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1. Notas Introdutórias.
O presente ensaio tem como foco, por meio das lentes do sistema constitucional
pátrio, avaliar o amparo jurídico concedido à liberdade de orientação e identidade sexual
pelos princípios insculpidos na Carta Constitucional de 1988.
O tema mostra-se bastante intricado vez que, em que pese a interpretação decorrente
da axiologia e principiologia constitucionais eleitas, para além da presença de cláusulas gerais
de igualdade, a Constituição Brasileira não faz referência explícita à questão da orientação
sexual.
1
PIOVESAN, Flávia; RIOS, Roger Raupp. A Discriminação por orientação sexual. In: CONSELHO DA
JUSTIÇA FEDERAL. Cadernos do CEF. Volume 24. p. 155.
2
“Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os
direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez nem de uma vez por todas.” In: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de
Janeiro: Campus, 1993. p. 5.
3
Expressão utilizada pela Corte Europeia de Direitos Humanos no leading case: “The Court must also recall that
the Convention is a living instrument which, as the Commission rightly stressed, must be interpreted in the light
of present-day conditions. In the case now before it the Court cannot but be influenced by the developments and
commonly accepted standards in the penal policy of the member States of the Council of Europe in this field.”
In: CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Tyrer v. UK. Application no. 5856/72. Julgado em
25 Abril de 1978.
3
a União Estável – para as uniões homoafetivas4. Partindo-se das mesmas balizas de raciocínio,
o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) concedeu aos relacionamentos homoafetivos os mesmos
direitos decorrentes da união estável, inclusive a facilitação da conversão da união estável em
casamento, determinada pelo comando constitucional do art. 2265.
À luz desses pressupostos, o presente artigo tem como objetivo a análise dos
princípios constitucionais protetivos da liberdade de orientação e identidade sexuais,
formando, verdadeiro direito homoafetivo a garantir a todos – independente de suas práticas
sexuais e afetivas – “o direito a ter direitos” 6.
Importa ressaltar que as recentes decisões das mais altas Cortes de Justiça brasileiras
apenas foram possíveis à luz da refundação da proteção dos direitos fundamentais operada
pela Constituição de 1988. Fosse outra a moldura, a fotografia não caberia!
Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito
a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. As pessoas querem ser
iguais, mas querem respeitadas suas diferenças. Ou seja, querem participar, mas
querem também que suas diferenças sejam reconhecidas e respeitadas.7
4
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
5
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
6
“A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da
procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião — fórmulas que se destinavam a
resolver problemas dentro de certas comunidades — mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade.
Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis
para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para
oprimi-los.” In: ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras: p. 1989. p. 293.
7
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos In: _____ (org) .
Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003. p. 458.
4
11
Expressão cunhada por: JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000.
12
Designação de autoria de: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
13
ALEXY, Robert. Teoría de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés (trad.). Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
6
14
MIRANDA, Jorge. Apud: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 82.
15
Nas palavras de José Afonso da Silva este princípio “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”. In:
SILVA, José Afonso da. A dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. In: Revista de
Direito Administrativo nº 212, 1998. p. 93-107.
16
Importante ressalva levantada pelo Professor Ingo Sarlet ao ponderar que “a tese de acordo com a qual a
dignidade da pessoa humana não se identifica (não se confunde), pelo menos não necessariamente, com o núcleo
essencial dos direitos fundamentais tem prevalecido e é também por nós acolhida, seja pelo fato de estarmos
convencidos que nem todos os direitos fundamentais possuem um conteúdo em dignidade, mas todos possuem
um núcleo essencial (já que é vedada sua abolição), seja pela circunstância de que – na esteira do que sustenta a
doutrina majoritária – tal garantia restaria esvaziada em se aceitando uma identidade absoluta com o conteúdo
em dignidade. Neste contexto, cumpre lembrar que, muito embora, não tenhamos na constituição de 1988, uma
garantia expressa da proteção do núcleo essencial contra restrições legislativas, doutrina e jurisprudência tem
reconhecido tal garantia, que, de resto, decorre da violação expressa da abolição efetiva e tendencial dos direitos
fundamentais pelo poder de reforma constitucional.” Entretanto, arremata: “De qualquer modo, entendemos ser
possível, no mínimo, sustentar o ponto de vista de acordo com o qual os direitos humanos fundamentais
correspondem a explicitações, em maior ou menor grau, do princípio da dignidade da pessoa humana.”
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de
1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 177 e 115, respectivamente.
7
Em face do papel nodal que as decisões possuem acerca do tema eleito, o artigo, para
além das balizas teórico-normativas, buscou privilegiar o estudo de casos concretos sobre a
temática. Isso porque a análise de casos cumpre duplo papel: em primeiro plano, evidenciar a
indissociabilidade da teoria e da prática na seara dos direitos humanos; em segundo plano,
realçar a relevância do método tópico20 na investigação da pesquisa científica.
17
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal
de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 107.
18
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
20
“A Constituição com a metodologia tópica perde, até certo ponto, aquele caráter reverencial que o formalismo
clássico lhe conferira. A tópica abre tantas janelas para a realidade circunjacente que o aspecto material da
Constituição, tornando-se, quer se queira quer não, o elemento predominante, tende a absorver por inteiro o
8
O Relator das ações, Ministro Ayres Britto, votou no sentido de dar provimento ao
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, na forma de
união estável, já que, segundo seu voto, não o fazê-lo seria discriminação constitucionalmente
vedada posto que, neste caso, a preferência sexual não é apta a tratamentos jurídicos díspares.
Assim o fez em voto ementado abaixo seguido por unanimidade:
aspecto formal.” In: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 452-
453.
21
A ADIn nº 4277 foi inicialmente ajuizada no STF pela Procuradoria Geral de Justiça como ADPF 178. Nesta
lide buscava-se o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, estendendo o
mesmo tratamento nas uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
22
A ADPF nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de Janeiro demandava perante o STF a
aplicação do regime jurídico das uniões estáveis às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de
Janeiro, sob o pálio que sua negativa de transposição contraria preceitos constitucionais fundamentais.
9
reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de
entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do
reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6.
INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE
COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO
CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO
FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação
em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não
resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de
“interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser
feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável
heteroafetiva.23
Nos termos do voto condutor, reside na dignidade humana a “base jurídica para a
construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e
inegável” 25 a todos os seres. Nota-se, portanto, clara imbricação entre o princípio alicerce da
dignidade da pessoa humana e a faculdade de livre desenvolvimento das potencialidades da
personalidade individual, o que per se engloba o direito à autodeterminação sexual e seu
consequente respeito.
23
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
24
MOTA PINTO, Paulo. Notas sobre o Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade no Direito
Português. p. 151 e 152. In: SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição Concretizada. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000.
25
FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. P. 95.
11
É justamente neste influxo que, por meio das lentes constitucionais da liberdade e
igualdade, decorrentes do princípio-fundamento, prossegue o voto entoando que a
Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo porque não há
apenas um conceito de entidade familiar albergado na ordem constitucional.
Foi, portanto, com base neste arcabouço, que o Supremo Tribunal Federal, ainda que
divergindo parcialmente sobre a fundamentação do enquadramento da união homoafetiva na
espécie de união estável constitucionalmente estabelecida, emoldurou, com efeitos erga
omnes próprio da jurisdição concentrada de controle de constitucionalidade, o retrato da
homoafetividade na galeria das famílias jurídicas pátrias.
26
HESSE, Konrad. Apud: SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição Concretizada: construindo pontes entre o
público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 119.
27
Referência ao conto de Franz Kafka intitulado Diante da Lei.
28
FACHIN, Rosana. Em busca da família do novo milênio. Uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as
perspectivas do Direito de Família contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 7.
12
Não restou muito tempo, o Superior Tribunal de Justiça deu o passo adiante
decorrente da decisão acima exposta do STF. Tendo em vista que o próprio artigo 226 da
Constituição Federal, em seu parágrafo 3º dispõe que a lei deve promover a facilitação da
conversão da união estável em casamento, partindo do paradigma fixado na ADPF nº 132 e
ADIN nº 4277, não restou outra saída ao STF senão o reconhecimento da facilitação também
da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento.
Em outubro de 2011, a Quarta Turma do STJ, por maioria, deu provimento a recurso
de duas mulheres que pediam para ser habilitadas ao casamento civil. A vinculação com a
decisão do Pretório Excelso restou clara nas palavras do Relator Ministro Luis Felipe
Salomão:
Por consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), para conceder aos pares homoafetivos os direitos
decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do
casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a
facilitação da conversão da união estável em casamento.
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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
14
Eis o novo colorido que se somou as imagens da família brasileira por meio da
postura ativa e consciente da atuação jurisdicional que tem como baldrame a ordem
jusfundamental de proteção dos seres humanos insculpida no texto constitucional brasileiro.
Ainda que com certo atraso, foi nesse diapasão, que em 2011, as Cortes Superiores
pátrias consolidaram em sua jurisprudência a necessidade de, parafraseando Dworkin acima já
citado, levar os direitos homoafetivos a sério alçando-lhes tratamento constitucional condigno
e isonômico. Reitere-se que este passo apenas foi possível na trilha previamente iluminada
pela ótica constitucional, sobretudo, com as luzes do princípio da dignidade humana.
30
Id.
31
Id.
15
ALEXY, Robert. Teoría de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés
(trad.). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras: p. 1989.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar,
1999.
FACHIN, Rosana Girardi. Em busca da família do novo milênio. Uma reflexão crítica sobre
as origens históricas e as perspectivas do Direito de Família contemporâneo. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001.
PIOVESAN, Flávia; RIOS, Roger Raupp. A Discriminação por orientação sexual. In:
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Cadernos do CEF. Volume 24.
16
SILVA, José Afonso da. A dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da
Democracia. In: Revista de Direito Administrativo nº 212, 1998.