentou
imaginar o oficial de transmissões durante o trajecto, que raio
de ideias lhe germinarão na pinha? Chovia sempre, a mesma
chuva pulverulenta e leve, o céu assemelhava-se a uma barriga
contráctil de salamandra, e os pombos do Chiado abrigavam-
se, de pescoço encolhido e asas desenfunadas, nos nichos das
igrejas. Os pneus dançaram um momento nas calhas do
eléctrico, a sapataria, os restaurantezitos de toalha de xadrez,
as oficinas, as cómodas de embutidos do antiquário, o
prediozito estreito, o clube de bilhar com os tacos cruzados
sobre a bola, Aguente os cavalos, chefe, que é aqui. E
novamente a campainha a rasgar como uma faca os cobertores
das camas e as quitinosas gargantas frágeis dos velhos, a
empregada de cu para o ar, feia, antipática e triste, polindo
metais e maçanetas com um frasco de líquido amarelo, a
governanta a examinar em silêncio a Esmeralda, a examinar o
baú, a conduzir-nos a um gabinete que anunciava Escritório,
em letras de cartolina, na almofada da porta, prateleiras com
arquivos de capa de cartão, facturas, receitas, carimbos, um
pote cheio de lápis e canetas, uma máquina de escrever,
envolta num sudário de plástico, numa mesa desmontável. Já
devem ter aberto a taberna, anunciou o alferes numa rouquidão
agónica de pelicano, vou lá abaixo num rufo comprar vinho, a
Rua da Mãe-d’Água, lívida, aumentava e encolhia-se como
uma guelra, Se eu caio da cama, resmungou a mulata a voltar-
se atabalhoadamente de ventre para baixo, nunca mais torno a
dormir cá em casa. O oficial de transmissões tirou o dinheiro
do bolso, a gerente observou as notas sobre a mesa,
desconfiada, preencheu um recibo numa letrinha primitiva,
inscreveu a Esmeralda num espesso registo quadriculado, Pelo
menos dois litros pediu o tenente-coronel que se interessava
agora prodigiosamente pelas próprias unhas, esta madrugada
sem vinho fica um velório insuportável, o Príncipe Real e a
Calçada do Combro irmanavam-se, para além dos vidros
pouco limpos, na mesma miserável água turva, no mesmo
ventinho frouxo de asmático na aflição, no mesmo frio morno
que gelava, nos mesmos telhados descorados idênticos em
todos os bairros da cidade, nos mesmos estabelecimentos e
lojecas e vendas sem público, nos mesmos ranhosos saldos
desertos, nos mesmos vendedores ambulantes em farrapos,
Três litros, meninos, disse a ajudante do ilusionista, que de um
e meio dou eu cabo num instante, a gerente e o oficial de
transmissões carregaram a Esmeralda, em peso, para o
primeiro andar, ajudados pela empregada das maçanetas que
transportava a mala, um velho de pantufas arrastava-se
devagarinho, empenado, no corredor, na direcção de uma
varanda com plantas, Já para o quarto, senhor Martins, latiu-
lhe autoritariamente a governanta, que merda de desobediência
é esta? Tinham desenrugado os lençóis, passado um pano nos
móveis, pendurado mais alguns mártires acessórios, de
sandálias e grandes olhos castos, nas paredes, expurgado as
baratas e as formigas, colocado flores defuntas numa jarra,
Fica aqui que nem uma rainha, dona Esmeralda, prometeu a
governanta, e logo hoje, calcule, que temos almôndegas com
puré de batata ao jantar, sentámo-la à janela diante dos
telhados e dos comércios e da cinzentura da tarde e nem uma
prega se lhe moveu, nem uma careta, nem uma interjeição,
nem um ronco, nem um sorriso, compus-lhe uma madeixa do
cabelo, rocei-lhe os lábios na testa, e é possível que me tenha
visto na rua, inclinado sob a chuva, a afastar-me o mais
depressa que podia a caminho da paragem do autocarro, é
possível que me tenha reconhecido pelos gestos, ou pelos
ombros curvados, ou pela forma de andar, é possível que se
tenha perguntado para onde é que eu ia, é possível que tenha
tido pena de mim, pensado nos anos devolutos, na Feira
Popular, na minha madrinha, na cadela a morrer nos azulejos
do fogão, no estridor dos carrosséis e nos animais fantásticos
que ondulavam em círculos no tecto, e quando entrei em casa,
meu capitão, havia um silêncio enorme nos compartimentos
sem ninguém, manchas rectangulares, mais claras nos sítios
onde faltavam os móveis que eu vendera, a desarrumação e a
sujidade do costume, e na cozinha, ao encostar o nariz aos
caixilhos, percebi lá fora, lá em baixo, os telhados sobre
telhados sobre telhados, as chaminés e as lojecas da Calçada
do Combro no entardecer de outubro, e um tipo que
atravessava o alcatrão a correr, de fita métrica ao pescoço,
abrindo os braços para as vagonetas periclitantes da Montanha
Russa.
— Cinco litros chegam?, perguntou o alferes a arrastar pelo
soalho, atrás de si, um garrafão de verga cuja boca salivava e
babava uma espuma roxa de bronquite. Devem ser oito horas,
abriram a taberna agora mesmo.
— Oito horas, caralho?, admirou-se o tenente-coronel,
interessado num anónimo joelho adormecido. Se não me
ponho imediatamente na pireza a minha mulher ensaboa-me o
juízo.
— Então em que é que ficamos, senhores oficiais?,
impacientou-se o soldado. Mata-se o nosso tenente ou não se
mata?
— Nem sequer dá muito trabalho, riquezas, auxiliou uma
das gémeas loirinhas. Basta enfiar-lhe um saco de plástico até
ao pescoço e apertar.
— Borges, ordenou o careca para um sujeito sem testa, de
aspecto obediente. Estes quatro camelos fora do posto já.
— Que divertido, disse a ajudante do ilusionista a entornar
um grande copo até à borda. Até agora só assisti a execuções
no cinema.
— Ou Manteigas, benzinho, já te lembraste de Manteigas?,
sugeriu a nuvem de perfume em entoações sinuosas de sereia.
A serra da Estrela, no inverno, é linda.
— É esquisito como com o tempo, meu capitão, as coisas se
vão apagando a pouco e pouco da cabeça, envergonhou-se o
oficial de transmissões, penalizado. Este ano, por exemplo,
esqueci-me do aniversário dela.
As árvores do Príncipe Real, pensou ele, agora diurnas,
haviam perdido o mistério e a espessura da noite, a
profundidade dos edifícios, dos rostos, das coisas, diminuíra,
os latidos dos cães não se assemelhavam já a espelhos que
interminavelmente se esfacelam e se quebram, as vozes e os
saltos dos sapatos cessaram de me ferir, a sombra enorme da
mulata adormecida, de pernas encolhidas no lençol, reduziu-se
às simples e humanas proporções de um corpo, operários
martelavam e erguiam andaimes num prédio vizinho, o céu
ocre ou cor de farda pesava, opado, nos telhados, também vai
chover hoje a mesma miúda chuva idiota de sempre, gotas
suspensas, que não caem, sem consistência nem substância,
apenas o desconforto do ar húmido, e roupa pegada às costas,
as peúgas encharcadas sem que se entendesse como, Se são
oito horas, pensou o oficial de transmissões, a fauna e flora
esverdeada dos bares deve vomitar agora o derradeiro uísque e
o derradeiro mijo na loiça da retrete, deve-se estender vestida
no colchão escutando o ruído aflito do sangue que coxeia
pelos membros, a água dos lagos, entre buxos, arrepia-se de
dobras que se fazem e desfazem, rugas de testa, linhas
concêntricas, bexigas transparentes, a Esmeralda acordou já de
certeza, espia já, tensa, em silêncio, os mínimos ruídos da
clínica, as tosses, os talheres, os passos, um aspirador
longínquo, não me reconhece ou finge que não me reconhece a
voz (Sou eu, olá, boa tarde, vim visitar-te, estou aqui) mas
escuta as plantas crescerem nos vasos e os nós da madeira que
palpitam, se encolhem e distendem como corações de pau, os
arbustos do Jardim Botânico desembaraçaram-se das suas
crisálidas de trevas e ascendem, lentamente, na direcção da
luz, todos os dias à espera, pensa, no emprego ou em casa, do
telefonema que não vem, do cicio compungido que não fala,
das pausas cerimoniosas que não chegam, quem sabe se me
vais sobreviver, Esmeralda, quem sabe se vais continuar
durando eternamente, de nariz nos caixilhos, sobre os
estabelecimentos melancólicos e o emaranhado de chaminés
da Calçada do Combro, o alferes distribuía o vinho, o líquido
derramava-se em manchas ovais na carapinha do tapete, a
mulata gorda sentou-se na cama a abrir as gigantescas
mandíbulas de hipopótamo, como dentes de metal amarelo
cravados ao acaso, como parafusos, nas gengivas, Quem vota
a favor da pena capital levante o braço, insistia o soldado na
teimosia de borracha dos bêbedos, Manteigas é que é, concluiu
triunfalmente a nuvem de perfume, uma lareira, botijas,
cobertores de papa e nós lá dentro, A Edite já deve estar aos
saltos, danada, à minha espera, apavorou-se o tenente-coronel,
já foi de certeza buscar a tesoura de cortar as linhas à caixa da
costura, o capitão Ananias, na casa de banho, esfregava as
calças com sabão grasnando insultos em voz baixa, a
governanta, de sobrancelhas franzidas, organizava o pequeno-
almoço dos velhos, Qualquer dia, pensou o oficial de
transmissões, escrevo-te uma carta, Esmeralda, a contar-te
como o andar aumentou, como o caruncho me rói os armários
e as veias, como mesmo às três da tarde os aparadores
naufragam como barcos num crepúsculo imóvel, como custa a
respirar naquele silêncio, como quando abrirem a Feira e a
música de lixa dos altifalantes sacudir as cortinas e as girafas
rodopiarem em espiral no tecto nenhuma delas me encontrará
na sala, porque morarei em Manteigas ou em Peniche ou em
Évora ou em Viseu com uma insuportável madame de cabelos
pintados e um lulu horrível, Todos estão de acordo, disse o
soldado numa mansa fúria, tirando o meu capitão que não
mexeu um dedo, Levo uma mala de roupa, pensou o oficial de
transmissões, alguns retratos, alguns livros, o búzio que
apanhei em pequeno na praia da Areia Branca e que traz um
ténue hálito de mar ao meu ouvido, a máquina de barbear e os
postais e as cartas da Dália, a ajudante do ilusionista regressou
cambaleando da cozinha com a faca do pão, Espeta, espeta,
incitou a mulata, a gémea do manequim batia as palmas
contentes enquanto a irmã, abraçada ao tenente-coronel, sorria
no vazio um inexpressivo riso estúpido de ovelha, Espeta,
gritou o alferes com o vinho a escorrer-lhe, em dois fios
espumosos, para o peitilho engomado da camisa, Prometo que
agora no Natal não falto, pensou o oficial de transmissões, que
irei pessoalmente pagar a mesada em lugar do vale de correio
do costume, que subo ao primeiro andar e que te vejo, prometo
que me interesso, telefono, pergunto por ti, te visito mesmo
que more em Manteigas, mesmo que more em Peniche,
mesmo que more em Viseu, mesmo que more em Évora,
Espeta, acuou a deusa do strip-tease Melissa, feroz, a apertar o
garrafão entre os joelhos, o trânsito do Príncipe Real
adensava-se, tilintavam eléctricos lá em cima, chispas azuis
fulguravam nas paredes, o cãozito obeso da porteira, Espeta,
rouquejava o seu constipado ódio matinal, No domingo logo a
seguir ao almoço, pensou o oficial de transmissões a misturar
uma alka-seltzer no vinho, tomo um autocarro para a Calçada
do Combro, entre a sapataria e o clube de bilhar, rumo à
Clínica De Idosos Pio XII, Acolhimento Cristão, e há-de
haver, senhores, tantos pombos no Loreto, tantos pombos no
Camões, que se inclinou para lhes tocar, para lhes servir uma
mão cheia de aspirinas contra as tonturas e os vómitos que ia
descascando uma a uma, como ervilhas, da sua embalagem
verde, de forma que não se deu conta de o soldado levantar-se,
segurar a comprida faca, com ambos os punhos, pela tosca
manga de pau, e enterrar-ma com toda a força no lombo como
a um vitelo que se abate. E nem mesmo a Esmeralda, apesar
do nariz encostado aos caixilhos, deu pelo corpo de bruços no
passeio do largo, a cinquenta metros dela, no meio da
indiferença ou do susto ou da fome dos pássaros, entre as
chaminés, as árvores, os sótãos, e os telhados sobre telhados
sobre telhados sobre telhados que ocultavam o rio.
8

— Que fazemos nós do cadáver?, perguntou a ajudante do


ilusionista, preocupada, tocando no corpo do oficial de
transmissões com a ponta do pé para ver se mexia. Dentro de
três ou quatro horas, meninos, é um fedor aqui que não se
pode.
Os fotógrafos da polícia, imaginou a loirinha, percorriam a
desordem do apartamento tirando salvas de retratos, sujeitos
de joelhos procuravam impressões digitais nas maçanetas e
nas garrafas, inspectores de esferográfica em punho
interrogavam as vizinhas, automóveis com lâmpadas acesas no
tejadilho obstruíam a Rua da Mãe-d’Água, enquanto guardas
fardados afastavam com grandes gestos a curiosidade das
pessoas, e tipos de bata introduziam numa ambulância uma
forma comprida, atada com correias, embrulhada num cobertor
de papa.
— E as manchas de sangue?, disse a deusa do strip-tease
Melissa. Há manchas de sangue na alcatifa a dar com um pau:
onde é que se guarda o detergente cá em casa?
Um Cadáver No Príncipe Real: Crime Crapuloso Ou
Político?
— A solução, propôs o tenente-coronel, é esperar que
anoiteça outra vez e deixar o tipo num jardinzeco ou num
banco qualquer, como um pedinte. Pode ser que os cães o
comam, pode ser que as camionetas do lixo o levem, e durante
uma data de horas estamos safos.
— Fui eu que o descobri, esclareceu vitoriosamente a
mulher-a-dias a uma pinha de sujeitos de jornais, que lhe
enchiam a boca de molares de microfones. Assim que meti a
chave à porta senti logo um cheirinho de morto a escapar-se da
despensa.
— Era só para o assustar, meu capitão, justificou-se o
soldado. Palavra que mal lhe rocei a faquinha na camisa,
palavra que nunca julguei que ele nos pregasse a partida de
espichar.
O Defunto Pertenceu Durante Anos A Uma Conhecida
Organização Terrorista De Extrema Esquerda: Ajuste De
Contas? Vingança Neofascista? Não Perca Amanhã Os
Depoimentos Dos Principais Partidos Sobre Violência
Revolucionária E Democracia.
— Na despensa, esmiuçava a porteira, sentado num caixote,
coberto de jornais velhos, com um pacote de pó para a loiça
enterrado pela cabeça abaixo.
— Ao princípio, disse o guarda do urinol, estendido de
costas na relva de nariz nas margaridas, todo composto, pensei
que dormia. Só quando os cadelos lhe começaram a rosnar à
volta e a puxar pelas calças é que desconfiei e fui ver.
Mais fotografias, mais impressões digitais, mais autópsias,
mais perguntas pelo prédio, a silhueta do oficial de
transmissões desenhada a giz na alcatifa, retratos com grandes
títulos nas primeiras páginas dos diários, e nós os quatro de
algemas, numa sala repleta de homens e mulheres indiferentes
que escreviam à máquina, diante de um fulano gordo a atender
telefones, a abrir o correio com uma espátula de madeira, a
chupar pastilhas das anginas e a questionar severamente nos
intervalos, erguendo a narigueta autoritária, Quem matou?
— Ó meu capitão, indignou-se o soldado, eu andei vinte e
seis meses com o nosso tenente em Moçambique, ia lá agora
enterrar-lhe dez centímetros de lâmina no umbigo.
O PMC, Partido Monárquico Cristão, dolorosamente
cônscio da vaga de imoral criminalidade que presentemente
atravessamos, alerta as portuguesas e os portugueses para os
perigos decorrentes da chamada Civilização Moderna, e da tão
celebrada Democracia, corruptores dos saudáveis costumes
nacionais, e apela às Forças Armadas, ao Episcopado, aos
industriais do Norte, aos grupos de casais, aos comerciantes
por grosso e aos católicos em geral, no sentido de
congregarem os seus esforços a fim de porem termo, com
firmeza e sem tergiversações, às tendências socializantes que
uma ateia minoria moscovita nos pretende impor, e que
arrastam inevitavelmente consigo o estupro, o roubo, o
desrespeito pelas instituições estabelecidas e pela nossa
sagrada história multissecular, o mongoloidismo, o bócio, a
pornografia, a diminuição das vocações sacerdotais, o aborto
terapêutico, os métodos anticonceptivos, os dispositivos
uterinos, os filmes suecos, os soutiens de renda, as mães
solteiras, o parricídio, o divórcio, os biquinis e outras formas
igualmente deletérias, igualmente cruéis de destruição dos
Lares, da Família, das terrinas da Companhia das Índias, e dos
valores tradicionalmente conservadores e agrários em que
assentam o nosso bem estar, a nossa economia, e o nosso
Futuro.
— Que grande merda, queixou-se a deusa do strip-tease
Melissa a esfregar a alcatifa, de escova em punho, mergulhada
até ao pescoço numa nuvem de espuma acastanhada. Esta
porcaria esfarela-se toda, camandro, não tarda nada desata a
pingar no andar de baixo.
— A alcatifa não era grande coisa, meu capitão, disse o
alferes, mas como foi a Inês que a comprou gostava dela.
E porém mesmo com a casa alterada e arranjada pela mãe e
pela irmã, mesmo com todos os possíveis vestígios do passado
disfarçados ou banidos, acontecia-lhe às vezes abrir um
armário e deparar-se-lhe um casaco esquecido, encontrar um
álbum de retratos antigos por trás dos livros da estante (grupos
sorridentes na praia, almoços de família, uma mulher com um
bebé ao colo), um colar quebrado numa gaveta, pensos
higiénicos no quarto de banho, a nódoa de outra nuca na
cabeceira da cama, e esses fragmentos do passado, juntando-se
a estilhaços e pedacinhos de episódios perdidos na memória,
reconstituíam, articulando-se e unindo-se, anos e anos inteiros
que agora lhe doíam mansamente como um dente de trás, e o
faziam vaguear, de olhos enovelados, de compartimento em
compartimento, farejando como um cachorro, através dos
cheiros novos de mobílias e tecidos e pinturas, a urina
irremediavelmente evaporada da presença da Inês, do riso da
Inês, do corpo da Inês nos lençóis, do silencioso, recolhido,
sacudido espanto do seu prazer.
— Isso é o menos, atira-se o homem pela janela fora, propôs
a ajudante do ilusionista, e toda a gente vai pensar que o
desgraçado se suicidou.
O Cadáver Mutilado Do Príncipe Real: Mais Detalhes
Acerca Do Crime Que Apaixona Lisboa.
— Claro que era a brincar, meu capitão, disse o soldado. Eu
conheço os regulamentos, ia lá tocar com um dedo num
oficial.
Seria O Defunto Homossexual Ou Traficante De Droga?
Entrevista Em Rigoroso Exclusivo Com O Chefe Da Brigada
De Estupefacientes.
— Assim mesmo, explicou a porteira aos jornalistas,
sentado nesse caixote de vinhos, de casaco nos joelhos, já
meio podre, a olhar para mim. É claro que depois disso passei
uma semana sem dormir.
Réus Condenados A Quinze Anos De Prisão Maior Celular.
Não Conseguindo Suportar O Peso Da Culpa, Militar Na
Reserva Enforca-se Na Cadeia.
— A Inês voltou com a Mariana e uma amante nova, há uns
cinco ou seis anos, do Brasil, disse o alferes. Instalou-se em
casa dos pais com a filha e a amiga, no meio dos cães, da
cocaína, dos irmãos, e a miúda ou ela, não me lembro bem,
passadas semanas, telefonou-me.
Principiou num posto sem grande relevo, como director-
adjunto da Secção de Pessoal, esclareceu um senhor muito
bem vestido, muito bem penteado, de cabelos brancos, com
uma condecoração na botoeira, instalado a uma secretária
gigantesca, e com o tempo, lentamente, lá foi subindo com
dificuldade alguns degraus. Os seguros são um ramo ingrato,
meu amigo, e além disso, tratava-se de um funcionário triste,
apático, introvertido, sem iniciativa, anónimo, invisível: uma
ocasião, por exemplo, faltou três semanas por doença e
ninguém lhe deu pela ausência.
Ex-Alferes Expedicionário Em Moçambique Comprometido
No Nefasto Assassínio?
— Olá és tu nem te conhecia a voz estás bom, recitou a Inês
de um jacto, se quiseres visitar amanhã a Mariana em
Carcavelos a partir das três estamos em casa.
O mesmo portão oxidado, longe da Marginal, lá em cima,
de onde se via o mar, o mesmo caminho de saibro que os
pneus esmagavam, estalavam, mastigavam, as mesmas árvores
e buxos em desordem, os mesmos cães de olhos vermelhos, só
que mais idosos e menos turbulentos, ladrando, mordendo-se,
pousando as patas enormes contra os vidros, a piscina vazia,
de azulejos e estatuetas quebradas, cheia de ramos e de folhas
secas, a vivenda, de persianas corridas, a apodrecer ao sol.
Aproximou-se do alpendre da entrada (Há quanto tempo não
vinhas aqui, caramba), subiu dois ou três degraus
esborcelados, com um par de leões de pedra, já sem nariz, na
base, tocou a campainha e o som rombo de outrora reboou,
como um voo de perdiz, através de salas e salas vazias,
perdendo-se na infinita distância da cozinha, da copa, do
quarto de engomados, acanhado, estreito, sem janelas, onde
uma criada fúnebre, de carrapito, passava a ferro himalaias de
lençóis.
A Polícia Investiga A Possibilidade De Um Ajuste De
Contas Entre Quadrilhas Rivais.
Tornou a tocar a campainha, cercado pela curiosidade dos
cães que o miravam, de orelhas espetadas e língua de fora,
com os largos peitos sujos crescendo e encolhendo-se, uma
nova perdiz rebolou nos corredores (Já onze anos em abril,
foda-se), sapatos rápidos cada vez mais perto, gemidos
horríveis de gonzos, um desconhecido, instantâneo sorriso sem
afecto de mulher. É o pai da Mariana, não é? Os mesmos
móveis no vestíbulo, os mesmo odores, as mesmas vagas
silhuetas de cunhados deslizando ao fundo, quase sem tocar
nos tapetes, consumidas por labaredas de heroína: tudo
permanecia igual, meu capitão, só a gente é que envelhecia a
pouco e pouco, uma teia de rugas multiplicava-se ao redor dos
olhos e dos beiços, a espinha doía com as mudanças de tempo,
três lanços de escadas metiam-me os pulmões, sufocados de
cuspo, na boca. A idade escavaca-nos num instante, senhores,
aparecem-nos pedras nos rins e na vesícula, o cabelo rareia, os
músculos amolecem, o sexo é trapinho inútil a mijar de lado,
insignificante e escuro. Até que por fim eu morto numa igreja
qualquer, de lenço na cara, jaquetão e gravata, cicios, bicos de
pés, pessoas de preto, velhotas em cadeiras à volta, uma
agoniada claridade de icterícia nos rostos e nos gestos,
transformando os parentes em compungidos mudos peixes de
luto.
— Acaba lá com filosofias mórbidas, ordenou a Inês, que a
garota vem aí.
Teria O Tenente Pires Sido Violado Antes Do Assassínio?
Importantes Revelações Do Médico Legista Nas Páginas
Centrais.
— Mete-se o finado no quarto de banho, sugeriu a outra
gémea, e aposto que toda a gente vai pensar que morreu de
fazer força, que no espremer dos cagalhões lhe saíram as tripas
pelas costas.
— O benzinho, disse a nuvem de perfume a semear
aereamente laca no cabelo, sentada, em roupão, num
banquinho sem costas, imagina que me vieram contar que a
tua filha vive com outra mulher em Carcavelos.
Havia mais automóveis no pátio de saibro, quase todos
grandes e novos, com motoristas dignos lendo o jornal ao
volante. Do primeiro andar chegavam gargalhadas,
exclamações, ruídos confusos de conversa, passos, a Inês e a
outra rapariga, esquecidas dele, pareciam coçar-se mutuamente
as penas do peito com o bico. Um primo alto e ruço
acotovelou-me sem me olhar, de copo de uísque a tremer na
mão sardenta, um Cristo soturno coçava-se na cruz, num
quadro a óleo fumarento como o das igrejas, em gestos
compridos de lombriga, e nisto, vinda de uma sombra
repolhuda de cortinados e tapetes, uma bola de madeixas loiras
em desordem, uns vagos peitinhos a nascer, o nariz do meu
pai, umas desajeitadas pernas gorduchas, um sorriso
envergonhado, Olá.
— Ou na cozinha, com uma fatia na mão, contrapôs a
ajudante do ilusionista, de testa franzida à procura de ideias
salvadoras. Estava muito bem a cortar o pão e nisto a faca
escorregou-lhe do pulso e trás.
Funcionário Modelo, Único Amparo De Empregada Idosa
Internada Numa Clínica: Atestam Companheiros De Trabalho
Que Exigem Para O Assassino Ou Assassinos Castigo
Exemplar.
— Uma mulher riquíssima, neta de banqueiros ou qualquer
coisa assim, informou a nuvem de perfume, de órbitas
cravadas no espelho, a desenhar a lápis, com infinitos
cuidados, os evasivos arcos milimétricos das sobrancelhas.
Conheceram-se no Brasil e moram num palácio cheio de
carpetes, de cristais, de estátuas. Que estranho a tua filha não
te dizer nada, Artur.
Onde é que uma pessoa leva uma criança de catorze anos,
que ainda por cima mal conhece, a passear, meu capitão?
Tentei o Jardim Zoológico (um olhar desinteressado às zebras
e aos camelos), um circo ambulante (saímos antes dos
palhaços da primeira parte), um museu, com mais escarradores
do que telas, no qual a Mariana permaneceu o tempo inteiro, a
mastigar pastilha elástica, contemplando bovinamente uma
parede vazia, o Castelo de São Jorge, com pavões entre as
trepadeiras que cobriam as ameias arruinadas, e autocarros de
excursionistas embasbacados diante de um lago com três patos
famélicos, a praia (um ventinho desagradável penetrava as
tubas dos ossos e a certa altura o céu cobriu-se repentinamente
de nuvens e começou a chover), e acabámos por regressar
desanimadamente, ao fim da tarde, a Carcavelos vendo o mar
pular sobre a muralha e varrer biliosamente a Marginal, os
pálidos candeeiros acesos, invertidos no alcatrão molhado,
manchas de edifícios, árvores que se inclinavam ora para um
lado ora para o outro numa desordem de vénias, e depois o
desvio para a direita, a rampa enlameada bordada de arbustos e
de chalés pretensiosos de emigrantes, onde os pneus do carro
derrapavam e fugiam, um coelho que aparecia e desaparecia
na claridade trémula dos faróis, o portão oxidado, o caminho
de saibro, os lobos d’alsácia ondulando nas trevas, o
rectângulo cego da piscina em que se deslocavam imprecisos
reflexos de reflexos, a minha mão comovida e tímida no teu
joelho já carnudo, já redondo, já de mulher, que se me retraía,
embaraçado, sob os dedos, o corpo a endurecer no banco, Só
lhe digo que gostei imenso, pai.
A Associação Dos Antigos Alunos Do Liceu Gil Vicente
Promove, Por Ocasião Do Trigésimo Dia Do Seu Falecimento,
Uma Sentida Romagem À Campa Do Colega Tão
Dolorosamente Desaparecido.
— A gente à procura, ao menos com os filhos, de uma
relação sincera, queixou-se o alferes, e sempre mentiras,
sempre rodeios, sempre evasivas, sempre aldrabices, sempre
bocejos maçados, sempre amabilidades condescendentes,
sempre soslaios distraídos. Como quer que eu acredite que não
estamos sempre sozinhos, meu capitão?
— Em Carcavelos, sim, garantiu a nuvem de perfume a
folhear impacientemente os cabides de plástico à procura de
um vestido de ramagens. Se não acreditas, caraças, vai lá ver.
— Tão cedo?, perguntou a Inês, espantada. Não me digas
que não havia nada de interessante em Lisboa.
— Têm a certeza que no caixote do lixo, duvidou a ajudante
do ilusionista, cabe um tipo inteiro com os joelhos dobrados?
— Em Carcavelos, numa casa enorme, um palácio, ladrou-
lhe a nuvem de perfume a puxar para cima o fecho éclair das
costas. Tenho aqui o número, meu camelo, toma lá, telefona-
lhe.
— O meu pai, que engraçado, esteve em África, mais ou
menos na mesma época, disse a outra rapariga, muito à
vontade, a massajar o ombro com uma enérgica palma
masculina. Setenta, setenta e um, não foi? Ainda era eu casada
com aquele pateta, nessa altura.
— A senhora do cabelo roxo ficou em São Paulo,
amancebada com uma antiga freira que desfilava, vestida de
homem, nos carnavais do Rio, contou o alferes. Essas
cabronas nunca se perdem, meu capitão.
— Que ideia, mãe, contrariou a Mariana com uma
assustadora naturalidade adulta. Fomos a montes de sítios,
andámos constantemente daqui para ali, divertimo-nos que
nem calcula. O pai, quando quer, tem pilhas.
E eu ali no meio, entre as três, meu capitão, sorrindo
estupidamente, de boca aberta como um mongolóide, para
uma e para outra, apalpando o maço de cigarros com os dedos
e com acanhamento de fumar, a apetecer-me uma cerveja e
com vergonha de pedir, cerimonioso e hirto, a sofrer com os
silêncios e a aliviar-me com os segredos, os gestos, as
conversas, a perceber em contraluz, entre duas portas, o perfil
carnívoro da Hilária exibindo-me os longos dentes antipáticos
ferozes, a escutar por baforadas o som do televisor na saleta,
onde o velho devia cabecear, de uísque na mão, na poltrona do
costume.
— Ali as duas, entende, disse o alferes, encostadas às arcas
e aos móveis antigos, sob os santos, as paisagens, as naturezas-
mortas, de ancas a roçarem-se, de joelhos a roçarem-se, de
falanges a roçarem-se, como se a miúda não existisse, como se
eu não existisse, como se ninguém existisse, num impudor do
camandro. Palavra que só faltava despirem-se e devorarem-se
mutuamente as mamas, à minha frente, num apetite de
insectos.
— Então onde é que tu moras agora?, perguntou como que
casualmente o tenente-coronel, a tentar acender em vão um
isqueiro que falhava e lhe fugia dos dedos. Nunca me
procuras, nunca me telefonas, nunca queres saber de mim, até
parece que a minha vida deixou de te interessar por completo.
— E qual dos senhores o matou?, preocupou-se de súbito o
polícia gordo, com um telefone em cada orelha. Qual dos
presentes espetou a faquinha no defunto?
— Em Carcavelos?, admirou-se o tenente-coronel. Tão
longe? E em casa de quem, pode saber-se?
— Olha lá não foste tu por acaso?, questionou severamente
o gordo a apontar a ajudante do ilusionista com o lápis.
— E depois o mais esquisito, meu capitão, continuou o
alferes, é que eu estava ali a vê-las, de mão dada com a
Mariana, enojado, aflito, furioso, e nisto, zuca, sem dar por
isso desatei a imaginá-las nuas, a acariciarem-se, a beijarem-
se, a lamberem-se, a morderem-se, desatei a imaginar aquela
complicação de pernas e de braços e de rabos, e quando me dei
conta, calcule, estava em pau.
Eminente Romancista Prepara Novela Sobre A Vida Do
Inditoso Tenente.
— Inês?, comentou, espantado, o tenente-coronel. Não, não
conheço esse nome, é uma amiga recente?
— Depois dessa, perguntou ao alferes a deusa do strip-tease
Melissa, puxando para si o garrafão, com quantas mais fufas te
meteste tu?
— Também pode ficar aqui estendido a assistir à festa,
concedeu generosamente uma das gémeas, com uma cicatriz
de cesariana na barriga. Apesar de morto, não é, tem tanto
direito como nós.
— A sua filha é professora de ténis, meu tenente-coronel,
cheira a borracha, a saúde e a suor musculoso, usa uma sainha
branca e o cabelo oleoso apanhado com uma fita verde,
ensinava a minha ex-mulher a pegar correctamente na raqueta:
colocava-se por trás dela para lhe explicar melhor, encostava-
lhe o peito às espáduas, o ventre às costas, os joelhos à curva
das pernas, segurava-lhe nos ombros, nos cotovelos, nos
pulsos, exemplificava como bolar, subir à rede, colocar-se no
court, e depois da lição no balneário de sobrado de ripas,
pesado de sol, o chuveiro juntas, o prazer da água morna na
cabeça, nos tendões cansados, na pele, os mamilos pequenos
envidraçados de gotas, os troncos secos com as toalhas de
felpa, e, a partir do terceiro, ou quarto, ou quinto dia, da
segunda ou da terceira semana, da sétima, da oitava, da nona
ou da décima hora, quando os olhares já se demoravam mais,
avaliadores, atentos, apaixonados, enternecidos, na curva das
coxas, na cintura, na nuca, nas nádegas, no pescoço, a proposta
Queres que te faça uma massagem na coluna? Queres que te
ponha óleo nos tendões?, o corpo de bruços na marquesa
forrada a cabedal, com mechas de palha emergindo dos
buracos, pancadas leves, frescura de pomadas, linimentos,
apalpões que se transformavam em afagos, em gestos de uma
doce, persistente lentidão infinita, narizes que se
aproximavam, bocas, testas, cabelos molhados confundidos,
Andámos duas vezes na Montanha Russa, mãe, uma vez no
carrossel, uma vez nos automóveis de choque, daqueles que
têm um varão para cima e deitam faúlhas de eléctrico,
introduz-se uma rodela de plástico numa ranhura, carrega-se
no pedal e desatam a andar, agora as vulvas que se friccionam,
o clitóris ou o ânus que se oferecem à língua, um sabor de
coisa húmida e mole que se contrai, as ancas que se colam e se
movem e se apertam e se afastam, o céu de pequenas nuvens
redondas como que a arder na janela, numa espécie de onda ou
de estrondo a precisar-se e a crescer ao longe, o linimento a
escorrer-lhes como azeite do umbigo, E ainda fomos à praia
mas choveu, e ao Jardim Zoológico mas havia gente aos
montes, tudo a atirar amendoins e pedaços de pão e papéis e
porcarias aos macacos, os minuciosos dedos de ourives deles,
os minuciosos olhinhos, cercados de cerdas de pêlos
compridos, agitando-se sempre, os cus pelados inchadíssimos,
os movimentos que se aceleram, as bocas que se abrem, as
respirações que se apressam, o estrondo a dilatar-se, esférico,
túrgido, enorme, prestes a explodir, No próximo sábado volto
outra vez, prometeu o alferes a recuar para a porta como um
mordomo cerimonioso, risos mais fortes lá em cima,
exclamações, protestos, Ir-me embora depressa antes que a
mãe da Inês me apareça, no alto das escadas, com as cartas na
mão, antes de ter de cumprimentar este tio e este tio e este tio,
solenes velhotes sérios e curvados, bem ajambrados, bem
barbeados, bem cheirosos e eu com estas calças de flanela,
este casaco, este queixo peludo, esta camisa amarrotada sem
gravata, a Inês sorri, a amiga sorri, e os olhos de ambas são
vazios, inexpressivos e polidos como os das bonecas, afastar
os cães com os cotovelos, fechar a porta do automóvel, rodar a
chave ao lado do volante, partir, a Mariana vem ao alpendre
despedir-se, educada, adulta, minha amiga?, o braço dela
levanta-se e acena, e assusta-me a ideia desta filha mulher que
não conheço, que me não conhece, que transitou bruscamente
do biberon para a marijuana, o inspector gordo saiu, de
telefone no ouvido, do vão de uma janela, e apontou-me a
agulha de bússola do lápis: Foi você?
— E escuta lá, perguntou o tenente-coronel, fazes tenções
de ficar aí instalada para sempre?
Senhora Da Máxima Respeitabilidade Que Exige Manter O
Anonimato Confessa À Nossa Reportagem: Eu Amei
Loucamente A Vítima.
— Tira-me isso rigorosamente a limpo, ciciava a nuvem de
perfume empoleirada como um abutre no ombro do marido.
Uma coisa destas na família é um escândalo autêntico, o que é
que os nossos amigos vão pensar.
— Eu não é por nada, disse a mulata gorda a coçar o
sovaco, mas são quase nove horas e o gajo já começa a cheirar.
Cineasta Consagrado Projecta Filme Sobre O Caso Da Rua
da Mãe-d’Água. Director De Fotografia Italiano, Capitais
Franceses, Principais Actores Contactados.
— Fufas, que eu saiba, foi só essa, respondeu o alferes à
deusa do strip-tease Melissa, que espiolhava as gavetas numa
curiosidade sonâmbula, semeando papéis e envelopes pelo
chão. A única que houve a seguir, de resto, acho que nenhuma
mulher lhe pegava.
A onda, o estrondo, o túrgido balão esférico cheio de roncos
e de beijos dentro, rebentaram finalmente num espalhafato de
gritos e de espuma, um calcanhar que pedalava, frenético, na
marquesa, derrubou o frasco de linimento que se espalhou com
um ruído mate no sobrado, um fio comprido de saliva
dependurava-se de um beiço, articulações e veias e ossos que
rangiam, toalhas de banho enrodilhadas, monogramas de
pernas estremecendo e distendendo-se, Terá a Mariana
assistido a isto alguma vez?, pensou o alferes, terá a Mariana
participado nisto alguma vez?, é impossível que não oiça, é
impossível que não conheça, que não saiba, e eu, feito parvo,
na Feira Popular com ela, e eu, feito parvo, no Jardim
Zoológico com ela, cochichos no colégio A minha mãe é
lésbica, dorme na mesma cama com a professora de ténis,
encosto a orelha à porta, todas as noites, para lhes escutar as
declarações de amor, os tombos, os gemidos, os cochichos, os
risinhos, A faca espetou-se sozinha, meu capitão, assegurou o
soldado, palavra de honra que a faca se espetou sozinha, Os
teus pais não se devem aperceber de nada, Inês, ocupados
como estão com a televisão, e o jogo, os teus irmãos preferem
as pastilhas, a coca, a heroína, os amigos e os primos dos
velhos bebem uísque e fumam tabaco americano esparramados
nos sofás, a Mariana chumba metodicamente os anos, sai à
noite, charra-se, e eu feito parvo a planear comprar-lhe para o
Natal uma boneca, um servicinho de jantar, um urso de
borracha, uma patetice infantil, e eu a negar-me a mim próprio
que cresceste, Queres andar no carrossel, no Castelo Fantasma,
nas vagonetas idiotas da Selva, um gorila com um homem lá
dentro a ameaçar-nos das trevas que engraçado, e tu a fingires
medo para me não desagradar, me não assustar, me não
desiludir, Sozinha, meu capitão, juro-lhe que se espetou
sozinha, desci a ladeira de saibro perseguido pelo galope
desordenado dos cães, pelos arbustos escuros achatados contra
a noite escura, pelos fantasmas das árvores, pela casa lá para
trás como um cubo de sombras, interrompido aqui e ali pelos
rectângulos amarelos das janelas acesas, Gerente Da Clínica
Onde Se Encontra Internada A Serviçal Do Malogrado
Tenente Afirma: O Assassinado Era Um Anjo De Dedicação E
De Bondade, Não o mataste por me comer a patroa, meu
saloio, a quem é que tu julgas que enganas, disse o tenente-
coronel ao soldado, a sacudir-lhe raivosamente a camisa,
deste-lhe cabo do canastro mas foi por pensares que te papou a
Dália, a mulata, repugnada, afastou o cadáver com o pé na
direcção das esteiras da cozinha, murmúrios e roçagar de
roupa chegavam insistentemente de um qualquer ponto
inlocalizável do andar, a Mariana espreitava agora pela
fechadura e no orifício oval apareceu e desapareceu uma
nádega, o contorno de ampulheta de um rim, costas com
sardas, cabelos, um nariz aberto que fumegava ou aspirava
violentamente o ar, Levo-te a passear de barco ao Campo
Grande, pensou o alferes, levo-te a andar de bicicleta, levo-te a
ver os cisnes, enquanto na pupila da filha, demoníacas,
insistentes, convexas, distorcidas, as duas formas femininas se
espessavam, se evaporavam, se fundiam, soluços, espasmos,
guinchos de coelho, um gorgolejo de garganta sufocada, Não
olhes, ultrapassou o portão ferrugento, escorregou várias vezes
na ladeira, os faróis dançavam, de um lado ao outro da berma,
descobrindo pedras, calhaus, desníveis, poças enormes, um
gato esventrado, pregas sujas de lama, e de súbito,
inesperadamente, os candeeiros da Marginal envoltos num
celofane azulado de mosquitos e nevoeiro, automóveis
semelhantes a escaravelhos deslizando no alcatrão molhado,
lanternas de barcos, grandes formas rectangulares no poço
negro do rio, vagos pontinhos microscópicos que cintilavam
na margem oposta, Mataste-o para te vingares, meu sacana,
disse o tenente-coronel ao soldado a servir-se de mais vinho,
mataste-o para te vingares da Dália ou da Odete ou do caralho,
o automóvel estabilizou no asfalto, pareceu crescer, alongar-
se, acelerou, uma camioneta enorme rebolava à sua frente com
a carga presa à caixa com cordas, Não olhes, Mete-o debaixo
da camilha, propôs a ajudante do ilusionista a apontar o
defunto, esconde-o de vez ali, Centenas De Pessoas
Incorporaram-se Espontaneamente No Funeral Que Constituiu
Sem Dúvida Uma Sentida, Inequívoca E Impressionante
Manifestação De Pesar, Chegar à Rua da Mãe-d’Água,
desrolhar uma garrafa de gin, beber até chamazinhas azuis me
saírem dos dentes e da língua, até o estômago se me torcer na
barriga como um verme, até a minha cara me sorrir nos
espelhos, um joanete do oficial de transmissões, calçado de um
peúgo roto aos quadrados, que sobrava da toalha, apontava
escarninhamente o tecto, os polícias procuravam indícios pela
sala, abriam armários, desarrumavam tachos, espalhavam uma
espécie de pozinho de giz nas superfícies lisas, pulando-nos
como gafanhotos sobre os corpos estendidos, um deles, de
gatas sobre a mulata, examinava-lhe minuciosamente os seios
à lupa, a Inês e a amiga beliscavam-se com despudor no
vestíbulo, debaixo da Guernica recortada de uma revista e
colada num pedaço de madeira ou de cartão, uma vagoneta da
Montanha Russa entrou pela janela, num ruído horrível de
ferros, e depositou delicadamente a Mariana no sofá, Não me
vejas assim nu, Não vás à entrada, Não olhes, Sua Excelência
O Presidente Da República Fez-se Representar No Funeral Por
Um Membro Da Sua Casa Militar, o vinho tinto raspava e doía
na goela, a boca de vidro, cercada de palha, cuspia os últimos
borbotões de espuma roxa, um enjoo pesado, desagradável,
balouçava as paredes, a Inês deitava-se de costas na arca,
estendia os braços, puxava o fecho éclair das calças e o corpo
da amiga, Não olhes, inclinava-se vagarosamente,
sequiosamente, para ela, a claridade impiedosa das nove horas
inventava repugnantes nódoas de vomitado na alcatifa,
separava a pastosa geleia nocturna dos objectos, revelava
pernas e braços e mamas e bocas e olhos e narizes espalhados
ao acaso, roupas pelo chão, pulseiras, colares, cinzeiros
entornados, tampas torcidas de cerveja, e vincos e rugas e
calvícies e gorduras, os operários do prédio vizinho, com as
camisas e as calças pingadas de cal, trepavam os andaimes,
como esquilos, numa facilidade dolorosa, a Mariana e o gordo
vasculhavam as minhas cuecas e as minhas calças entre as
cuecas e as calças do chão, Não olhes, O meu pai, senhor
inspector, nunca seria capaz de uma barbaridade dessas, o meu
pai é um pateta, nunca mataria ninguém, apontei a pistola,
disparei, Não olhes, e a Inês e a amiga pularam como rãs sob o
impacte dos tiros e imobilizaram-se por fim, desorbitadas,
numa indiferença imensa, o alferes ergueu-se a custo no
cotovelo mole que escorregava (este molhado aqui nas pernas,
caralho, é esperma ou mijo ou merda?), susteve um arroto,
estendeu o braço livre e agarrou uma perna perfumada, ou um
lombo gelatinoso, ou um pedaço de nádega, Quantas fofas
depois dessa fufa?, perguntou a deusa do strip-tease Melissa, a
quilómetros dele, numa vozita de vidro, há gajos que só lhes
saem lésbicas na rifa, Está agora a ver que foi ele?, disse o
gordo à Mariana, acaba justamente de despachar mais duas,
Tive o cuidado de arranjar uma anã, gaguejou o alferes
embaraçado nas frases, nas palavras, de cabeça rodopiando de
vertigens, quem é que existe aí de tão chalupa que se meta
com uma gaja de um metro e dez.
— Uma anã?, interessou-se o tenente-coronel, despenteado,
a estudar como um entomologista a asa de verga do garrafão.
Explique-me como é que se faz amor com uma anã.
— A vaca da Dália, meu comandante, assegurou com
pompa o soldado a bater no peito com o punho, pela minha
saúde se me lembro dela.
— Limpem o sangue, lavem-no com sabão e água,
aconselhou a mulata a apontar uma constelação de nódoas
pretas, ou cor de vinho, ou lilases muito escuras que
sublinhavam os desenhos simétricos do tapete. Se a mulher-a-
dias o encontra aqui logo é um sarilho do caneco.
— Uma anã, riu-se uma das gémeas, em soutien e calcinhas,
a bater as palmas, divertida. Onde desencantaste uma anã, meu
mariola?
Não a desencantei, pensou o alferes a limpar uma unha do
pé com outra unha, desencantou-me ela a mim na pastelaria
suburbana, diante da companhia de seguros, onde bebia o café
do costume e comia o pastel de nata do costume a seguir ao
emprego, observando distraidamente, no balcão de vidro
sardento de cagadelas de moscas, prateleiras de bolos,
sanduíches, barquinhos de ovos moles, cartuchos de leite com
chocolate amontoados numa espécie de caixa metálica, que
suavam. Largo de Santa Bárbara, pensa, ao fim da
interminável, estreitinha, melancólica Rua de Arroios,
edifícios antigos, um oval inclinado e irregular, eléctricos
exaustos chegados do Conde Redondo, da Estefânia, da
Gomes Freire, a guincharem nas calhas, outros empregados da
companhia mastigando ovinamente de pé, com os olhos vazios
e os cotovelos no tampo, guardanapos em copos de plástico,
velhos carecas que liam o jornal em mesas solitárias defronte
de canecas de cerveja vazias, embaciadas de espuma, mulheres
que entravam para comprar fiambre, para comprar queijos,
para comprar presunto, cãezinhos puxando as trelas das donas
para se nos enrodilharem repugnantemente nas pernas, o chão
sujo de papéis, de pontas de cigarros, de cascas, de migalhas, e
recebendo o troco da caixa, de braços e pernas microscópicos,
com a cabeça gigantesca assente na quase inexistência do
corpo, minúscula, feiíssima, desagradável, disforme, mal
vestida, tu.
— Uma anã?, perguntou o inspector gordo à Mariana. Além
de assassino o seu pai sofre de alguma tara, menina?
O Criminoso Vive Amancebado E Na Maior Luxúria Com
Infeliz Deficiente Física.
— Uma anã?, comentou desgostosamente a mãe abanando a
cabeça, a guardar o tricot numa cestinha. A minha Carla a
apresentar-lhe tantas amigas jeitosas e vejam lá os senhores
com quem aquele camelo se foi logo espetar.
Não Perca No Próximo Número Tudo Sobre O Monstro Do
Largo De Santa Bárbara.
— Uma anã, aqui para nós, não lembra ao diabo, Jorge,
discordou o tenente-coronel a afagar o joelho do morto. Ainda
se fosse coxa ou corcunda vá que não vá.
A Imoralidade Em Portugal Atinge Neste Momento
Incalculáveis Proporções, Afirmou Ao Nosso Redactor O Juiz
Encarregado Do Processo.
— Posso oferecer-lhe um café, minha senhora?, avançou o
alferes, dobrado para diante como um metro articulado.
Estará O Pavoroso Gnomo Relacionado Com O Sinistro
Caso Da Rua Da Mãe-D’Água?
— No fundo o Jorge não sabia o que fazia, coitado,
lamentou a Inês. Eu sempre achei que havia um desequilíbrio
enorme nele.
O Advogado Da Anã Pseudo-Implicada No Crime Acusa
De Difamação A Rádio, A Televisão E Os Jornais, E Distribui
Violento Comunicado Em Conferência De Imprensa.
— Chamava-se Adelaide e era ginecologista numa
maternidade, meu capitão, esmiuçou o alferes. Especializou-se
em esterilidade das trompas, parece que as desentupia com
uma agulha fininha.
A Polícia, Declarou-nos Com Optimismo O Famoso
Inspector Borges, Procura Incansavelmente Novas Pistas Que
Auxiliem A Deslindar O Assassínio.
— Café, o que é que tem o café?, interrogou a anã com uma
careta espantada. Fale-me mais alto que eu sou surda.
Tinha a pele ocre engelhada, o cabelo quebradiço e baço,
dedos tingidos de tabaco, a roupa pingava-lhe ao acaso dos
ombros estreitíssimos, um dos sapatos afigurou-se ao alferes
mais alto e complicado, com mais fivelas e tiras, do que o
outro (Será manca?), o rosto torcia-se-lhe para cima num esgar
de desconfiança, de perplexidade, de espanto (Café?, quer-me
oferecer um café?), com o cuspo cristalizado, como um
terceiro beiço, nos ângulos da boca. Cheirava a desinfectante e
a suor e talvez nem um metro e dez medisse mas um metro,
um metro e cinco quando muito, uma anã mesmo, meu
capitão, uma criaturazita minúscula, uma miniatura esquisita,
E fazem amor como a gente?, interessou-se a mulata, A voz é
que me custava mais, a voz é que me fazia mais impressão,
rouca, quebrada, com súbitos agudos pelo meio das frases,
Claro, respondeu ele, a vagina é igualzinha, só que mais
mexidas, mais agitadas, mais lombricóides, mais insaciáveis,
com mais prazer, Um café, sim, se me dá licença, berrou o
alferes, tenho o maior dos gostos em a convidar para um café,
vivia numa casa como as nossas nas traseiras do Arquivo de
Identificação, com tudo como a gente, pratos, caçarolas,
electrodomésticos, mesas, e quadros e livros e guarda-vestidos
e marquise e uma cama normal, idêntica à minha ou à sua, a
Guernica, a Última Ceia, o Sagrado Coração, a Virgem de
Fátima, a and torceu-se novamente para ele, Talvez seja
melhor o cavalheiro e eu sentarmo-nos, rugiu ela numa
amabilidade imperiosa, as senhoras do fiambre e do presunto
viravam-se para os observar, os tornozelos esféricos da
Adelaide balouçavam como os das crianças sem tocar o chão,
Anunciou-me a semana passada que se quer casar, entristeceu-
se a mãe a inclinar-se para baixar o som da telefonia, o senhor,
sinceramente, diga lá, está-me a ver avó de uma catrefada de
monstros?, um empregado limpou a mesa com um pano cor de
caca mais sujo do que o tampo e pousou-lhe em cima duas
chávenas, uma armação de plástico com guardanapos e um
pires de croquetes rugosos, Serviu-me um licor peitoral a
trepar com dificuldade, como um pato, para cima das cadeiras
a fim de chegar aos copos e à garrafa, E comeu-a logo da
primeira vez?, perguntou o soldado, e saltou-lhe para cima, a
rosnar Adelaide, logo à entrada da porta?
Terá A Polícia Judiciária Encontrado Finalmente Os
Verdadeiros Criminosos, Ou Será Que Nova Pista Falsa
Confunde O Faro Dos Nossos Detectives?
É que a acho bonita, justificou-se o alferes aos gritos na
pastelaria, é que os seus olhos verdes me chamaram a atenção,
Quero lá saber que seja ginecologista, ou pediatra, ou
engenheira, ou o caralho, rosnou o pai a afastar pó de chumbo
com a mão em leque, aquele cabrão sempre teve o raio de uma
atracção doentia pelos abortos, O que me chamou primeiro a
atenção no apartamento dela, contou o alferes, foi a quantidade
incrível de búzios e de conchas por toda a parte, nas
prateleiras, nas estantes, nas cómodas, nas mesas, grandes,
médios, pequenos, brancos, escuros, castanhos, negros,
pintalgados, conchas do tamanho de unhas, do tamanho de
folhas, do tamanho de mãos, O Nosso Jornal Apresenta Um
Exaustivo Inquérito À Opinião Pública, Na primeira noite não,
respondeu ele, para aí na quinta ou na sexta, num quarto
atulhado de livros médicos e de aparelhos cromados que se
abriam e fechavam, Trinta, quarenta, cinquenta anos?, pensou
o alferes a olhar as pregas sebosas do pescoço, dos cotovelos e
da cara da anã, que idade poderá ter esta gaja?, Casares-te com
aquele berloque?, riu-se a irmã, deves estar doido de certeza, E
depois nua, disse ele, não é tão feia como vocês supõem, tem
um peito e umas coxas bem feitas, por exemplo, Detesto
croquetes, rugiu a and para o empregado num vozeirão
insólito, traga-me antes empadas de galinha ou rissóis de
camarão, conversámos disto e daquilo, e fiquei rouco de falar
com ela, dobrava-me em quatro para lhe alcançar o ouvido e
ao cabo de meia hora a espinha latejava-me e doía-me, na
semana seguinte e na seguinte e na seguinte esperei por ela à
saída da maternidade, encostado a um gradeamento de ferro
com buxos e árvores, e viu-a, milimétrica, a sair com outras
enfermeiras ou médicas de um leproso edifício lateral e
avançar manquejando para ele, com um sorriso torto no
pergaminho cinzento das bochechas, apeteceu-lhe virar as
costas, fugir, desaparecer, escapar-se daquele ente estranho
que se aproximava, dos seus gemidos curtos, dos seus agudos
arquejos, dos seus vestidos de boneca, Nem sequer queria
magoá-lo com a faca, meu tenente-coronel, insistiu o soldado,
como é que posso provar-lhe que nem sequer queria magoá-
lo?, enrolou-se sobre si mesmo, para a beijar, como uma mola
de colchão, e uns garotos que jogavam à bola miravam-nos à
socapa e riam-se, Ao menos com esta não, pensou o alferes, ao
menos com esta não há perigo, quem a quer?, vociferou-lhe
Olá querida, enfiou-lhe proprietariamente, tranquilizadamente,
a mão no sovaco e desceu com a Adelaide para a pastelaria do
Largo de Santa Bárbara, a caminho dos rissóis conjugais.
9

De duas noites por semana no cubículo da porteira o


soldado passou a três, depois a quatro, depois a cinco: jantava,
cabeceava de sono, de olhos fechados, na cadeira de lona
diante do televisor, escutando vagamente ruídos domésticos de
loiças, tosses e panelas, o colchão do Eliseu no compartimento
vizinho, que gemia ao recebê-lo, passos tresnoitados de
inquilinos, lá fora, no vestíbulo, os chinelos da mulher que iam
e vinham arrumando copos, sons que se confundiam numa
compota de ruídos e se dissolviam a pouco e pouco numa
funda água sem memória, até que alguém ou alguma coisa lhe
sacudia o ombro e o fazia regressar apressadamente à tona,
como um escafandrista, uma chuva de bolhas de pesadelos
incompletos, nos quais pretos de espingarda, surgidos do
capim do passado, avançavam para ele numa gritaria confusa.
Ao cabo de semanas começou a trazer a roupa suja e as
camisas a que faltavam botões numa maleta ou numa trouxa,
ao fim de meses, sem se dar conta, tinha uma gaveta na
cómoda do quarto cheia de meias e camisolas e cuecas suas, e
um ou dois fatos penduravam-se do armário em cabides de
arame, entre os vestidos da porteira, muito bem engomados, de
mangas vazias a oscilarem como as dos vendedores manetas
de cautelas. A pouco e pouco ia-se habituando aos diversos
cheiros da casa, cada qual com a sua espessura e o seu espaço
próprio, o volume das sombras, se acordava de repente,
despia-se de ameaças e mistério, conhecia o ritmo das
respirações e o estalar dos móveis, as mandíbulas dos ratos
que devoravam minuciosamente as franjas dos tapetes e das
trevas, os cachorros e os galos da madrugada sobressaltando-
se nos quintais vizinhos, o teu corpo ao meu lado a esmagar a
boca aberta na almofada, aprendi a distinguir as tuas pernas
das minhas e a tua vontade de urinar da minha bexiga cheia
que picava, e quando nos afastávamos no escuro, suados e a
soprar com força como leitões na agonia, separava os teus
arquejos dos meus à maneira de um cego que se move,
rapidamente, no labirinto de um largo ou de uma praça por
demais decorada.
— As vezes, caraças, penso que o casamento é isso, rosnou
o tenente-coronel de pernas abertas no soalho (uma desordem
de pêlos escuros crescia das castanhas gémeas dos testículos),
a lutar em vão com um peúgo que se dobrava, se voltava do
avesso, resistia: A gente demorar que tempos a perceber qual
de nós é quando acorda.
— Isto é lá com vocês, isto é lá com vocês, descartou-se a
mulata a espreguiçar-se na cama, mas olhem que o gajo já
cheira mal que tresanda.
— Eu, até acabar de fazer a barba, era a anã, ilustrou o
alferes, tão pequenino e encolhido que nem me distinguia nos
espelhos. Só quando lavava os dentes principiava a crescer, a
ganhar tamanho e densidade, catarro de homem, voz grossa,
borbulhas, remelas. Fazia o nó da gravata, engraxava os
sapatos e pronto, ao voltar ao quarto dava de caras com uma
lombriga amarelenta e míope, desgrenhada nos lençóis, a
debater-se com o tabuleiro do café e das bolachas e a urrar-me
Bom dia em guinchos aflitos de boneca.
— A sério que vocês não dão pelo fedor?, estranhou a
mulata. Eu não tarda nada se não mo tiram daqui vomito.
De tempos a tempos o soldado dormia na casa do Campo
Santana para se ocupar dos frangos, das lêndeas das
nespereiras do quintal e dos caracóis das couves: a cidade que
parecia crescer, hirsuta, por toda a parte, em edifícios,
quarteirões, becos, transversais, bairros da lata, idêntica a uma
sementeira de furúnculos, permanecia inexplicavelmente
estagnada junto ao hospital dos doidos, onde sujeitos de
pijama conversavam com os muros, mirando fissuras, paredes
e gretas com íris luminosas de profetas de uma religião
absurda: os mesmos quintais, os mesmos pátios, as mesmas
velhas nos mesmos peitoris lascados, as mesmas horas
apodrecidas nos mesmos relógios de parede, a seda dos
mesmos gatos nos telhados, em que o musgo das goteiras
cobria as antenas de televisão do mesmo verde agónico. Até o
caruncho e os insectos ecoavam nas salas sem cómodas,
julgava-se escutar a electricidade a deslizar nos fios, a água
das torneiras corria terrosa e ferrugenta, aos soluços, na pia de
pedra da cozinha, cujo ralo se espantava, redondo, como a
garganta de um defunto. O soldado fechava-se no seu antigo
quarto do fundo, de tecto oblíquo como uma careta de
trombose, armava-se de uma pilha bafienta de revistas, tapava-
se ao acaso, meio vestido, meio despido, com uma manta que
lhe queimava a pele, e se não chovia e os pingos miúdos o não
arrastavam consigo, juntamente com as folhas das árvores e o
lixo mais leve, na direcção dos esgotos, apagava a luz do
candeeiro de metal no fim de uma aventura do Cisco Kid, do
Zorro, do Mandrake, e percebia para lá do postigo o mar
inquieto das couves restolhando na noite, os seus brilhos de
espuma de alumínio onde navegava um tanque abandonado, a
quietude de cais da capoeira, lenços de asas que se agitam nos
poleiros, a lembrança do mudo a ressonar na Pontinha, cercado
de crianças, a sogra fungando numa rede, a mulher a empurrar-
lhe o tronco espesso de aguardente com os braços estendidos,
a porteira na grande cama sem mim, a encostar o peito, as
bochechas, o ventre, ao ácido odor de pele com que adubei os
lençóis. Ficava na casa do Campo Santana, o cobertor doía-
lhe, os sonhos custavam a engrenar como um motor esfriado, e
as penas dos frangos flutuavam, brancas, do outro lado dos
vidros, a asma do tio Ilídio e os roncos da dona Isaura
assustavam-no, um cachorro gania a noite inteira e apetecia-
lhe levantar-se e sair para o corredor porque se calhar ainda
estás a estudar, Odete, porque se calhar não te deitaste ainda,
mas os cartazes vermelhos, com perfis de fábricas e
camponeses de punho erguido repeliam-no, mas tantos livros,
tantos cadernos, tantos dicionários, tantas canetas e lápis em
potes de loiça amedrontavam-no, Entre entre, convidou o
Olavo a sorrir, Entra entra convidou o oficial de transmissões a
limpar um cisco das lentes com a unha, e se isto fosse em
Moçambique, caralho, agarrava a primeira metralhadora,
varria-os de golpe a todos, e desaparecia a trote mato fora.
— Que pena não estarem aqui os outros, disse ele em voz
alta, sem se dar conta, a enroscar-se na manta ou no corpo da
mulata, como um bicho.
— São quase dez horas já, assustou-se a gorda, instalada no
trono de rainha do colchão. Se vocês não se resolvem quanto
ao morto ponho-me a andar daqui que é um consolo.
Dez horas, pensou o soldado, quantas partidas de damas o
mudo jogou sozinho, desde as nove, no escritório de vidro do
armazém, indiferente aos soluços do telefone, ao dia claro ou
chuvoso lá em cima, às ratazanas que galopam na poeira dos
móveis ou amamentam as crias chiadoras, estendidas de lado,
exibindo os caninos, nos estofos rebentados da camioneta?
Dez horas, o nosso tenente apodrece, de tornozelos de fora,
sob o pano grosso da camilha, as árvores ramalhudas do
Príncipe Real são as árvores magras de Omar, os pardais os
pintalgados pássaros pernaltas do rio, este friozinho ao rés da
alcatifa e do capim molhado do cacimbo, e o meu capitão sabe
como as facas se cravam na carne sem se dar por isso, lembra-
se como as armas se disparam em África sem ninguém lhes
tocar, como se bate nos prisioneiros sem sequer o notarmos,
como se faziam filhos às pretas sem se perceber como,
deitados de bruços, vestidos, de breguilha aberta, nas esteiras
sujas das palhotas, pingando transpiração e saliva e gotas cor
de cera por tudo quanto segrega e exsuda, a gente espreita
pelos janelicos cavados no adobe e distingue, na súbita,
instantânea manhã, um terreiro pálido, negros de cócoras, o
arame farpado do quartel, os doidos que guincham nas
enfermarias enormes do Campo Santana espalmando as mãos
contra as paredes, as couves esbranquiçadas que agora se
insuflam como peitos de peru, o sorriso da Odete que vem e se
some, De certeza que não queres entrar, Abílio?, o Tejo a
sacudir brandamente as luzes reflectidas dos barcos, Bebi
muito, pensa, estende o copo e serve-se de mais vinho, a densa
espuma lilás tinge o rebordo de vidro, de modo que daqui a
horas, quando os carros da polícia chegarem finalmente,
apanham-me, aposto, a dormir, enrolado no cobertor como
uma larva, no meio de uma confusão de trémulos, aflitos
troncos destroçados.
— Sentado numa das retretes, de porta escancarada,
explicou o guarda do urinol aos jornalistas, inclinado para a
frente, com os olhos abertos como um tipo que caga. Só
tempos depois é que desconfiei e fui ver, e dei com aquele
buraco de navalha nas costas.
— Se abrirem a janela, disse a deusa do strip-tease Melissa,
espojada como uma égua na alcatifa, a preparar uma espécie
de colchão com as almofadas do sofá, sente-se muito menos o
pivete do gajo.
— E tu sabias sempre ao acordar, admirou-se o tenente-
coronel, qual dos dois é que eras? Eu deitava-me de Ómega no
braço e pensava que assim, no dia seguinte, o da pulseira de
homem era eu.
— Também o que é que custa subir o estore um bocadinho?
indignou-se a gémea da cesariana, de gatas, à procura da
toalha. Se já nem há respeito pelos sentimentos das pessoas,
foda-se.
— Ouve lá, e porque é que vocês não se casaram?,
perguntou o alferes ao soldado.
Acordava com a impressão extenuante de ter batalhado toda
a noite, de não haver dormido, de ter sido empurrado e puxado
e batido e amolgado por guerrilheiros de farda, de lhe
sangrarem as veias e lhe esmagarem os ossos, sentia os
músculos dissolvidos como os dos cadáveres em álcool e o
peso imenso de uma bota na barriga, abriu a porta da cozinha
para o quintal, em cuecas e meias, a fim de se lavar na pia, o
céu amontoava-se de pedregulhos sobrepostos de nuvens e o
meu mijo cristalizava-se no húmido ar de inverno e espumava
na terra, os frangos fitavam-me de banda, desconfiadíssimos,
em tua casa havia esquentador, água quente, chinelos,
desodorizante, banheira, baratas que se escondiam atrás do
piaçaba pelado, formigas que trepavam e caminhavam
obstinadamente pelos azulejos quebrados, uma grande esponja
amarela, uma escova para limpar as unhas, manchas de
ferrugem ao redor do ralo, eu imóvel na água, só de cabeça de
fora, e as sereias dos bombeiros a apitarem na rua,
ambulâncias, carros de escada, uma azáfama de motores que
guinchavam, se engasgavam, pulavam, hesitavam. Até que
uma tarde, ao voltar de um frete, encontrou um senhor
desconhecido, amestiçado, já de uma certa idade e olhar sério,
à espera dele no armazém, com uma pasta estreitinha entalada
no sovaco.
— Claro que telefonei logo à polícia, respondeu o guarda do
urinol. Sou funcionário da Câmara há vinte anos, não quero
sarilhos nas minhas retretes.
— Tentaram levar o corpo para a rua e desistiram, explicou
a porteira a afastar o gato com o pé, ainda há manchas de
sangue mal lavadas no patamar, no vestíbulo. Só depois disso
é que lhes deve ter passado pela ideia a solução da despensa.
— Você é que é o herdeiro do senhor Ilídio da Conceição
Gaspar?, inquiriu com severidade o homenzito da pasta,
abrindo e fechando as mandíbulas sem barba, nas quais
resplandecia uma equina inacreditável dentadura postiça.
Extraiu uns papéis impressos da mala, agitou-os
ameaçadoramente na direcção do soldado como um leque
agressivo, citou decretos, códigos e números:
— Temos provas de que ninguém habita a casa dele, que
nenhum dos descendentes a utiliza nos termos da lei, que
muito raramente uma pessoa lá dorme para tratar da criação,
da horta. Venho informá-lo que a partir do princípio do mês a
consideramos totalmente devoluta.
— Tiravas-te das tuas tamanquinhas, aconselhava o alferes,
metias-te no barco, na camioneta, num táxi, no caralho, ias de
novo à Cova da Piedade, falavas às boas com a Odete e com o
Olavo, convencia-los. Pela sorte da minha filha se não ficavam
encantados com o divórcio.
— Não há para aí uma dessas coisas de tirar os cheiros?,
impacientou-se a mulata, desesperada, procurando levantar-se
para apanhar o soutien enquanto as vastas pregas de gordura
dos rins subiam e desciam como alforges. Eu, com franqueza,
estar assim aqui não sou capaz.
— Mal lhe toquei com um dedo desmoronou-se logo no
chão, informou o guarda do urinol, que as máquinas
fotográficas alternadamente obscureciam e aclaravam. De
trombas no lixo e no mijo e no molhado, com um bilhete de
eléctrico ou uma beata ou um pedaço de papel higiénico na
bochecha.
— O senhorio andou por ali a untar as mãos às vizinhas,
meu capitão, disse o soldado, e logo que teve provas que
bastassem mandou o gajo da pasta lixar-me.
Ainda foi a uma repartição protestar, depois a outra, da
segunda reenviaram-no para a primeira e da primeira para uma
terceira, onde as pessoas faziam bicha até à rua, e na qual uma
funcionária de aspecto bilioso o obrigou a preencher dezenas
de formulários, lhe ordenou que procurasse um atestado da
Junta de Freguesia, autenticado por oito comerciantes idóneos,
um certificado do Registo Criminal, seis fotografias tipo passe,
a caderneta militar e uma declaração com selo branco da Liga
Antituberculosa a garantir que não sofria dos pulmões,
devendo apresentar tudo no dia seguinte, sem esquecer o
diploma da quarta classe e a carta de ligeiros e pesados, até às
onze da manhã, num guichet em Cheias, a fim de
eventualmente ser considerado o seu pedido na Direcção-Geral
de Habitação e Inquilinato. Chegou às sete e a bicha estendia-
se por mais de duzentos metros, contornando pelo menos
cinco esquinas e perdendo-se na confusão do mercado, muitos
velhos, muitas mulheres com cara de fome, sujeitos mal
vestidos, crianças ranhosas que choravam, por vezes havia
protestos, gritos, discussões, pancadaria acesa, um polícia de
mãos atrás das costas, que guardava um banco, zangava-se
com um cigano cavernoso a vender cintos e gravatas, por volta
das nove o céu escureceu, baixou e começou a chover, um dos
velhos enterrou até ao pano a vareta da sombrinha no olho de
um outro, as crianças ranhosas esperneavam e fugiam, o
polícia filou o cigano pelo casaco e dali a nada apareceu um
automóvel com três tipos fardados e levou-os aos encontrões
num roldão de insultos e de coices, a chuva triplicava de
ferocidade pulando no alcatrão, o soldado, a pingar água,
espreitava a cada segundo os requerimentos, as fotografias, os
atestados, Se perco algum destes papelinhos fodo-me, até que
às dez alcançou o vestíbulo do edifício, um acanhado
prediozito nauseabundo, repleto de pessoas apertadas, que
cheirava a cocó de cão e a tabaco frio, uma criatura de luto,
mesmo à frente dele, narrava a uma compadecida amiga vesga
a morte tumultuosa do marido, empurrado no banco do
hospital, de maca, de um lado para o outro, entre pernas
partidas, tripas de fora e gemidos, até falecer precisamente,
por motivos obscuros, a meio caminho entre as garrafas de
oxigénio e a sala poeirenta dos gessos, o soldado subia um ou
dois degraus em cada quarto de hora, contínuos cambaleantes
tropeçavam pelas escadas a gritar Com licença, carregando nos
braços abertos toneladas amarelas de papéis, odiou o senhorio,
odiou o homenzito da pasta, odiou os vizinhos que o haviam
denunciado com certeza, cochichando sobre os peitoris com
oficiais de diligências terríveis, às dez e vinte principiou a
distinguir, lá no alto, uma curva de balcão, uma parede de
vidro fosco, um letreiro Proibido Fumar, um outro Não Cuspa
Para O Chão, gente obsequiosamente curvada para aberturas
rectangulares de guichets, vozes mais baixas, tosses
respeitosas, custava-lhe fungar, sentia um formigueiro no
nariz, arrepios e uma impressão esquisita, como de febre, no
corpo, Constipei-me, a camisa molhada aderia-lhe à pele como
uma guelra, as pernas húmidas pareciam escamas
desconfortáveis de robalo, os pés chapinhavam dentro dos
sapatos envoltos nos trapos podres dos peúgos, dez e vinte e
cinco, dez e trinta, dez e trinta e três, dez e trinta e sete, dez e
quarenta, por uma janela a que faltava um vidro via os prédios
fronteiros desfocados pela água, renques cegos de janelas,
rolos de nuvens, a difícil, opada, melancólica claridade de
azeite das manhãs de inverno, mais contínuos, um funcionário
em mangas de camisa, com um grande livro na mão e uma
careta de desprezo, a acotovelar as pessoas, silhuetas confusas
como amibas do outro lado dos guichets, a criatura de luto
suspirou e o medalhão de esmalte, com o retrato do marido
(um sujeito de bigodes com o ar fatídico dos prometidos desde
o berço a uma morte macabra), saltou-lhe impetuosamente de
entre os seios como uma rolha de garrafa, escutavam-se
estampidos mates de carimbos, gemidos de gavetas, registos
que se folheavam, pigarros, as crianças ranhosas, sufocadas
pela multidão que se comprimia nos degraus, piavam de uma
maneira cada vez mais ténue, Se eu quiser voltar atrás agora
não consigo, pensou o soldado olhando o cortiço de cabeças e
olhos e bocas que zumbia patamares abaixo, os velhos
demoravam séculos, perplexos, nos balcões, perguntando,
enganando-se, hesitando, Seis ainda à minha frente, contou o
soldado, cinco, quatro, três, empregados aborrecidos
seguravam o cigarro com o indicador e o polegar,
desarrumando dossiers numa lentidão sem fim, examinavam
processos, aparavam as unhas com instrumentozitos metálicos,
rabiscavam cruzes a lápis nas margens do papel selado, um
espirro trepou-me pela garganta acima e desvaneceu-se, sem
ruído, no nariz: Uma semana inteira a chás de limão, calculou
ele, uma semana inteira a esfregar as costelas com pomada de
mentol, a viúva à frente dele alcançou o guichet, suspirou de
novo, a efígie do marido pulou, e retirou da carteira gasta uma
inacreditável quantidade de documentos amarrotados, de
diversos tamanhos e cores, que ia alisando à pressa com os
dedos, diante de uma escriturária de óculos com um broche
complicado no decote do vestido, a qual se limitava a varrê-los
com as costas da mão, soprando, pelo vértice dos beiços, Sem
um registo de propriedade nada feito. A amiga vesga, que
devia ter leituras, multiplicou-se de imediato em explicações
imbricadas, o registo de propriedade devia estar em Lagos,
minha senhora, só que em Lagos arderam os arquivos inteiros
em agosto passado e a Câmara não podia, compreende a
senhora, passar fotocópias do que havia deixado de existir,
ninguém tomava a responsabilidade de pôr o selo branco em
atestados vazios não é, a partir do ano que vem, talvez que
com quatro testemunhas com mais de trinta anos e oito meses
de residência no local se conseguisse, mas como se os velhos
apodreciam quase todos na Misericórdia em Tavira, e os que
sobejavam haviam sido comprados pelos especuladores de
terrenos que construíam por todos os lados onde houvesse mar
próximo apartamentos e vivendas, a viúva acenava que sim
com a cabeça e a dos óculos escutava-as sem as ouvir, a palpar
o broche monstruoso, a chuva parou de repente e um losango
de pálido céu azul ainda entalado em nuvens surgiu
inesperadamente num cantinho de janela, Sem o registo nada
feito, o seguinte, ordenou a funcionária, abandonando o
broche, como se despertasse de um letargo esquisito, os que
aguardavam nas minhas costas pareciam formar um único,
repugnante corpo dilatado e mole que pulsava, o cheiro do
tabaco e o cheiro da humidade, grumosos e espessos,
revolviam-lhe o estômago e as tripas, a viúva começou a
chorar, a vesga retomou corajosamente o seu discurso a partir
do início (O registo de propriedade devia estar em Lagos,
minha senhora, só que em Lagos arderam os arquivos inteiros
em agosto passado), o corpo mole expeliu uma baforada de
grunhidos de impaciência e desagrado, O seguinte, articulou a
dos óculos, inabalável, a vesga retirou-se de má vontade a
consolar a viúva e a protestar, às cinco para as onze o soldado
encostou finalmente o peito ao guichet, enquanto à esquerda
uma indiana estarrecida, com o filho ao colo, via cobrir de
carimbos rectangulares e ovais uma folha de papel selado, tirei
dos bolsos os retratos, os atestados, os formulários, o bilhete
de identidade, a análise da expectoração, a microrradiografia
da Liga dos Tuberculosos num envelopezinho verde, e que era
um pedaço de película com manchas mais claras
assimetricamente impressas no fosco fundo escuro, Para que é
este estendal todo?, inquiriu surpreendida a funcionária dos
óculos, e agora as nuvens tinham desaparecido por completo e
o céu adensava-se de coloridas, variadas camadas sobrepostas
de papel transparente, um avião deslizou entre duas chaminés,
um bando de pombos descreveu em desordem um largo
semicírculo ascendente, Querem pôr-me fora de casa, disse o
soldado com um murrozinho ansioso no balcão, querem-me
despejar sem mais aquelas, a mulher dos óculos examinou os
papéis com uma careta maçada, rubricando-lhes
esquematicamente os ângulos a lápis encarnado, o telefone
tocou por trás dela, numa secretária onde um indivíduo calvo
resolvia, a morder a tampa da caneta, o problema de palavras
cruzadas do jornal, um empregado ruivo atendeu e ficou a
rosnar interminavelmente, de anca encostada à mesa,
brincando com uns clips, colando os beiços aos furinhos de
plástico, Batráquio com sete letras alguém sabe?, indagou o
calvo, de bico suspenso, à espera, Falta aqui a certidão de
óbito da esposa do seu tio, avisou a dos óculos, irritada, é
incrível como as pessoas, neste país de irresponsáveis, nunca
trazem consigo a documentação necessária, a roupa molhada
ia secando na minha pele como a água de um rio no seu leito
de ervas e de pedras, o ruivo pousou o auscultador e ficou a
contemplar um calendário de cartolina com uma expressão
idiota, Cidade da China setentrional com quatro letras?,
perguntou o careca, de sobrancelhas unidas, enfronhado em
medições geográficas, o céu cobria-se agora de um vaporzinho
ténue que alastrava a ocidente, Acusam-me de abandonar a
casa, senhora, explicou o soldado, veja só que injustiça, um
cavalheiro de pasta foi ter comigo ontem de manhã, com uma
ordem do juiz, ao armazém, a escriturária dos óculos pensou
uns segundos, indecisa, a apertar o broche, e depois remexeu
uma pilha imensa de boletins, de diários oficiais, de
telegramas, de códigos, de volumes de decretos-leis, o
empregado ruivo, solicitado pelo careca, procurava em vão, a
contar pelos dedos, o nome de um lago da Finlândia com
dezoito letras, É Proibido Atirar Lixo Para O Chão,
comandava um cartaz, e pombos e prédios na janela e um
bocadito de rio, São quase onze horas e estou frito, pensou o
soldado, no princípio do mês tiram-me a casa e agora?, um
homem mais bem vestido do que os outros, que devia, pelo ar
sério, pelo colete e pelos gestos proprietários, chefiar a
repartição, apareceu no meio das secretárias vindo de uma
discreta portinha lateral, apontou o relógio circular de parede
com a manga, gritou Fechem os guichets imediatamente e
avisem os contribuintes que não foram atendidos que
reabrimos às duas, Traz aí o registo de baptismo, uma pedra da
vesícula e a análise de urina da mulher do defunto?, perguntou
a dos óculos, o soldado procurou nas algibeiras, no conteúdo
da carteira, no soalho (Sempre podia ser que os possuísse, que
tivessem caído, que alguém sem dar por isso os pisasse), o
chefe evaporou-se na portinha que se fechou de estalo,
impelida por uma mola qualquer, o calvo, que escondera o
jornal, inquiriu em torno, designando as palavras cruzadas
com a caneta, Como é que se diz pão em croata?, o guichet à
direita do dele desceu ao longo das calhas de madeira com um
estrépito de execução, um segundo, ao longe, encerrou-se
também, um rumor de passos lentos, contrariados, tropeçava
arrastadamente nas escadas, o corpo mole diminuía a pouco e
pouco de volume, E o cartão de eleitor da falecida também
levou sumiço por acaso?, interrogou a dos óculos, enervada,
quando é que vocês aprendem, diga-me lá, a viver em
sociedade?, Talvez a porteira me receba, pensou o soldado, os
móveis que sobram ainda os enfio no armazém mas o que faço
eu aos frangos e às couves?, e veio-lhe de súbito uma tristeza
do caneco ao lembrar-se do corredor escuro do Campo
Santana, das paredes a caírem de podres, das placas do bolor
nos rodapés, das rachas da pintura nos ângulos do tecto, dos
patiozitos, do quintal, da dona Isaura, do tio, Mostre-me ao
menos o electrocardiograma do seu avô materno, intimou a
escriturária, já com as mãos nos suportes da calha, no tom de
magoada impaciência de um examinador perante um aluno
ignorante, como você sabe ou devia saber a falta do
electrocardiograma do avô materno é passível de
procedimento judicial, Mississípi, sugeriu o ruivo a medo, a
sensação de febre alastrava nas pernas, ramificava-se nos
dedos, acelerava o pulso, tingia o sangue, os pombos iam e
vinham em revoadas aflitas, bato à porta do quarto da Odete,
Quem é?,
entro e ela sorria para mim no meio dos cadernos, dos
livros, das prateleiras de dicionários, de enciclopédias, de
sebentas, de ensaios políticos, de romances, Quanto à casa não
podemos fazer nada, a análise de sangue do senhorio tem uma
quantidade de glóbulos brancos imbatível, avisou ainda a dos
óculos a baixar a guilhotina do guichet, mas se dentro de
quarenta e oito horas não apresenta o electrocardiograma
recebe no armazém um aviso de multa, Mississípi o caralho,
recusou o calvo, uma mulher de limpeza, de avental, esfregão
e balde, principiou a lavar energicamente o soalho, e quando
desci as escadas da Direcção-Geral, meu capitão, já não havia
ninguém nos patamares nem nos degraus, excepto uma ou
outra criança ranhosa a soluçar sozinha nas escadas, só
lâmpadas sem quebra-luz e letreiros e ordens de serviço
pregados com tachas em vitrines, cá fora uma bandeira
enrolava-se no mastro à altura da varanda do primeiro andar,
uma chuvinha parva baloiçava de leve sobre os telhados, uma
pastelariazeca atulhava-se de clientes a beber café, os pombos
tinham-se evaporado, os velhos tinham-se evaporado, o
pedaço de céu azul tinha-se evaporado, uma coisa formigou-
lhe no nariz, apertou-lhe de repente o peito e espirrou,
apetecia-lhe deitar-se, ficar quieto, adormecer, os músculos
amoleciam sem força, as pálpebras, vermelhas, picavam, uma
indiferença infinita somava-se a uma espécie de enjoo, quero
lá saber da casa, quero lá saber dos frangos, quero lá saber das
couves, quero lá saber do meu tio, só estender-me nos lençóis,
só fechar os olhos, só que me deixem em paz, tomou um
autocarro para a rua da porteira e os dentes batiam-lhe uns nos
outros num ruído de loiça, um frio esquisito apertava-lhe os
ossos, a chuva parava e recomeçava de contínuo, penetrou no
cubículo sombrio vendo os objectos como que mergulhados
numa incómoda bruma dolorosa, os móveis encavalitavam-se,
a Odete abandonou os livros de estudo e começou a despir-se
em silêncio à sua frente, distinguiu o contorno de um dorso,
uma anca, umas cuecas de renda cor de carne, estendeu a mão
para ela, desequilibrou-se, a porteira amparou-o, tirou-lhe os
sapatos e as meias molhadas, foi ao armário do quarto do filho
buscar um cobertor que cheirava horrorosamente a naftalina e
tapou-o como os tipos das ambulâncias tapam os mortos dos
desastres, decorridos séculos sentiu que lhe colavam um
termómetro no sovaco, o chamavam, lhe faziam perguntas, o
auscultavam, lhe seguravam a cabeça para lhe darem um
comprimido azedo, a voz da porteira repetia Sim senhor
doutor, sim senhor doutor, sim senhor doutor, difractada como
as imagens dos aquários, passos, uma tosse de homem que
parecia emitir advertências ou conselhos, uma das galinhas do
quintal que observava, empoleirada numa cómoda, com a sua
inexpressiva ou acusadora órbita de vidro, e a seguir as vozes
e os vultos diluíram-se no silêncio caiado dos mortos, onde
rompiam de quando em quando gorgolejos de murmúrios e o
sussurro com pressa do meu sangue, e depois o soldado foi
descendo para cá e para lá, num movimento de baloiço, o mal
estar das pernas desvaneceu-se, o aperto no peito esfumou-se,
um braço da Odete, solto do corpo, acenou-lhe de muito longe
um longo adeus marinho, as ondas entraram nele pelos
ouvidos, pelo nariz, pelos olhos, pelo umbigo, pelos mil poros
da pele, os cabelos valsaram, o peito estremeceu num
derradeiro suspiro, e naufragou:
— E nem assim te decidiste?, perguntou o alferes,
indignado. E nem assim foste viver com a gaja?
Ao terceiro dia, o médico, um sujeito simpático, filiforme,
desgrenhadíssimo, mal vestido, com os bicos dos colarinhos
sujos a apontarem, tortos, para cima, e blocos de receitas a
saírem de todos os bolsos, frinchas e aberturas do casaco e das
calças, informou-me amavelmente, enquanto me verificava a
febre, examinando o termómetro, de cabeça de lado, inclinado
como um caule para a claridade da janela, além da qual as
sereias dos bombeiros não cessavam de buzinar e de tocar,
Com uma pneumonia dessas você esteve mesmo a patinar,
amigo, se a sua senhora não me chama logo você engordava a
esta hora os ciprestes dos Prazeres, o Eliseu, de gatas no chão,
empurrava constantemente contra as pernas do facultativo, na
obstinação dos estúpidos, uma carrocita de madeira, as
costelas já me não doíam quase, apenas uma pontadazita no
ombro se respirava fundo, apetecia-me comer arroz de coelho,
ou salada de atum, ou grelos com azeite, o mundo tornara-se
de novo nítido e claro, desprovido de sombras, a porteira,
desconfiada ainda do milagre, olhava-me de viés como para
um Lázaro cataléptico, Continue a afinfar-lhe o xarope e as
capsulazinhas de seis em seis horas, aconselhou o médico
aplicando-me pancadas exploratórias, com as pontas dos
dedos, ossos fora, e talvez que no fim da semana, se
desaparecer a tosse, se possa levantar, o soldado engolia sem
gosto as sopas, caldos, frango cozido, uma postazita
microscópica de peixe que a porteira lhe trazia num tabuleiro
de verga, nessa tarde levantou-se para mijar, deu-lhe uma
tontura e regressou quase de gatas, amparado aos móveis, a
urinar-se no pijama, para a cama, as pernas tremiam, os braços
tremiam, os tendões do pescoço tremiam, suava, exausto,
como se houvesse corrido horas e horas sem fim, pensou Vou
de novo afundar-me, vou de novo naufragar, a porteira, que
conversava com um inquilino no vestíbulo, voltou a trote para
dentro, ralhou-lhe, içou-o pelos rins para cima do colchão,
Nem por gratidão, caraças, espantou-se o alferes, nem para a
compensar da trabalheira que lhe deste?, as cápsulas custavam
a passar na garganta, as ampolas bebíveis amargavam, a casa
era escura, comprida e triste como as urnas dos defuntos, o
bacio de chichi ao seu lado fedia, permanecia o dia inteiro, de
mãos pousadas no lençol, a estudar o tecto em silêncio, uma
ocasião pediu um espelho pequeno ao Eliseu e viu,
aprisionado no plástico, um esquálido rosto sem luz, cheio de
dentes, enodoado de barba, Andam a enganar-me, vou morrer,
achou-se semelhante à dona Isaura depois da trombose, ao tio
já vestido, de lenço amarrado nos queixos, no caixão, a Odete
sorria-lhe de tempos a tempos e desvanecia-se, os cães da
Cova da Piedade roçavam-se nas mesinhas de cabeceira e
latiam, pela única janela do quarto coava-se uma luz parda e
sem graça, o médico simpático e desgrenhadíssimo tocou a
campainha a seguir ao programa de televisão (um bailado
aborrecido, publicidade, políticos aborrecidos a discutirem
aborrecidamente, publicidade, notícias aborrecidas,
publicidade, resumo do programa aborrecido de amanhã),
tirou-lhe a febre, auscultou-o, gracejou, reduziu as cápsulas,
receitou drageias de vitaminas e uns pingos de subir a tensão,
Às vezes à noite avaria o seu bocado, informou a porteira, às
vezes à noite põe-se a falar no tio, o doutor juntou umas
pastilhas contra os sonhos e recomendou uma pêra cozida e
um calicezinho de Porto a seguir ao jantar, Que mal que tu
cheiras, comentou a Odete com uma careta, nunca hás-de
passar da cepa torta, meu saloio, Entre, entre, convidava o
Olavo agitando o jornal, Eu palavra de honra sinceramente não
aguento, disse a mulata, ou o fecham na despensa ou vou-me
embora, Mataste-o por ti, acusou o tenente-coronel, acaba lá
com as desculpas, palerma, Antes do fim do mês sair nem
pensar, proibiu o médico a rir-se, não lhe chegou-o chuveiro
do outro dia?, a porteira tratava bem de mim, coitada,
preocupava-se, interessava-se, servia-me a comida a horas, os
remédios, de maneira que lhe garantiu sem convicção Em
ficando bom peço o divórcio, vou à Cova da Piedade, falo com
eles e pronto, mas claro que não fiz nada disto, meu capitão,
aluguei um apartamento em Santa Marta e inventei um
chorrilho de desculpas, o mudo visitou-o na sexta-feira, à hora
do almoço, quando o soldado mastigava desconsoladamente,
cercado de frascos e de embalagens de remédios, na penumbra
mortuária do quarto, uma costeletazita milimétrica, sentou-se
na borda da colcha, cerimoniosíssimo, a tresandar a álcool,
Um quarto num terceiro andar em Santa Marta, disse o
soldado, no prédio abaixo do hospital, a ideia de viver com
uma mulher, depois da experiência da Odete, apavorava-me,
pensava logo E se dá bronca?, E se corre mal?, E se ela se
apaixona por um gajo e me deixa?, de forma que até hoje, aos
quarenta anos, meu capitão, não consegui decidir-me, a
porteira já se habituou, já não grita, já não protesta, o mudo,
que permanecia imóvel no quarto como um manequim, foi-se
embora um grande bocado depois, transpirando o seu relento
de vinho, sem ter aberto a boca, no dia vinte e nove o médico
anunciou que eu me podia levantar e sentar-me na sala, fiquei
a olhar melancolicamente uma fileira de pombos poisados nas
cristas dos telhados e o céu cremoso de fevereiro, escutava a
porteira a cantar enquanto esfregava as escadas, de longe em
longe uma das aves agitava o pescoço, a cabeça, as asas e
desaparecia, já não sentia pontadas nem vertigens nem aquela
fraqueza esquisita nos braços e nas pernas, Mas se tu
prometeste divorciar-te e não o fizeste, disse o alferes,
suponho que deve ter ficado pior que uma barata, Metam-no
em cima do caixote, aconselhou a ajudante do ilusionista,
assim de repente, se não fosse o cheiro, aposto que vão cuidar
que adormeceu, dobrámos-lhe o casaco no colo, uma das
gémeas loirinhas enterrou-lhe a caixa do detergente pela
cabeça abaixo e o pó branco espalhou-se na gravata, na
camisa, nas calças, nos sapatos bicudos, Que trombas tão
tristes que os defuntos têm, pensou o soldado, que bocas de
borracha murcha como as dos palhaços doentes, e as mãos,
meu capitão, assim quietas, penduradas, pálidas, fosse das
drageias de vitaminas fosse das ampolas de beber já conseguia
aguentar-me nas canetas e gatinhar sem ajudas de
compartimento em compartimento, depois de amanhã o
homenzito da pasta despeja os móveis na rua e toma conta da
casa, depois de amanhã, pensou o soldado, matam o meu tio
para sempre, a Odete cessou de visitar-me, de acenar, de sorrir,
estou bom, lembrou-se do Olavo no apartamentozito da Cova
da Piedade, de jornal aberto nos joelhos, a fitá-lo pouco à
vontade com as pupilas furtivas que tentavam sem sucesso
congratular-se, alegrar-se, do cacilheiro às sacudidelas e aos
pulos nas ondas, do trajecto de camioneta para a vila, no dia
seguinte, à tarde, vestiu-se e saiu de casa à sorrelfa quando a
porteira foi pagar a luz, andou um ou dois quarteirões a pé
sentindo o passeio elástico sob os sapatos, e era como se lhe
tivessem arreado muita pancada e moído os músculos e os
ombros, se quisesse por exemplo mexer-se mais depressa ou
correr não conseguia de certeza, apanhou um eléctrico lá em
baixo, junto à praceta, respirava a custo, o ar entrava e saía
com dificuldade dos pulmões, apeou-se na Rua Gomes Freire
e comeu cachorros, ovos cozidos e uma travessa de miúdos de
frango numa cervejaria chamada Prego de Ouro, frequentada
por cauteleiros, operários, putas ensonadas que trabalhavam
nos quarteirões da vizinhança, vadios, tipos da Judiciária e
pequenos chulos de gravatas berrantes e casaco aos quadrados
de ombros altos, oferecendo-se tabaco americano de
contrabando e depenicando virilmente pratinhos de tremoços.
Reconheceu, dobrado sobre o zinco do balcão, um aprendiz da
oficina de automóveis perto do armazém das Mudanças Ilídio,
um de bochechas picadas de borbulhas, com um defeito no
dedo como se possuísse um par de unhas no polegar achatado,
e alguns velhos que costumavam ocupar os bancos de ripas do
Campo Santana, as sombras e os cisnes deslizavam ao rés do
lago, sob as altas árvores escuras cor de sobrancelhas
eternamente nocturnas, o fulano que tirava as imperiais ia
devorando rissóis e croquetes às escondidas do patrão, pediu
uma aguardente de maçã para ganhar forças e coragem
(qualquer coisa, uma mola, um parafuso, um motor, parecia a
pontos de quebrar-se dentro dele), o alferes fechou à chave a
porta da despensa, com o cadáver do oficial de transmissões lá
dentro, e regressaram em procissão à sala, meio nus, meio
vestidos, embatendo como borboletas nos umbrais e nas
paredes, pagou, deixou de gorjeta umas moedas escuras
pequeninas, desceu dificilmente do banco de súbito himalaico
numa tontura de andaime, um tapete de caixas e de lixo
amorteceu-lhe o tombo, a tarde escurecia na fímbria recortada
das telhas e nos funis dos algerozes, uma loja de
electrodomésticos, em que se alinhavam feericamente
perspectivas paralelas de máquinas de lavar, acendeu as
profundezas da montra, os filamentos em ziguezague dos
candeeiros avermelharam-se um pouco, avançou quase
encostado ao muro do hospital na direcção da casa, e as
pernas, senhores, aguentavam, os músculos aguentavam, a
cabeça aguentava, só uma leve vertigem, só um torpor, só os
miolos, como que gaseificados, borbulhando, lá estava a
travessa, ondulada e abrupta, na acumulação de trevas do
crepúsculo, os patiozinhos bordejados de casinhas baixas, os
esbranquiçados cães sem raça que latiam das soleiras, sons de
talheres, cortinas de renda que vibravam, pagelas
encaixilhadas a contraplacado nas paredes, palpou a chave na
algibeira, no meio dos trocos, dos cigarros soltos do maço e da
caixa de fósforos, é esta, a fachada amarela do senhor Assírio
que negociava no contrabando de rádios, a azul desbotada do
senhor Alfredo da drogaria, com o papagaio a criticá-lo, de
nuca arrepiada, no poleiro de folha, o homenzito da pasta
apontou-lhe o pequenino, frágil queixo definitivo A partir do
fim do mês consideramos a casa devoluta, E a horta?, pensou
ele, e os frangos, e os móveis, e as solas dos defuntos nas
tábuas do sobrado?, ninguém me viu e se me visse quem me
topava com uma barba de oito dias?, o trinco saltou sem custo,
o vestíbulo, o corredor, o quarto da Odete logo à esquerda,
passinhos de ratos pelo forro, leves, cautelosos, instantâneos, o
cheiro confuso, misturado, de dantes, a flutuar ainda na
cozinha e na sala, odor de refogado, de suor, de humidade, de
medicamentos, de caca de galinha, de bolor, alcancei o quintal,
quebrei a corda de estender a roupa com a navalha, enxotei por
cima das cercas os frangos que cacarejavam de pânico,
espalhando penas, para os quintais vizinhos, rebentei a rede da
capoeira com os paus carunchosos dos poleiros, pisei as
couves, as batatas, os tomates que se esborrachavam sob os
saltos como crânios cartilagíneos de bebé, os tornozelos
pesavam-me de lama, os rins agora sim doíam-me, os miolos
gaseificavam-se cada vez mais, entornei o tanque da roupa,
desfiz à martelada a torneira de regar e um esguicho prateado
alastrou em arco nas trevas, envernizando e fazendo brilhar a
espaços a terra revolvida, parti os caixilhos quase podres das
janelas e um cisco de vidro cravou-se-me na mão, as louças
boleadas da retrete, a marmorite da pia, cagalhões
antiquíssimos derramaram-se nos azulejos, a água corria aos
soluços nas tábuas do sobrado, derrubei cadeiras e trastes,
arrombei gavetas, joguei uma pedra ao quadro da electricidade
que se desfez numa pirotecnia de estrondos e de chispas, voltei
do avesso a cama do meu tio e esventrei-lhe o colchão de
palha com as unhas, vozes lá fora aproximaram-se,
exclamações aflitas de mulher, gritos, chamamentos,
interjeições, cães que ladravam, um homem perguntou Quem
está aí?, uma lanterna brilhava cega, ao fundo do corredor,
palpando o escuro, ainda arranquei da parede uma prateleira,
duas, ouvi gritar na rua Chamem a polícia que estão a destruir
o prédio do senhor Ilídio, quis-lhes explicar que não, quis-lhes
dizer que era eu, ainda tombei uma mesita baixa, ainda quebrei
uma jarra, mas os pés escorregavam, mas o corpo atraiçoava-
me, mas um fio enrolou-se-me nos calcanhares, mas tombei
desamparado, de costas, no soalho, no meio da lama e da água
e dos cacos e dos pregos e das tábuas soltas dos móveis, mas
um cachorro filou-me a camisa, mas a lâmpada iluminou-me a
cara, mas várias silhuetas altíssimas cercaram-me, e fiquei cá
em baixo, estendido no chão, sangrando do pulso e da cara e
dos joelhos, a olhá-los, meu capitão, com as órbitas de súbito
sem ódio, tranquilas, apaziguadas, que os animais têm ao
morrer.
10

— A reserva, disse o tenente-coronel a empurrar para longe


de si, com uma palmada, o garrafão vazio, é exactamente a
mesma coisa que estar morto.
Acordava às cinco ou seis da manhã, instantaneamente, sem
sono, sem cansaço, como se fossem duas ou três da tarde e
nunca se tivesse deitado, apercebia-se de uma forma imprecisa
dos contornos do quarto, do volume da nuvem de perfume a
ressonar ao seu lado, das mesinhas de cabeceira, da cómoda,
do silêncio de suor da noite, as linhas paralelas dos estores
embaciavam-se de uma claridade gordurosa, no grande
espelho oval com retratos entalados na moldura navegavam os
barcos minuciosos da insónia, sonhos náufragos ondulavam
nas paredes, procurava aos apalpões os cigarros, os fósforos, o
cristal côncavo, de vidro frio, do cinzeiro, encostava a
almofada à madeira da cama, sentava-se no colchão, em
pijama, a fumar, verrumando a penumbra com as pupilas
desertas, e logo, dentro dele, O que farei eu hoje?, e logo,
dentro dele, Em que é que ocupo o dia?, horas e horas ocas,
intermináveis, fazer a barba no barbeiro, ler o jornal, almoçar
um peixe desconsolado por aí, ver as montras da Avenida de
Roma ou da Baixa, ir ao cinema, voltar para casa, a Edite
afogueada, atrasada, despenteada, aflita, compondo à pressa
um alfinete, um brinco, uma prega, um botão, jantar frente a
ela num silêncio de copos e talheres pesado de recriminações
contidas, de desinteresse, de cansaço, de acusações mútuas, e
depois, às onze ou à meia-noite, despir-me aos pés da cama
dobrando a roupa, pelos vincos, numa cadeira de braços, vê-la
desmaquilhar-se, transformar-se numa mulher diferente, muito
mais velha, muito mais feia, numa repugnante quase decrépita
senhora de idade que se untava de cremes, de pomadas, de
pastas, prendia o cabelo com uma fita roxa de colegial ou de
caniche, de lacinho ridículo no cocuruto, enfiava uma absurda
camisa curta borbulhante de rendas, se enfiava nos lençóis,
sem o olhar, com uma revista de escândalos e divórcios nas
unhas, O Dalai Lama Alugou Em Biarritz Um Luxuoso
Apartamento Para Uma Antiga Arrumadora De Cinema; Irá O
Célebre Armador Grego Demétrio Fofopoulos Divorciar-Se
Do Capitoso Manequim Jane Buble A Fim De Se Consorciar
Com Uma Princesa Iraniana?, eu permanecia sem ler, de
pupilas no tecto, a coçar os testículos a mudar de posição, a
pensar na rapariga nua do filme do Odéon, a detestar-te,
vincavas o canto de uma página sem chegar a saber se o
último rei do Egipto batia efectivamente nas concubinas com
um chicote de pontas de metal, suspiravas, viravas-me as
costas repletas de espinhas e de sardas, Boa noite, carregavas
no comutador da luz e o quarto escurecia de súbito como se se
voltasse do avesso com nós dois lá dentro, Boa noite,
respondia baixinho o tenente-coronel no tom de quem
resmunga Caralho, atritos de roupa, silêncio, atritos de roupa,
mais silêncio, umas nádegas tocavam-me e afastavam-se, uma
sola de pé tocava-me e afastava-se, O que é que lhe mete nojo
em mim?, pensava o tenente-coronel, surpreendido, o que é
que ela odeia em mim?, o que faria ela se eu tentasse abraçá-
la?, os ponteiros do relógio eléctrico brilhavam nas trevas,
formando caretas, sorrisos, esgares, sinais, o corpo desprendia-
se dos cobertores, flutuava um nadinha, regressava, erguia-se
no ar, hesitava, baloiçava, partia e a minha cabeça, aflita, atrás
dele, os meus pensamentos, a minha raiva, o meu vago desejo
de ti, a minha inércia, tudo cada vez mais confundido e
misturado dentro dele, tudo cada vez mais impreciso, mais
difuso, o relógio navegava, microscópico, a quilómetros de
distância, as trevas davam lugar a uma espécie de paz branca,
a uma espécie de ausência, pensou ainda E amanhã?, e nada
lhe doía já, o ofendia, o incomodava, o perturbava, tinham
deixado a casa do Colégio Militar e habitavam de novo o
andar da Edite, no meio dos bibelots inumeráveis
(objectozinhos de loiça, leques, flechas indianas, coisitas de
marfim e de bambu) e do seu impositivo mau gosto, o cão
raspava com as unhas os azulejos da cozinha, silêncios vários
amontoavam-se e sobrepunham-se ao acaso e nisto, e logo a
seguir, taque, cinco ou seis da manhã, as costelas paralelas dos
estores, os barcos da insónia no grande espelho oval da parede,
faço a barba, leio o jornal, almoço na primeira esplanada, por
aí, um peixe tão desconsolado como eu, vejo as montras da
Avenida de Roma ou da Baixa, vou ao cinema, e porque raio
não me dá um enfarte, uma trombose, uma gaita qualquer, ao
primeiro intervalo, e porque raio esta merda não acaba agora,
diga-me lá, de uma vez.
— O meu comandante não devia beber tanto, opinou
respeitosamente o soldado, aplicando uma segunda palmada
no garrafão vazio. Quando o vinho sobe à tristeza é necessário
pulso teso para aguentar o safanão.
— Se ele arranjasse um emprego, disse para a Edite a amiga
verde a repetir o açúcar, já não se chateava tanto, já não se te
metia tanto em casa. Conheço um cabo quarteleiro que faz a
escrita de uma firma.
— E quanto tempo viveste tu com a anã?, perguntou a deusa
do strip-tease Melissa.
— Quem diz uma escrita diz um trabalho de balcão, de fiel
de armazém, de porteiro, de caixeiro-viajante de boutique,
vingou-se a amiga verde a mexer triunfalmente o chá. Uma
tarefa que o distraísse, sabes como é, o ocupasse, o mantivesse
alegre.
— Ainda vivo, respondeu o alferes. De uma fulana normal é
canja, mas ensina-me lá como é que um tipo se vê livre de
uma anã.
A barbearia cheirava a morno, a sublimado e a loções
baratas, dois ou três sujeitos sentavam-se nas cadeiras, de
toalha no pescoço, soleníssimos, e mechas de cabelo iam
tombando à volta deles, idênticas a penas de frango que se
depenam, varridos para o passeio por um velhinho diligente,
de bata, que esvaziava igualmente escarradores e cinzeiros,
mudava panos, arrumava jornais, e vinha nos intervalos
contemplar a rua, de mãos nos bolsos, prédios, automóveis,
pessoas, a cinzentura monótona de março. Os espelhos
paralelos multiplicavam por dez, por vinte, por cem, as
navalhas, os rostos, a espuma de sabão, as tesouras e os pentes,
os que esperavam, encostados à parede, em banquitos sem
costas, os gestos esvoaçantes do barbeiro, melenas lavadas
pingavam gotas de naufrágio, os olhos ensonados do tenente-
coronel encontravam de quando em quando outros olhos
também à deriva, também vagos, nas superfícies de vidro e nas
esquadrias cromadas, Oxalá que isto nunca mais acabe, oxalá
que o corte do cabelo seja eterno, os pêlos caíam na toalha
como neve suja ou introduziam-se, comichantes e
desconfortáveis, no pescoço, as tesouras abriam e fechavam os
bicos cromados de pássaro, encarniçando-se contra uma nuca,
o contorno de uma orelha, as madeixas excessivamente longas
da testa, dedos moles levantavam-lhe o queixo, baixavam-lhe
o queixo, desenrugavam-lhe as bochechas, um fantasma de
bigode, ao lado dele, com uma mão de fora segurando um
cigarro, agitava-se sob uma espécie de lençol folheando uma
revista, Conheço-o?, um calendário, o rectângulo encaixilhado
da tabela de preços, o reclamo de uma marca de brilhantina
com um rapaz muito bem penteado cercado de adolescentes
entusiásticas, Quer aparar?, perguntou o barbeiro inclinando-se
amavelmente para o fantasma a designar-lhe o bigode com a
tesoura, o gajo ergueu as sobrancelhas, ultrajado, Conheço-o?,
mas a memória atraiçoava-o de contínuo, mas os nomes e as
situações confundiam-se-lhe na ideia, daqui a nada uma
trutazita grelhada, daqui a nada o cinema, comprar um bilhete
de coxia, dar a gorjeta ao arrumador, ficar no escuro não a
seguir a fita mas a pensar na vida, a pensar em logo à noite ao
jantar, a pensar em amanhã, Deve ser isto, esta angústia oca,
este desespero vazio, que os fulanos que eu passei à reserva
sentiam Bom dia, meu general, cumprimentou-o o fantasma a
sorrir-lhe no espelho, enquanto o barbeiro lhe aplicava pedra
ume num lenho da patilha, a manicura entradota, de mamas
inimagináveis, requebrava-se no intervalo das cadeiras, a
memória abriu-se, como uma melancia, dentro dele, esta cara,
este bigode, este corpo sacudido, estes dedos de aranha, é isso,
o Regimento de Artilharia da Encarnação, a madrugada do
golpe militar, as paranóias de conspiração comunista do padre,
o coronel Ricardo aos berros ao telefone, os oficiais fardados
no gabinete do Comando, o capitão Mendes, de camuflado,
peremptório, convidando, avisando, ameaçando, dando ordens,
avançando ou recuando nas compridas pernas estreitas, porém
não estaria enganado, caralho, porém a memória não o
atraiçoaria como sempre?
— O Mendes, na reserva?, perguntou o alferes, admirado.
Lembro-me de ter ouvido falar nisso, de ler no jornal quando
foi o vinte e cinco de novembro, mas julgava que voltaram
atrás com a decisão e o reintegraram.
— À maior parte sim, a ele não, respondeu o tenente-
coronel a trepar de gatas para um sofá de ramagens. Ao
Mendes consideraram-no sempre um comunista perigosíssimo,
a nata dos comunistas, percebe, dos maus como as cobras, dos
capazes de matar a família inteira com uma foice e um
martelo. O coronel Ricardo, por exemplo, tinha um medo dele
que se pelava.
— Como é que o meu general tem passado?, interrogou
obsequiosamente o capitão Mendes, a sorrir por entre a chuva
de cabelos que caíam.
— Tenho um pó a esses cabrões que não os posso ver nem
pintados, informou o soldado. Se apanho um deles a jeito
numa esquina fodo-lhe os cornos num instante.
— Saímos juntos da barbearia, disse o tenente-coronel
enroscando-se nas almofadas, e fomos almoçar juntos
bacalhau com grão a um restaurante do Loreto para recordar
os velhos tempos. Por sinal que havia lá um tinto de se lhe
tirar o chapéu.
— Eu, por mim, fuzilava-os a todos, indignou-se o soldado.
Encostava-os em fila a uma parede e trás trás trás trás trás trás
trás trás do primeiro até ao último sem parar. Vocês riem-se
mas se não fosse o socialismo não havia miséria em Portugal.
— Ao princípio não me recordava de nada, explicou o
tenente-coronel, mas depois, a pouco e pouco, as coisas
vinham. Até os cheiros, até os sons, até o que me passou pela
cabeça nessa altura, tantos anos antes.
O capitão Mendes acabou primeiro e ficou à espera dele
junto à porta, olhando os prédios da Avenida da Igreja, a
conversar com o velhote de bata que esvaziava os escarradores
e os cinzeiros, enquanto a manicura, debruçada, de lima em
riste, para as falanges de um senhor de posição, lhe
aperfeiçoava amorosamente as unhas, lhe catava as peles,
meneava os ombros, se multiplicava em gorjeios sedutores, em
exclamaçõezinhas, em estremecimentos, em risos. O barbeiro
passou-me o arrepio de um pincel na nuca, um pingo
ultrapassou o obstáculo da toalha e desceu-me nas costas. Seis,
sete, oito, quantos ao certo?, a navalha a cantar na pele, as
camionetas da tropa guinchando no saibro da parada, pelotões
formados, oficiais que corriam para aqui e para ali, a manicura
mergulhou as mãos do senhor de posição numa tacinha de
água com sabão, e eis os guinchos em pânico do coronel
Ricardo ao telefone, eis os olhos amedrontados dos majores, a
minha indiferença, o meu aborrecimento, o meu sono,
madeixas de cabelo subiam e desciam, sem peso, na morna,
embaciada capoeira de espelhos de barbearia, pousavam nas
tesouras do lavatório, nos gestos, nos jornais, nas prateleiras
de vidro, na tabela de preços, no peito abracadabrante da
manicura, os empregados escovavam os ombros do cliente, o
velhote trazia uma vassoura, de trás de uma cortina, num
cubículo onde se divisavam pilhas de toalhas, frascos, dezenas
de navalhas nos seus estojos de cartão, e empurrava para a rua
pêlos, beatas, pedacinhos quase transparentes de papel, Dormi
durante a revolta inteira apesar do capelão, apesar dos majores,
e, ao acordar, os ministros presos, carros de assalto, uma
exaltação estranha na cidade, o capitão Mendes a debruçar-se
sobre o galheteiro para ele, O pudim aqui é óptimo, não quer
experimentar, meu general?
— Porque é que vocês não escondem o morto no urinol ali
em cima?, perguntou a ajudante do ilusionista. Vestem-no
muito bem vestido, levam-no ao colo, sentam-no numa retrete,
vêm-se embora e pronto.
— Esse capitão Mendes, sentenciou o soldado, estendido
junto da mulata com a cara coberta pelo braço, deve ser um
filho da puta e peru. Mandem-no ter comigo que eu conto-lhe.
— A partir de amanhã o senhor não entra mais no
Regimento, disse um tipo de farripas grisalhas, com imensos
galões nos ombros. Não queremos mais aventureirismos, mais
loucuras no Exército, meu amigo.
— Autenticamente de um dia para o outro, meu general,
lamentou-se o capitão Mendes a cuspir caroços de azeitona no
rebordo do prato. Mal cheguei ao quartel chamaram-me à
secretaria, e ali mesmo, defronte dos sargentos, o coronel
desatou aos berros comigo, a provocar-me, a insultar-me,
acabaram-se as poucas vergonhas, acabou-se a anarquia,
apresente-se no Comando da Região Militar que está lixado.
— Nem pensem nisso, argumentou a deusa do strip-tease
Melissa, se fizerem a coisa com cuidado ninguém topa, é mais
um grupo de bêbedos a pisar os canteiros do jardim.
— E em São Sebastião da Pedreira, disse o capitão Mendes,
fui recebido entre portas por um tenentezeco redondinho,
efeminado, que me entregou um papel escrito à máquina, A
sua passagem à reserva, e desapareceu logo a seguir no
corredor, a abanar a peida, sem sequer me dar tempo a
responder-lhe. Fiquei para ali com o papel na mão,
aparvalhado, sozinho no meio das ordenanças e das
cornucópias de estuque.
O restaurante prolongava-se numa espécie de esplanada
envidraçada, com mais mesas e cadeiras, plantas em vasos,
grandes bonecos de barro, uma imagem num nicho, caçarolas,
tranças penduradas de cebolas, uma camioneta que
descarregava barris no passeio em frente, homens em camisa,
o pedregulho esmagador do sol das duas horas: o capitão
Mendes possuía agora rugas inesperadas ao redor dos olhos,
vincos escuros no pescoço, engordara, um ventrezinho
cilíndrico crescia logo abaixo das costelas, De forma que sou
civil, meu general, trabalho no estabelecimento de ferragens
do meu sogro, vendo fechaduras, chaves, dobradiças, alarmes
para casas e automóveis, não está interessado num sistema
seguro contra gatunos, por acaso?
— É curioso como tudo se tornou tão depressa como antes
do golpe, meu capitão, disse o alferes. Isto é, tirando umas
quantas paredes pintalgadas e uns quantos palermas que se
foderam para nada, é claro.
— Você outra vez?, espantou-se o tenentezeco, enervado. A
decisão superior, no que se refere ao seu caso, é irrevogável,
senhor Mendes.
— O Príncipe Real só tem velhos tontos, meio cegos, a
apanharem sol nos bancos, explicou a ajudante do ilusionista
coçando a coxa direita com as unhas prateadas. Ainda julgam
que alguém se vai dar ao trabalho de olhar para vocês?
— O mais engraçado, meu general, é que na época em que
me sanearam eu andava mais inocente do que uma freira, disse
o capitão Mendes a afastar as espinhas com o garfo. Casei
logo a seguir ao vinte e cinco de abril, comecei a interessar-me
pelas ferragens e sosseguei: as revoluções, percebe, as
conspirações, o leninismo, a classe operária, as chatices, já não
me entusiasmavam puto.
Não só mais gordo, pensou o tenente-coronel ao segundo
jarro de tinto, mas menos enérgico, menos convicto, com
menos gás, mais mole, com sorriso de gato capado, voz de
gato capado, olhos de gato capado, anel de brasão no dedo,
isqueiro de prata, cabelos brancos, roupa por medida, uma
simpatia oleosa, lubrificada, de comerciante, uma súbita
tolerância inesperada, nenhum ângulo, nenhuma aresta,
nenhum bico incómodo, mal educado, desconfortável: É que
também ele envelheceu, sugeriu o alferes, também ele se
cansou deste país de merda, também ele deixou a contestação
para os garotos das escolas. — Hoje em dia uma pessoa
revoltar-se, sentenciou o soldado, é escrever puta que pariu nas
paredes do metropolitano e pronto. Mas pelo sim pelo não eu
amandava uma arrochada nos cornos desse tipo.
— O negócio marcha bem, alegrou-se o capitão Mendes,
então os alarmes para automóveis vendem-se que é uma
beleza. Temos uma série de representações estrangeiras, daqui
a cinco ou seis meses lançamo-nos nos computadores. No fim
de contas, meu general, correrem comigo da tropa foi uma
sorte do caraças.
— Eu aperto-lhe a gravata, exigiu uma das gémeas loirinhas
a apoderar-se do pescoço do morto. Trabalhei de caixeira num
armazém, não há ninguém aqui que faça laços como eu.
O som das conversas do restaurante subia e descia e
ondulava como o mar, numeroso, múltiplo, miúdo, a
camioneta que descarregava barris no passeio fronteiro foi-se
embora, pelos vidros da esplanada distinguia-se um florista,
uma casa de penhores, uma policlínica, uma pensão, os
edifícios sem graça de Lisboa, relva murcha que a urina dos
cães secara, o céu implacavelmente azul, a fachada de um
laboratório com um porteiro a espreguiçar-se à entrada, o
empregado do restaurante, junto deles, à espera, O meu
general toma café?, ofereceu o capitão Mendes com um gesto
urbano, calçaram as meias e os sapatos ao oficial de
transmissões, a ferida das costas deixara de sangrar, o rasgão
que a faca produzira na camisa mal se notava, a mulata
penteou-lhe os cabelos apertando o nariz com a mão livre, Os
óculos dele, caralho, lembrou-se o alferes, metam-lhe os
óculos no bolso, Um café e um nescafé, ordenou o capitão
Mendes a levantar o nariz para o criado, eles têm aqui um
óptimo licor, que tal?, o sujeito da loja de penhores abria
afanosamente os taipais, uma montra cheia de relógios, uma
outra de torradeiras, de fios de oiro, de colares e de rádios,
Estamos a pensar, para o próximo ano, numa secção de óptica,
anunciou o capitão Mendes com orgulho, no caso de o
governo, está visto, proteger convenientemente a iniciativa
privada, até agora o que têm feito eles pelas empresas?, e o
tenente-coronel, em voz alta, Sim, um licor, e para dentro de si
mesmo, estarrecido, Como as pessoas mudam, caramba, Que é
que o meu general quer?, disse o capitão Mendes com ímpeto,
se desejamos fazer parte da Europa há que tomar iniciativas,
há que concorrer com o estrangeiro, e no interior da loja uma
penumbra confusa, tumultuosa, abandonada de objectos, Onde
é que param os óculos?, enquistou-se a gémea da cesariana,
alguém viu os óculos do gajo?, Que esquisito como os mortos
se tornam sérios com o tempo, pensou o tenente-coronel,
surpreendido, observando o defunto, a cara deste tipo ficou de
pedra em poucas horas, A nacionalização da banca, por
exemplo, dissertava o capitão Mendes, irritado, além de
estúpida é uma medida economicamente catastrófica, soldados
transidos que subiam para as Mercedes, para os unimogues,
para os jipes, metralhadoras, bazookas, canhões sem recuo
cobertos de bainhas de oleado, o capitão Mendes berrando
ordens na parada, a manhã heróica cheia de ecos das botas
pelo saibro, o capelão a gemer Vão proibir as peregrinações a
Fátima, vão proibir as missas ao domingo, instalaram o oficial
de transmissões numa cadeira para o compor melhor, E depois
com a lei dos despedimentos que temos que empresário se
atreve, diga-me só, a investir, a aumentar os negócios, a criar
postos de trabalho?, Mas este fulano não estava lá?, pensou o
tenente-coronel, confundido, mas este fulano não exigiu isso
tudo?, realmente a única coisa que vale a pena agora escrever
é puta que pariu no metropolitano, o licor descia garganta
abaixo ardendo agradavelmente, docemente, Se eu estivesse
no quadro, reflectiu ele, quem fazia um golpe militar agora era
eu, entrava pela casa da Edite fora, rasgava-lhe o vestido à
baioneta, e escaqueirava-lhe os pavões de marfim, amanhã
outra vez o barbeiro, outra vez o jornal, a cabeça do oficial de
transmissões rebolava constantemente, sem força, no peitilho,
outra vez o cinema, outra vez os jantares silenciosos, tensos de
indiferença, de ameaças, de ódio, Ando justamente à procura
de um homem com experiência de relações pessoais para o
pelouro da óptica, disse o capitão Mendes com um sorrisinho
cúmplice, ordenado base e percentagens nas vendas, se o meu
general, com tantos anos de comando, meditasse no assunto?,
a nuvem de perfume espalhava boutiques por Lisboa,
organizava passagens de modelos, pagava anúncios na
televisão, montava uma fábrica em Barcelos, repetiu duas
vezes o licor que já não lhe ardia na garganta, apenas um
delicado entorpecimento no corpo, os dedos que tropeçavam
no cálice, e uma satisfação pesada no sangue, deu uma
palmada nas costas do capitão Mendes, riu-se, achou piada a
anedotas confusas, gaguejou, hesitou, aceitou o lugar,
Prontinho, disse a deusa do strip-tease Melissa com um último
piparote à gravata do morto, já o podem despejar à vontade no
urinol, Apareça amanhã de manhã na firma, meu general,
abraçou-o o capitão Mendes, para se ir pondo a par dos
negócios, para lhe apresentar o meu sogro, Chego a casa,
decidiu o tenente-coronel a tropeçar nos atacadores dos
sapatos, e ladro-lhe na tromba, Arranjei um emprego, e atiro-
lhe aos chifres, Mete o dinheiro no cu, velha de merda, o
capitão Mendes entrou para um enorme, luxuosíssimo carro
prateado, repleto de acessórios e de antenas, carregava-se num
botão e abriam-se as janelas, carregava-se num segundo botão
e fechavam-se as janelas, carregava-se num terceiro botão e
surgiam faróis suplementares no capot, carregava-se num
quarto e um barzinho de acaju elevava-se a tremer dos forros
de veludo, o automóvel partiu num zunido surdo de reactores,
ergueu-se no ar, contornou a Avenida da Igreja, desapareceu
na esquina de um cinema, o tenente-coronel voltou para o
andar a pé, exaltado, mas o efeito do licor diluía-se
rapidamente na cabeça, mas os insultos à mulher dissolviam-
se-lhe um a um na boca, mas os passeios cessaram de ondular,
mas a satisfação de há pouco evaporou-se, a espuma dos ossos
endureceu de novo, alcançou o bairro junto ao muro, pintado
de verde, de um estádio, e o maneta da banca dos jornais
cumprimentou-o, mercearias, garagens, uma livrariazita
sumida em cujo bojo se moviam vultos indecisos, o padeiro
fechado àquela hora, miúdos que brincavam numa espécie de
largo, vestíbulos de prédios, a farmácia, um sossego de
digestão nas tabernas vazias, ladrar-te na tromba Arranjei um
emprego, atirar-te aos chifres Mete o dinheiro no cu, velha de
merda, o Lord a ladrar, a Clarisse a deixar cair a xícara, a Edite
a mirá-lo com órbitas redondas de pasmo, de veneração, de
medo, de súbito respeito, meteu a chave à porta, subiu de
elevador com um casal bem vestido que discutia em voz baixa,
ferozes e hirtos, exibindo-se os caninos agudos, capazes de se
entredevorarem, rosnando, à minha frente, Como as pessoas
que vivem juntas se odeiam, pensou o tenente-coronel, como
as pessoas que vivem juntas na melhor das hipóteses se
suportam, as narinas adejantes do homem fumegavam, um dos
joelhos da mulher estremecia de fúria, o sobretudo dele e a
estola dela eriçavam-se como o lombo zangado dos gatos, o
tipo torcia uma luva castanha nas mãos sibilando frases
indistintas, enquanto a sua inimiga, de penteado flamejante,
vasculhava a carteira à procura de um punhal ou de um
espelho, desembarco lá em cima e mando-lhe às fuças Vou
trabalhar na óptica, sua puta, separe-me as minhas coisas que
torno amanhã a Sapadores, e a nuvem de perfume, a chorar, a
agarrar-se a ele, a suspender-se-lhe do fato, a acariciar-lhe o
cabelo, Não faças isso, benzinho, não me abandones, não me
largues, As gajas são assim, filosofou o soldado, quanto mais
trolha mais amor, o álcool desvanecia-se, a exaltação de há
horas dera lugar a uma melancolia embezerrada e turva, do
vestíbulo, enquanto pendurava o casaco no bengaleiro, o
tenente-coronel ouvia as vozes da Edite e da Clarisse que
bichanavam na sala, o caniche veio farejar-lhe em silêncio os
sapatos, Sai daqui, não me cheires, pira-te, e o animal acabou
por sentar-se nos quartos traseiros a coçar pensativamente a
orelha com a pata, a máquina de lavar roupa chocalhava na
cozinha amassando lençóis, a roupa no arame da marquise
inquietava-se, havia loiça suja numa mesa de pedra e uma
batedeira tombada de lado num armário, cheiro de pão quente
e de bolachas, cómodas de embutidos no corredor, pratos em
nichos acesos, Arranjei um emprego, caralho, podes enfiar as
boutiques pela peida acima, e lá estavam as duas sentadas no
sofá da saleta, sem o olharem sequer, de cabeças unidas,
conspirando, cercadas por enormes ramos enjoativos de
gladíolos em vasos de cerâmica, a Clarisse cada vez mais
pálida e mais magra, a falar de doenças, a Edite, de caracóis
platinados pelas costas abaixo, espampanante de decotes e de
rendas, o tenente-coronel avançou na alcatifa um tímido passo
enviesado de caranguejo, debruçou-se para apanhar um cigarro
e o isqueiro de uma caixa de prata, pensou Não me vêem
mesmo ou ignoram-me de propósito?, tinham pousado o
tabuleiro do chá numa mesa à frente delas, biscoitos, bolo
inglês, torradas, bolachas, Imaginem que encontrei um antigo
capitão meu, da máxima confiança, que montou um negócio
complicado, informou ele e a voz desmaiava-lhe, oscilava e
recomeçava à beira da extinção como a chama de um vela de
estearina numa corrente de ar, convidou-me para gerir uma
parte dos negócios (Nem assim, caramba?) e começo a
trabalhar com ele amanhã (acendeu dificilmente o cigarro),
não acham uma óptima notícia, vocês?, a Clarisse bebeu um
gole e perdeu-se na parede fronteira, interessadíssima num
quadro onde uma velha, de cócoras num banquito, abanava as
brasas pálidas de um fogareiro de barro, a Edite fitou-o por
instantes, de cara franzida, como se ele fosse um insecto,
levantou as sobrancelhas ao céu, desviou os olhos, encolheu os
ombros, virou-se para a amiga, E quando é que te operam o
mioma, perguntou ela.
— O melhor é um segurar-lhe em cada braço, disse a deusa
do strip-tease Melissa, e o terceiro ir atrás para o que der e
vier: puxar aqui, empurrar acolá, substituir um dos colegas se
for preciso. E já agora tragam-me uma garrafinha de água-pé
no regresso que estou com uma sede que nem vejo.
— Um cadáver numa despensa não é de facto comum,
informou o inspector gordo aos jornalistas acumulados no
patamar, tomando notas, tirando retratos, desdobrando os fios
do microfone. Geralmente, os senhores sabem isso, os
assassinos tomam a precaução de os arrastar para longe do
sítio do crime. E depois o inquilino da casa desapareceu.
— Já que és tão espertinho, minha besta, exaltou-se o
alferes, explica-me lá como é que se dá o chuto numa anã.
— Segundo a porteira uma pessoa da maior
respeitabilidade, disse o gordo, um cavalheiro autêntico. Não,
não excluímos a hipótese de o terem morto também.
— Adeus, não quero mais, muito obrigado, foi porreiro,
chauzinho?, urrou o alferes, escarlate, a chocalhar o soldado
pelas mangas. Tu não estás bom da cabeça, Abílio, tu não
sonhas a lapa que ela é.
— Ou cúmplice, claro, admitiu o gordo a engrossar a
papada, como os perus. À partida, meus senhores, nenhuma
probabilidade é de afastar.
— Água-pé levezinha para limpar o estômago, teimava a
ajudante do ilusionista, no fundo mais um refresco que outra
coisa. Uma bebida que levante o coração, que sossegue o
fígado, que nos mande embora bem dispostas.
— Prende-se a mim como uma carraça, lamentou-se o
alferes, aparece-me no emprego a toda a hora, obriga-me a
almoçar e a jantar com ela, desconfia de qualquer mulher, tem
ciúmes de tudo, ameaça, guincha, chora, faz cenas, amotina o
prédio, já mudei de secretária vinte vezes, até para me
encontrar com vocês foi uma tragédia. E agora, desde que se
lhe meteu na cabeça ter um filho, só falta fechar-me na
marquise como um bicho.
— Para já sabemos pouco, disse o gordo. Trabalha numa
companhia de seguros, não tem cadastro, divorciou-se de um
dos nomes mais soantes do país. Até há uns meses surgiam por
aí a mãe ou a irmã, a tratar-lhe da roupa, da limpeza.
— Se não lhe agarram a cintura como deve ser o gajo não
acaba de cair, avisou uma das gémeas consertando a fralda do
defunto, alisando-lhe o cabelo, apanhando-lhe os óculos do
chão. Suponham que é uma namorada, entusiasmem-se,
apertem.
— Uma garrafa ou duas, aumentou a mulata inerte,
espalhada liquidamente na cama como um pudim desfeito.
Talvez que me ajude a desagoniar do cheiro deste tipo.
— Um emprego de gerente, amanhã, animou-se
palidamente o tenente-coronel, de cigarro esquecido nos
dedos, cinquenta contos de ordenado base, despesas de
representação, percentagem nas vendas, deslocações ao
estrangeiro em hotel de primeira, automóvel: o que é que
pensam disto, caramba?
— O médico não decidiu ainda, respondeu a Clarisse, quer
repetir as análises, quer-me ver outra vez. Quinze dias no
máximo, acho eu.
A empresa do capitão Mendes ficava em Cabo Ruivo,
depois dos petróleos, junto ao hidroavião abandonado, a meio
caminho entre as docas e as calhas das vagonetas submergidas
pela erva e pelas pedras, onde apodreciam, tombadas em
taludes, carruagens destroçadas. Não havia gaivotas, nem
ratos, nem pássaros do rio porque a água, pastosa e imóvel,
morrera e fedia abraçada aos armazéns de pau e às quilhas das
traineiras, um relento de cadáver espalhava-se no ar, um bairro
da lata, ao fundo, multiplicava ao acaso, ao longo de uma
estradita de terra, as suas cabanas tortas como molares
doentes, subindo e descendo gengivas de detritos, caixotes
rotos, pedaços de cartão, bidés quebrados, carrinhos de bebé
sem rodas, um automóvel antigo, esventrado na lama, sem
portas nem vidros, de capot aberto, como a boca de um
hipopótamo, sobre amígdalas de bobinas e de fios. Saía-se do
táxi, com o chofer a protestar, contrariado, atolado
obliquamente numa poça, sem olhar a gorjeta, patinhava-se
um grande bocado em charcos de lodo escuro onde rolavam
nuvens escuras reflectindo o céu escuro, enormes ratos obesos
galopavam nos arbustos, um míope cão defunto apontava a
geleia do olho na direcção de ninguém, ultrapassava-se uma
casa abandonada, um muro em ruínas, um tractor reduzido ao
esqueleto dos ferros oxidados, empurrava-se uma cancela,
subia-se, a tropeçar, uma rampa limosa, e desembocava-se
num terreiro sujo, com três ou quatro camionetas em torno de
um edificiozinho decrépito, de aspecto vazio, com um cartaz
proclamando orgulhosamente Assis & Mendes, Lda., sob os
algerozes amolgados, e lá dentro, sentados, imóveis, em
secretárias poeirentas que se defrontavam num compartimento
leproso, um velho de sobrancelhas hirsutas, colete e corrente
de relógio, esmagando com as mãos grossas pilhas de facturas,
e o capitão Mendes a espremer uma borbulha do nariz,
segurando com a mão livre um espelhinho redondo, com a
fotografia de uma mulher nua do outro lado.
— Mais naturalidade, foda-se, berrou a ajudante do
ilusionista, lá de cima, debruçada do poleiro da janela. Parece
que engoliram um pau de vassoura cada um.
— Ora viva, ora viva, faça o favor de entrar, cumprimentou
o capitão Mendes, efusivo, abandonando o espelhinho, não
conhece o meu sogro, pois não?
O hidroavião, assim à distância, parecia de brinquedo, uma
longínqua chama carbonosa ardia no topo metálico da chaminé
dos petróleos, o rio assemelhava-se a um creme parado, sem
cor definida, espesso de açúcar, as sobrancelhas do velho,
Muito prazer, senhor general, atropelaram-se numa careta
cúmplice, o colarinho e os punhos torciam-se-lhe, pouco
limpos, em volta do corpo, Secção de óptica?, pensou o
tenente-coronel, que raio de porra venho eu fazer aqui?, o
cadáver do oficial de transmissões dançava ao meio deles,
preso pelos cordéis e pelas dobradiças dos membros, tinham
de parar quase a cada degrau, nas escadas para o Príncipe
Real, a fim de o segurarem melhor, de respirar, de
descansarem, as copas das árvores roçavam-lhes agora a
cabeça, Este gajo cheira a cagalhões de vazante, disse o
soldado, a mulata tem razão, caralho, este gajo cheira aos
esgotos da cidade inteira ao mesmo tempo, no compartimento
ao lado uma máquina de escrever abafada batia teclas
exaustas, e o tenente-coronel imaginou uma senhora sem
peito, muito amarela e muito triste, instalada num cubículo
esconso, a copiar um memorando interminável com um único
dedo espetado, imaginou o riso de troça da Clarisse, o riso
superior da Edite, as vigias do hidroavião eram redondos
olhinhos pequenos que escarneciam de mim, Lançamos daqui
a seis meses, anunciou orgulhosamente o sogro do capitão
Mendes procurando abrir em vão uma gaveta empenada, os
microscópios e os óculos de sol, aguente aí um bocadinho que
eu já lhe mostro os catálogos, vistos do cimo da fonte os
prédios articulavam-se uns nos outros como dedos, uma dama
microscópica passeava um cão que mal se via,
automoveizinhos minúsculos desciam lentamente a rua, A
gente não vai conseguir atravessar o jardim com ele ao lombo,
alarmou-se o alferes, não tarda nada escapa-se-nos das mãos
para um canteiro qualquer, toda a gente sabe que a pele dos
mortos, meu capitão, se escapa mais que a das enguias, toda a
gente sabe que a pele dos mortos segrega um suorzinho verde
de lombriga, Está aqui, em japonês e em inglês, triunfou o
velho pouco limpo a exibir um folheto com gravuras, o senhor
general conhece línguas estrangeiras por acaso?, Aquilo ali do
outro lado do rio, aquelas construções pequeninas envoltas
num nevoeiro de fumo, pensou o tenente-coronel, não é o
Barreiro é o Seixal, não dão ideia de fábricas, de estaleiros, de
cais, um tipo de bicicleta pedalava ao fundo, na estrada,
aparecendo e desaparecendo atrás de montes de entulho,
perseguido por uma matilha irada de cachorros, Vais vender
óculos escuros de porta em porta como os ciganos?, inquiriu
sardonicamente a Edite, vais impingir microscópios nas
capelistas do bairro?, Estas instalações são provisórias,
assegurou o capitão Mendes, inauguramos para a semana o
escritório novo no Chiado, Isto é, explicou-me o tenente-
coronel a descansar de boca aberta num banco, com o corpo
do oficial de transmissões quase dependurado nele, um quarto
andar sem elevador na Rua Garrett, por cima de uma loja de
acordeões, banzas, violinos, órgãos eléctricos, xilofones e
baterias, que se esganiçava o tempo inteiro num fluxo de
música estrondosa, tão arruinado, podre e antigo como o
prédio junto ao rio, salões de bolorento tecto altíssimo,
manchas de grelado desfazendo a pintura, tábuas do soalho
ganindo e quebrando-se sob os pés, e o resto, percebe, eram as
mesmas duas secretárias poeirentas, o capitão Mendes a
espremer borbulhas do nariz, o sogro a exibir-me
vitoriosamente os seus catálogos bichosos, e a eterna máquina
de escrever pulando devagar de tecla em tecla, com pausas
angustiantes no decurso das quais se cessava de respirar, o
coração parava, os músculos se suspendiam interrompendo um
gesto, aguardando o alívio da letra seguinte, que surgia por
fim, num sonzinho baço, idêntico à contracção de uma guelra
moribunda.
— Encontrámo-lo na despensa da Rua da Mãe-d’Água,
meus senhores, encontrámo-lo no urinol, explicou o inspector
gordo aos jornalistas. Um único cadáver em dois sítios
diferentes é mais habitual do que se julga.
— Não é só o cheiro, é o peso, lamentou-se o soldado a
enxugar-se à manga. Nunca vi um gajo tão de pedra como o
nosso tenente, meu capitão.
E havia o odor dos canteiros e das plantas do jardim, a
achatada pêra vermelha do sol à deriva entre dois ramos, uma
bomba de gasolina, toldos de antiquários, travessas que
desciam inesperadamente, quase verticais, na direcção do rio,
um cedro enorme, sujeitos de bengala nos bancos, ninguém
reparava neles, ninguém notava o corpo, Estar na reserva,
pensou o tenente-coronel, é exactamente a mesma coisa que
estar morto, arranjaram uma terceira secretária para ele e
permaneciam os três o dia inteiro, sem se olharem, vendo os
pombos na varanda e os edifícios fronteiros, as tonalidades
que se alteravam, deslocavam, aclaravam, escureciam, do céu,
até que chegou um oriental pequenino, de gravata e sorriso
postiço, exprimindo-se numa linguagem de oxigénio de
escafandrista, que retirou de uma pasta mais catálogos, mais
folhetos, mais páginas soltas com esquemas e gravuras, mais
propaganda incompreensível, agarraram de novo no cadáver,
dirigiram-se aos baldões na direcção do urinol, O nosso agente
de Tóquio, avisou o capitão Mendes com pompa, o nosso
representante no Japão, Antes andar a vender óculos de porta
em porta, concedeu generosamente a Clarisse, de biscoito em
punho, do que ficar por aí sem fazer nada, a mim um marido
metido em casa todo o dia dá-me uns nervos que eu sei lá, e
atrás do chinês vinham caixotes e caixotes de microscópios,
canetas, relógios, lupas, aparelhos de rádio, gravadores,
brinquedos, calculadoras, computadores de bolso, inutilidades
baratas de feira, quinquilharias misturadas, o sobrado cobria-se
de palha e de papel de seda, o da gravata exibia os objectos,
em ademanes de ilusionista, antes de os alinhar
cuidadosamente num cobertor, a máquina de escrever
prosseguia a sua trôpega marcha de sílaba em sílaba, Glu glu
glu glu glu glu, oxigenava o de Tóquio, Pensei em tudo menos
que se metesse no contrabando, disse a nuvem de perfume,
consternada, apesar do socialismo ainda há empregos honestos
por aí, Se alguma pessoa, se algum cachorro desconfia, pensou
o alferes, amedrontado, chamam a polícia e estamos fritos: o
oficial de transmissões perdeu um sapato e tiveram de
amontoá-lo noutro banco para lho calçar, a barba crescia nas
bochechas chupadas, nódoas violáceas alastravam nos pulsos,
as unhas aparentavam-se a garras de papagaio, Como os
defuntos são resignados, disse-se com surpresa o soldado,
como os defuntos são obedientes e calmos, e contudo é
impossível que se não perceba o cheiro, que não se note pela
palidez que morreu, O meu general fica encarregue da
distribuição e controlo da mercadoria, ordenou o capitão
Mendes, a gente vai esconder isto tudo no armazém ao pé do
rio, o escritório aqui fica para duas ou três representaçõezinhas
legais sem importância que temos, A democracia serve para a
gente se desenrascar, acrescentou o sogro a piscar-lhe o olho, a
Guarda Fiscal hoje em dia já não é o que era, e depois o
sargento (nova piscadela) é meu conterrâneo e meu compadre,
entende?
— Uma bela manhã, contou a nuvem de perfume a servir-se
de um bule de casquinha reluzente de limpo, ainda não tomara
o pequeno-almoço sequer, estávamos os dois na cama a
dormir, deviam ser seis ou seis e meia a calcular pela janela,
vinte para as sete o máximo, e zumba, zumba, zumba, uns
pancadões horríveis na porta, imagina o susto dos vizinhos,
imagina o meu susto, o Lord a ladrar feito maluco, o trinco a
pular num estrondo, rebentado, sentei-me na cama, procurei o
roupão, e nisto entraram-me pelo quarto adentro,
acotovelando-se uns aos outros, a derrapar na alcatifa, a
derrubar-me coisas, oito ou nove matulões fardados, de
espingarda, comandados por um alto de fralda de fora e coldre
à cinta, que apontou um pistolão horroroso ao Artur, Com que
então gravadores japoneses, até que enfim que te apanhamos,
meu menino.
— Apesar de tudo, declarou o inspector gordo, assoando-se,
a versão da despensa, tanto quanto se pode tomar partido
nestas coisas, merece-me mais credibilidade do que a outra.
— O urinol é aquele gradeamento acolá, no meio dos
gerânios, meu alferes?, perguntou o soldado. Aquela
varandinha ferrugenta logo a seguir às árvores?
— Ai Jesus, gemeu assustada a senhora verde, esquecida do
açúcar, chocadíssima.
— Vistam-se depressa, meus queridos, ordenou o da pistola,
que temos lá em baixo o carro da Judiciária à espera.
— Glu glu glu, sorria o sujeitinho amarelo designando um
pacote de transístores.
— Aqui tem os seus subordinados, meu general, disse o
capitão Mendes a apresentar-lhe um par de rinocerontes
obtusos, enormes e sem testa, que faziam estalar as tampas,
eriçadas de pregos, dos caixotes, com o auxílio de varas de
metal.
— Como estes não lhe arranjávamos outros, reforçou o
sogro, passaram vinte anos na Penitenciária cada um.
— Querem que lhes traga o pequeno-almoço, com uma flor,
à cama?, impacientou-se o da pistola. Mexam lá essas peidas,
lindezas, que tenho mais que fazer.
— O urinol ainda dista uns bons seiscentos metros da casa,
explicou o inspector. Arrastar um cadáver até lá, subir as
escadas da fonte, atravessar uma rua e um jardim e ainda por
cima iludir a vigilância do guarda é obra.
No dia seguinte o tenente-coronel regressou ao armazém ao
pé do rio, escoltado pelos hóspedes da Penitenciária, numa
camioneta onde chocalhavam, ao acaso das covas,
microscópios e óculos: chovera e os pneus derrapavam e
rodavam em vão na lama e na erva molhada, uma família de
ciganos almoçava junto a um burro escanzelado, sucessivas
nuvens de cor de cobre rebolavam no céu inclinado idêntico a
um tecto de mansarda, o hidroavião estremecia como se fosse
desprender-se do cais à maneira de um grande fruto inchado e
podre, a chama dos petróleos fumegava rolos espessos de
carvão, não, não me perguntei nada, não, não tive dúvidas,
queria poder atirar o ordenado ao focinho da Edite, queria
poder gritar-lhe Vai-te foder que não preciso de ti, uma semana
depois principiámos a distribuição, eu anotava num livro o que
saía e o que entrava e as pobres vítimas da Penitenciária
transportavam os artigos para aqui e para ali, Loures, Mafra,
Torres Novas, Alcácer, tantos computadores, tantos relógios,
tantas máquinas de calcular, conferíamos o dinheiro na volta,
os três sentados a uma mesa coxa, às segundas e quintas o
capitão Mendes, queixando-se sempre da liberdade, dos
comunistas, da democracia, das eleições, do sindicalismo,
vinha a Cabo Ruivo superintender as remessas e os escudos, os
cachorros do bairro da lata ladravam, indignados, contra o
início da noite, os rinocerontes, subitamente tímidos,
acocorados a um canto, bebiam à vez de um jarrinho de
branco, gatos vadios restolhavam nos detritos do outro lado
das paredes a cair, A listazinha para a próxima semana, disse o
capitão Mendes, quase tudo para a Ericeira e para Sintra, a
lâmpada do tecto multiplicava e desfocava as sombras, luzes
desmaiadas tremiam no Seixal, alcançámos o gradeamento do
urinol e descemos os gastos degraus escorregadios deslizando
no lixo, cheirava a Jardim Zoológico, a ânus artificial, a
abandono e a estábulo, o guarda, de boné na nuca, cabeceava
num banquito de verga, uma fileira de bacias de loiça,
alinhadas à altura da breguilha, separada por placas verticais
de marmorite, azulejos brancos, insultos escritos a lápis ou
riscados a canivetes nas portas, um mendigo a abotoar-se, a
acender um cigarro, a partir, o casaco e as calças que lhe
flutuavam em torno do corpo como imundas barbatanas de
cotão, por vezes o nevoeiro que subia do rio afogava o
armazém, formas difusas nadavam numa fosforescência sem
cor, É entrar meus senhores é entrar, convidou o da pistola,
num gesto largo de palhaço, a apontar uma furgoneta de
janelas gradeadas que impedia o trânsito na rua, Às sete da
manhã, remelosa, despenteada, sem pintura, de casaco pelos
ombros, a Edite afigurou-se-me uma trôpega sexagenária
moribunda, uma pele de cobra dependurada do arbusto dos
ossos, deixámos o oficial de transmissões na primeira retrete
disponível, voltámos ao parque e cá em cima (Ora conta lá de
onde vêm essas merdas japonesas, meu rico?) a neblina vinda
do Tejo cobria de tal modo os bancos, os canteiros, os
reformados, as árvores, as casas do Príncipe Real, a fonte, a
Rua da Mãe-d’Água e o corpo estendido da mulata, que mal se
distinguia, na sala ou no rio, o perfil do hidroavião a oscilar de
leve na pedra escura do cais, idêntico a um albatroz ancorado.
11

Soube que ele morreu mesmo antes de não me dizerem


nada, porque nem eles nem eu, ao longo da minha vida,
dissemos ou dizemos nada, do mesmo modo que sei que
dormia às vezes com uma mulher no outro extremo da cidade,
longe do rio, numa casa ao pé de um bosque ou de uma mata
(e as folhas das árvores tremem no meu sangue), cercada de
corvos e comboios. Quando às dez horas me trouxeram o café
e o pão do pequeno-almoço já ele estava morto e a cara da
empregada do costume era apenas a cara da empregada do
costume, uma cara tão indiferente como a do meu pai quando
eu era pequena, na Beira, com todos aqueles pinheiros e
aqueles muros de granito a apertarem-me o peito, eu sentada
no degrau de baixo do quintal com um pedaço de mica na mão
e o meu pai, enorme, a desatrelar, no alpendre, o burro da
carroça, a carregar palha para o estábulo, a prender o animal a
uma argola da parede, a dar-lhe uma palmada nas ancas, a sair,
e as moscas, e o calor, e o cheiro a figos pisados e a urina.
Pensei Vai fazer-me uma festa na cabeça, mas os sapatos e as
calças gigantescas passaram por mim sem se deterem, e havia
a sombra oblíqua do castanheiro e outra vinha a seguir à nossa
vinha, separada por uma vedação de pedras soltas, mais
vedações, a primavera, cagalhões de machos por aqui e por ali,
o perfil da serra muito longe e o meu ódio por eles ao longo da
tarde, a crescer e a alargar-se como a ribeira em janeiro.
Do meu pai também soube da sua morte antes de uma
vizinha me chamar para casa da minha avó na travessa escura
por detrás da estação ou do que viria a ser a estação, com
relógio, balança, sítio para comprar os bilhetes, a um canto,
num cubículo com uma redezinha de ferro, e um homem de
boné, de bandeira e cometa na mão, e lembro-me porque não
chegara a hora do almoço e estava quente, um ninho de vespas
zunia num buraco junto de nós, da minha irmã cega e de mim,
acocoradas no chão cada qual com o seu pedaço de mica nos
dedos, a dividir a luz em dezenas de raiozinhos coloridos, e
então senti de súbito a sua morte no meu sangue e uma pesada
vontade de urinar na bexiga, e quando a vizinha apareceu de
avental no topo do beco eu já sabia as palavras exactas que ela
iria empregar, a expressão exacta, a surpreendente, oleosa
ternura com que se fala aos órfãos, o cheiro de pouca água, e
suor, e terra, dos pobres. A minha irmã cega principiou a
chorar sem motivo como em tantas ocasiões lhe sucedia, pela
mudança de um odor, ou da tonalidade do vento, ou por uma
frescura inesperada na pele, um choro baixinho, quase sem
rumor, quase sem lágrimas nos seus olhos vazios. Havia
mulheres velhas que nos fitavam sem emoção das soleiras das
portas, apenas por curiosidade ou indiferença, Já percebeu
coitada, explicou a vizinha, e eu afirmo que as casas das
mulheres velhas são igualmente velhas por dentro, escuras
como o interior dos pipos, com retratos e móveis espalhados
nas trevas segundo a secreta ordem dos anos. A vizinha pegou
na minha irmã ao colo sem entender que ela chorava porque
desaparecera o ruído horizontal, de violoncelo, das vespas que
regressavam e iam e se cavalgavam umas às outras no buraco,
e notei a inquietação das cabras e das ovelhas e das vacas,
mirando toda a gente com as órbitas circulares de pavor. Em
casa da minha avó, ao pé do largo da feira, onde sobravam
sempre restos de papel de seda a esvoaçarem, embatendo
contra as estacas das tendas desfeitas e os pilares da igreja, vi
homens de chapéu na mão, cá fora, a enrolar cigarros, vi
silhuetas que apareciam e desapareciam nas janelas, vi um
silêncio enorme no interior do silêncio das pessoas e das
árvores, vi calças e saias que se afastavam para nos deixar
passar, velas de sebo acesas, em pires, na mesa e nas cómodas,
gingando na noite da casa como não teriam coragem de o fazer
na manhã de março do largo, e na cama grande, de colcha de
crochet amarelo, sob o retrato esfumado de um homem de
bigodes, gravemente instalado numa espécie de trono, vi o
meu pai de casaco e gravata, terço enrolado nos pulsos, lenço
amarrado no queixo e uma moeda em cada pálpebra, mais
tranquilo e calmo do que alguma vez o encontrara, com as
botas dos domingos ao fundo do lençol, e se calhar capaz,
finalmente, de me tocar na cabeça, de se interessar por mim,
de pousar a palma no meu ombro se a minha mãe ou as minhas
tias ou a minha avó consentissem, porque todas elas o
mantinham prisioneiro dos seus gritos e da gesticulação do seu
desgosto, despenteadas e vestidas de preto, pulando em torno
dele no imundo teatro da desgraça. A minha irmã cega, largada
no chão, parou de chorar e avançou tacteando, a sorrir, com as
órbitas brancas vibrando de alegria, no sentido do colchão, de
dedos à frente palpando o ar como antenas, até estacar, a
centímetros do meu pai morto, por ter farejado decerto um
aroma diferente no ar, o de castanhas podres e lama e capoeira
dos defuntos, e alguém a segurou então pelos sovacos e a
levou à pressa para o largo, como um frango que se transporta
para o pátio à degola, o perdigueiro do meu pai desatou a uivar
entre os papéis e o lixo que março confundia, e a minha mãe
caiu aos pés da cama, sustentada pela compaixão das vizinhas,
de rosto franzido numa careta de repulsa ou de pena.
Que foi de um tiro que ele morreu só o soube mais tarde, a
seguir ao enterro, quando tornávamos a casa, em fila, pela vila
fora, a meio da tarde, com o padre adiante de nós a aspergir
água benta para a direita e para a esquerda com um ramo de
azinho, e nisto escutei o estampido da bala nos ouvidos e as
perdizes do meu suor levantaram-se em pânico, e os campos
do meu corpo ecoaram a sua surpresa de chiqueiro em
chiqueiro, e os láparos dos meus dentes arredondaram-se de
medo, escutei o tiro vindo do eucaliptal para as bandas da
serra e vi o meu pai tombar do banco da carroça sobre a carga
de lenha, vi o burro prosseguir o seu trote no carreiro e os
troncos das árvores sossegarem de novo, os grilos que
cantavam na terra emergirem outra vez das raízes das
framboeseiras, os espinhos das silvas amansarem, vi o outro
homem pular, com a espingarda sob o braço, uma cancela,
outra cancela, e sumir-se a correr no meio das folhas castanhas
do milho, vi-lhe o pálido nariz agudo, a bota aberta, a boina
suja idêntica ao forro de cotão de um bolso, e reconheci-o
entre os que acompanhavam a casa, enfarpelados de domingo
nessa quarta-feira de sol, a minha mãe, a minha avó, as minhas
tias, evitando as galinhas que bicavam a areia e as caudas dos
animais balouçando a compasso, enxameadas de moscas, na
sombra cor de vinho dos currais.
E dois ou três anos depois, no mês da minha primeira
menstruação, quando o da boina casou com a minha mãe,
soube, sem os ouvir conversar, que internariam a minha irmã
cega num asilo em Viseu, que o colchão do compartimento ao
lado recomeçaria a suspirar e a abanar noites seguidas, que as
paredes vibrariam como cortiços da muda ansiedade dos seus
combates, e odiei-os tão minuciosamente, tão carnivoramente
como odiei os seus sapatos e calças gigantescas que passavam
por mim sem me tocar, como odiava o frio de novembro e a
chuva lá fora, desabada nos telhados numa violência de
catástrofe. Odiei a espingarda dependurada de um prego atrás
da porta, juntamente com as cartucheiras e o bornal e a boina,
e em abril ou maio, semanas depois de a minha irmã partir e a
espingarda se instalar definitivamente em nossa casa, com o
odor do sangue do meu pai a circular nas veias dos canos e o
estrondo que o matou a repetir-se ainda, mudamente, no
gatilho e na coronha e nas ferragens complicadas, com relevos
e desenhos, da arma, eu estava sentada no canavial da ribeira,
a mirar a água, e as rãs cor da água, e o lodo cor das rãs que se
amassava contra os seixos, e escutei um ruído de terra
esmagada nas minhas costas e de pedrinhas e de escamas de
lama que rebolavam no declive, e voltei-me e olhei, e o meu
padrastro despia o colete, a camisa, as calças, deslaçava os
atacadores das botas e avançava para mim, sem uma palavra,
soprando com força o pífaro dos beiços, com a cadela das
codornizes a trotar nos calcanhares, tão magro e frágil e
ridículo que ninguém diria poder matar um homem de
indiferença tão absoluta como a do meu pai, e sentou-se ao
meu lado, e segurou-me nos ombros, e obrigou-me a deitar-
me, e cheirava a pólvora, a pulga de cachorro e aos lençóis da
minha casa, os meus cabelos misturavam-se com as ervas, as
minhas nádegas misturavam-se com o xisto, um sapo resvalou
rente à minha orelha na marcha pesada e doente do
farmacêutico da vila, e recebi o peso dele no meu corpo,
abracei-lhe o lombo e fechei as pálpebras para o odiar ainda
mais, com um ódio tão grande como os gritos dos mochos nas
insónias de agosto, empoleirados nas esquinas das ruas e nas
mansardas desfeitas, a anunciarem aos habitantes das casas a
aflição dos finados.
E a seguir a ele se vestir e ir embora, com a cadela a
enrolar-se-lhe nos pés e os testículos húmidos de mim ocultos
no riscado das ceroulas, enquanto me lavava do seu sumo de
nêspera e das manchas violetas, quase negras, das coxas,
percebi que nessa semana, ou na seguinte, ou na seguinte, a
minha mãe e ele me mandariam embora, de comboio, para
muito mais longe que o longe que eu na altura concebia, muito
mais longe que Viseu, e Santar, e Tondela, e Mangualde, e
Mortágua, que as vilas de onde vinham os ourives para as
feiras, transportando atrás do selim as maletas de brincos,
anéis, fios de ouro, alfinetes e moliceiros de prata.
Despediram-se na estação sem me tocarem, como se o meu
mudo ódio por eles fosse uma doença de pele, deram-me uma
maleta de cartão com a roupa e um cesto de comida para
aguentar a viagem, e ao cabo de horas e horas de trambolhar
pelos montes e de atravessar casas, pastagens, apeadeiros,
aglomerados de prédios, ruínas de castelos e o silêncio atónito
dos campos, desembarquei em Lisboa, no vapor dos travões e
dos horríveis guinchos metálicos que protestavam, num local
semelhante a uma igreja enorme, cheia de carruagens, de
jornais, de malas, de barulho, e a Senhora, de guarda-chuva,
alta, séria, grave, vestida de um modo tão estranho para mim
como o dos andores das procissões, estava à minha espera com
o Marido, observando as pessoas que saíam com as pupilas
agudas e rápidas de pássaro, até que me notou, me tocou no
braço com a luva, chamou o Marido que enxugava o suor do
pescoço com um lenço enorme, e me levaram para casa deles
nas traseiras do que viria a ser muito mais tarde, já no tempo
do Menino, a Feira Popular, e era então um terreno vago
cercado de edifícios vertiginosos de três ou quatro andares,
repletos de janelas e de varandas esquisitas, e aí deram-me um
avental, fardas cinzentas e uma crista engomada para o cabelo
como eu nunca imaginara que houvesse, ordenaram-me Vais
ser criada de fora e ensinaram-me a servir à mesa, a limpar o
pó, a arear metais, a guardar mil e um objectos em mil e uma
gavetas, a passar a ferro e a dobrar a roupa, e arranjaram-me
um armário com espelho junto ao armário da cozinheira e uma
cama junto à cama dela no compartimento a seguir à copa, e
eu permaneci a noite inteira, e várias noites depois dessa noite,
acordada no escuro, escutando os passinhos miúdos, quase
inaudíveis, dos ratos que trotavam nos pacotes de massa, de
sal, de cevada, cheirando o cheiro novo, desconhecido, da
fronha, sobressaltando-me com os estalos dos móveis e os
sonos e as tosses, e as amedrontantes vibrações insólitas da
rua, e pensando na minha irmã cega no asilo de Viseu, sem
mica, nem vespas, nem travessas sombrias, nem vozes
familiares, ralhando-lhe ou convidando-a a passear de mão
dada, com outras crianças cegas, num parque de saibro,
ocultando ela também a sua raiva e o seu ódio no interior de
casca de ovo das órbitas vazias.
Nunca mais possuí homem nenhum dentro de mim porque o
meu corpo se fechou, e o sinto fechado há muitos anos,
cinquenta ou sessenta, como as flores gordas à noite, porque
os lábios das pernas se cerraram num mole e teimoso egoísmo
de corolas desde que o meu padrasto me varou e perfurou e
vasculhou o peito e o ventre com os dedos manchados de
espanto do meu pai e do íntimo licor da minha mãe, essa
aguadilha cerosa que segrego às vezes se me toco, para sentir
na forquilha das coxas uma lombriga húmida que endurece e
oscila, pegada ao osso da bacia, até uma espécie de soluço
crescer dentro de mim, um espasmozinho rápido me contrair
os músculos e a pele, os dentes se me rilharem na boca como
um garfo contra um garfo, e as vísceras se aquietarem de novo,
pacificadas, num enorme cansaço finalmente sem ódio,
desprovido de rancor, só o visco do suor nos sovacos, nas
virilhas e nas dobras dos membros, e o coração a correr muito
depressa pelo tronco fora, como um cachorro, atrás da própria
cauda do seu sangue. Nunca mais possuí homem nenhum
porque me enojam a sua urgência, as suas mãos e os seus
pêlos, os ossos pesados dos cogumelos e líquenes da própria
morte lá dentro, porque me enojam as suas mamas pequenas e
estéreis, secas como passas, e aqueles sacos pendurados e
escuros lá em baixo, baloiçando quando andam, quase se
soltando do ventre como os umbigos dos recém-nascidos. Não
falo apenas da manhã, ou tarde, ou noite em que o meu
padrasto se deitou sobre mim e me rompeu com o gume de
arado as membranas aquosas da barriga, porque não foi só
nessa altura, na ribeira, que o consenti, mas também de outras
vezes para o odiar mais, no estábulo cor de vinho do burro,
com os cagalhões do animal tombando-me de tempos a tempos
nos joelhos, nas costas do homem, nos ombros, na nuca dele,
no meu pescoço, na eira de tijolo do moinho, lá em cima, de
onde se vê a vila e os montes e os campos se tornam azuis e
misteriosos à maneira das azuis e misteriosas bochechas dos
doentes, que vêem para lá dos objectos e através deles e
subvertem a distancia relativa das coisas, e até do último coito,
no colchão que suspira, inchado de milho, dos meus pais,
como se o vento do crepúsculo soprasse devagar no interior do
pano, e à medida que o meu padrasto se movia e arquejava a
naufragar-me no corpo e eu lhe prendia as pernas com as
pernas e o tronco com os cotovelos e as unhas, escutava
novamente o estrondo, via o meu pai tombar do banco da
carroça sobre a carga de lenha, enterrava as órbitas no tecto e
odiava-os silenciosamente, ferozmente, a todos, aos da vila,
aos meus parentes, à minha irmã cega e a mim mesma, odiava-
me tanto que nem no caco do espelho da sala me enfrentava,
por raiva à cara e à boca e aos cabelos que surgiam,
desfocados, no vidro, devolvendo-me implacavelmente a
minha fúria com uma intensidade insustentável. E então
descobri com estranheza que era duas, a que observava e a que
me observava a mim, aquela em que eu morava e a outra em
que não morava ninguém, tão diversa do que eu supunha que a
espiava, e tornava, e regressava, e procurava surpreendê-la de
súbito como se surpreendem as pessoas que se crêem sozinhas
e nas quais descobrimos expressões e gestos diferentes do
costume, gestos sem polícia, abandonados e livres, e no
entanto, mesmo em Lisboa, muitos anos mais tarde, no prédio
da Feira Popular, encontrava um vulto tenso e alerta, de
colarinho engomado e farda preta, a envelhecer com a mesma
desesperadora lentidão com que eu própria envelhecia, cabelos
brancos, rugas, cordas de veias no pescoço, o corpo cada vez
mais curvo, estes caroços de gota nos dedos e nas mãos, e as
sardas da idade que se reproduzem e confluem numa via láctea
de manchas. E vim para Lisboa e nunca mais soube deles
porque ninguém me escrevia e eu não escrevia a ninguém, não
atendia o telefone quando instalaram o telefone, e afastava da
cabeça as imagens da vida e da gente, e se sentia no sangue
uma morte qualquer expulsava os defuntos da ideia como
quem expulsa uma rafeira caçadora que entrou em casa sem
licença, mesmo a minha mãe, mesmo o meu padrasto, mesmo
a minha irmã cega no asilo em Viseu, acompanhada por
centenas de mulheres cegas, imóveis nas cadeiras, de íris baças
em pânico, aguardando o jantar, pois que na Beira há sempre
um cego, macho ou fêmea, a tactear de bengala, numa
sabedoria infantil, qualquer caminho que se tome, cegos que
dormem em ninhos nas paredes, como as vespas, se acocoram
no adro da igreja, no verão, à laia dos pombos velhos nas
cornijas, cegos de lata ferrugenta nos joelhos, sem falarem,
sem conversarem, sem gritarem, sem tocarem guitarra ou
acordeão ou violino, e, de cada vez que um morria, sucedia
uma espécie de pulinho no meu corpo, uma vibração no
estômago, um arrepio num dedo, a menstruação a pingar-me
na roupa antes da lua certa, de modo que quase todos os dias a
agonia dos cegos me inquietava, os talheres e as loiças da
cozinha se me escapavam das mãos, entornava uma molheira
na toalha, e a Senhora, espantada, de sobrancelhas franzidas,
Que tens tu?, e eu a responder-lhe, sem palavras, São os cegos
do adro da igreja Minha Senhora, é a vila entre duas serras que
se me larga nas tripas, o emaranhado das ruelas, tristes de
moscas e sombras e silêncio e cheiros azedos de nenhuma
água, É o vento do inverno espalhando crinas, à desfilada, nos
pinheiros, e a neve, e o frio, e a minha avó a forrar
amorosamente as paredes de santinhos de papel, é o meu pai
tombado de costas, de braços abertos, sobre a carga de lenha,
são os anos todos da minha infância aqui somados e doídos, e
como não poderia nunca explicar isso à Senhora porque as
pessoas da cidade só entendem o entendido ou o que não se
pode entender, limpava então o molho da toalha com um pano
embebido em água quente como se acudisse a uma mulher em
angústias de parto, o Marido rodava a aliança no dedo a
observar a nódoa que se sumia, e uma vez tudo acabado e o
mundo a girar lentamente, como um volante de relógio, com o
vagar majestoso de outrora, a Senhora e o Marido voltavam a
pegar, aliviados, na colher, engoliam a sopa tal os bonecos
mecânicos, o candeeiro do tecto derramava em torno, filtrada
por mil pingentes de vidro, uma claridade solar, e eu recolhia
novamente ao vão da porta, de mãos cruzadas adiante do
umbigo, abraçando contra mim, com toda a força que tinha, as
peludas, magras, odiosas nádegas de um homem.
E doze ou treze anos depois, aquando do acidente do
Marido, na época em que a casa se começava a encher já de
crucifixos e oratórios, eu lavava roupa na varanda, defronte
das janelas e varandas de outros prédios, onde mulheres como
eu, inclinadas para tanques como este, lavavam roupa em
gestos idênticos aos meus, e vi uma praça com uma estátua,
uma calçada íngreme, e o eléctrico a derrapar e a pular nas
calhas, a galgar o passeio por entre gritos e chispas amarelas, a
esmagar um homem, um segundo homem, vi gente que fugia e
que berrava e a carruagem a imobilizar-se por fim, de encontro
à montra de uma livraria cujos volumes e revistas e jornais se
espalharam ao acaso pela rua, e mesmo antes de os maqueiros
chegarem, com o seu aparato inútil e as suas batas de
droguista, vi-o estendido de bruços no chão, de rosto tão
irreconhecível como os das fotografias da infância, olhando
para nada como se continuasse sentado à mesa, direito e digno,
vendo-me limpar com água quente as nódoas de molho da
toalha, de colher suspensa entre o prato e a boca, e o relógio a
bater mais devagar que o pêndulo do relógio de parede entre
um par de aparadores chineses ou de consolas ou de cómodas,
um disco amarelo que ia e vinha
ia e vinha
ia e vinha
soando de tempos a tempos horas medievais na caixa
vertical de pau-santo.
A esse odiava-o não por me ter feito mal, não por aparecer
no meu quarto, se me encontrava sozinha, a abrir e a fechar a
boca e a respirar como os peixes, não pelos dedos que me
remexiam sob as saias e os gemidos tenros de cachorro, mas
simplesmente por ser homem, por cheirar como o meu pai e o
meu padrasto apesar do perfume a perfume, a vinho, a cabedal,
a tabaco e a pressa. Odiava o seu corpo a insinuar-se nas
entranhas do meu, e a enorme hérnia do testículo que o
obrigava a tentar penetrar de lado, sem sucesso, na corola
selada do meu ventre, nos lábios das minhas pernas que se
apertavam e fundiam num mole e teimoso egoísmo de corola,
e apesar disso, ou por isso mesmo, à chegada do cadáver da
morgue ajudei a Senhora a lavá-lo e a vesti-lo com uma alegria
secreta, uma satisfação oculta, no quarto de dormir deles onde
o colchão não protestava nem gania há muitos anos, sob o
enorme crucifixo de talha do tamanho do meu braço inteiro,
com o Cristo a torcer-se como um verme nos pregos, outros
crucifixos mais pequenos, um quadro gigantesco
representando a Paixão, teias de aranha de terços por aqui e
por ali, e uma mulher de pé numa nuvem, a pisar uma serpente
com o calcanhar descalço, rodeada de um bando colorido de
anjos minúsculos semelhantes às borboletas da insónia nos
candeeiros de petróleo.
Por conseguinte ajudei a Senhora a compô-lo como vira
fazerem ao meu pai, na vila, todos aqueles anos antes, e como
a despeito de tudo ainda espero que me façam aqui, apesar da
indiferença das empregadas e do desprezo da mais velha, da
do molho de chaves à cintura, sem sorrir, sem levantar a voz,
sem adoçar nunca os olhos. Espero que me amarrem os pulsos
com uma fita de nastro, e me apertem o queixo com um lenço,
e me pesem duas antigas e grandes e quase verdes moedas de
cobre nas pálpebras, e ajudei a Senhora a engraxar-lhe os
sapatos bicudos de verniz, a calçar-lhe as meias, a apertar-lhe a
gravata, a acender um círio com lágrimas postiças de plástico
em cada canto da cama, fugindo da minha cara nos espelhos e
do meu vulto que me perseguia nas superfícies polidas,
deformado pelo verniz convexo da madeira, escapando-me da
outra, da que não sou eu e que me repete os gestos, e me copia
a roupa e sofre de tanto medo de mim como eu dela, e depois
pus a mesa na sala de jantar, em cima da mesa, ao lado das
pilhas de pratos e das dezenas de copos, o frango frio e os
bolos e o vinho e o queijo e a manteiga para os amigos do
morto, para os que haviam de vir cumprimentar a Senhora e
fumar pelos cantos, para as mulheres que rezam em voz alta
em torno do cadáver, para os rapazes novos que se riem e
cochicham baixinho e se tornam a rir na saleta do fundo, e que
estranho como a casa mudou, pensei eu, como os óleos e a
mobília e os retratos adquiriram uma hirta e postiça solenidade
inesperada, como o azul do céu é outro azul, mais cerimonioso
e longínquo, como a vibração dos sons me dói por dentro dos
braços, no arbusto de tubinhos onde o sangue corre, cerro os
olhos e vejo os desesperados esforços do defunto para penetrar
nas minhas coxas sem fenda, no lacre da minha vagina, no
caracol de lábios do meu ventre, cerro os olhos e o meu pai
tomba para trás, do assento da carroça, sobre a carga de lenha,
enquanto o burro continua a trotar pela azinhaga a caminho de
casa, perseguido de longe pelo eco do estampido e os latidos
dos cães.
Dias depois do enterro, quando tudo regressara a pouco e
pouco ao que era dantes, a Cozinheira discutiu com a Senhora,
despediu-se, recebeu o ordenado e eu fiquei, não porque
gostasse dela mas por não ter realmente para onde ir, a não ser
a vila cujas ruas se me confundiam já na cabeça e cujos
cheiros e esconderijos e sombras lentamente esquecera, a vila
no extremo de uma linha de comboio que eu ignorava qual
fosse, de apeadeiros, de noras, de quintas, de descampados que
eu ignorava quais fossem, a vila que não me reconheceria
decerto e a quem decerto eu não reconheceria, visto que na
nossa ausência as coisas se alteram e apodrecem como os
desejos e os sentimentos e a vontade das pessoas. Deviam ter
construído de certeza prédios como este por aqui e por ali, e
avenidas e jardins, e colocado estátuas horrivelmente imóveis,
e acabado com a feira, e os cedros do cemitério, e os rios, e as
árvores, de forma a não haver mais nada que odiar a não ser a
nós mesmos, de forma a o ódio se nos dobrar a tremer para o
próprio corpo como o espigão de um insecto, e sem outro
recurso nos pendurarmos de uma corda no eucalipto junto ao
poço, esse que levanta as lajes da casa com a energia sulfurosa
das raízes, e roçar com as solas dos sapatos os rostos
surpreendidos dos vivos, dos que não se deram conta ainda de
quanto a si se odeiam por não haver mais nada que odiar, um
pai, uma mãe, um punhado de tias, uma irmã cega atenta aos
besouros e às vespas, sorrindo ou chorando conforme a
inclinação das sombras e a tonalidade dos cheiros, nem um
parente remoto, sequer, para odiar, nem um cão, nem o baú do
enxoval e o seu odor a goma, nem uma espingarda atrás da
porta, nem um homem magro, em ceroulas, avançando para
nós no lodo da ribeira, nada para odiar, nada de nada,
absolutamente nada, nem o vazio que incha em nós
amontoando nuvens ocas como a chuva na serra, precedida
pelos breves, instantâneos traços fosforescentes dos
relâmpagos.
De maneira que a seguir ao enterro e à partida da
Cozinheira, às seis da manhã a fim de não perder a camioneta
para a aldeia dela ou o que fora outrora a aldeia dela e era hoje
uma parte dos subúrbios da cidade, eriçada de edifícios e de
estátuas e de melancólicos quadrados de relva sem cor, só a
Senhora e eu e os retratos dos desconhecidos nas prateleiras e
nas cómodas, muito bem sentados nos seus naperons de renda,
sobrávamos na casa, ela dando-me ordens do sofá e eu
obedecendo sem protestar às ordens dela, limpando, lavando,
arrumando, recebendo o padeiro e o leiteiro, fazendo compras
na mercearia em baixo ou na farmácia do quarteirão seguinte,
acendendo o fogão que cuspia e vomitava faúlhas escarlates
pelos seus poros de fuligem, e um dia, a seguir a falar muitas
horas ao telefone no tom de quem discute ou convence, ou se
zanga, a Senhora saiu e ao regressar trouxe o Menino com ela,
uma criança de quatro ou cinco anos como a minha irmã cega
quando o nosso pai morreu, mas com olhos que viam e
espiavam, sérios e duros e secos como os dos lagartos nas
falhas dos muros, e arranjámos-lhe um quarto no escritório do
Marido, e deixámo-lo a dormir, agarrado a um boneco de
pano, entre cadeiras e secretárias e filas de livros grossos
repletos de uma compacta, incompreensível letra miudinha, e
de tempos a tempos, pela noite fora, uma de nós levantava-se
da cama, deslizava no corredor mau grado as fotografias e os
relógios, e acendia a luz para lhe mirar o corpo vulnerável e
pequeno estendido de lado, as mãos cerradas, a sombra das
pestanas nas bochechas, as costelas que subiam e desciam
como guelras, as suas feições de homem nos traços
incompletos de criança, e à segunda ou terceira vez que o
observei soube, aterrada, da morte dele trinta ou trinta e cinco
anos depois, soube que iria ser violenta e inesperada e rápida e
sem sofrimento algum, algum, numa casa ao pé de uma fonte
com árvores altas cruzando-se e ramalhando no topo do
telhado, soube que morreria de madrugada, entre homens
bêbedos e mulheres de corpos abertos, e que eu não poderia
fazer mais por ele do que conhecer isso e calar-me, que não
poderia fazer mais por ele do que assistir em silêncio, tensa de
medo, à aproximação desse momento, sentindo o sangue
ferver como água forte nos orifícios de flauta dos meus ossos,
vê-lo tombar de costas, desamparado, não numa carga de lenha
mas no pêlo sujo de um tapete, com uma lâmina enfiada nos
lombos e todo o espanto do mundo num vagido sem som. De
modo que a ele não o odiei nunca, nem sequer nas longas
tardes de chuva em que todas as superfícies adquiriam de
súbito a terrível crueldade dos espelhos, reproduzindo-me de
compartimento em compartimento com uma obstinada e
sádica ironia, e em que o ar ondulava à nossa volta coalhado
de ameaças de ecos e de espectros, antes o senti, desde o
primeiro instante, como se a corola da minha vagina o
houvesse expulsado de mim numa dolorosa, única, lenta
contracção vegetal dos músculos do púbis, uma espécie de
filho agora que começava a ser velha demais para carregar
algo de simultaneamente familiar e estrangeiro na barriga, um
homem microscópico com barba e bigode e vontade de defecar
e mudas ânsias e alegrias ferozes a construir-se com
dificuldade, peça a peça, nos óleos do meu útero, um filho
agora que os peitos me caíram e o próprio sangue desobedecia
aos ciclos da lua e falhava, um filho nesta cidade que por todos
os lados me cerca, me aprisiona, me constrange, e deitei-me
por fim quando as silhuetas dos edifícios se iluminavam de
cinza e os empregados da Câmara entrechocavam o lixo na
rua, a pensar que o meu pai ia morrer outra vez na morte do
Menino daqui a menos meses do que se julga que os meses
vão durar, e ao adormecer os pinheiros da vila sopravam-me
nos nervos e o frio do inverno humedecia os lençóis dos
musgos e dos fetos de uma promessa de outubro.
E para adiar o falecimento dele e o estrondo da espingarda
nos meus ouvidos da infância, para adiar o medo de ver cair
outro corpo dentro do meu corpo, olhando para cima o céu da
minha pele com a infinita inocência dos defuntos, fi-lo crescer
cuidadosamente entre compotas, e rezas confusas, e
cozinhados, e ternas precauções semelhantes a um bordado de
crochet, e levava-lhe leite à cama à noite e de manhã, e
aquecia-lhe o banho, e escondia a loiça que ele quebrava, e
defendia-o do pesado amor da Senhora com o meu amor por
ele, como se essas pobres manobras esconjurassem o futuro,
como se alterasse o decurso das coisas com os meus gestos
inúteis, como se lograsse ser mais forte do que a força da
inevitabilidade do que se escreveu sem se ter escrito na cabeça
da minha cabeça e na tripa da minha tripa, e por isso decidi a
partir de certa altura não ouvir ninguém nem falar com
ninguém no intuito de calar em mim o meu sangue, decidi não
perguntar, não responder, não mover um membro, não olhar
sequer, decidi tornar-me como a minha irmã cega no asilo de
Viseu, gritando mudamente o tempo inteiro até cessar por
completo e para sempre de reconhecer a própria voz.
Portanto, desde a chegada do Menino que éramos três em
casa, sem contar os oratórios e centenas de santos, de madeira,
de barro, de marfim, de vidro, de papel, de matérias que ignoro
ou que não sei descrever, e depois transferiram a Feira Popular
da Feira Popular para aqui, do outro lado da rua, separada de
nós por um muro e dez ou vinte metros de asfalto, e durante o
verão inteiro a noite povoava-se de um enxame ensurdecedor
de ruídos idênticos ao dos altifalantes dos curandeiros, e ao
microfone dos que impingiam Deus e retiravam de um saco
cobras, ratos brancos, macacos e animalejos esquisitos, o fumo
das lojas de comida açucarava-se em torno das lâmpadas,
rosários de luzes aproximavam-se e afastavam-se, com o
vento, em balanços de navio, o tecto povoava-se de sombras
que giravam, a Senhora tomava aspirinas efervescentes ao
jantar, a mexer o líquido com uma colherinha, protestando
com o barulho, e nisto reparei, surpreendida, que éramos
ambas velhas, da mesma idade como todos os velhos, que se
tornava impossível distinguir, ainda que observando-nos muito
tempo, a mais idosa da mais nova, reparei que andávamos a
custo, que nos dobrávamos a custo, que os olhos e os ouvidos
percebiam mal as imagens e os sons, e por essa altura o
Menino era um homem já, um rapaz magro e de óculos que
entrava e saía de casa sempre sem falar, que não respondia às
perguntas, que se fechava no quarto, que fugia da companhia
da Senhora inventando pretextos ou sem pretexto nenhum, o
único homem da minha vida que não quis ou não logrei odiar,
mau grado se comportar para comigo como os outros, com o
mesmo desinteresse, a mesma surdez, os mesmos passos
ávidos esmagando o chão e as mesmas vagas pupilas sem
rumo, antes gostava dele por se assemelhar ao filho que não
tinha e que por esse motivo se não assemelhava a ninguém,
uma vez que entendi muito cedo que todos os homens se
aparentam no desalento e na fraqueza, que todos pretendem
vasculhar-nos as tripas com as chaves dependuradas da
barriga, depositar em nós a gota de ranho de que são feitos e
vestirem-se sem nos mirar, enganando-se nas dezenas de
botões da sua roupa, para partirem a seguir, furtivamente,
como ladrões do nosso corpo, ladrões do próprio prazer
murcho que tiveram, de botas a escorregarem primavera
acima, colina acima, no lodo malcheiroso da ribeira.
Ao Menino passava-lhe a roupa a ferro, arrumava-lhe as
gavetas, varria-lhe do quarto as girafas e os cavalos nocturnos
da Feira, servia-lhe a comida quando jantava em casa, e via
aterrorizada, cada vez mais próxima, e nítida, e minuciosa, e
certa, a morte dele, via uma faca de cozinha, uma aurora de
insónia, mulheres e homens sentados em cadeiras ou
estendidos, bêbados, no chão, conversando com as pálidas,
doces, estertorosas vozes do vinho, via o que se lhe
aproximava pelas costas, se debruçava para ele e se afastava
de novo, e a ferida semelhante aos beiços separados do meu
corpo quando o meu padrasto me teve, babando umas gotinhas
violetas, umas pegajosas manchas escuras, e perguntei-me se a
minha irmã cega também veria o mesmo, também saberia o
mesmo, se no asilo em Viseu, no meio das outras, todas de
bata de riscado e sapatilhas, o seu grito mudo estilhaçaria os
azulejos brancos da parede, a sua respiração embaciaria
sozinha os vidros das janelas, se desde a época das vespas e
das vinhas e das sombras 1687 da vila ela sabia o mesmo e o
ocultava como eu, porque se o contasse a alguém a enviavam
para um hospital em Coimbra, com uma cerca de grades, e
enfermeiras, e baldes de comida como a dos porcos, e um
padre aos domingos, um hospital cheio de silhuetas estreitas e
de choros, de fulanos de pálpebras densas acocorados no chão,
desenhando riscos paralelos na terra com um pauzinho, se a
minha irmã saberia, se a minha mãe saberia, se as mais
mulheres saberiam, porque a cabeça das mulheres trabalha
oblíqua e através do futuro e a dos homens a direito e tão inútil
e pegada ao presente como uma oliveira seca, apenas capaz de
somas e subtracções e cálculos de colheitas e preços de móveis
e vontade de fornicar e desespero, e talvez que todas saibam o
mesmo que eu sei e tenham medo de confessá-lo às restantes
por não saberem se elas sabem e recearem a incredulidade e a
troça, ou porque os homens nos fizeram assim para seu alívio
e defesa, e nos lançam umas contra as outras como cabras de
currais diversos, raspando o xisto da terra com a córnea
persistência magra das patas.
E uma manhã, em janeiro, a Senhora e eu despedimo-nos do
Menino, que partia com centenas de outros homens fardados,
de caras idênticas a caixões vazios, num barco de tropas para
África, um navio gordo e branco de três chaminés, que apitava
e fumegava nas paradas águas oleosas do inverno. Havia
muitas pessoas no cais, e chuva e frio e marchas militares,
gente que chorava, lenços, pontas de cigarros, papéis,
migalhas, lixo miúdo, círculos de cuspo no chão de cimento, o
ruído dos tambores, criaturas que deviam ter chegado de muito
longe para assistirem ao horizonte espesso de nuvens e
gaivotas no qual o barco se afastava devagar. A Senhora tirou
o lenço da carteira e chamou-me para debaixo da sombrinha
vermelha e preta, mais preta que vermelha, dela, as pessoas
aproximavam-se aos gritos da beira do cais, confundindo-se
com as gaivotas e a música e as nuvens, e a Senhora disse para
ninguém em voz baixa, Deus queira que não lhe aconteça nada
e eu entendi então que pelo menos não sabia o que eu sabia,
isto é, que não lhe aconteceria nada de facto, que ele iria
regressar dois anos depois com tanta saúde como o meu pai
regressava todos os dias do pinhal, até a faca o encontrar aqui
em Lisboa, tão despreocupado e esquecido disso, tão bêbedo e
sujo e confuso e manchado de vómito e saliva e de remelas,
como se viajasse tarde fora, de carroça, numa ladeira da vinha
à espera do súbito encontro de uma bala a fim de tombar de
costas sobre a carga da lenha, sem uma palavra, como um
santo de gesso desfeito no soalho.
Voltou da guerra somente um pouco mais calvo e mais
magro, e quando a Senhora me chamou e eu vim da sala de
engomados de ferro na mão e o vi, tornei a sentir a estranha
ausência de ódio que sempre, desde o início, despertou em
mim, essa espécie de afecto ou de ternura que me amolecia os
ossos e a voz, e ao aproximar-me dele soube a sua morte
dolorosa e difícil e próxima, muito mais dolorosa e difícil do
que a morte da Senhora ou da cadela, de modo que pensei
Tenho de morrer antes dele, tenho de inventar uma forma de
escapar ao sofrimento de sabê-lo num caixão, cosido pelos
médicos nas suas mesas de pedra, a cheirar a estrume, e a
azeitona, e a entranhas podres de ovelha. E foi a vez de a
cadela agonizar lentamente na cozinha, fitando-nos um a um
como se nos quisesse transportar consigo para o limoso
purgatório dos bichos, e o Menino deitou-a numa caixa de
sapatos e enterrou-a com uma pá das obras, à noite, no terreno
vago em frente ao prédio, e a Senhora faleceu a seguir à cadela
e a ambas assisti com a mesma mineral indiferença de outrora,
a de sessenta anos antes, aquando do pai na casa escura,
repleta de pagelas, à entrada da vila, sabendo que se seguiria o
Menino e atormentando-me todos os dias com a ideia de ele
morto, por não conseguir odiá-lo visto ser o filho que não
tinha, que era há tantos anos tarde demais para ter, e que o
meu corpo fechado não expulsara, Tenho de morrer antes dele,
pensava eu, tenho de arranjar uma forma de me escapar daqui,
mas não existia a vila já, não existiam as vespas e as sombras
cúmplices de outrora, não existiam os rostos familiares da
infância de modo que me deitei na cama, na minha própria
urina e nas minhas próprias fezes, e cessei de falar e de ouvir e
de responder e de ver até o Menino me transportar para este
prédio, ao pé do rio, com as suas empregadas indiferentes e a
sua directora mudamente repreensiva e severa, onde não chega
o som da sua morte nem os olhos odiosos de outrora,
espiando-me dos caniços que marginam a ribeira, à espera que
eu me dispa para se despirem também e avançarem para mim,
em ceroulas, espantando as rãs e os gafanhotos e os lagartos e
os peixes miúdos, transparentes, da margem, se estenderem
sem palavras ao meu lado, me voltarem de costas como uma
pedra e me penetrarem tão depressa, de um só golpe, como
uma faca num lombo, fazendo uivar o meu sangue entre os
protestos dos sapos.
12

— Seu cabrão, grunhiu a anã no vestíbulo, furiosa, a agitar


os membrozinhos tortos à altura dos joelhos do alferes. Isto
são horas de se aparecer em casa, desgraçado?
Tinha vindo a pé, a contar as náuseas desde a Rua da Mãe-
d’Água, descido a Praça da Alegria, onde os cabarés, fechados
e sem luz, enrugavam as portas com cicatrizes de apendicite,
atravessado a Avenida ensurdecido pelo trânsito, pelos pardais,
pelas folhas das árvores, por um camião que impingia aos
berros as senhas de uma tômbola, exibindo na caixa o
automóvel flamejante do primeiro prémio. Tinha escalado o
Conde Redondo, agarrado às paredes, sem olhar o chão
vertiginosamente longe por causa das tonturas do vinho, um
cigano espalhava camisolas e calças no passeio e devo ter-lhe
pisado qualquer artigo porque me insultou, esbarrei no triciclo
de uma vendedeira de peixe que cresceu para mim, enorme, a
cheirar a tripas de chicharro, atropelei uma criança que ganiu
como um cãozito, duas senhoras de meia-idade afastaram-se
de mim à laia de quem evita cuidadosamente uma poça de
lama, olhos convulsos consideravam-me com reprovação,
passei a fotomaton da Gomes Freire, o jardim do Arquivo de
Identificação a formigar de gente, e três prédios adiante a casa,
a mulher que esfregava os degraus do vestíbulo, com um balde
e uma escova, as caixas do correio, as eternas plantas
moribundas nos vasos (Talvez que me aguente sem vomitar,
talvez que me comporte mais ou menos), o dedo que carrega
no botão do elevador como no meu nariz de criança, trrrrrrim,
e agora o tormento da chave (Qual delas é, caralho?), os dedos
desobedientes derrapando, o efeito da água-pé, o efeito do
champanhe, o efeito do uísque, o efeito do gin, e logo a seguir
o rosto da and de encontro ao meu umbigo, a carteira que se
me enrodilhava nos tornozelos, a luz do meio-dia a empoeirar
a sala, a envelhecer os móveis, Diz-me lá minha besta com
quem andaste tu a noite toda.
— Que grande borracheira, elogiou o mudo a preparar o
tabuleiro das damas no escritório do armazém. Ora até que
enfim que entraste para o clube, irmãozinho.
— Com ninguém, querida, justificou-se o alferes num
arroto, a perder o equilíbrio, a dar um passo atrás, a encontrar,
a mãos ambas, o apoio salvador do bengaleiro. Gente que eu
não via há muito tempo, sabes como é, conversas daqui,
conversas dacolá, lembranças de Moçambique, amizades da
tropa.
— Um autêntico crime de amadores, respondeu o inspector
gordo com desdém: milhares de indícios, impressões digitais a
dar com um pau, o caso ideal para um principiante da polícia.
Dentro de dois ou três dias forneço-lhes a historiazinha
completa.
Sentar-me numa cadeira qualquer, pensou angustiadamente
o alferes a amparar os músculos da barriga com as palmas,
sentar-me depressa numa cadeira qualquer antes que me saia
aos arrancos a primavera inteira pela boca: contornou o gira-
discos (Vou cair), um sofá vertiginoso aproximou-se e afastou-
se como um poste de um comboio em movimento, tocou,
como um cego, um braço de poltrona, cravou as unhas aflitas
no tecido, deslizou com alívio, numa sensação de cascata, na
almofada de ramagens, alargou o colarinho, desceu as
pálpebras que ardiam, escutava, muito ao longe, a and a ganir
à sua volta, o coração que serenava lentamente, a vesícula que
parecia ter recomeçado a funcionar, só uma dor de cabeça, só
os ossos da nuca estilhaçados, só um cansaço de séculos nas
pernas, mas já não caio, já não vomito, o corpo levitava na
claridade da manhã, se esta gaja se calar cinco minutos
consigo de certeza adormecer.
— Estás a jogar ou quê?, indignou-se o mudo. A mexeres as
pedras como um saloio nem dá gozo ganhar-te.
— Fotografias não, que prejudicam as investigações em
curso, recusou amigavelmente o gordo, erguendo ao tecto
barbatanas rechonchudas de toupeira. Eu depois forneço-vos
bonecos do assassino, do locatário, da vítima. Mas se quiserem
retratar entretanto o prédio, o jardim do Príncipe Real, a
porteira, os vizinhos, o guarda do urinol, é com vocês: o
público sempre se vai entretendo com isso.
Passo pelas brasas uma hora ou duas, pensou o alferes, tomo
um chuveiro, engulo uma aspirina, troco de roupa, explico na
companhia que chegou o meu pai de França, que tive de ir ao
médico à pressa, que me veio uma dor de dentes do caneco
esta noite. A indignação da anã distanciava-se, o minúsculo
tronco dela torcia-se entre brumas, a poltrona ascendia na luz,
a deusa do strip-tease Melissa, estendida na cama, enrolava
preguiçosamente uma meia, a ajudante do ilusionista retocava
a pintura, a mulata guardava os seios gigantescos nas toucas
bretãs do soutien, cinco minutos, merda, dormir cinco minutos
até se dissipar o enjoo, até o sangue pulsar no ritmo do
costume, até as tripas me amansarem, até a gémea da cesariana
se acabar de vestir, Meu sacana, vociferava a anã, o que fizeste
tu ontem, meu sacana?, as coxas da deusa do strip-tease
Melissa roçavam-se nas minhas, um perfume violento
envolvia-me e excitava-me, Cinco minutos, suplicou
mentalmente o alferes, cinco minutozinhos de nada, a vagina
dela exsudava um líquido espesso, membranas peludas e
róseas afastavam-se, a carne do umbigo afigurou-se-lhe
comestível, tenra, suave, avançou o púbis no sofá de
ramagens, sorriu, procurou toscamente a breguilha, O que é
isto, o que é isto?, balia a voz da anã, estarrecida, as mamas da
ajudante do ilusionista, de bicos muitos negros, inchavam e
tremiam, Só cinco minutos, pediu ele, só tocar-lhes, só vir-me
e levanto-me já, a mulata puxava para cima o fecho éclair da
saia, a outra gémea escovava à pressa o cabelo, películas
ínfimas de caspa espalhavam-se-lhe nos ombros, tombavam
sem peso na sala como uma espécie de neve, Mas que
indecência é esta, que pouca vergonha é esta?, indignava-se a
anã, Se eu abrir os olhos, pensou o alferes, vejo o palhaço de
esmalte pregado na parede, vejo o ramo de flores artificiais no
topo do armário, a dor de cabeça não o incomodava mais, os
ossos da nuca, colados, cessavam de vibrar, a deusa do strip-
tease Melissa afagava-lhe devagarinho, num vaivém paciente,
os testículos, as virilhas, o pénis, a poltrona estalava cada vez
mais depressa, cada vez mais depressa, o tenente-coronel
meteu a chave ao bolso, deu uma olhadela rápida ao espelho
do vestíbulo, endireitou a gravata, avançou pelo corredor num
passo de recruta, entrou no quarto a alisar o casaco (o pavão de
madrepérola crescia na consola, um galo de Barcelos troçava
de mim à gargalhada), e encontrou a nuvem de perfume a
encher uma mala, a esvaziar de escovas e frascos o tampo de
mármore da cómoda, a guardar sapatos de salto alto em
saquinhos de plástico:
— Tão cedo?, perguntou ela surpreendida, ou enervada, ou
aflita, ou indiferente. Só te esperava lá para a uma, uma e meia
na melhor das hipóteses, desde que diriges os computadores
do teu amigo nunca tens horas para nada.
— Deixem passar os rapazes da Morgue, deixem passar os
cadáveres, solicitou o inspector gordo aos jornalistas,
designando uma maca com uma forma comprida coberta de
um lençol, e dois tipos de boné que trambolhavam com ela, ao
acaso, pelas escadas abaixo. Um jornalista, de cócoras à frente
deles, pulando como um gafanhoto, ia-os retratando de degrau
em degrau: O Cadáver Do Inditoso Tenente Removido Para O
Necrotério: Pormenores Escabrosos E Declarações Das
Principais Testemunhas Na Página Doze.
— Abílio, interrogou o mudo a substituir uma pedra que
faltava por um botão da farda, aconteceu-te alguma coisa, por
acaso?
Os ratos, da cor e do tamanho de coelhos pequenos,
galopavam nas galerias do armazém, os vidros sujos da
clarabóia iam-se quebrando um a um, revelando fragmentos de
céu idênticos a pedaços de pele nua, uma camioneta enorme,
com o condutor lá muito em cima, movendo para um e outro
lado a roda do leme do volante, ocultou por momentos a
calçada, o jardinzito enfezado da Luciano Cordeiro, os prédios
velhos de tortas persianas rebentadas: Há quantos dias sem um
frete, quantas semanas, foda-se? A porteira emprestara-lhe
dinheiro para a renda, deixava-lhe no bolso das calças, de vez
em quando, cem ou duzentos escudos para tabaco, para comer,
para o autocarro até casa: Por este andar, pensou o soldado,
tenho de voltar ao engate dos maricas não tarda nada,
encostar-me à noite a uma árvore do Cais do Sodré, a ouvir os
barcos e a fumar à espera dos automóveis dos panascas.
— A Clarisse convidou-me para passar uns dias numa casa
que alugou na Malveira, disse a nuvem de perfume, com as
madeixas mais platinadas do que nunca, a arrumar colares e
brincos numa caixinha de cabedal em forma de coração, e o
tenente-coronel logo, dentro dele, Nem mentir sabes, pateta,
com que cara voltas logo à tarde para casa? Decidimos tudo de
repente, benzinho, não tive tempo de te avisar ontem. Mas
garanto que estou cá na segunda-feira sem falta a morrer de
saudades, prometo. Ia deixar um bilhetinho na sala, encostado
ao telefone, a explicar-te.
Os eternos cartões perfumados, cor-de-rosa, com pombos,
ou cestos de flores, ou gatos bebés, ou uma menina a chorar,
no canto, com o teu nome próprio, a letras doiradas, por baixo,
os erros de gramática da tua tinta roxa, a ternura pegajosa da
menopausa, os diminutivos repugnantes, o baton cercando a
assinatura complicada, e em contraste, as ordens azedas à
mulher-a-dias, em folhas quadriculadas extraídas de repelão de
um caderno de argolas, Senhora Ilda faça cabrito assado para o
jantar e aspire como deve de ser o corredor e o quarto que da
outra vez ficou uma porcaria pegada, obrigadíssima Edite, a
anã sacudia-o raivosamente pela manga, a voz dela
aproximava-se de novo, inlocalizável, numa bruma alaranjada,
Cheiras a puta que tresandas, estafermo, andaste toda a noite
na borga, meu cabrão, o alferes descolou de leve,
cautelosamente, a pétala de uma pálpebra, a cabeça recomeçou
instantaneamente a doer-lhe, e lá estava a Adelaide, meu
capitão, microscópica, gesticulante, de feições deformadas
pela zanga, avançando para o meu nariz os punhozinhos irados
de gnomo.
— Dois ou três dias rapazes, prometeu o gordo, é uma
questão de explorarem o assunto a fundo e aumentam as
tiragens que é uma beleza. E você aí esteja quieto, não levante
o lençol, não queremos chatices com os advogados no
julgamento.
— Algum sarilho ontem à noite, Abílio?, inquietou-se o
mudo. Já é a segunda vez que andas com uma pedra às
arrecuas.
O tenente-coronel abriu a água na casa de banho, encheu a
tina até cima, e sentou-se no bidé, de cotovelos nos joelhos por
baixo da prateleira dos cosméticos, a ver os azulejos e o
espelho embaciarem-se devagarinho, as torneiras, os ralos e o
tubo cromado do chuveiro principiarem a suar, um fumo de
barrela erguer-se do rectângulo de esmalte à sua esquerda,
enquanto a Edite chamava um táxi ao telefone, fazendo a voz
dobrar-se e enrolar-se sobre si mesma numa lombriga
sedutora. No fundo da retrete boiavam pedaços de algodão,
fragmentos quase transparentes de papel higiénico, um filtro
de cigarro, pratas de caramelo, e a Edite, excitada, apaixonada,
transportada, nervosíssima, com quarto marcado numa
estalagem em Azeitão ou em Palmela, a pensar no oficial de
transmissões, a sonhar com o oficial de transmissões, a vibrar
pelo oficial de transmissões, a escrever-lhe longas cartas a
tinta roxa no seu horrendo papel cor-de-rosa, a suspender-se-
lhe do pescoço magro em suspirozinhos de consentimento, de
submissão, de entrega, a agitar a celulite das coxas na cama de
casal, a tratá-lo por benzinho a pedir-lhe Não me faças
cócegas, a dizer-lhe Está quieto, Celestino, a rir-se. Despiu-se
abandonando a roupa, do avesso, na tijoleira do chão,
experimentou a temperatura da banheira com a ponta do pé,
estendeu-se, imóvel, na água, como numa urna que fervesse,
Vou perder uma remessa de material esta tarde, preocupou-se
de leve a coçar uma nádega, e o capitão Mendes despede-me,
o japonês esperava-o decerto, há horas seguidas, no armazém
ao pé do rio, cercado de caixotes e de sacos e da hesitação
obtusa dos rinocerontes da Penitenciária, o hidroavião de Cabo
Ruivo aparentava-se a uma gaivota empalhada, duas
buzinadelas breves na rua, Vou descendo, benzinho, até
segunda, gritou a nuvem de perfume do vestíbulo, e nesse
instante uma ambulância soltou o seu uivo, em crescendo, por
baixo da janela, o japonês queixava-se ao sogro consternado
nas suas oxigenações de escafandrista, a Inês, nua, untada de
óleos, rodou languidamente na marquesa, os sovacos eram
ovais de piquinhos pretos que cresciam, as pupilas dois
piquinhos pretos também, mas salientes, avaliadores e
irónicos, as pernas musculosas afastaram-se, as nádegas, muito
brancas, tornaram-se tensas e esféricas, uma bola saltitava no
chão no compartimento ao lado, vozes amolgadas
conversavam e riam-se, a porta da rua bateu com força, o
tenente-coronel escutou, da tina, os cabos metálicos do
elevador que chiavam, Chego às cinco, chego às seis, chego
quando chegar, quero lá saber do emprego, quero que os
transístores se fodam, e uma moleza no corpo, um cansaço
sem fim, um alheamento absoluto, imaginou, como se
sonhasse, uma cama de torcidos vazia na estalagem de
Palmela, o silvo da ambulância tornava as orelhas reboantes
como ecos de búzios, uma segunda mulher inclinou-se para o
tronco deitado da Inês, lambeu-lhe longamente uma espádua, e
outra espádua, a curva luzidia dos rins, Vai passar horas e
horas a secar, de mala ao lado, no sítio onde combinaram
encontrar-se, pensou o tenente-coronel, divertido, a olhar para
todos os lados, a cruzar e a descruzar os braços, a bater com o
pé no chão, cada vez mais impaciente, cada vez mais furiosa,
tentando sem sucesso um telefonema ou dois, desistindo, não
compreendendo, espantando-se, Se calhar aconteceu-lhe
alguma coisa, se calhar arrependeu-se, se calhar outra mulher,
uma rapariga entrou e saiu a cantarolar com um par de
raquetas no sovaco, as persianas esverdeavam molemente a
luz, os óleos do balneário cheiravam intensamente a remédio
para as traças e eu palavra de honra que vi a gaja deitada, a
mais nova, a que não era a minha filha, acariciar o queixo da
Maria João e pedir-lhe Beija-me as nádegas, e pedir-lhe Enfia
o teu dedo no meu cu, e foi nessa altura que o sabonete me
escorregou da mão e adormeci.
— Qualquer gaita com a patroa, Abílio?, perguntou o mudo,
preocupadíssimo, à medida que as pedras do soldado
desapareciam, evaporadas, do tabuleiro.
— Quem mijar fora do penico antes do tempo, preveniu o
inspector apontando os fotógrafos, não recebe um único
pormenor do crime quando chegar a altura.
— Se julgas que te safas desta estás muito enganado, latiu a
anã, possessa, a saltitar como um cachorrinho ao redor do
alferes. Quero aqui o nome da tua amante e já.
A maca com o cadáver desapareceu na porta traseira de uma
furgoneta azul, que logo se confundiu aos solavancos no
trânsito espesso da tarde: Mais depressa, mais depressa, com
mais força, suplicava a Inês numa entoação urgente, a dor de
cabeça era agora uma espécie de arame que se avivava e que
morria, o enjoo, diminuto, retraíra-se-lhe para o fundo do
estômago como um bichinho assustado. O alferes levantou-se
do sofá, entrou no quarto, mudou de roupa, e os seus gestos
pareciam leves e sem rumo como algas, os pés flutuavam na
alcatifa, a camisa e as cuecas desobedeciam-lhe. A mulata, a
ajudante do ilusionista, as gémeas loirinhas e a deusa do strip-
tease Melissa, ensonadas, diurnas, sem encanto, abandonavam
os ademanes provocantes, enrolavam as meias, vestiam
casacos de pêlo de coelho subitamente traçados e gastos,
empoleiravam-se nos saltos tortos a caminho da rua: daqui a
meia hora de novo a companhia, as máquinas de escrever das
dactilógrafas, a secretária repleta de uma maçada de
formulários, de carimbos, de esferográficas, de papéis, o
casaco pendurado na cadeira, o odor impreciso de perfume
vogando pelas salas, e ao acender os candeeiros, quando os
ardinas apregoavam os jornais na rua e as pessoas se
amontoavam na paragem, tomar o elevador, descer,
cumprimentar este e aquele junto ao relógio de ponto, dirigir-
se a pé, sozinho, para casa, de mãos nos bolsos, vazio de
ideias, de projectos, de estímulos, a espiar alheadamente as
montras, os rés-do-chão iluminados, as raparigas que se
cruzavam com ele sem o fitarem, e amanhã a mesma coisa,
caralho, e depois de amanhã, e para a semana, e para o mês
que vem, e para o ano: Há que tempos que não me sentia tão
bem, pensou com satisfação o tenente-coronel a esfregar
preguiçosamente as costas, há séculos que não me achava tão
porreiro.
Uma das gémeas segurava o garrafão de palhinha pela asa,
lembrou-se o soldado olhando para o tabuleiro das damas na
infinita perplexidade da insónia: as meias da mulata
aparentavam-se a uma teia de aranha de malhas caídas, a fivela
prateada do cinto da ajudante do ilusionista faltava: Dois, três
dias no máximo, reforçou o gordo com energia, e temos aqui o
rouxinol a piar-nos na mão, e nós assobiando, abraçados uns
aos outros, aos trambolhões nos patamares, os capachos das
portas escorregavam sob os pés, uma frincha admirada
entreabriu-se e cerrou-se, revelando uma órbita, uma camisa
comprida, a ponta de um chinelo, e cá fora as árvores tremiam
ao sol, as folhas oscilavam e brilhavam como espelhos, os
nossos bicos de mocho, cegos, pestanejavam, a da cesariana
fazia veementes sinais com o braço para táxis que não
existiam, o Príncipe Real, gigantesco, empoleirado na fonte,
inclinava-se como se fosse desequilibrar-se e tombar, o
soldado avançou uma pedra qualquer e tentou recordar-se se
haviam abandonado o defunto no urinol ou na copa, se
soterrado por pacotes de detergente e de arroz se no meio da
urina fétida que gargarejava nos ralos: a loirita dos táxis
chamava os automóveis aos gritos, avançava coxeando, a
brandir o garrafão, num dos saltos quebrados, narizes
estupefactos espiavam das janelas os decotes vertiginosos, os
cabelos despenteados, as pinturas exageradas e sem nexo, os
sapatos altíssimos, a deusa do strip-tease Melissa que
vomitava na valeta, Há um polícia lá ao fundo, pensou o
soldado, e se ele nos vê?, putas às onze da manhã é de
desconfiar, meu capitão: o alferes acabou de abotoar a camisa
lavada, concluiu o nó da gravata, notou um risco de lama nos
sapatos, um carro particular parou na esquina, a porta abriu-se,
percebia-se confusamente a mão de um homem, a gémea do
garrafão parlamentou uns segundos e sumiu-se no interior num
redemoinho de saias, as rodas gemeram no asfalto, seguiram, o
tenente-coronel, espapaçado na tina, coçava com champô a
testa, a nuca, o cocuruto, Foi-se embora por medo, disse o
soldado, aposto que logo à tarde a gaja já se pavoneia numa
casa de passe da província, Se cuidas que te escapas de mim,
guinchou a anã para o alferes a suspender-se-lhe do cinto,
andas muito enganado, meu estafermo, Reconheço-o
perfeitamente, senhor inspector, anuiu o gerente do Bar Boite
Madrid, impecavelmente escanhoado e a cheirar a loção,
encostado com elegância ao piano da orquestra, observando
uma fotografia luzidia, esteve aqui ontem à noite
acompanhado de uns amigos, eu sempre colaborei com a
polícia, pergunte ao chefe Castro que vem aqui de quando em
quando para beber um copo comigo, a pista vazia, as mesas
vazias, as cadeiras de pernas para o ar, um homenzinho
assimétrico que varria tropegamente o chão, um magro fio de
claridade a insinuar-se, vacilante, pelo óculo da entrada: o
alferes procurou a carteira e os trocos no outro casaco,
espalhou-os pelos bolsos, desembaraçou-se com um gesto
rápido da anã, que escorregou nos chinelos e tombou sentada,
atónita, contra o lavatório, a Inês, de costas, oferecia agora o
pescoço, o queixo, as orelhas, à avidez da amiga que a
mastigava e deglutia em canibais gestos angulosos de
gafanhoto, Por sinal que levaram um ramalhete de pequenas cá
da casa, acrescentou com urbanidade o gerente, tenho as
moradas delas às suas ordens no ficheiro do escritório, de
certeza que nem uma cervejita, inspector? Tu queres matar-
me, Jorge?, baliu a Inês com um peito chocho de fora do
roupão, o que tu queres é matar-me, meu malandro?, o
tenente-coronel ensaboou o joelho esquerdo, o joelho direito,
os tornozelos, passou a cabeça na água fria do chuveiro,
estendeu o braço para a toalha felpuda, a transpiração dos
azulejos dissipava-se pouco a pouco, o nevoeiro do quarto de
banho dissolvia-se, o vidro martelado da janela era uma loira
placa cintilante, Mas que dia do caneco, pensou ele, deve estar
um tempo do caraças junto do rio.
— Logo cinco pequenas?, admirou-se o inspector gordo no
escritório, a verificar fichas, a murmurar nomes, a tomar notas
num bloco. Havia uma secretária, um armário de metal repleto
de gavetas estreitas de pegas cromadas, um barzinho com
copos e garrafas de uísque e de vermute a um canto, um
postigo para o pátio com caixotes de lixo e grades de água
tónica, onde vagueava a coxear um pastor-alemão tinhoso.
Três delas conhecemo-las bem, as outras duas, as que parecem
irmãs, devem ser novas nestas lides, não?
— Abílio, disse o mudo a sacudir o pulso do soldado: Há
dez minutos que o telefone está a tocar e tu nem ouves.
— Nem por isso, respondeu o gerente com desenvoltura, a
apanhar delicadamente cubos de gelo com uma pinça roxa de
plástico. Vieram há três meses de uma sucursal nossa no Porto.
— Não pares não pares não pares não pares não pares,
solicitou moribundamente a Inês, a enrolar-se como uma
algália na marquesa.
— E quantos eram os sujeitos, recorda-se?, inquiriu o gordo
a limpar o buraco do ouvido com a caneta: Três, quatro, cinco,
seis? Preciso do número exacto, caralho.
— Está, Abílio?, hesitou a porteira ao aparelho, como
sempre, a caminhar de sílaba em sílaba à maneira de um
lavagante tímido (e escutavam-se as sereias dos bombeiros a
subirem e a descerem continuamente por trás dela). Era para
ver se logo à tarde me trazias um pacote de frutas cristalizadas
para o bolo do miúdo.
— São boas profissionais, inspector, informou o gerente a
erguer o copo à altura dos olhos e a examinar com olho crítico
o líquido amarelo, colaborarão consigo no que for necessário.
A norma número um da empresa, a nossa regra de ouro, é não
criar entraves à polícia: e as unhas maquilhadas possuíam a
consistência opalina das escleróticas dos mortos.
Na esquina da Praça da Alegria despediram-se a outra
gémea e a mulata, confundindo o baton com o baton das
outras, estendendo para nós mãos de súbito cerimoniosas e
distantes, pontas tímidas de dedos, sumiram-se ambas a
cambalear num vão de escada, meneando as nádegas escarlates
que se evaporavam no vestíbulo, que se apequenavam e
diminuíam e desapareciam nas trevas, reduzidas a pontinhos
vermelhos ondulando. És um criminoso, Jorge, urrava a anã,
de gatas, no tapete de borracha, és a pior das escórias, Há-de
haver frutas cristalizadas aí ao pé, garantiu a porteira, agora
mais firme, pisando com segurança as palavras, e rebuçados, e
pastéis de nata, e velas, o alferes escovou o sapato sujo,
aprumou-se de novo, examinou-se ao espelho, Amanhã igual a
amanhã e amanhã e amanhã e amanhã, pensou ele
desanimado, o tenente-coronel dobrou a toalha de banho e
pendurou-a a assobiar de uma haste metálica, O melhor é
vestir-me depressa se quero apanhar o autocarro para Cabo
Ruivo.
— Se as chavalas eram cinco, resmungou o gordo para o
gerente, a limpar o mínimo com um pau de fósforo, eles, ao
preço a que as quecas estão, devem andar mais ou menos por
aí. A gente vai começar pela morada mais próxima, e se me
consta que você obstrui a justiça, quilho-o.
Abílio, alarmou-se o mudo, não precisas de um médico por
acaso?
— Ó senhor inspector, espremeu-se o dos cabelos brancos,
ofendido, se desconfia de mim pergunte ao senhor chefe
Castro o que ele acha.
— Levanta-te e deixa-te de partes gagas, ordenou o alferes à
anã, que preciso de ir picar o ponto à companhia.
— A policlínica, ao hospital, ao banco de São José?, insistiu
o mudo. Ou preferes que chame um doutor pelo telefone?
— Pensando melhor aceito uma cerveja gelada, admitiu o
gordo aluindo numa cadeira de braços.
Apanharam finalmente um táxi mas a deusa do strip-tease
Melissa morava na Penha de França, a ajudante do ilusionista
em Campo de Ourique, e discutiam agarradas à porta, dando-
se encontrões e pontapés, enquanto o chofer, um rapaz novo,
de bigode, se ria para elas de cotovelo no espaldar do banco,
apoiando-as e estimulando-as alternadamente, Chega-lhe
agora, ruiva, não consintas que ela te leve a melhor, gorducha.
Um magote de pessoas assistia da esquina, os polícias do posto
lá ao fundo olharam uma ou duas vezes para nós: Mas que
porra de merda, pensou alarmado o alferes, só nos faltava esta:
até as árvores da Rua da Mãe-d’Água nos apontam com os
dedos das folhas, até os prédios se debruçam acusadoramente
para nós. A gémea que sobrava desapareceu à pressa numa
transversal, o chofer começava a impacientar-se agora,
insultou-as, deu uma palmada no pulso de uma, aplicou um
soco no braço da outra, desgrudou-as do fecho, arrancou, a
ajudante do ilusionista puxava madeixas inteiras de cabelo, a
deusa do strip-tease Melissa pregava as unhas compridas no
pescoço da rival, a multidão da esquina aumentava, reforçada
por camionistas e comerciantes das redondezas, as janelas
povoavam-se de espectadores de roupão, O melhor é pirarmo-
nos daqui, sugeriu o soldado, o melhor é fugir antes que
alguém nos fixe a cara, não se esqueçam de que há um cadáver
lá em cima, Lá em cima não, no urinol, emendou o tenente-
coronel, é mais um fulano que caga, quem é que dá por isso,
catano: escaparam-se cada um para sua banda, pouco firmes, a
acotovelar criaturas indignadas que protestavam, Presas na
esquadra, por desacato, dizem vocês?, maravilhou-se o gordo,
ora tragam-me ao gabinete essas altezas. Assassino, cobarde,
machista, sacana, chiava a anã a apalpar a cabeça, se às cinco e
meia não estás de volta aqui armo-te uma bernarda que nem
sonhas, Fresquinha, fresquinha, aprovou o inspector, de caneca
em riste, com um grosso beiço de espuma em redor dos lábios,
A mim, pensou o tenente-coronel à procura de um par de
peúgas azuis na gaveta das peúgas, saiu-me uma travessa em
declive que não acabava nunca, as pernas pareciam enterrar-se
no pavimento de calcário, o coração baldeava exausto atrás
dos músculos, e de repente, no intervalo de duas casas, a
complicação circular da cidade, gruas, uma faixa do rio,
barcos minúsculos, Com que então pancadaria, comentou
amavelmente o gordo a friccionar a barriga, ora façam o favor
de se sentar, altezas, e de me explicarem o boxe em pormenor:
o tenente-coronel amparou-se, sufocado de cansaço, a uma
balaustrada de ferro, o sol faiscava aqui e ali, estátuas brancas
ou cor de cobre esbracejavam desordenadamente e dezenas de
pombos ergueram voo de um bosquezito logo abaixo. Um
guarda fardado instalou-se à direita do inspector e introduziu,
sem olhar para ninguém, folhas de papel e um químico cor de
vinho numa máquina de escrever arcaica, Cinco e meia, Jorge,
nem um minuto mais, avisou a anã, ou entro pelo gabinete da
administração dentro e dou-te cabo do emprego num instante,
o tenente-coronel acabou de vestir-se, aspergiu de água de
colónia o lenço e as mãos, desceu na direcção da paragem do
autocarro, olhou para o relógio, duas e vinte, Se calhar a esta
hora já o japonês se pôs na alheta, furioso, a gaguejar
palavrões esquisitos na sua vozinha de pardal, se calhar a esta
hora já o capitão Mendes apareceu, possesso, no armazém,
injuriando os rinocerontes aos pontapés às caixas, o alferes
desceu agoniadíssimo para a Praça da Alegria, o soldado
encaminhou-se para o Bairro Alto, galgando travessas com as
pernas enormes. Não sabem de nada, altezas, não sabem de
nada?, perguntou jovialmente o gordo a mastigar uma
sanduíche de paio cujas migalhas lhe tombavam em chuva na
barriga, nunca lhes veio por acaso à ideia tomar uns
comprimidinhos, umas pastilhinhas para aguçar a memória?, o
retrato do presidente, na parede, fitava toda a gente com uma
severidade castrense, o soldado tomou o eléctrico para o
armazém ao pé da Igreja da Misericórdia, num largo cheio de
pardais com um quiosque a um canto, apertou-se entre um
bombeiro e um estudante com acne e seguiu de coração
minúsculo durante todo o trajecto da Rua da Escola
Politécnica, para só começar a respirar mais à vontade depois
do Rato, na descida da Alexandre Herculano, onde um mar de
pernas e de corpos e braços e cabeças anónimas trotava,
obstinado e cego, no passeio à laia de baratas sem antenas,
entrando e saindo de conservatórias, pastelarias, capelistas,
lojas de roupa, Levanta-te gaiteira, ordenou um sujeito de
cigarro na boca e calças em harmónio à gémea da cesariana,
sem se preocupar com o cliente de meia-idade, estendido ao
lado dela, que o mirava com terror, imagina que há um colega
meu lá da Judiciária, calcula, interessadíssimo em ti.
— Nem que seja para te medirem a tensão, Abílio, teimava
o mudo. Trazes uma cara de desenterrado que dá pena.
O autocarro de dois andares para o armazém encabritava-se
no piso irregular da 24 de Julho, tropeçava nas sucessivas
calhas entrecruzadas do eléctrico, sumia-se nas covas do
alcatrão, reaparecia, como uma foca, nas lombas, fungando
chispas e vapor de água pelas narinas peludas do motor, havia
muita gente com malas na entrada da estação dos comboios, e
a seguir carruagens soltas, abandonadas em vias submergidas
pelo lixo e pela erva, os grandes armazéns em ruínas da
margem, a cidade que começava a rarear, por sobre os muros,
à maneira do cabelo nos cocurutos dos homens de quarenta
anos, alguns fios de casas grisalhas e a pele da terra a
perceber-se por baixo, barcos sem préstimo, de barriga ao alto,
na pedra esponjosa do cais, argolas de ferro, uma traineira
castanha a desfazer-se entre os vagões, longe da água, de
quilha na lama como a Arca de Noé ancorada no seu monte,
círculos rápidos de rolas, círculos lentos de gaivotas, edifícios
cariados, raros cães coxos, ninguém, o automóvel do capitão
Mendes estacionado na ladeira bordada de arbustozinhos
esqueléticos, o casinhoto de pau, atrás de umas figueiras
selvagens, um dos rinocerontes a urinar, trombudo, contra um
poste.
— É que eu supunha que vocês talvez nos pudessem ajudar
aqui num assassiniozito de nada, numa mortezeca sem
importância alguma, disse o gordo, bem disposto, a soprar as
migalhas da gravata, mas se perderam a memória, não é, o que
é que se há-de fazer? Olha, ali vem a que faltava: apertem-se
um bocadinho no banco, senta-te, alteza, com a tua chegada
fica a equipa completa.
— Não te esqueças do que eu te disse, Jorge, grasnava a and
no patamar, empoleirada no corrimão como um pássaro
disforme. Às cinco e meia sem falta e é a última vez que isto
acontece.
Ao meter a chave na porta do carro o alferes já se sentia
como de costume, apenas um ligeiro peso na barriga e mais
nada, um incomodozito insignificante no esófago ou no
estômago mas o odor do tabaco frio do cinzeiro fez-lhe subir
das tripas, em roldão, uma náusea de vómito, e os ossos da
cabeça começaram a latejar e a doer-lhe: Que desculpa irei eu
dar na companhia, pensou ele, uma dor de dentes, uma doença
de um tio, um funeral?, e entreviu a cara fechada do chefe, a
censura muda dos colegas, a recepção gelada das escriturárias,
das dactilógrafas, entreviu o seu próprio sorriso tímido, o seu
acanhamento, o seu mal estar: qualquer coisa ferveu dentro
dele numa guinada, a garganta azedava-se-lhe, se ao menos
trouxesse drageias para o fígado no bolso, se ao menos um
calmante na carteira.
— Ora vamos lá começar esta gaita toda do princípio,
altezas, pediu pacientemente o gordo, a bater com o lápis, na
secretária, como um maestro a chamar a atenção da orquestra.
Há por aqui umas desafinações que não me agradam.
— Até que enfim, senhor general, grunhiu o capitão
Mendes, instalado, de mãos nos bolsos, num ângulo do
caixote. Tinha-se esquecido de que havia hoje material para
entregar?
— Abílio, sussurrou o mudo, perplexo, de mão aberta a
pairar no tabuleiro, não ouves o telefone a tocar outra vez,
Abílio?
O hidroavião continuava a apodrecer na doca, com os
olhinhos das vigias a mirarem melancolicamente o lodo da
vazante, as escarpas de pedra cobertas de desperdício, de
algazitas, de limos: um relento de cadáver subia da ausência de
reflexos da água, distinguiam-se virgulazinhas brancas de
gaivotas, os aglomerados de edifícios da margem oposta,
nuvens sujas atravessando de viés o céu verde, a Inês, enrolada
numa careta, mordia os próprios lábios na marquesa, mais
ruídos de bolas de ténis, mais sopros de chuveiros, mais
gargalhadas de rapariga do outro lado do tabique, o alferes
abriu a porta do carro num sinal vermelho e despejou para a
rua o conteúdo do cinzeiro mas o desconforto mantinha-se,
rodar as manivelas das janelas todas, puxar o botão do
arejamento, respirar: Já está a sair melhor o orfeão, aplaudiu
molemente o gordo, vamos experimentar agora uma cantiga
diferente, altezas, por exemplo o samba De Quem Foi a Ideia
da Faca, que tal? O soldado ergueu o auscultador e não era
ninguém, apenas um silêncio vibrante, côncavo, no fio, Linhas
cruzadas, rosnou ele. Atrasei-me, respondeu o tenente-coronel
com um sorriso, imaginando a nuvem de perfume a aborrecer-
se, a impacientar-se, a voltar para casa, a guardar de novo a
roupa nos armários, tive ontem um jantar de rapaziada amiga
que durou até tarde e adormeci: os rinocerontes, pasmados,
apequenavam-se num cantinho, olhando um para o outro num
terror infantil, os risos estridentes das raparigas no balneário
sacudiam as tripas de madeira dos tabiques. Vai lá abaixo e
traz a camioneta que há um frete às quatro, ordenou o soldado,
e viu o sobressaltado trabalhar do motor a assustar as
ratazanas, o varandim do andar de cima estremecer, a cara
indiferente do oficial de transmissões crucificado na alcatifa:
Adormeci?, repetiu o capitão Mendes, estupefacto, a gente
com um trabalho de primeira e o senhor está-me a dizer que
adormeceu?, Se andaram juntos em África, latiu o gordo, a
coçar a papada, para o fulano de cigarro na boca e calças em
harmónio, não deve ser difícil encontrá-los, chegue ao
comando da Região Militar e veja se me descobre alguma
coisa que sirva: Afinal o hidroavião ainda lá está, pensou o
tenente-coronel a acender um fósforo despreocupado, afinal
não levantou voo, como um albatroz, na minha ausência: e
mais nuvens, e mais cães vadios, e um grande silêncio à nossa
roda, nenhum vento a remexer os arbustos, a desarrumar as
ervas, o ar do motor, desagradável e morno, que paralisava os
pulmões, e o alferes, agoniado, acabou por empurrar o botão e
fechá-lo, acendeu o rádio para se distrair e apagou-o à segunda
canção, uma tristíssima música espanhola que uns violinos
fúnebres acompanhavam, Se eu chegar antes das cinco a casa
pode ser que a Adelaide me deixe em paz, pode ser que a
Adelaide não me chateie muito, pico o ponto, assino a
correspondência e volto, não se lembrava do oficial de
transmissões, só da bebedeira da véspera e das coxas peludas
da ajudante do ilusionista descerrando-se devagar como
pólipos marinhos, adiante dele, só do ventre abaulado e das
mamas e do rosto achatado ao fundo, longíssimo, impossíveis
de alcançar através do simples comprimento do braço, Pois
fique sabendo que por sua culpa perdemos uns milhares de
contos de transístores, gritou o capitão Mendes, zangadíssimo,
fique sabendo que a sua inconsciência nos custou um cliente
seguro, o japonês apareceu no escritório a informar-nos que
não nos entrega nem uma pilha mais, e o tenente-coronel nas
tintas sem o ouvir, a observar o rio, as largas manchas mais
escuras da água, os naviozitos laboriosos e os seus
rastrozinhos de espuma, um garoto cigano, de cabelos loiros, a
puxar uma mula, por uma corda, no sentido do bairro da lata:
Que dia do camandro, pensou ele, que pena ter aprendido a
gozar a vida tão tarde.
— Começa a perceber-se a música, altezas, aprovou
condescendentemente o gordo a garatujar frases rápidas num
papel. Quem espetou a faquinha, garantem vossas senhorias,
foi um calmeirão quase sem testa, de cabeça pelada?
— O resultado disto, rosnou o capitão Mendes de olhos
espinhosos de ódio, chamando os rinocerontes como
testemunhas, foi foder-me o negócio a mim e o emprego a
estes dois. E quem me fode um negócio Pode-se a seguir.
O alferes teve de deixar o carro a três ou quatro quarteirões
da companhia, e de marchar, à pata, pela Rua de Arroios fora,
transportando a incomodidade do seu mal estar, até ao edifício
moderno da empresa, com as caixas de rede do ar
condicionado salientes do lado de fora da janela, e um
contínuo junto ao relógio de ponto, a soletrar baixinho, como
se rezasse, os difíceis caracteres cuneiformes do jornal. No
vestíbulo de soalho de azulejo, a seguir a uma escultura
abstracta monstruosa, havia elevadores com setas coloridas e
números que se acendiam e apagavam, e um balcão em
semicírculo onde um par de funcionárias, de que percebia
vagamente os penteados, introduzia cavilhas num PBX repleto
de botões e de lampadazinhas de nave espacial, e atendia as
pessoas, defronte de uma bateria de telefones, com as
gelatinosas órbitas ultravioletas dos habitantes de Mercúrio: Se
eu colocasse uma bomba no vestíbulo, pensou ele, o que
sucederia a esta merda?
— Vamos lá ver se a gente se entende quanto ao sítio onde
deixaram o cadáver, altezas, aconselhou o gordo a desenhar
espirais meditabundas no papel. Esta história do urinol e da
copa palavra de honra que me dá cabo do juízo.
— Sim, Moçambique, 1970, respondeu o sargento da
Região Militar ao tipo do cigarro na boca e das calças em
harmónio. Vocês querem os nomes de todo o pessoal do
batalhão?
O alferes carregou no botão do sexto andar e a caixa de
alumínio pôs-se mudamente em movimento, sem solavancos,
num assobiozinho astral, como se deslizasse oleosamente,
vertiginosamente, na atmosfera de ozono das estrelas, para o
depositar, numa delicadeza cirúrgica, numa alcatifa vermelha,
com extintores de incêndio pendurados nas paredes, portas de
contraplacado por baixo das quais se escapavam tosses, ruídos,
surdos sons de campainhas, vozes exaustas perguntando ou
respondendo ou ditando, funcionários de gravata e empregadas
sem idade: Vocês estão despedidos, disse o capitão Mendes
aos rinocerontes, agradeçam aqui ao senhor general estas
feriazitas inesperadas. O gabinete do alferes situava-se mesmo
ao lado de uma espécie de arrecadação, em frente da escada
estreitinha de salvação e de uma montra de vidro com a cobra
de uma mangueira de lona e um machado. Ora a cantarem
assim até dá gosto ouvir, aplaudiu o gordo, vamos repetir tudo
pela última vez, o Sampaio acompanha-as o melhor que pode
ao piano da máquina de escrever, e no fim as altezas botam
com muito juízo as assinaturazinhas em baixo. O alferes, de
pé, sem se sentar à secretária, sempre atento ao relógio, passou
os olhos pelas circulares e ordens de serviço internas,
desconvocou pelo telefone uma reunião e marcou outra,
chamou uma empregada para lhe trazer café, anotou na agenda
os assuntos do dia seguinte, retirou um dossier de uma gaveta
fechada à chave e folheou-o à pressa, um colega penteadinho
meteu a cabeça na porta, disse Olá Borges e desapareceu: E de
resto não são só vocês, acrescentou o capitão Mendes aos
pontapés aos caixotes, o meu general, por exemplo, pode ir
direitinho à puta que o pariu. O alferes guardou de novo o
dossier, afastou a agenda, lançou metade da correspondência
no cesto do lixo, empilhou a outra metade numa espécie de
recipiente articulado de plástico, os ponteiros do relógio
giravam a uma velocidade frenética, quatro e dez, quatro e
doze, quatro e um quarto, quatro e vinte, Quanto tempo,
interrogou-se com angústia, demorarei daqui a casa, e viu
atemorizado os olhos coruscantes da anã, a sua careta de raiva,
de impiedade, de ódio: Tome lá seiscentos e trinta e seis
nomes, amigo, ofereceu o sargento da Região Militar, leva
entretenimento pelo menos para um ano. Chegar cedo, pensou
o alferes, entrar em casa, beijá-la, sentar-me na poltrona do
costume a desdobrar o jornal, os risos das raparigas do ténis
ecoavam cada vez mais fortes no interior da cabeça, o soldado
trepou para a camioneta em ruínas, instalou-se ao lado do
mudo na cabina decorada de postais ilustrados, de pagelas de
santinhos, de barretes de campino, de chifres e de miniaturas
de mulheres nuas a balouçarem do espelho retrovisor, as
árvores da Luciano Cordeiro, as casas antigas, o Hospital dos
Capuchos, o motor que zunia e traquejava, dezenas de latas
soltas entrechocando-se, o fumo a trepar, em rolos de incêndio,
dos buracos dos pedais e do tapete roto de borracha, um
barulho imenso impedia-os de conversar, Se passares por uma
confeitaria aguenta os cavalos, pediu o soldado, aos uivos,
com as mãos em concha nos ângulos da boca, tenho de
comprar um pacote de frutas cristalizadas e umas sete ou oito
velas de anos para o puto.
— Isto só não serve, disse o gordo ao sujeito do cigarro na
boca e das calças em harmónio. Arranja-me no arquivo
fotografias desta gajada para as altezas verem, e o Mamede e o
Soares que os contactem entretanto um a um.
— Suma-se-me da frente, seu general de merda, ladrou o
capitão Mendes, a ameaçá-lo, desesperado, com a mão
fechada. Suma-se e esconda-se-me em casa bem escondidinho,
que se o meu sogro o caça lixa-lhe os ossos à trancada.
— O quê?, perguntou o mudo, de perfil enevoado, como em
janeiro, pelos gases escuros do motor.
O soldado colocou os limpa-pára-brisas a trabalhar a fim de
distinguir alguma coisa na rua adiante de si, mas sentia os
olhos vermelhos a arder e a bruma da cabina doía-lhe na
garganta, obrigando-o a salivar, a cuspir, a tossir: era um
serviço longe e dali a Vila Franca morriam envenenados com
certeza, como baratas, algures na fita de cimento da auto-
estrada, de patas para o ar no plástico rasgado dos estofos, dois
cadaverzinhos leves, amarrotados, quitinosos, peludos dos
estames compridos das antenas. As manivelas de descer os
vidros haviam-se quebrado, um nauseabundo calor
insuportável envolvia-lhe os pés em pantufas de hálitos
ardentes, o mudo conduzia depressa demais, fazendo a cidade
rodopiar, eriçada de esquinas, num carrossel de janelas, de
semáforos, de pessoas que se escapavam a correr, espavoridas,
do capot ferrugento, um sinaleiro ficou a mirá-los, petrificado,
a meio de um gesto, o alferes fechou de novo a gaveta à chave,
percorreu um corredor em sentido inverso (um, dois, três,
quatro, cinco extintores de incêndio vermelhos com as
instruções impressas na botija), carregou no botão do elevador
que ostentava uma seta verde a apontar para baixo, uma
funcionária magrinha recolhia-se de timidez num desvão, e
outra vez o assobio sideral do mecanismo, a travessia
interestelar rumo ao vestíbulo, comprimido como um
astronauta na cabina de alumínio. O ponto tilintou à laia de um
mealheiro ao introduzir o cartão perfurado na ranhura, o
contínuo considerou-o numa submissa tranquilidade de ovelha,
mastigando a erva de um fósforo, as meninas de madeixas
encaracoladas do PBX, de testas à altura do balcão, atendiam
um tipo baixote, de cigarro na boca e calças em harmónio,
acompanhado por um polícia fardado, que parecia exibir-lhes
discretamente um documento qualquer.
— Ficam por aqui mais uns dias, altezas, temos aposentos
de sobra, respondeu o gordo a escarafunchar o buraco do
ouvido com o lápis. Já me habituei a vocês, partia-se-me o
coração se nos separássemos.
À saída de Lisboa, a seguir ao aeroporto, onde os aviões se
alinhavam contra um comprido edifício envidraçado, a estrada
passava, num viaduto, sobre o quartel onde se haviam
despedido dez anos antes, ainda com o cacimbo de
Moçambique nas tripas, e avançado para as grades do portão
junto ao qual se acumulava um polvo humano vociferante e
confuso: o soldado distinguiu vagamente as construções das
casernas, viaturas militares alinhadas na parada, a bandeira no
edifício do comando, formigas de tropas por aqui e por ali: o
semáforo passou subitamente ao verde, o mudo acelerou de
golpe, um jacto de nevoeiro invadiu a cabina, e mesmo assim
viu-o, vi-o: um automóvel pequeno, azul escuro ou preto, a
atravessar-se diante deles, uma cabeça de mulher, outras
cabeças, o carrito a hesitar, a travar, a arrancar, a travar de
novo, alguém que buzinava, desesperado, à nossa esquerda,
Pára, gritou ele, o mudo carregou num pedal, virou o volante,
os pneus guincharam, deslizaram, rebentaram, cederam, um
eixo, uma mola, uma peça vital quebrou-se como um galho
sob os nossos pés, a camioneta rodopiou sobre si mesma, Foi
ali em baixo que se acabou a guerra, pensou estupidamente o
soldado, ali que acabaram as emboscadas, as minas, os mortos
e os feridos, o mudo largou o guiador e protegeu a cara com os
braços, o carrito desapareceu, ileso, atrás de nós, Frutas
cristalizadas, rebuçados, velas para o bolo de anos do puto, o
soprozinho anémico dele, o seu rosto pontiagudo de pardal, a
camioneta decrépita estoirou com o muro do viaduto numa
chuva de vidros e tijolos, Vamos cair lá em baixo, pensou ele,
vamos tombar a pique no cascalho do quartel, uma, duas
voltas no ar, os corpos jogados um de encontro ao outro, uma
cómoda que se desfazia, um rastro de areia e de odor de
borracha e um gosto de sangue ou de carne pisada na boca,
uma interminável suspensão, a certeza de flutuar eternamente
sobre uma segunda estrada pegada ao muro do quartel, o polvo
de pessoas ondulava e chamava-os, o saco de roupa e
bugigangas africanas pesavam-me no ombro, o asfalto cada
vez mais perto, o urro do mudo a reboar como no interior de
uma piscina vazia, tomar um táxi para a Buraca, encontrar as
sobrancelhas hostis da minha irmã, a cintura ou os rins que se
me esmagavam, sem dor, sem sofrimento, sem som, o ouvido
molhado de uma escura pasta pegajosa, as pernas aprisionadas
em arestas de metal, o conta-quilómetros, solto, vogando na
cabina, uma fugaz paisagem de floresta e eu a correr de arma
na mão no sentido da aldeia, e logo depois, e antes do
estrondo, e da explosão, e das altas chamas amarelas, nada.
— O Nunes, chamou jovialmente o gordo, a examinar
interessadíssimo o vértice do lápis, conduz-me aqui as altezas
à suite dos noivos.
— Eu se fosse a si, senhor general, avisou o capitão
Mendes, de mãos nos bolsos, a circular para cá e para lá na
poeira do armazém, alugava um quartito na província onde se
não desse por mim, onde não me sentissem nem o cheiro:
quem nos faz perder milhares de contos acaba por pagá-los de
uma maneira ou de outra.
Cinco e cinco, pensou o alferes a consultar alarmado o
relógio, já devia estar a chegar a casa a esta hora, já devia estar
a inclinar-me para beijar a anã, já devia correr-lhe dedos
enternecidos no cabelo, vincar as páginas do jornal com a
unha, suspirar de satisfação conjugal olhando em torno os
móveis, os naperons, os bibelots, os retratos nas molduras de
prata, sentir-me obrigatoriamente feliz, dizer Amo-te, mas não
encontrava o sacrista do carro, mas esquecera-se como de
costume do quarteirão, do passeio, do local exacto, da
matrícula, de forma que vagueava ao acaso observando com
angústia os automóveis estacionados, um suorzito de medo
molhava-lhe os cabelos da testa, as tripas protestavam e uma
espessa vontade de urinar endurecia-lhe as pernas, dificultando
as dobradiças dos joelhos, a Inês, escorrendo óleos, acariciava
agora lentamente, com o nariz e o queixo, o triângulo de pêlos
da amiga, mordiscava-lhe a gemer as virilhas, o umbigo, as
raízes das coxas, um vendedor aleijado de cautelas perseguiu
durante alguns metros o alferes numa teimosia pegajosa de
mosca, notou uma grelha, um farol, um guarda-lama verde, É
este e não era aquele nem o outro a seguir, nem o outro, nem o
outro, cinco e vinte, cinco e vinte e um, cinco e vinte e três,
cinco e vinte e sete, a anã, de penso na nuca, devia olhar para o
despertador da cozinha a contar igualmente os minutos, a
trepidar, a zangar-se, a enfurecer-se, a rebolar para o vestíbulo
com um objecto pesado na mão, Ainda aqui?, berrou
surpreendido o capitão Mendes, ainda não teve o bom senso de
se pôr a mexer?, Não tarda nada é noite, pensou o tenente-
coronel, um ventinho fresco trotava ao rés das ervas, a maré
subia como um peito que inspira, os contornos do hidroavião,
muito mais nítidos, aplanavam-se contra a cor de lama turva
da água, nas casas do bairro da lata já havia luzes, fogueiras,
um atropelo de galinhas e cachorros que regressam, Cinco e
meia, disse-se o alferes, a and esperava-o atrás da porta, como
um buldogue, de garrafa em punho, de novo o cauteleiro e as
suas roupas miseráveis, as suas fungadelas constantes, as suas
tiras de papel, a sua interminável pieguice de bêbedo, o
tenente-coronel principiou a descer a ladeira escorregadia para
a estrada, tropeçando nas pedras, um cão invisível uivava, os
rolos de nuvens que cruzavam de viés o céu desvaneciam-se,
Cinco e quarenta e já não é só a bexiga, verificou o alferes,
mas a peida também, se não dou com o carro sento-me numa
valeta e borro-me, a Adelaide mata-me, meu capitão, prega-me
com uma estatueta de bronze pelos cornos abaixo, dezenas,
centenas, milhares de automóveis estacionados cercavam-no,
estreitavam-no, rodeavam-no, apertavam-no, carros de
assentos vazios, escarninhos, vagos, sarcásticos, à espera, uma
substância húmida escapou-se-lhe da pila ou do ânus,
espalmou a mão contra uma árvore, Vou vomitar, um tipo de
cigarro na boca e calças em harmónio, que um guarda fardado
acompanhava, facilitava-lhe os arquejos com pancadinhas nas
costas, uma furgoneta com uma luz no topo aguardava-os
placidamente de rodas encostadas ao passeio, o tenente-
coronel (Como anoitece depressa, que caraças) deu um
ridículo saltinho curto para o lado, a fim de evitar um charco
de lama, e o murro do rinoceronte mais velho atingiu-o em
cheio na cara (Entre, entre, convidou amavelmente o do
cigarro) e, ao tombar, apercebeu-se que o hidroavião de Cabo
Ruivo levantava voo como um arcanjo exausto, escalando
dificilmente os degraus ocos da tarde a caminho do mar.
Índice
Ficha Técnica
Este livro é dedicado aos meus amigos
primeira parte antes da revolução
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12
segunda parte a revolução
1
2
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4
5
6
7
8
9
10
11
12
terceira parte depois da revolução
1
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