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Revista Brasileira de Ensino de Fı́sica, v. 37, n.

4, 4801 (2015)
www.sbfisica.org.br
DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S1806-11173742047

Resenha

Energia e Matéria: Da Fundamentação Conceitual


às Aplicações Tecnológicas
(Energy and Matter: From the Conceptual Grounds to the Technological Applications)

Paulo M.C. Oliveira12


1
Instituto de Fı́sica, Universidade Federal Fluminense, Niterói, RJ, Brasil
2
Instituto Mercosul de Estudos Avançados, Universidade Federal da Integração Latino Americana, Foz do Iguaçu, PR,
Brasil
Recebido em 7/7/2015; Aceito em 9/7/2015; Publicado em 12/12/2015

Resenha do livro Energia e Matéria: Da Fundamentação Conceitual às Aplicações Tecnológicas, organizado
por Carlos Alberto dos Santos, editora da Livraria da Fı́sica, São Paulo, 2015.
Palavras-chave: energia, matéria, interdisciplinaridade.

Book review of Energy and Matter: From the Conceptual Grounds to the Technological Applications, organi-
zed by Carlos Alberto dos Santos, Livraria da Fı́sica, São Paulo, 2015.
Keywords: energy, matter, interdisciplinarity.

A multidisciplinaridade é uma realidade moderna formas variadas. Comentarei a seguir alguns aspectos
que precisa ser devidamente tratada no ensino funda- destes textos.
mental, médio, técnico e universitário, com urgência. Energia é uma palavra usada em diferentes con-
A resistência inercial a este fato no meio acadêmico textos. Possui significados dı́spares, desde os precisos
nacional tem sido grande. No entanto, a tradicional conceitos cientı́ficos até os esotéricos conceitos do tipo
divisão da ciência em diferentes disciplinas foi elabo- “energia positiva” ou “negativa” emanada por uma pes-
rada com base na ciência que se estudava há mais soa. Essa diversidade cria confusão na mente do ci-
de dois séculos. A Natureza obviamente não leva em dadão comum. O consequente uso inadequado do termo
conta esta divisão artificial. De lá para cá, inserções é extremamente comum. Por exemplo, usa-se no co-
de assuntos tradicionalmente pertencentes a uma des- tidiano o termo “produção de energia”, e ao mesmo
tas disciplinas em outra ocorreram cada vez com maior tempo a boa ciência afirma que a energia do universo
frequência. O cenário hoje é próximo do anacronismo. se conserva, jamais se perde nem é criada. Neste li-
É necessário que se leve isto em conta na elaboração vro, os significados estritamente cientı́ficos das várias
das grades curriculares. Cumpre alertar, entretanto, formas como a energia pode se apresentar são descri-
que não se trata de substituir as tradicionais disciplinas tos de maneira coloquial, com o objetivo de mitigar a
curriculares, divididas em compartimentos estanques, citada confusão. O termo “produção de energia” é co-
por outras ditas “interdisciplinares”, “multidisciplina- locado no seu devido significado cientificamente preciso
res”, “transdisciplinares”, termos muito em moda nas da transformação de uma forma de energia em outra.
lides pedagógicas do paı́s, mas que até então têm refle- Outros termos relacionados, como temperatura, calor
tido apenas um relaxamento dos conteúdos das várias e entropia também são tratados, assim como suas dife-
disciplinas tradicionais a englobar na “nova” disciplina renças e as relações entre eles. Um objeto estará quente
curricular apenas noções superficiais e insuficientes des- se sua temperatura for alta. Mas esse mesmo objeto
tes diversos conteúdos. Trata-se, sim, de abrir o leque não possui calor, que é energia em transição. Calor foi
de cada disciplina tradicional para as citadas inserções transferido para o objeto ao esquentá-lo, não é uma pro-
que ela recebeu de outras, suas aplicações nestas outras. priedade do objeto, uma variável de estado do objeto.
Este livro é uma das primeiras iniciativas no sentido de Sua temperatura, sim, era baixa e ficou alta. Entropia
cumprir esta necessidade. Apresenta textos de autores é outra variável de estado. Ao contrário da energia,
de várias origens acadêmicas, sobre temas gerais, de não se conserva, sempre aumenta num sistema isolado
1 E-mail: oliveira.paulomurilo@gmail.com.

Copyright by the Sociedade Brasileira de Fı́sica. Printed in Brazil.


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(como o universo). Toda vez que energia concentrada que o investimento em ciência e tecnologia não é impor-
é espalhada, o valor da entropia aumenta. Portanto, tante, porque podemos comprar o que necessitamos.
polı́ticas conservacionistas se aplicam à entropia, não Esta situação precisa ser revertida. Para tanto, a
à energia. Conservar, no sentido ecológico, é preservar divulgação para o grande público da história da ciência
baixa a entropia. brasileira é fundamental. No caso da Quı́mica antes
Aspectos tecnológicos, como o funcionamento de do Século XX, o livro preenche este objetivo. Estão
usinas nucleares de fissão (em uso) ou de fusão (em fase lá, descritos de forma coloquial, os pioneiros feitos ci-
experimental) para a “produção” de energia elétrica, entı́ficos brasileiros e seus heroicos personagens nesta
também são descritos. Fora estes dois casos, toda a área. Além disto, o texto é um incentivo para que esse
energia que usamos (hidrelétrica, termelétrica, eólica, trabalho seja repetido em outras áreas cientı́ficas.
veicular, etc) vem da radiação solar que incide na su- Metade da crosta terrestre é composta pelo ele-
perfı́cie da Terra, ou incidiu no passado. A conversão mento oxigênio, outro quarto, silı́cio. O carbono, no
natural ou artificial desta energia de radiação em outras entanto, que corresponde a mais da metade do material
formas utilizadas pela humanidade também é descrita, encontrado num ser vivo, responde por menos de 1%
juntamente com suas implicações tecnológicas, sociais da crosta terrestre. Os quı́micos dividem sua disciplina
e ecológicas. em orgânica, a que trata dos compostos do carbono, e
Os vários combustı́veis usados em motores e gerado- a inorgânica, que trata do resto. Divisão esta aparen-
res têm o importante inconveniente de liberar na atmos- temente desproporcional se considerada a distribuição
fera gases que contêm carbono, contribuindo assim para dos elementos na crosta terrestre em que vivemos, mas
o conhecido efeito estufa e o consequente aquecimento que se explica pela complexidade muito maior dos com-
global, além da poluição direta. Em grandes usinas, postos do carbono e sua importância para a vida.
fixas no solo, pode-se capturar os gases produzidos na Os compostos orgânicos são cadeias de carbono, ao
combustão, filtrá-los e armazenar os resı́duos nocivos longo das quais aparecem diferentes radicais que contêm
em abrigos subterrâneos ou submarinos. Em veı́culos, hidrogênio, nitrogênio, oxigênio, fósforo, ferro, etc. O
no entanto, a captura é inviável. O uso de hidrogênio número de átomos de carbono na cadeia, o tipo de
como combustı́vel alternativo não apresenta este incon- ligação entre carbonos vizinhos (simples, dupla, etc) e
veniente, porque só produz vapor d’água. Entretanto, os citados radicais que aparecem num dado composto
não existem reservas minerais de hidrogênio gasoso na determinam sua nomenclatura cientı́fica. Tal nomen-
Terra, como carvão e petróleo. Mas pode-se produzir clatura segue uma regra muito bem definida que per-
hidrogênio em uma usina fixa no solo que não emite ga- mite o conhecimento da estrutura do composto através
ses de efeito estufa, e usá-lo posteriormente como com- de seu nome. Portanto, esta convenção internacional de
bustı́vel veicular. Há uma série de tecnologias, já dis- nomenclatura é muito útil. Os fármacos, por exemplo,
ponı́veis algumas, outras na fase de pesquisas, para o recebem denominação de acordo com o seu princı́pio
transporte e armazenamento de hidrogênio, bem como ativo, o que facilita a identificação da estrutura quı́mica
o inerente problema de segurança em todo o processo. da molécula responsável pela sua função terapêutica e
O funcionamento das chamadas células de combustı́vel, a classificação de fármacos equivalentes ou semelhan-
dispositivos quı́micos que transformam diretamente o tes numa mesma classe. São muitos fármacos e poucas
combustı́vel em eletricidade, é descrito. Estes disposi- classes. No livro são descritas as regras convencionadas
tivos cumprem o mesmo papel que as baterias elétricas de nomenclatura dos compostos orgânicos.
em suas diversas aplicações. Além de combustı́vel limpo A tabela periódica é normalmente apresentada aos
para veı́culos e algumas instalações fixas no solo ou no estudantes sem maiores explicações. No entanto, ela
espaço, outros usos de hidrogênio também são apresen- reflete a distribuição dos elétrons atômicos que orbitam
tados. em torno do núcleo. Não é uma distribuição contı́nua,
Pouca ciência foi produzida no Brasil, por brasilei- ao contrário, os elétrons se distribuem em diferentes
ros, antes do Século XX. Este fato contribuiu efetiva- estados, cada um com sua energia própria e podendo
mente para o nosso atraso cientı́fico atual, relativo a abrigar apenas um elétron. Por outro lado, a situação
outras nações. Como agravante, muito pouco da pouca estável de um átomo corresponde à menor energia to-
ciência aqui produzida é conhecida pelo grande público, tal possı́vel, a soma das energias de todos os elétrons.
e mesmo no meio cientı́fico. A falta de divulgação, en- Não é possı́vel que todos ocupem o mesmo estado de
tre outros fatores, tem como consequência o baixı́ssimo menor energia. Um elétron ocupa o estado de menor
prestı́gio que a ciência e a atividade cientı́fica em geral energia, os seguintes são obrigados a se ajeitar em es-
desfrutam na nossa população. Não é portanto surpresa tados de maior energia. É como um edifı́cio em que
que mesmo as elites dirigentes não compreendem e não cada apartamento pode ser ocupado por um único in-
percebem a necessidade do desenvolvimento cientı́fico divı́duo. Para minimizar o esforço de subir escadas,
nacional, como suporte do desenvolvimento econômico os apartamentos do primeiro andar são ocupados, de-
e social. Há pouco mais de uma década, um ministro pois os do segundo andar, etc. Qual será o último an-
da economia brasileiro chegou a comentar num discurso dar ocupado? Depende do número total de indivı́duos.
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Este último andar atingido está todo ocupado, ou ape- cria-se outro dispositivo chamado transistor, com uma
nas parcialmente? As ligações quı́micas entre átomos terceira camada semicondutora intermediária entre P
correspondem ao compartilhamento de alguns de seus e N ligada a um terceiro terminal metálico ao qual se
elétrons, visitas de alguns habitantes de um edifı́cio aos aplica ou não uma minúscula voltagem para contro-
apartamentos vazios do edifı́cio vizinho. Naturalmente, lar a corrente elétrica que passa ou não entre os ou-
estas visitas não podem ser aos andares mais baixos do tros dois terminais. Assim, o código SIM ou NÃO da
edifı́cio visitado, que estão totalmente ocupados. Há lógica binária de qualquer processamento computaci-
vagas no último andar ocupado? Se houver, as visi- onal é traduzido na eletrônica pela passagem ou não
tas são energeticamente facilitadas. Se não houver va- de corrente elétrica num transistor. Na chamada mi-
gas no último andar ocupado, as visitas teriam que ser croeletrônica, tais dispositivos têm dimensões da or-
feitas ao próximo andar superior, o que dificultaria a dem de micrômetros (um milionésimo do metro, onde
ligação quı́mica. Portanto, a afinidade de átomos se cabem cerca de dez mil átomos em fila). Na nanoe-
ligarem quimicamente e formar moléculas depende da letrônica que ora se inicia, são atingidas as dimensões
ocupação por elétrons de seus estados mais energéticos, de nanômetros (um bilionésimo do metro, dez átomos
dos graus de ocupação de seus últimos andares. Os em fila). Um transistor com seus diversos compo-
gases nobres, por exemplo, são quimicamente inertes nentes, terá dimensões, suponhamos, dez vezes maio-
porque seus últimos andares estão completamente ocu- res. Portanto, um “chip” com dimensões superficiais
pados. de 1 mm x 1 mm poderá num futuro próximo abrigar
No livro é descrita a estrutura dos edifı́cios (na o inimaginável número de dez bilhões de transistores
imagem que fiz acima), quantos apartamentos há em ou outros elementos eletrônicos! Para efeitos de com-
cada andar. Compreende-se então como os elementos paração, nosso cérebro é muito maior, mas abriga o
quı́micos são classificados na tabela periódica segundo o mesmo número de neurônios, dez bilhões.
número de elétrons de cada átomo. Como elementos de Outros dispositivos modernos da nanotecnologia,
cada classe têm ou não afinidade quı́mica com elemen- como os microscópios de tunelamento capazes de “en-
tos de outra classe. A estrutura dos edifı́cios, quantos xergar” detalhes na escala atômica, a spintrônica em
apartamentos há em cada andar, é conhecida graças à que os elétrons portadores de corrente elétrica são ma-
Mecânica Quântica, a espetacular e surpreendente te- nipulados não através de campos elétricos como na
oria cientı́fica desenvolvida no inı́cio do Século XX. A eletrônica tradicional, mas por meio de suas proprie-
história deste desenvolvimento, seus conceitos funda- dades magnéticas (o spin), são também descritos no
mentais e seus personagens também são descritos. texto.
Todos os espetaculares aparelhos eletrônicos que É imediato para qualquer humano, atualmente ou
mudaram a vida dos seres humanos a partir do inı́cio no passado, distinguir um ser vivo dos inanimados.
do século passado são fruto da manipulação de mate- Não é trivial, no entanto, comparar as caracterı́sticas
riais semicondutores, sobretudo o silı́cio. Um século de um ser vivo com as de outro e classificá-los. Até
antes, fenômenos notáveis já haviam sido observados três séculos atrás, essa classificação era feita exclusiva-
nestes materiais, como o controle da corrente elétrica mente com base nos aspectos morfológicos visı́veis, na
que podem ou não conduzir através da incidência de escala macroscópica. Nas comparações, usavam-se ana-
luz. Observados sim, mas misteriosos e não explicados logias entre a função de um órgão num dado ser vivo
até a década de 30, quando a recém elaborada teoria com o que se supunha ser o órgão equivalente de outro
da Mecânica Quântica pode ser aplicada à condução de ser vivo. A coerência da criação divina era um critério
eletricidade nos sólidos. Em particular, melhor que o fundamental: se uma criatura funciona de tal maneira,
silı́cio puro, amostras de silı́cio contaminadas (ou dopa- outra criada pelo mesmo ente divino deve funcionar da
das, no jargão da eletrônica) com boro (tipo-P) ou com mesma maneira. Essas analogias pouco cientı́ficas leva-
fósforo (tipo-N) possibilitaram as inúmeras aplicações ram a muitos enganos na classificação dos seres vivos.
tecnológicas que diferenciam enormemente nossas vi- Nesta época, o advento do microscópio permitiu a ob-
das das de nossos avós: computadores, televisão, la- servação de células, na escala mesoscópica (abaixo do
ser, sistemas de comunicação à distância, etc. A sim- milı́metro). E também de uma nova classe de seres vi-
ples junção de duas minúsculas pastilhas de silı́cio, de vos unicelulares, para os quais as analogias funcionais
um lado o tipo-P e de outro o tipo-N, com um termi- perdem o sentido. A partir do Século XX, microscópios
nal metálico de entrada ou saı́da de corrente em cada mais potentes (primeiro ópticos, depois eletrônicos e
uma, cria um dispositivo chamado diodo que permite atualmente os de varredura que permitem observações
a passagem de corrente elétrica apenas num sentido, na escala atômica) e outros instrumentos sofisticados
a chamada junção PN. Sua descoberta é um exem- possibilitaram observar o interior das células. As analo-
plo de serendipidade, que significa descoberta ao acaso. gias macroscópicas antes apenas supostas sob a hipótese
O mesmo dispositivo devidamente preparado e polido, da citada coerência divina, deixaram de ser suposições
quando atravessado por uma corrente externa, cria um na escala molecular. Moléculas idênticas estão presen-
feixe de luz laser. Com um pouco mais de sofisticação, tes nas células de diversos seres vivos distintos, cum-
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prindo as mesmas funções. Evidências de que todos os as levógiras estão presentes nas células dos seres vi-
seres vivos do planeta têm a mesma origem se acumu- vos? Resposta: porque o primeiro ancestral comum
laram cada vez mais. A teoria de Lamarck, lançada assim era, por acaso, e todos os outros seres vivos
em 1809, de que as diversas espécies biológicas atuais presentes e passados descendem dele. Algumas des-
descendem de espécies ancestrais numa árvore de bi- tas moléculas podem ser sintetizadas em laboratório,
furcações (especiações) ganhou então credibilidade in- e como resultado metade delas serão levógiras e a ou-
contestável. Assim é a evolução das espécies. Esta tra metade destrógiras. A inobservância desta reali-
árvore de bifurcações tem uma única origem comum dade já trouxe consequências desastrosas para a huma-
(terrestre?), longı́nqua no tempo evolucionário, todos nidade, no caso da talidomida. Trata-se de um medi-
os seres vivos descendem do mesmo ancestral comum. camento lançado para a prevenção de enjoos de mulhe-
Uma das inúmeras evidências deste fato é a existência res grávidas. A existência de moléculas destrógiras na
de moléculas exclusivamente levógiras (moléculas que talidomida sintética trouxe como consequência sérias
fazem a polarização da luz que as atravessa girar sem- deformações de milhões de fetos (futuras crianças e de-
pre num dado sentido) em todos os seres vivos. As pois adultos) gerados por estas mães. A talidomida foi
mesmas moléculas podem ser encontradas no mundo banida da medicina, mas apenas depois se descobriu a
inanimado, tanto levógiras quanto destrógiras (giro da causa do problema.
polarização no sentido oposto). Porque, então, apenas

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