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LAURINDA ABREU

PINA MANIQUE
UM REFORMADOR NO
PORTUGAL DAS LUZES
© Laurinda Abreu/Gradiva Publicações, S. A.

Revisão de texto Rui Augusto


Capa Armando Lopes (concepção gráfica)/© Direcção-Geral do Património Cultu-
ral/Arquivo de Documentação Fotográfica (DGPC/ADF), Museu Nacional do
Azulejo, Painel de azulejos (Grande Vista de Lisboa, pormenor do Paço da
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1.a edição Outubro de 2013


Depósito legal 365 312/2013
ISBN 978-989-616-552-9

Editor GUILHERME VALENTE

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Índice

Introdução .............................................................................. 9

1. As dinâmicas de reforma no século XVIII .............................. 19


1.1. Assistência e saúde ao tempo do Marquês de Pombal ..... 19
1.1.1. Pombal, a Misericórdia de Lisboa e o Hospital de Todos
os Santos ...................................................................... 28

1.2. Várias sugestões, um mesmo objectivo: «a caridade bem


ordenada» ............................................................................ 43
1.2.1. Confrarias da caridade e outras expressões de solida-
riedade .......................................................................... 48

1.3. As ideias que chegam do exterior ....................................... 58


1.3.1. O contributo de Ribeiro Sanches no campo da saúde
pública .......................................................................... 71
1.3.2. Teóricos da mudança e propostas de reforma das polí-
ticas sociais .................................................................. 88
6 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

2. A polícia em defesa da utilidade pública ............................. 107


2.1. Intendência da polícia ou intendência criminal? ............... 107
2.1.1. O Tribunal da Intendência Geral da Polícia? ................ 119
2.1.2. Utilidade pública: «desconhecida ou ignorada pelos por-
tugueses» ...................................................................... 131

2.2. Da Intendência Geral da Polícia à Casa Pia ..................... 141


2.3. Casa Pia: um projecto em evolução? ................................. 152
2.3.1. Da Casa Pia às Casas Pias .......................................... 162

2.4. As virtudes da reclusão, do trabalho e do estudo ............ 170


2.4.1. Mendigos e vagabundos ............................................... 177
2.4.2. Prostitutas e saúde pública .......................................... 182
2.4.2.1 Meretrizes, concubinas e outras mulheres na Casa
Pia ...................................................................... 186

2.4.3. Da prisão para a Casa Pia e dali para o mundo ........ 196

2.5. A Casa Pia e o desenvolvimento das manufacturas: a fan-


tasia de uma utopia ............................................................ 203
2.5.1. A formação profissional dos filhos dos pobres ........... 208
2.5.2. Um ensino organizado em «colégios» ......................... 216

2.6. A assistência domiciliária a partir da Casa Pia ................ 227


2.7. A questão dos expostos ...................................................... 239
2.7.1. A implementação do Aviso de 10 de Maio de 1783 .... 250
2.7.2. Amas-de-leite: um recurso escasso ............................... 268
2.7.3. Experiências de alimentação artificial ......................... 277

3. A saúde das populações como um assunto da governação ... 285


3.1. As múltiplas «atribuições» sanitárias da Intendência Geral
da Polícia ............................................................................ 285
3.2. «Epidemias de febres podres em gentes miseráveis» ......... 296
3.2.1. O último golpe na autoridade do provedor-mor da
Saúde ............................................................................ 308
ÍNDICE 7

3.3. A Junta do Protomedicato: uma sugestão da Intendência


Geral da Polícia? ................................................................ 318

3.3.1. O Protomedicato e a Universidade de Coimbra ......... 332


3.3.2. Uma instituição nova com uma agenda antiquada ..... 336

3.3.2.1. O Protomedicato como espaço de formação de


recursos de saúde .............................................. 344

3.3.3. A Farmacopeia Geral ou o caminho de Francisco Tava-


res em direcção ao Protomedicato ............................... 349
3.3.4. Um Tribunal com pouco poder ................................... 353
3.3.4.1. O canto do cisne ............................................... 362

3.3.5. A Intendência Geral da Polícia e a Casa Pia como espa-


ços de inovação na saúde ............................................ 370
3.3.5.1. Da inoculação da varíola à vacinação .............. 378

4. Qual o impacto de Pina Manique enquanto reformador social


e sanitário? ............................................................................. 389

4.1. Assistência e saúde nos alvores do liberalismo: os inquéri-


tos dos anos 20 ................................................................... 403

4.1.1. Misericórdias e seus «encargos pios» em 1821 e 1822 406


4.1.2. Os recursos assistenciais à luz do inquérito de 1827 .... 411
4.1.2.1. Um país sem hospitais? ..................................... 418
4.1.2.2. Rodas «atulhadas de expostos»: sinais de Pina
Manique ............................................................. 420

Conclusão ................................................................................... 429


Siglas das instituições e abreviaturas ........................................ 443
Fontes e bibliografia ................................................................... 445

Fontes manuscritas ................................................................ 447


Fontes impressas .................................................................... 453
Bibliografia ............................................................................. 465
Introdução

ste estudo surge no contexto da elaboração do livro

E O Poder e os Pobres: As dinâmicas políticas e sociais da


pobreza e da assistência em Portugal (sécs. XVI-XVIII)1,
tendo-se autonomizado devido à riqueza da informação encon-
trada no espólio documental da Intendência Geral da Polícia
relativo às políticas sociais e de saúde pública planeadas e
implementadas por Diogo Inácio de Pina Manique, no período
em que governou a instituição (1780-1805).
O conhecimento disponível nesta área levava a concluir que os
mecanismos de apoio social e de saúde desenhados ao longo do
século XVI tinham chegado ao início de Oitocentos sem inovação
nem mudanças substantivas, ao contrário do que acontecia além-
-fronteiras, onde as problemáticas da doença e da saúde ganha-
vam um dinamismo reforçado2. De acordo com esta tese, as
misericórdias configuravam-se como os principais centros forne-
cedores de recursos assistenciais e de saúde, sobretudo os minis-
trados nos seus hospitais, estes quase estagnados nas práticas
médicas e nos procedimentos administrativos e funcionais. Em

1
Laurinda Abreu (no prelo).
2
Ver as principais etapas do processo histórico em Didier Fassin, 1996, pp. 3-49.
10 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

termos globais, o sistema arrastava-se no meio de enormíssimas


dificuldades, sem conseguir responder às necessidades das popu-
lações, dominado pelas conveniências das elites locais, que as
colocavam, em muitos casos, acima das instituições que deviam
servir. Por outro lado, estudos mais recentes mostravam a forma-
ção de profissionais de saúde sujeita a uma poderosa teia de
interesses, pessoais ou corporativos, que opunham entre si a Univer-
sidade de Coimbra, o físico-mor e o Hospital de Todos os Santos3.
As propostas reformadoras formuladas por alguns iluministas,
entre os quais Luís António Verney e António Nunes Ribeiro
Sanches, herdeiros das reflexões médicas produzidas desde os
finais do século XVII4, permaneciam fora da prática política nacional.
Enquanto isso, a França, a Inglaterra e a Alemanha impunham-
-se como estandartes das novas políticas sociais e de saúde públi-
ca, desenvolvidas no pressuposto de que o nível de riqueza de um
país não dependia apenas do número dos seus habitantes mas
também do seu estado de saúde e de que havia todo um investi-
mento a fazer nessa área. Assumindo que a pobreza era o princi-
pal problema de saúde pública, geradora das péssimas condições
sanitárias que tanto afectavam os pobres, ou seja, a maioria da
população, as reformas surgiam moldadas pelas características e
singularidades dos espaços sociais e políticos onde eram aplica-
das e, naturalmente, pelo conhecimento médico que detinham5.

3
Cf. Laurinda Abreu, 2010a, pp. 97-122.
4
Cf. Bruno Barreiros, 2011, pp. 187-210. Conjuntamente com Jacob Morais
Sarmento, os dois produziram o que de mais inovador foi publicado nesta área, em
Portugal, até à década de 1760, princípio da de 1770. Um levantamento sobre o
que circulava em Portugal no século XVIII, sobretudo na primeira metade, pode
encontrar-se em Jean Luiz Neves Abreu, 2006. Veja-se também João Luís Lisboa,
1999, pp. 131-147.
5
Uma brevíssima mas eficiente abordagem ao conceito de saúde pública em
John Duffy, 1993, pp. 200-206.
INTRODUÇÃO 11

Num quadro de grande porosidade intelectual e contaminação


de ideias, a França do Iluminismo ganhava a dianteira e oferecia-
-se como exemplo a seguir. A partir da formulação galénica dos
elementos «não-naturais» — os seis factores externos que influen-
ciavam o bem-estar e a saúde dos indivíduos, que a Enciclopédia
discutia e difundia, nomeadamente através dos contributos de
Arnulfe d’Aumont —, as elites intelectuais que aspiravam a ter
protagonismo político alteravam o significado do conceito de
saúde6. Segundo Coleman, a doutrina dos não-naturais fornecia
aos iluministas um suporte coerente para as discussões sobre
saúde e higiene: o homem, como um ser racional, parte integran-
te do mundo natural, era capaz de determinar a sua existência em
função da instrução que possuía e do modo como a utilizava.
Nesta nova filosofia reconfigurava-se, igualmente, a concepção
de medicina, que se queria preventiva, baseada em princípios
científicos. «Medicina não é apenas a arte de curar doenças, é
também a arte de manter a boa saúde do homem, afastando as
doenças da idade e prolongando a vida», escrevia a Jean-Jacques
Rousseau, em 1763, Achille Le Bègue de Presle, doutor da Facul-
dade de Medicina de Paris7.
A medicina com carácter utilitário e prático, de base hipocrá-
tica, desenvolvida de acordo com a natureza, tornava-se o suporte
da ideologia do progresso e de uma vida saudável e feliz. E o que
até aí era um problema individual transformava-se numa realidade
social, socioeconomicamente delimitada. Ao tornar a saúde num
problema político, do domínio do Estado, abria-se caminho a um
profundíssimo movimento de medicalização da sociedade, sus-
tentado pelos «activistas terapêuticos». Posição que seria legiti-

6
Na expressão de William Coleman,1974, p. 399.
7
Cf. William Coleman, op. cit., pp. 400-401.
12 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

mada pelo processo legislativo da Revolução Francesa, que con-


cebia a saúde, segundo a lógica rousseauniana, como um direito
dos cidadãos, gerido pelo poder político.
Todavia, a França revolucionária rapidamente se mostraria
uma violenta utopia do ponto de vista do apoio social. O seu
ideário, ainda que com base jurídica, tornava-se mais filosófico
do que prático, até pela insustentabilidade económica de projectos
tão arrojados como os que começou por elaborar. Em nome da
garantia dos direitos naturais dos indivíduos e da igualdade no
acesso aos recursos de saúde e bem-estar, pré-condição para a
concretização do ideal do progresso da civilização, como Con-
dorcet e outros haviam teorizado, o Estado francês acabaria por
usar instrumentos de controlo não muito diferentes daqueles que
estavam a ser seguidos em outras geografias, como era o caso da
aristocrática e militarizada Alemanha8. Era lá que, no mesmo
contexto cronológico, o médico Johann Peter Frank estudava a
saúde e a doença no contexto das relações sociais.
Johann Peter Frank filiava-se na corrente do pensamento
económico designado por mercantilismo, ou por «cameralismo
na sua forma mais politicamente orientada, especificamente
alemã»9, e da reflexão em torno do conceito de polícia enquanto
«princípio da ordem social, normativa e performativa»10, que
enquadrava a administração, a execução das leis, a segurança
social e a tranquilidade pública, que tinha em Johannes Heinrich
Gottlob von Justi e Joseph von Sonnenfels os seus expoentes

8
Cf. Christian Hick, 2001, pp. 41-59.
9
Cf. George Rosen, 1974, p. 122.
10
Ainda que, em boa parte resultado de uma incorrecta tradução do alemão,
o termo acabasse por ficar vinculado e circunscrito a práticas contrárias ao exer-
cício da liberdade. Cf. Keith Tribe, 2010, pp. 101-102. Cf. Andre Wakefield, 2009.
INTRODUÇÃO 13

máximos11. A saúde como uma questão política, ou a responsa-


bilidade governamental pela saúde das populações, aprofundada
em obras de carácter médico desde o século XVII, evoluía em Sete-
centos para o conceito de polícia médica, que Johann Peter Frank
aprofundaria nos nove volumes do System einer vollständigen
medicinischen Polizey, começados a publicar em 177912.
Considerado o mais importante documento sobre saúde pública
produzido no século XVIII, o System einer vollständigen medici-
nischen Polizey proclamava que a segurança interna do Estado
era objecto da ciência geral da polícia e que uma parte conside-
rável dessa ciência implicava a aplicação de determinados prin-
cípios a favor da saúde das populações. A execução dessas polí-
ticas cabia à polícia médica, que pressupunha um específico
modelo de medicalização da sociedade, com medidas próprias de
saúde pública e de higiene, mas também «noções de poder pro-
fissional, controlo e regulação da educação médica»13. Nascida
no seio dos despotismos iluminados da Europa Central, a polícia
médica afirmava-se como uma nova prática governamental, auto-
ritária e paternalista, que acompanhava os indivíduos do berço à
sepultura. Distinto, pois, do que se passava em França, onde,
apesar de todos os constrangimentos financeiros, a medicina e os
seus agentes, como a Société Royale de Médecine, componentes
essenciais da ideologia triunfante e instrumentos do Estado para
a prossecução do ideal revolucionário, não abandonavam o seu
cariz social, substrato de um alargado programa de saúde pública
a partir das primeiras décadas de Oitocentos14.

11
Cf. George Rosen, 1974, pp. 120-141.
12
Cf. Johann Peter Frank, 1779. Foi utilizada a edição de 1976.
13
Idem, ibidem, pp. 32-34.
14
Cf. Ann F. La Berge, 1992.
14 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

Diferente era a doutrina que estava a ser seguida em Inglaterra,


que também não se compadecia com autoritarismos do tipo do da
polícia médica15. Além do mais, desde a revolução do século XVII
que a Inglaterra defendia princípios de economia política baseados
numa intervenção limitada das instituições governamentais nas
questões sociais, reservando-se, no entanto, o direito de garantir
o funcionamento do sistema, como era o caso das Leis dos Pobres
(Poor Laws), da inoculação da varíola e de muitas outras inova-
ções no campo da saúde. Gerações de economistas, formados na
ideologia do trabalho e nos valores da burguesia, proclamavam,
em Setecentos, a doutrina do laissez-faire, rejeitando a intervenção
social da Coroa por a considerarem perniciosa ao desenvolvimento
da sociedade e da economia. Ideias que o padre Malthus quantifi-
cava no An Essay on the Principle of Population, a que posterior-
mente os teóricos do evolucionismo social dariam lastro científico.
No contexto português, conhecidas que eram algumas propos-
tas reformistas, sobretudo as divulgadas pela imprensa periódica
e pela Academia das Ciências, que propugnavam pela moderni-
zação das políticas sociais, a abordagem à Intendência Geral da
Polícia fornecia a ocasião para verificar se se tinha passado das
ideias às concretizações. Dito de outro modo, estar-se-ia em pre-
sença de um verdadeiro movimento de reforma das políticas
assistenciais e de saúde pública, como apontavam os primeiros
contactos com o espólio da instituição? Em caso afirmativo,
espelhavam as ideias então em voga em cenários internacionais?
Que modelos teriam sido seguidos e quais teriam imperado? Que
a acção política do Iluminismo reformista português da segunda
metade do século XVIII reflectia múltiplas contribuições, combi-
nando a aritmética política com o pensamento mercantilista e

15
Cf. Brenda M. White, 1983, pp. 407-422; George Rosen, 1957, pp. 97-113.
INTRODUÇÃO 15

fisiocrata e com os princípios do cameralismo alemão, o que lhe


conferiu um carácter particularmente ecléctico16, já se sabia desde
os trabalhos, entre outros, de António Hespanha, José Subtil,
Nuno Gonçalo Monteiro, José Luís Cardoso e Alexandre Mendes
da Cunha. Teriam alguns desses pressupostos sido aplicados às
questões sociais e de saúde pública, como ocorria noutros espa-
ços europeus?
Das abordagens tradicionais, de Eduardo de Noronha, Augusto
da Silva Carvalho, Francisco Assis de Oliveira Martins e Albino
Lapa17, às leituras de Adérito Tavares e José dos Santos Pinto18
e análises académicas recentes, de Maria Alexandre Lousada,
Maria Margarida Biléu e Patrícia Félix19, a figura de Diogo Inácio
de Pina Manique tem sido alvo de um número considerável de
estudos, mas raramente enquanto proponente e executante de um
projecto de reforma social e de saúde pública, de âmbito nacional,
que visava desenvolver o país e romper com a inércia das instituições
e dos homens que as integravam, no espírito do Estado de Polícia20
que representava. É essa vertente da sua actividade que se propõe
desenvolver neste livro, numa perspectiva nunca antes ensaiada.
Para uma análise aos novos quadros programáticos e de acção
governativa, o trabalho foi organizado em três capítulos. O pri-
meiro analisa brevemente as medidas promulgadas por Sebastião
José de Carvalho e Melo, incidindo sobre as questões em análise,
sobretudo sobre a sua relação com as duas instituições onde

16
Cf. Alexandre Mendes da Cunha, 2010, pp. 1-11.
17
Cf. Eduardo de Noronha, 1923; Augusto da Silva Carvalho,1939; Albino
Lapa, 1942; Francisco de Assis de Oliveira Martins, 1966.
18
Cf. Adérito Tavares, José Santos Pinto, 1990.
19
Cf. Maria Margarida Biléu, 1995; Maria Alexandre Lousada, 1995; Patrícia
Félix, 1998.
20
Para uma análise do conceito, veja-se José Subtil, 2013, pp. 90-103.
16 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

efectivamente a intervenção governamental teve algum impacto —


a Misericórdia de Lisboa e o Hospital de Todos os Santos. Ver-
-se-á que a incapacidade de ambos, misericórdia e hospital, pre-
encherem as crescentes necessidades da população, já verificada
muito antes do terramoto de 1755, dava espaço ao aparecimento
de um novo movimento confraternal, apoiado pela Igreja, que
tentava readquirir o protagonismo perdido para as Misericórdias
em 1593. Em avaliação estará também a recepção das ideias
reformistas, que, com regularidade, chegavam do estrangeiro
através da imprensa periódica, traduções ou mesmo manuscritos
originais. No tempo em análise, Ribeiro Sanches foi, provavel-
mente, quem mais obras enviou, criteriosamente seleccionadas
entre as novidades editoriais adquiridas em Paris e em Londres.
Juntava-lhes textos da sua autoria, que advogavam um interven-
cionismo da Coroa nos sectores ligados à saúde e à assistência.
Será dada uma atenção particular a algumas das suas propostas,
porquanto, à medida que a investigação avançava, se tornava
claro que elas tinham sido matriz das reformas intentadas no
final do século. Será também Ribeiro Sanches que nos alertará
para a importância do pequeno grupo de homens que terá apoiado
Pina Manique permitindo-lhe uma acção fundamentada e infor-
mada nas múltiplas áreas em que tocou.
No segundo capítulo, o domínio é já de Pina Manique, a partir
das duas instituições que são centrais neste livro: a Intendência
Geral da Polícia, cujo governo efectivamente assumiu em Abril
de 1780, e a Casa Pia, criada no mês seguinte. São dois os propó-
sitos desta parte do trabalho, que dará especial ênfase às políticas
sociais. Por um lado, desvendar o significado que o novo
intendente atribuía ao conceito de polícia e o impacto que essa
percepção teve na forma como a Intendência Geral da Polícia se
posicionou no campo social. Como substrato, o Decreto de 15 de
INTRODUÇÃO 17

Janeiro de 1780, que introduziu profundas alterações no enqua-


dramento normativo da Intendência Geral da Polícia e nas fun-
ções do seu intendente, e o Alvará de Lei de 15 de Junho de 1780,
que teria atribuído a Pina Manique um poder quase discricio-
nário sempre que estivesse em causa a necessidade de proteger
os «fiéis vassalos de Sua Magestade». Por outro lado, procurar-
-se-á demonstrar a ligação e a complementaridade entre as duas
instituições, Intendência Geral da Polícia e Casa Pia, para o de-
senvolvimento de políticas sociais e de saúde pública. Sem olhar
às (in)capacidades financeiras do país e desvalorizando a falta de
apoio dos ministros do governo mariano, acompanhar-se-ão os
avanços, os recuos e as adaptações dos planos sociais a que suces-
sivamente o intendente deu forma. Na Casa Pia desvendar-se-á
uma gramática mais formadora que reformadora e todo um
universo de experiências multivariadas, que até agora tinham
escapado à análise histórica.
Sem abandonar completamente a Casa Pia, o terceiro capítulo
dará maior relevo à Intendência Geral da Polícia e ao seu
contributo para a reforma das políticas sanitárias e de saúde
pública. Examinar-se-ão ainda os poderes exercidos pelo
intendente, superiormente concedidos ou conquistados em nome
do cargo que desempenhava, no campo da formação de recursos
de saúde e da inovação médica. Aproveitando a debilidade da
Provedoria-Mor da Saúde e do recém-criado Protomedicato, e os
conflitos resultantes dos interesses que dominavam estes e outros
organismos com competências na área da saúde, acompanhar-
-se-á a Intendência Geral da Polícia na apropriação de jurisdições
que em muito extravasam o programa da instituição, como foi o
caso da realização de «experiências clínicas» e da implementação
de específicas terapêuticas médicas. A análise das respostas aos
inquéritos promovidos pela Coroa em 1821, 1822 e 1827 forne-
18 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

cerá os argumentos para uma avaliação retrospectiva do alcance


das políticas sociais de Pina Manique.
Como fica implícito, este livro não é uma biografia de Pina
Manique21 mas uma análise histórica de um período único em
termos de políticas sociais, sanitárias e de saúde pública, ancora-
da numa sólida base documental e guiada pelos modelos euro-
peus que o influenciaram. Não tem qualquer pretensão de esgo-
tar nenhum dos temas abordados, o que, de resto, seria difícil
dada a multiplicidade das áreas em presença, que ficam a aguar-
dar estudos individualizados. Antes, assume como principal
objectivo o desejo de estimular novos trabalhos, para além dos
que já estão em curso22, que utilizem os instrumentos das moder-
nas correntes historiográficas e se libertem dos espartilhos ideo-
lógicos e das ideias pré-concebidas, comummente associadas à
acção deste intendente geral da Polícia.
Como inicialmente referido, este é um livro que tem uma história
partilhada com outro. Ao longo de vários anos fizeram parte do
meu quotidiano e das pessoas que, por razões familiares, de amizade
ou profissionais, se viram envolvidas neste projecto e me apoiaram
incondicionalmente. A todos renovo a minha gratidão. Com um
profundo reconhecimento à FCT, que tem dado um inestimável
apoio financeiro à investigação nas áreas aqui tratadas. Neste âmbito,
e no contexto específico deste livro, devo uma palavra de agradeci-
mento muito especial à Luísa Gama, ao Luís Gonçalves e à Alexan-
dra Marques. E ainda ao José Subtil, pela estimulante troca de
ideias e sugestões apresentadas ao longo da leitura do manuscrito.

21
Veja-se, a propósito, a biografia elabora por José Norton, 2004.
22
No âmbito de duas teses de doutoramento, financiadas pela FCT, de Cristela
Marques de Monserrate, Casa Pia de Lisboa (1780-1834): inovação e tradição nas
políticas assistenciais e de controlo social em Portugal, e de Luísa Gama, Crime,
Criminosos e Justiça Régia em Portugal nos Finais do Antigo Regime.
Conclusão

ortugal atravessou boa parte de Setecentos sem proceder

P a alterações relevantes no campo da assistência e da saúde.


Em termos institucionais, o país deixava-se atrasar nas trans-
formações que se sabia serem necessárias. Na primeira metade do
século assistiu-se a um reforço das práticas caritativas formais
através de confrarias que defendiam uma maior proximidade entre
doadores e beneficiários, um misto de um associativismo já de
cariz filantrópico e de manifestações de pendor mais tradicional.
A forte componente do auxílio na doença apresentada pelas
Confrarias da Caridade revela, entre outros sinais, as limitações
da assistência que se praticava em contexto hospitalar. Em caso
algum aquelas novas instituições procuravam reformar os meca-
nismos de assistência, apenas distribuir recursos em função de
critérios de maior rigor, premiando os pobres residentes e social-
mente integrados.
Contudo, o país conhecia as reformas que estavam a acontecer
um pouco por toda a Europa e recebia com alguma regularidade
propostas adaptadas à situação nacional, mas o poder político
tardava a implementá-las. De entre todos aqueles que quiseram
contribuir para a mudança, o destaque deve colocar-se em Ribeiro
Sanches. Não tanto pelo livro que lhe deu maior reputação, o
430 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

Tratado da Conservação da Saúde dos Povos, mas sobretudo


pelos escritos posteriores, que visaram a reforma da universidade,
do ensino da Medicina e da formação dos empíricos na área da
saúde. Por estes textos perpassa, com extrema crueza, um país
ignorante, parado no tempo, onde os cargos mais importantes
eram ocupados em função do prestígio social ou de ligações
clientelares, e não do conhecimento, experiência e qualidades
profissionais. Foi uma revolução de mentalidades e de práticas o
que Ribeiro Sanches propôs, com base no princípio de que a
conservação da saúde das populações era uma obrigação régia.
Os ventos reformistas do pombalismo só muito tangencialmente
tocaram a assistência e a saúde. Reformas esporádicas em alguns
grandes hospitais e um maior intervencionismo da Coroa nas
misericórdias, sobretudo no Hospital de Todos os Santos e na
Misericórdia de Lisboa, não configuraram qualquer programa
de mudança estrutural. Nem mesmo em relação à mendicidade,
um assunto bastante discutido, e que concitava acordo entre os
críticos sociais, por muitos considerada responsável pelo atraso
em que se encontravam a economia e a sociedade. Entre os dife-
rentes autores predominava a aposta no controlo dos mendi-
gos e dos vagabundos, continuando um discurso centenário, sem
verdadeiras soluções para o problema da pobreza. De resto, o
apelo às doações pias mantinha-se elevado, reconhecendo a socie-
dade, por um lado, a sua importância como forma de coesão
social, e, por outro, como um meio de financiamento do sistema
assistencial.
Foi, no entanto, o governo josefino que fundou, em 1760, a
instituição que no final do século procurou recriar os mecanis-
mos de assistência e de saúde pública: a Intendência Geral da
Polícia. Pouco inovadora nos pressupostos, a Intendência, reves-
tida da roupagem narrativa da sua congénere francesa, limitou-
CONCLUSÃO 431

-se, nos primeiros 20 anos de existência, a centralizar num único


organismo, debaixo de uma única autoridade, funções que antes
andavam dispersas. Salvo surjam núcleos documentais até agora
desconhecidos que revelem uma realidade de sentido contrário,
todos os elementos disponíveis mostram uma instituição que se
esgotava em actividades de vigilância, policiamento e repressão.
Foi já no reinado de D. Maria I, com a nomeação de Diogo
Inácio de Pina Manique como intendente geral da Polícia, que o
conceito de polícia se alargou no sentido que ao tempo lhe davam
as «nações civilizadas». Permanecendo como um instrumento po-
lítico responsável pelo respeito pela lei e manutenção da ordem
social, de acordo com os princípios do Estado Polícia, verificou-
se que Pina Manique transportou a Intendência Geral da Polícia
para áreas onde antes só pontualmente tinha intervindo, e mesmo
assim de forma indirecta e marginal. A discussão que o intendente
protagonizou com José de Seabra da Silva, explicando-lhe a dife-
rença entre uma polícia criminal e aquilo que era expectável da
entidade que tutelava, é absolutamente elucidativa da mudança
de rumo da Intendência Geral da Polícia depois de 1780 e mostra
que o determinado no decreto de 15 de Janeiro desse mesmo ano,
três dias antes da nomeação do novo intendente, estava, de facto,
a ser implementado. Foi neste enquadramento que nasceu a Casa
Pia, um mês depois de Pina Manique efectivamente ter assumido
o cargo de intendente. Organizadas para trabalharem em articu-
lação, Intendência Geral da Polícia e a Casa Pia complementavam-
-se para a execução de um alargado plano social e de saúde
pública. Prestadora de serviços muito variados, que podiam ser
desenvolvidos em conjunto potenciando os efeitos desejados, a
Casa Pia acrescentou à Intendência Geral da Polícia espaço de
intervenção social, permitindo à Coroa fortalecer a sua autorida-
de na área.
432 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

A chegada de Pina Manique à Intendência Geral da Polícia


aconteceu num momento particularmente activo do ponto de vista
intelectual. A Academia das Ciências, o Jornal Encyclopedico, a
renovada Gazeta de Lisboa, a Casa Literária do Arco do Cego,
incitavam o debate de ideias nas questões em análise. A interacção
entre os diferentes agentes foi determinante para a mobilização
das elites: o mercado editorial, alimentado pelas traduções, trazia
a Portugal um conjunto variado de obras, algumas delas bastante
recentes, relatando experiências médicas e sociais, discutindo
os seus resultados e, da lavra dos tradutores, possíveis aplicações
à realidade nacional. A imprensa periódica lia-as — não era
incomum os responsáveis pela imprensa serem também tra-
dutores —, divulgava-as, organizava o saber e orientava a dis-
cussão, procurando dar utilidade à ciência, aplicando-a ao
desenvolvimento do país, iniciando o debate e trabalhando na
construção de opinião pública, preparando o terreno para expe-
riências similares. Pina Manique participou nesse movimento,
sobretudo através da Gazeta de Lisboa, que usou como meio de
propaganda, mas também patrocinando algumas traduções e
mesmo a produção de obras originais, eventualmente sugerindo
outras, talvez mesmo à Casa Literária do Arco do Cego, dada a
proximidade com o seu editor, frei José Mariano da Conceição
Veloso.
Seguindo os seus congéneres, Pina Manique abordou as ques-
tões sociais e de saúde pública à luz do conhecimento e dos
valores do Iluminismo, que assumiam uma estreita relação entre
a saúde pública, a reforma da sociedade e o progresso civiliza-
cional1173. Como pressuposto de actuação, a ideia de que cabia à

1173
Nos mesmíssimos termos em que Ann F. La Berge os coloca em Mission and
Method..., pp. 11-22.
CONCLUSÃO 433

Coroa a responsabilidade pela protecção da saúde dos seus


súbditos, o único regulador da vida em sociedade, nas suas
múltiplas vertentes, assente em princípios de racionalidade, que
faziam repartir os bens disponíveis de modo diferenciado, con-
forme as necessidades de cada grupo. Pina Manique pretendeu
igualmente, consonante a filosofia dos reformadores sociais do
seu tempo, contribuir para a auto-suficiência dos pobres, preve-
nindo a miséria e com ela os problemas de saúde pública. Deu à
Intendência Geral da Polícia uma inegável componente distributiva
de variadíssimos recursos, obviamente a partir de critérios esta-
belecidos pelo próprio, mas que cortaram com as tradicionais
lógicas de reprodução dos grupos sociais, neste caso, dos pobres,
procurando formatar uma sociedade que se queria capaz de
reproduzir o que recebia. E, sem surpresas, preocupou-se com a
ancestral falta de população, o que, à partida, limitava todas e
quaisquer políticas de desenvolvimento do país e o fortalecimento
do Estado. Sem possibilidade de intervir nas misericórdias e nos
hospitais, apostou na protecção da vida das crianças abandona-
das, dando, neste último caso, um novo fôlego às medidas promul-
gadas nas Ordenações, mas também na formação escolar e pro-
fissional dos jovens.
Nas questões em análise neste livro, Pina Manique revelou-se,
acima de tudo, um homem de acção, não um teórico social.
Abordar a sua actuação nas questões sociais e de saúde pública,
foi entrar num turbilhão de intervenções, em múltiplos campos e
quase em simultâneo, num autêntico frenesim, que parece não ter
deixado de fora nenhum agente de autoridade ou funcionário da
administração central. Deste seu labor resultaram muitos milha-
res de testemunhos documentais, uma quase obsessão para o
intendente geral da Polícia, que não prescindia do registo escrito
para futura memória e maior controlo dos processos e dos seus
434 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

executantes. No campo social, moveu-o o princípio de que as


comunidades deviam ser responsáveis pelos seus elementos mais
vulneráveis, e por essa razão quis fundar casas pias em todas as
províncias do país, o que transportava um implícito plano de
reduzir as misericórdias à assistência hospitalar. O apelo cons-
tante aos párocos para que participassem nos novos modelos
assistenciais que estavam a ser seguidos por toda a Europa,
nomeadamente em Espanha, e ajudassem a identificar os neces-
sitados e a recolher as esmolas, mas deixando à Intendência Geral
da Polícia a sua repartição, em função de um programa de tra-
balho ajustado às capacidades individuais dos assistidos, mostra-
ram-no consciente de que não seria possível reformar o sector
sem a participação da Igreja.
Na Casa Pia, o ensino e o treino profissional caminharam
desde o primeiro momento ao lado das funções reformadoras e
de controlo social. Com o propósito maior de aumentar a produ-
tividade do país e os seus efectivos populacionais, Pina Manique
preferia institucionalizações curtas a prolongadas e instigava o
casamento dos residentes a troco da liberdade. Na altura de distri-
buir dotes, escolhia as órfãs envolvidas nos programas manufac-
tureiros. Intentou transformar a Casa Pia e os seus colégios num
gigantesco centro de formação de recursos humanos, destinados
a servir o país. Ali, como no seu exterior, ganhava forma uma
visão da pobreza cada vez menos presa a ditames paternalistas e
moralizadores.
A ligação dos problemas de saúde pública à miséria das popu-
lações foi, porventura, uma das maiores novidades da actuação
de Pina Manique. Assumindo a saúde pública como uma ques-
tão de Estado, desenvolveu pela primeira vez no país um programa
de assistência às populações afectadas quando as «febres podres»
se tornavam epidémicas. Identificada a situação, partia da Casa
CONCLUSÃO 435

Pia uma panóplia de recursos, materiais e profissionais, destinados


a apoiar as populações atingidas, mas também a agir sobre o foco
do problema, numa abordagem, como seria de esperar, de natureza
miasmática. Como os historiadores têm vindo a destacar, é durante
as epidemias que melhor se revela o estado de saúde das popula-
ções e a qualidade das infra-estruturas sanitárias. Nas deslocações
às comunidades flageladas, Pina Manique identificou um país
paupérrimo, sem as mínimas condições de higiene, preso a crendi-
ces e a tradições resistentes às novas orientações de um Governo
que pretendia actuar sobre o ambiente e o modo de vida das
populações. Os cenários eram muito próximos daqueles que, ao
mesmo tempo, Johann Peter Frank intervencionava em Itália e o
modo de proceder de Pina Manique semelhante ao do médico
germânico. Explorando as fragilidades do provedor-mor da Saúde
e da novíssima Junta do Protomedicato, a Intendência Geral da
Polícia quis pôr em acção princípios do sanitarismo ilustrado, de
pendor sociodemográfico, acompanhados de projectos de moder-
nização de vários elementos que influenciavam a saúde pública,
como era a formação de recursos humanos no campo «médico».
As múltiplas notícias encontradas na imprensa periódica rela-
tando partos complexos e o modo como tinham sido resolvidos
integram-se neste mesmo movimento, que obedecia aos objectivos
formativos e pedagógicos que acompanhavam as acções da Inten-
dência Geral da Polícia. Em determinados momentos, a Gazeta
de Lisboa chegou mesmo a dar um ar messiânico ao intendente,
um homem «que espia todas as occasiões de ser útil à humani-
dade». Um argumento forte, usado sobretudo quando havia neces-
sidade de explicar intervenções da Intendência pouco respeitadoras
dos privilégios e dos direitos considerados adquiridos. Todos os
meios eram importantes para ajudar a prevenir ou evitar a morte,
e a rapidez da acção era um factor determinante do sucesso. O que
436 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

não se compadecia, na perspectiva do intendente, com os trâmi-


tes processuais da administração e menos ainda com as sujeições
hierárquicas. Nesta área, mais do que em outras, Pina Manique
agia sob a pressão do tempo, como se ele lhe fugisse. Quando os
organismos competentes não cumpriam o que deles se esperava,
impunha a sua presença, mostrava trabalho feito e publicitava-o,
o que também não deixava de ser uma forma de pressão sobre as
instituições, compelindo-as a reagir. A criação da Junta do Proto-
medicato bem pode ser explicada neste sentido: com as funções
do físico-mor e do cirurgião-mor tolhidas pelos Estatutos da Uni-
versidade de Coimbra, de 1772, que demoravam a implementar
as competências que o poder político lhe tinha atribuído, Pina
Manique antecipou-se e propôs uma comissão reguladora, sob a
tutela da Intendência Geral da Polícia. Não foi essa a opção da
Coroa, que, no entanto, não foi capaz de criar um organismo
com autoridade suficiente para se afirmar no terreno. Sob uma
enorme conflitualidade interna, demasiado embrenhado nos seus
próprios problemas e cerceado por constrangimentos jurisdicio-
nais, o Protomedicato permitiu que a Intendência Geral da Polícia
continuasse a actuar como bem parecia a Pina Manique. O pro-
vedor-mor da Saúde conhecia bem a situação. Usando a capaci-
dade logística da instituição que governava para identificar os
problemas sanitários e a sua autoridade policial para fiscalizar e
prender, Pina Manique impôs a Intendência Geral da Polícia como
uma espécie de parceiro informal (e forçado) do Protomedicato,
o que eventualmente lhe terá provocado problemas acrescidos.
No balanço geral dos 25 anos em que, com o apoio da Inten-
dência Geral da Polícia, Pina Manique desenvolveu o seu progra-
ma social a partir da Casa Pia, constatou-se a pouca ou nenhuma
colaboração, do poder político e dos seus diferentes agentes. Os
mesmos que em mais do que um momento impeliram a Intendên-
CONCLUSÃO 437

cia Geral da Polícia e a Casa Pia para o desempenho de papéis


que não foram directamente procurados pelo intendente. Estive-
ram neste caso os decorrentes da alteração da legislação matrimo-
nial e penal, responsáveis pela sobrelotação das Casas do Castelo
de São Jorge.
São várias as razões que podem explicar a falta de suporte
político e financeiro à Intendência Geral da Polícia/Casa Pia, mas
não foi propósito deste livro desenvolver essas questões. Em ter-
mos mais gerais, sabe-se que a conjuntura política, económica e
militar dos finais de Setecentos, início de Oitocentos, acabou por
acentuar todas as debilidades de um projecto demasiado centrado
num protagonista, apesar dos homens de que se rodeou. Acres-
cem a isso todos os problemas decorrentes do modo de governo
de Pina Manique: ignorando as dinâmicas políticas da Corte,
ousou ultrapassar os limites da sua autoridade, apesar de perma-
nentemente ser confrontado com eles. Além do mais, os secretá-
rios de Estado conviviam mal com as múltiplas dimensões do
poder acumuladas na Intendência Geral da Polícia, enquanto as
entidades a quem retirara competências não perdiam oportuni-
dade de bloquear as decisões do intendente, quer pelos meios
formais, quer pela denúncia anónima ou até pela ridicularização
pública. O pragmatismo que Pina Manique imprimiu à sua actua-
ção foi essencialmente voluntarista, escudado nos vários cargos
que ocupava, o que lhe permitia potenciar o seu poder, como se
assim quisesse compensar o apoio que lhe faltava. Subestimou
todos e acabou por falhar vários dos objectivos sociais a que se
tinha proposto, como reconhecia poucos dias antes de morrer.
Esbarrou com uma cultura política difusa, caracterizada por uma
muito alargada natureza das estruturas de poder, que fazia par-
ticipar nos processos decisórios várias instituições, funcionários e
até indivíduos de diversos níveis sociais, geograficamente muito
438 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

dispersos. O problema não era exclusivamente nacional1174, mas


a ausência de uma burocracia organizada, apesar da natureza
relativamente centralizada do poder, em nada facilitou a execução
dos seus projectos. Importa também ter presente a forte repre-
sentatividade das correntes liberais na administração que servia,
cujos princípios humanitários e filantrópicos se estribavam em
paradigmas diversos daqueles que Pina Manique acreditava e
praticava, que eram os da França pré-revolucionária e da Alema-
nha absolutista. Pina Manique trabalhava de acordo com o orde-
namento político pombalino, num governo onde outros valores
políticos emergiam, mas sem apresentar soluções alternativas para
os problemas sociais. Em Portugal, o debate público sobre estas
questões não foi acompanhado, nessa altura, por qualquer discus-
são política, e até D. Rodrigo de Sousa Coutinho, autor do revolu-
cionário Discurso contra a mendicidade, dos tempos de Turim,
parece tê-lo esquecido à entrada no governo do príncipe regente.
Faltou igualmente ao intendente geral da Polícia o apoio neces-
sário para chegar com eficácia às populações. À imagem de Turgot,
Bertin, Malesherbes e Du Pont, também Pina Manique não acei-
tava que os corpos intermediários tivessem um poder autónomo
ou partilhassem autoridade. Corregedores, provedores de comarca
e juízes de fora eram abordados de forma autoritária, quando
não mesmo ditatorial, e não apenas para a causa dos expostos.
Eram os mais directos interlocutores do intendente, que os assu-
miu exclusivamente como subalternos, de preferência submissos,
o que à partida não facilitava o cumprimento das suas ordens. A
falta de motivação e de envolvimento dos homens do poder local
foi outro dos escolhos que teve de enfrentar. Na questão das
crianças abandonadas como em todas as outras relacionadas com

1174
Ver o caso descrito por Steve Hindle, 1998, pp. 67-96.
CONCLUSÃO 439

o universo social e de saúde pública, Pina Manique procurou


reformar sem os cativar, nem sequer os consultar, simplesmente
impondo-lhes as suas decisões. Representantes do poder central
colocados na periferia e homens do poder local foram tratados
como subordinados, sem espaço para a negociação ou para o
diálogo, não surpreendendo, pois, que se aliassem contra as or-
dens do intendente.
O projecto de um país próspero, saudável, educado, informado,
limpo, trabalhador, menos propenso ao vício e à imoralidade,
onde as massas seriam obedientes e os grupos superiores mais
solidários, quanto mais não fosse pelo exercício das suas respon-
sabilidades públicas, rapidamente se mostrou uma imensa utopia.
As comunidades locais possuíam dinâmicas próprias, reagiam
quando tinham algo a ganhar e não estavam dispostas a perder
direitos adquiridos, e Pina Manique terá demorado a entendê-lo.
Parece, de resto, que o sucesso das Rodas, nos termos em que é
apresentado no inquérito de 1827, se explicará precisamente por
esta razão: ainda que por motivos diferenciados, e, eventualmente,
nem sempre os mais humanitários, as populações tinham interesse
na existência de locais onde pudessem abandonar as suas crianças,
malgrado o pesadíssimo encargo económico que representavam
para as finanças locais.
Fora do espectro político, mas centrais para a execução das
políticas que foram apresentadas, estavam os médicos. Pina Mani-
que só tinha a ganhar em tê-los do seu lado, até porque o seu
saber científico era fundamental para a legitimação de muitas
acções da Intendência Geral da Polícia. Contudo, ao reduzi-los à
condição de oficiais públicos, obrigando-os a cumprir ordens sem
lhes dar nada em troca, instalou um clima de conflitualidade que
marcou todo o seu governo. Sustentava o intendente que a profis-
são que exerciam lhes dava responsabilidades sociais acrescidas
440 PINA MANIQUE: UM REFORMADOR NO PORTUGAL DAS LUZES

e que não deviam procurar maior recompensa que a do serviço


público. Ainda que sem quaisquer argumentos que o comprove,
talvez se encontre aqui parte da explicação para o não envolvi-
mento dos médicos em propostas institucionais de reforma das
condições assistenciais, como as que estavam a acontecer um
pouco por toda a Europa. Em França, por exemplo, tanto antes
como depois da Revolução, a estreita ligação dos médicos ao
poder político deu-se com a reforma dos hospitais, num processo
que foi capitalizado por ambos, Estado e médicos. Reconhecida
a importância dos hospitais enquanto estruturas de apoio social
e da prática médica, eles foram colocados no centro da discussão,
ligando a política e a medicina no pressuposto de que o desenvol-
vimento desta era uma das chaves para a erradicação da pobreza,
e guindando os médicos para os centros de poder decisório.
Não era menor a importância dos hospitais em Portugal, mas
nem por isso foi detectada uma intervenção médica consistente
junto ao poder político. Em muitos casos, o cenário hospitalar
português patenteado nas respostas ao inquérito de 1827 reve-
lava mais pontos de contacto com o quadro medieval do que
com a clínica que nascia além-fronteiras. Foi este mesmo inqué-
rito que revelou a permanência de um sistema dependente das
misericórdias, também elas pouco abertas à mudança, até porque
as dificuldades financeiras não lhes davam grande espaço de
manobra. As de pequena dimensão, a maioria, cingia-se à distri-
buição de esmolas, assente nos parâmetros que tanto tinham
sido criticados pelos reformadores setecentistas. O capital social
proveniente da actividade esmolar, colhido pelos novos grupos
que estavam a chegar às Santas Casas, não é, no entanto, um
dado a menosprezar.
Em síntese, Pina Manique foi um homem que escolheu mudar
Portugal a partir dos modelos que lhe estavam mais próximos,
CONCLUSÃO 441

enquadrado numa filosofia política e económica de cariz


mercantilista e populacionista. Com a urgência de quem sabia
que o tempo lhe faltava — como o provam as várias referências
que faz ao seu débil estado de saúde —, o intendente não actuou
em função de um plano da Coroa para a área social, antes cons-
truiu um projecto social para o Governo. Mas como mudar rapida-
mente um país onde as elites continuavam à margem da tributa-
ção, o poder político mostrava ter outras prioridades orçamentais,
os novos grupos sociais que chegavam à administração das mise-
ricórdias lutavam para manter as prerrogativas dos antecessores,
um país onde o trabalho penalizava socialmente e a mendicidade
e a vagabundagem eram modos de vida de generalizada aceitação?
Chegando aqui, torna-se irresistível uma questão meramente retó-
rica e sem qualquer validade analítica: teria Pina Manique tido
maior sucesso se tivesse sido D. José I e não a sua filha a nomeá-
-lo intendente geral da Polícia?

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