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Banco público impede submissão da política ao poder

econômico (2011)

Por Paul Singer

A decisão do [então] primeiro ministro da Grécia de submeter o


próximo pacote de “ajuda” da Europa ao seu país a uma consulta
popular desencadeou uma queda espetacular das cotações nas bolsas
de valores no mundo inteiro, colocando em foco a profunda
contradição entre o Poder Político e o Poder Econômico nos países
capitalistas democráticos, que hoje são a grande maioria das nações.
Uma decisão que deveria ser normal em qualquer democracia – a de
consultar o povo, do qual o governo, isto é, o Poder Político, é o
representante – acaba de provocar pânico entre os donos do capital
financeiro, que hoje detém a hegemonia do poder. 

A mesma contradição é a fonte da motivação essencial do movimento


hoje mundial dos Indignados, que desde 15 de outubro promove a
ocupação das praças centrais dos distritos financeiros de 951 cidades
em 82 países. O que os Indignados demandam, acima de tudo, é que
a democracia formal, vigente nestes países, se torne real, ou seja,
que o Poder Político eleito pelo povo de fato o represente, em vez de
executar políticas que beneficiam exclusivamente a classe que exerce
o Poder. O que evidencia a contradição de interesses entre a maioria
do povo – os 99% que os ocupantes de Wall Street almejam
representar – e o 1% que constitui a elite do Poder. 

A contradição entre Poder Político e Poder Econômico se explica pela


origem de um e outro Poder. Em democracias, o Poder Político é
exercido pelos eleitos pela maioria dos cidadãos, que é
necessariamente constituída por trabalhadores não proprietários de
meios de produção social, boa parte dos quais ganha a vida como
assalariados de empresas capitalistas; ao passo que, no capitalismo,
o Poder é exercido pelos capitalistas, mas não por todos por igual. 
Os empresários da economia real, isto é, cujas empresas produzem
bens e serviços que atendem necessidades humanas, dependem de
crédito tanto para financiar vendas a prazo quanto para investir em
matérias primas, maquinário, instalações etc., na medida em que a
demanda por sua produção se expande; o crédito é concedido por
bancos, fundos de investimento e outros intermediários financeiros. A
renda não gasta pelas famílias, empresas e governos é depositada
nestes intermediários, que a redistribuem na forma de empréstimos
aos governos, empresas e famílias cujos gastos superam sua renda. 

Os bancos, fundos etc., que são empresas capitalistas, visam


maximizar seus próprios lucros, emprestando a juros maiores do que
pagam aos depositantes e aplicando parte dos depósitos que lhes são
confiados em títulos de propriedade de firmas (ações) ou de débito
emitidos por governos e empresas. Commodities, ações de novas
empresas e cotas de fundos de investimento são transacionados em
leilões diários nas bolsas de valores e suas cotações flutuam ao sabor
das oscilações de oferta e demanda pelos mesmos. 

A maior parte dos participantes nestes leilões são especuladores, que


procuram adivinhar em que ativos irão se concentrar as preferências
da maioria para adquiri-los antes que se valorizem e quais ativos
serão vendidos, para vendê-los antes que se desvalorizem.
Obviamente, uma parte dos especuladores faz antecipações erradas
e, por isso, perde dinheiro para os seus felizes competidores, cujas
apostas anteciparam o futuro corretamente.

Trata-se de um jogo de apostas, mas que afeta o andamento da


economia real. Se o otimismo prevalecer nas bolsas de valores, os
especuladores comprarão ações e títulos de crédito, cujas cotações
subirão, o que permitirá aos empresários obter mais facilmente
dinheiro para expandir suas atividades; o crescimento da produção da
economia real confirmará as expectativas otimistas dos detentores do
dinheiro depositado neles pelos poupadores, levando-os a reiterar as
compras de títulos e assim por diante. O resultado será a formação
de uma típica bolha de valorização de ativos, cujo efeito será acelerar
a expansão das atividades econômicas, até que elas esbarrem em
pontos de estrangulamento, que impedirão a continuação do
crescimento. 

Os pontos de estrangulamento são constituídos por recursos


indispensáveis à produção e à distribuição, que exigem tempo para
serem multiplicados, como, por exemplo, a produção e distribuição de
energia elétrica, os meios de comunicação e de transporte, a mão de
obra com escolaridade acima da fundamental etc.. Os pontos de
estrangulamento elevam o custo de produção e distribuição de bens e
serviços, suscitando círculos viciosos de elevação de preços e
salários, que resultam em inflação cada vez maior, contra a qual o
Poder Político é forçado a agir, reduzindo a disponibilidade de crédito
e o gasto público. 

O mero anúncio destas medidas de “austeridade” basta para que as


expectativas dos especuladores financeiros se invertam, passando de
otimistas a pessimistas, pois eles sabem que elas reduzirão a
demanda por títulos nas bolsas, fazendo com que suas cotações
desabem. 

Inflação e renda

Em suma, o Poder Político é induzido a conter a inflação atendendo


ao interesse dos capitais financeiros, que temem a desvalorização da
moeda, ocasionada pela subida dos preços. A inflação exige a
ampliação da oferta de moeda, que é a “mercadoria” que os
intermediários financeiros transacionam. Sua desvalorização
prejudica diretamente bancos e fundos, cujos capitais são
constituídos, em sua maior parte, por tesouros em forma da moeda
corrente do país. 

Na verdade, a inflação prejudica também todos que dependem de


rendas fixas, entre os quais estão também os trabalhadores
informais, que estão excluídos de normas contratuais ou legais que
reajustam rendas ou depósitos automaticamente por índices
periódicos de inflação. Esta circunstância permite aos porta-vozes dos
interesses financeiros proclamarem que é necessário paralisar o
crescimento econômico tão logo pressões inflacionárias se fazem
sentir, porque a inflação é o mais cruel dos impostos, pois pune os
mais pobres. Na realidade, pune os mais pobres e os mais ricos,
sendo óbvio que os últimos podem suportar perdas muito melhor que
os primeiros.

A experiência histórica do final do século passado mostra que


realmente inflação elevada e persistente pode prejudicar seriamente
o funcionamento dos mercados e, quando atinge o limite da
hiperinflação, tornar impossível o prosseguimento do
desenvolvimento econômico; uma vez atingido este estágio, a
estabilização dos preços exige o encolhimento da demanda efetiva
total por bens e serviços, com efeitos negativos para a economia real,
prejudicada pela dificuldade de vender com lucro suas mercadorias. 

Como governo algum se arrisca a lançar a economia em


hiperinflação, as fases de crescimento rápido são abortadas pelo
Poder Político mediante políticas de estabilização que se caracterizam
pela elevação das taxas reais de juros, proporcionando grandes
lucros aos capitais financeiros.

Isso comprova mais uma vez que, no capitalismo contemporâneo, o


Poder Político não pode deixar de praticar políticas, que em nome do
interesse geral, de fato priorizam o capital financeiro, reforçando a
hegemonia deste sobre o Poder Econômico. Convém observar que, se
a intermediação financeira fosse atribuição exclusiva de bancos
públicos, a estabilização dos preços em vez de concentrar a renda,
como acontece hoje, reforçaria a participação do Poder Político na
renda nacional, possibilitando-lhe ampliar políticas redistributivas e
deste modo tornar a distribuição da renda mais justa.
Aqui reside o caráter contraditório do relacionamento entre Poder
Político e Poder Econômico. Os governos desejam em geral que haja
prosperidade; embora esta possa beneficiar todas as classes, o
excedente econômico assim gerado sempre é apropriado pelos
capitalistas. Os trabalhadores só se beneficiam pelo aumento do
emprego, que viabiliza em alguma medida as campanhas sindicais
por melhoras salariais. Só que estas somente são obtidas após muita
luta contra a resistência patronal, ao passo que a apropriação do
excedente pelos donos e administradores dos capitais é imediata:
sendo as mercadorias produzidas pelos trabalhadores propriedade
dos capitalistas, o lucro a mais decorrente do maior volume de
vendas é deles. O que os trabalhadores podem receber a mais será
pelas horas extras eventualmente trabalhadas, o que explica a forte
concentração da renda que ocorre sempre quando o crescimento
econômico perdura. 

Para se contrapor à concentração da renda, governos comprometidos


com os interesses e aspirações das classes trabalhadoras podem
tributar os ganhos extraordinários dos capitalistas e aplicar a receita
pública adicional em políticas redistributivas. Políticas como estas, no
entanto, provocam a desconfiança dos operadores financeiros, que
reduzirão suas aplicações na economia nacional, lançando-a em crise.
Sabedores disso, governos de esquerda evitam ferir a confiança do
capital financeiro, o que explica sua frequente conversão ao
neoliberalismo. 

No capitalismo contemporâneo, o Poder Econômico, ao contrário do


Poder Político, deixou de ser nacional para se tornar global, sendo
dominado por um limitado número de gigantescas transnacionais
financeiras. Estes capitais tomam em geral a forma de bancos
demasiado grandes para que os governos possam correr o risco de
deixá-los quebrar. Eles estão interligados por interesses financeiros, o
que lhes permite atropelar o Poder Político de países que não se
submetem aos seus desejos. 
O Poder Econômico privado conseguiu monopolizar a distribuição do
dinheiro internacionalmente aceito, a moeda “forte”, representada
principalmente pelo dólar, graças à influência que exerce sobre
instituições multilaterais como o Fundo Monetário Internacional (FMI),
o Banco Mundial (Bird) e a Organização Mundial do Comércio (OMC),
o que lhe permite impor sua vontade ao Poder Político de nações que
não têm o status de superpotências, como está claro no caso da
Grécia e de mais uma série de outros países que simplesmente
perderam a confiança do Poder Econômico global, de que sejam
capazes de honrar suas dívidas externas. Para reconquistar esta
confiança, estão sendo obrigados a aplicar políticas econômicas de
austeridade que lançam suas economias nacionais em longas e
profundas crises. 

Bancos públicos

A voga do neoliberalismo que assolou o mundo nos últimos 32 anos


fez com que muitos países vendessem seus bancos públicos a capitais
privados, o que tornou seus governos inteiramente dependentes dos
intermediários financeiros privados. Estes governos, para reter a
confiança das finanças capitalistas, foram obrigados a equilibrar seus
orçamentos, procurando reduzir seus déficits e conter o crescimento
da dívida pública. Além disso, tiveram de priorizar o combate à
inflação, reduzindo a despesa pública e o ritmo do crescimento
econômico. 

O efeito destas políticas foi reduzir a demanda por mão de obra das
empresas, ampliando o desemprego, enfraquecendo os sindicatos e
suas lutas por melhores salários e condições de trabalho. A contenção
da despesa pública debilitou as políticas redistributivas e os sistemas
públicos de saúde, educação e previdência, que estão sendo em parte
privatizados. 

Os países que preservaram seus bancos públicos e os ampliaram de


acordo com as necessidades puderam resistir às pressões neoliberais
e continuar priorizando o desenvolvimento e o combate à pobreza,
ampliando e aperfeiçoando suas políticas sociais e mantendo a
expansão do emprego, de modo a evitar o desemprego em massa,
sobretudo o de longa duração. 

Atualmente, os países que optaram por esta alternativa se encontram


em sua maior parte na Ásia e na América Latina e constituem as
economias emergentes que mais crescem no mundo e menos são
afetadas pelas crises produzidas pela especulação financeira
desregulamentada. Nestes países, entre os quais se encontra
felizmente o nosso, o Poder Político não está submetido ao Poder
Econômico. 

Na América do Norte e na Europa o peso do legado neoliberal


subordina o Poder Político à ideologia e aos interesses do Poder
Econômico. Daí resulta o marasmo econômico, a persistência do
desemprego em massa e da pobreza, com o aumento inegável da
desigualdade socioeconômica. Nos países do Primeiro Mundo, os
sacrifícios impostos à classe trabalhadora e, em especial, à juventude
estão suscitando o surgimento de uma nova esquerda, que
diferentemente da velha esquerda não pauta a conquista do poder
como ponto de partida para a reversão de uma situação
insuportável. 

A rebelião dos Indignados tem por alvo a restauração da


autenticidade democrática por meio da indispensável subordinação
dos interesses da minoria privilegiada à vontade da maioria. Para
tanto, ela terá de revelar os liames políticos e econômicos que
amarram os representantes eleitos ao Poder Econômico, que retira
sua força de uma globalização dominada pelo capital financeiro e que
impede que o Poder Político, limitado ao âmbito nacional, possa
cumprir suas plataformas eleitorais. 

Obviamente, para restaurar a autenticidade democrática e a


supremacia do Poder Político, será necessário desenvolver, ao lado do
capitalismo, uma economia em que o capital seja propriedade
coletiva dos trabalhadores que o utilizam, como sempre foi em toda
longa história da humanidade que precedeu a Revolução Industrial.
Esta “outra economia” já está sendo desenvolvida em numerosos
países e terá como resultado a diversificação do Poder Econômico,
tornando-o em boa parte afinado com as necessidades e desejos dos
que hoje são explorados e alienados.

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