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O DIREITO HOMOAFETIVO À LUZ DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS:

A policromia da fotografia da família contemporânea na moldura constitucional

MELINA GIRARDI FACHIN

Mestre e Doutoranda em Direito Constitucional, com ênfase em direitos humanos,


pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/BR, Professora do Curso de
Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e das Faculdades Integradas do
Brasil/UNIBRASIL (Curitiba/PR). Advogada.

SUMÁRIO: 1. Notas Introdutórias. 2. A MOLDURA: O Refundado


Marco Normativo de Proteção Constitucional aos Direitos
Fundamentais. 3. A FOTOGRAFIA: A Proteção Jurisdicional dos
Direitos Homoafetivos. 4. O ALBUM DE FAMÍLIA: Algumas notas
conclusivas. 5. Referências Bibliográficas.

1. Notas Introdutórias.

O presente ensaio tem como foco, por meio das lentes do sistema constitucional
pátrio, avaliar o amparo jurídico concedido à liberdade de orientação e identidade sexual
pelos princípios insculpidos na Carta Constitucional de 1988.

O tema mostra-se bastante intricado vez que, em que pese a interpretação decorrente
da axiologia e principiologia constitucionais eleitas, para além da presença de cláusulas gerais
de igualdade, a Constituição Brasileira não faz referência explícita à questão da orientação
sexual.

A ausência expressa do tema no texto constitucional, por certo, responde à herança


da dominação cultural pautada em valores androcêntricos e reducionismos religiosos
intolerantes que prevalecia, e infelizmente ainda prevalece, no cenário pátrio. Tal se espelha
nos elevados indicadores de práticas discriminatórias registradas ainda hoje em nosso país,
consoante entoam as vozes da doutrina:
2  
 

O Brasil é conhecido como um dos países em que há o maior número de


assassinatos por orientação sexual. Há dados estatísticos – não tão precisos, porque
há dificuldade em sua realização – de que a cada dois dias uma pessoa é assassinada
no Brasil em função de sua orientação sexual, informação absolutamente
avassaladora.1

Mesmo com a ausência normativa expressa sobre o tema, o texto constitucional é


apto a auxiliar na transmudação deste cenário incompatível com a tutela hodierna dos direitos
humanos. No prisma constitucional brasileiro a tutela da liberdade da identidade sexual deriva
de hermenêutica construída a partir dos princípios constitucionais estruturados, sobretudo, em
prol da proteção dignidade humana.

A ausência da imperiosa proteção normativa específica nos leva à compreensão de


que princípios e regras protetivos dos direitos humanos são signos cujos significados são e
devem ser constantemente (re)construídos. Os direitos não emergem, assim, quando for
desejável, mas sim, quando for possível de acordo com os avanços e recuos da história,
consoante nos ensina Norberto Bobbio2. Diante desta reconstrução permanente, as
declarações que tutelam direitos, dentre elas o regime dos direitos fundamentais contidos na
3
Carta Constitucional pátria, são “instrumentos vivos” que devem se adaptar e readaptar as
demandas sociais.

Foi justamente nesse influxo, a partir de construção crítica e evolutiva sobre o


significante da proteção da dignidade humana, que se erigiu a paradigmática decisão do
Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 132 e ADIN nº 4277 na qual se assegurou, ainda que
com décadas de atraso, a igualdade no tratamento em relação à constituição familiar – no caso

                                                                                                                         
1
PIOVESAN, Flávia; RIOS, Roger Raupp. A Discriminação por orientação sexual. In: CONSELHO DA
JUSTIÇA FEDERAL. Cadernos do CEF. Volume 24. p. 155.
2
“Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os
direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas
circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual, não todos de uma vez nem de uma vez por todas.” In: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de
Janeiro: Campus, 1993. p. 5.
3
Expressão utilizada pela Corte Europeia de Direitos Humanos no leading case: “The Court must also recall that
the Convention is a living instrument which, as the Commission rightly stressed, must be interpreted in the light
of present-day conditions. In the case now before it the Court cannot but be influenced by the developments and
commonly accepted standards in the penal policy of the member States of the Council of Europe in this field.”
In: CORTE EUROPÉIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Tyrer v. UK. Application no. 5856/72. Julgado em
25 Abril de 1978.
3  
 

a União Estável – para as uniões homoafetivas4. Partindo-se das mesmas balizas de raciocínio,
o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) concedeu aos relacionamentos homoafetivos os mesmos
direitos decorrentes da união estável, inclusive a facilitação da conversão da união estável em
casamento, determinada pelo comando constitucional do art. 2265.

À luz desses pressupostos, o presente artigo tem como objetivo a análise dos
princípios constitucionais protetivos da liberdade de orientação e identidade sexuais,
formando, verdadeiro direito homoafetivo a garantir a todos – independente de suas práticas
sexuais e afetivas – “o direito a ter direitos” 6.

Para levar a cabo tal objetivo, a presente reflexão partirá da principiologia


constitucional refundada que abrolha em 1988 possibilitadora da tutela efetiva dos direitos
homoafetivos sumariada pelas decisões paradigmáticas acima postas que bem demonstram a
tutela decorrente da liberdade de orientação sexual no direito pátrio, em que pese ausente
normativa específica.

Importa ressaltar que as recentes decisões das mais altas Cortes de Justiça brasileiras
apenas foram possíveis à luz da refundação da proteção dos direitos fundamentais operada
pela Constituição de 1988. Fosse outra a moldura, a fotografia não caberia!

Expostas as balizas, impende adentrar na presente reflexão proposta carregando,


como mote, as palavras de Boaventura de Sousa Santos:

Temos o direito a sermos iguais quando a diferença nos inferioriza. Temos o direito
a sermos diferentes quando a igualdade nos descaracteriza. As pessoas querem ser
iguais, mas querem respeitadas suas diferenças. Ou seja, querem participar, mas
querem também que suas diferenças sejam reconhecidas e respeitadas.7

                                                                                                                         
4
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
5
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
6
“A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da
procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião — fórmulas que se destinavam a
resolver problemas dentro de certas comunidades — mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade.
Sua situação angustiante não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis
para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para
oprimi-los.” In: ARENDT, Hannah. As Origens do Totalitarismo. São Paulo: Cia das Letras: p. 1989. p. 293.
7
SANTOS, Boaventura de Sousa. Por uma concepção multicultural de direitos humanos In: _____ (org) .
Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003. p. 458.
4  
 

2. A MOLDURA: O Refundado Marco Normativo de Proteção


Constitucional aos Direitos Fundamentais.

Antes de passar a análise da principiologia constitucional especificamente


possibilitadora da tutela dos direitos homoafetivos, mister delinear, em momento precedente,
breves linhas sobre a moldura constitucional ensejadora da interpretação que se erigiu, em
recente tempo, na jurisprudência nacional.

O marco de proteção da pessoa humana, instituído pela Constituição de 1988,


ineditamente no constitucionalismo pátrio, recebe a devida relevância e destaque. Os direitos
são levados a sério, na expressão de Dworkin8, pela nova ordem constitucional inaugurada
com a redemocratização.

A Constituição entrevista como “instrumento vivo” 9, consoante acima já assinalado,


é fruto de seu tempo e, portanto, da proteção possível – que nem sempre corresponde aquela
desejada10 – em termos de direitos fundamentais e tutela da dignidade humana. Eis a razão
pela qual, em que pese todas essas inovações trazidas na matéria, consoante abaixo se verá
com maior pormenor, em relação à liberdade de orientação sexual e os direitos homoafetivos
daí decorrentes, o texto constitucional não fez nenhum comprometimento específico.

A proteção dos direitos fundamentais na Constituição de 1988, pela estrutura que


carrega consigo, possibilita – mesmo sem fazer referência expressa – incluir em seu escopo a
proteção da liberdade de orientação sexual e os direitos homoafetivos daí decorrentes.

A alteração de localização topográfica da matéria dentro do caderno constitucional é


simbólica da alteração do tratamento da temática. Os direitos fundamentais passam a integrar
o início do texto constitucional, operando como verdadeiros alicerces do edifício
constitucional que sobre eles se erigirá.

Além disso, o comando constitucional passa a responder aos direitos e garantias


fundamentais e não mais aos “direitos e garantias individuais”, consoante os modelos
anteriores. Nesse influxo, pela primeira vez, os direitos sociais são trazidos para dentro da
                                                                                                                         
8
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
9
CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Tyrer v. UK. Application no. 5856/72. Julgado em 25
Abril de 1978.
10
A noção de que os direitos humanos nascem quando é possível e não quando é desejável está na obra de
Norberto Bobbio, a saber: BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1993. p. 5.
5  
 

ordem jusfundamental, sendo encarados como verdadeiros direitos exigíveis e sindicáveis ao


revés de caridades de Estado. Para além dos direitos sociais, a constituição nesta seara
também é bastante analítica, estendendo quantitativa e qualitativamente o rol dos direitos
fundamentais, abraçando “novos” direitos.

A profusão da amplitude do catálogo corresponde também à pluralidade abraçada


pela Carta Constitucional no que tange às diferentes espécies e teorias de direitos adotadas. Os
direitos fundamentais são efetivamente multifuncionais11 na Constituição de 1988 não
correspondendo a um comando único de atuação, seja por parte do Estado, ou mesmo diante
de outros particulares.

Além disso, é peremptório o texto constitucional ao afixar um mínimo de efetividade


às normas constitucionais, com o § 1º do art. 5º. O comando normativo demonstra a
preocupação constituinte, independente da natureza do direito, mesmo diante das normas
estabelecedoras de programas e ações estatais que marcam o forte cunho programático e
dirigente da Constituição12, com uma efetivação constitucional mínima.

Os direitos e garantias fundamentais ganham o reforço do status jurídico


diferenciado gozado por integrarem o núcleo de dureza da constitucional espelhado no artigo
60 § 4º. Tendo em vista que os direitos fundamentais dão identidade e compõe a essência
constitucional, não podem estes ser suprimidos pelo poder constituinte derivado.

Não fossem todas essas importantes características que conformam verdadeiro


divisor de águas na tutela da pessoa humana na ordem jurídica pátria, quiçá o passo mais
avançado dado pela Constituição neste influxo é a fixação da centralidade do princípio da
dignidade da pessoa humana.

Pela primeira vez na história constitucional pátria o princípio da dignidade da pessoa


humana é positivado e, em 1988, assume locus nodal como baldrame da república federativa
brasileira. Tendo em vista que os direitos fundamentais são, em verdade, concretizações do
princípio da dignidade humana13, destacá-lo como princípio fundamento é trazer, ainda mais,
os direitos fundamentais para o centro do palco de debates constitucionais.

                                                                                                                         
11
Expressão cunhada por: JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000.
12
Designação de autoria de: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 6 ed. Coimbra: Almedina, 2002.
13
ALEXY, Robert. Teoría de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés (trad.). Madrid:
Centro de Estudios Constitucionales, 1993.
6  
 

O princípio da dignidade da pessoa humana desponta, no cenário constitucional


pátrio, como substância própria e comungada por todos os direitos humanos e fundamentais,
pois, como bem destaca Jorge Miranda, “os direitos e garantias fundamentais podem, com
efeito, ainda que de modo e intensidade variáveis, ser reconduzidos de alguma forma à ideia
de proteção e desenvolvimento das pessoas” 14. De tal modo, todos os direitos fundamentais
guardam, com modos de intensidade diversos, reflexos do princípio da dignidade da pessoa
humana.15.

Torna-se, assim, indissociável a ideia de direitos fundamentais daquela acerca da


dignidade da pessoa humana16 não apenas por figurar como elemento referencial daqueles,
mas também, porque todos os direitos materialmente fundamentais são exigências de
concretização deste princípio.

Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana avulta no ordenamento jurídico


constitucional a partir da sua centralidade que privilegia a posição do sujeito concreto e suas
necessidades, passando a incidir de forma especial e diversa sobre os demais princípios
constitucionais.

O princípio da dignidade da pessoa humana assumiu no horizonte brasileiro, com a


Constituição de 1988, lugar de realce no ordenamento jurídico pátrio. Desde então, a ideia e
os conceitos que permeiam esta noção sofreram – e prosseguem nesta singra – diversas
alterações posto que signo que comporta, à luz do contexto espaço-temporal no qual for
apreendido, diversos significados.

                                                                                                                         
14
MIRANDA, Jorge. Apud: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais
na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 82.
15
Nas palavras de José Afonso da Silva este princípio “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”. In:
SILVA, José Afonso da. A dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. In: Revista de
Direito Administrativo nº 212, 1998. p. 93-107.
16
Importante ressalva levantada pelo Professor Ingo Sarlet ao ponderar que “a tese de acordo com a qual a
dignidade da pessoa humana não se identifica (não se confunde), pelo menos não necessariamente, com o núcleo
essencial dos direitos fundamentais tem prevalecido e é também por nós acolhida, seja pelo fato de estarmos
convencidos que nem todos os direitos fundamentais possuem um conteúdo em dignidade, mas todos possuem
um núcleo essencial (já que é vedada sua abolição), seja pela circunstância de que – na esteira do que sustenta a
doutrina majoritária – tal garantia restaria esvaziada em se aceitando uma identidade absoluta com o conteúdo
em dignidade. Neste contexto, cumpre lembrar que, muito embora, não tenhamos na constituição de 1988, uma
garantia expressa da proteção do núcleo essencial contra restrições legislativas, doutrina e jurisprudência tem
reconhecido tal garantia, que, de resto, decorre da violação expressa da abolição efetiva e tendencial dos direitos
fundamentais pelo poder de reforma constitucional.” Entretanto, arremata: “De qualquer modo, entendemos ser
possível, no mínimo, sustentar o ponto de vista de acordo com o qual os direitos humanos fundamentais
correspondem a explicitações, em maior ou menor grau, do princípio da dignidade da pessoa humana.”
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de
1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 177 e 115, respectivamente.
7  
 

A partir dessas premissas, é impraticável “reduzir a uma fórmula abstrata e genérica


aquilo que constituí o conteúdo da dignidade da pessoa humana” 17. Assim sendo, as reflexões
acerca da dignidade devem ser miradas in casu sob pena de recair em mero abstracionismo
que inviabilize sua aplicação prática.

Foi justamente o que fez a recente e louvável jurisprudência pátria ao aplicar o


referido princípio em matéria de proteção à liberdade de orientação sexual e os consectários
daí advindos.

3. A FOTOGRAFIA: A Proteção Jurisdicional dos Direitos Homoafetivos.

Consoante acima já explicitado, foi a partir da moldura protetiva inaugurada pela


Carta Constitucional de 1988, que foi possível, ainda que com atraso, ver emergir, por meio
de construção crítica e evolutiva dos significantes constitucionais, na jurisprudência pátria
recentes decisões acerca da tutela das demandas de reconhecimento familiar dos
relacionamentos homoafetivos. Nesse contexto, despontam as decisões do Supremo Tribunal
Federal na ADPF nº 132 e ADIN nº 4277 na qual a forma de constituição familiar União
Estável foi estendida àquelas homoafetivas18. Além e como consectária desta, releve-se o
decisum do Supremo Tribunal de Justiça19 (STJ) que estendeu à União Estável homoafetiva
os mesmos direitos decorrentes da união estável, inclusive a facilitação da sua conversão em
casamento, determinada pelo comando constitucional do art. 226.

Em face do papel nodal que as decisões possuem acerca do tema eleito, o artigo, para
além das balizas teórico-normativas, buscou privilegiar o estudo de casos concretos sobre a
temática. Isso porque a análise de casos cumpre duplo papel: em primeiro plano, evidenciar a
indissociabilidade da teoria e da prática na seara dos direitos humanos; em segundo plano,
realçar a relevância do método tópico20 na investigação da pesquisa científica.

                                                                                                                         
17
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal
de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 107.
18
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
19
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
20
“A Constituição com a metodologia tópica perde, até certo ponto, aquele caráter reverencial que o formalismo
clássico lhe conferira. A tópica abre tantas janelas para a realidade circunjacente que o aspecto material da
Constituição, tornando-se, quer se queira quer não, o elemento predominante, tende a absorver por inteiro o
8  
 

O Supremo Tribunal Federal (STF), em julgamento conjunto da Ação Direta de


Inconstitucionalidade (ADIN) nº 427721 e da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) nº 13222, em maio de 2011, reconheceu a extensão da forma familiar
pautada na união estável para casais do mesmo sexo.

O Relator das ações, Ministro Ayres Britto, votou no sentido de dar provimento ao
reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, na forma de
união estável, já que, segundo seu voto, não o fazê-lo seria discriminação constitucionalmente
vedada posto que, neste caso, a preferência sexual não é apta a tratamentos jurídicos díspares.
Assim o fez em voto ementado abaixo seguido por unanimidade:

1. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL


(ADPF). PERDA PARCIAL DE OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE
REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO
JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA
ABSTRATA. JULGAMENTO CONJUNTO. Encampação dos fundamentos da
ADPF nº 132-RJ pela ADI nº 4.277-DF, com a finalidade de conferir “interpretação
conforme a Constituição” ao art. 1.723 do Código Civil. Atendimento das condições
da ação. 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO
SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO),
SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A
PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO
COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR
DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA
DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA
PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita
em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de
preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir
frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio
normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como
saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver
juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”.
Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio
da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da
consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da
proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O
concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais.

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
aspecto formal.” In: BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 452-
453.
21
A ADIn nº 4277 foi inicialmente ajuizada no STF pela Procuradoria Geral de Justiça como ADPF 178. Nesta
lide buscava-se o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, estendendo o
mesmo tratamento nas uniões estáveis aos companheiros nas uniões entre pessoas do mesmo sexo.
22
A ADPF nº 132, de legitimação ativa do governo do Estado do Rio de Janeiro demandava perante o STF a
aplicação do regime jurídico das uniões estáveis às uniões homoafetivas de funcionários públicos civis do Rio de
Janeiro, sob o pálio que sua negativa de transposição contraria preceitos constitucionais fundamentais.
9  
 

Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade


constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea. 3.
TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA.
RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO
EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO
ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO
CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO
SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-
REDUCIONISTA. O caput do art. 226 confere à família, base da sociedade, especial
proteção do Estado. Ênfase constitucional à instituição da família. Família em seu
coloquial ou proverbial significado de núcleo doméstico, pouco importando se
formal ou informalmente constituída, ou se integrada por casais heteroafetivos ou
por pares homoafetivos. A Constituição de 1988, ao utilizar-se da expressão
“família”, não limita sua formação a casais heteroafetivos nem a formalidade
cartorária, celebração civil ou liturgia religiosa. Família como instituição privada
que, voluntariamente constituída entre pessoas adultas, mantém com o Estado e a
sociedade civil uma necessária relação tricotômica. Núcleo familiar que é o principal
lócus institucional de concreção dos direitos fundamentais que a própria
Constituição designa por “intimidade e vida privada” (inciso X do art. 5º). Isonomia
entre casais heteroafetivos e pares homoafetivos que somente ganha plenitude de
sentido se desembocar no igual direito subjetivo à formação de uma autonomizada
família. Família como figura central ou continente, de que tudo o mais é conteúdo.
Imperiosidade da interpretação não-reducionista do conceito de família como
instituição que também se forma por vias distintas do casamento civil. Avanço da
Constituição Federal de 1988 no plano dos costumes. Caminhada na direção do
pluralismo como categoria sócio-político-cultural. Competência do Supremo
Tribunal Federal para manter, interpretativamente, o Texto Magno na posse do seu
fundamental atributo da coerência, o que passa pela eliminação de preconceito
quanto à orientação sexual das pessoas. 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO
CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA
ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO
CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS
HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO
GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS
DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. A referência constitucional à
dualidade básica homem/mulher, no §3º do seu art. 226, deve-se ao centrado intuito
de não se perder a menor oportunidade para favorecer relações jurídicas horizontais
ou sem hierarquia no âmbito das sociedades domésticas. Reforço normativo a um
mais eficiente combate à renitência patriarcal dos costumes brasileiros.
Impossibilidade de uso da letra da Constituição para ressuscitar o art. 175 da Carta
de 1967/1969. Não há como fazer rolar a cabeça do art. 226 no patíbulo do seu
parágrafo terceiro. Dispositivo que, ao utilizar da terminologia “entidade familiar”,
não pretendeu diferenciá-la da “família”. Inexistência de hierarquia ou diferença de
qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado
núcleo doméstico. Emprego do fraseado “entidade familiar” como sinônimo perfeito
de família. A Constituição não interdita a formação de família por pessoas do
mesmo sexo. Consagração do juízo de que não se proíbe nada a ninguém senão em
face de um direito ou de proteção de um legítimo interesse de outrem, ou de toda a
sociedade, o que não se dá na hipótese sub judice. Inexistência do direito dos
indivíduos heteroafetivos à sua não-equiparação jurídica com os indivíduos
homoafetivos. Aplicabilidade do §2º do art. 5º da Constituição Federal, a evidenciar
que outros direitos e garantias, não expressamente listados na Constituição,
emergem “do regime e dos princípios por ela adotados”, verbis: “Os direitos e
garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e
dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte”. 5. DIVERGÊNCIAS LATERAIS QUANTO À
FUNDAMENTAÇÃO DO ACÓRDÃO. Anotação de que os Ministros Ricardo
Lewandowski, Gilmar Mendes e Cezar Peluso convergiram no particular
entendimento da impossibilidade de ortodoxo enquadramento da união homoafetiva
nas espécies de família constitucionalmente estabelecidas. Sem embargo,
10  
 

reconheceram a união entre parceiros do mesmo sexo como uma nova forma de
entidade familiar. Matéria aberta à conformação legislativa, sem prejuízo do
reconhecimento da imediata auto-aplicabilidade da Constituição. 6.
INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE
COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO
CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO
FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação
em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não
resolúvel à luz dele próprio, faz-se necessária a utilização da técnica de
“interpretação conforme à Constituição”. Isso para excluir do dispositivo em causa
qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e
duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser
feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável
heteroafetiva.23

Extraí-se do sumariamento das razões do voto acima postas, o corolário do princípio


da dignidade humana como fonte decisória vez que dele emanam diretamente, independente
de previsão constitucional expressa, o direito à preferência sexual e a autonomia privada do
uso da sexualidade.

Destarte, o princípio da dignidade da pessoa humana impõe-se ativamente como


garantidor do pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo, consoante as lições
de Paulo da Mota Pinto, para quem:

A afirmação da liberdade de desenvolvimento da personalidade humana e o


imperativo de promoção das condições possibilitadoras desse livre desenvolvimento
constituem já corolários do reconhecimento da dignidade da pessoa humana como
valor no qual se baseia o Estado.24

Nos termos do voto condutor, reside na dignidade humana a “base jurídica para a
construção do direito à orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e
inegável” 25 a todos os seres. Nota-se, portanto, clara imbricação entre o princípio alicerce da
dignidade da pessoa humana e a faculdade de livre desenvolvimento das potencialidades da
personalidade individual, o que per se engloba o direito à autodeterminação sexual e seu
consequente respeito.

                                                                                                                         
23
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADPF 132, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Tribunal Pleno, julgado
em 05/05/2011, DJe-198 DIVULG 13-10-2011 PUBLIC 14-10-2011 EMENT VOL-02607-01 PP-00001.
24
MOTA PINTO, Paulo. Notas sobre o Direito ao Livre Desenvolvimento da Personalidade no Direito
Português. p. 151 e 152. In: SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição Concretizada. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2000.
25
FACHIN, Luiz Edson. Elementos Críticos do Direito de Família. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. P. 95.
11  
 

Partindo do subtrato de tutela fornecido pela interpretação decorrente do princípio da


dignidade humana, firma o Pretório Excelso o binômio que no caso concreto exsurge: de um
lado, a liberdade de manifestação e uso da sexualidade e, de outro, a igualdade no tratamento
jurídico vez que o sexo “não se presta como fator de desigualação jurídica”, nas palavras do
Ministro Relator Ayres Brito.

A partir desta ótica, a dignidade humana, sustentáculo formativo dos princípios da


liberdade e da igualdade, irradia-se nas relações jurídicas como barreira à discriminação por
motivo de orientação sexual. Essa força irradiadora alça todos os rincões do ordenamento,
mesmo aqueles que correspondam aos recônditos mais privados dos indivíduos, como a vida
íntima e familiar. Nesse diapasão Konrad Hesse alerta que os direitos fundamentais
“exprimem determinados valores que o Estado não apenas deve respeitar, mas também
promover e proteger, valores estes que, de outra parte, alcançam uma irradiação por todo
ordenamento jurídico – público e privado” 26.

É justamente neste influxo que, por meio das lentes constitucionais da liberdade e
igualdade, decorrentes do princípio-fundamento, prossegue o voto entoando que a
Constituição não interdita a formação de família por pessoas do mesmo sexo porque não há
apenas um conceito de entidade familiar albergado na ordem constitucional.

Da leitura acima exposta, consoante uma interpretação constitucionalmente


conforme, a família contemporânea é fruto antes do afeto do que do direito, devendo este
último se conformar – pela moldura elastecida dada pela Constituição Federal – aos fatos
familiares que batem as portas da lei27 neste novo milênio. Esse novo modelo de entidade
familiar busca “construir uma história em comum, não mais a união formal, o que existe é
uma comunhão afetiva, cuja ausência implica a falência do projeto de vida” 28.

Foi, portanto, com base neste arcabouço, que o Supremo Tribunal Federal, ainda que
divergindo parcialmente sobre a fundamentação do enquadramento da união homoafetiva na
espécie de união estável constitucionalmente estabelecida, emoldurou, com efeitos erga
omnes próprio da jurisdição concentrada de controle de constitucionalidade, o retrato da
homoafetividade na galeria das famílias jurídicas pátrias.

                                                                                                                         
26
HESSE, Konrad. Apud: SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição Concretizada: construindo pontes entre o
público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. p. 119.
27
Referência ao conto de Franz Kafka intitulado Diante da Lei.
28
FACHIN, Rosana. Em busca da família do novo milênio. Uma reflexão crítica sobre as origens históricas e as
perspectivas do Direito de Família contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 7.
12  
 

Não restou muito tempo, o Superior Tribunal de Justiça deu o passo adiante
decorrente da decisão acima exposta do STF. Tendo em vista que o próprio artigo 226 da
Constituição Federal, em seu parágrafo 3º dispõe que a lei deve promover a facilitação da
conversão da união estável em casamento, partindo do paradigma fixado na ADPF nº 132 e
ADIN nº 4277, não restou outra saída ao STF senão o reconhecimento da facilitação também
da união estável entre pessoas do mesmo sexo em casamento.

Em outubro de 2011, a Quarta Turma do STJ, por maioria, deu provimento a recurso
de duas mulheres que pediam para ser habilitadas ao casamento civil. A vinculação com a
decisão do Pretório Excelso restou clara nas palavras do Relator Ministro Luis Felipe
Salomão:

Por consequência, o mesmo raciocínio utilizado, tanto pelo STJ quanto pelo
Supremo Tribunal Federal (STF), para conceder aos pares homoafetivos os direitos
decorrentes da união estável, deve ser utilizado para lhes franquear a via do
casamento civil, mesmo porque é a própria Constituição Federal que determina a
facilitação da conversão da união estável em casamento.

Novamente o corolário do princípio da dignidade humana foi o condutor da


fundamentação majoritária assim ementada:

DIREITO DE FAMÍLIA. CASAMENTO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO


SEXO (HOMOAFETIVO). INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 1.514, 1.521, 1.523,
1.535 e 1.565 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO
EXPRESSA A QUE SE HABILITEM PARA O CASAMENTO PESSOAS DO
MESMO SEXO. VEDAÇÃO IMPLÍCITA CONSTITUCIONALMENTE
INACEITÁVEL. ORIENTAÇÃO PRINCIPIOLÓGICA CONFERIDA PELO STF
NO JULGAMENTO DA ADPF N. 132/RJ E DA ADI N. 4.277/DF. 1. Embora
criado pela Constituição Federal como guardião do direito infraconstitucional, no
estado atual em que se encontra a evolução do direito privado, vigorante a fase
histórica da constitucionalização do direito civil, não é possível ao STJ analisar as
celeumas que lhe aportam "de costas" para a Constituição Federal, sob pena de ser
entregue ao jurisdicionado um direito desatualizado e sem lastro na Lei Maior. Vale
dizer, o Superior Tribunal de Justiça, cumprindo sua missão de uniformizar o direito
infraconstitucional, não pode conferir à lei uma interpretação que não seja
constitucionalmente aceita. 2. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento conjunto
da ADPF n. 132/RJ e da ADI n. 4.277/DF, conferiu ao art. 1.723 do Código Civil de
2002 interpretação conforme à Constituição para dele excluir todo significado que
impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do
mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de
família. 3. Inaugura-se com a Constituição Federal de 1988 uma nova fase do direito
de família e, consequentemente, do casamento, baseada na adoção de um explícito
poliformismo familiar em que arranjos multifacetados são igualmente aptos a
13  
 

constituir esse núcleo doméstico chamado "família", recebendo todos eles a


"especial proteção do Estado". Assim, é bem de ver que, em 1988, não houve uma
recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado
como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de
subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa
humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que
ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais
também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da
proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a
proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. 4. O pluralismo familiar
engendrado pela Constituição - explicitamente reconhecido em precedentes tanto
desta Corte quanto do STF - impede se pretenda afirmar que as famílias formadas
por pares homoafetivos sejam menos dignas de proteção do Estado, se comparadas
com aquelas apoiadas na tradição e formadas por casais heteroafetivos. 5. O que
importa agora, sob a égide da Carta de 1988, é que essas famílias multiformes
recebam efetivamente a "especial proteção do Estado", e é tão somente em razão
desse desígnio de especial proteção que a lei deve facilitar a conversão da união
estável em casamento, ciente o constituinte que, pelo casamento, o Estado melhor
protege esse núcleo doméstico chamado família. 6. Com efeito, se é verdade que o
casamento civil é a forma pela qual o Estado melhor protege a família, e sendo
múltiplos os "arranjos" familiares reconhecidos pela Carta Magna, não há de ser
negada essa via a nenhuma família que por ela optar, independentemente de
orientação sexual dos partícipes, uma vez que as famílias constituídas por pares
homoafetivos possuem os mesmos núcleos axiológicos daquelas constituídas por
casais heteroafetivos, quais sejam, a dignidade das pessoas de seus membros e o
afeto. 7. A igualdade e o tratamento isonômico supõem o direito a ser diferente, o
direito à auto-afirmação e a um projeto de vida independente de tradições e
ortodoxias. Em uma palavra: o direito à igualdade somente se realiza com plenitude
se é garantido o direito à diferença. Conclusão diversa também não se mostra
consentânea com um ordenamento constitucional que prevê o princípio do livre
planejamento familiar (§ 7º do art. 226). E é importante ressaltar, nesse ponto, que o
planejamento familiar se faz presente tão logo haja a decisão de duas pessoas em se
unir, com escopo de constituir família, e desde esse momento a Constituição lhes
franqueia ampla liberdade de escolha pela forma em que se dará a união. 8. Os arts.
1.514, 1.521, 1.523, 1.535 e 1.565, todos do Código Civil de 2002, não vedam
expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, e não há como se
enxergar uma vedação implícita ao casamento homoafetivo sem afronta a caros
princípios constitucionais, como o da igualdade, o da não discriminação, o da
dignidade da pessoa humana e os do pluralismo e livre planejamento familiar. 9.
Não obstante a omissão legislativa sobre o tema, a maioria, mediante seus
representantes eleitos, não poderia mesmo "democraticamente" decretar a perda de
direitos civis da minoria pela qual eventualmente nutre alguma aversão. Nesse
cenário, em regra é o Poder Judiciário - e não o Legislativo - que exerce um papel
contramajoritário e protetivo de especialíssima importância, exatamente por não ser
compromissado com as maiorias votantes, mas apenas com a lei e com a
Constituição, sempre em vista a proteção dos direitos humanos fundamentais, sejam
eles das minorias, sejam das maiorias. Dessa forma, ao contrário do que pensam os
críticos, a democracia se fortalece, porquanto esta se reafirma como forma de
governo, não das maiorias ocasionais, mas de todos. 10. Enquanto o Congresso
Nacional, no caso brasileiro, não assume, explicitamente, sua coparticipação nesse
processo constitucional de defesa e proteção dos socialmente vulneráveis, não pode
o Poder Judiciário demitir-se desse mister, sob pena de aceitação tácita de um
Estado que somente é "democrático" formalmente, sem que tal predicativo resista a
uma mínima investigação acerca da universalização dos direitos civis. 11. Recurso
especial provido.29

                                                                                                                         
29
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1183378/RS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO,
QUARTA TURMA, julgado em 25/10/2011, DJe 01/02/2012.
14  
 

Assevera o STJ, a partir do redesenho institucional de 1988, que a dignidade da


30
pessoa humana “não é aumentada nem diminuída em razão do uso da sexualidade” , nos
termos do voto do Ministro Relator e prossegue asseverando que “a orientação sexual não
pode servir de pretexto para excluir famílias da proteção jurídica representada pelo
casamento” 31.

Nesse influxo, aponta a dignidade da pessoa humana na qualidade de garante do


tratamento isonômico que as inúmeras formas familiares – a multiformalidade a que aludiu o
Relator – devem receber aos olhos da Constituição de 1988 posto que a família é fato que
ocupa posição anterior ao Direito que lhe dá a forma e conteúdo jurídico, mas não é elemento
constituinte.

Destarte, à luz da principiologia constitucional, e reconhecendo o princípio da


pluralidade familiar, o STJ deu provimento ao recurso a fim de conceder habilitação ao
casamento de pessoas do mesmo sexo.

Eis o novo colorido que se somou as imagens da família brasileira por meio da
postura ativa e consciente da atuação jurisdicional que tem como baldrame a ordem
jusfundamental de proteção dos seres humanos insculpida no texto constitucional brasileiro.

4. O ALBUM DE FAMÍLIA: Algumas notas conclusivas.

Do acima exposto, resta claro que, em que pese a ausência de disposição


constitucional específica, a moldura do texto constitucional de 1988, em decorrência do
regime jurídico dos direitos fundamentais inaugurado, propicia a tutela das liberdades de
orientação e identidade sexual com o consequente alargamento da compreensão dos signos
familiares.

Ainda que com certo atraso, foi nesse diapasão, que em 2011, as Cortes Superiores
pátrias consolidaram em sua jurisprudência a necessidade de, parafraseando Dworkin acima já
citado, levar os direitos homoafetivos a sério alçando-lhes tratamento constitucional condigno
e isonômico. Reitere-se que este passo apenas foi possível na trilha previamente iluminada
pela ótica constitucional, sobretudo, com as luzes do princípio da dignidade humana.
                                                                                                                         
30
Id.
31
Id.
15  
 

Emerge da fundamentação expendida que a moldura constitucional de 1988 é,


realçada como pano de fundo para um novo capítulo no álbum de fotografias da família
brasileira. Passa-se da monocromia dos modelos dogmáticos e prefixados, à policromia do
afeto que colore a realidade plural e mutante.

5. Referências Bibliográficas Básicas.

ALEXY, Robert. Teoría de Los Derechos Fundamentales. Trad. Ernesto Garzón Valdés
(trad.). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993.

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BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1993.

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DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. México: FCE, 2000.

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CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Cadernos do CEF. Volume 24.
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SANTOS, Boaventura de Sousa. Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo


multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Constituição Concretizada. Porto Alegre: Livraria do Advogado,


2000.

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1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.

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